selma garrido pimenta - professor reflexivo no brasil - gênese e critica de um conceito

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Aproposta do Professor reflexivo no Brasil: gênese e crí­tica de um conceito é discutir criticamente o conceito do professor reflexivo, amplamente apropriado e generalizado

i S h n o s meios educacionais brasileiros. Para isso analisa suas raízes § | | fundantes de modo a compreender o seguinte paradoxo: essa pers-^|||pectiva conceituai tem se revelado extremamente importante para a

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tica se faz necessário avaliar, investigar, aprofundar, analisar e criti-f'-Çcar a fecundidade de uma perspectiva teórica para uma formação

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Professor Reflexivo no Brasil gênese e crítica de um conceito

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Professor reflexivo no Brasil : gênese e crítica de um conceito / Selma Garrido Pimenta, Evandro Ghedin, (orgs.) - 4. ed. - São Paulo : Cortez, 2006

Vários autores. ISBN 85-249-0840-8

1. Professores - Formação profissional I. Pimenta, Selma Garrido. II. Ghedin, Evandro.

02-2061 CDD-370.71

índices para catálogo sistemático:

1. Professor reflexivo : Formação profissional: Educação 370.10

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Selma Garrido Pimenta Evandro Ghedin (Orgs.)

Bernard Charlot • Evandro Ghedin • José Carlos Libâneo José Gimeno Sacristán • Juarez Melgaço Valadares

Luiz Fernando Franco • Maria do Socorro Lucena Lima Maria Isabel Batista Serrão • Marineide de Oliveira Gomes

Rita de Cássia M. B. Borges • Selma Garrido Pimenta Silas Borges Monteiro

Professor Reflexivo no Brasil gênese e critica de um conceito

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL: gênese e crítica de um conceito Selma Garrido Pimenta e Evandro Ghedin (orgs.)

Capa: DAC Preparação de originais: Carmen Teresa da Costa Revisão: Jaci Dantas de Oliveira e Agnaldo Alves Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e do editor.

© 2002 by Organizadores

Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 - Perdizes 05009-000 - São Paulo - SP Tel.:(l 1)3864-0111 Fax: (11)3864-4290 E-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br

Impresso no Brasil — outubro de 2006

Page 7: Selma Garrido Pimenta - Professor Reflexivo no Brasil - Gênese e critica de um conceito

Sumário

Introdução 7

Parte I — PROFESSOR REFLEXIVO: HISTORICIDADE DO CONCEITO

1. Professor reflexivo: construindo uma crítica

Selma Garrido Pimenta 17

2. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento pedagógico brasileiro?

José Carlos Libâneo 53

3. Tendências investigativas na formação de professores

José Gimeno Sacristán 81

4. Formação de professores: a pesquisa e a política educacional

Bernard Charlot 89

Parte II — EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E AUTONOMIA DA CRÍTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS

5. Epistemologia da prática: o professor reflexivo e a pesquisa colaborativa

Silas Borges Monteiro 111

6. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica

Evandro Ghedin 129

7. Superando a racionalidade técnica na formação: sonho de uma noite de verão

Maria Isabel Batista Serrão 151

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6 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

Parte III — PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO E AS MEDIAÇÕES NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR REFLEXIVO

8. Redimensionando o papel dos profissionais da educação: algumas considerações

Maria do Socorro Lucena Lima & Marineide de Oliveira Gomes 163

9. O professor diante do espelho: reflexões sobre o conceito de professor reflexivo

Juarez Melgaço Valadares 187

10. O professor reflexivo-crítico como mediador do processo de inter-relação da leitura — escritura

Rita de Cássia Monteiro Barbugiani Borges 201

11. Racionalidade técnica, pesquisa colaborativa e desenvolvimento profissional de professores

Luiz Fernando Franco 219

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INTRODUÇÃO 7

Este livro nasce da produção coletiva dos mestrandos e doutoran­dos alunos de disciplina que ministramos nos Programas de Pós-Gra-duação em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da Universidade Católica de Goiás, nos anos de 2000 e 2001, como resposta a um conjunto de questionamentos nossos e que foram ampliados durante os cursos. Por oportuno, inclui textos de três outros autores, preocupados com a mesma problemática.

A proposta inicial da disciplina era discutir criticamente o conceito de professor reflexivo, amplamente apropriado e generalizado nos meios educacionais. Para isso, se propôs uma análise sistemática que permitis­se ir às suas raízes fundantes e analisar a sua gênese, de modo que se compreendesse o seguinte paradoxo: se essa perspectiva conceituai tem se revelado extremamente importante para a leitura, compreensão e orien­tação do processo de formação de professores, tem também sido apro­priada por diversos atores — pesquisadores e reformadores educacio­nais — que apresentam propostas claramente divergentes para esse pro­cesso. É diante dessa problemática que se faz necessário avaliar, investi­gar, aprofundar, analisar e criticar a fecundidade de uma perspectiva teó­rica para a formação de professores(as) na contemporaneidade brasileira.

Inicialmente produziu-se um conjunto de indagações surgidas ao longo do curso, que foram amadurecendo no decorrer das discussões. À medida que o debate ia se desenvolvendo, o conceito apontava possibi­lidades de aprofundamento, mas também os seus limites na prática formativa dos(as) novos(as) professores(as). Os textos que ora tornamos público, articulam uma reflexão sobre esses limites e possibilidades do conceito de professor reflexivo.

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8 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

A análise crítica contida nos textos aqui reunidos expressa uma vi­são possível sobre o conceito, não sendo obviamente a única. Entende­mos que um conceito fértil possibilita infindas leituras e a fundação de novos conceitos. Acreditamos que a produção deste livro é resultante dessa fertilidade.

O livro tem como eixo articulador a necessidade de ler criticamente a realidade através de uma análise sistemática. Nesse sentido, cada autor(a) procura articular suas questões, expressões das preocupações que emer­gem de seu cotidiano de pesquisa na pós-graduação, à problemática ge­ral. Se isso revela os limites do próprio trabalho, também demonstra que as possibilidades criativas de cada um(a) colocam a reflexão sobre o con­ceito num novo patamar de debate.

Além da questão central sobre a crítica ao conceito de professor reflexivo, há uma outra problemática umbilicalmente ligada a ela que é a questão da formação de professores. Por isso, os textos configuram um movimento que vai do conceito a possíveis propostas ou leituras de formação que o tenham como horizonte de orientação. Esse movi­mento norteou a organização dos textos em três partes distintas e com-plementares. A primeira, Professor reflexivo: historicidade do conceito, apre­senta a gênese sócio-histórica do conceito de reflexão e da perspectiva do professor reflexivo, analisando seus limites e suas possibilidades na formação de professores em diferentes países e, em especial, no Brasil. A segunda propõe-se uma reflexão sobre a Epistemologia da prática e autonomia da critica na formação de professores. A terceira, Profissionais da educação e as mediações na formação do professor reflexivo, complementando as anteriores, põe em discussão a ligação entre o conceito e a profissionalidade do professor. Assim, percorre-se uma caminhada que vai das reflexões propostas para a formação de professores às críticas ao conceito de professor reflexivo, e do conceito para as alternativas que nele se fundamentam.

Parte I — Professor reflexivo: historicidade do conceito

Professor reflexivo: construindo uma crítica — Selma Garrido Pimenta

Analisa as origens, os pressupostos, os fundamentos e as característi­cas dos conceitos professor reflexivo e professor-pesquisador no movimento de valorização da formação e da profissionalização de professores sur­gido em diferentes países a partir dos anos 1990, e a sua influência em pesquisas e nos discursos de pesquisadores e de políticos brasileiros.

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INTRODUÇÃO 9

Procede a uma revisão conceituai a partir das propostas do norte-americano D. Schõn e dos contextos nos quais se desenvolve. Aponta seus desdobramentos na área de formação de professores e as princi­pais críticas a partir de diferentes perspectivas teóricas e de pesquisa empírica. Analisa a apropriação desses conceitos no Brasil, situando um breve panorama histórico do movimento e das pesquisas sobre formação de professores anteriores à disseminação do conceito. Apon­ta as bases políticas e ideológicas em confronto nas políticas de forma­ção de professores em anos recentes. Conclui pela necessidade da trans­formação do conceito, considerando as contradições que emergem de sua análise.

Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento peda­

gógico brasileiro? — José Carlos Libâneo

O texto situa a reflexividade como conceito integrante do embate mo­dernidade — pós-modernidade, referindo-se ao caráter reflexivo da ra­zão, implicando a capacidade de pensar, a auto-reflexão, a intencionali-dade e o "empoderamento" dos sujeitos, frente à realidade. Afirma que, no caso brasileiro, a concepção de professor reflexivo, de matiz pragmá­tico, tende a se sobrepor aos demais significados da reflexividade. Em razão disso, o texto visa explicitar outros sentidos desse conceito, situar sucintamente sua história no Brasil e discutir distinções entre a reflexividade de matiz neoliberal e outras modulações do conceito como a crítica, a dialética, a hermenêutica, a comunicativa, a comunitária, en­tre outras. Propõe ao final uma concepção mais abrangente de formação de professores inspirada na teoria histórico-cultural da atividade e nas teorias recentes da ação e à da cultura.

Tendências investigativas na formação de professores — José Gimeno Sacristán

Criticando a expansão generalizada de pesquisas no campo da for­mação de professores, indaga-se até que ponto são úteis aos professo­res. Constrói sua análise a partir das duas grandes tendências atuais: a pós-positivista e a pós-weberiana. Apresenta seis princípios a partir dos quais se deveria elaborar um discurso mais coerente com a reali­dade prática dos professores, partindo da idéia de um senso comum culto. Propõe uma formação de professores baseada num racionalismo moderado na direção da modernidade; na vontade como sentimento que abre um caminho otimista enraizado na inteligência; e no habüus como forma de integração entre o mundo das instituições e o mundo das pessoas.

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10 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

Formação de professores: a pesquisa e a política educacional — Bernard Charlot

O texto examina questões que o autor considera fundamentais para se pensar a formação de professores: o fato de as pesquisas não atingirem a sala de aula; a questão da relação entre a teoria e a prática; as relações entre as práticas dos alunos, as práticas dos docentes e as estruturas e as políticas educacionais. Afirma que os professores estão se formando mais com os outros professores dentro das escolas do que nas aulas das uni­versidades. A partir daí, faz uma ponte entre a pesquisa na área educa­cional e a formação de professores, distinguindo o trabalho do professor da função de pesquisador. Diz que não existe um problema de diálogo entre teoria e prática; o que existe é um problema de diálogo entre dois tipos de teoria, uma enraizada na prática e outra que se desenvolve na pesquisa e nas idéias dos pesquisadores. Conclui expressando-se sobre o efeito das estruturas e das práticas educacionais do aluno e do professor.

Parte II — Epistemologia da prática e autonomia da crítica na formação de

professores

Epistemologia da prática: o professor reflexivo e a pesquisa colaborativa — Silas Borges

Monteiro

O texto tece considerações sobre os saberes da docência na produção do conhecimento em educação e explicita as dicotomias entre teoria e práti­ca, apontando para uma saída fundada na práxis. Trabalha os conceitos de prática e de teoria, estabelecendo uma relação intrínseca entre ambas, fundada em sua revisão. Caminha dessa relação à teoria de professor re­flexivo, entendendo-a como uma "outra prática", o que coloca em ques­tão a possibilidade da pesquisa (colaborativa) da prática. Busca no senti­do grego do labor uma fundamentação para a pesquisa colaborativa, apon­tada como alternativa a outros modelos de produção do conhecimento no campo educacional. Propõe que a reflexão é uma forma de labor que se torna co-labor na ação com os outros, fundamentando a pesquisa colaborativa neste diálogo (como prática) coletivo.

Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica — Evandro Ghedin

Parte do pressuposto de que a técnica por si mesma traz um processo de alienação imposto pelos meios de produção. A formação profissional do professor precisa abandonar este paradigma da tecnicidade para fun­dar-se num outro modelo que seja de caráter reflexivo. Para tal, o texto faz três movimentos, didaticamente distintos mas intimamente inter-

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INTRODUÇÃO 11

relacionados. O primeiro movimento vai do prático-reflexivo à autono­mia da práxis. Entende que a reflexão tem sentido como práxis, na dire­ção marxiana. O segundo movimento vai da epistemologia da prática à autonomia emancipadora da crítica, numa crítica ao conceito de profes­sor reflexivo. O terceiro movimento vai da epistemologia da prática do­cente à prática da epistemologia crítica. O horizonte da reflexão deve ser a crítica, não como fim em si mesma, mas como meio de redimensionar e ressignificar a própria prática.

Superando a racionalidade técnica na formação: sonho de uma noite de verão —

Maria Isabel Batista Serrão

O texto parte das posições de Schõn na sua crítica à racionalidade técni­ca e propõe a reflexão como instrumento de formação do professor. Exa­minando o conceito de "prático-reflexivo" faz um contraponto com Elliot e Stenhouse, para negar que o professor, no seu processo de formação e na sua atuação profissional, possa ser um artesão, como propõe Schõn, porque no interior do sistema capitalista os professores das escolas pú­blicas e das particulares não são donos de sua força de trabalho, uma vez que estão inseridos numa relação de produção própria do sistema capi­talista, em que o trabalhador vende sua força de trabalho e, nesta condi­ção, ele não é dono de sua obra. Portanto, sua ação limita-se a ser traba­lhador público ou trabalhador privado e não um artista ou artesão.

Parte III — Profissionais da Educação e as Mediações na Formação do Professor

Reflexivo

Redimensionando o papel dos profissionais da educação: algumas considerações

— Maria do Socorro Lucena Lima e Marineide de Oliveira Gomes

As autoras propõem uma reflexão sobre a necessidade de redimensiona­mento do papel dos profissionais da educação, questionando o processo de interferência dos novos paradigmas da ciência que condiciona e am­plia as atividades dos profissionais da educação na sociedade atual. Re­fletem sobre o papel e a função da pedagogia e do pedagogo, inserindo-os como detentores de um conjunto de saberes que nascem da experiência, se constituem em saber científico e se transmitem como saberes pedagó­gicos, confíuindo para a construção da identidade do pedagogo. Sinteti­zam as alterações legais sobre a formação dos profissionais da educação, levantando questões polêmicas a serem enfrentadas no debate institucio­nal e propõem uma outra qualidade para a formação docente.

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12 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

O professor diante do espelho: reflexões sobre o conceito de professor reflexivo

— Juarez Melgaço Valadares

Analisando aspectos da prática reflexiva na literatura acadêmica atual, tece um diálogo entre as idéias nela contidas e uma prática concreta de professor reflexivo no município de Belo Horizonte. Traz para a discussão alguns elementos relacionados à importância da autonomia do profes­sor na organização e execução de projetos pedagógicos. Partindo do con­ceito de profissional reflexivo, passa pelas críticas ao conceito de professor reflexivo, exemplifica uma prática na escola e conclui numa perspectiva dialógica para a construção da autonomia do professorado.

0 professor reflexivo-crítico como mediador do processo de inter-relaqão da

leitura — escritura — Rita de Cássia Monteiro Barbugiani Borges

Discute possibilidades de ação docente na orientação do processo de inter-relação da leitura — escritura por meio de uma intertextualização da teoria do professor reflexivo e da relação leitura — escritura. Apresenta uma síntese da teoria, das contradições, dúvidas e buscas do profissio­nal reflexivo como intelectual crítico e propõe uma reflexão no sentido de pensar a inter-relação da leitura — escritura no processo ensino — aprendizagem nos cursos de nível superior, destacando o papel do pro­fessor na orientação e formação de um leitor crítico e capaz de produzir a própria autoria textual com um discurso reflexivo, crítico e criativo.

Racionalidade técnica, pesquisa colaborativa e desenvolvimento profissional de

professores — Luiz Fernando Franco

O texto faz um movimento da crítica à racionalidade técnica aos saberes da experiência como objeto de conhecimento e de reflexão. Sintetiza as posições em torno dos conceitos de professor reflexivo e professor pesquisa­dor e busca demonstrar, através de pesquisa empírica, em depoimentos de professores, os componentes da racionalidade técnica presentes na prática cotidiana dos professores. Conclui por valorizar os saberes da experiência como imprescindíveis para a formação de um profissional reflexivo.

O presente livro, Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito, deseja contribuir com o debate teórico sobre formação de pro­fessores. Esperamos que os textos aqui reunidos possam ser úteis aos professores em exercício de sua profissão e aos futuros professores no sentido de ampliarem sua compreensão de questões que afetam o cotidia­no do trabalho docente nas escolas. Esperamos que contribua também

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INTRODUÇÃO 13

na análise das pesquisas e das políticas na área e que estimule novas análises e investigações em todos aqueles que, como nós, acreditam na necessidade de que os professores tenham seu estatuto profissional e social elevados, a fim de que possam contribuir para tornar efetiva uma educação de qualidade para todos.

São Paulo, outubro de 2001

Selma Garrido Pimenta

Evandro Ghedin

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 15

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 17

PROFESSOR REFLEXIVO:

construindo uma crítica*

Selma Garrido Pimenta**

Este texto teve sua origem no curso Análise Crítica do Conceito de Professor Reflexivo que ministrei inicialmente junto aos alunos do Dou­torado em Educação na Universidade Católica de Goiás (2000)1 e junto à linha de pesquisa Didática, Teorias do Ensino e Práticas Escolares, no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores, no Pro­grama de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP (2001). Teve por objetivos explicitar e discutir as origens, os pressu­postos, os fundamentos e as características do conceito professor reflexivo, com vistas a dispor aos alunos perspectivas teóricas e dados de pesquisa empírica que lhes possibilitassem uma análise crítica desse conceito. Considerando a importância que assumiu no processo formativo dos pós-graduandos, passou a integrar a disciplina Formação de Professores: Tendências Investigativas Contemporâneas, sob a responsabilidade da autora e dos professores Maria Isabel de Almeida e José Cerchi Fusari, Feusp (2001). As análises, as discussões, os debates e as críticas foram

* O texto é parte do Relatório Parcial de Pesquisa (CNPq, 2002), com o título A pesquisa na área de formação de professores e as tendências investigativas contemporâneas teórico-epistemológicas-metodológicas e políticas. Agradeço a Maria Amélia Franco e Valter Soares Guimarães pela lei­tura e sugestões.

** Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. [email protected]

1. Em convênio com o Programa de Pós-Graduação Educação Brasileira, da Unesp/ Marília.

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18 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

significativamente ampliados com a colaboração dos colegas e dos alu­nos e me estimularam a elaborar o presente texto, que incorpora contri­buições a partir da pesquisa empírica Qualificação do Ensino Público e Formação de Professores.2

Sua proposta é a de analisar as origens, os pressupostos, os funda­mentos e as características dos conceitos professor reflexivo e professor pes­quisador no movimento de valorização da formação e da profissionaliza­ção de professores surgido em diferentes países a partir dos anos 1990 e a sua influência em pesquisas e nos discursos de pesquisadores e de po­líticos brasileiros. Para isso procede a uma revisão conceituai do tema a partir das propostas do norte-americano D. Schõn, seu principal formulador, e dos contextos nos quais se desenvolve. Aponta seus des­dobramentos conceituais na área de formação de professores em dife­rentes autores e países e as principais críticas a partir de diferentes pers­pectivas teóricas e de pesquisa empírica por nós realizada. Analisa a apropriação desses conceitos no Brasil, situando um breve panorama histórico do movimento e das pesquisas sobre formação de professores, anteriores à disseminação do conceito entre nós, evidenciando a fertili­dade do diálogo que então se estabeleceu. Criticando a apropriação ge­neralizada dos conceitos, discute as bases políticas e ideológicas em con­fronto nas políticas de formação de professores no Brasil nos anos recen­tes. Por fim, aponta para a necessidade da transformação do conceito, considerando as contradições que emergem de sua análise.

1. Professor reflexivo — adjetivo ou conceito?

Todo ser humano reflete. Aliás, é isso que o diferencia dos demais animais. A reflexão é atributo dos seres humanos. Ora, os professores, como seres humanos, refletem. Então, por que essa moda de "professor reflexi­vo"? De fato, desde os inícios dos anos 1990 do século XX, a expressão "professor reflexivo" tomou conta do cenário educacional, confundindo a reflexão enquanto adjetivo, como atributo próprio do ser humano, com um movimento teórico de compreensão do trabalho docente. Para escla­recer a diferença entre a reflexão como atributo dos professores (adjetivo)

2. Trata-se de pesquisa colaborativa coordenada pela autora, com a participação de Manoel Oriosvaldo de Moura, Elsa Garrido e Heloísa Penteado, foi realizada em uma escola pública estadual de São Paulo junto a 24 professores, responsáveis pela formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental. Feusp-Fapesp, 1996-2000.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 19

e o movimento que se denominou professor reflexivo (conceito), procedere­mos a uma gênese contextualizada desse movimento.

Como professor de Estudos Urbanos no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA) até 1998, Donald Schõn realizou atividades re­lacionadas com reformas curriculares nos cursos de formação de profis­sionais. Observando a prática de profissionais e valendo-se de seus estu­dos de filosofia, especialmente sobre John Dewey,3 propõe que a forma­ção dos profissionais não mais se dê nos moldes de um currículo normativo que primeiro apresenta a ciência, depois a sua aplicação e por último um estágio que supõe a aplicação pelos alunos dos conhecimen­tos técnico-profissionais. O profissional assim formado, conforme a aná­lise de Schõn, não consegue dar respostas às situações que emergem no dia-a-dia profissional, porque estas ultrapassam os conhecimentos ela­borados pela ciência e as respostas técnicas que esta poderia oferecer ainda não estão formuladas.

Assim, valorizando a experiência e a reflexão na experiência, conforme Dewey, e o conhecimento tácito, conforme Luria e Polanyi, Schõn pro­põe uma formação profissional baseada numa epistemologia da prática, ou seja, na valorização da prática profissional como momento de constru­ção de conhecimento, através da reflexão, análise e problematização desta, e o reconhecimento do conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontram em ato. Esse conhecimento na ação é o conheci-

3. Em sua tese de doutorado (1983), Schõn estuda Dewey, além de Polanyi, Wittgenstein, Luria e Kuhn. Autores que lhe dão base para configurar uma pedagogia de formação profis­sional. De Luria, quando estuda o desenvolvimento cognitivo de camponeses propondo-lhes problemas e observando seus processos de compreensão e de resolução e extrai a importância de seus conhecimentos tácitos (cf. Michael Polanyi). De Dewey, o conceito de experiência com­preendida como mais do que a simples atividade, envolvendo os elementos ativo (tentativas, experimentos, mudança) e passivo, quando experimentamos, passamos, sofremos as conse­qüências da mudança. Nesse sentido, "a experiência é uma ação activo-passiva; não é prima­riamente, cognitiva. Mas a medida do valor da experiência reside na percepção das relações ou continuidades a que nos conduz" (p. 192). Portanto, "sem algum elemento intelectual [a reflexão] não é possível nenhuma experiência significativa"... "O pensamento ou reflexão (...) é o discernimento da relação entre aquilo que tentamos fazer e o que sucede em conseqüên­cia" (p. 199). Também "pelo pensamento nós prevemos [hipótese] as conseqüências (...) o que significa uma solução proposta ou tentada (p. 208). Para que a hipótese seja aperfeiçoada é necessário que se analise cuidadosamente "as condições existentes e o conteúdo da hipótese adotada — acto que se chama raciocínio. Então, a solução sugerida — a idéia ou teoria — tem que ser posta em prova, procedendo-se de acordo com ela. Se acarretar certas conseqüências, determinadas mudanças no mundo, admite-se como valiosa, Se tal não se der, modificamo-la e fazemos novas experiências" (p. 208). (Dewey, John. Democracia e educação. Trad. de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1952).

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20 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

mento tácito, implícito, interiorizado, que está na ação e que, portanto, não a precede. E mobilizado pelos profissionais no seu dia-a-dia, confi­gurando um hábito. No entanto, esse conhecimento não é suficiente. Fren­te a situações novas que extrapolam a rotina, os profissionais criam, cons­tróem novas soluções, novos caminhos, o que se dá por um processo de reflexão na ação. A partir daí, constróem um repertório de experiências que mobilizam em situações similares (repetição), configurando um co­nhecimento prático. Estes, por sua vez, não dão conta de novas situa­ções, que colocam problemas que superam o repertório criado, exigindo uma busca, uma análise, uma contextualização, possíveis explicações, uma compreensão de suas origens, uma problematização, um diálogo com outras perspectivas, uma apropriação de teorias sobre o problema, uma investigação, enfim. A esse movimento, o autor denomina de refle­xão sobre a reflexão na ação. Com isso, abre perspectivas para a valorização da pesquisa na ação dos profissionais, colocando as bases para o que se convencionou denominar o professor pesquisador de sua prática.4

Assim, encontramos em Schõn uma forte valorização da prática na formação dos profissionais; mas uma prática refletida, que lhes possibi­lite responder às situações novas, nas situações de incerteza e indefinição. Portanto, os currículos de formação de profissionais deveriam propiciar o desenvolvimento da capacidade de refletir. Para isso, tomar a prática existente (de outros profissionais e dos próprios professores) é um bom caminho a ser percorrido desde o início da formação, e não apenas ao final, como tem ocorrido com o estágio.5

2. A fertilidade das contribuições de Schõn no campo da formação de professores

As idéias de Schõn rapidamente foram apropriadas e ampliadas em diferentes países, além de seu próprio, num contexto de reformas

4. Dentre os autores que inicialmente colocam as questões de professor pesquisador para a área de formação destes estão Elliot (1993) e Stenhouse (1984 e 1987).

