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FACULDADE MERIDIONAL - IMED Selmara Keis Doro O CRIME DE FALSA IDENTIDADE (ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL) E O EXERCÍCIO DA AUTODEFESA QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR MAUS ANTECEDENTES, NA VISÃO DOS TRIBUNAIS. Passo Fundo 2014

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FACULDADE MERIDIONAL - IMED

Selmara Keis Doro

O CRIME DE FALSA IDENTIDADE (ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL) E O

EXERCÍCIO DA AUTODEFESA QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR MAUS

ANTECEDENTES, NA VISÃO DOS TRIBUNAIS.

Passo Fundo

2014

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Selmara Keis Doro

O CRIME DE FALSA IDENTIDADE (ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL) E O

EXERCÍCIO DA AUTODEFESA QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR MAUS

ANTECEDENTES, NA VISÃO DOS TRIBUNAIS.

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de

Direito, da Faculdade Meridional – IMED, como requisito

parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências

Jurídicas, sob a orientação da Prof. Dra. Andréa Caon Reolão

Stobbe.

Passo Fundo

2014

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Selmara Keis Doro

O CRIME DE FALSA IDENTIDADE (ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL) E O

EXERCÍCIO DA AUTODEFESA QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR MAUS

ANTECEDENTES, NA VISÃO DOS TRIBUNAIS.

Banca examinadora:

____________________________

Prof. Ms Andréa Caon Reolão Stobbe

Orientadora

_____________________________

Membro da Banca

______________________________

Membro da Banca

Passo Fundo

2014

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Agradeço a Deus pela força e alegria para a concretização do meu objetivo. O que, pela

elaboração deste trabalho, orientou mais um passo para minha formação em Direito, e exercer

a Advocacia.

Aos meus pais, Volmar e Cecília, e meu namorado Rui pelo apoio e incentivo.

A Professora Andréa Caon Reolão Stobbe demonstrando-se sempre dedicada, compreensiva e

transmitindo-me segurança. Agradeço especialmente a por ter aceitado ser minha orientadora

na elaboração do presente trabalho.

Agradeço a Faculdade Meridional – IMED.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal analisar o crime de falsa identidade, previsto

no artigo 307 do Código Penal (1940), em consonância com o princípio da autodefesa,

verificando, ao mesmo tempo, se este é ou não um princípio constitucional expresso, ou então

uma questão de princípio. Para alcançar tal objetivo, o presente estudo partiu, no primeiro

capítulo, da análise dos princípios constitucionais penais e processuais penais, tendo-os como

bases fundamentais do ordenamento jurídico, bem como da observância dos direitos do

acusado, tudo isso na visão da doutrina. Em seguimento, no segundo capítulo foram

abordadas noções gerais sobre os crimes contra a fé pública, notadamente sobre o crime de

falsa identidade, igualmente baseada na doutrina sobre o tema, afim de auxiliar no

entendimento e fundamentar a parte final. No terceiro capítulo, foi analisado com mais ênfase

o crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal (1940), eis que é o objeto

central do presente estudo. Foram, mais uma vez, estudados os ensinamentos de

doutrinadores, mas também entendimentos jurisprudenciais sobre o crime de falsa identidade

quando cometido para ocultar maus antecedentes. Mas o problema: o acusado preso em

flagrante, ou mesmo ouvido perante a autoridade policial, que se atribuir falsa identidade,

comete o crime de falsa identidade previsto no artigo 307 do Código Penal (1940)? Então o

Supremo Tribunal Federal, considerando matéria de repercussão geral, concluiu pela

tipicidade do crime de falsa identidade, decidiu que não encontra amparo a alegação de

autodefesa quando cometida para ocultar maus antecedentes, podendo-se dizer o mesmo nos

casos em que o acusado atua para ocultar sua condição de foragido. Esse é o entendimento

então que passa a nortear as decisões dos tribunais inferiores. Assim, embora se conclua pela

autodefesa como uma questão de princípio, não serve para justificar o cometimento do crime

de falsa identidade.

Palavras-chave: Autodefesa. Falsa Identidade. Maus Antecedentes.

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ABSTRACT

The present work has as its main objective to analyze the crime of false identity, provided for

in article 307 of the Penal Code (1940), in line with the principle of self-defense, noting, at

the same time, whether or not this is a constitutional principle expressed, or else a matter of

principle. To achieve this objective, this study broke, in the first chapter, the analysis of the

criminal and criminal procedural constitutional principles as fundamental bases of the legal

system, as well as compliance with the rights of the accused, all this in the vision of the

doctrine. In follow-up, in the second chapter, discussed general notions about crimes against

public faith, also based on the doctrine on the subject, in order to assist in the understanding

and support of final part. In the third chapter was analyzed with more emphasis on the crime

of false identity, provided for in article 307 of the Penal Code (1940), behold, the central

object of the present study. Were, once again, studied the teachings of scholars, but also

understanding jurisprudence on the crime of false identity when committed to hide bad

background. But the problem is: the accused arrested red-handed, or even listened to the

police authority, to assign false identity, commits the crime of false identity under article 307

of the Penal Code (1940)? Then the Supreme Court, considering matters of General

repercussion, concluded by the typicality of the crime of false identity, getting decided that

can't find support to claim self-defense when committed to hide bad precedents, can say the

same in cases where the defendant acts to conceal their outlaw status. This understanding are

renumbered guide decisions of inferior courts. Thus, although it is complete for self-defense

as a matter of principle, does not serve to justify the committal of the crime of false identity.

Keywords: Self-defense. False identity. Bad Criminal record.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 7

1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS ................ 9

1.1 Princípios Constitucionais Penais ................................................................................... 9

1.1.1 Princípio da Legalidade .................................................................................................. 9

1.1.2 Princípio da Culpabilidade. .......................................................................................... 10

1.1.3 Princípio da Intervenção Mínima ................................................................................. 11

1.1.4 Princípio da Humanidade ............................................................................................. 11

1.1.5 Princípios da Pessoalidade e da Individualização da Pena ........................................... 12

1.2 Princípios Constitucionais Processuais Penais ............................................................. 13

1.2.1 Princípio do Juiz Natural .............................................................................................. 13

1.2.2 Princípio do Contraditório ............................................................................................ 14

1.2.3 Princípio da Ampla Defesa ........................................................................................... 16

1.2.4 Princípio do Devido Processo Legal ............................................................................. 17

1.2.5 Princípio da Publicidade ............................................................................................... 18

1.2.6 Princípio da Presunção de Inocência ............................................................................ 20

1.2.7 Princípio da Vedação à Utilização de Provas Ilícitas ................................................... 21

1.3 Verificação normativa do princípio nemo tenetur se detegere ..................................... 22

2 DOS CRIMES CONTRA A FÉ PÚBLICA, NOÇÕES GERAIS ................................ 25

3 O CRIME DE FALSA IDENTIDADE QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR

MAUS ANTECEDENTES. ENTENDIMENTOS DOUTRINÁRIOS E

JURISPRUDENCIAIS ................................................................................................. 34

3.1 Análise doutrinária ........................................................................................................ 34

3.2 Análise jurisprudencial ................................................................................................. 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 46

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 48

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INTRODUÇÃO

Durante o período de realização do estágio na Segunda Vara Criminal da Comarca de

Passo Fundo/RS, deparei-me com grande quantidade de processos que envolviam o crime de

falsa identidade, compreendendo as mais variadas situações.

Em face disso, nasceu a curiosidade de, com mais atenção, estudar esse tipo de crime.

Nos casos concretos que pude analisar, em regra, o sujeito ativo sempre vinha denunciado por

outro crime, geralmente mais grave, como, por exemplo, furto. Basicamente o acusado,

perante a autoridade policial, atribuía-se falsa identidade para ocultar seus maus antecedentes,

ou sua condição de foragido do sistema prisional e, ao ser descoberta sua verdadeira

identidade, alegava que havia agido de tal forma no sentido de se “proteger”.

Analisando literalmente o que dispõe o artigo 307 do Código Penal (1940), qualquer

sujeito que se atribuísse falsa identidade, nos termos de tal artigo, incorreria nas penas ali

impostas. Todavia, ao consultar entendimentos doutrinários e jurisprudenciais fui

surpreendida com os mais variados entendimentos, desde decisões judiciais que condenaram

réus nas penas desse crime pela simples prática da conduta prevista no tipo penal, até outros

apontavam que não incorreria neste crime o sujeito que assim agisse para exercer autodefesa.

Então, a necessidade de empreender maior enfoque nesse tipo de crime, analisando

ainda mais conteúdos doutrinário e jurisprudencial para assim conhecer o alcance e o âmbito

de aplicabilidade do crime de falsa identidade.

Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo uma abordagem acerca do crime de

falsa identidade e do princípio da autodefesa, nos casos em que o sujeito ativo atribui-se falsa

identidade com objetivo de ocultar seus maus antecedentes, ou mesmo sua condição de

foragido do sistema prisional.

A justificativa para tanto nasce a partir do momento em que o acusado, preso em

flagrante, ou mesmo ouvido perante a autoridade policial, atribui-se falsa identidade, eis que

não são poucos aqueles que falseiam com sua verdadeira identidade para livrar-se de um

processo criminal.

Esse tema tem larga relevância, pois atinge a fé pública, envolvendo desde a atuação

do Estado na identificação de criminosos até pessoas do povo que podem ser prejudicadas

com esse tipo de delito. Diante de todo esse contexto, necessário, para melhor compreender, o

estudo dos princípios constitucionais penais e processuais penais, na visão doutrinária, bem

como verificar sobre o princípio da autodefesa. Assim, este estudo está compreendido em três

capítulos, que através de objetivos específicos buscará respostas.

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No primeiro capítulo, serão analisados os princípios constitucionais penais e

processuais penais, com amparo doutrinário, consoante a isso para também descobrir se a

autodefesa é um princípio constitucional explícito ou implícito, ou uma questão de princípio.

No segundo capítulo, serão trabalhadas noções gerais dos crimes contra a fé pública dispostos

no Código Penal (1940), analisando-se com mais ênfase o crime de falsa identidade, conforme

disposto no artigo 307, do mesmo diploma legal. Segue-se, no terceiro capítulo, com a

observância e apontamentos nas visões doutrinária e jurisprudencial sobre o crime de falsa

identidade quando cometido para ocultar maus antecedentes, bem como jurisprudência do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e Tribunais Superiores quanto aos

entendimentos que envolvam o princípio “autodefesa”.

O método empregado para a pesquisa que se inicia, a partir do presente Projeto de

Pesquisa, é o dialético.

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1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS

Para discorrer com eficácia e segurança sobre o crime de falsa identidade, que é o

objetivo principal deste trabalho, é de suma importância iniciar o estudo pela base de todo o

ordenamento jurídico. Esta base, os fundamentos do direito material e processual, que

proporciona respaldo às leis e às ações é que nos garante segurança. Estes são os princípios.

Todavia, aqui serão apontados os princípios constitucionais penais e processuais penais, que

devem ser fielmente observados.

Conforme Nucci (2012, p. 41), os princípios são de largo alcance, podendo resolver

diversos problemas e as mais variadas situações, devendo necessariamente ser interpretados e

aplicados. Dentre o conjunto de princípios constitucionais estão os que referem questões de

direito penal e processual penal. Estes, então, serão aqui analisados.

1.1 Princípios Constitucionais Penais

1.1.1 Princípio da Legalidade

Segundo Luisi (2003, p. 17/18), o princípio da legalidade comporta algumas

subdivisões.

A primeira delas trata da reserva legal, encontrada na Constituição Federal (artigo 5º,

inciso XXXIX), dispondo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

prévia cominação legal”. Isso significa dizer que deverá existir lei anterior disciplinando

determinados fatos e condutas como crimes, e que somente após isso um delito pode vir a ser

punido, assim como aplicada pena. Tal princípio busca proteger a liberdade e proporcionar

segurança jurídica aos cidadãos, evitando condutas arbitrárias daqueles que são os

responsáveis pela aplicação das leis, os julgadores (LUISI, 2003, p. 18/24).

A segunda, diz respeito à determinação taxativa, pois as leis, especialmente as penais,

tendo em vista que disciplinam principalmente a liberdade dos cidadãos, devem dispor de

conteúdos claros, de modo que possam facilmente ser interpretadas, sem elementos que

condicionem a expressões duvidosas, obscuras, ambíguas e omissas, ou seja, devem ser

objetivas (LUISI, 2003, p. 24/26).

Já a terceira trata da irretroatividade, informando que a lei penal não retroagirá, exceto

em benefício do réu, mesmo que já tenha sido condenado e não mais haja possibilidade de

recurso, ou seja, a decisão judicial transitada em julgado (LUISI, 2003, p. 26/30).

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A quarta traduz o princípio da legalidade unido ao estado Social, que, para o autor,

trata-se de garantia individual, mas que está subentendido no contexto da sociedade, como

sujeito de direitos e deveres (LUISI, 2003, p. 30/32).