5. Aos interessados em aprofundar a análise das propostas de Schõn e suas teorias, con­sultar, especialmente, Schõn, D. The Reflective Practitioner — how professionals think in action. Londres: Temple Smith, 1983, e Educating the Reflective Practitioner — tomará a nem design for teaching and learning in the professions. San Francisco: Jossey Bass, 1987. Este também em espa­nhol: Laformación de profesionales reflexivos — hacia un nuevo diseno de la ensenanza y el aprendizaje en Ias profesiones. Madrid: Paidós, 1992. Ver também Nóvoa, Antônio (coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Ed. Dom Quixote, 1992, obra que reúne textos de vários autores em tomo da perspectiva de professor reflexivo, inclusive um texto de Schõn.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 21

curriculares nas quais se questionava a formação de professores numa perspectiva técnica e a necessidade de se formar profissionais capazes de ensinar em situações singulares, instáveis, incertas, carregadas de conflitos e de dilemas, que caracteriza o ensino como prática social em contextos historicamente situados. Por outro lado, também se indagava sobre o papel dos professores nas reformas curriculares. Seriam estes meros executores das decisões tomadas em outras instâncias? Pesquisas já vinham apontando a importância da participação destes e da incorpo­ração de suas idéias, seus conhecimentos, suas representações, na elabo­ração das propostas a serem implantadas. O reconhecimento destes como sujeitos participantes das propostas se constituía em requisito impres­cindível no sucesso da implantação de mudanças. E o conceito de profes­sor reflexivo apontava possibilidades nessa direção.

A ampliação e a análise crítica das idéias de Schõn (e a partir delas) favoreceram um amplo campo de pesquisas sobre uma série de temas pertinentes e decorrentes para a área de formação de professores, temas inclusive ausentes nas preocupações de Schõn.

Uma das primeiras questões tematizadas dizia respeito aos currí­culos necessários para a formação de professores reflexivos e pesquisa­dores, ao local dessa formação e, sobretudo, às condições de exercício de uma prática profissional reflexiva nas escolas. O que pôs novamente em pauta de discussão as questões organizacionais, o projeto pedagógico das escolas, a importância do trabalho coletivo, as questões referentes à autonomia dos professores e das escolas; as condições de trabalho, de carreira, de salário, de profissionalização de professores; a identidade epistemológica (quais saberes lhes são próprios?); os processos de for­mação dessa identidade, incluindo a vida, a história, a trajetória pessoal e profissional; as novas (e complexas) necessidades colocadas às escolas (e aos professores) pela sociedade contemporânea das novas tecnologias, da informação e do conhecimento, do esgarçamento das relações sociais e afetivas, da violência, da indisciplina, do desinteresse pelo conheci­mento, gerado pelo reconhecimento das formas de enriquecimento que independem do trabalho; das novas configurações do trabalho e do de­semprego, requerendo que os trabalhadores busquem constantemente re-qualificação através de cursos de formação contínua etc.

Nesse contexto, no que se refere aos professores, ganhou força a formação contínua na escola, uma vez que aí se explicitam as demandas da prática, as necessidades dos professores para fazerem frente aos confli­tos e dilemas de sua atividade de ensinar. Portanto, a formação contínua

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não se reduz a treinamento ou capacitação e ultrapassa a compreensão que se tinha de educação permanente.6 A partir da valorização da pes­quisa e da prática no processo de formação de professores, propõe-se que esta se configure como um projeto de formação inicial e contínua articulado entre as instâncias formadoras (universidade e escolas7).

3. Primeiras críticas: mercado de conceitos

O ensino como prática reflexiva tem se estabelecido como uma ten­dência significativa nas pesquisas em educação, apontando para a valo­rização dos processos de produção do saber docente a partir da prática e situando a pesquisa como um instrumento de formação de professores, em que o ensino é tomado como ponto de partida e de chegada da pes­quisa. Concordando com a fertilidade dessa perspectiva, cabe, no entanto, indagar: que tipo de reflexão tem sido realizada pelos professores? As reflexões incorporam um processo de consciência das implicações so­ciais, econômicas e políticas da atividade de ensinar? Que condições têm os professores para refletir?

Sem dúvida, ao colocar em destaque o protagonismo do sujeito pro­fessor nos processos de mudanças e inovações, essa perspectiva pode gerar a supervalorização do professor como indivíduo. Nesse sentido, diversos autores têm apresentado preocupações quanto ao desenvolvi­mento de um possível "praticismo" daí decorrente, para o qual bastaria a prática para a construção do saber docente; de um possível "individua­lismo", fruto de uma reflexão em torno de si própria; de uma possível hegemonia autoritária, se se considera que a perspectiva da reflexão é suficiente para a resolução dos problemas da prática; além de um possí­vel modismo, com uma apropriação indiscriminada e sem críticas, sem compreensão das origens e dos contextos que a gerou, o que pode levar à banalização da perspectiva da reflexão. Esses riscos são apontados por vários autores.

Para Liston & Zeichner (1993), no entender de Rocha (1999), "a re­flexão desenvolvida por Schõn aplica-se a profissionais individuais, cujas

6. Sobre as diferenças entre educação permanente e formação contínua, ver a tese de Maria Socorro Lucena Lima, A formação contínua de professores nos caminhos e descaminhos do desenvolvimento profissional. Faculdade de Educação — Universidade de São Paulo, 2001.

7. Sobre a relação universidades e escolas, ver Fiorentini et al. (1998); Pimenta, Garrido & Moura (2000); Zeichner (1998).

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mudanças que conseguem operar são imediatas: eles não conseguem al­terar as situações além das salas de aula. Esses autores acreditam que Schõn tinha a consciência dessa limitação dos profissionais reflexivos. Para eles Schõn não especifica as reflexões sobre a linguagem, os siste­mas de valores, os processos de compreensão e a forma com que defi­nem o conhecimento, quatro elementos fundamentais, sem os quais os professores não conseguem mudar a produção do ensino, de forma a fazê-lo segundo ideais de igualdade e justiça. E mais, só a reflexão não basta, é necessário que o professor seja capaz de tomar posições concre­tas para reduzir tais problemas. Os professores não conseguem refletir concretamente sobre mudanças porque são eles próprios condicionados ao contexto em que atuam". Nesse sentido, Liston & Zeichner "conside­ram que o enfoque de Schõn é reducionista e limitante por ignorar o contexto institucional e pressupor a prática reflexiva de modo indivi­dual. Afirmam que isto ocorreu porque o autor não se colocou por obje­tivo elaborar um processo de mudança institucional e social, mas so­mente centrar-se nas práticas individuais. Afirmam que Schõn concede aos profissionais a missão de mediação pública, facilitadores do diálogo público nos problemas sociais, mas não inclui qual deveria ser o com­promisso e a responsabilidade pública dos professores" (Freitas, 1999). 8

Zeichner (1992) "entende que a concepção de intervenção reflexiva proposta por Schõn, a partir de Dewey, é uma forma de sustentar a inco­erência em se identificar o conceito de professor reflexivo com práticas ou treinamentos que possam ser consumidos por um pacote a ser aplica­do tecnicamente. E é isso que, a seu ver, vem ocorrendo com o conceito: um oferecimento de treinamento para que o professor torne-se reflexivo. A nosso ver, esse 'mercado' do conceito entende a reflexão como supera­ção dos problemas cotidianos vividos na prática docente, tendo em con­ta suas diversas dimensões. Essa massificação do termo tem dificultado o engajamento de professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer técnico. Contraditoriamente, esse fazer foi o objeto de crítica do conceito professor reflexivo, como vimos. O esvaziamento do sentido também se dá na identificação do conceito com a adjetivação da reflexão entendida como atributo do humano e do professor, portanto" (Castro et al., 2000). 9

8. Rocha, Celina Abadia da & Freitas, Raquel A. M. M. foram alunas do doutorado da UCG em 1999. Os trechos citados referem-se a seus trabalhos de sínteses do curso.

9. Castro et al. Foram alunos do curso ministrado em 2000, na FE-USP. Os trechos citados referem-se a seus trabalhos de sínteses do curso.

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Discorrendo sobre o tema, aponto (Pimenta, 2000) que o saber do­cente não é formado apenas da prática, sendo também nutrido pelas teo­rias da educação. Dessa forma, a teoria tem importância fundamental na formação dos docentes, pois dota os sujeitos de variados pontos de vista para uma ação contextualizada, oferecendo perspectivas de análise para que os professores compreendam os contextos históricos, sociais, cultu­rais, organizacionais e de si próprios como profissionais.

Pérez-Gómez (1992), referindo-se a Habermas, pontua que a refle­xão não é apenas um processo psicológico individual, uma vez que im­plica a imersão do homem no mundo da sua existência, um mundo car­regado de valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos. Nesse sentido, quanto à aborda­gem da prática reflexiva, torna-se necessário estabelecer os limites polí­ticos, institucionais e teórico-metodológicos relacionados a esta, para que não se incorra numa individualização do professor, advinda da descon­sideração do contexto em que ele está inserido. A transformação da prá­tica dos professores deve se dar, pois, numa perspectiva crítica. Assim, deve ser adotada uma postura cautelosa na abordagem da prática refle­xiva, evitando que a ênfase no professor não venha a operar, estranha­mente, a separação de sua prática do contexto organizacional no qual ocorre. Fica, portanto, evidenciada a necessidade da realização de uma articulação, no âmbito das investigações sobre prática docente reflexiva, entre práticas cotidianas e contextos mais amplos, considerando o ensi­no como prática social concreta.

Contreras (1997) se destaca dentre os autores que realizam uma análise crítica da epistemologia da prática, decorrente da perspectiva da reflexão, para também apontar suas possibilidades. No livro La autonomia dei profesorado realiza uma sistematização dessa crítica a partir de dife­rentes autores.

Quanto à concepção do professor como investigador desenvolvida por Stenhouse, os vários autores concordam que este não inclui a crítica ao contexto social em que se dá a ação educativa. Assim, reduz a investi­gação sobre a prática aos problemas pedagógicos que geram ações parti­culares em aula. Para Kemmis (1985), por exemplo, a centralidade na aula como lugar de experimentação e de investigação e no professor como o que se dedica, individualmente, à reflexão e à melhoria dos problemas é uma perspectiva restrita, pois desconsidera a influência da realidade social sobre ações e pensamentos e sobre o conhecimento como produto

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de contextos sociais e históricos. Nesse sentido, há que se aceitar a afir­mação de Giroux (1990) de que a mera reflexão sobre o trabalho docente de sala de aula é insuficiente para uma compreensão teórica dos elemen­tos que condicionam a prática profissional. Também Lawn (1988) anali­sa que uma coisa é identificar o lugar onde o professor realiza sua fun­ção; outra é reduzir o problema a esse lugar. Por isso, o processo de eman­cipação a que se refere Stenhouse é mais o de liberação de amarras psico­lógicas individuais do que o de uma emancipação social.

Concordando com a crítica desses autores, entendo que a supera­ção desses limites se dará a partir de teoria(s), que permita(m) aos pro­fessores entenderem as restrições impostas pela prática institucional e histórico-social ao ensino, de modo que se identifique o potencial trans­formador das práticas. Na mesma direção, Libâneo (1998a) destaca a importância da apropriação e produção de teorias como marco para a melhoria das práticas de ensino e dos resultados. Contreras (1997) cha­ma a atenção para o fato de que a prática dos professores precisa ser analisada, considerando que a sociedade é plural, no sentido da pluralidade de saberes, mas também desigual, no sentido das desigual­dades sociais, econômicas, culturais e políticas. Assim, concorda com Carr (1995) ao apontar sobre o caráter transitório e contingente da prá­tica dos professores e da necessidade da transformação da mesma numa perspectiva crítica.

4. De críticas e de possibilidades

Ao colocar o papel da teoria como possibilidade para a superação do praticismo, ou seja, da crítica coletiva e ampliada para além dos contextos de aula e da instituição escolar, incluindo as esferas sociais mais amplas e ao evidenciar o significado político da atividade docen­te, esses autores apresentam, no reverso da crítica ao professor reflexi­vo e pesquisador da prática, a fertilidade desses conceitos para novas possibilidades. Esse movimento, que coloca a direção de sentido da atuação docente numa perspectiva emancipatória e de diminuição das desigualdades sociais, através do processo de escolarização, é interes­sante porque impede uma apropriação generalizada e banalizada e mesmo técnica da perspectiva da reflexão. O que se faz presente, por exemplo, no discurso sobre as competências, que, como se verá, nada mais significa do que uma tecnicização do trabalho dos professores e de sua formação.

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4.1. Da reflexão individual à coletiva

Para compreender esse movimento, duas questões são fundamen­tais: o que se entende por teoria e seu papel na reflexão e a compreensão de que a reflexão é necessariamente um processo coletivo.

A) O papel da teoria

Para Gimeno (1999), a fertilidade dessa epistemologia da prática ocorrerá se se considerar inseparáveis teoria e prática no plano da subje­tividade do sujeito (professor), pois sempre há um diálogo do conheci­mento pessoal com a ação. Esse conhecimento não é formado apenas na experiência concreta do sujeito em particular, podendo ser nutrido pela "cultura objetiva" (as teorias da educação, no caso), possibilitando ao professor criar seus "esquemas" que mobiliza em suas situações concre­tas, configurando seu acervo de experiência "teórico-prático" em cons­tante processo de re-elaboração.

Assim, a teoria como cultura objetivada é importante na formação docente, uma vez que, além de seu poder formativo, dota os sujeitos de pontos de vista variados para uma ação contextualizada. Os saberes teóri­cos propositivos se articulam, pois, aos saberes da prática, ao mesmo tem­po ressignificando-os e sendo por eles ressignificados. O papel da teoria é oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como profissionais, nos quais se dá sua atividade docente, para neles intervir, transformando-os. Daí, é fundamental o permanente exercício da crítica das condições materiais nas quais o ensino ocorre e de como nessas mes­mas condições são produzidos os fatores de negação da aprendizagem.

B) A reflexão coletiva Para superar esses problemas Zeichner (1992), a partir de pesquisas

que desenvolve junto às escolas e aos professores, formula três perspec­tivas a serem acionadas conjuntamente: a) a prática reflexiva deve centrar-se tanto no exercício profissional dos professores por eles mesmos, quanto nas condições sociais em que esta ocorre; b) o reconhecimento pelos professores de que seus atos são fundamentalmente políticos e que, portanto, podem se direcionar a objetivos democráticos emancipatórios; c) a prática reflexiva, enquanto prática social, só pode se realizar em cole­tivos, o que leva à necessidade de transformar as escolas em comunidades de aprendizagem nas quais os professores se apoiem e se estimulem mutua­mente. Esse compromisso tem importante valor estratégico para se criar as condições que permitam a mudança institucional e social.

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4.2. Da reflexão à reflexão crítica. Ou: do professor reflexivo ao intelectual crítico

Giroux (1990), apontando os limites da proposta de Schõn, desen­volve a concepção do professor como intelectual crítico, ou seja, cuja re­flexão é coletiva no sentido de incorporar a análise dos contextos escola­res no contexto mais amplo e colocar clara direção de sentido à reflexão: um compromisso emancipatório de transformação das desigualdades sociais. Se essa perspectiva, de um lado, retira dos professores a capaci­dade de serem autores isolados de transformações, de outro, confere-lhes autoridade pública para realizá-las. Com efeito, a capacidade eman-cipatória e transformadora dos professores e das escolas como esferas democráticas só é possível se considerar os grupos e setores da comuni­dade que têm algo a dizer sobre os problemas educativos. Portanto, há que se abrir a prática educativa aos grupos (incluindo as universidades) e práticas sociais comprometidas com a contestação popular ativa.

Para Contreras, Giroux expressa claramente o conteúdo da tarefa docente, mas não aponta como os mesmos podem realizar a transição de técnicos reprodutores e mesmo reflexivos individualmente, para inte­lectuais críticos e transformadores. Daí, abre-se a perspectiva de pautar inúmeros temas sobre o trabalho docente, as organizações escolares e os sistemas de ensino e de formação inicial e contínua dos professores. É nesse contexto que temas como a gestão, o tempo de ensinar, os currícu­los, o projeto político pedagógico, o trabalho coletivo, a identidade dos professores, sua autonomia relativa foram colocados em pauta. O que efetivamente ocorreu no cenário educacional dos anos 1980 e 90 em dife­rentes países.

Prosseguindo a análise da perspectiva crítica de Giroux, Contreras (1997) aponta o risco de esta não ultrapassar o nível de discurso, uma vez que não está sustentada na análise das condições concretas das esco­las, não oferecendo, portanto, uma análise das mediações possíveis para sua efetivação. Há que se entender que a escola não é homogênea e os professores não são passivos. Por isso se faz necessário analisar como estes podem manejar processos de interação entre seus interesses e os valores e conflitos que a escola representa, para melhor entender que possibilidades a reflexão crítica pode ter no contexto escolar. Por um lado, as finalidades educativas apresentam um discurso de preparar para a vida adulta com capacidade crítica em uma sociedade plural. Por ou­tro, o trabalho docente e a vida da escola se estruturam para negar estas finalidades. E nesse paradoxo que os professores, para resistir às pres­sões que o contexto social e institucional exercem sobre eles, acabam re-

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duzindo suas preocupações e suas perspectivas de análise aos proble­mas internos da aula. A compreensão dos fatores sociais e institucionais que condicionam a prática educativa e a emancipação das formas de dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são espontâ­neas e nem se produzem naturalmente. São processos contínuos de desco­berta, de transformação das diferenças de nossas práticas cotidianas.

5. As pesquisas sobre formação de professores no Brasil

Nos inícios dos anos 1990, especialmente com a difusão do livro Os professores e sua formação, coordenado pelo professor português Antônio Nóvoa, trazendo textos de autores da Espanha, Portugal, França, Esta­dos Unidos e Inglaterra, com referências à expansão dessa perspectiva conceituai também para a Austrália e o Canadá, e com a participação de significativo grupo de pesquisadores brasileiros no I Congresso sobre Formação de Professores nos Países de Língua e Expressão Portuguesas, realizado em Aveiro, 1993, sob a coordenação da professora Isabel Alarcão, o conceito de professor reflexivo e tantos outros rapidamente se disseminaram pelo país afora. Os dois colegas portugueses passaram a vir ao Brasil com grande freqüência, a partir de convites das universida­des, depois das associações científicas, depois dos governos e das esco­las particulares. Considerando a riqueza da colaboração de ambos e suas qualidades como intelectuais e pesquisadores, nos perguntamos o por­quê da admiração dos educadores brasileiros por eles. Ou, de outro modo, por que suas pesquisas e suas experiências no campo da formação de professores, a partir das contribuições de Schõn, foram tão ampla e rapi­damente disseminadas? Certamente porque aqui encontraram um terre­no fértil. Como se configurava, então, o contexto da formação de profes­sores no Brasil?

Alguns antecedentes

A formação de professores é um antigo e caro tema em nossa histó­ria.1 0 Muitas pesquisas já haviam sido produzidas sobre o assunto, antes das influências citadas.

10. No âmbito deste texto me deterei ao período a partir dos anos 1960. Para examinar a questão desde as suas origens, bem como para ampliar a análise, consultar Brezinski (1987); Fusari & Cortese (1989); Gonçalves & Pimenta (1990); Pimenta (1994), entre outras.

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Nos idos dos anos 1960, Aparecida Joly Gouveia e outros autores da área de Sociologia da Educação na USP já vinham inaugurando a pesquisa em educação no país. Dentre eles, Luiz Pereira, utilizando da­dos do Censo Escolar do Brasil, Inep, 1965, em sua pesquisa denomina­da Magistério primário numa sociedade de classes (1969), constatava que a característica mais marcante do magistério primário estava no fato de ser uma ocupação quase exclusivamente feminina, apontando como um fator da desvalorização relativa da profissionalização docente, uma vez que pautada em características missionárias, de instinto maternal, pa­ciência e abnegação e de baixos salários, poucas horas diárias de traba­lho e prestígio ocupacional insatisfatório. Fatores esses aceitáveis para o trabalho de uma mulher de classe média alta, em uma sociedade e uma cultura essencialmente baseadas no trabalho masculino, suporte da fa­mília. A sociedade brasileira, no entanto, será profundamente alterada a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento do capitalismo urbano, apontando para uma desqualificação do trabalhador em geral, o que põe em pauta a necessidade do trabalho da mulher para o sustento da famí­lia, especialmente da professora que podia conciliar trabalho e afazeres domésticos. Por outro lado, o trabalho urbano vai ampliar a demanda social por escolarização básica.

Também o Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas (INEP), 1 1

órgão do governo federal criado e dirigido por Anísio Teixeira, realiza­rá importantes e significativas pesquisas sobre a formação de professo­res realizada então nas Escolas Normais de Ensino Médio. Essas pes­quisas colocaram em evidência o distanciamento e a impropriedade dessa formação em confronto com as necessidades de uma escolarida­de básica de qualidade, para uma população significativamente amplia­da e que trouxe para os bancos escolares as crianças dos segmentos

11. O Inep, criado no início dos anos 1940, iniciou em julho de 1944 a publicação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), responsável pela divulgação do pensamento educacional brasileiro e das pesquisas sobre formação de professores, até meados dos anos 1980. Além disso, foi um dos principais promotores para a organização das Conferências Na­cionais de Educação (CNEs) 1965/6/7, e que foram inviabilizadas pela ditadura militar. Pos­teriormente, nos anos 1980, entidades de educadores da sociedade civil (Ande, ANPEd, Ce­des), reeditaram sob a sigla de Conferências Brasileiras da Educação (CBEs), responsáveis pela divulgação do pensamento e das pesquisas já então produzidas nas Faculdades de Edu­cação e nos Programas de Pós-Graduação em Educação, criados em 1969, a partir do amplo movimento de análise crítica da realidade educacional brasileira, que colocou em pauta a importância da educação no processo de democratização política, social, econômica e cultu­ral, trazendo propostas de políticas públicas compromissadas com justiça e igualdade social.

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sociais até então excluídos. Além de insuficientes numericamente — "44% dos professores primários que ensinam em nossas escolas são improvisados e sem formação" (Censo Escolar do Brasil, Inep, 1965) —> com formação não além da 2 a série primária, as Escolas Normais pade­ciam de uma tradição elitista em seu currículo, distanciado das neces­sidades da prática, que colocavam desafios que as professoras não es­tavam preparadas para enfrentar, ou mesmo não se dispunham a fazê-lo (cf. Pinheiro, 1967).

Essas pesquisas mostravam que o Curso Normal não partia da aná­lise da realidade (na linguagem de hoje poderíamos dizer que não reali­zava pesquisa da prática, não possibilitava a reflexão dos professores), não preparando os futuros professores para enfrentá-la. O distanciamento entre os cursos de formação e a realidade da escola primária foi assim diagnosticado na pesquisa de Pinheiro (1967: 160): "(...) embora os alu­nos estudem Psicologia e Sociologia, não adquirem atitude psicológica e sociológica adequadas para enfrentar, no futuro, problemas concretos (...) Ao aluno não é dada a oportunidade de refletir sobre os problemas relacionados com a escola primária e que estão a exigir soluções."

As pesquisas sobre a Escola Normal prosseguiram, especialmente depois que esta foi significativamente modificada pela Lei 5692 / 71, que tornou obrigatória a profissionalização no Ensino Médio. 1 2 O Ensino Normal passou a ser, a partir de então, apenas uma das habilitações profissionalizantes, tendo sofrido significativas transformações em seu currículo, com redução de sua carga horária específica. A Habilitação Magistério (HEM) assumiu, assim, um caráter difuso no Ensino Médio, perdendo, contraditoriamente, quase totalmente sua dimensão pro­fissionalizante 3 3 e distanciando-se da realidade das escolas primárias. As práticas decorrentes dessa medida legal caminharam, pois, na con­tramão do que apontavam as pesquisas realizadas pelo Inep (cf. Pi­menta, 1994).