Sobre o princípio da legalidade, Nélson Hungria destaca que a única base do direito

penal é a lei, não sendo possível recorrer à analogia, princípios gerais do direito ou aos

costumes, sequer ser suprida pelo julgador. Este princípio visto sob o ângulo político traduz

em proteção e garantia ao indivíduo ante a atuação do Estado. Não existindo lei, não há que se

falar em crime, sequer em pena (1955, p. 09/24).

No mais, é permitido ao juiz interpretar a lei, delineá-la para estreitar sua ligação a

casos concretos do âmbito social. Mas em havendo dúvida sobre o que a lei prescreve, deve

ser resolvida em favor do réu. Nesse sentido, até mesmo a analogia poderá ser aplicada

(HUNGRIA, 1955, p. 75/91).

1.1.2 Princípio da Culpabilidade.

Na visão de Luisi (2003, p. 32/38), tal princípio está ligado ao sujeito que pratica o

delito. Antes, para que um sujeito fosse responsabilizado por ter incorrido em conduta

criminosa, bastava praticá-la. Não se discutia, por exemplo, se havia agido com ou sem dolo.

Hoje, felizmente, a situação é diversa. Consagrado na Constituição Federal (artigo 5º, inciso

XVII), disciplina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em Julgado de

sentença penal condenatória”.

Em respeito à dignidade da pessoa humana e à liberdade, somente havendo sentença

condenatória transitada em julgado o réu passará a cumprir pena. Aliás, é a culpabilidade que

vai determinar a condenação, a quantidade de pena e a possibilidade de sua substituição

(LUISI, 2003, p. 32/38).

No mesmo sentido, Damásio explica que cabe ao juiz fundamentar o grau de

culpabilidade do agente que podia e tinha condições de agir de maneira diversa, mas não o

fez, ou seja, agiu de forma consciente ao realizar o ilícito. Essa aferição da culpabilidade é

uma determinante da quantidade da pena e do grau de responsabilidade do sujeito ativo (2005,

p. 11).

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1.1.3 Princípio da Intervenção Mínima

Significa dizer que as leis devem objetivar punir, instituir como crime aqueles

comportamentos que realmente atentem contra bens jurídicos, assim como que estas penas

sejam o meio necessário para coibir e corrigir condutas criminosas. Como destaca Luisi

(2003, p. 39):

Surgia o princípio da necessidade, ou da intervenção mínima, preconizando que só

se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário para a

proteção de um determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção se revelam

suficientes para a tutela desse bem, a criminalização é incorreta. Somente se a

sanção penal for instrumento indispensável de proteção jurídica é que a mesma se

legitima.

Assim, é preciso que o direito penal seja encarado como a última solução, devendo

antes disso proceder à utilização de tantos meios legitimados quanto baste para que bens

jurídicos sejam protegidos (LUISI, 2003, p. 38/46).

Aliás, antes de punir, conforme traz Luisi (2003, p. 45), ao observar sistemas jurídicos

distintos do brasileiro, aponta que, antes de se intitular algo como crime é preciso verificar a

medida e sua real necessidade. É importante que a conduta que se quer criminalizar vá de

encontro ao bem jurídico que se quer proteger, bem como seu alcance social e potencial

gravidade. Ao mesmo tempo, a sanção penal deve ser o único meio idôneo e capaz de

coerção.

Objetivando também evitar arbitrariedades por parte do legislador, Damásio leciona

que o Estado somente deve agir, “por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do

Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita” (2005, p. 10).

Nesse sentido, o dispositivo legal que pode ser citado é o artigo 5º, caput, da

Constituição Federal (1988), aduzindo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.

1.1.4 Princípio da Humanidade

O direito penal visa responsabilizar aqueles que atentam contra bens jurídicos,

cometem crimes. E a pena, essencialmente a privativa de liberdade, de uma forma ou outra

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sempre irá atingir a pessoa condenada. Todavia, no cumprimento da pena, os direitos

humanos devem ser respeitados (LUISI, 2003, p. 46/51).

Acerca deste princípio, e à luz da Constituição Federal, Luisi (2003, p. 47/48) destaca

que:

A nossa Constituição Federal de 1988 consagrou em diversos dispositivos o

princípio da humanidade. No inciso XLIX do art. 5º está dispondo que é

“assegurado aos presos o respeito, à integridade física e moral”; E no inciso seguinte

está previsto que “às presidiárias serão asseguradas as condições para que possam

permanecer com seus filhos durante o período da amamentação”. Mas, onde o

princípio em causa assume relevância é no inciso XLVII do mencionado artigo 5º

onde se ordena que não haverá penas: a) de morte salvo em caso de guerra declarada

nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de

banimento; e) cruéis.

Para Nucci (2012, p. 47/48), de um modo ou outro, um crime sempre vai ofender a

dignidade da pessoa humana. Seja em relação ao ofendido, seja em relação ao transgressor.

Ao discorrer sobre a dignidade humana, é imperioso citar o crime de racismo que, embora não

cause diretamente sofrimento ao corpo, dignidade física, ocasiona grande sofrimento no

campo psicológico, ao passo que discrimina, afasta pessoas do convívio social, traz o ódio,

ataca fatores psicológicos, sentidos e a autoestima das vítimas.

Acerca da dignidade da pessoa humana que, se não o mesmo, apresenta estreita

ligação com o princípio da humanidade de que trata o autor Luisi, Guilherme de Souza Nucci

refere que “por certo, deve-se preservar a segurança da vítima, quando, por exemplo,

ameaçada pelo acusado, mas tal situação não elimina a obrigação do Estado de cuidar de

todos, igualmente, retirando o réu de circulação, porém garantindo-lhe a devida prisão” (2012,

p. 54).

1.1.5 Princípios da Pessoalidade e da Individualização da Pena

Conforme Luisi (2003, p. 51/56), ao tratar desses princípios, embora os efeitos da

condenação de uma pessoa reflitam em várias outras, principalmente na família do

condenado, somente ele poderá cumprir sua pena. Significa dizer que nenhuma outra pessoa

poderá cumpri-la em seu lugar. A pena traduz uma forma de punição pela prática de um

delito, devendo então ser cumprida por aquele que nela incorreu.

No que se refere ao princípio da individualização da pena, primeiramente, no caso

concreto deverá ser analisada a pena prevista para o tipo penal em que o condenado incorreu e

suas circunstâncias - artigo 59 do Código Penal – (1940). Após, será verificada a

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possibilidade de sua substituição, de acordo com o quanto de pena foi aplicada e o modo de

execução, que deve ser proporcional à reprimenda. Mas é na execução o momento em que o

condenado vai efetivamente cumprir sanção por ter cometido conduta considerada crime.

Nesse momento, ressalte-se, serão necessariamente observadas as garantias da pessoa presa,

conforme disposto pela Constituição Federal (1988, artigo 5º, incisos XLIX, XLVIII e L), tais

como o respeito à sua integridade, cumprimento da pena em estabelecimento prisional

adequado com o tipo de crime, sexo e idade do condenado, bem como o direito das

presidiárias de ficarem com seus filhos durante o período da amamentação. Demais disso,

deverão sempre ser observadas, quando do cumprimento da pena, as condições para que o

condenado possa ser ressocializado (LUISI, 2003, p. 52/56).

1.2 Princípios Constitucionais Processuais Penais

1.2.1 Princípio do Juiz Natural

O princípio do juiz natural encontra-se disposto no artigo 5º, inciso LIII, da

Constituição Federal (1988), aduzindo que “ninguém será processado nem sentenciado senão

pela autoridade competente”.

De uma maneira simples, o princípio do juiz natural tem estreita ligação com o que

chamamos de segurança jurídica. É a garantia de um julgador investido em poderes instituídos

pela Constituição Federal, sem que sofra qualquer tipo de pressões ou influências alheias e/ou

externas.

A competência do juiz ressalte-se, é determinada anteriormente à ocorrência de

delitos. Assim, inexiste qualquer possibilidade de escolha de um ou outro julgador para

dirimir os casos que são afetos sob sua jurisdição. O princípio do juiz natural, segundo o autor

Aury Lopes Junior (2012, p. 176), “não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro

pressuposto para a própria existência”.

Ao Estado Juiz compete estabelecer, no plano prático, a efetivação dos direitos e

garantias dispostos em nosso ordenamento jurídico. Assim, para que possa exercer

plenamente suas funções, lhe são asseguradas algumas garantias, tais como a independência e

a inamovibilidade. Todavia, deve o juiz sempre observância às disposições constitucionais e

infraconstitucionais, bem como decidir com base no conjunto probatório de que dispõe o

processo (LOPES JUNIOR, 2012, p. 176/178).

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Semelhante correspondência encontra o conceito deste princípio na visão de Nucci

(2012, p. 330/331). Para o autor, o juiz natural é decorrência legal e anterior a um delito. É um

órgão com competência para analisar demandas futuras, aplicar as leis e garantir a efetividade

dos direitos fundamentais. Ademais, é compreendido neste princípio o chamado juiz

imparcial, sendo àquele que profere decisões sem qualquer envolvimento ou declinação por

uma ou outra parte do processo. Embora competente para julgar a causa, deve estar alheio a

qualquer tipo de condições objetivas e subjetivas que possam afetar sua decisão.

É preciso que o princípio do juiz natural esteja aliado ao juiz imparcial, pois, por

vezes, é possível se deparar com situações em que o condutor do processo e uma das partes

sejam amigos íntimos ou inimigos capitais, casos então em que outro será o magistrado a

conduzir e julgar o feito (NUCCI, 2012, p. 332/333).

No ponto, ao tratar do princípio do juiz natural, Avena aduz que:

Compreende-se, assim, da análise do inciso LIII que a pretensão a ele incorporada

objetiva assegurar ao acusado o direito de ser submetido a processo e julgamento

não apenas no juízo competente, como também por órgão do Poder Judiciário

regularmente investido, imparcial e, sobretudo, previamente conhecido segundo

regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à prática da infração

penal. Em conseqüência, veda-se a criação de tribunais ou juízos de exceção (o que

não se confunde com jurisdições especializadas, que constituem simples

desdobramento da atividade jurisdicional), assim como a designação de magistrado

para atuar, especificamente, em um determinado caso, por exemplo, em razão da

condição da pessoa que ocupa o pólo passivo da relação processual penal (2010,

p. 46).

1.2.2 Princípio do Contraditório

O princípio do contraditório, insculpido no artigo 5º, inciso LV, da Constituição

Federal (1988) prescreve que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos

acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a

ela inerentes”. Este princípio traduz, assim, na oportunidade que acusação e defesa têm de

demonstrar a suas versões sobre os fatos.

Segundo Bonfim (2012, p. 81/82), as partes devem sempre ser ouvidas antes que o juiz

profira uma decisão, podendo, inclusive, apresentar provas. É em respeito a esse princípio que

uma das partes do processo toma conhecimento do que foi alegado ou trazido pela outra.

A observância ao princípio do contraditório, na visão de Aury Lopes Júnior (2012. p.

239/240), é condição de validade do processo. Mesmo uma das partes não tendo nada a

alegar, ou que nada queira falar, é lhe dada oportunidade para manifestação. Trata-se de

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princípio que representa questão de ordem pública, não podendo seus mandamentos ser

afastados pela vontade das partes.

Se não existisse o princípio do contraditório, não haveria bilateralidade,

consequentemente com mesmos direitos e oportunidades, não existiria, pois, uma paridade

entre as partes. É princípio que contempla oportunidade de uma parte contestar o que foi

alegado ou apresentado pela outra e de expor sua versão sobre os fatos. Contudo, pode

acontecer que em algum momento nada seja alegado ou contestado por uma das partes.

Todavia, mesmo assim terá sido observado o princípio em tela (NUCCI, 2012, p. 313/314).

Para Avena (2010, p. 41), em relação ao réu, o princípio do contraditório traduz

grande aproximação com o princípio da ampla defesa, tanto é que os dois princípios se

apresentam no mesmo inciso LV, do artigo 5º, da Constituição Federal (1988).

Em que pese num processo haja necessidade de um dos polos tomar conhecimento do

que foi trazido pelo outro, existem limites para tanto, pois “uma das partes finalizará o uso do

contraditório. Não se pode validar o infinito método de contraposição de argumentos ou

pedidos” (NUCCI, 2012, p. 314).

Embora sejam tantas as fases de um processo penal, bem como diversas situações em

que é possível demonstrar observância ao princípio do contraditório, calha bem referir que:

No processo, iniciada a ação penal, recebia a peça acusatória, onde consta a

imputação, há de se citar o réu para que apresente a sua defesa, por escrito,

necessariamente. É contraditório obrigatório, em função da ampla defesa. Em

primeiro momento, o acusado pode refutar a inicial ou pode calar-se, preferindo

postar-se contra a imputação em estágio posterior. Eventualmente, afirmando algo

inédito, em sua primeira impugnação, passível de gerar, por exemplo, a extinção da

punibilidade, deve-se, novamente, provocar a oitiva da parte contrária, o órgão

acusador, a fim de se manifestar em relação a algo, que pode colocar fim à sua

pretensão. Cientes todos dos argumentos levantados, decide o juiz (NUCCI, 2012,

p. 314).