As pesquisas desse período subsidiaram os debates e as novas pro­postas amplamente discutidas nas Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), nos anos 1980. De modo geral, apontavam para a necessidade de se proceder a uma transformação paulatina da formação dos professores para a escolaridade básica a ser realizada no ensino superior. Para isso,

12. Diante de inúmeras pressões, a profissionalização foi tornada opcional a partir de 1982. 13. Ver a propósito Brezinski (1987); Candau (1986); Cysneiros (1980); Farias (1983); Gatti

& Rovai (1977); Lelis (1983); Mediano (1987); Piconez (1988); Pimenta (1994), entre outros.

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também concorria a intensa discussão sobre os cursos de pedagogia e a especificidade dos pedagogos, muitas vezes identificados também como professores, pois comportavam, dentre suas habilitações, a Habilitação Magistério, que certificava os pedagogos como professores das discipli­nas pedagógicas dos cursos de formação de professores em nível de 2o

grau (antigo Curso Normal). Ora, se poderia formar professores que atua­riam nas séries iniciais, também poderia (e mesmo deveria) formar pro­fessores para o magistério nessas séries.3 4 E importante, sobre o assunto, destacar as experiências que passaram a ser realizadas por diferentes universidades que em convênio com sistemas públicos passaram a for­mar, nos cursos de pedagogia, professores habilitados para as séries ini­ciais, inclusive se propondo e, eventualmente, realizando pesquisa como parte do processo formativo. Esses cursos passaram a assumir um cará­ter de formação inicial e contínua, ao mesmo tempo, na medida em que se destinavam a professores que já atuavam, mas sem a formação em nível superior.3 5

A produção acadêmica na área de educação foi significativamente impulsionada com a criação dos cursos de pós-graduação na área.26 Al­guns programas tiveram expressiva contribuição na análise crítica da educação brasileira.37 Privilegiando um referencial marxista e gramsciniano na análise dos problemas educacionais e da escolaridade no país, confi­guravam um espaço de resistência à então ditadura militar. Incorporan­do as contribuições das várias disciplinas que se ocupavam da educação como a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Economia, além da pró­pria Pedagogia, produzindo as primeiras dissertações e teses, esses pro­gramas foram determinantes para a análise crítica da escola e da educa­ção bem como para o recorihecimento da importância (relativa e não exclu­siva) da educação escolar nos processos de democratização da socieda­de. Valorização essa que caminhava na perspectiva de superação das análises reprodutivistas, sem negar o caráter ideológico da educação, mas compreendendo-a como um espaço de contradições.

14. Sobre os problemas, embates e discussões a respeito dessas questões, ver os Docu­mentos da Anfope (1994 em diante); Gonçalves & Pimenta (1990); Libâneo (1998b); Libâneo & Pimenta (1999); Brezinski (1996 e 1999).

15. Importantes experiências foram então desenvolvidas como a da Universidade Fede­ral do Mato Grosso. Ver Almeida (1996); Monteiro & Speller (1999).

16. A pós-graduação foi institucionalizada com a Lei da Reforma Universitária, 5540/68. 17. Destaque-se o de Filosofia da Educação, da PUC-SP, sob a coordenação do prof.

Dermeval Saviani, em São Paulo, e os Programas da PUC-RJ, Unicamp, UFMG, dentre outros.

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Estava, assim, aberto o caminho para se colocar a educação e a es­cola em questão. 2 5 Inclusive a formação de professores, não apenas para a escola básica, mas para as demais séries, formação essa então realizada nos cursos de licenciatura. As análises produzidas evidenciavam a au­sência de projeto formativo conjunto entre as disciplinas científicas e as pedagógicas, o formalismo destas, o distanciamento daquelas da reali­dade escolar, além do desprestígio do exercício profissional da docência no âmbito da sociedade e das políticas governamentais prejudicando seriamente a formação de professores.7 9 Essas pesquisas foram produzi­das também no âmbito do movimento de revisão dos currículos do cur­so de pedagogia, que depois se ampliou para a revisão dos cursos de formação de educadores, incluindo as licenciaturas, originando a Asso­ciação Nacional de Formação dos Profissionais da Educação (Anfope).

A par da produção acadêmica e das experiências de formação de professores para as séries iniciais que vinham sendo realizadas no âmbi­to de universidades, durante os anos 1980, após a redemocratização po­lítica com a retomada das eleições diretas, governos democraticamen­te eleitos incorporaram, em seus programas educacionais, muitas das contribuições produzidas nos anos das CBEs. No que se refere à forma­ção de professores, inúmeras foram as transformações ocorridas na en­tão Habilitação Magistério, tendo surgido alternativas que caminhavam na direção de tornar a formação mais diretamente voltada aos proble­mas que as práticas das escolas apontavam. 2 0 Entendia-se que era neces­sário que os professores tivessem sólida formação teórica para que pu­dessem ler, problematizar, analisar, interpretar e propor alternativas aos problemas que o ensino, enquanto prática social, apresentava nas esco­las (cf. Pimenta, 1994; André & Fazenda, 1991; Fusari & Pimenta, 1989). Essa compreensão suscitou novas propostas curriculares tanto nas legis­lações estaduais quanto nas práticas nas escolas, possibilitadas por am­plos Programas de Formação Contínua, promovidos por Secretarias de Educação com assessoria de universidades. Uma análise dessas propos­tas permite que nelas se identifique a importância que colocavam na pes­quisa da prática como proposta formativa, especialmente quando se refe­riam aos estágios.

18. Ilustrativo desse movimento foi o seminário "A didática em questão", realizado na PUC do Rio de Janeiro, em 1983, coordenado pela profa. Vera Candau, que gerou livro homônimo.

19. Ver as pesquisas realizadas por Fávero (1987 e 1992). 20. Exemplo destas foi o Projeto Cefam (Cavalcante, 1994).

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Para a elaboração dessas propostas foi muito significativa a contri­buição das pesquisas qualitativas e de análise do cotidiano escolar.2 1 Ao expor a importância da análise das práticas dos professores em seus con­textos, colocava em evidência a escola como espaço institucional de prá­ticas coletivas. A compreensão dos processos de constituição do saber fazer docente no local de trabalho abria caminhos para o estudo da esco­la nos cursos de formação e para novas possibilidades de se articular a formação inicial e a contínua, através especialmente dos estágios.2 2

Ao mesmo tempo, crescia o entendimento da importância de se ele­var a formação dos professores das séries iniciais ao ensino superior, o que acabou tomando corpo na Proposta para o texto legal da nova LDBEN, que foi aprovada em decorrência da Carta Constitucional de 1988. 2 3 O texto que passou a integrar a LBDEN/96, resultado de inúme­ras pressões, apenas em parte contemplou as demandas dos educadores no que se refere à formação de professores para as séries iniciais. Mante-ve-a no nível médio, por mais dez anos. Para realizá-la no nível superior, no entanto, em vez de se valer das inúmeras pesquisas e experiências que vinham sendo realizadas pelos governos estaduais e pelas universi­dades que já apontavam para a importância do fortalecimento destas na realização dessa formação, criou-se uma nova instituição, os Institutos Superiores de Educação (ISE), fora da universidade e cujo modelo já vi­nha sendo amplamente questionado em diferentes países que haviam optado por esse caminho, como por exemplo, Argentina, Portugal, Espanha, dentre outros.2 4 Essa instituição não desenvolverá pesquisa, mas

21. Ver André (1995). 22. Ver Pimenta (1994). 23. O capítulo sobre Educação que consta da Constituição aprovada em 1988 foi elabora­

do pelos educadores brasileiros, a partir da ampla mobilização promovida pelas entidades então promotoras das CBEs, e que culminou no texto aprovado na Assembléia Final da IV Conferência Brasileira de Educação, realizada em Goiânia, em setembro de 1986 (ver Carta de Goiânia, in: Cunha, 1998). Nessa mesma Assembléia foi constituído o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, envolvendo outras entidades e sindicatos de educadores (Andes e CNTE) e da sociedade civil (ABI, OAB, entre outras). Esse Fórum deu prosseguimento à atua­ção política junto aos órgãos representativos (executivo, legislativo e judiciário), pois na se­qüência da Carta Constitucional iniciou-se o movimento pela elaboração das Leis Orgânicas, dentre as quais a da Educação (LDBEN). Novamente as CBEs, especialmente a de Brasília (1988), foi o espaço privilegiado para o qual convergiram as vozes dos educadores e da qual saiu a proposta dos mesmos para a nova LDB.

24. Ver Menezes (1996), produto de seminário realizado em São Paulo para uma avalia­ção das reformas no campo da formação de professores, empreendidas pela França, Argenti­na, Portugal, Inglaterra, Tailândia e Brasil.

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tão-somente ensino, comprometendo significativamente o conceito e a identidade do profissional a ser formado.

No espaço de tempo entre a aprovação da Constituição de 1988 e a da LDBEN de 1996, o então Ministério de Educação,2 5 com a colaboração de várias entidades e fóruns de educadores de todo o país, realizou a Conferência Nacional de Educação para Todos (1993), precedida de en­contros regionais, que consolidou e aprovou o Plano Decenal de Educa­ção para Todos (1993 — 2003), que seria nas palavras do então ministro implementado "(...) Com os recursos constitucionais [acrescentados de outros, como Banco Mundial], mas fundamentalmente os que existem e estão assegurados pela Constituição" (Anais da Conferência Nacional de Educação, 1993:11). Desse Plano consta, fato inédito, um amplo acor­do, negociado e assumido entre os sindicatos e os governos estaduais e municipais, para a elevação salarial dos professores de todo o território nacional, definida num piso salarial mínimo.2 6 Pela primeira vez, nos anos recentes, se colocava em pauta, no âmbito governamental, a indissociabilidade entre qualidade de formação e condições de trabalho e de exercício profissional (especialmente salários). Contribuiu para isso a intensa movimentação dos sindicatos de professores empreendida nos anos 1980. Com a assessoria de intelectuais das universidades, os sindi­catos foram incorporando e produzindo conhecimento que lhes permi­tia avançar, a partir das tradicionais lutas por melhores salários, para a importância de melhor se explicitar as demais condições necessárias ao exercício profissional, com vistas a uma melhoria da qualidade das esco­las. Aí foi se colocando em pauta as questões sobre profissionalização e desenvolvimento profissional dos professores.

No entanto, a valorização profissional, incluindo salários e condi­ções de trabalho, foi totalmente abolida dos discursos, das propostas e das políticas do governo subseqüente, que passou a normatizar exausti­vamente a formação inicial de professores e a financiar amplos progra­mas de formação contínua.

A partir dessa breve retrospectiva sobre a formação de professores em nosso país, pode-se perceber as preocupações temáticas que configu-

25. Tendo por Ministro o prof. Murílio Hingel. 26. Ver, a propósito, o capítulo XIII dos Anais, intitulado "Educador: formação, profis­

sionalização e compromisso", no qual participaram, como relatores dos documentos elabora­dos pelas entidades envolvidas, os professores José C. Fusari, Selma Garrido Pimenta e Carlos Abicalil, dentre outros (pp. 841-848).

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raram o solo que acolheu as colaborações dos pesquisadores estrangei­ros. Numa tentativa de síntese, pode-se apontar os seguintes: a valoriza­ção da escola e de seus profissionais nos processos de democratização da sociedade brasileira; a contribuição do saber escolar na formação da ci­dadania; sua apropriação como processo de maior igualdade social e in­serção crítica no mundo (e daí: que saberes? que escola?); a organização da escola, os currículos, os espaços e os tempos de ensinar e aprender; o projeto político e pedagógico; a democratização interna da escola; o trabalho coletivo; as condições de trabalho e de estudo (de reflexão), de planejamento; a jornada remunerada, os salários, a importância dos pro­fessores nesse processo, as responsabilidades da universidade, dos sin­dicatos, dos governos nesse processo; a escola como espaço de formação contínua, os alunos: quem são? de onde vêm? o que querem da escola? (de suas representações); dos professores: quem são? como se vêem na profissão? Da profissão: profissão? E as transformações sociais, políti­cas, econômicas, do mundo do trabalho e da sociedade da informação: como ficam a escola e os professores?

Foi nesse solo profundamente revolvido que as contribuições de Nóvoa, Alarcão, Schõn e outros foram bem-vindas. Ao menos para que pudéssemos olhar para outras experiências, considerando-as como um dos possíveis critérios para analisar as nossas questões, caminhos e propostas.

6. A centralidade nos professores como fundamento de políticas educacionais:

de possibilidades e de críticas

Nos países que adentraram por um processo de democratização social e política, nos anos 1980, saindo de longos períodos de ditadura como Espanha e Portugal, identifica-se o reconhecimento da escola e dos professores como protagonistas fundamentais nesse processo. O que le­vou esses países a realizarem significativas alterações nos seus sistemas de ensino, elevando a formação dos professores da escola básica para o nível superior (fenômeno que ainda se encontra em processo), investin­do na formação inicial e contínua, no desenvolvimento das instituições escolares e elevando o estatuto de profissionalização dos professores, incluindo a reestruturação do quadro de carreira, das condições de tra­balho e dos salários. Nesses países, os temas acima referidos ganharam espaço nas universidades e nas pesquisas, colaborando para a proposi­ção das políticas educacionais e de formação de professores, o que ocor-

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reu também nos sindicatos, às vezes em colaboração com as universida­des e com os sistemas públicos.2 7

Do ponto de vista conceituai, as questões levantadas em torno e a partir do professor reflexivo, investindo na valorização e no desenvolvi­mento dos saberes dos professores e na consideração destes como sujei­tos e intelectuais, capazes de produzir conhecimento, de participar de decisões e da gestão da escola e dos sistemas, trazem perspectivas para a re-invenção da escola democrática. O que é o contraposto da concepção de professores na racionalidade técnica, característica dos anos 1970, que resultou em controle cada vez mais burocrático do trabalho destes, evi­denciando uma política ineficaz para a democratização do ensino, sem resolver a exclusão social no processo de escolarização.

A bibliografia produzida nesses países foi amplamente difundida no Brasil, a partir dos anos 1990, especialmente com a obra de divulga­ção coordenada por Antônio Nóvoa, Os professores e sua formação, 1992. Esse livro contempla textos de autores de países como Portugal, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, o que evidencia a rápida apropria­ção e expansão dessa perspectiva conceituai. Também nesses países, es­pecialmente Espanha, se produzirá, nas universidades, importante críti­ca às teorias de Schõn e de Stenhouse, o que pode ser analisado nas obras de Gimeno Sacristán, (1992,1994 e 1999); Pérez-Gómez (1991,1992 e 1995) e Contreras Domingo (1997), 2 8 dentre outros, como vimos. A centralida­de colocada nos professores traduziu-se na valorização do seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos importantes para se compreender o seu fazer, não apenas de sala de aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão que também os elaboram, os definem, os re-interpretam. Daí a prioridade de se realizar pesquisas para se compreender o exercício da docência, os processos de construção da identidade docente, de sua profissionalidade, o desenvol­vimento da profissionalização, as condições em que trabalham, de status e de liderança.

Em decorrência também de extenso e significativo intercâmbio en­tre seus pesquisadores e os colegas estrangeiros, assistimos a uma rápi-

27. Ver, a propósito, a tese de Almeida, Maria Isabel de. O sindicato como instância forma­dora dos professores: novas contribuições ao desenvolvimento profissional. São Paulo: Faculdade de Educação, USP, 1999.

28. Em outros países também pode se verificar o desenvolvimento dessas críticas: Ingla­terra — Kemmis, S. (1985, 1987 e 1989) — e EUA — Zeichner (1991); Lislon & Zeichner (1993) e Giroux (1990).

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da apropriação e expansão dessa perspectiva conceituai no Brasil. O que explicaria essa apropriação? Por que essas idéias foram férteis em nosso meio acadêmico e político? Qual o cenário das pesquisas sobre formação de professores em nosso país? O que já havíamos produzido? Quais ce­nários sociais e políticos tínhamos sobre formação de professores, esco­laridade, democratização escolar e social? Quais as demandas que esta­vam colocadas aos pesquisadores e às políticas de formação? Como se configuravam essas políticas?

Mas essa perspectiva conceituai também tem sido rechaçada, às vezes, com excessiva veemência no meio acadêmico. Talvez por certo temor (ou xenofobia), uma vez que questiona os limites do ideário de formação de professores predominante entre nós. Além do desprestígio que sofrem na própria academia e nas agências de financiamento de pes­quisas, os cursos de formação de professores permanecem numa lógica curricular que nem sempre consegue tomar a profissão e a profissio-nalidade docente como tema e como objetivo de formação. Muitas vezes seus professores desconhecem o campo educacional, valendo-se do aporte das ciências da educação e mesmo das áreas de conhecimentos específi­cos desvinculados da problemática e da importância do ensino, campo de atuação dos futuros professores.2 9

Apropriado rápida e excessivamente, de um lado, e descartado tam­bém rapidamente, por outro, parece-nos oportuna a empreitada de aná­lise crítica do conceito professor reflexivo no Brasil.

6.1. A centralidade nos professores nas políticas neoliberais30

A educação é um fenômeno complexo, porque histórico. Ou seja, é produto do trabalho de seres humanos e, como tal, responde aos desafios

29. Inúmeras pesquisas têm sido produz ias denunciando essas qucotões, contribuindo para um; melhor compreensão dessa formação a partir de estudos críticos e analíticos das práticas ae formação desenvolvidas nas universidades, mas também trazendo contribuições significativas do campo prático dos cursos de licenciatura e do camj eórico para novos encaminhamentos aos cursos de formação. E importante destacar que essas pesquisas têm •/«ortí-uo, como unanimidade, que ? universidade é o espaço formativo por excelência da docência, uma vez que não é simples formar para o exercício da docência de qualidade e que a pesquisa é o caminho metodológico para essa formação. Ver, a propósito, Guimarães (20G1) e Rios (2001).

30. Nos limites deste texto, faremos apenas um breve comentário sobre esse assunto, com vistas a colocar bases para a tese que exporemos a seguir sobre os projetos em confronto no

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que diferentes contextos políticos e sociais lhe colocam. A educação re­trata e reproduz a sociedade; mas também projeta a sociedade que se quer. Por isso, vincula-se profundamente ao processo civilizatório e hu­mano. Enquanto prática histórica tem o desafio de responder às deman­das que os contextos lhe colocam.

Quais seriam estes desafios hoje? Pelo menos dois: a) sociedade da informação e sociedade do conhecimento; b) sociedade do não-emprego e das novas configurações do trabalho.

No que se refere à sociedade da informação e do conhecimento, é necessário distinguir os dois termos. Hoje a informação chega em gran­de quantidade e rapidamente a qualquer ponto do planeta. Identificada como uma instituição que transmite informações, a escola, na ótica neo-liberal, tenderia a desaparecer, porque não apresenta a eficácia dos meios de comunicação nesse processo. Nessa perspectiva, a educação se resol­veria colocando os jovens e as crianças diante das informações televisivas e internéticas. Portanto, o professor poderia também ser dispensado. Um exemplo dessa lógica é a política que vem sendo implantada em diferen­tes estados, com a instalação do tele-ensino, no qual as escolas são equi­padas com redes de televisão que transmitem os programas das discipli­nas, gerados por uma central e que coloca os professores como monitores. Essa política permite uma grande economia aos sistemas, pois em cada sala de aula há um monitor no lugar de cinco professores em uma 5a

série, por exemplo. A tarefa destes é proceder a mediação entre os pro­gramas de todas as áreas do currículo e os alunos. Essa política ilustra claramente a lógica do estado mínimo, característica do neoliberalismo. Algumas pesquisas sobre esse sistema3 1 têm revelado que os resultados dessa prática empobrecem significativamente a qualidade da aprendi­zagem, operando uma nova forma de exclusão social pela inclusão quan-

Brasil. Em outros textos deste livro pode-se encontrar um aprofundamento dessa análise, as­sim como em Torres, Rosa M. "Tendências da formação docente nos ano 1990". In: Novas Políticas Educacionais: críticas e perspectivas. São Paulo: PUC-SP, 1998; e Fonseca, Marília. "Os financiamentos do Banco Mundial como referência para a formação do professor". In: Bicudo & Silva Jr. Formação do educador e avaliação educacional: formação inicial e contínua. São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

31. Ver Bodião, Idebaldo S. Sobre o cotidiano das classes de tele-ensino de uma escola da rede pública estadual do Ceará. Tese de doutorado. São Paulo: Feusp, 1999; Braga, Kátia Regina, A universalização do tele-ensino nas escolas públicas estaduais de Io grau e a democratização do saber: o caso de Camocin. 1997. Dissertação de mestrado. Fortaleza: UECE, 1997; Cavalcante, Maria Marina Dias. A prática do orientador de aprendizagem na TVE-CE. Um estudo comparativo das décadas de 1980 e 1990: caso de Boa Viagem. Fortaleza: UFC, 1998.

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titativa no processo de escolaridade. No mercado competitivo, por exem­plo, esses alunos terão reduzidas oportunidades de inserção.

Reconhecendo, no entanto, a quantidade e a velocidade das infor­mações na sociedade de hoje, cabe estabelecer a diferença entre informa­ção e conhecimento. Conhecer é mais do que obter as informações. Co­nhecer significa trabalhar as informações. Ou seja, analisar, organizar, identificar suas fontes, estabelecer as diferenças destas na produção da informação, contextualizar, relacionar as informações e a organização da sociedade, como são utilizadas para perpetuar a desigualdade social. Trabalhar as informações na perspectiva de transformá-las em conheci­mento é uma tarefa primordialmente da escola. Realizar o trabalho de análise crítica da informação relacionada à constituição da sociedade e seus valores, é trabalho para professor e não para monitor. Ou seja, para um profissional preparado científica, técnica, tecnológica, pedagógica, cultural e humanamente. Um profissional que reflete sobre o seu fazer, pesquisando-o nos contextos nos quais ocorre.

S.2. Dos saberes às competências; reduzindo a docência a técnicas

No que se refere ao tema das novas configurações do trabalho, o não-emprego é uma das características da sociedade globalizada das in­formações. Nesta o trabalho autônomo descarta as conquistas trabalhis­tas, que são dispendiosas para os empregadores, incluindo o Estado. Para conseguir trabalho e sobreviver, o trabalhador desempregado necessita buscar, por sua conta, requalificações. E aí pode-se compreender a imen­sa valorização hoje conferida aos programas de formação contínua trans­formando a educação em um grande mercado. No que se refere aos pro­fessores, por exemplo, nos anos 1980 na América Latina, seus já baixos salários foram corroídos por uma inflação galopante, levando-os ao multiemprego ou ao abandono da profissão. A conseqüência foi um au­mento de professores não diplomados, leigos, com precária estabilidade e em precárias condições para ensinar. Os programas econômicos adotados para conter a inflação, por sua vez, aumentaram os problemas sociais gerando maior pobreza e trazendo para a escola e seus professo­res novas demandas de atendimento, o que gerou o investimento de gran­des recursos em programas de formação contínua, por parte do estado, cujos resultados se perdem por não terem continuidade e não se confi­gurarem como uma política de formação que a articula à formação ini­cial e ao desenvolvimento das escolas. Nesse quadro, "são ilusórias as

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propostas de baratear a formação (...) em licenciaturas rápidas ou curtas, que são apenas um verniz que dá títulos; a educação superior [nas uni­versidades, acrescento] deve ser requisito para formar professores" (Sandoval, 1996: 10-11).

No entanto, no que se refere aos professores, o trabalho ainda se realiza, em sua maioria, sob a forma de emprego, apesar de já se anuncia­rem novas formas, como o trabalho autônomo e terceirizado (há escolas que contratam os serviços de professores de Educação Física, por exem­plo, através dc academias). E outras, como a monitoria, que altera a iden­tidade dos professores em termos dos saberes necessários e do significa­do destes na formação dos alunos.

Quais as conseqüências das mudanças na empregabilidade para a organização e o funcionamento da escola?

Há alguns anos nos debatíamos com a questão da divisão do traba­lho no interior da escola, apontando as graves conseqüências que o tra­balho fragmentado com os conhecimentos trazia à qualidade da escolarização. A crítica a esse modelo é a de que o ensino por fragmentos das áreas do saber dificulta, e por vezes inviabiliza, pensar a relação co­nhecimento — sociedade e a contribuição que os saberes disciplinares podem oferecer às problemáticas humanas e sociais. O projeto coletivo e interdisciplinar da escola aponta possibilidade para a superação dessa fragmentação. Ora, terceirizar e despojar os professores de suas especia­lizações nas áreas do conhecimento torna impossível o projeto de escola coletivamente construído, a partir da reflexão sobre os problemas da educação escolar. É nessa reflexão conjunta que se confere o significado às áreas de conhecimento. Assim, por exemplo, na área de Educação Fí­sica, trabalhar o corpo como desenvolvimento físico, emocional, comunicacional na escola é muito diferente de trabalhá-lo como consu­mo, o que ocorre nas academias. São perspectivas educacionais muito diferentes.

A partir desse breve panorama da sociedade neoliberal, é possível perceber que a centralidade nos professores posta pelas demandas de democratização nas sociedades que haviam saído de períodos de dita­dura e que buscavam a implantação de um modelo da social-democra-cia que propiciasse uma maior e mais efetiva justiça e eqüidade social, econômica, política, cultural, na qual a escolarização (e os professores) teriam contribuição fundamental, também se faz presente, com outra direção de sentido. Nas propostas do governo brasileiro para a forma­ção de professores, percebe-se a incorporação dos discursos e a apro-

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priação de certos conceitos, que na maioria das vezes permanecem como retórica. E o caso, por exemplo, do conceito de professor reflexivo, que suporia significativa alteração nas condições de trabalho dos professo­res nas escolas com tempo e estabilidade, ao menos, para que a reflexão e a pesquisa da prática viessem a se realizar. Ou são efetivamente implan­tados, como as políticas deformação contínua, mas fragmentadas como vimos. Ou ainda as reformas na formação inicial que estão configurando um aligeiramento geral, acompanhadas de explícitas e às vezes sutis desqualificações das universidades para realizar essa formação, e mes­mo da desqualificação e da falta de incentivos para as pesquisas sobre formação de professores que estas têm realizado em escolas públicas, gerando significativo conhecimento sobre as necessidades para as políti­cas de formação e de desenvolvimento profissional dos professores, das escolas e mesmo dos sistemas de ensino.

No contexto dessas políticas importa menos a democratização e o acesso ao conhecimento e à apropriação dos instrumentos necessários para um desenvolvimento intelectual e humano da totalidade das crian­ças e dos jovens e mais efetivar a expansão quantitativa da escolaridade, mesmo que seus resultados sejam de uma qualidade empobrecida. Ou por isso mesmo. E, quando esses resultados são questionados pela socie­dade, responsabilizam-se os professores, esquecendo-se que eles são tam­bém produto de uma formação desqualificada historicamente, via de regra, através de um ensino superior, quantitativamente ampliado nos anos 1970, em universidades-empresas.

Por outro lado, sob a ameaça de perda do emprego real ou mesmo simbolicamente através do desprestígio social de seu trabalho, e tam­bém frente às novas demandas que estão postas pela sociedade contem­porânea à escola e aos professores, são eles instados a uma busca cons­tante de cursos de formação contínua, muitas vezes às suas expensas. Nessas políticas os professores também adquiriram centralidade, o que se constata pelo refinamento dos mecanismos de controle sobre suas ati­vidades, amplamente preestabelecidas em inúmeras competências, con­ceito esse que está substituindo o de saberes e conhecimentos (no caso da educação) e o de qualificação (no caso do trabalho). Não se trata de mera questão conceituai. Essa substituição acarreta ônus para os professores, uma vez que o expropria de sua condição de sujeito do seu conhecimen­to, como se pode perceber a partir da citação a seguir:

Na França, até o início dos anos 1980, a área de recursos humanos utilizava-se

da noção de qualificação (...) a temática da qualificação construiu-se e desen-

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volveu-se em universos sociais com organizações aparentemente estáveis, onde as pessoas adquiriam os saberes que lhes permitiam assumir postos de traba­lho estáveis. Aos poucos, com as recentes mudanças ocorridas no setor produ­tivo, esta situação se alterou, originando uma distância entre o conjunto de saberes que o trabalhador detém e o conjunto de disposições necessárias para manter um posto de trabalho. (...) A noção de competência emerge nesse con­texto. (Silva, 1999: 94, sobre Dugué, 1996, Dugué, Le Botef, Minvielle, 1996)

Nesse sentido, o discurso das competências poderia estar anuncian­do um novo (neo)tecnicismo, entendido como um aperfeiçoamento do positivismo (controle / avaliação) e, portanto, do capitalismo. "O capital está exigindo, para sua reprodução, novas qualificações do trabalhador" (Silva, 1999:87). O termo competência, polissêmico, aberto a várias inter­pretações, fluido, é mais adequado do que o de saberes/qualificação para uma desvalorização profissional dos trabalhadores em geral e dos pro­fessores. Competências, no lugar de saberes profissionais, desloca do tra­balhador para o local de trabalho a sua identidade, ficando este vulnerá­vel à avaliação e controle de suas competências, definidas pelo "posto de trabalho". Se estas não se ajustam ao esperado, facilmente poderá ser descartado. Será assim que podemos identificar um professor? Não esta­riam os professores, nessa lógica, sendo preparados para a execução de suas tarefas conforme as necessidades definidas pelas escolas, estas, por sua vez, também com um modelo único, preestabelecido? Onde estaria o reconhecimento de que os professores não se limitam a executar currí­culos, senão que também os elaboram, os definem e os reinterpretam, a partir do que pensam, crêem, valorizam, conforme as conclusões das pesquisas? (cf. Hargreaves, 1996).

Por outro lado, o termo também significa teoria e prática para fazer algo; conhecimento em situação. O que é necessário para qualquer tra­balhador (e também para o professor). Mas ter competência é diferente de ter conhecimento e informação sobre o trabalho, sobre aquilo que se faz (visão de totalidade; consciência ampla das raízes, dos desdobramen­tos e implicações do que se faz para além da situação; das origens; dos porquês e dos para quê). Portanto, competência pode significar ação imediata, refinamento do individual e ausência do político, diferente­mente da valorização do conhecimento em situação, a partir do qual o professor constrói conhecimento. O que só é possível se, partindo de co­nhecimentos e saberes anteriores, tomar as práticas (as suas e as das es­colas), coletivamente consideradas e contextualizadas, como objeto de análise, problematizando-as em confronto com o que se sabe sobre elas e

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em confronto com os resultados sociais que delas sc esperam. Os saberes são mais amplos, permitindo que se critique, avalie e supere as com­petências.

Assim, cabe indagar:

Será a escola [e os cursos de formação de professores, acrescentamos] respon­

sável pelo desenvolvimento de competências, ou será ela responsável pela for­

mação básica do indivíduo, que terá pela frente o desafio de tomar-se compe­

tente, ao longo de sua vida, somando à educação obtida na escola sua expe­

riência de vida e de trabalho? (Silva, 1999:101)

Essa lógica coloca no trabalhador a responsabilidade para estar per­manentemente buscando novas competências. O que está disponível no mercado da formação contínua, em que se estão transformando os progra­mas de educação.

7. Uma síntese: projetos em confronto

A análise empreendida no presente texto coloca em evidência a in­discutível contribuição da perspectiva da reflexão no exercício da docência para a valorização da profissão docente, dos saberes dos professores, do trabalho coletivo destes e das escolas enquanto espaço de formação con­tínua. Isso porque assinala que o professor pode produzir conhecimento a partir da prática, desde que na investigação reflita intencionalmente sobre ela, problematizando os resultados obtidos com o suporte da teo­ria. E, portanto, como pesquisador de sua própria prática.

As críticas apresentadas indicam os seguintes problemas a essa pers­pectiva: o individualismo da reflexão, a ausência de critérios externos potenciadores de uma reflexão crítica, a excessiva (e mesmo exclusiva) ênfase nas práticas, a inviabilidade da investigação nos espaços escola­res e a restrição desta nesse contexto. Essas críticas emergem não apenas de análises teóricas dos diferentes autores, mas também de pesquisas empíricas que realizamos.3 2 A partir delas é possível apontar possibili­dades de superação desses limites que sintetizamos a seguir:

a) Da perspectiva do professor reflexivo ao intelectual crítico reflexivo; ou: da dimensão individual da reflexão ao seu caráter público e ético.

32. Pimenta, Garrido & Moura (2000); Almeida (1999); Lima (2001).

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b) Da epistemologia da prática à práxis; ou: da construção de conheci­mentos por parte dos professores a partir da análise crítica (teórica) das práticas e da ressignificação das teorias a partir dos conhecimentos da prática (práxis).

c) Do professor-pesquisador à realização da pesquisa no espaço escolar como integrante da jornada de trabalho dos profissionais da escola, com a colaboração de pesquisadores da universidade. Ou: 1) instaurar na escola uma cultura de análise de suas práticas, a partir de problematização das mesmas e da realização de projetos de coletivos de investigação, com a colaboração da universidade; 2) reforçar a importância da universidade na forma­ção, com processos formativos que tomem a realidade existente (as esco­las, por exemplo) como parte integrante desse processo e no qual a pes­quisa é o eixo central.

d) Da formação inicial e dos programas de formação contínua, que podem significar um descolamento da escola, aprimoramento individual e um corporativismo, ao desenvolvimento profissional. Ou: considerar o desenvol­vimento profissional como resultante da combinação entre a formação inicial, o exercício profissional (experiências próprias e dos demais) e as condições concretas que determinam a ambos. Assim, "a prática profis­sional implica na atuação coletiva dos professores sobre suas condições de trabalho incitando-os a se colocarem em outro patamar de compro­misso com o coletivo profissional e com a escola" (Almeida, 1999:45-46).

e) Da formação contínua que investe na profissionalização individual ao reforço da escola e do coletivo no desenvolvimento profissional dos professores

Esses desdobramentos e possibilidades colocam em evidência que estamos nos referindo a uma política de formação e exercício docente que valoriza os professores e as escolas como capazes de pensar, de arti­cular os saberes científicos, pedagógicos e da experiência na construção e na proposição das transformações necessárias às práticas escolares e às formas de organização dos espaços de ensinar e de aprender, compromissados com um ensino com resultados de qualidade social para todas as crianças e os jovens. Os professores e as escolas não são conside­rados, portanto, como meros executores e cumpridores de decisões téc­nicas e burocráticas gestadas de fora. Para isso, o investimento na sua formação inicial e no desenvolvimento profissional e o investimento nas escolas, a fim de que se constituam em ambientes capazes de ensinar com a qualidade que se requer, é grande. São necessárias condições de trabalho para que a escola reflita e pesquise e se constitua num espaço de análise crítica permanente de suas práticas. É preciso uma política

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que transforme as jornadas fragmentadas em integrais; é preciso elevar os salários a patamares decentes que dignifiquem a profissão docente. A sólida formação, por sua vez, só pode ser desenvolvida por universida­des compromissadas com a formação e o desenvolvimento de professo­res, capazes de aliar a pesquisa nos processos formativos. Estamos, por­tanto, falando de um projeto emancipatório, compromissado com a res­ponsabilidade de tornar a escola parceira na democratização social, eco­nômica, política, tecnológica e cultural, que seja mais justa e igualitária.

Esse projeto confronta com os projetos da sociedade neoliberal, que investe tão somente no desenvolvimento quantitativo, ao mesmo tempo que des-qualifica a escola e os professores.

Concluindo

A tese que defendemos é a de que a apropriação generalizada da perspectiva da reflexão, nas reformas educacionais dos governos neoliberais, transforma o conceito professor reflexivo em um mero termo, expressão de uma moda, à medida em que o despe de sua potencial di­mensão político-epistemológica, que se traduziria em medidas para a efetiva elevação do estatuto da profissionalidade docente e para a me­lhoria das condições escolares, à semelhança do que ocorreu em outros países. No caso, a democratização social e política de países como Espanha e Portugal, 3 3 que não apenas transformaram as condições de formação dos professores, mas também significativamente suas condições de exer­cício profissional com jornada e salários compatíveis com um exercício crítico e reflexivo e de pesquisa, contribuindo para a elevação do estatuto da profissionalidade docente. Essa questão, como se vê, está "esquecida" nas políticas do governo brasileiro.

Ainda sobre a questão da apropriação dos conceitos, algumas hipóteses.

A perspectiva da reflexão em análise foi amplamente difundida e apropriada por pesquisadores brasileiros na área. Por sua fertilidade, como vimos. Mas também muitas vezes descontextualizada, sem um estudo mais consistente sobre suas origens, sem uma análise crítica. São

33. Embora esse desenvolvimento também tenha ocorrido na França, nos EUA e na In­glaterra, no âmbito deste texto não incluímos a análise desses países cujos contextos apresen­tam nuances mais diretamente voltadas para as questões das desigualdades culturais, a partir dos movimentos de imigração, o que não é o caso do Brasil.

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poucas as pesquisas empíricas que os colocam à análise, sob suspeita, para verificar suas possibilidades e seus limites em contextos situados, numa atitude que permita o emergir de critérios de validação. A ausên­cia desses cuidados que são característicos do pesquisador, da mesma maneira que gera uma apropriação generalizada, banalizada e meramente discursiva, também tem levado a um rápido e apressado descarte, como se a moda já tivesse sido superada.

Por outro lado, também se observa uma tendência em proceder a uma tecnicização da reflexão, a partir de sua operacionalização em inú­meras competências a serem desenvolvidas no processo formativo ini­cial e em serviço, colocando as bases para uma avaliação da atividade dos professores, a partir delas, individualmente consideradas. Essa ten­dência é forte em setores expressivos de universidades norte-america­nas e inglesas e vem subsidiando políticas governamentais, especialmente no Brasil e no Chile.

Alguns indicadores dessas políticas podem ser identificados, por exemplo, numa atitude de sistemática desqualificação das universida­des como espaços formativos. Também presentes na desqualificação dos professores com a transformação de seus saberes em saberes-fazeres, di­retamente ligados à operacionalização do ensino e com a definição de novas identidades dos docentes transformando-os em tutores e monitores da aprendizagem. Neste caso, os saberes de que necessitam são simplifi­cados em competências, o que resulta em menores investimentos em sua formação. As justificativas se circunscrevem à rapidez com que a socie­dade veicula informações, o que dispensaria o trabalho dos professores com estas na direção de transformá-las em conhecimento e sabedoria, conforme propõe Morin, em seu livro A cabeça bem feita, 1999.

Também se observa o ampliação dos programas de formação em nível superior destinados a professores que já atuam nos sistemas de ensino, o que em si não é indesejável. A questão se complica quando esses programas fazem uma formação superior aligeirada, consideran­do que a prática de que são possuidores, uma vez que já atuam profissio­nalmente, é suficiente para dispensá-los de um processo formativo mais amplo e profundo. Nesses programas observa-se uma supervalorização da prática, considerada em si mesma, não tomada como objeto de análi­se crítica, o que demandaria mais tempo para que uma sólida formação teórica seja apropriada no diálogo com as práticas e com as teorias nelas presentes. Esses programas sugerem um investimento mais na certifica­ção do que na qualidade da formação.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 47

A análise crítica contextualizada do conceito de professor reflexivo empreendida neste texto permite superar as suas limitações, afirmando-o como um conceito político-epistemológico que requer o acompanha­mento de políticas públicas conseqüentes para sua efetivação. Caso con­trário, se transforma em mero discurso ambíguo, falacioso e retórico ser­vindo apenas para se criar um discurso que culpabiliza os professores, ajudando os governantes a encontrarem um discurso que os exime de responsabilidades e compromissos. Discurso que se reveste de inova­ção, porque se apropria da contribuição de autores estrangeiros contem­porâneos e dos termos novos que decorrem de suas teorias. No entanto, ignoram ou mesmo descartam a análise do conjunto de suas teorias e, principalmente, dos contextos nos quais foram produzidas e para os quais, eventualmente, têm sido férteis no sentido de potencializar a efetivação de uma democracia social com mais igualdade, para o que contribui a democratização quantitativa e qualitativa dos sistemas escolares.

Assim, a análise das contradições presentes na apropriação históri­ca e concreta desse conceito, evidenciadas na pesquisa teórica e empírica empreendida, subsidia a proposta de superar-se a identidade necessária dos professores de reflexivos para a de intelectuais críticos e reflexivos.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 53

REFLEXIVIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: outra oscilação do pensamento pedagógico brasileiro?

José Carlos Libâneo*

Em textos recentes sobre a especificidade do conhecimento peda­gógico como campo científico da educação, venho alertando sobre os riscos de abordagens parcializadas do fenômeno educativo, por conta "do viés das várias áreas de conhecimento que se ocupam do fenômeno educativo", resultando nos reducionismos sociológico, psicológico, his­tórico etc. (Libâneo, 1999, 2000). Algo parecido está ocorrendo com o tema da reflexividade, mais conhecido como professor reflexivo, em re­lação ao qual poderá estar acontecendo, mais uma vez, o reducionismo de considerar a teoria do professor reflexivo nas visões do pragmatismo ou do reconstrucionismo social como as únicas que explicariam mais acertadamente o lugar da reflexividade na formação inicial e continuada de professores. Não é que não se reconheça a força das contribuições teóricas e práticas dessa linha de estudos que, sem dúvida, muito vem enriquecendo a teoria educacional. Apenas não me parece frutífero do ponto de vista das ações pedagógicas concretas qualquer tipo de reducionismos.

Esses reducionismos podem ser explicados, em boa parte, pela fra­gilidade do pensamento pedagógico brasileiro nas últimas décadas, que, por isso mesmo, submete-se facilmente aos modismos e às oscilações

* [email protected]

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54 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

teóricas.1 O termo "oscilação" tem também o sentido de flutuação, mas seu sentido mais apropriado é o de variação alternada, algo que se move para um lado e para outro. A definição do dicionário para o verbo "osci­lar" é mover-se tornando a passar (ao menos aproximadamente) pelas mesmas posições. E precisamente esse fenômeno que caracteriza, a meu ver, a adoção da teoria do professor reflexivo entre nós. Aliás, a oscila­ção ou flutuação ou dispersão ou variação temática parece ser, desde longa data, uma característica inconfundível do campo educacional no Brasil, que se manifesta em atitudes tais como o rápido abandono de linhas de pesquisa em favor daquelas supostamente consideradas mais avançadas, a assunção de temas da moda surgidos em outras culturas, o deixar para trás os paradigmas clássicos do conhecimento.

O presente texto aborda o significado de reflexividade e seus vários entendimentos aplicados à formação de professores, envolvendo a capa­cidade e a competência reflexiva no exercício profissional. Propõe-se analisar o conceito de reflexividade para além do que já se escreveu so­bre a metáfora do professor reflexivo, buscando diferentes modos de compreender o papel da reflexão no desenvolvimento profissional dos professores.

Os autores que trabalham o tema da reflexão no ensino referem-se, obviamente, a um comportamento reflexivo, a um exercício de reflexão em relação às ações de variada natureza, ou seja, o cerne da reflexividade está na relação entre o pensar e o fazer, entre o conhecer e o agir. Ao longo destes anos, em nosso país, temos discutido os posicionamentos sobre essas questões: a) relação direta e causai do pensamento para o comportamento, da teoria à prática; b) a relação direta e causai do com­portamento para o pensamento, da prática à teoria; c) o reconhecimento

1. Em texto publicado em 1969, Orlandi utilizava a expressão "flutuações da consciência pedagógica" para se referir à variação do predomínio de uma ou outra perspectiva de análise do fenômeno educativo; a psicológica, a sociológica, a econômica (Orlandi, in SAVIANL 1980). É notória, por exemplo, a predominância, de tempos em tempos, da perspectiva psicológica no campo educacional, conforme mostram vários estudos. Em relação à perspectiva sociológica, Orlandi discutia no artigo citado a presença de textos de sociologia da educação que se erigiam como modelos de pesquisa em educação, denotando uma flutuação sociológica da consciên­cia pedagógica, de modo que o ponto de partida e o ponto de chegada desses textos eram a sociologia da educação e não a educação. Já em 1962 Luiz Pereira, professor de Sociologia da Educação da USP, em artigo denominado "Nota crítica sobre o pensamento pedagógico bra­sileiro", discutia o embate entre os cientistas sociais e os educadores, em razão da sociologização do pensamento pedagógico. Os reducionismos ainda são uma forte marca do pensamento educacional atual.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 55

de certa descontinuidade entre a teoria e a prática e de que as coisas não se resolvem apenas em insistir na "relação teoria — prática". Gostaria de acentuar, nessa discussão, essa descontinuidade. Sigo, neste ponto, Gimeno Sacristán (1999: 33):

O problema da relação teoria — prática não se resolve na educação a partir de

uma abordagem que conceba a realidade — a prática — como causada pela

aplicação ou adoção de uma teoria, de certos conhecimentos ou resultados da

investigação. (...) Tão-pouco estamos seguros de que a teoria válida seja aque­

la que se gera nos processos de discussão ou de investigação-ação entre os que

estão na prática.

As considerações a serem desenvolvidas aqui sobre a reflexividade estão longe de constituírem-se numa formulação acabada. Antes, repre­sentam uma tentativa de mapear os problemas e de sugerir pistas para o aprofundamento de estudos.

Serão abordados três tópicos: a noção filosófica de reflexividade; os dois tipos básicos de reflexividade presentes no debate atual; consi­derações sobre a reflexividade e o desenvolvimento profissional dos professores.

1. A noção de reflexividade

Considerarei neste tópico dois itens: a reflexividade na filosofia e na pedagogia e a história do conceito em nossa experiência brasileira.

0 que é reflexividade

Reflexividade é uma característica dos seres racionais conscientes; todos os seres humanos são reflexivos, todos pensamos sobre o que faze­mos. A reflexividade é uma auto-análise sobre nossas próprias ações, que pode ser feita comigo mesmo ou com os outros. Não é inútil recorrer à etimologia: o dicionário Houaiss menciona reflexivo + dade, caráter do que é reflexivo; reflexivo — o que reflete ou reflexiona, que procede com reflexão, que cogita, que se volta sobre si mesmo. O termo original latino seria "reflectere" — recurvar, dobrar, ver, voltar para trás. Reflexividade parece ser, pois, um termo adequado para designar a capacidade racio-

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56 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

nal de indivíduos e grupos humanos de pensar sobre si próprios. Pérez Gómez (1999: 29) escreve:

A reflexividade é a capacidade de voltar sobre si mesmo, sobre as construções

sociais, sobre as intenções, representações e estratégias de intervenção. Supõe

a possibilidade, ou melhor, a inevitabilidade de utilizar o conhecimento à

medida que vai sendo produzido, para enriquecer e modificar não somente a

realidade e suas representações, mas também as próprias intenções e o pró­

prio processo de conhecer.

Há, pelo menos, três significados bastante distintos de reflexividade:

I o ) Reflexividade como consciência dos meus próprios atos, isto é, da reflexão como conhecimento do conhecimento, o ato de eu pensar sobre mim mesmo, pensar sobre o conteúdo da minha mente. Penso so­bre minhas idéias, examino-as, modifico-as, quer dizer, a reflexão me leva a formar uma teoria, um pensamento que orienta minha prática. Este é o sentido de uma reflexão interior, de um exame de consciência sobre os atos praticados, admitindo-se uma realidade interior separada do mundo exterior. Trata-se de uma visão platônica, cristã, idealista, em que os resultados da reflexão têm o poder de dar uma configuração à realidade e de governá-la numa direção previamente definida. Algumas definições encontradas em Abbagnano (1999:837) esclarecem essa men­cionada separação entre conceito e realidade:

A reflexão é o poder de dobrar-se sobre as idéias, de examiná-las, de modificá-

las e combiná-las de maneiras diferentes: ela é o grande princípio do raciocí­

nio, do juízo etc. (Vauvenargues, in Abbagnano, 1999: 837).

A reflexão não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos deles; é o esta­

do de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subje­

tivas que nos permitem chegar aos conceitos. Ela é a consciência da relação

entre as representações dadas e as várias fontes do conhecimento. (Kant, in

Abbagnano, 1999: 837).

2 o ) Num segundo significado, a reflexão é entendida como uma re­lação direta entre a minha reflexividade e as situações práticas. Nesse caso, reflexividade não é introspeção, mas algo imanente à minha ação. Ela é um sistema de significados decorrente da minha experiência, ou melhor, formado no decurso da minha experiência. Dizendo isso de uma outra maneira: a minha capacidade reflexiva começa necessariamente numa situação concreta, externa, ou, conforme diz Dewey, "o estágio

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inicial do ato de pensar é a experiência". Aí eu reajo a essa situação, o que é a mesma coisa de pensar a relação entre a situação e o meu pensa­mento. A partir dessa reflexão, eu defino meu modo de agir futuro. Sendo assim, o pensamento, a reflexão, está entre o mundo externo e a ação do sujeito, e sua função é dar uma nova direção à minha ação, esclarecer o que devo fazer. Esta é a posição formulada por Dewey (1979: 158):

O pensamento ou a reflexão (...) é o discernimento da relação entre aquilo que

tentamos fazer e o que sucede como conseqüência. (...) Na descoberta minu­

ciosa das relações entre os nossos atos e o que acontece em conseqüência de­

las, surge o elemento intelectual que não se manifesta nas experiências de ten­

tativa e erro. À medida que se manifesta esse elemento aumenta proporcional­

mente o valor da experiência. Com isto, muda-se a qualidade desta, e a mu­

dança é tão significativa que poderemos chamar reflexiva esta espécie de ex­

periência — isto é, reflexiva por excelência. (...) Pensar é o esforço intencional

para descobrir as relações específicas entre uma coisa que fazemos e a conse­

qüência que resulta, de modo a haver continuidade entre ambas.