O certo é que os fatos alegados na inicial acusatória deverão ser provados durante a

instrução processual, mesmo que não tenham sido contestados pela defesa, embora seja

inaceitável que a defesa não apresente impugnação sobre as acusações (NUCCI, 2012,

p. 315).

Todavia, algumas provas não serão submetidas ao conhecimento da defesa. Por

exemplo, no momento exato em que foram ou estão sendo produzidas, a citar a interceptação

telefônica judicialmente autorizada, pois o seu conhecimento pela defesa iria comprometer a

produção desta prova. Contudo, a defesa terá oportunidade para manifestação, mas em

momento adequado, ou seja, após sua produção (NUCCI, 2012, p. 316).

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Aliás, o princípio do contraditório, pode-se dizer, não tem prevalência na fase

inquisitorial. Em razão disso, as provas produzidas nesta fase somente serão apreciadas se

encontrarem respaldo com o que foi produzido em fase judicial, que consequentemente terá

sido submetido ao crivo do contraditório (NUCCI, 2012, p. 316/317).

Frise-se que todos tem direito de defesa, sendo necessário, para isso, que o acusado

tome conhecimento do que lhe é imputado. Aliás, mesmo que revel, terá direito a um

defensor, que será nomeado pelo juiz. Nesse sentido, em respeito ao princípio do contraditório

é que se fala na igualdade processual. Ou seja, não há distinção de direitos entre acusação e

defesa (TOURINHO FILHO, 1997, p. 48/51).

1.2.3 Princípio da Ampla Defesa

Assim como no contraditório, o princípio da ampla defesa se encontra disposto no

artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal (1988), demonstrando que “aos litigantes, em

processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e

ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O princípio da ampla defesa representa o dever conferido ao Estado de proporcionar

ao acusado o direito de se defender das acusações que lhe são imputadas. Portanto, faz parte

desta garantia proporcionada ao réu o dever do Estado de prestar assistência judiciária gratuita

aos que dela necessitem (AVENA, 2010, p. 43/44).

Representa, ademais, a proteção, a possibilidade de defesa a todo cidadão que se vê

acusado da prática de um crime, podendo inclusive permanecer em silêncio, sem que isso lhe

prejudique. Ao juiz, por vez, cabe velar o respeito a este princípio. No tocante à defesa

propriamente dita, incumbe ao defensor do réu agir no interesse deste, sem se deixar levar por

elementos atinentes à sua própria consciência, que possam vir a prejudicar o réu. Demais

disso, até que seja provado o contrário, permanece o réu na condição de inocente. Assim, para

ser ao final reconhecido que deva ser responsabilizado por uma prática criminosa, cabe ao

polo acusatório trazer provas para tanto. Contudo, serão oportunizados/proporcionados ao réu

os meios para sua defesa (NUCCI, 2012, p. 289/291).

Importante considerar que, ao se falar em ampla defesa, devem ser respeitados

conjuntamente os princípios da razoável duração do processo, celeridade e economia

processual, o que não deixa de ser benéfico ao acusado, pois não fica por tanto tempo

aguardando uma decisão e o consequente fim do processo (NUCCI, 2012, p. 291/292).

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Para Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 292), ao se falar em inquérito policial,

embora não observados os princípios da ampla defesa e do contraditório, devem ser feitas

ressalvas, como, por exemplo, “cuidando-se de prova não repetível, como ocorre,

basicamente, com as perícias, torna-se fundamental a participação do defensor, seja

formulando quesitos, seja acompanhando qualquer diligência empreendida pelo experto”.

1.2.4 Princípio do Devido Processo Legal

Disposto na Constituição Federal (1988), em seu artigo 5º, inciso LIV, prescreve que

“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Para Avena, o princípio do devido processo legal também está disposto no inciso LV,

do artigo 5º, da Constituição Federal (1988), segundo o qual, “aos litigantes, em processo

judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla

defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (AVENA, 2010, p. 25/26).

Destaca-se, ainda, que:

Na órbita do processo penal, deste princípio decorre uma série de direitos ao

acusado, entre os quais sobressaem o direito de ser ouvido pessoalmente perante o

juiz, a fim de poder narrar sua versão dos fatos; o direito de acesso à defesa

patrocinada por profissional com capacitação técnica; o direito de conhecer os

motivos que conduziram o juiz à sua decisão (daí a obrigatoriedade de motivação

das decisões judiciais consagrada no art. 93, IX, da CF); o direito ao duplo grau de

jurisdição; o direito de propor revisão criminal em relação à sentença penal

condenatória, quando ocorrentes as hipóteses que autorizam o ingresso dessa ação; o

direito à observância do rito processual estabelecido por lei para a hipótese concreta,

etc. (AVENA, 2010, p. 26).

Isso representa uma garantia constitucional, em que as pessoas não estão submetidas

ao livre arbítrio de quem quer que se ache no direito de tolher ou impedir a liberdade ou o

gozo dos bens, senão pelo seu dono.

Cabe, pois, ao Estado submeter aquele que atentou contra um bem juridicamente

tutelado apurar a culpa e a responsabilidade do transgressor, e isso deve ocorrer em

observância ao devido processo legal, ocasião em que também serão obedecidos, senão todos,

outros princípios inerentes ao direito material e processual, tais como a ampla defesa, o

contraditório, juiz natural, a imparcialidade, a publicidade dos atos processuais, exceto os

casos em que é vedada a publicidade (NUCCI, 2012, p. 69).

Ainda, falando de princípios que o devido processo legal pode englobar, é possível

citar o princípio da legalidade, aliado aos princípios da taxatividade e anterioridade, que, na

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visão de Nucci (2012, p. 70), “para a construção de tipos penais incriminadores, que possam

dar ensejo à aplicação da pena ao criminoso, torna-se essencial o respeito à anterior previsão

em detalhada lei acerca da conduta proibida penalmente”.

Embora este princípio seja tratado dentro dos princípios constitucionais processuais

penais, é importante considerar que tem aplicação também em sede de princípios

constitucionais penais, devendo ser observado de maneira ampla. Mesmo sendo bastante

abrangente o campo de alcance do princípio em tela, também é importante apontar sua

incidência no aspecto de aplicação da pena, que deve se concentrar na individualização e

correlação com o tipo penal incurso, levando em conta as circunstâncias judiciais peculiares

que cada caso concreto venha a apresentar, sob pena de o direito processual e material perder

suas finalidades, como por exemplo, o caráter punitivo e o caráter ressocializador. Demais

disso, é essencial que o trâmite de um processo aconteça de maneira razoavelmente rápida,

mas sem permitir, é claro, que isso traga prejuízos, até mesmo acarrete nulidade. Em respeito

à segurança jurídica é que os atos processuais devem se desenvolver com fiel observância às

leis, até mesmo para que não aconteçam surpresas. Essa observância às leis também deve

acontecer em fase inquisitorial, instauração do inquérito policial, apurando elementos acerca

da materialidade e autoria do fato (NUCCI, 2012, p. 70/72).

Nesse sentido, nota-se que o princípio do devido processo legal traduz em segurança

jurídica, demonstrando que ninguém ficará sujeito a arbitrariedades. Pelo contrário, terá

garantia de exercer sua defesa, de se defender, defender sua liberdade e seus bens

(TOURINHO FILHO, 1997, p. 60/61).

1.2.5 Princípio da Publicidade

Está consagrado na Constituição Federal (1988), no artigo 5º, inciso LX, dispondo que

“a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou

o interesse social o exigirem”, e artigo 93, inciso IX, também da Constituição Federal (1988),

aduzindo que:

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e

fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a

presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a

estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no

sigilo não prejudique o interesse público à informação.

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Como se vê, a regra é a publicidade de todos os atos processuais, sendo o sigilo a

exceção, em respeito às situações em que se faça necessário, pelo respeito também a outros

direitos, como, por exemplo, a intimidade. É em respeito a esse princípio que se verifica a

possibilidade de tomar conhecimento da atuação jurisdicional, da motivação dos atos, da

imparcialidade do julgador, da razoável duração do processo. De outra forma está o sigilo,

com estreita ligação aos direitos da intimidade e vida privada, ou mesmo nos casos em que o

interesse social o reclame. Contudo, os advogados das partes do processo não estão, neste

caso, afetos ao sigilo, sob pena de nulidade, em face de violação a outros princípios, tais como

o contraditório e a ampla defesa (NUCCI, 2012, p. 344/345).

Contudo, podem acontecer crimes na vida privada das pessoas, como, por exemplo, o

estupro, e sendo assim devem ser apurados, pois é de interesse de todos a punição daquele que

atentou contra um bem jurídico. Todavia, os atos processuais no tocante a tal crime não

deverão ser publicados, em respeito principalmente à intimidade e à honra da vítima (NUCCI,

2012, p. 346).

Nucci destaca que:

A atual redação do art. 93, IX, da Constituição Federal, após a edição da Emenda

45/2004, indica, claramente, os interesses a compor: o segredo de justiça é viável

para a preservação do direito à intimidade desde que não prejudique o interesse

público à informação. Noutros termos, na esfera penal, deve-se focar o crime

praticado e o bem jurídico envolvido. Originando-se a infração penal da esfera

individual, das relações íntimas, da vida privada, sem qualquer toque a bens

públicos, como regra, prevalecerá o sigilo em detrimento da informação (ex.: delito

contra a honra; delito sexual). Emergindo o delito da esfera de relações sociais ou

profissionais, envolvendo bens públicos ou de interesse público, como regra,

prevalecerá a informação (ex: crimes contra a administração pública, contra a saúde

pública, contra a vida) (2012, p. 347).

É em respeito a este princípio que pessoas do povo podem fiscalizar a atuação do

Estado, evitando assim até mesmo que aconteçam atos arbitrários e atentatórios. Embora

vários outros dispositivos façam menção ao princípio da publicidade, sendo declarado segredo

de justiça, deverá a decisão ser fundamentada, por não ser ato de livre convencimento do juiz

(AVENA, 2010, p. 37/39).

No que se refere à solenidade da audiência, havendo necessidade, esta poderá ser

realizada de portas fechadas, bem como sendo limitado o número de pessoas presentes

durante o ato. Isto é o que dispõe o artigo 792, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal

(1941) (NUCCI, 2012, p. 348).

Em se tratando do inquérito policial, não há a mesma publicidade. Os atos realizados

nesta fase, mesmo por não serem revestidos do contraditório e ampla defesa, existe também a

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ressalva da autoridade policial poder assegurar o seu sigilo necessário (TOURINHO FILHO,

1997, p. 46/48).

Nesse sentido, dispõe o artigo 20 do Código de Processo Penal (1941), que “a

autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo

interesse da sociedade”.

1.2.6 Princípio da Presunção de Inocência

Conforme disposto no artigo 5ª, inciso LVII, da Constituição Federal (1988) “ninguém

será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isso

significa dizer que, somente será considerado culpado por um crime aquele que tenha sido

processado e condenado, com decisão irrecorrível. Sem isso, presume-se inocente. Mesmo

que uma pessoa já tenha sido condenada por outro crime, e que a sentença tenha transitado em

julgado, isso não irá elidir a presunção de inocência quanto a outros crimes que venha a ser

acusado. Ou seja, presume-se inocente (NUCCI, 2012, p. 264).

Nesse sentido, presumindo-se a inocência, é dever da acusação provar o contrário, até

porque ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Contudo, mesmo nos casos

em que o acusado confesse a prática de um crime, ao órgão acusador persiste o ônus de provar

suas alegações. Enquanto a acusação busca afastar a presunção de inocência do acusado, este

apenas precisa atuar de forma a mantê-la. Havendo dúvida, deverá o réu ser absolvido

(NUCCI, 2012, p. 265/267).

Contudo, embora prevaleça o estado de inocência, isso não significa que pessoas não

possam ter sua liberdade restringida, pois, em certos casos, para garantir a liberdade e demais

direitos de outras pessoas, até mesmo da sociedade, é necessária a segregação de alguém que

represente riscos contra a segurança pública, liberdade, integridade, etc. Ademais, em todos os

casos em que se restringe a liberdade de alguém, obrigatoriamente isso deve se dar por

decisão judicial devidamente fundamentada, do contrário o indivíduo deve ser imediatamente

posto em liberdade (NUCCI, 2012, p. 265/267).

Fernando da Costa Tourinho Filho leciona que:

Sendo este presumidamente inocente, sua prisão, antes do trânsito em julgado da

sentença condenatória, somente poderá ser admitida a título de cautela. Assim, por

exemplo, condenado o réu, seja ele primário ou reincidente, tenha ou não bons

antecedentes, se estiver se desfazendo de seus bens, numa evidente demonstração de

que pretende fugir a eventual sanção, justifica-se sua prisão provisória (1997, p. 65).

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Em se tratando da prisão preventiva, mesmo que alguém seja preso em flagrante, não

estando presentes os requisitos para que seja decretada a prisão preventiva, deve ser o suspeito

imediatamente posto em liberdade. Na visão de Nucci (2012, p. 270), “cuidando-se de

restrição a direitos fundamentais, não se pode aplicar o benefício da dúvida em prol da

sociedade; necessita-se resguardar o interesse individual, visto que o estado natural é de

inocência”.

Assim, tem-se que a restrição da liberdade individual deve acontecer apenas quando se

mostrar realmente necessária, ou seja, quando estejam presentes os requisitos legais para sua

decretação e, havendo dúvida, deve ser resolvida em favor do acusado, prevalecendo a

liberdade. Este o consagrado princípio in dúbio pro reo, pois, até que seja declarado culpado,

prevalece o estado de inocência. E, mesmo que sejam necessárias medidas de restrição da

liberdade, não significa dizer que uma pessoa não mais seja inocente, o que somente vai

acontecer depois que o réu for processado e condenado com decisão irrecorrível (NUCCI,

2012, p. 270/271).

De outra forma, ingressando o condenado com revisão criminal, não há que se falar

em presunção de inocência, já que houve sentença condenatória com trânsito em julgado.

Portanto, enquanto o condenado pleiteia desfazer a coisa julgada, tem-se como culpado do

crime que tenha cometido (NUCCI, 2012, p. 276/277).

Outro ponto importante é a questão da presunção de inocência quando se considera a

prescrição antecipada ou virtual. Constitui, em princípio, ofensa ao princípio em tela, já que

não houve sentença condenatória com trânsito em julgado, sendo considerado, em tese,

culpado, mas extinta a punibilidade, em face de que, eventualmente condenado, a pena

aplicada estaria prescrita. Ademais, tal prática é vedada pelo Superior Tribunal de Justiça, de

acordo com a súmula 438.

Por tudo isso, velando ainda mais pela presunção de inocência do réu é que este

princípio ganhou nível constitucional (TOURINHO FILHO, 1997, p. 66).

1.2.7 Princípio da Vedação à Utilização de Provas Ilícitas

Igualmente com fundamento constitucional, o princípio da vedação à utilização de

provas ilícitas, conforme dispõe o artigo 5ª, inciso LVI, da Constituição Federal (1988),

significa dizer que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Para Avena, são consideradas ilícitas as provas que afrontarem, seja de forma direta,

ou mesmo indireta, as normas prescritas pela Constituição Federal, como, por exemplo,

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interceptações telefônicas realizadas sem autorização judicial e interrogatório judicial sem a

presença de defensor. Tais provas, portanto, não podem ser utilizadas em decisões judiciais.

Em face disso, deverão ser desentranhadas do processo, conforme o disposto no artigo 157 do

Código de Processo Penal (1941). Aduz o mencionado autor que, em caso de absolvição, ou

sendo a prova ilícita capaz de permitir a absolvição do acusado, esta deverá ser utilizada, mas

nos casos em que a condenação se apresentasse decisão injusta. Observe-se que então neste

caso a prova ilícita não seria desentranhada (2010, p. 28/29).

Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho (1997, p. 61), o preceito de que nenhuma

prova obtida por meio ilícito poderá ser utilizada, admitida em juízo, traduz em grande

respeito “não só à dignidade humana, como, também, à seriedade da justiça e ao ordenamento

jurídico”.

Nesse sentido, tem-se que este princípio guarda estreita ligação com a defesa do réu. É

certo que as provas obtidas por meios ilícitos não poderão prejudicar o acusado. Contudo, do

contrário, ou seja, caso o beneficie, poderão sim ser utilizadas (TOURINHO FILHO, 1997, p.

61/63).

1.3 Verificação normativa do princípio nemo tenetur se detegere

Pelo que foi exposto, é possível perceber que os princípios funcionam como

fundamento, base de todo o ordenamento jurídico, indicando seu âmbito e possibilidades de

aplicação e incidência.

Os princípios acima analisados encontram-se expressos na Constituição Federal

(1988). Todavia, o princípio que constitui um dos objetos deste trabalho, que encontra ligação

com a autodefesa e não incriminação, não se encontra expresso, mas igualmente surge de

raízes constitucionais. Eis o princípio nemmo tenetur se detegere, que apresenta importante

relação com o direito ao silêncio, de não autoincriminação, autodefesa. Pode-se dizer que

funciona como ferramenta de proteção do acusado.

Conforme Pacelli e Fischer, princípio que pode ser compreendido no sentido de que

“ninguém é obrigado a se descobrir” (2013, p. 389).

Edilson Mougenot Bonfim, ao referir o direito ao silêncio constitucionalmente

assegurado, aponta o princípio da não autoincriminação, ou nemo tenetur se detegere,

traduzindo que a pessoa acusada não está obrigada a produzir provas contra si mesma. Mas o

acusado está sim obrigado a responder as perguntas sobre sua qualificação, aquelas que

compreendem a primeira parte do interrogatório. Contudo, mesmo considerando a existência

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de posicionamentos contrários, o mencionado autor aponta que o acusado não tem o direito de

mentir, podendo nesse caso incorrer em crimes, tais como denunciação caluniosa ou

autoacusação falsa (2012, p. 405/406).

Utilizando o termo “contra a autoincriminação”, o doutrinador Carlos Henrique

Borlido Haddad, ao lecionar sobre o direito de defesa, salienta que este princípio ganhou, com

a Constituição Federal de 1988, nível constitucional. Mas, envolvido no direito ao silêncio.

Noutras palavras, seria o princípio nemo tenetur se detegere a faculdade de que dispõe o

acusado de não auxiliar na sua condenação. Porém, existem peculiaridades. Se nada deve,

qual a razão de permanecer calado? Ou será que o acusado permanece calado para acobertar

os verdadeiros culpados? (HADDAD, 2005).

Mas assim não se deve pensar, sob pena de fugir do objeto processual e partir para

questões morais. O certo é que poucos são os que optam pelo silêncio. Seja por

desconhecimento, quando não informados, seja pela preferência em falar em sua defesa.

Ressalte-se que o direito ao silêncio não deve ser interpretado em favor nem em prejuízo do

acusado, significando, portanto, ato de autopreservação (HADDAD, 2005).

É certo. Por este princípio objetiva o acusado evitar a ocorrência de provas em

possível processo penal. Aliás, o acusado não precisa sequer colaborar. Contudo, o princípio

contra a autoincriminação não dá a liberdade, não dá o permissivo de cometer crimes.

Diversamente do silêncio, a mentira traz consequências, podendo inclusive atingir terceiras

pessoas. Desse modo, o direito que traduz o princípio contra a autoincriminação não sustenta

o ato de mentir. Demais disso, é preceito constitucional o dever de proceder à identificação

(HADDAD, 2005).

Embora os mencionados princípios tragam expressiva proteção ao acusado, tal

proteção não deve ser tão ampla ao ponto de permitir a prática do crime de falsa identidade,

conforme artigo 307 do Código Penal (1940) como meio de defesa.

Dos ensinamentos de Ronald Dworkin (2000) é possível concluir que princípios não

devem conflitar com princípios basilares. Os juízes devem aplicar as leis e decidir os casos

concretos e, para tanto, devem se abster de proferir decisões políticas, pois isso poderia

fragilizar o respeito à lei. Mas sempre existirão decisões diferentes, dependendo do que cada

julgador entender por questões ou direitos fundamentais.

O autor salienta os princípios da presunção de inocência, equidade e devido processo

legal e afirma que o direito deve interagir com outros ramos, especialmente com a literatura,

insistindo numa constante interpretação, embora cada intérprete atue a partir de suas

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convicções. A justiça deve ser observada e decidida levando em conta suas repercussões para

com o todo, e não individualmente (DWORKIN, 2000).

Nesse sentido, é nas palavras de Ronald Dworking (2000) que melhor se localiza a

resposta sobre o princípio nemo tenetur se detegere ou autodefesa. Não se trata de um

princípio constitucional expresso, mas sim de uma questão de princípio. Porém, não se aplica

em situações como esta (atribuir-se falsa identidade para exercer autodefesa). Pois, ou se

decide a favor daquele que assim atua, ou se protege o bem jurídico fé pública, que envolve

direitos da sociedade e do Estado. E aqui, de mais valia que estes últimos sejam preservados

em detrimento do primeiro, daquele que se atribui falsa identidade para exercer autodefesa.

A partir disso, importante verificar alguns pontos sobre os crimes contra a fé pública

dispostos no Código Penal (1940), e mais pontualmente sobre o crime de falsa identidade,

constante no artigo 307, do mesmo diploma legal.

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2 DOS CRIMES CONTRA A FÉ PÚBLICA, NOÇÕES GERAIS

No passado, os compromissos firmados entre pessoas geralmente eram formalizados

oralmente. Mas quando os acordos não eram cumpridos é que surgiam as dificuldades,

especialmente no tocante à prova. Diante disso, buscava-se recorrer às declarações de

testemunhas ou algum tipo de registro por ventura efetuado (ESTEFAM, 2011, p. 75).

Da conveniência e importância de se fazer o registro de pensamentos, palavras,

acordos importantes, dentre outros, surgiu a necessidade de colocar tudo isso em documentos,

especialmente para evitar que se perdessem no tempo, bem como para fazer prova. Essa

necessidade se revelou até mesmo por questões de organização. Em face de tudo isso, foi

preciso conferir credibilidade e autenticidade a estes documentos (ESTEFAM, 2011, p. 75).

No ponto, merece destaque a doutrina de André Estefam, ao aduzir que:

A fé pública consiste na crença coletiva que deve recair sobre a veracidade e a

autenticidade dos documentos, aí abrangidos os designativos de dinheiro de curso

obrigatório, os papéis, os símbolos e os sinais utilizados nas relações entre

particulares ou entre estes e o Estado (ESTEFAM, 2011, p. 76).

Então a credibilidade, autenticidade e veracidade que os cidadãos depositam sobre os

documentos, dinheiro, símbolos e/ou outros sinais, quer nas relações entre comuns, entre

particulares, quer naquelas que acontecem entre os cidadãos e o próprio Estado. Eis a fé

pública (ESTEFAM, 2011, p. 76).

Sobre o bem jurídico protegido, Paulo José da Costa Júnior destaca que:

No âmago dos crimes contra a fé pública acha-se a falsidade. A dificuldade principia

pelo conceito de falsum, que só pode ser negativo: falso é aquilo que não é

verdadeiro. Em algumas hipóteses, o falso configura a antítese do genuíno. Assim, a

moeda é falsa quando cunhada por entidade não autorizada, que procurará fabricá-la

como se fosse verdadeira (imitativo veritatis). Ou então quando tenha ela sofrido

alterações não permitidas (immutatio veri). Em outras hipóteses, surge o falso como

o oposto do verdadeiro, como o inautêntico. A declaração é falsa quando mendaz

(COSTA JUNIOR, 1991, p. 596).

Nélson Hungria leciona ser a fé pública um dos bens jurídicos de mais relevância para

a sociedade, eis que é pela fé pública que se manifesta a existência jurídica. E a lesão à fé

pública efetivamente é muito abrangente, abalando desde a confiança das pessoas e a

integridade da justiça, até os meios de prova (1959, p. 190).

Importante destacar que os crimes contra a fé pública podem atingir/ludibriar tanto um

pequeno quanto um grande número de pessoas. Por isso, as falsidades, materialmente

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dizendo, precisam de alguma forma fazer com que o sujeito passivo acredite se tratar de algo,

ou então estar diante de algo verdadeiro, idôneo, mas que na realidade não é, porquanto

inautêntico. “Daí o nomen juris adotado pelo legislador. Sustenta-se ser a fé pública a

confiança que a sociedade deposita nos objetos, sinais e formas exteriores (moedas,

emblemas, documentos), aos quais o Estado atribui um valor probatório qualquer” (COSTA

JÚNIOR, 1991, p. 596).

Então a imprescindibilidade do Estado proteger a fé que as pessoas depositam nos

documentos, atos, sinais que fazem parte do cotidiano e concretizam relações, pois constituem

algo inerente à sociedade atual (NORONHA, 1973-77, p. 109).

Nesse sentido, os crimes tratados no capítulo X do Código Penal (1940) visam

proteger a fé pública, que se encontra disposta em documentos, atos, sinais e símbolos, dentre

outros, pois estes dispositivos atestam a veracidade e/ou autenticidade de atos e relações. No

conjunto de crimes contra a fé pública, ademais, é necessário que o meio empregado, ou a

forma de seu cometimento seja capaz de ludibriar a vítima, causando algum prejuízo. Do

contrário, se o crime for cometido de maneira grosseira, se o falso foi grosseiro, não sendo

capaz de enganar, não há que se falar em crime. Portanto, o falso tem que parecer legítimo,

verdadeiro, capaz de enganar, e consequentemente resultar em algum prejuízo, para que possa

configurar crime. É bem verdade, aliás, por vezes, crimes contra a fé pública serão delitos

meio para o cometimento de outros crimes (GRECO, 2009, p. 223/224).