3 o ) O terceiro caminho de entender a reflexividade é a reflexão dialética. Há uma realidade dada, independente da minha reflexão, mas que pode ser captada pela minha reflexão. Essa realidade ganha sentido com o agir humano. Mas é preciso considerar dois pontos. Primeiro, essa realidade — o mundo dos fatos, dos acontecimentos, dos proces­sos, das estruturas — é uma realidade em movimento. Segundo, essa realidade é captada pelo meu pensamento, cabe ao pensamento, à teo­ria, à reflexão, captar o movimento dessa realidade, isto é, suas rela­ções e nexos constitutivos, e construir uma explicação do real. A reali­dade, assim, é uma construção teórico-prática. Ainda na perspectiva dialética, a chamada teoria crítica acentua o caráter político da teoria em relação à prática, pois o conhecimento teórico tem a função de ope­rar o desvendamento das condições que produzem a alienação, as in­justiças, as relações de dominação. Mas esse conhecimento precisa ser crítico, implicando uma auto-reflexão sobre si próprio, seus compro­missos e seus limites.

A breve menção a algumas noções do campo filosófico de reflexi­vidade é, certamente, incompleta, cabendo em cada uma outras modu­lações e composições, como é o caso das abordagens fenomenológica, estruturalista, positivista. De todo modo, cada um dos sentidos que des­crevemos geram diferentes entendimentos do papel da reflexividade no trabalho dos professores, que analisaremos no tópico seguinte.

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58 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

A história do conceito no Brasil

Podemos identificar, grosso modo, o percurso do conceito de reflexi­vidade no Brasil desde, por exemplo, os anos 1960. Estou pontuando essa data arbitrariamente, pois a história da reflexividade começa desde que o homem se fez homem. Vou apenas mencionar alguns momentos dessa história, sem poder detalhá-los agora.

a) Método de reflexão do Ver-Julgar-Agir — Essa formulação foi cunhada por volta dos anos 1960, dentro do movimento da ação católica em que se agrupavam a JUC (Juventude Universitária Católica), JOC (Ju­ventude Operária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica) e JAC (Juventude Agrária Católica). O objetivo deste método era sistematizar o exercício de reflexão, tendo em vista formar a consciência histórica ou consciência crítica dos militantes. É bastante provável que a adoção des­se método por militantes católicos leigos tenha sido influenciada pelos jesuítas, a partir dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Escrevem os jesuítas (1994: 32):

Característica singular do paradigma da pedagogia inaciana é que, considera­do à luz dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, não só é uma descrição adequada da contínua interação da experiência, reflexão e ação do processo de ensino e aprendizagem, mas também uma descrição ideal da inter-relação dinâmica entre o professor e o aluno, na caminhada deste último, rumo à ma­turidade do conhecimento e da liberdade.

b) A proposta de reflexividade de Paulo Freire — Essa proposta, assentada no processo da ação — reflexão — ação, também visa à forma­ção da consciência política. No conhecido "método Paulo Freire" come­ça-se por tomar distância do contexto concreto para uma análise crítica dos fatos, através da codificação ou representação de situações existen­ciais dos educandos e, num segundo momento, passa-se à descodificação feita pelo diálogo educador—educandos, abrindo possibilidades à aná­lise crítica em torno da realidade codificada. Escreve Freire (1976: 135):

No contexto concreto somos sujeitos e objetos em relação dialética com o obje­to; no contexto teórico assumimos o papel de sujeitos cognoscentes da relação sujeito-objeto que se dá no contexto concreto para, voltando a este, melhor atuar como sujeitos em relação ao objeto. Estes momentos constituem a unida­de (...) da prática e da teoria, da ação e da reflexão. (...) A reflexão só é legítima quando nos remete sempre (...) ao concreto, cujos fatos busca esclarecer, tor-

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 59

nando assim possível nossa ação mais eficiente sobre eles. Iluminando uma

ação exercida ou exercendo-se, a reflexão verdadeira clarifica, ao mesmo tem­

po, a futura ação na qual se testa e que, por sua vez, se deve dar a uma nova

reflexão.

c) O método da reflexão dialética no marxismo humanista — Por volta dos anos 1980 ocorre um revigoramento do marxismo, acentuando-se a idéia de formação da consciência crítica tendo como base a práxis, na unidade teoria — prática, reflexão — ação. A reflexão dialética busca apreender as leis sociais, históricas, dos fenômenos na sua concretude, nas suas contradições, de modo que os objetos sejam considerados nas suas relações, no seu contexto, na sua totalidade. Segundo Ianni (1988:145):

A dialética compreende a realidade como movimento, modificação, devir, his­

tória. Trata-se de refletir sobre os fatos, tendo em vista apanhar os nexos inter­

nos, constitutivos desses fatos. (...) Assim, parte-se do dado concreto, sensível

e, pela reflexão, apanham-se as determinações que constituem o dado. (...) O

resultado é o concreto pensado, uma construção teórico-prática, lógico-histó-

rica. (...) A dialética apanha principalmente relações, processos e estruturas;

apanha os fatos enquanto nexos de relações sociais, relações essas que os cons­

tituem. (...) Esse é o âmbito no qual se expressam as diversidades, as hierar­

quias, as desigualdades, as divisões e outras formas de relações de antagonis­

mo e contradição.

d) O método da reflexão fenomenológica — Também a fenomeno-logia propiciou aos educadores um instrumental de leitura crítica da rea­lidade, especialmente em oposição a uma visão positivista do conheci­mento. O método fenomenológico compreende toda ação humana como intencional e, por isso, o homem é um criador de significados. A refle­xão, a análise de objetos, situações, experiências, dependem do sentido que damos a essa realidade.

e) O movimento das competências do pensar — O movimento do pensar ou do desenvolvimento das competências do pensar, iniciado no final dos anos 1970 nos Estados Unidos e na Europa, se propôs atribuir à escola a preocupação com o desenvolvimento da qualidade do pensar de alunos e professores. O que constituiu-se novidade nesse movimento foi acreditar que, para além da forma natural e espontânea de pensa­mento e do domínio das chamadas "competências básicas" (matemáti­ca, ciências, ler e escrever), é preciso desenvolver, de forma metódica, competências do pensar que levam à reflexão, implicando, portanto, for-

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mação e utilização funcional de conceitos, resolução de problemas, to­mada de decisões, criatividade. Esse movimento foi incluído como uma das recomendações da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), já no início dos anos 1980, para atender à necessi­dade de melhorar a qualidade de ensino nos países europeus e fazer frente às necessidades do mercado de trabalho e à cidadania democrá­tica. Atualmente, esse movimento desenvolve-se em vários países, inclu­sive da América Latina, com vinculações a diferentes aportes teóricos como a teoria piagetiana, a teoria histórico-cultural da atividade, a Filo­sofia para Crianças de M. Lipman, as idéias de Bruner 2 e outros autores. É certo, também, que nas origens da temática do professor reflexivo está o movimento das estratégias do pensar.

Não é nova essa idéia de que uma das funções da escola é o desen­volvimento do pensar e de que se trata de uma capacidade que pode ser desenvolvida, estimulada, aperfeiçoada, especialmente no âmbito da educação formal; ela está explícita em Dewey, Piaget, Vygotsky, entre outros. O que muda é a ênfase, no currículo e na metodologia de ensino, na construção de estratégias intencionalmente planejadas "que ajudem o aluno a utilizar de forma consciente, produtiva e racional o seu poten­cial de pensamento e que permitam torná-lo consciente das estratégias de aprendizagem a que recorre para construir e reconstruir os seus con­ceitos, atitudes e valores" (Santos, 1994: 101).

f) O movimento do professor reflexivo — No final dos anos 1970 esse movimento já aparecia na literatura relacionada com os paradig­mas de formação de professores. A formação e a profissionalização de professores é um tema que emergiu no quadro das reformas educativas, nos anos 1980, dentro de um conjunto de mudanças educacionais associa­das à reestruturação produtiva e políticas de ajuste no âmbito do capita­lismo. As reformas educativas expressavam essa tendência nos seguin­tes termos: novos tempos requerem nova qualidade educativa, impli­cando mudança nos currículos, na gestão educacional, na avaliação dos sistemas e na profissionalização dos professores (Libâneo, 2000a). Seja por esse motivo seja pela constatação empírica do efetivo papel dos pro­fessores na melhoria do ensino, é certo que a abordagem reflexiva da formação de professores ou enfoque do professor reflexivo virou um movimento em torno do conceito de reflexão, levando o tema da forma-

2. Consultar, por exemplo, www.educadormarista.com/

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 61

ção de professores a uma visibilidade temática sem precedentes. Em 1983, Zeichner utilizava o conceito de paradigma de formação de professores para referir-se a "uma matriz de crenças e pressupostos acerca da natu­reza e propósitos da escola, do ensino, dos professores e de sua forma­ção, que dão características específicas à formação de professores" (in Marcelo Garcia, 1999). Não foi exagerada, portanto, a idéia de Feldman (2001) em designar esse movimento de "programa do professor refle­xivo", ao lado de teorias de ensino, não propriamente pela legitimida­de em constituir-se como tal mas pela popularização que o movimento ganhou.

No Brasil há menções na bibliografia especializada, no início dos anos 1990, de obras de Perrenoud, Carr e Kemmis, Nóvoa, que destacam o papel da reflexão na prática docente no aprimoramento do trabalho. Em vários autores observa-se a relação entre reflexividade e a prática da pesquisa (por exemplo, André, 1994; Ludke, 1994). Na segunda metade dos anos 1990 aparecem vários estudos que inserem a formação de pro­fessores numa perspectiva mais ampla sem se deter a apenas um aspecto dessa formação, no caso, o professor prático reflexivo ou que abordam o tema numa linha crítica (entre outros, Pimenta, 1996; Ludke, 1996; Geraldi, Fiorentini & Pereira, 1998; Marin, 2000). Pimenta e outros (2000) abor­dam as idéias de Donald Shõn mas destacam a importância das trocas reflexivas sobre as práticas entre os professores, da cultura interna das escolas que também demarcam as práticas, da escola como comunida­de crítica de aprendizagens. Daí propõem a pesquisa colaborativa. É fértil, portanto, a produção especializada sobre a formação de profes­sores, sobre a reflexividade e para além da reflexividade na formação de professores.

e) Novos entendimentos de reflexividade com a crise do marxismo: a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a teoria da ação comunicativa, o movimento do professor crítico reflexivo, o intelectual crítico etc.

2. Os dois tipos básicos de reflexividade

O mapeamento das concepções atuais sobre formação de professo­res tem sido realizado por vários pesquisadores (Zeichner, 1993; Pérez Gómez, 2000; Marcelo Garcia, 1999; Contreras, 1997; Feldman, 2001). Em todas elas estão presentes as concepções acadêmica, tecnológica e práti­ca, incluindo as várias modulações em cada uma. Não há razão para

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62 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

reproduzir aqui esses estudos, já bastante divulgados. O que me propo­nho fazer é sugerir dois tipos básicos relativamente opostos 3 de reflexividade: a reflexividade de cunho neoliberal e a reflexividade de cunho crítico. No campo liberal, o método reflexivo situa-se no âmbito do positivismo, do neopositivismo ou, ainda, do tecnicismo, cujo deno­minador comum é a racionalidade instrumental. No campo crítico, fala-se da reflexividade crítica, crítica-reflexiva, reconstrucionista social, co-municativa, hermenêutica, comunitária. Não posso deixar de insistir que dentro de cada um desses tipos básicos há variações. Vem ocorrendo hoje um grande transvasamento de discursos pelo que termos e signifi­cados de uma posição teórica, em princípio antagônicos, são apropria­dos no sistema conceituai de outra.

E necessário assinalar meu entendimento de que as duas acepções têm origens epistemológicas na mesma fonte teórica: a modernidade e, dentro dela, o iluminismo. A modernidade tem uma crença forte na su­premacia da razão. A potencialidade reflexiva, nesse sentido, é conside­rada intrínseca ao ser humano. É a capacidade de pensarmos sobre nos­sos atos, sobre as construções sociais, sobre as intenções, representações e estratégias de intervenção. Supõe a necessidade de utilizar o conheci­mento para mudar a realidade, mas também para mudar nossas inten­ções, nossas representações e o próprio processo de conhecer. Cumpre reconhecer, todavia, que algumas concepções da proposta do professor reflexivo incorporam temas e processos investigativos próximos do que vem sendo chamado de "pensamento pós-moderno".

Visando a uma compreensão mais detalhada dos vários posiciona­mentos sobre a reflexividade, formulo o quadro a seguir, para indicar características de ambos os tipos.

3. Alguns leitores estranharão essa expressão "relativamente opostos", mas isso pode ser explicado. A oposição é, evidentemente, de cunho político, indicando posicionamentos frente às formas de vida social, econômica, ambiental, compatíveis com ideais de justiça, igualdade, dignidade humana. Mas há que se considerar certas nuances desse projeto: a) A orientação em formação de professores chamada de "prática" em oposição à "técnica" tem modulações bastante distintas variando de liberais a críticas, podendo ter posições fronteiriças; b) o termo "reflexividade", embora não seja propriedade do discurso teórico neoliberal, surgiu no con­texto desse pensamento, mas nem por isso seus sentidos filosóficos se dissolvem, o que signi­fica dizer que certas características do pensamento reflexivo se mantêm nas concepções tanto à direita como à esquerda; c) no âmbito das práticas escolares e docentes, comportamentos, atitudes, métodos, procedimentos, não precisam se perguntar se são neoliberais ou críticos para que aconteçam. Embora importe muito a direção de sentido que os professores dão às suas práticas, eles precisam fazer e pensar, adotar métodos, administrar a sala de aula, tomar decisões.

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 63

TIPOS BÁSICOS DE REFLEXIVIDADE

CARACTERÍSTICAS COMUNS DO CONTEXTO

• Alteração nos processos de produção decorrente dos avanços científicos e tecnológicos

• Estreita ligação ciência — tecnologia • Reestruturação produtiva • Intelectualização do processo produtivo • Empoderamento dos sujeitos — Flexibilidade profissional

Reflexividade crítica

Características do professor crítico-reflexivo • Fazer e pensar, a relação teoria e

prática • Agente numa realidade social

construída • Preocupação com a apreensão das

contradições • Atitude e ação críticas frente ao

mundo capitalista e sua atuação • Apreensão teórico-prática do real • Reflexividade de cunho

sociocrítico e emancipatório

Orientações teóricas

Marxismo Ineomarxismo

• Construtivismo histórico-cultural ou socioconstrutivismo ou interacionismo sociocultural

Reconstrucionismo social • Reflexividade crítica

Reflexividade neoliberal (linear, dicotômica, pragmática)

Características do professor reflexivo • Fazer e pensar, relação entre teoria

e prática • Agente numa realidade pronta e

acabada • Atuação dentro da realidade

instrumental • Apreensão prática do real • Reflexividade cognitiva e mimética

Orientações teóricas • Paradigma racional-tecnológico • Cognitivismos • Ciência cognitiva e teoria do

processamento da informação • Pragmatismo • Tecnicismo • Construtivismo piagetiano

Fenomenologia • Apreensão subjetiva do real • Reflexividade subjetiva

(compreensividade)

Teoria da ação comunicativa • Reflexividade comunicativa • Reflexividade hermenêutica

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64 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

Uma primeira observação desse quadro indica que o contexto eco­nômico e social é o mesmo para ambas as orientações teóricas da reflexi­vidade, cada visão interpretando-o de forma diferente conforme interes­ses políticos, ideológicos. A reestruturação produtiva se baseia na alte­ração dos processos de produção, principalmente em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos.

O modelo de reflexividade neoliberal é explicado por Scott Lash (Giddens, Beck & Lash, 1997). De acordo com esse autor, "a tese da mo­dernização reflexiva tem como suposição básica a libertação progressiva da ação em relação à estrutura", ou seja, libertação das estruturas fordistas limitadas por regras. Este processo, típico da chamada sociedade pós-industrial, identifica-se com uma sociedade em que o consumo é cada vez mais especializado, requerendo um sistema de produção flexível. Esse sis­tema de produção flexível — ou seja, produtos adequados a maior consu­mo (quantidades menores de determinados produtos, mas mais opções de produtos) — requer que as empresas inovem muito mais rapidamente. Para isso, requer-se mais conhecimento intelectual e menos trabalho ma­terial, levando à intelectualização do processo produtivo, ou seja, mais reflexividade (auto-reflexividade, automonitoramento dos trabalhadores).

A ampliação da capacidade reflexiva, visando ao empoderamento dos sujeitos, precisa ocorrer em vários âmbitos, mas especialmente no trabalho e na escola. Essa reflexividade pode ser desenvolvida tanto pela via da psicologia cognitiva quanto pelo tecnicismo. Alguns estudos têm destacado, por exemplo, a utilização do construtivismo piagetiano como forma de desenvolver o governo do "eu", ou seja, suas práticas educati­vas tidas como propiciadoras da autonomia e da liberdade visariam, na realidade, a uma forma de autocontrole da conduta pelo próprio indiví­duo de modo que se obtivesse um sujeito "conscientemente" submisso aos controles sociais. No fundo, mesmo as pedagogias chamadas emancipatórias seriam formas de manipulação da subjetividade a servi­ço da manutenção das relações de poder vigentes (cf. Silva, 1998). Quan­to ao tecnicismo, mais de um autor tem acentuado o uso indiscriminado do termo "reflexão" pelos que defendem a visão instrumental e técnica do ensino em que o raciocínio técnico se apresenta como pensamento reflexivo, como processo de solução de problemas, tomando a reflexão como prática individual (cf. Contreras, 2000; Pérez Gómez, 1997; Marce­lo Garcia, 1997).

Quanto à reflexividade crítica, sabemos que o uso do termo refle­xão na formação de professores foi incorporado pelos educadores brasi-

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leiros a partir do livro de Antônio Nóvoa, Os professores e a sua formação (1992). O livro apresenta a visão de vários autores sobre o tema, cujo foco é conceber o ensino como atividade reflexiva. Alguns textos são bastante explícitos em atribuir a ênfase na formação de professores às políticas da Comunidade Econômica Européia e às reformas educativas decorrentes, implantadas na Europa e nos Estados Unidos.

As propostas de reforma focam sobretudo os problemas das escolas e as áreas em que a reforma deverá incidir. No ambiente atual, uma das retóricas princi­pais relaciona-se com a profissionalização do ensino. Observa-se uma preocupa­ção crescente em fornecer aos professores uma maior autonomia, privilégios e estatuto. Palavras como reflexão e poder de decisão dos professores são uma referência contínua na planificação e nas práticas da reforma (Popkewitz, in Nóvoa, 1992: 37).

Seja como for, os autores posicionam-se francamente contra a ado­ção do modelo da racionalidade técnica na formação de professores, mas é impossível deixar de admitir que o desenvolvimento da capacidade reflexiva estaria associada a maior flexibilidade profissional dos profes­sores, maior autonomia e maior capacidade de tomada de decisões em seus espaços de trabalho, algo também desejado dos demais trabalhado­res em face da intelectualização do processo produtivo e da necessidade de automonitoramento. A idéia, captada especialmente nos artigos de D. Schõn e K. Zeichner, é a de que o professor possa "pensar" sua práti­ca, ou em outros termos, que o professor desenvolva a capacidade refle­xiva sobre sua própria prática. Tal capacidade implicaria da parte do professor uma intencionalidade e uma reflexão sobre seu trabalho. Para Zeichner, o movimento da prática reflexiva atribui ao professor um pa­pel ativo na formulação dos objetivos e meios do trabalho, entendendo que os professores também têm teorias que podem contribuir para a cons­trução de conhecimentos sobre o ensino.4

Não há como contestar a validade dessa ressignificação do termo re­flexão ou reflexividade, considerando os professores como profissionais re­flexivos ou artistas reflexivos ou investigadores reflexivos. Conviria, no en­tanto, levar-se em conta as restrições feitas a essas concepções, como as dis­cutidas por Contreras (1997), especialmente as que ressaltam uma marca individualista e imediatista das práticas reflexivas, a desconsideração do

4. Para se compreender melhor as propostas de Schõn e Zeichner, é necessário distinguir a posição pragmática do primeiro e a posição pragmático-reconstrucionista do segundo, em-

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contexto social e institucional, a identificação entre ação e pensamento, a não-valorização do conhecimento teórico, a não-consideração da cultura como práticas implícitas configuradoras de comportamentos, a falta de com­preensão crítica do contexto social e simultaneamente a pouca ênfase no trabalho coletivo e na influência da realidade social e institucional sobre as ações e os pensamentos das pessoas. Em relação ao professor artista, inves­tigador ou reflexivo, Contreras (1997:110) aponta o seguinte problema:

(...) define-se uma configuração das relações entre certas pretensões e as práti­

cas profissionais num contexto de atuação, mas não se está revelando nenhum

conteúdo para dita reflexão. Portanto, não se está propondo qual deva ser o

campo de reflexão e quais são seus limites. Pressupõe-se que o potencial da

reflexão ajudará a reconstruir tradições emancipadoras implícitas nos valores

de nossa sociedade. Entretanto, ditos valores não são só os que representam

emancipação mas também dominação. O que está aqui em dúvida é se os pro­

cessos reflexivos, por suas próprias qualidades, dirigem-se à consciência e rea­

lização dos ideais de emancipação, igualdade ou justiça.

Em relação ao que chama de "programa reflexivo",5 Feldman (2001) faz uma importante distinção: a reflexão pode ser considerada como metodologia de trabalho para resolução de problemas específicos e como "prática reflexiva", isto é, como um programa de orientação geral na formação de professores. É a partir desta distinção que se pode dizer que a proposta "reflexiva" pode levar a acreditar que a reflexão sobre a prá­tica gera por si só formas de intervenção, o que pode não ser verdadeiro.

bora ambos se posicionem contra a perspectiva técnica ou racionalista-técnica. Donald Schõn é um dos autores que defendem o enfoque reflexivo sobre a prática ou o ensino como ativida­de prática dentro do pragmatismo de Dewey. A reflexão é um processo ligado intrinsecamen-te à experiência, de modo que o conhecimento prático é um processo de reflexão na ação, isto é, dentro de uma situação problemática concreta. Zeichner situa-se na perspectiva de reflexão na prática para a reconstrução social, portanto o ensino como atividade crítica. O reconstrucionismo social é um movimento nascido nos Estados Unidos no final dos anos 1950 sob a liderança principal de Theodore Brameld, um filósofo influenciado pelas idéias de Dewey, mas que desenvolveu uma teoria própria baseada no caráter transformador da educação ten­do em vista uma nova ordem social. Nesta perspectiva, o ensino crítico tem uma orientação eminentemente ética, portanto intencional, que precisa ser refletida na prática docente, de modo que compreenda não apenas as características do processo de ensino—aprendizagem mas as do contexto social em que ele acontece. De certa forma, embora com algumas diferen­ças teóricas, incluem-se nesta linha autores como Giroux, Apple, Kemmis. Consultar a esse respeito: Pérez Gómez, 1998; Marcelo Garcia, 1999; Brameld, 1967; Almeida, 1980.

5. O autor sugere que o "programa reflexivo" é um novo programa pedagógico que vem se somar, atualmente, a outras três filosofias modernas de ensino: paidocentrismo, progressismo

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A influência das teorias pedagógicas e de ensino nas representações dos professores não tem, necessariamente, equivalência com seus procedi­mentos, atividades, valores postos em prática nas salas de aula. Além disso, muitas teorias perdem seu poder de ação precisamente porque não provêm os suportes técnicos para serem viabilizadas. Pode-se di­zer, por outro lado, que muitas vezes professores aderem a teorias que conferem sentido ao seu modo usual de agir na sala de aula, não a teo­rias que lhes sao trazidas de fora. Feldman (2001; 107) escreve a esse respeito:

(...) qualquer posição teórica é difícil de ser assimilada por professores e edu­cadores se não resolve o problema prático de aprender e ensinar. (...) Nesse sentido, a interação e a negociação significativa sobre conteúdos instrumen­tais pode ser um passo necessário para a reformulação das teorias. Além dis­so, trabalhar sobre propostas que resultem em práticas exitosas e possíveis de realizar pelos professores pode abrir melhores possibilidades para a recons­trução dos fundamentos teóricos, desenvolver princípios e ampliar a base apli­cável dos conhecimentos.