Eis, segundo Paulo José da Costa Júnior, a atividade do sujeito ativo, consistente em

atuar sobre bens ou interesses que a fé pública protege. Demais disso, o autor argumenta que

os delitos contra a fé pública fazem parte da “categoria dos delitos pluriofensivos. Neles,

podem ser constatadas duas ofensas: uma, à fé pública; outra, condizente com a

intangibilidade dos meios probatórios, que deverão ser genuínos e verdadeiros” (1991,

p. 596).

No que tange aos requisitos essenciais para configuração da falsidade documental, é

possível apontar que haverá alteração da verdade juridicamente relevante constante no

documento (immutatio veritatis), ou então a imitação da verdade (immitatio veritatis), em que

o sujeito ativo faz imitações do documento verdadeiro, de forma a enganar as pessoas. Porém,

se a falsidade foi inofensiva, não causando prejuízo, em tese não haverá crime. A conduta

criminosa deve acontecer de maneira a enganar o sujeito passivo. De outra forma, a

falsificação grosseira não tipificará crime contra a fé pública, mas poderá configurar outro

tipo de crime, como por exemplo, o estelionato. Na falsidade ideológica, já que não se altera a

forma, e sim o conteúdo, deve este igualmente ser apto a enganar. Nesse sentido, nos casos de

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falsidade material, a realização de exame de corpo de delito faz-se necessária (ESTEFAM,

2011, p. 80/82).

Ademais, em se tratando de falsificação grosseira, é entendimento pacificado no

Superior Tribunal de Justiça, por meio da súmula nº 73 que “a utilização de papel moeda

grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da

justiça estadual”.

André Estefam aduz que:

Quando se tratar de falsidade ideológica (e não material), não se cogitará de

immitatio veritatis, mas sua noção haverá de ser entendida por outra com a qual

possui total paralelismo, a verossimilhança do conteúdo. O falso ideal não envolve a

modificação da peça, do instrumento, do objeto etc., mas a inserção de conteúdo

inverídico sobre estes. Assim, deve a mentira aposta no documento ser hábil a iludir,

o que jamais se cogitará quando a verdade falseada for inverossímil (p. ex., o

tabelião que lavra uma escritura dizendo que perante ele compareceu determinada

pessoa nacionalmente conhecida e ditou-lhe o testamento, sendo público e notório

que o suposto testador já havia falecido muito antes do suposto comparecimento,

pois seu óbito fora acompanhado por todos os meios de comunicação) (2011, p. 82).

Ao mencionar a diferença entre os crimes contra o patrimônio e os crimes contra a fé

pública, André Estefam aponta que estes últimos não exigem o dano propriamente dito,

apenas sua possibilidade. Aliás, o prejuízo não precisa necessariamente ser econômico, desde

que tenha potencialidade de degradar bem ou direito de outrem. Ademais, os crimes contra a

fé pública são punidos a título de dolo, mas em alguns casos, como por exemplo no crime de

falsidade ideológica, exige-se o especial fim de agir, de modo a prejudicar direito, criar

obrigação ou mesmo alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (ESTEFAM, 2011,

p. 82/83).

Consoante o que traz André Estefam, Nelson Hungria menciona que, de uma forma

geral, nos crimes contra a fé pública basta que ocorra a simples possibilidade de dano, tendo

em vista se tratar de crimes que afetam bens jurídicos variados, especialmente a crença, a fé

pública depositada em documentos e meios de prova. Tais delitos afetam igualmente a

confiança e a moeda de curso legal no país (1958, p. 183/192).

Nesse sentido, tem-se que o falsum deve parecer verdadeiro, sob pena de ser

reconhecido um crime patrimonial, a exemplo do crime de estelionato. Não havendo

potencialidade ofensiva e não se abalando a fé pública, não há crime de falsum (HUNGRIA,

1958, p. 194/196).

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Dos crimes contra a fé pública tratados no Código Penal (1940), de regra, como já foi

dito, o bem jurídico protegido é a fé pública. Porém, em alguns crimes tem-se ainda proteção

mais específica, como a Administração Pública (no caso do crime de falsificação de selo ou

sinal público), a regularidade dos atos praticados pela Administração Pública (no crime de

falsificação de documento público), a tutela das leis que regulamentam a entrada e saída de

estrangeiros do território brasileiro e o patrimônio e a soberania nacional (crimes previstos

nos artigos 309 e 310 do Código Penal/1940) (ESTEFAM, 2011, p. 75/185).

Sobre o crime de moeda falsa, importante considerar que:

Não é reconhecível o crime de moeda falsa sem a consciência de criar um eventus

periculi à circulação. Assim, o dolo será excluído se a formação ou alteração da

moeda fôr feita apenas jocandi animo, ou demonstrandi causa, para fim artístico ou

de coleção, ou para servir a mera encenação no sentido de inculcar solvência ou

abastança (...) (HUNGRIA, 1958, p. 216).

Ainda sobre este crime, o de moeda falsa, é imperioso mencionar que está sujeito ao

princípio da extraterritorialidade, tendo em vista que, “ainda que praticado no estrangeiro,

desde que verse sôbre moeda brasileira, pode o agente ser processado (mesmo in absentia) e

punido de acôrdo com a lei brasileira” (HUNGRIA, 1958, p. 216).

Aliás, é possível dizer que os demais crimes contra a fé pública também ficam sujeitos

à lei brasileira, mesmo que cometidos no estrangeiro, consoante o que dispõe o artigo 7º, do

Código Penal (1940).

Imperioso salientar que não é qualquer documento que pode ser objeto de crime contra

a fé pública, mas sim aqueles que possam servir de prova referente a algo de relevância no

mundo jurídico (HUNGRIA, 1958, p. 254/255).

Ressalte-se que no crime de supressão de documento, artigo 305 do Código Penal

(1940), não se protege exatamente a fé pública, “mas efetivamente a tutela do tráfico jurídico

probatório, isto é, da força probante inerente aos documentos, que se verão anuladas com a

sua destruição, supressão ou ocultação irregular” (ESTEFAM, 2011, p. 168).

No mesmo sentido é o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, ou seja, de que o

bem jurídico protegido é a fé pública. Mas que, em alguns crimes, como, por exemplo, o

previsto no artigo 309 do Código Penal (1940), mais objetivamente visa proteger a fé pública

no tocante ao “interesse do Estado no controle da imigração”. Consoante a isso, no crime

previsto no artigo 310, também do Código Penal (1940), objetiva tutelar a fé pública, mas

especialmente centrada na ordem econômica (2005, p. 971/973).

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Todos os crimes contra a fé pública são cometidos a título de dolo, ou seja, o sujeito

ativo tem a consciência e a vontade de praticá-los. Contudo, em algumas das espécies

criminosas também se exige o especial fim de agir, como nos seguintes casos: crimes

assimilados ao de moeda falsa, na parte final do caput do artigo, em face da conduta de

restituir à circulação; quanto ao crime de falsificação de selo ou sinal público, o especial fim

de agir concentra-se na utilização indevida do selo ou sinal legítimo; no crime de falsidade

ideológica, verifica-se o especial fim de agir quando prejudicar direito, criar obrigação ou

alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante; no que se refere à certidão ou atestado

ideologicamente falso, e na falsidade material de atestado ou certidão, o especial fim de agir

se verifica quando da pretensão de fazer prova de algo, ou que habilite alguém na obtenção de

cargo público, dentre outras situações; no crime de supressão de documento, ademais, há a

necessidade de que o sujeito ativo tenha a intenção de lograr benefício para si ou para outrem,

ou então ocasionar prejuízo para outrem; no crime de falsa identidade, o elemento subjetivo

especial ocorre quando o agente atua com a intenção de obter vantagem, seja em proveito

próprio ou de outra pessoa, ou então de causar prejuízo a outrem; no caso de crime de uso de

documento falso, na segunda figura, qual seja, ceder a outrem, acontece o especial fim de agir

quando o agente o faz para que outra pessoa utilize, fazendo-se passar pelo verdadeiro dono

do documento; no crime que versa sobre a lei de estrangeiro, previsto no artigo 309 do Código

Penal (1940), o especial fim de agir aparece com o escopo de assim fazer para ingressar ou

permanecer de maneira irregular no território brasileiro. Já no crime de falso reconhecimento

de firma ou letra, pode ocorrer dolo eventual, nas situações em que o funcionário público,

mesmo suspeitando da falsidade reconhece firma ou letra como verdadeira (ESTEFAM, 2011,

p. 80/185).

No ponto, embora de entendimento bastante semelhante ao de André Estefam, vale

mencionar a visão de Nucci, ao descrever que os crimes contra a fé pública são cometidos a

título de dolo genérico, ou seja, não se exige finalidade especial. Mas numa parcela destes

crimes se exige o dolo específico. Vale citar, por exemplo, o crime assimilado ao de moeda

falsa, em que a finalidade especial reside na “vontade de restituir à circulação”, conforme

Estefam também aponta. Ao discorrer sobre o crime de falsa identidade, previsto no artigo

307 do Código Penal (1940), o autor menciona que o elemento subjetivo consiste na intenção

de obter vantagem, seja para si ou para outrem, ou então de causar prejuízo para terceira

pessoa (NUCCI, 2005, p. 923/974).

Tais crimes vale dizer, os crimes contra a fé pública, consumam-se com a simples

prática das condutas criminosas, portanto, são crimes formais. A maior parte destes crimes

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admite tentativa, exceto em alguns casos, como no crime de falsificação de papéis públicos,

mas na figura uso de papéis falsificados ou alterados; quanto ao crime de falsificação de selo

ou sinal público a tentativa não se afigura possível na conduta de usar; na falsidade ideológica

é inadmissível a tentativa na figura consistente em omitir declaração; no delito de reprodução

ou alteração de selo ou peça filatélica a tentativa é inadmissível no delito de usar selo ou peça

filatélica; no crime de uso de documento falso não se admite tentativa; no delito de falsa

identidade a tentativa é possível quando o crime for cometido por escrito. Quando se fala nos

casos em que não se admite tentativa, de regra, é porque se tratam de crimes unissubsistentes

(ESTEFAM, 2011, p. 85/185).

Consoante ensina Nélson Hungria acerca da importância em se proteger os atos que

fazem prova e circundam o mundo jurídico, vale a pena destacar que:

A fé pública não é uma pura abstração do espírito humano, mas um conceito

elaborado pela constatação da palpitante realidade entre os fatos sociais. A rubrica

“Crimes contra a fé pública”, a que nosso estatuto penal subordina seus preceitos e

sanções em tôrno aos crimes de falsidade, é de inteiro acerto. Se se deixa de

relacionar tais crimes a essa objetividade jurídica, estar-se-ia retornando à sua antiga

indistinção com o estelionato ou fraude patrimonial, e ficaria sem explicação

razoável a continuidade do seu caráter de crimes formais, isto é, da regra segundo a

qual, para sua integração, basta a editio falsi (pôsto que capaz de êxito), dispensada a

efetiva ocorrência de um eventus damni (HUNGRIA, 1958, p. 191/192).

Quanto aos sujeitos dos crimes em comento, verifica-se que na maioria dos casos tais

delitos podem ser cometidos por qualquer pessoa, exceto em algumas situações em que só

podem ser cometidos por determinada pessoa, casos considerados crimes próprios, como os

seguintes: figuras qualificadas do crime de moeda falsa – artigo 282, parágrafos 3º e 4º do

Código Penal (1940); falso reconhecimento de firma ou letra; certidão ou atestado

ideologicamente falso; falsidade de atestado médico, fraude sobre a lei de estrangeiro –

previsto no artigo 309 do Código Penal (1940). O sujeito passivo, regra geral, será o Estado,

mas em alguns casos também a pessoa prejudicada pelo fato delituoso (ESTEFAM, 2011, p.

85/185).

A competência para processo e julgamento dos crimes contra a fé pública, regra geral,

é da Justiça Estadual, mas nos crimes de moeda falsa e assimilados ao de moeda falsa,

petrechos para falsificação de moeda, falsificação de documento previdenciário e fraude sobre

a lei de estrangeiros - artigo 309 do Código Penal (1940), a competência será da Justiça

Federal, por acarretar prejuízo a interesses da União. Em todos os crimes contra a fé pública a

ação penal é pública incondicionada, ou seja, independe de representação (ESTEFAM, 2011,

p. 85/185).