Contreras aponta outra ordem de dificuldades: o professorado ten­de a limitar seu mundo de ação e reflexão à aula e ao contexto mais ime­diato e, com isso, prefere submeter-se às rotinas e à sua experiência ime­diata sem conseguir ver os condicionantes estruturais do seu trabalho, da sua cultura e das formas de sua socialização. Em razão disso, faz-se necessária uma teoria crítica que permitiria aos professores ver mais longe em relação à sua situação, teoria essa que parte do reconhecimento dos professores como intelectuais críticos. Estaríamos frente a uma reflexividade emancipadora, a caminho de uma real autonomia intelec­tual e política do professorado. Smyth (Contreras, 1997) resume o enfoque da reflexão crítica em quatro fases da reflexão:

1. Descrever: o que estou fazendo?

2. Informar: que significado tem o que faço?

3. Confrontar: como cheguei a ser ou agir desta maneira?

4. Reconstruir: como poderia fazer as coisas de um modo diferente?

A reflexividade comunicativa proposta por Habermas supõe não apenas uma ação comunicativa voltada para o entendimento e consenso

e construtivismo, o que sugere pretensões ou ao menos uma sugestão de constituir-se em mais uma teoria de ensino.

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68 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

mas, também, um desvelamento das formas de coação, às vezes toma­das como "naturais", que restringem os processos de auto-reflexão. A teoria crítica adquire caráter emancipador à medida que favorece a cria­ção das condições pelas quais os grupos sociais podem buscar, sem coa­ções, as formas práticas de relação, ou seja, os acordos intersubjetivos. A racionalidade comunicativa seria o meio pelo qual a intersubjetividade pode resistir ao sistema e ampliar o espaço do mundo da vida. De acor­do com Contreras (1997:127):

A teoria crítica não é uma simples perspectiva externa sobre os processos de

transformação que assumem os grupos sociais. Seu compromisso com a eman­

cipação (...) se integra no processo de transformação, ajudando os grupos a

interpretarem-se nas formas de dominação a que se encontram submetidos e a

vislumbrarem as possibilidades de ação que se lhes abrem.

Outros autores falam de uma reflexividade hermenêutica, compar­tilhada, solidária, comunitária. Trata-se de retomar a preocupação com as coisas e com as pessoas, nas práticas sociais cotidianas, em um mundo compartilhado, constituindo-se uma comunidade reflexiva de comparti­lhamento de significados (Lash, in Giddens, 1997). Pérez Gómez (1999: 39) parece expressar bem essa proposta:

(...) se aceitamos como fundamento do respeito às diferenças culturais o ca­

ráter histórico e contingente de toda formação cultural, não é difícil assumir

a exigência de utilizar esse mesmo fundamento para desmitificar o caráter

natural que pretendem adquirir alguns elementos internos da própria cultu­

ra, e aceitar pelo menos a possibilidade de que o intercâmbio conceituai,

experiencial e crítico, não meramente mercantil, entre as diferentes culturas

seja uma estratégia ou procedimento enriquecedor da própria bagagem cul­

tural. Esta é a tarefa fundamental das ciências humanas, o objeto da cultura

crítica ou cultura intelectual: promover a reflexão compartilhada sobre as

próprias representações e facilitar a abertura ao entendimento e experimen­

tação das representações alheias, distantes e distanciadas no espaço e no tem­

po. (...) Faz-se inevitável assumir a exigência de um processo de construção

compartilhada, a adoção de acordos, o intercâmbio de pareceres e interesses

e a busca de representações e valores comuns que permitam praticar proce­

dimentos consensuais.

Para Gimeno Sacristán (1998), entre o conhecimento e a ação in-troduz-se a mediação do sujeito, que atua com uma intencionalidade guiada por necessidades, desejos, emoções, que marcam seu pensa-

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PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 69

mento. Ou seja, entre a teoria e a prática intervém a subjetividade, portadora de uma cultura subjetiva, alimentada pela cultura social objetivada. As ações apresentam-se aos sujeitos como inteligíveis à consciência, de modo que o que fazemos tem a ver com o que pensa­mos, e vice-versa. A reflexividade consiste, precisamente, nesse pro­cesso de tomar consciência da ação, de tornar inteligível a ação, pen­sar sobre o que se faz.

Entretanto, diferentemente da reflexividade em Dewey, o primeiro saber que acompanha a ação não é o instrumental, é o que decorre de esquemas interiorizados de ação, de teorias subjetivas. Isso quer dizer que há, sim, uma relação entre o pensar e o atuar, mas esses atos são de natureza distinta. A prática é condição do conhecimento, mas isso não significa que frente a uma ação ou uma prática não haja esquemas men­tais prévios, adquiridos a partir do que vemos nos outros, do que os outros contam, o que vai constituindo o conhecimento sobre a ação. Não é só de prática que vivem os seres humanos, como também não só de teoria. Escreve Gimeno Sacristán (1998: 85):

É inerente à ação do agente que educa, um efeito de acumulação que facilita e economiza as atuações humanas ao longo da sua experiência de vida, de modo a não ter que partir do zero em cada experiência concreta. Empreendemos novas ações apoiados no saber fazer acumulado (conhecimento do como), com uma bagagem cognitiva sobre o fazer (conhecimento sobre) e com uma deter­minada orientação de que dá certa estabilidade (componente dinâmico, moti­vos estabilizados, valores etc) .

O autor argumenta que a principal característica do pensamento é o distanciamento dos fenômenos, precisamente para entendê-los melhor. Por essa razão, a proposta de refletir na ação dá muito poucas oportuni­dades ao pensamento.

O que fazemos é, ao invés disso, pensar sobre a ação possível ou a já realizada. (...) O que fica ressaltada é a quase impossível coexistência da reflexão sobre a prática enquanto se atua. (...) o distanciamento nos permitirá utilizar toda a cultura para racionalizar as ações, que é o que dá sentido à educação e à for­mação do professorado. (...) É míope a interpretação de que só os que estão atuando e são protagonistas de uma prática é que melhor podem elaborar conhecimento para a prática". (Gimeno Sacristán, 1998: 70)

Por essa razão, para Gimeno, os processos reflexivos devem incidir na fase prévia (planejamento) e posterior (revisão, crítica). A ligação

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teoria-prática, a reflexão e investigação na ação é uma metáfora, não significa refletir na ação. Portanto, a rigor, é melhor usar a expressão investigação sobre a ação do que investigação na ação, pois "na ação é tão difícil fazê-lo quanto seria inútil, por exemplo, alguém pôr-se a pensar quando está perdendo o equilíbrio ao atravessar o rio por uma passa­rela suspensa".

A partir destes posicionamentos, Gimeno apresenta três níveis de reflexividade. O Io nível corresponde a um distanciamento da prática para vê-la, entendê-la, avaliá-la. Refere-se ao mesmo tempo à prática e à apre­ensão cognitiva da prática, a partir do fazer cotidiano, do senso comum. O professor atua de acordo com suas teorias subjetivas (senso comum, re­presentações), ou seja, o pensamento do professor é o saber deduzido de suas ações. O 2o nível é o que incorpora a ciência ao senso comum, embora sem substituir o senso comum. O 3o nível é a reflexão sobre as práticas da reflexão, a meta-reflexividade, tarefa para a qual a pedagogia e as ciências da educação têm um papel crucial, pois que se trata de pensar as caracte­rísticas dos dois níveis anteriores de reflexividade.

Esta breve menção de vários entendimentos de reflexividade — e, certamente, há outros — possibilita um cotejamento com as premissas teóricas que dão suporte à visão pragmática de reflexividade, levando a mirarmos outras possibilidades teóricas e práticas de inserção da reflexividade no trabalho formativo de professores.

Uma concepção crítica de reflexividade que se proponha ajudar os professores no fazer-pensar cotidiano ultrapassaria a idéia de os sujeitos da formação inicial e continuada apenas submeterem à reflexão os pro­blemas da prática docente mais imediatos. A meu ver, os professores deveriam desenvolver simultaneamente três capacidades: a primeira, de apropriação teórico-crítica das realidades em questão considerando os contextos concretos da ação docente; a segunda, de apropriação de me­todologias de ação, de formas de agir, de procedimentos facilitadores do trabalho docente e de resolução de problemas de sala de aula. O que destaco é a necessidade da reflexão sobre a prática a partir da apropria­ção de teorias como marco para as melhorias das práticas de ensino, em que o professor é ajudado a compreender o seu próprio pensamento e a refletir de modo crítico sobre sua prática e, também, a aprimorar seu modo de agir, seu saber-fazer, internalizando também novos instrumen­tos de ação. A terceira, é a consideração dos contextos sociais, políticos, institucionais na configuração das práticas escolares.

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A apropriação teórica da realidade implica o desenvolvimento dos processos do pensar em relação aos conteúdos. Sabe-se que são consi­deráveis as deficiências do professorado em relação ao aprender a pen­sar,6 de modo que eles próprios necessitam dominar estratégias de pensar e de pensar sobre o próprio pensar. Tais questões levam as instituições formadoras a perguntas como: Como ajudar os professores a se apro­priarem da produção de pesquisa sobre educação e ensino? Como potencializar a competência cognitiva e profissional dos professores? Como enriquecer as experiências de aprendizagem de modo a que os futuros professores aprendam a pensar? Como introduzir mudanças nas práticas escolares, partindo da reflexão sobre a ação? Que ingredi­entes do processo de ensino e aprendizagem (e que integram, também, as práticas de formação continuada em serviço) levam a promover uma aprendizagem que modifica o sujeito e o torna construtor de sua pró­pria aprendizagem?

Se quisermos que o professor trabalhe numa abordagem sociocons-trutivista, e que planeje e promova na sala de aula situações em que o aluno estruture suas idéias, analise seus próprios processos de pensa­mento (acertos e erros), expresse seus pensamentos, resolva problemas, numa palavra, faça pensar, é necessário que seu processo de formação tenha essas características. Parece claro que às inovações pedagógico-didáticas introduzidas no ensino das crianças e jovens correspondam mudanças na formação inicial e continuada de professores.

Por sua vez, a apropriação de instrumentos de ação supõe a idéia de que o professor desenvolve uma atividade prática, prática no sentido de envolver uma ação intencional marcada por valores. O professor pode aprimorar seu trabalho apropriando-se de instrumentos de mediação desenvolvidos na experiência humana. Não se trata de voltar ao tecnicismo, mas de associar de modo mais eficaz o modo de fazer e o

6. Ensinar a pensar, aprender a pensar, são expressões que uso no sentido que lhes pode ser atribuído na teoria histórico-cultural de Vigotski, de que a escola é uma mediação cultural de significados. A escolarização significa a apropriação de significados sociais com sentido pessoal e, para que isso ocorra, é preciso aprender a pensar, é preciso propiciar o desenvolvi­mento cognitivo. Em outras palavras, o processo de internalização de significados requer a aprendizagem do pensar. Além disso, não haveria nenhuma impropriedade em incluir, nessa mesma abordagem, o aprender a aprender, como elemento do apreender a pensar. O apren­der a aprender, cujo pleno sentido é saber buscar informação, é desenvolver autonomia de pensamento, desenvolver recursos próprios para uma educação continuada, não tem apenas o sentido excluído que muitos críticos lhe atribuem de uma forma mecanizada de aprender, tipo algoritmo.

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princípio que lhe dá suporte. Segundo Feldman, não se trata de acredi­tar que novas teorias ou bons princípios levam, necessariamente, a mu­danças na prática nem que a revisão das práticas aconteça por um traba­lho de reflexão sistemática.

(Uma abordagem instrumental)7 sustenta que novas compreensões serão pos­síveis, desde que os princípios básicos estejam expressos em instrumentos adequados e possam ser utilizados em um ambiente significativo, sustentado pela participação de pessoas com diferentes graus de conhecimento e opera­ção desse tipo de tarefa e de seus fundamentos. (Feldman, 2001:111)

Em relação aos contextos políticos, sociais, institucionais, há que se considerar que não se trata apenas de buscar os meios pedagógico-didá-ticos de melhorar e potencializar a aprendizagem dos professores pelas competências do pensar, mas também de fazer leitura crítica da realida­de. E preciso associar o movimento do ensino do pensar ao processo da reflexão dialética de cunho crítico. Pensar é mais do que explicar e, para isso, as instituições precisam formar sujeitos pensantes, capazes de um pensar epistêmico, ou seja, sujeitos que desenvolvam capacidades bási­cas em instrumentação conceituai que lhes permitam, mais do que saber coisas, mais do que receber uma informação, colocar-se frente à realida­de, apropriar-se do momento histórico de modo a pensar historicamente essa realidade e reagir a ela.

3. Considerações finais sobre reflexividade e desenvolvimento profissional de

professores

Não se trata, certamente, de descartar a ênfase na capacidade refle­xiva dos seres humanos inclusive no campo profissional. Nem seria sen-

7. Aos leitores que estariam vendo nisto uma recaída tecnicista, Feldman alerta que é possível propor um enfoque instrumental que não seja tecnicista, desde que instrumental seja entendido como o desenvolvimento de meios para obtenção de algum objetivo. Isso pode ser feito na ótica da racionalidade instrumental e todo o seu caráter de suporte técnico no âmbito do capitalismo, mas pode ter um sentido psicológico de instrumentalidade. "Este enfoque sugere que é possível aumentar nossa capacidade para uma prática mais consciente, racional e autônoma mediante processos significativos, assentados em uma recriação das possibilida­des através da busca e da utilização prática de instrumentos didáticos (modelos de ensino, estratégias, técnicas específicas etc). Defendo que um enfoque instrumental não é tecnicista porque recupera a dimensão prática da tarefa de ensino e a deliberação prática em âmbitos coletivos".

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sato ignorar as possibilidades de enriquecimento teórico e para a pes­quisa propiciadas pelos autores do "programa reflexivo". Todavia, seria temerário acreditarmos que estamos frente a uma nova teoria do ensino ou da aprendizagem baseada na reflexão ou diante da grande solução para a formação de professores, seja porque a noção de reflexividade de forma alguma é nova, seja porque os aportes teóricos são insuficientes para constituir-se numa teoria de ensino, seja, ainda, porque, do ponto de vista didático, carece de um conteúdo que abranja toda a complexi­dade das relações entre ensino e aprendizagem.

A reflexividade se insere como um dos elementos de formação pro­fissional dos professores, e quase sempre pode ser compreendida como um processo articulado de ação — reflexão — ação, modelo esse que carrega consigo uma forte tradição na teoria e na ação. Os professores aprendem sua profissão por vários caminhos, com a contribuição das teorias conhecidas de ensino e aprendizagem e inclusive com a própria experiência. O aprender a ser professor, na formação inicial ou continua­da, se pauta por objetivos de aprendizagem que incluem as capacidades e competências esperadas no exercício profissional de professor. Penso que o melhor programa de formação de professores seria aquele que con­templasse melhor, no currículo e na metodologia, os princípios e proces­sos de aprendizagem válidos para os alunos das escolas comuns. Em outras palavras, os mesmos processos e resultados que devêssemos es­perar da formação geral dos alunos das escolas regulares deveriam ser conteúdos da formação de professores. Nesse sentido, o princípio domi­nante na formação não seria, em primeiro lugar, a reflexão mas a ativi­dade de aprender, ou melhor, a atividade pensada de aprender, com todos os desdobramentos que isso implica em termos de teorias do ensi­no e da aprendizagem. O que sugiro a seguir é apenas o esboço de uma opção de estudos mais aprofundados sobre a questão da reflexividade, no quadro da teoria histórico-cultural da atividade. Mais especifica­mente, a aposta é de que as concepções de ensino e aprendizagem de orientação vigotskiana, associada às teorias da ação e da cultura, po­dem trazer sólidos princípios de práticas educativas aplicadas à for­mação de professores.

A busca de uma teoria mais abrangente para se pensar a formação profissional evitará a estabilização dos educadores em visões reducio-nistas. Considerará a reflexividade que se reporta à ação mas não se con­funde com a ação; a um saber-fazer, saber-agir impregnados de reflexividade, mas tendo seu suporte na atividade de aprender a profis­são; a um pensar sobre a prática que não se restringe a situações imedia-

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tas e individuais; a uma postura política que não descarta a atividade instrumental.

A afirmação dessas crenças não distoa de posicionamentos de outros autores em busca de uma visão de conjunto do trabalho docente. Há anos Candau (1983) ressaltava a multidimensionalidade do processo de ensino e aprendizagem, articulando-se nele as dimensões humana, técnica e polí­tico-social. Recentemente, Hadji (2001) atribuiu ao professor-educador três intenções: um desejo de educar o aluno para certos valores, um saber que, espera-se seja bom para quem é educado, uma competência para intervir eficazmente no processo educativo. Rios (2001) propõe quatro dimensões da competência profissional de professores; a técnica, a política, a ética e a estética. A técnica é o suporte da competência porque ela se revela na ação dos profissionais, na forma de se fazer algo. Mas a técnica precisa ser ferti­lizada por objetivos, valores, compromissos coletivos (dimensão ética e política) e pela sensibilidade e criatividade (dimensão estética).

Estamos, pois, buscando práticas de formação que considerem, ao menos, quatro requisitos: uma cultura científica crítica como suportes teóricos ao trabalho docente; conteúdos instrumentais que assegurem o saber-fazer; uma estrutura de organização e gestão das escolas que pro­picie espaços de aprendizagem e de desenvolvimento profissional; uma base de convicções ético-políticas que permita a inserção do trabalho docente num conjunto de condicionantes políticos e socioculturais.

A teoria sódo-histórica da atividade, com a contribuição dos recentes estudos sobre teorias da ação e da cultura, permite juntar esses componen­tes da prática do professor num todo harmônico. Ela possibilita compreen­der a formação profissional de professores a partir do trabalho real, a partir das práticas correntes no contexto de trabalho e não a partir do trabalho prescrito, tal como aparece na visão da racionalidade técnica e tal como aparece também na concepção de senso comum que se tem sobre formação que ainda vigora fortemente nas escolas e nas instituições formadoras.

A teoria da atividade histórico-cultural foi, em suas bases, formula­da por Vigotski e desenvolvida por Leontiev e Luria, que cunharam o conceito da ação orientada a um objetivo e mediada por instrumentos. Vigotski desenvolveu a conhecida idéia do caráter mediado das funções psicológicas humanas, enquanto Leontiev acrescentou a idéia de media­ção por outros seres humanos e pelas relações sociais.

Mediado por ferramentas, o trabalho é também executado por meio de ativi­dades conjuntas, coletivas. Somente por meio da relação com outras pessoas o

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homem pode se relacionar com a própria natureza, o que leva a que o trabalho surja, desde o seu início, como um processo mediado por ferramentas e, ao mesmo tempo, mediado socialmente. (Leontiev, in Zamberlan, 2000: 2).

Segundo Vigotski, a educação é um processo de apropriação de sig­nos culturais. Estes seriam "instrumentos psicológicos" que ajudariam os indivíduos a organizar seu comportamento e suas ações, através do processo de internalização (Vigotski, 1984). Para Leontiev, a reflexão mental nos seres humanos está ligada ao processo da atividade orienta­da para um objetivo e mediada por esse processo.

A importância deste modelo é que ele acentua a primazia da apren­dizagem pela atividade, mas entendendo que ela ocorre mediante a assi­milação da experiência sociocultural e a atividade coletiva dos indivíduos e mediante um processo de internalização. O tornar-se professor é uma atividade de aprendizagem e, para isso, são requeridas capacidades e ha­bilidades específicas. A atividade de aprendizagem estaria ligada aos fa-zeres que seriam o suporte do desenvolvimento do pensamento teórico. Bruner (2001:146) acrescenta sobre isso algumas idéias interessantes.

(...) a mente humana constitui uma extensão das mãos e das ferramentas que

você utiliza e das funções às quais você as aplica. (...) Freqüentemente sabe­

mos fazer as coisas muito antes de conseguirmos explicar conceitualmente o

que estamos fazendo ou, normativamente, por que deveríamos estar fazendo-as.

(...) O trabalho ou a atividade, ou, de maneira geral, a prática, fornece um

protótipo de cultura.

Entendo que Bruner quer dizer que a cultura fornece "as coisas" (ferramentas, práticas, modos de agir) que mobilizam nossa atividade cognitiva e nosso desenvolvimento cognitivo e que "nossas formas de fazer as coisas habilmente refletem formas implícitas de se afiliar à cul­tura que muitas vezes vão além do que "sabemos" de forma explícita.

Também Bourdieu tem uma contribuição sobre essas formas de interiorização de conceitos, modos de agir, habitus, que são predominan­tes na sociedade em que os sujeitos vivem, acentuando a noção de cultu­ra como prática implícita, tácita, e não apenas como algo já consolidado como princípios, teorias, regras.

Para finalizar, o que se está querendo mostrar é que será útil aos pesquisadores, aos formadores de professores, às instituições formado­ras e aos professores da linha de frente do sistema escolar apostar nas vantagens de um posicionamento mais abrangente sobre a formação de

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professores. O "programa reflexivo" vem trazendo aportes valiosos para a pesquisa como a recusa do professor meramente técnico, a afirmação da prática docente como uma ação consciente e deliberada, a correspon­dência entre teoria e prática nas ações cotidianas, a aceitação da existên­cia de pressupostos interpretativos e valorativos na atuação e nas deci­sões profissionais. Mas é preciso alargar esse campo de preocupações, especialmente naqueles aspectos que vimos acentuando.

Há que se considerar, sem dúvida, a importância da formação teó­rica, de uma cultura crítica, e aqui já se apresenta um dos sentidos da reflexividade. A escola é um dos lugares específicos do desenvolvimen­to da razão, portanto, de desenvolvimento da reflexividade. Adquirir conhecimentos, aprender a pensar e agir, desenvolver capacidades e com­petências, implica sempre a reflexividade. Mas, principalmente, a escola é lugar da formação da razão crítica através de uma cultura crítica, para além da cultura reflexiva, que propicia a autonomia, autodeterminação, condição de luta pela emancipação intelectual e social. Tanto em relação ao professor crítico reflexivo, ao prático reflexivo ou ao intelectual críti­co, penso que não chegaremos a lugar nenhum sem o desenvolvimento de capacidades e competências8 do pensar — raciocínio, análise, julga­mento. Se queremos um aluno crítico reflexivo, é preciso um professor crítico reflexivo.

Em segundo lugar, deve-se considerar que o trabalho de professor é um trabalho prático, entendido em dois sentidos, o de ser uma ação ética orientada para objetivos (envolvendo, portanto, reflexão) e o de ser uma atividade instrumental adequada a situações. A reflexão sobre a prática não resolve tudo, a experiência refletida não resolve tudo.9 São necessárias estratégias, procedimentos, modos de fazer, além de uma sólida cultura geral, que ajudam a melhor realizar o trabalho e melhorar a capacidade reflexiva sobre o que e como mudar.

8. Utilizo-me aqui das definições de capacidade e competência de Ph. Meirieu: "chamamos capacidade uma operação mental estabilizada e reprodutível em diversos campos de conheci­mento; e competência um saber identificado colocando em jogo uma ou mais capacidades em um campo determinado e dominando os materiais de que se serve" (Meirieu, 1998:17).

9. Em outro livro, eu apontava a seguinte observação a esse respeito: "é preciso certa cautela quanto à valorização do pensamento e do saber de experiência do professor, para não ocorrer uma recaída no populismo pedagógico em que se quer descobrir uma 'essência' de professor, na sua cotidianeidade, na sua experiência, na sua ingenuidade, insegurança, infeli­cidade... atendo-se exclusivamente ao mundo de sua experiência corrente, sem ajudá-lo a to­mar consciência de suas práticas (muitas delas inadequadas) e a desenvolver as competências necessárias para o desenvolvimento profissional. Aí é que se destaca o papel da teoria, não como direção da prática, mas como apoio à reflexão sobre a prática" (Libâneo, 2000).

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Terceiro, o trabalho de professor ocorre num marco institucional, por sua vez inserido em contextos políticos e socioculturais. Para isso, é preciso nos perguntarmos: quais são as condições prévias e meios — por exemplo, estruturas de organização e gestão, ações de assistência peda­gógica ao professor, espaços de reflexão etc. — para que um professor se torne crítico reflexivo de sua atividade? Ou seja, o desenvolvimento de capacidades e competências reflexivas implica um tratamento de con­junto da vida escolar, articulando eficazmente estruturas de gestão e or­ganização com ações de formação continuada, projeto pedagógico-curricular, currículo, avaliação, associando, na formação continuada, práticas formativas e situações reais e trabalho, constituindo a cultura organizacional.10

Os três ingredientes se completam com uma visão crítica da reali­dade, que significa considerar os determinantes políticos e socioculturais, não apenas no sentido externo de que as decisões tomadas na escola e nas salas de aula são decisões "políticas", mas também no sentido interno de que as próprias práticas de ensino, de gestão, de convivência, são políti­cas. Nesse sentido, para além de uma reflexividade cognitiva, é preciso a reflexividade comunitária, a reflexividade compartilhada, num esforço de instaurar nas escolas uma prática de gestão e convivência lastreada na construção de significados e entendimentos compartilhados a partir das diferenças e da busca de valores universais comuns.