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Alguns crimes, por serem considerados de menor potencial ofensivo, podem ser

julgados nos termos da Lei n. 9.099/1995, como é o caso dos seguintes crimes: emissão de

título ao portador sem permissão legal, certidão ou atestado ideologicamente falso, falsidade

material de atestado ou certidão – artigo 301, parágrafo 1º, do Código Penal (1940) -,

falsidade de atestado médico, reprodução ou alteração de selo ou peça filatélica, uso de

documento de outrem – artigo 308 do Código Penal (1940), assim como a figura privilegiada

prevista no crime de moeda falsa, constante no artigo 289, parágrafo 2º, do Código Penal

(1940), sendo possível a obtenção dos benefícios da mencionada lei. Em outros casos, ou seja,

naqueles em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, admite-se a

suspensão condicional do processo, quais sejam, falsificação de documento particular,

falsidade ideológica, falso reconhecimento de firma ou letra, supressão de documento (quando

se tratar de documento particular), figura privilegiada do crime de falsificação de sinal

empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou para outros fins,

fraude sobre lei de estrangeiro (ESTEFAM, 2011, p. 85/185).

Em face de que alguns delitos são considerados delitos materiais, crimes de falso

material, há necessidade de realização de exame de corpo de delito (ESTEFAM, 2011).

Tendo em vista que o crime de falsa identidade, disposto no artigo 307 do Código

Penal (1940), constitui um dos fundamentos deste trabalho, imperioso analisá-lo de maneira

mais aprofundada.

Conforme dispõe o artigo 307 do Código Penal (1940), constitui crime de falsa

identidade “Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em

proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena – Detenção, de 3 (três) meses

a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave”.

Assim como os demais crimes contra a fé pública, o bem jurídico protegido é a fé

pública, mas especialmente a “confiança na identidade inculcada pelas pessoas” (ESTEFAM,

2011, p. 175).

O doutrinador Heleno Cláudio Fragoso, sobre o crime de falsa identidade,

especialmente acerca da tutela jurídica, leciona o seguinte:

Objeto da tutela jurídica é a fé pública pessoal, que se tutela em relação à segurança

da identidade da pessoa física, seu estado e condição, nas relações jurídicas públicas

e particulares. É este crime expressamente subsidiário, pois somente deverá ser

reconhecido, “se o fato não constitui elemento de crime mais grave” (FRAGOSO,

1959, p. 862).

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Ao discorrer sobre identidade Nucci destaca que “é o conjunto de características

peculiares de uma pessoa determinada, que permite reconhecê-la e individualizá-la,

envolvendo o nome, a idade, o estado civil, a filiação, o sexo, entre outros dados” (2005, p.

968).

Nesse sentido, esse crime consuma-se com a simples atribuição, a si ou a terceiro, de

falsa identidade, seja de forma oral ou escrita, ainda que o sujeito ativo não obtenha a

vantagem que pretendia, nem mesmo que cause dano a terceiros. Ou seja, o sujeito ativo se

faz passar por outra pessoa. Ademais, é preciso que o meio utilizado seja capaz de enganar,

bem como que o sujeito assim faça para obter vantagem indevida, ou provoque algum dano a

alguém. Portanto, exige-se o especial fim de agir, o fim específico, consistente na obtenção de

vantagem, para o próprio sujeito ativo ou para outrem, ou então que este sujeito atue com a

intenção de causar prejuízo a outrem. Nesse sentido, é possível dizer que o crime em análise

pode ser cometido por qualquer pessoa. O sujeito passivo será o Estado, mas também a pessoa

eventualmente prejudicada, no caso de ser informada identidade de pessoa existente. A

tentativa é possível, mas apenas na modalidade escrita. Por fim, conforme descrito no próprio

tipo penal, trata-se de crime subsidiário, ou seja, sua aplicação fica condicionada a ausência

de crime mais grave (ESTEFAM, 2011, p. 174/179).

Nélson Hungria igualmente destaca este delito como crime subsidiário. A exemplo,

sua ocorrência ficará subsumida quando também acontecer o crime de estelionato. Sua

consumação acontece no simples momento da atribuição de falsa identidade, sem necessidade

de se verificar consequências. Para o autor, consoante o que entendem os autores

supracitados, o sujeito ativo deve agir com a intenção de obter vantagem, seja para si próprio

ou para outra pessoa, ou então de causar dano a outrem (1958, p. 306/308).

Ao descrever o crime de falsa identidade, Paulo José da Costa Júnior aponta, como já

foi salientado, que se trata de crime subsidiário, bem como que possui certa peculiaridade em

relação aos demais crimes contra a fé pública (1991, p. 641). Vejamos:

O crime é anômalo, pois enquanto nas demais modalidades de falso os objetos

materiais são valores públicos e documentos, aqui, o objeto nem se pode dizer que

exista. O que se leva em consideração é o engano ou, mais precisamente, a

finalidade última do engano: obter vantagem própria ou alheia, ou causar dano a

outrem (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 641).

É possível apontar ainda o crime de falsa identidade como delito abstrato, em sua

essência. Pois da sua consumação não decorre algo palpável, mas que nem por isso deixa de

gerar consequências.

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Comete este crime, por exemplo, aquele que, em juízo, informa nome falso, também

aquele sujeito ativo que informa nome de pessoa conhecida e realiza exame em seu lugar,

bem como aquele sujeito estrangeiro que declara ser brasileiro para auferir vantagem a que

estes têm direito, dentre outros (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 641).

Em seguimento ao estudo, importante trazer o posicionamento de alguns autores e

doutrinadores sobre o crime de falsa identidade, bem como a visão dos tribunais, com a

observação de julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, do Superior

Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

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3 O CRIME DE FALSA IDENTIDADE QUANDO COMETIDO PARA OCULTAR

MAUS ANTECEDENTES. ENTENDIMENTOS DOUTRINÁRIOS E

JURISPRUDENCIAIS

Conforme dispõe o artigo 307, do Código Penal (1940), constitui crime “atribuir-se ou

atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou

para causar dano a outrem”, sendo punido, ademais, com pena de “detenção, de 4 (quatro)

meses a 2 (dois) anos, e multa, se o fato não constitui elemento crime mais grave”.

3.1 Análise doutrinária

Não são poucas e nem raras as vezes em que alguém, ao ser preso, atribui-se falsa

identidade, seja porque ostenta maus antecedentes criminais, seja porque se encontrava na

condição de foragido da prisão, dentre outras razões, ou até mesmo para evitar o indiciamento

e possível condenação por crime que tenha cometido. Também é certo que ninguém é

obrigado a produzir provas contra si mesmo. Assim, não haveria crime de falsa identidade

quando o agente se atribuísse falsa identidade como meio de defesa, pois, muitas vezes, a

única forma de se ver livre da restrição da liberdade seria atribuir-se falsa identidade (Galvão,

2010).

A atribuição de falsa identidade para exercer autodefesa, é certo, não é questão

pacífica. Moreira Filho (2010, p. 431/432) alude que existem diversos entendimentos. No

momento em que o agente vem a ser qualificado no auto de prisão em flagrante, fornecendo

dados de identificação diversos do seu, para ocultar sua verdadeira identificação, cometeria

sim o crime de falsa identidade, pois o direito de defesa não é compatível com o momento do

interrogatório. Aponta o autor que, dentre os demais entendimentos, não cometeria o crime

em tela o agente que, para o exercício da autodefesa, se atribuísse falsa identidade perante a

autoridade policial, em razão de que estaria amparado no direito de permanecer calado, este

direito, aliás, representa garantia constitucional, conforme consta no artigo 5º, inciso LXIII,

da Constituição Federal (1988). Outra situação seria, de regra, a prevalência da autodefesa em

detrimento do crime de falsa identidade, exceto nos casos em que o sujeito atribuísse

identidade de pessoa existente, aqui então haveria tal crime.

O doutrinador Celso Delmanto refere como questão geradora de muitas controvérsias

o tema falsa identidade quando ligado ao exercício da autodefesa. Todavia, para o

mencionado autor, não comete o crime de falsa identidade o sujeito que assim faz para

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exercer autodefesa. Menciona duas razões sobre esse entendimento. Uma seria o direito ao

silêncio, que é constitucionalmente assegurado, e que então nele, ou seja, no direito ao

silêncio, inclui-se o direito de não fazer prova contra si mesmo. A segunda seria o direito de

não se declarar culpado de um delito. Sinaliza o autor que a conduta de faltar com a verdade

poderia ser equiparada ao direito ao silêncio. Não haveria o elemento subjetivo exigido pelo

tipo penal, mas sim o simples objetivo de obter vantagem de natureza processual (2002,

p. 611).

Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, defende que não constitui crime a conduta do

sujeito ativo de atribuir-se falsa identidade para evitar sua prisão, fugir de policiais, em razão

de que objetiva manter-se em liberdade. Todavia, a autodefesa não é absoluta. Aponta o autor

que, no momento da qualificação, seja em fase policial ou em juízo, o sujeito ativo não tem o

direito de falsear sobre sua identidade. Isso se deve em razão da observância aos preceitos

judiciais, da administração da justiça, bem como pelo motivo de que não se pode permitir que

pessoa inocente possa ser julgada por algo que outrem cometeu (2005, p. 968).

André Estefam argumenta que o entendimento majoritário na jurisprudência é no

sentido da atipicidade da conduta do agente que, ao ser preso, ou mesmo investigado

criminalmente, informa outro nome, ou seja, atribui-se falsa identidade, pois sua conduta seria

abrangida pelo direito de defesa, ou ampla defesa. Aduz que se o sujeito pode mentir para não

se incriminar, pode também atribuir-se falsa identidade. Contudo, pode acontecer de o

sujeito/investigado vir a fornecer identificação de pessoa existente, alheia à situação, e assim

causar prejuízos para essa pessoa. Portanto, em que pese apontar a corrente majoritária na

jurisprudência, o mencionado autor não compartilha da tese da atipicidade deste crime, ou

seja, o sujeito pode falsear quanto aos fatos, dificultar a ação da justiça, mas não está

desincumbido de identificar-se. Afirma o autor que a atribuição de falsa identidade não

encontra correspondência com o direito de autodefesa (2011, p. 176/177).

Embora já tenha sido mencionado acima, Guaracy Moreira Filho aponta que não

encontra amparo no princípio da autodefesa o sujeito que falsear sobre sua identidade

informando a de pessoa existente. Ou seja, para o referido autor, nesta situação o sujeito ativo

incorreria no crime de falsa identidade – artigo 307 do Código Penal (1940) (2010,

p. 431/432).

Ricardo Tadeu Linardi destaca que não são raras as vezes em que os acusados falseiam

sobre suas identidades, atribuindo-se qualificação diversa ou errônea, mas que costumam

invocar princípios constitucionais em suas defesas. Mas, para o autor, esse tipo de

comportamento constitui crime e afeta a fé pública, dificultando ou mesmo comprometendo o

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trabalho da justiça. Autodefesa não permite a prática de crimes, também não se equipara ao

direito ao silêncio. Contudo, ao acusado é garantido esse direito, mas se ele desejar falar sobre

sua qualificação deverá informar dados corretos (2005, p. 117/120).

O interrogatório do acusado é compreendido em duas partes. Uma delas é sobre

questões atinentes a pessoa do acusado, momento em que lhe será dada ciência da acusação,

bem como será informado do direito ao silêncio; na outra ele será perguntado sobre os fatos.

Nesse sentido, é certo que “o réu tem o direito de ficar em silêncio a respeito dos fatos que lhe

são imputados ao ser interrogado. Não possui, contudo, o direito de mentir a respeito de sua

identidade” (LINARDI, 2005, p. 120).

Na mesma visão, defendendo posicionamento de que atribuir-se falsa identidade para

exercer autodefesa não prospera, Joel Tovil destaca, embora considerando a existência de

posicionamentos contrários, que o acusado apenas tem o direito de faltar com a verdade sobre

fatos relativos à acusação. Isso significa dizer que “ele não está obrigado a responder

perguntas sobre o delito e sua autoria, mas tem o dever de declinar corretamente sua

qualificação” (2006, p. 47).

Embora o acusado tenha o direito de não produzir provas contra si mesmo, o princípio

da autodefesa não lhe dá o direito de cometer crimes. Ao falsear sobre sua identidade, o

acusado poderá informar nome de pessoa existente, trazendo-lhes prejuízos (TOVIL, 2006, p.

47/48).

Aliás, na visão de Tovil:

Se os cidadãos honestos, que trabalham e observam a lei, têm obrigação de declinar

corretamente sua identidade quando legalmente solicitados pela autoridade, sob pena

de incidir na contravenção prevista no art. 68 da LCP, porque teriam os indiciados,

quando presos sob suspeita prática de crimes, alguns deles graves ou hediondos, o

direito de mentir sobre sua identidade e idade, direito este não deferido às demais

pessoas? (2006, p. 48).

Por tudo isso, atribuir-se falsa identidade para exercer autodefesa não prevalece,

subsistindo então o crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal (1940).

3.2 Análise jurisprudencial

Considerando como conduta atípica a atribuição de falsa identidade quando o agente

assim faz para ocultar maus antecedentes, é possível citar decisão da Primeira Câmara

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Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, proferida em 29 de agosto

de 2007:

Ementa: APELAÇÃO-CRIME. DELITOS DE TRÁFICO ILÍCITRO DE

ENTORPECENTES, PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO,

CONSTRANGIMENTO ILEGAL MEDIANTE EMPREGO DE ARMA E FALSA

IDENTIDADE. Contexto probatório que, no seu conjunto, comprova a autoria

delitiva, não vingando a tese desclassificatória para mero porte de drogas para

consumo próprio em relação ao delito de entorpecentes, como também de

constrangimento ilegal para violação de domicílio. Não comete o agente o delito de

falsa identidade quando em atitude de autodefesa, para ocultar antecedentes penais.

Apelo parcialmente provido. (Apelação Crime Nº 70019066885, Primeira Câmara

Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado

em 29/08/2007) (grifei).

Na situação objeto da jurisprudência acima transcrita, em suma, o acusado foi preso

em flagrante quando trazia consigo substâncias ilícitas/entorpecentes, bem como pela prática

de outros delitos. Todavia, a circunstância que merece ser mencionada é que o acusado, ao ser

preso, atribuiu-se falsa identidade para que os policiais não tomassem conhecimento de seus

antecedentes criminais e também pela razão de que se encontrava na condição de foragido da

justiça. O objetivo do acusado, ou seja, a vantagem pretendida era de não ser identificado

criminalmente, consequentemente, livrando-se da prisão.

Após os trâmites processuais o juízo de primeiro grau o condenou, dentre outros

crimes, pelo previsto no artigo 307 do Código Penal (1940) – falsa identidade. No recurso de

apelação acerca deste crime, a referida Câmara absolveu o acusado, sob o argumento de que

ele não incorreu no crime de falsa identidade, pois atribuiu-se falsa identidade para se

defender. O acusado atribuiu-se nome diverso para ocultar sua condição de foragido da

justiça, mas depois de investigado informou sua identificação correta. Esse foi o

entendimento, à época.

No mesmo sentido, reconhecendo que não constitui crime de falsa identidade indicar

outro nome para desonerar-se da responsabilidade criminal, decidiu a Terceira Câmara

Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nos seguintes termos:

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Ementa: APELAÇÃO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRIVILÉGIO. FALSA

IDENTIDADE. AUTODEFESA. PROVA. PENA. 1. As provas produzidas sob

contraditório judicial são firmes a embasar a decisão condenatória por tráfico de

entorpecentes. [...] 3. A indicação de outro nome para eximir-se da responsabilidade

criminal insere-se nos limites do direito de autodefesa, não constituindo, pois, o

delito tipificado no artigo 307 do Código Penal. A identificação de pessoa detida em

flagrante delito é ônus do Estado, não do sujeito detido, a quem é assegurado o

direito de não produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere). Precedente do

STJ. Decisão absolutória mantida. RECURSO DA ACUSAÇÃO DESPROVIDO

RECURSO DEFENSIVO PROVIDO EM PARTE. (Apelação Crime Nº

70049057813, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu

José Giacomolli, Julgado em 28/06/2012) (grifei).

A presente decisão tratou do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sendo o acusado

preso em flagrante em poder de pedras de crack, bem como pelo crime de falsa identidade.

Quanto a este último crime, no momento da prisão, o réu indicou nome diverso do seu.

Porém, após ser levado para a Delegacia policial, constatou-se sua verdadeira identidade. Por

isso, foi também denunciado pelo crime de falsa identidade, conforme disposto no artigo 307

do Código Penal (1940), tendo em vista que pretendia livrar-se da acusação do primeiro fato,

crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Na decisão proferida em primeiro grau o acusado foi absolvido do crime de falsa

identidade, sob o fundamento de que tal conduta não constituiu crime. A sentença que

absolveu o acusado deste delito mencionou que o Estado possui meios para realizar a

identificação de criminosos, o que então impossibilita a “ocultação” da verdadeira identidade.

Por isso, a falsa identidade alegada pelo réu perante os agentes policiais, com o objetivo de se

fazer passar por outra pessoa, não alcança eficácia. Ou seja, neste caso, alegação de falsa

identidade não constituiu crime.

No recurso de apelação, a Terceira Câmara Criminal manteve a decisão de primeiro

grau que absolveu o acusado do crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código

Penal (1940). Segundo o entendimento da referida Câmara Criminal, a atribuição de falsa

identidade encontra correspondência no exercício da autodefesa, pois o acusado apenas

pretendia evitar sua prisão, de modo que tal conduta foi considerada atípica.

Esta foi a decisão proferida no dia 28 de junho de 2012, que teve como base o

entendimento do Superior Tribunal de Justiça, à época, conforme se verá adiante.

Seriam outros julgados os seguintes arestos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul: 70053676037, 70053253852 e 70052247210.

Em posicionamento contrário do que acima foi analisado, em decisão recente da

Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, proferida

em 10 de abril de 2013, foi decidido:

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Ementa: APELAÇÃO-CRIME. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO.

FALSA IDENTIDADE. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. REAPRECIAÇÃO DA

MATÉRIA. Presente o reconhecimento de Repercussão Geral, por parte do Supremo

Tribunal Federal, no Recurso Especial nº 640.139-DF, segundo o qual a conduta de

se apresentar com falsa identidade não é alcançada pelo direito de autodefesa.

Assim, em juízo de retratação, reapreciando a matéria, nos termos dispostos no art.

543-B, §3º, do Código de Processo Civil, reformada a decisão desta Câmara para

analisar o delito descrito como segundo fato da denúncia. Condenação. Autoria e

materialidade demonstradas, porquanto o próprio réu admitiu ter se apresentado

como se fosse seu irmão, em razão de se encontrar foragido da justiça. Evidenciada

a finalidade de obter vantagem própria. Mantidas as demais cominações constantes

do acórdão. OBEDIÊNCIA AO ART. 543-B, §2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO

CIVIL. MATÉRIA REAPRECIADA. (Apelação Crime Nº 70050181783, Quinta

Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan

Ribeiro, Julgado em 10/04/2013).

Neste caso, o acusado foi preso logo após ter cometido um crime de roubo. E, ao ser

preso pelos policiais, indicou nome diverso do seu, qual seja, o nome de seu irmão. Contudo,

em seguida os policiais verificaram sua verdadeira identidade. Verificaram, ademais, que o

acusado se encontrava na condição de foragido do sistema prisional. Então foi denunciado e

processado.

Sobreveio sentença, na qual o réu foi condenado pela prática dos crimes de roubo e

falsa identidade. Inconformado, apelou. Quanto ao crime de falsa identidade pleiteou a

absolvição por entender que não constituiu crime. Julgado o recurso de apelação o réu foi

absolvido do crime de falsa identidade. Após a decisão, o representante do Ministério Público

interpôs Recurso Especial e Recurso Extraordinário. E, em juízo de retratação, os julgadores

da referida Câmara Criminal afirmaram comprovadas a autoria e materialidade do crime de

falsa identidade, o que até mesmo foi objeto de confissão do réu, embora sob o argumento de

que assim teria feito para ocultar sua condição de foragido.

Desse modo, constatou-se evidenciada a finalidade de obtenção de vantagem pelo

acusado, ou seja, evitar sua prisão. Tal decisão se deu com referência ao posicionamento do

Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário nº 640.139-DF), no sentido de que

atribuir-se falsa identidade não encontra amparo no princípio da autodefesa, como se verá na

sequência.

No mesmo sentido da decisão acima, é possível destacar uma decisão da Oitava

Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, proferida em 19 de

março de 2014, conforme segue ementa:

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Ementa: APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO.

DOSIMETRIA DA PENA. CRIMES CONTRA A FÉ PÚBLICA. FALSA

IDENTIDADE. CONDENAÇÃO MANTIDA. Evidenciado que o réu, ao ser

abordado pelos agentes estatais, atribuiu-se falsa identidade no intuito de furtar-se à

aplicação da lei penal, incorreu no tipo previsto no artigo 307 do Código Penal,

razão de sua condenação. Entendimento pacificado dos Tribunais Superiores no

sentido de que a referida conduta subsume-se ao tipo denunciado, não havendo falar

em espécie de defesa pessoal contra eventual privação de liberdade. De modo que,

demonstradas as elementares do fato, impõe-se a manutenção do decreto

condenatório. [...]. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº

70057945982, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele

Ochoa Piazzeta, Julgado em 19/03/2014).

Neste caso o acusado foi preso depois de ter praticado um crime de roubo e, na

Delegacia de Polícia, atribuiu-se falsa identidade, pois almejava obter vantagem para si

próprio, consistente em ocultar seus maus antecedentes e condição de foragido do sistema

prisional. No momento da lavratura do auto de prisão em flagrante o acusado informou o

nome de seu irmão. A verdadeira identidade do acusado somente foi descoberta após a

realização de diligências policiais, sendo uma delas o confronto de digitais do acusado e de

seu irmão, bem como o reconhecimento fotográfico do réu por testemunhas.

Sobreveio sentença, na qual o réu foi condenado pelos crimes de roubo e falsa

identidade. O réu apelou da decisão. Dentre outros pedidos, pugnou pela sua absolvição

quanto ao crime de falsa identidade, pois teria agido no exercício do direito de defesa. Em

decisão unânime, foi negado provimento à apelação, sendo mantida a condenação pelo crime

de falsa identidade, eis que reconhecida a tipicidade da conduta do réu, não sendo possível se

falar em ato de defesa.

Ressalte-se, neste caso, um dos fundamentos que basearam a decisão foi o atual

posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no RE 640.139/DF.

Aqui, seriam outros julgados nos arestos de n. 7005264941e 70055817183, também do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Em que pese posições contrárias, informar falsa identidade para exercer autodefesa

não deve prosperar. O acusado tem o direito de permanecer em silêncio e de não produzir

provas contra si, mas isso não lhe dá o direito de cometer crimes. Portanto, aquele que, ao ser

preso, informar nome falso, incorrerá no crime de falsa identidade, consoante à norma

incriminadora disposta no artigo 307 do Código Penal (1940).

Era dominante no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a atribuição de

falsa identidade, quando cometida para ocultar maus antecedentes, não configurava o crime

previsto no artigo 307 do Código Penal (1940).

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Para melhor elucidar, colaciono a ementa do Recurso Especial nº 689.011 – SP,

julgado no dia 22 de março de 2005:

RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO

EXCLUSIVO DA ACUSAÇÃO. OCORRÊNCIA DA REFORMATIO IN

MELLIUS. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. FALSA

IDENTIDADE. EXERCÍCIO DE AUTODEFESA. ART. 307 DO CP. NÃO-

APLICAÇÃO.

1. O art. 617 do Código de Processo Penal veda, tão-somente, a reformatio in pejus.

Em sendo assim, infere-se do sistema processual penal que a reformatio in mellius

deve ser admitida, pois em recurso exclusivo do Ministério Público toda a matéria

resta devolvida, podendo, desta forma, ser analisada a existência de ilegalidades na

condenação pelo Tribunal de Origem. Precedentes.

2. Esta Corte firmou entendimento de que a conduta praticada pelo Réu, de se

atribuir falsa identidade perante autoridade policial, não configura o crime descrito

no art. 307 do Código Penal, tratando-se de hipótese de autodefesa consagrada no

art. 5º, inciso LXIII, da Carta Magna.

3. Recurso especial não conhecido (STJ, Resp. 689.011 – SP, Quinta Turma, rel.

Min. Laurita Vaz, julgado em 22/03/2005) (grifei).

O caso tratou de um réu que foi condenado, no Juízo da 2ª Vara Criminal Central da

Cidade de São Paulo, por ter incorrido, dentre outros crimes, no crime de falsa identidade,

previsto no artigo 307, do Código Penal (1940). Da sentença somente o Ministério Público

apelou, pleiteando também a condenação do réu por mais um crime (receptação).

Ao julgar o apelo, o Tribunal de Justiça do Estado negou provimento, bem como

absolveu o acusado pelo crime de falsa identidade, sob o entendimento de que esse fato não

constituiu crime.

Já em sede de Recurso Especial, consoante entendimento pacificado à época,

mencionou-se como atípica a conduta do sujeito que se atribui falsa identidade perante a

autoridade policial, eis que hipótese de autodefesa, compatível com o direito ao silêncio

constitucionalmente assegurado, nos termos do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição

Federal (1988).

Esse era o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, mas que atualmente,

considerando o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal, mudou seu entendimento.

É o que se pode constatar da análise do habeas corpus nº 218.812 – SP.

Para melhor compreensão, imperiosa a transcrição da ementa do Habeas Corpus nº

218.812, oriundo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme segue:

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HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ART. 307 DO

CP. ATRIBUIÇÃO DE FALSA IDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE

POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. CONDUTA TÍPICA. 1. O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, LXIII, da CF⁄88) não alcança

aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de

ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente

(art. 307 do CP). Precedente do Supremo Tribunal Federal, em julgamento

submetido à repercussão geral (RE n. 640.139⁄DF). 2. Ordem denegada.