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TENDÊNCIAS INVESTIGATIVAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES*

José Gimeno Sacristán**

Inicialmente desejo fazer três advertências ou expressar três sus­peitas. A primeira é de que os professores trabalham, enquanto nós faze­mos discursos sobre eles. Não falamos sobre a nossa própria prática mas sobre a prática de outros que não podem falar, que não têm capacidade de fazer discursos. Esta situação sociológica, política e epistemológica pode ser uma explicação do que tem sido a investigação sobre professo­res. A segunda advertência é de que não é possível falar sobre professo­res, porque entre minha pessoa e um professor do ensino fundamental há muito poucas semelhanças. Diz-se que fazemos o mesmo tipo de tra­balho, mas, na realidade, fazemos coisas muito diferentes, a preços mui­to diferentes, com status muito distintos, com poderes muito diferentes. Isso quer dizer que o fato de o professor da universidade falar sobre o professor em geral, que quase sempre é o professor do ensino funda­mental, é algo suspeito. A terceira advertência: quando consultamos os repertórios bibliográficos da produção científica em revistas e catálogos que editam livros sobre nossa especialidade, encontramos o professora­do como um dos temas de investigação preferidos. Isso é algo que não costuma ocorrer com os militares que não investigam sobre os coronéis,

* Texto de exposição oral apresentada pelo autor na 19a Reunião Anual da ANPEd, Caxambu-MG, setembro de 1996. Transcrição de gravação e tradução de José Carlos Libâneo. A publicação da tradução foi autorizada pelo autor. Texto originalmente publicado na Inter-Ação. Revista da Faculdade de Educação da UFG, Goiânia, 25(2), jul.-dez. 2000.

** Professor da Universidade de Valencia — Espanha.

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nem com o corpo médico que não costuma investigar sobre os médicos. E algo que não ocorre, também, com os sacerdotes que investigam sobre Deus e não sobre os sacerdotes. Isto implica um juízo muito crítico de minha parte a respeito da investigação sobre o professorado. Suspeito que a maior parte da investigação sobre a formação dos professores é uma investigação enviesada, parcial, desestruturada e descontextuali-zada, que não entra na essência dos problemas.

Essas considerações fornecem as senhas para eu falar do estado da questão em relação à investigação sobre formação de professores. A si­tuação atual da formação e da investigação sobre a formação de profes­sores se caracteriza por dois grandes traços, duas grandes tendências, a pós-positivista e a pós-weberiana.

Como sabem, o pós-positivismo vem depois do positivismo. Positivismo que primeiro foi condutista ou behaviorista, que depois foi cognitivo, e que hoje é dominantemente cognitivista. O pós-positivismo formula alguns juízos bastante aceitos sobre a prática pedagógica. Um dos principais é o de que da "ciência" pedagógica não se pode deduzir a técnica da prática pedagógica. O pós-positivismo nega a possibilidade de que da ciência se deduza a técnica educativa. Quer dizer, a prática educativa não pode ser técnica pedagógica, porque não está baseada no conhecimento científico e — serei muito mais agressivo — não pode es­tar baseada no conhecimento científico. A prática pedagógica é uma práxis, não uma técnica. E investigar sobre a prática não é o mesmo que ensinar técnicas pedagógicas.

O xpós-positivismo apresenta-se em metáforas muito atraentes, como a de converter os professores em profissionais reflexivos, em pes­soas que refletem sobre a prática, quando, na verdade, o professor que trabalha não é o que reflete, o professor que trabalha não pode refletir sobre sua própria prática, porque não tem tempo, não tem recursos, até porque, para sua saúde mental, é melhor que não reflita muito... Tem-se, pois, a elaboração da metáfora reflexiva, que é a metáfora com mais cotação no mercado intelectual da investigação pedagógica atualmen­te. E dar importância à metáfora reflexiva significa reconhecer que, se com a reflexão busco a prática, é porque a ciência não a pode me dar. Esta afirmação deveria levar-nos a pensar, a nós que acreditamos estar fazendo ciência.

Outra metáfora bastante bonita, muito agradável, tem sido a do professor investigador em aula, do pedagogo europeu L. Stenhouse: o professor como alguém que indaga, que "busca" em seu próprio âmbito

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de trabalho. Há outras metáforas, meio cognitivas, meio políticas, como a do professor intelectual, do professor mediador do currículo, do pro­fessor autônomo, independente, político-crítico... Todas elas coincidem em um princípio que caracteriza a situação atual: não há conhecimento firme, seguro, que possibilite uma prática correta, porque a prática deve ser inventada pelos práticos. Quer dizer, a prática não pode ser inventa­da pela teoria, a prática é inventada pelos práticos. O problema é saber o papel que cumpre a teoria na invenção da prática. Além disso, é preciso atentarmos para o fato de que são metáforas criadas pelos que elaboram discursos sobre educação, não pelos que estão trabalhando as práticas em educação.

O segundo grande traço da investigação pedagógica sobre os pro­fessores poderia se caracterizar como pós-weberiano, que aborda a crise do pensamento sobre as grandes organizações, a crise de concepção dos sistemas educativos como unidades coerentes e racionais, a crise de que há uma pirâmide já estabelecida que serve para propagar as idéias, as políticas e as inovações, e este modelo weberiano está em crise há algum tempo e, sobretudo, foi acentuado com o neoliberalismo e nas práticas de privatização. A racionalidade do sistema organizativo-educativo não existe como unidade, isoladamente; existe nos centros escolares. Os pro­fessores genericamente considerados não existem, existem as comuni­dades educativas, existem os professores colaborando entre si, como membros de uma comunidade em parte profissional, em parte mística, em parte política.

A descentralização educativa obriga a parcelar o corpo docente e os países que estão descentralizando vêm rompendo as estruturas organizativas do professorado como unidades profissionais reivindicativas e de pensamento. E a entrada do mercado na educação tem roubado, subtraído, a capacidade de racionalização que poderiam ter os professores para dá-las aos consumidores. Na ideologia do merca­do, quem manda não é a ciência e sim, o gosto do consumidor. E o pro­fessor se converte num produtor que faz o que manda o mercado, não o que manda a ciência.

Daí que existam duas grandes correntes, a pós-positivista e a pós-weberiana ou pós-política, como quiserem. Existe um grande enfrenta-mento entre o discurso elaborado pelo pós-positivismo e a realidade flagrada pelo pós-weberianismo e as políticas de privatização. Dá-se uma situação paradoxal, lamentável: no momento em que são divulgadas as mais belas metáforas sobre professores, estes se encontram em situações

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laborais, pessoais e de formação bem piores do que já estavam. Os pro­fessores não' têm uma profissão em ascensão na sociedade atual, nem nos países mais desenvolvidos e nem naqueles em desenvolvimento (em­bora não seja uma forma politicamente correta falar na atualidade em povos subdesenvolvidos). A investigação educativa tem se preocupado com os discursos e não com a realidade que flagra a realidade profissio­nal na qual trabalham os professores e as suas condições de trabalho.

Para avançar um pouco dentro do escasso tempo que temos, pro­porei uma alternativa ao pós-positivismo e ao pós-weberianismo. E uma alternativa que não é nada útil, nada prática, porque creio que do pensa­mento não se deduzem técnicas. Sendo assim, não quero que pensem que do meu pensamento possa se tirar uma solução. Serei coerente com algumas premissas da visão pós-moderna do conhecimento científico.

A linha que me parece mais conveniente percorrer é a do paradig­ma do senso comum. Não é esse o mais comum dos paradigmas e nem o mais fácil de divulgar. Não me refiro ao sentido vulgar da expressão senso comum, mas ao sentido que na trajetória ocidental da filosofia lhe foi dado por filósofos como Tomás de Aquino, Vico e, na atualidade, Gadamer, para os quais senso comum é o sexto sentido que caracteriza o homem e a mulher inteligentes, sábios, atinados, cultos, intuitivos. Refi­ro-me, assim, a um senso comum bastante culto e não, a um vulgar.

Creio que elaboraríamos um discurso mais coerente com a realida­de prática dos professores se partíssemos de alguns princípios deriva­dos da Filosofia da Ação e da Sociologia da Ação, idéia de um senso comum culto. Apresentarei a seguir seis princípios.

• O primeiro ponto de reflexão neste entendimento de senso comum: dadas as características laborais, dadas as condições de trabalho dos atuais professores, os sistemas de formação não podem atrair os me­lhores produtos do sistema educativo e da sociedade. Já se disse que o drama da educação é que ela não pode aproveitar os melhores indiví­duos que saem do sistema educativo para util izá-los como reprodutores da cultura no sistema educativo. Os melhores titulados, ao menos em meu país, não costumam seguir os estudos de formação do professorado. Com isso, de um ponto do vista estritamente social, as condições de formação nunca serão as melhores possíveis como podem ser os estudos de medicina, de leis etc. Portanto, em relação à profissionalização dos professores, é um handicap com o qual se preci­sa contar, do contrário vem a desesperança.

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• Ninguém pode dar o que não tem. E se os professores não cultivam a cultura, não podem dar cultura; se eles não a possuem em profundi­dade, não podem ensiná-la sequer nos níveis mais elementares. E so­bre este princípio elementar há muito pouca investigação. Não tem ocorrido aos pesquisadores analisar os conteúdos culturais dos pro­fessores para fazer investigação útil ao professorado. O aspecto práti­co que se deduz dessa constatação é evidente. Em primeiro lugar, se os professores não são bons profissionais, é preciso que sejam mais bem pagos, mais considerados. Em segundo lugar, se eles não podem dar o que não têm, é preciso, antes de mais nada, que sejam cultos, para poderem oferecer cultura.

• O terceiro princípio desta lista elementar do senso comum, de acordo com a Filosofia da Ação, enuncio assim: nós todos atuamos na prática de acordo com o que pensamos, mas de uma maneira imperfeita. É o que se poderia chamar o Io nível da reflexividade, para usar um termo bem atual e que está na moda em determinados âmbitos acadêmicos. Atuamos de acordo com o que pensamos. Mas, atenção: o pensamen­to não é a mesma coisa que a ciência, os conteúdos do nosso pensa­mento não são os conteúdos da ciência. É necessário distinguir o "pen­sar" da ciência. E assim, porque os conteúdos do pensamento se de­vem à cultura-raiz da qual provém o professorado, não à ciência. Pen­sar é algo muito mais importante para os professores do que assimilar ciência, porque pensar é algo muito mais complexo do que transmitir ciência. Pressupondo que nem sequer as coisas que fazemos são ciên­cia. No melhor dos casos, são disciplinas científicas, não ciência. Mas, em qualquer caso, creio que o professor pensa não de acordo com a ciência, mas conforme sua cultura.

• Em quarto lugar, farei uma afirmação forte: ainda que o pensamento não seja a ciência, pode-se pensar através da ciência, ela pode servir para pensar. A ciência pode ajudar o pensamento dos professores, mas transmitir-lhes a ciência não eqüivale a que pensem de maneira dife­rente. O grande fracasso da formação de professores está em que a ciência que lhes damos não lhes serve para pensar. Entretanto, a ciên­cia pode ajudar-nos a pensar. Isto diz respeito ao 2 o nível de reflexividade, que ocorre quando a reflexão de alguém muito culto, o cientista, ajuda a reflexão de alguém que realiza um trabalho com menor grau de exigência.

• O quinto princípio diz que o pensamento não explica a ação, o pensa­mento é parte da ação, mas não é toda a ação. A idéia de que apenas

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pensamos quando agimos é uma característica do racionalismo oci­dental, do cientificismo e do positivismo científico. Mas o pensamen­to não se reduz à ação. Os professores, por mais que pareça estranho, são pessoas que sentem e querem... não só pensam. Esta é uma verda­de muito elementar que tem uma profunda tradição filosófica ociden­tal. Recordemos que, na Odisséia de Homero, Ulisses quis ser atado à vela de seu barco para não sucumbir ao canto das sereias, apesar de ele saber que não devia fazer caso de que as sereias cantassem. O após­tolo São Paulo, na epístola aos romanos, dizia: "sei o que devo fazer, faço o mal, conheço o mal e o faço". A Filosofia da Ação e a Psicologia Profunda têm mostrado, ao longo do século XX, que fazemos coisas que não queremos, como fazemos coisas sem saber por que as faze­mos. Foi Hannah Arendt, entre outros autores, que sintetizou essa idéia de que a vontade é a grande faculdade esquecida da filosofia ociden­tal, vítima do racionalismo estreito, parcial. Isso quer dizer que deve­mos dar bastante importância aos motivos de ação do professorado, pois temos educado as mentes mas não o desejo, não educamos a von­tade. Damos conhecimentos, mas não educamos os motivos. Para edu­car é preciso que se tenha um motivo, um projeto, uma ideologia. Isso não é ciência, isso é vontade, é querer fazer, querer transformar. E querer transformar implica ser modelado por um projeto ideológico, por um projeto de emancipação social, pessoal etc. Os motivos, as motivações do professorado têm sido um capítulo ausente da forma­ção de professores e da investigação sobre a formação de professores.

• O paradigma do senso comum diz que o saber-fazer, o "como", não é uma derivação só do conhecimento, adquirido na formação ou no pro­cesso de formação, mas se deve à matriz cultural da qual provém o professor. Isso quer dizer que eu, para dizer o que estou dizendo ago­ra, não necessito estudar o professorado. Necessito, sim, saber me co­municar com vocês, manejar a linguagem, as idéias, ser respeitoso com vocês, falar o mais claro possível. E algo que procede do bom senso, da "sensatez". Por exemplo, o pai, a mãe, educam seus filhos e, no entanto, não freqüentam nenhuma faculdade de educação. E al­guns pais fazem isso bastante bem. Cada cidadão é capaz de ajudar seus semelhantes sem saber "como" fazê-lo. Como disse M. Larson, a forma de ser dos professores é uma forma de comportamento cultu­ral, não uma forma adquirida nos cursos de formação. Isto significa que é muito importante atender às raízes culturais das quais se nu­trem os professores, para entender como atuam e por que atuam e como queremos que atuem. O fato de a professora ser mulher intro-

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duz um viés na profissão docente. O fato de a professora ser da raça negra também etc. Não digo que isso seja negativo ou positivo, mas um viés. Isso quer dizer que o professor, antes de mais nada, é uma pessoa de uma cultura que, quando é culta, ensina muito melhor. E dizer que um professor se nutre das raízes culturais e não da ciência nos obriga a considerar os ambientes de aprendizagem, os contextos nos quais eles surgem, as condições de trabalho em que vai trabalhar.

Para concluir, minha filosofia em relação à investigação sobre a for­mação de professores se resume em três pontos:

1. Um racionalismo moderado, porque ainda creio na modernidade, no pensamento e na verdade provisional, na ciência provisional, no va­lor do argumento — mas creio que temos de ser moderados.

2. Educar não só a razão mas também o sentimento e a vontade. Recor­dem a máxima de Gramsci: para que a inteligência seja pessimista é preciso o otimismo da vontade. A vontade pode transformar monta­nhas, quando é forte, bem enraizada e é auxiliada pela inteligência.

3. A formação do professor deve considerar o significado do que P. Bourdieu discutiu há muito tempo, o habitus, como forma de integração entre o mundo das instituições e o mundo das pessoas. O habitus em educação é mais importante do que a ciência e do que os motivos. O habitus é cultura, é costume, é conservadorismo, mas é, também, con­tinuidade social e, como tal, pode produzir outras práticas diferentes das existentes.

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Bernard Charlot**

Vou organizar a minha fala dando algumas indicações de minha trajetória, mas rapidamente, porque o que importa, o que pode ser inte­ressante saber, é que fiquei anos fazendo de conta que formava professo­res. Não é por acaso que estou dizendo "fazendo de conta", porque não é tão fácil formar professores. E não é porque não sabemos formar que não é tão fácil, mas porque não sabemos o que é exatamente o professor, ou o que é exatamente o ofício do professor. Formar o professor sem termos uma definição precisa de seu trabalho é muito difícil. Depois entrei na universidade e, numa equipe de pesquisa, tive a oportunidade de refle­tir mais sobre a questão das relações entre a formação e a pesquisa. O centro das minhas pesquisas não é a formação de professores, é a ques­tão da relação com o saber, da relação com a escola — questão relaciona­da com a formação de professores.

Falarei sobre três pontos. Em primeiro lugar, vou partir de uma situação e de uma reflexão: por que a pesquisa educacional não entra na sala de aula? Acho que esta é a situação de fato. Em segundo lugar, que­ro refletir sobre um problema que sempre é mal colocado: a questão da

* Palestra proferida pelo professor Bernard Charlot, no auditório da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 28.3.2001, como atividade de­senvolvida no âmbito da área temática de "Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares", sob a coordenação da professora Selma Garrido Pimenta. Transcrição e revisão do material: Jany Elizabeth Pereira e Vera Tachinardi Mizurini.

** Professor da Universidade de Paris VIII.

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relação entre a teoria e a prática. Acho que este problema é muitas vezes mal interpretado e gostaria de refletir sobre ele. E, por fim, falar sobre as relações entre as práticas dos alunos, porque, a meu ver, o ponto central não são as práticas dos professores, são as práticas dos próprios alunos. Terminarei falando das relações entre as práticas dos alunos, as práticas dos docentes, e também a questão das estruturas e das políticas educa­cionais — estes três pontos relacionados entre si.

Começo com a consideração de que a pesquisa educacional não entra ou pouco entra na sala de aula, pois os professores, na verdade, estão se formando mais com os outros professores dentro das escolas do que nas aulas das universidades ou dos institutos de formação. Os professores costumam dizer que a pesquisa não serve para eles e pensam, muitas vezes, que tudo isso é complicado, chato e, muitas vezes, mentira — é o que eles dizem.

Existe assim, na realidade, um afastamento muito importante entre a sala de aula e a pesquisa educacional. Vale a pena refletir sobre as dife­renças estruturais entre pesquisa e sala de aula que permitem melhor entender por que a pesquisa não pode ser aplicada à sala de aula. Um modelo de pesquisa educacional não serve para entender as relações entre a pesquisa e o dia-a-dia da sala de aula. Por quê? Por várias razões.

Em primeiro lugar, a pesquisa ocupa-se de certos aspectos do ensi­no, e o ensino é um ato global e contextualizado. Assim, nunca a pesqui­sa pode abranger a totalidade da situação educacional. Esta é uma pri­meira diferença. Em segundo lugar, a pesquisa faz análise, é analítica; o ensino visa a metas, objetivos; o ensino tem uma dimensão axiológica, uma dimensão política; o ensino está tentando realizar o que deve ser, a pesquisa não pode dizer o que deve ser. Acho que muitos pesquisado­res, inclusive no Brasil... (seria falta de cortesia dizer "sobretudo no Bra­sil"), tomam-se como juizes supremos da verdade política. O pesquisa­dor não pode fazer isso, é contra a democratização. Muitas vezes, digo ao meu estudante: "Quem te elegeu o porta-voz do povo?"', "Quem te permite dizer a verdade do povo?".

Não se pode misturar um discurso político e um discurso científico. E muito perigoso, inclusive ideologicamente, porque tomar as questões políticas como verdades científicas é dar uma versão muito perigosa para a democracia. Assim, há uma diferença estrutural entre um ato pedagó­gico, o ato de ensino, que sempre tem uma dimensão política, e a pesqui­sa, que deve ser mais prudente, que deve analisar o que é e não pode dizer o que deve ser. Muitas vezes digo aos estudantes: "Vocês montam

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uma bola de cristal vara dizer o futuro ou vara fazer profetismo". Esta é uma segunda diferença estrutural. Uma terceira diferença: o docente está se defrontando com uma urgência, a de ser professor, e esta é uma das prin­cipais características da profissão do professor. Ser professor é defron­tar-se incessantemente com a necessidade de decidir imediatamente no dia-a-dia da sala de aula. Uma coisa está acontecendo na sala de aula e o professor tem que decidir sem ter tempo suficiente para refletir. E, de­pois de decidir na urgência, ele tem que assumir as conseqüências da decisão, de seus atos. Esta é uma das principais dificuldades do trabalho do professor no dia-a-dia da sala de aula. A pesquisa não pode dar inte-ligibilidade a todas as mínimas ações da vida do professor na sala de aula. Por essas diferenças estruturais tão grandes, acho que ninguém tem o direito de dizer ao professor o que ele deve ser na sala de aula; a pes­quisa não pode dizer o que o professor deve ser na sala de aula.

O pesquisador ou o professor da universidade está dizendo "Eu posso provar"; se ele pode provar, mostrar que é possível, deve dizer que é possível nessas condições de trabalho, que é possível nesse tempo, ao longo do tempo. O pesquisador entra numa sala de aula, mostra uma coisa extraordinária, fica lá três semanas, faz umas horas de aula com as crianças, mas, estas não são as condições normais de trabalho do profes­sor. O professor está trabalhando toda a semana sob várias condições e, se o pesquisador diz que se deve fazer isso ou aquilo, deve provar que ele pode, que qualquer um pode em determinadas condições. Mas, fora destas condições, o papel da pesquisa não é dizer o que o professor deve fazer. O papel da pesquisa é forjar instrumentos, ferramentas para me­lhor entender o que está acontecendo na sala de aula; é criar inteligibili-dade para melhor entender o que está acontecendo ali. Depois, o profes­sor vai se virar, no dia-a-dia, na situação contextualizada em que estiver vivendo.

Existem outras razões que permitem entender por que é difícil a rela­ção entre a pesquisa e o ensino. Como já disse, utilizamos resultados, e a pesquisa, muitas vezes, exige condições materiais, número de alunos den­tro da sala de aula, que não são as condições normais do professor. Uma vez, uma professora brasileira me contou que estava trabalhando com mais de cinqüenta alunos, num calor de mais de quarenta graus e, na universi­dade, recebeu uma lição de Didática explicando uma técnica de animação de grupos que era impossível de ser aplicada naquelas condições. Quan­do um aluno queria sair para ir ao banheiro, quase todos queriam levan­tar-se. Eram condições impossíveis. Ela pediu à professora da universida­de. "Professora, você poderia vir à minha escola para mostrar como se

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faz?", e a professora ficou muito magoada dizendo que era falta de corte­sia. As condições para realizar o que estamos dizendo para os estudantes na universidade muitas vezes não existem, o que não significa que não devemos dizer isso a eles, mas que devemos saber que estamos trazendo-lhes ferramentas, instrumentos, inclusive instrumentos conceituais para que eles analisem as situações e realizem o trabalho possível.

Além disso, o relacionamento entre os professores e os pesquisado­res é, muitas vezes, vivido pelos professores como situação de avaliação, numa relação hierárquica: o professor formador pertence à universida­de e a universidade despenca nas cabeças a hierarquia do saber. Tam­bém o professor do Ensino Fundamental e Médio pertence a esse mundo do saber onde, acima, está a universidade; e qualquer que seja o compor­tamento do professor da universidade, por mais simpático que seja, o professor do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio vai sentir-se avalia­do, vai sentir uma hierarquia intelectual.

Acrescente-se o fato de que o pesquisador, quando tem sorte, rece­be verba de instituições que exercem poder sobre o professor do Ensino Fundamental e Médio por exemplo, uma Secretaria de Educação do Mu­nicípio. Está-se misturando, assim, a questão do poder administrativo e a questão da pesquisa. Na França, quando vamos a uma escola para pesquisar, muitas vezes os professores nos dizem: "Vocês têm que lhes dizer". Quem é "lhes"? Um conjunto vago dos poderes e das autoridades supremas. O pesquisador é percebido como um meio para lhes falar, falar a todas essas pessoas que nunca vimos na nossa escola, pessoas que têm que saber o quanto é difícil trabalhar nessa escola. Tudo isso vai tornar mais difícil o relacionamento entre o pesquisador e o professor.

Além disso, o professor acha que o pesquisador está dentro da es­cola para tomar, para receber sem dar — o que muitas vezes é o que acontece: o pesquisador vai coletar dados e depois não vai dar o seu relatório. Muitas vezes, é melhor mesmo que o pesquisador não dê o relatório, para não magoar pessoas que estão trabalhando em condições tão difíceis. O pesquisador está analisando os processos da escola do ponto de vista da pesquisa e o professor está vendo o relatório de um outro ponto de vista.

Depois de fazer esta análise das diferenças estruturais, gostaria de dizer também que, apesar de tudo isso, acho que, historicamente, a pes­quisa teve e tem efeitos na sala de aula ou, ao menos, já teve efeitos no discurso dos professores.

Analisando a História, posso perceber que houve um recuo no dis­curso dos docentes sobre o dom, sobre alunos mais dotados ou menos

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dotados. Esse discurso ficou para trás como uma das conseqüências das pesquisas, notadamente, das pesquisas da Sociologia da Educação, que mostraram a questão da desigualdade social frente à escola. Também estamos numa época de crítica ao discurso sobre as carências sociocul­turais. O que está acontecendo é que o professor está ouvindo discursos dos pesquisadores, notadamente através das mídias, e sabe que existem discursos que ele não pode mais usar com legitimidade. Ele está tentan­do se virar.