(STJ, Habeas Corpus nº 218.812 – SP, Sexta Turma, rel. Min. Sebastião Reis Júnior,

julgado em 23/02/2012).

No caso do referido habeas corpus o acusado foi condenado pelos crimes de tráfico de

drogas e de falsa identidade, este último previsto no artigo 307 do Código Penal (1940). A

Defesa recorreu da decisão, ocasião em que sustentou a atipicidade da conduta do réu, pois ele

teria se atribuído falsa identidade para ocultar sua condição de foragido, ou seja, teria

exercido autodefesa.

No mencionado julgamento o Ministro Relator Sebastião Reis Júnior consignou o

entendimento do Superior Tribunal de Justiça em tratar como atípica a conduta do sujeito

ativo que atribuir-se falsa identidade em circunstâncias como essa, pois estaria agindo em

consonância com o direito ao silêncio, constitucionalmente garantido. Porém, apontou o

entendimento do Supremo Tribunal Federal que, atualmente, considera típica a conduta de

quem se atribui falsa identidade para exercer autodefesa.

Desse modo, no sentido de se adequar ao entendimento do Supremo Tribunal Federal,

o Relator concluiu pela tipicidade da conduta, ainda que cometido o crime como forma de

autodefesa. Ou seja, aquele que se atribuir falsa identidade para ocultar seus maus

antecedentes ou sua condição de foragido não está amparado pela autodefesa, portanto, fica

sujeito às penas do artigo 307 do Código Penal (1940).

No Supremo Tribunal Federal a jurisprudência considera típica a conduta daquele que

se atribuir falsa identidade, perante a autoridade policial, para exercer autodefesa. Nesse

sentido, importante tecer comentários acerca do Habeas Corpus nº 72.377/ São Paulo, julgado

em 23 de maio de 1995. Neste caso um dos réus foi condenado por crimes de roubo, sequestro

e cárcere privado, bem como pelo crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código

Penal (1940).

Quanto ao delito de falsa identidade, o paciente alegou que não incorreu em crime, eis

que teria fornecido nome falso, no momento de sua prisão em flagrante, com o objetivo de

ocultar seus maus antecedentes. De modo que, também por este motivo, requereu a nulidade

da decisão que o condenou. Em referência à sentença, mencionou-se que a conduta do

paciente em informar falsa identidade objetiva enganar autoridades e prejudicar outras

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pessoas. Aí então evidenciado o dolo do agente em obter vantagem indevida, seja para si ou

para outrem. O acórdão ainda fez referência à análise da prova pelo Promotor de Justiça, que

consignou que o outro acusado igualmente se atribuiu falsa identidade, e que causou

transtornos à pessoa existente. De sorte que esta pessoa, ao tomar conhecimento da

condenação, procurou a autoridade ministerial. Do contrário, a pessoa inocente estaria sendo

condenada, ao invés do verdadeiro culpado pela prática dos crimes.

Pelo exposto, percebe-se a gravidade de condutas como estas, ou seja, de alguém

atribuir-se falsa identidade.

Embora num primeiro momento pareça algo simples, em que julgados concluíram pela

atipicidade do delito de falsa identidade, porquanto amparados pelo exercício da autodefesa,

num segundo momento destaca-se o dolo específico no cometimento deste crime, ou seja,

“obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem” - artigo 307

do Código Penal (1940). Como no caso acima narrado, um dos acusados, que não o paciente,

indicou nome de pessoa existente, trazendo-lhe prejuízos de ostentar uma condenação, quando

nada devia. Ademais, esse tipo de conduta traz prejuízo para as autoridades incumbidas da

atividade investigativa, especialmente para o Estado.

Em decisão recente, julgada como matéria de repercussão geral, no Recurso

Extraordinário (RE) 640.139/DF, o Supremo Tribunal Federal firmou seu entendimento e

resolveu que o princípio da autodefesa, constitucionalmente garantido, não compreende a

conduta daquele que falsear sobre sua identidade diante de autoridade policial com objetivo

de ocultar seus maus antecedentes.

No ponto, importante transcrever a ementa do Recurso Extraordinário em comento:

EMENTA CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE.

ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA INDENTIDADE

PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA.

ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM

REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA

CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA

CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da

CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial

com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta

praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e

extrapola os limites subjetivos das partes. (STF RE 640139 RG, Relator(a): Min.

DIAS TOFFOLI, julgado em 22/09/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC

14-10-2011 EMENT VOL-02607-05 PP-00885 RT v. 101, n. 916, 2012, p. 668-

674).

Portanto, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência sobre o tema, de modo

que passou a nortear as decisões, especialmente dos tribunais inferiores, ou seja, a partir do

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entendimento firmado no Recurso Extraordinário 640.139/DF, não mais se admite a

atribuição de falsa identidade para exercer autodefesa.

Em decisões recentes, fica evidenciado que tem se sustentado a posição do Supremo

Tribunal Federal firmada no Recurso Extraordinário nº 640.139/DF.

Com efeito, no julgamento do Habeas Corpus nº 112.176 – Mato Grosso do Sul,

ocorrido em 14 de agosto de 2012, o paciente, quanto ao crime de falsa identidade,

argumentou a ocorrência de afronta ao princípio constitucional da ampla defesa, tendo em

vista que se atribuiu falsa identidade apenas para ocultar seus maus antecedentes criminais e

manter-se em liberdade, razão pela qual postulou sua absolvição, sob o entendimento de que

não houve crime.

No julgamento deste Habeas Corpus, por unanimidade, foi denegada a ordem, ocasião

em que se decidiu que a simples atribuição de falsa identidade tipifica o crime disposto no

artigo 307 do Código Penal (1940), ficando afastada a tese de autodefesa.

Eis a ementa do Habeas Corpus nº 112.176:

Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. PACIENTE CONDENADO PELOS

CRIMES DE USO DE DOCUMENTO FALSO (ART. 304 DO CP) E FALSA

IDENTIDADE (ART. 307 DO CP). EXAME PERICIAL PRESCINDÍVEL.

MATERIALIDADE DEMONSTRADA POR OUTROS ELEMENTOS DE

PROVA. ATRIBUIÇÃO DE FALSA IDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE

POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE

NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADES DAS CONDUTAS

VERIFICADAS. ORDEM DENEGADA. I – Este Tribunal já assentou o

entendimento de que, para a caracterização do delito de uso de documento falso,

previsto no art. 304 do Código Penal, é despiciendo o exame pericial no documento

utilizado pelo agente, se os demais elementos de prova contidos dos autos

evidenciarem a sua falsidade. Precedentes. II – No caso sob exame, o próprio

paciente confessou que adquiriu os documentos falsos na Praça da Sé, em São Paulo,

circunstância que foi corroborada pela prova testemunhal produzida em juízo. III –

Ambas as Turmas desta Corte já se pronunciaram no sentido de que comete o delito

tipificado no art. 307 do Código Penal aquele que, conduzido perante a autoridade

policial, atribui a si falsa identidade com o intuito de ocultar seus antecedentes,

entendimento que foi reafirmado pelo Plenário Virtual, ao apreciar o RE

640.139/DF, Rel. Min. Dias Toffoli. IV – Habeas corpus denegado.

(STF HC 112176, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma,

julgado em 14/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 24-08-2012

PUBLIC 27-08-2012) (grifei).

No mesmo sentido, mantendo o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal,

no Recurso Extraordinário com Agravo nº 807.021 / DF - Distrito Federal, julgado no dia 22

de abril de 2014, o recorrente, pelo Defensor Público-Geral do Distrito Federal e Territórios,

contra decisão que não admitiu Recurso Extraordinário, alegou violação ao princípio da

autodefesa, tendo em vista que o recorrente havia agido com o objetivo de manter-se em

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liberdade, ou seja, havia agido em verdadeiro exercício de defesa, tinha direito de não

produzir provas contra si mesmo.

Mas o recorrente não obteve êxito. Foi negado seguimento ao Agravo, visto que as

razões sustentadas pelo agravante se mostraram diversas da atual jurisprudência. Ressalte-se

que nesse sentido o Supremo Tribunal Federal já havia se manifestado (RE 640.139/DF), não

havendo que se falar em atribuição de falsa identidade para exercer autodefesa.

Por fim, confirmando o que já foi salientado linhas acima, na jurisprudência, ficou

evidenciada a tendência em se manter afastada a alegação de autodefesa quando do

cometimento do crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal (1940).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho destacou, inicialmente, os princípios constitucionais penais e

processuais penais. É certo, os princípios constitucionais norteadores do direito penal

traduzem grande proteção ao acusado, inclusive limitando a atuação do direito penal. Aliás,

isso não poderia ser diferente. Porém, não deve prevalecer tão ampla proteção quando se fala

no cometimento do crime de falsa identidade previsto no artigo 307 do Código Penal (1940),

especificamente quando alguém se atribui falsa identidade para exercer autodefesa.

Especialmente sobre autodefesa conclui-se, a partir do estudo dos princípios

constitucionais penais e processuais penais, que não se trata de um princípio expresso, mas

sim de uma questão de princípio levada a feito com base na interpretação, mas que, todavia,

não ganha espaço quando um sujeito atribui-se falsa identidade para se defender, razão pela

qual o cometimento de crime não deve subsistir como ferramenta de defesa.

Da análise dos crimes contra a fé pública dispostos no Código Penal fica evidenciado

o objetivo do legislador em proteger a atuação do Estado e os direitos e interesses da

coletividade, especialmente a crença que as pessoas depositam em documentos, dinheiro e

atos oriundos especialmente do poder público ou daqueles que lhe façam as vezes.

Tamanha é a proteção que a expressiva maioria dos crimes contra a fé pública

consumam-se com a simples prática das condutas ali descritas, sendo irrelevante a produção

de resultado.

Por entendimentos doutrinários e jurisprudenciais foram trazidos elementos

norteadores da autodefesa, em que sujeitos ativos do crime de falsa identidade se viram

absolvidos da prática deste crime. Já outros não, ou seja, outros julgados evidenciaram

situações em que não se admitiu a atribuição falsa identidade para exercer autodefesa,

concluindo-se pela tipicidade do crime, ficando os acusados do delito sujeitos à (s) pena (s)

prevista (s) para o crime de falsa identidade.

Ao acusado ou suspeito de um crime, conforme os princípios norteadores do direito

penal são assegurados os meios de defesa. Porém, quando do cometimento de crime para se

defender a situação é diversa.

É bom destacar que nessas situações não está em jogo apenas o direito de defesa do

acusado, mas também direitos de outras pessoas, como, por exemplo, quando o acusado

indica o nome de pessoa existente, assim também a fé pública e a atuação do Estado nas

atividades de investigação, estes últimos os bens jurídicos imediatamente atingidos com este

tipo de conduta.

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No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e no Superior Tribunal de

Justiça não eram pacíficas as decisões.

Mas, finalmente, o Supremo Tribunal Federal resolveu esse tema. Decidiu em Recurso

Extraordinário, considerando matéria de repercussão geral, que não deve prevalecer

autodefesa quando o sujeito ativo de um crime se atribui falsa identidade para se “defender”.

As consequências deste tipo de comportamento atingem níveis além das partes

envolvidas num processo. Atingem especialmente a confiança que as pessoas depositam na

atividade estatal, sem contar impressão da impunidade.

Do contrário, ou seja, entendendo-se pela atipicidade, não haveria razão para a

manutenção da norma incriminadora prevista no artigo 307 do Código Penal, que ficaria

praticamente esvaziada.

Existem muitas maneiras de um acusado se defender. Como demonstrado no capítulo

em que os princípios foram analisados, todo acusado tem direito a um defensor. Ademais, tem

consigo o princípio da presunção de inocência, cabendo-lhe apenas velar por ele, sem precisar

efetivamente prová-lo. Desse modo, atribuir-se falsa identidade não deve servir para esta

finalidade, a de defesa.

Por fim, ressalte-se que, ainda que a autodefesa se evidencie como uma questão de

princípio, não justifica o cometimento do crime de falsa identidade, ou seja, não serve e não

pode servir como permissivo para o cometimento do crime de falsa identidade. Pois,

conforme já mencionado, as consequências desse tipo de comportamento vão além das partes

envolvidas num processo criminal, compreendendo a fé pública, especialmente disposta na

credibilidade das pessoas para com a atuação do Estado.

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REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 2ª Ed. – Rio de Janeiro:

Forense; São Paulo: Método, 2010.

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Código Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-

lei/del2848compilado.htm. Acesso em 10 de setembro de 2013 às 12h10min.

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 10 de

setembro de 2013 às 12h10min.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 10 de

setembro de 2013 às 12h10min.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº: 689.011 – SP. Disponível em:

https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=5

36787&num_registro=200401005493&data=20050502&formato=PDF. Acesso em

13/02/2014, às 13h44min.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS nº: 218.812 – SP. Disponível em

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=20175233&

sReg=201102221155&sData=20120321&sTipo=51&formato=PDF. Acesso em 19 de abril de

2014, às 17h44min.

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