Para tentar dar conta do fracasso escolar, os professores, quando falam uns aos outros, ainda fazem o discurso da carência e do dom, mas, quando estão falando a um professor da universidade, a um pesquisa­dor, sabem que não podem dizer isso. O efeito da pesquisa nos estabele­cimentos escolares é do tipo indolor. Por exemplo, os professores sabem que agora devem ser, no discurso, construtivistas, sabem que não po­dem ser tradicionais (uma coisa extraordinária, gosto dela, descobri no Brasil).

Existe um jeito de iniciar uma boa briga educacional: é só dizer para o outro: "Você é tradicional". E o fim de tudo! Como se fosse um argu­mento legítimo, automaticamente legítimo — "Você é tradicional" —, e o outro fica envergonhado de ser tradicional. Ao contrário, ser inovador significa encontrar-se respaldado pelo discurso legitimado socialmente. Mas, a inovação não vale por si só, depende do conteúdo da inovação. Existem inovações ruins, existem inovações boas; existem práticas cha­madas, rotuladas de tradicionais, que às vezes são melhores do que prá­ticas rotuladas de construtivistas. Mas isso é uma questão de legitimida­de do discurso social. Ao ouvir "Você é tradicional", "Você está ajudando a globalização"', cada vez mais o professor vai sentir-se recriminado. Eu acho que a pesquisa ajudou a mudar o discurso, mas serviu a um discurso pedagogicamente correto. Assim como existe um discurso politicamen­te correto, agora existe, igualmente, um discurso pedagogicamente cor­reto. A pesquisa levou trinta anos para criar essa legitimidade oficial, mas o problema é que, muitas vezes, existe uma diferença entre a cabe­ça, a mente e a língua. O discurso é pedagogicamente correto, mas, na cabeça, persistem as idéias enraizadas na vivência e no cotidiano do pro­fessor na sala de aula. Que formação poderia mudar tal situação para que certas idéias não fossem apenas o discurso da moda, mas entrassem realmente dentro das cabeças? E quais são as idéias mais importantes para o professor? Por exemplo, o que podemos usar a partir das pesqui­sas que nos falam que o construtivismo é um caminho muito interessan­te para formar os estudantes? O que o professor pode tirar dessa idéia,

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para sua prática cotidiana, que seja coerente com o seu trabalho? Este é o primeiro ponto.

Continuando nossa reflexão, agora gostaria de desenvolver, como segundo ponto, uma reflexão sobre a questão teoria e prática. Acho que este problema foi, muitas vezes, mal colocado. Não penso que exista um problema de diálogo entre teoria e prática. O que existe é um problema de diálogo entre dois tipos de teoria: uma teoria enraizada nas práticas e uma teoria que está se desenvolvendo na área da pesquisa e das pró­prias idéias entre os pesquisadores. Vou tentar esclarecer este ponto. Não existe uma prática muda, uma prática que não se fala, não é? Pois bem, dizer a sua prática é falar, seja num diálogo com o outro, seja nesse diá­logo interior que cada um está fazendo dentro de sua própria cabeça. E, para se dizer a prática, usam-se categorias, palavras. As palavras, as ca­tegorias, recortam o mundo, interpretam o mundo e, muitas vezes, os professores estão dizendo as suas práticas, as suas experiências, as suas vivências, usando categorias do senso comum. Este é o problema. Por exemplo, os professores me dizem que eles podem ver as carências socioculturais das crianças da periferia. Mas isso é impossível! Ninguém pode ver uma carência, porque uma carência é um não ser. O que é ca­rência? É ausência.

Portanto, não se pode ver uma carência, não se pode ver um não ser. Não se pode ver uma situação e analisá-la usando a palavra carên­cia. Os professores (e outros mais) estão também usando categorias como exclusão, como violência (cito estas para ficar bem pertinho do chão da sala de aula). Violência escolar: o que é isso? O que é violência? É uma categoria geral demais, abrange coisas muito heterogêneas. É o aluno que está batendo no outro aluno? É o aluno que está batendo no professor? É o aluno que está dormindo em sala de aula? E o fracasso escolar? O fracasso escolar não existe, o que existe são alunos que en­contram dificuldades para aprender; o que existe são situações de difi­culdades. Hoje em dia, estamos falando do fracasso escolar como se existisse um monstro escondido no fundo da sala de aula, pronto para pular sobre as crianças das famílias populares. O fracasso escolar tor­nou-se a peste da época moderna, um vírus, uma doença que está amea­çando as crianças do povo. Prefiro falar de situações precisas, que pos­so definir. Prefiro falar de dificuldades escolares do que falar de fra­casso escolar e de coisas gerais demais.

Não tenho nenhum problema com a prática dos professores, mas tenho muitos problemas com as categorias que eles estão usando para

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falar de suas práticas. Este é o ponto do debate dos professores com o pesquisador e com a universidade. Acho que existe um saber coletivo, historicamente criado pelos professores, que temos que levar em consi­deração. Os professores sabem coisas, coletivamente, que foram criadas a partir de suas práticas, mas o problema são as palavras para dizer es­sas práticas, para interpretar essas práticas. E aí pode começar a troca entre o professor — com a sua prática — e o pesquisador. Devemos tam­bém colocar questões ao pesquisador. O pesquisador, no decorrer de sua vida intelectual, no ambiente de discussões com outros pesquisadores, está desenvolvendo uma teoria. O professor, através das categorias que usa para dizer a sua prática, também está desenvolvendo uma teoria implícita. Ambos têm legitimidade para fazer isso. Cabe ao pesquisador perguntar ao professor: "Quais são as categorias que você está usando para dizer a sua prática!". Ao professor, cabe perguntar ao pesquisador: "Você está falando de quê?". E é aí que está o problema: de que está falando o pesquisador? De que está falando a sua teoria? Acho que os professores não estão negando a teoria, não estão dizendo "Não queremos a teoria"; o que os professores não querem é uma teoria que só está falando a outras teorias. O problema é saber se a teoria do pesquisador está falando de coisas que fazem sentido fora da teoria. Eu sei que quando a teoria está falando de práticas, de situações que fazem sentido fora da teoria, os professores se interessam por ela. O que os professores recusam é uma teoria que está falando só a outros pesquisadores e a outras teorias.

Assim, acho que a questão é a troca entre dois tipos de teoria: uma enraizada nas práticas, nas situações, e outra enraizada no desenvolvi­mento de uma ciência ou de várias ciências, como a Sociologia, a Psicolo­gia ou as Ciências da Educação. Portanto, não se trata de diálogo entre uma prática e uma teoria. Falar de diálogo entre teoria e prática é abrir duas possibilidades de teorismo ideológico: o teorismo do pesquisador que está dizendo "Eu sei, eu conheço a verdade, tenho uma prova" e o teorismo da prática, o teorismo do professor que diz "Eu sei porque tenho a minha experiência em sala de aula". E, para sair do teorismo, temos que organizar esse diálogo entre os dois tipos de teoria.

Num terceiro ponto, gostaria de tentar organizar um pouco mais o universo das relações entre as práticas, a pesquisa e a política. Depois de mudar muito, de passar de um posto para outro, começando na área da pesquisa nas políticas educacionais, depois de fazer de conta de formar professores e ficando, agora, na área da pesquisa das práticas cotidianas, depois de pesquisar tudo isso, cheguei à seguinte conclusão: a questão

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central de tudo isso é a prática do aluno, não é a prática do professor; o que importa é a prática do aluno.

Vou falar de uma experiência que cada um de nós já viveu como professor, de um sofrimento metafísico. Estou ensinando uma coisa para uma criança, estou explicando, mas ela não me entende. Não posso com­preender por que ela não me entende. Uma coisa tão simples, e ela não me entende! Gostaria de poder entrar na sua cabeça para pensar no lu­gar dela, não é assim? Não posso entender por que essa criança, um ser humano, com uma razão, não consegue entender coisas tão simples! Es­tou me defrontando com o seguinte: essa criança tem uma razão univer­sal, como a minha, mas é um ser humano singular e, com essa singulari­dade, tem dificuldade para entender. Vale a pena refletir sobre esse so­frimento do professor.

Freud já disse que existem três missões impossíveis: educar, gover­nar e psicanalisar. Acho que estas três situações são o mesmo caso. Sou professor, o aluno está dependendo de mim, mas, na verdade, é ele quem deve fazer o trabalho intelectual. Se o aluno não fizer o trabalho intelec­tual, não vai aprender, vai fracassar. Mas, também eu, como professor, vou fracassar. Assim, existe uma situação de contradependência que é muito interessante: tem o poder do professor, mas, na verdade, esse alu­no sobre quem tenho poder tem um enorme poder sobre mim, porque só serei bem-sucedido no meu trabalho, se o aluno fizer o essencial no seu trabalho. É a mesma situação na psicanálise: o psicanalista pode fazer tudo, dizer tudo, mas é o analisando quem deve fazer o trabalho psíqui­co. Da mesma forma, o governante não pode atingir seus objetivos polí­ticos sem a participação do outro. São três situações nas quais existe uma contradependência: tenho um poder sobre o outro e o outro tem um po­der enorme sobre mim.

Assim, se quem deve aprender é o aluno, não é o professor quem pode fazer o trabalho intelectual por ele. Isto significa que, no centro, fica a prática do aluno, não a prática docente. Portanto, o trabalho do professor não é ensinar, é fazer o aluno aprender. A própria definição de professor não é ensinar, é permitir ao aluno aprender. Ensinar não é a mesma coisa que fazer aprender, ainda que, muitas vezes, para fazer o aluno aprender, o professor tenha que ensinar. Neste sentido, acho que a eficácia das práticas do professor depende dos efeitos destas sobre as práticas do aluno. Para aprender é preciso entrar numa atividade inte­lectual: esta é a verdade do construtivismo. Bem, depois de saber disso, não me importa a moda, não me importa saber se o professor é tradicio-

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nal ou inovador; o que importa saber é se o trabalho do professor ajuda o aluno a desenvolver uma atividade intelectual e, também, qual é o sentido dessa situação para o aluno. É por isso que estou trabalhando na questão do saber em sua relação com a escola, que é a relação com o sentido.

Vou terminar este ponto falando do efeito das estruturas e das políticas educacionais sobre as práticas do aluno e do professor. Acho que nenhuma estrutura, por si mesma, pode produzir um efeito educa­cional; nenhuma política educacional pode, por si mesma, atingir um resultado dado. As estruturas são importantes, também os meios são importantes, o dinheiro é importante, as políticas são importantes, mas por seus efeitos e conseqüências. Temos que avaliar os efeitos das mu­danças políticas, das estruturas, a partir das conseqüências que estas estão produzindo nas práticas dos alunos e nas práticas dos professo­res. Estou entendendo, aqui, política como área organizacional. Não estou falando de política como projeto político simbólico, que importa muito, mas estou falando das políticas educacionais como organização do mundo escolar.

Um exemplo disso é a escola ciclada, ou em ciclos. Já faz dez anos que temos escolas cicladas na França, e não foi uma revolução total. Co­nheço um pouco a escola ciclada no Brasil porque trabalhei por um tem­po com a prefeitura de Porto Alegre. É boa ou não é boa a escola ciclada? Depende do que você vai fazer. Não precisamos ser trotskistas ou do PT para ciclar as escolas. É uma questão mais complicada. Penso que, teori­camente, os ciclos levam a uma melhora, pois, quanto mais tempo uma criança tem para atingir um objetivo, mais democrática é a escola, por­que as crianças das camadas populares geralmente precisam de mais tempo para atingir os mesmos objetivos. Entretanto, já vi escolas cicladas horríveis; já vi desenvolvimento de práticas elitistas em escolas cicladas. Há como organizar práticas de exclusão na escola ciclada. Pode-se orga­nizar pequenos grupos fechados, trancados, com os alunos que sempre vão ficar juntos sem adiantar nada. Sei que dentro de uma escola ciclada pode-se desenvolver práticas que vão no sentido contrário à própria idéia da escola ciclada.

Assim, o que importa saber é quais são as práticas do professor e as práticas dos alunos que vão ser desenvolvidas ali. Estou insistindo neste ponto, não é? De partida, deixei toda a metafísica pedagógica. Não me importa saber se o professor é tradicional, se não é tradicional, se é da pedagogia nova, da pedagogia antiga, e todo esse debate. Importante é

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saber o que vai permitir ao aluno aprender a desenvolver suas próprias práticas intelectuais. O aluno tem ou não tem uma atividade intelectual? Esta é uma questão central; a outra é qual é o sentido dessa situação para o próprio aluno, e, uma terceira, qual o prazer que o aluno pode encon­trar na atividade intelectual. Se resolvermos estas três questões, estare­mos resolvendo as questões mais importantes.

A formação do professor pode ser desenvolvida a partir destas três questões, incluindo a das representações que o professor tem das crian­ças dos meios populares, porque se o professor pensa que com aquelas crianças não pode fazer nada, por causa de sua origem social, ele não vai permitir à criança entrar em atividade intelectual.

DEBATE

Questão 1: Não seria o professor formador de professores o mediador entre a cultura da pesquisa e a cultura da sala de aula? Não seria difícil para o professor, que é o prático reflexivo da sala de aula, ter a seu encar­go também essa mediação entre a cultura da pesquisa e a cultura da sala de aula? Parece-me que, em muitos casos, essa mediação é muito impor­tante e, o fato de essa tradução não poder ser feita diretamente pelo pro­fessor, talvez não deva ser um impedimento para que isso ocorra.

Charlot: Talvez essa possa ser uma das funções do professor formador de professores. Acho que ele tem várias funções e esta é uma delas. O professor formador de professores está com um pé na pesquisa e outro pé na sala de aula. Mas, geralmente, pela minha experiência, esse profes­sor está com o desejo de tirar o pé da sala de aula para ter os dois pés na pesquisa. Uma outra opção seria permitir aos professores, mesmo sem entrar numa pesquisa, participar dela, sabendo que não é fácil, porque o ponto de vista da pesquisa não é o mesmo ponto de vista do dia-a-dia na sala de aula. Acho que tem várias possibilidades para organizar tudo isso. Depende também do tipo de pesquisa. Dou exemplo: na França, existe o que chamamos de Institutos Universitários de Formação dos Professores Mestres, que têm uma autonomia, e os departamentos de Ciências da Educação — como é o caso do meu —, que estão preparando os estudantes, desde a graduação, para a licenciatura na área de Educa­ção e para a pesquisa. No meu departamento não estamos formando professores. Há uma separação entre as duas áreas, não é uma situação igual à do Brasil.

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Selma: Aqui nós temos as duas situações convivendo, não tranqüilamente.

Charlot: Na graduação, já estou exigindo dos meus estudantes que eles realizem uma entrevista com uma criança de periferia sobre a questão do sentido da escola e do saber para essa criança; uma entrevista singu­lar. Uma coisa esquisita que descobri: um professor pode ser professor há quinze anos sem nunca ter tido a oportunidade de ficar uma hora falando com uma criança para saber como ela está vivendo a escola, como tem sido sua história escolar. Eu descobri que é muito importante isso. Falar uma hora ou mais com um jovem, sobretudo um jovem da perife­ria, que está funcionando numa outra lógica, para ver o mundo com o olhar do outro. Não sabemos qual é o olhar dos alunos com quem esta­mos trabalhando; não sabemos que eles estão funcionando numa lógica, diferente da nossa. E, assim, quando encontramos certos comportamen­tos, pensamos que essas crianças são loucas, são esquisitas, são selva­gens. Mas, precisamos descobrir que esses pseudoloucos têm uma lógi­ca, uma lógica completamente diferente da lógica do professor, e que essa coexistência de duas lógicas, cada uma se pensando a própria legiti­midade, sem conhecer a lógica do outro, é uma das principais fontes da violência escolar. Acho que a entrevista a um aluno singular ou a um grupo de alunos vai me trazer a sua subjetividade, como ele vive tudo isso. Esta é uma questão muito importante na formação dos professores.

Questão 2: Dentro da Pedagogia atual, temos discussões em que esta se subdivide em duas áreas: uma área que seria uma abordagem das Ciên­cias da Educação, em que a Educação é o núcleo central, em que se dis­cute o papel do educador, a importância do educador como alguém que articula esse processo; e uma outra vertente, a das Ciências da Educação, em que os pesquisadores trabalham com educação — os sociólogos, os psicólogos — e abordam a educação de uma forma mais ampla. Aí eu lembraria um pouco as colocações de Jacques Bien Lerrout, quando este fala de uma sociedade pedagógica. Pensando nestas duas tendências, e a partir do seu olhar em relação aos vários lugares que conhece, como é que o senhor vê as discussões nessas duas frentes?

Charlot: Posso dizer o que penso? Acho que é uma questão de distinção das vagas. Temos que distinguir, nessas discussões, o problema das va­gas da universidade. No fundo, são dois problemas diferentes. Você pode escolher uma tendência ou outra, e essa diferença faz sentido. Então, o problema, no fundo, é um problema de vagas. Já pesquisei um pouco sobre essa questão para escrever um livro sobre as Ciências da Educação

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e meus colegas me disseram, por exemplo, que na área da Educação exis­tem dois tipos de psicólogos: os psicólogos da Educação que estão se pensando na área das Ciências da Educação, os da Educação que estão se pensando na área de Psicologia. E qual é a diferença? É simples. Um psicólogo que está se pensando na área das Ciências da Educação vai prestar uma atenção maior ao que está se produzindo nesta área, por exemplo, na Sociologia da Educação, na Didática — é um psicólogo com a atenção voltada às pesquisas em Educação. E um psicólogo que está se pensando na área da Psicologia vai prestar maior atenção ao que está se produzindo na área da Psicologia, fora da Psicologia da Educação. Acho que esta diferença é legal, precisamos de todos. Para que escolher uns excluindo outros? Precisamos de professores, de pesquisadores que pres­tem atenção ao que está se produzindo na área geral da Psicologia, na área geral da Sociologia, mas também precisamos de pesquisadores com uma competência mais desenvolvida para fazer cruzamentos entre os conceitos, entre as questões, entre as respostas das várias áreas das Ciên­cias da Educação. Qual é a melhor? Melhor é a que tiver vagas para os meus alunos, não é? E esta não é uma questão teórica, é uma questão institucional. Temos que distinguir as duas questões porque, muitas ve­zes, estamos em luta na universidade, que é um campo de lutas institu­cionais. Assim, estamos escondendo debates institucionais, interesses contraditórios, atrás de grandes debates epistemológicos. Prefiro dizer o que penso ser a verdade e, depois, negociar. Acho que esta é uma posi­ção de pesquisador.

Questão 3: Qual é o destino profissional dos estudantes que cursam as Ciên­cias da Educação na França, além da formação deles como pesquisadores, e — uma segunda pergunta — sobre a relação entre política, pesquisa, forma­ção e práticas dos professores e dos alunos. Você fez uma distinção entre a política enquanto organização do mundo escolar, que tem o papel de orga­nizar as condições para as práticas dos professores e dos alunos, e a política enquanto projeto. Queria ouvir um pouco mais sobre as relações desta polí­tica — enquanto projeto — com a pesquisa e com as práticas dos professores e dos alunos. Como é que você situa as pesquisas que vem conduzindo na área, com a temática do fracasso escolar, nessa relação?

Charlot: Sobre o primeiro ponto, nossos departamentos das Ciências da Educação já estão produzindo profissionais. A maioria dos nossos estu­dantes já estão trabalhando na escola pública e alguns na escola privada. Recebemos também professores que vêm para aprender, mas, também, para o desenvolvimento da carreira (um tipo de formação continuada);

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recebemos, ainda, jovens que estão entrando no mercado da formação de adultos, ou para animação ou para dirigir casas para idosos. A área da formação de adultos é muito menos institucionalizada do que a área da escola pública. Na França, temos uma fiscalização e uma administra­ção fortes nas escolas. Os fiscais que vão inspecionar as escolas, muitas vezes, não gostam muito de pesquisa, porque o relacionamento hierár­quico administrativo vai encontrar concorrência na fala do pesquisador. Este é um problema muito importante na França, onde temos um siste­ma de Estado com uma fiscalização forte, mas que não serve para nada, porque o professor é um funcionário e não pode perder a sua vaga; des­de que o professor não ande nu ou bêbado dentro da escola, ele não vai perder a sua vaga. Nem mesmo se for um professor muito ruim e todos saibam disso, ele não vai perder a sua vaga, pois é funcionário, tem um sindicato forte, e isto é um problema para nós. Assim, em nosso departa­mento, cumprimos o papel da formação continuada e também um pou­co da formação inicial.

Respondendo à sua segunda pergunta, é importantíssimo distinguir a questão da gestão e a questão do projeto político. Acho que é impossível construir uma boa educação sem referências políticas. Estou insistindo para distinguir a pesquisa e o discurso político, mas estou dizendo também que é impossível construir um bom sistema de educação, num país, sem uma referência política forte. O grande sucesso da escola francesa, no fim do século XIX e início do XX, foi o encontro entre um projeto político forte, que tinha um consenso, inclusive entre a burguesia moderna e o movi­mento popular. Havia um projeto político que girava em torno de valores do universalismo e da idéia da dignidade de cada um, inclusive do traba­lhador. Existia também práticas no dia-a-dia das salas de aula coerentes com esse projeto político. Acho que esta é a fórmula mágica, não é?

Ontem, na PUC, uma equipe de televisão me perguntava em qual país existe uma escola ideal. Eu respondi: "É simples, no país dos meus sonhos". O que posso saber estudando a história é que a fórmula eficaz, seja qual for o conteúdo, é o encontro entre um projeto político forte e práticas cotidianas na sala de aula. Aí, existem duas armadilhas. A pri­meira, a do discurso político que não presta atenção aos que estão fazen­do educação na sala de aula — "há que fazer isso-, há que fazer aquilo". A outra é a armadilha tecnológico-profissional, pensando que basta profissionalizar mais os professores, dar mais ferramentas, instrumen­tos, para resolver as questões do ensino, o que também é um erro, por­que sem perspectivas amplas, largas, para construir um sistema de ensi­no, não vão se desenvolver, na sala de aula, práticas eficazes. Acho que o

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problema do Brasil agora é a questão da formação dos professores, mas é também a questão de um ensino público. O que poderia ser, no Brasil, um ensino público? Deve ser um ensino com objetivos universalistas? Deve ter uma relação com a comunidade? Isto é uma questão muito im­portante c que não fica claro. Estou recebendo, na França, pesquisadores brasileiros que, muitas vezes, querem pesquisar a relação entre a escola e comunidade. O tema central, na referência dos Estados Unidos, dos que estão chegando na França para pesquisar, foi uma surpresa para mim, porque nós, intelectuais da esquerda na França, somos, geralmente, universalistas e estamos desconfiando da questão das comunidades, por­que, na nossa cabeça, a comunidade é uma área de interesse particular que vai colocar os alunos dentro de um mundo particular, e ser um intelectual da esquerda na França é desenvolver, tradicionalmente, um discurso universalista. E eu descobri, no Brasil, que os meus colegas que têm uma atividade política e ideológica como a minha estão desenvolvendo, como intelectuais de esquerda, um discurso sobre a necessidade de uma ligação entre a escola e a comunidade. Acho que são ligações provavelmente rela­cionadas com a idéia de se respeitar os direitos de cada um que, na França, é possível fazer, num ambiente mais universalista, o que, talvez, no Brasil, só se poderia fazer — mas não sei isto — dentro de uma comunidade.

O que sei é que é um ponto muito importante: saber qual sistema de educação pública se pode construir no Brasil; um sistema que tenha um pé político e um pé profissional. Na França, esta questão foi resolvi­da através da formação dos professores. São as chamadas "École Nor­mal", que organizaram a formação dos professores com um projeto polí­tico, mas fornecendo também instrumentos práticos para dar aula no dia-a-dia da sala de aula. Acho que o problema da formação dos profes­sores é problema político e profissional. O que não posso agüentar é ouvir o pesquisador se dizendo, por seu próprio movimento, "eu vou dizer a verdade política". Isto não posso agüentar. Inclusive, quando leio que sua pedagogia é emancipatória. Não é verdade. Na história, há pedagogias que não foram emancipatórias. Existe uma pedagogia fascista, existe uma pedagogia no nazismo, que não é emancipatória. Por isso, não posso di­zer que, por sua natureza, a pedagogia é emancipatória. O que posso dizer é que a pedagogia deve ser emancipatória, o que não é a mesma coisa. E, quando estou dizendo que ela deve ser, estou saindo da área restrita do pesquisador, dizendo o que deve ser o mundo. Estou desen­volvendo um discurso que tem uma dimensão política e desenvolvo esta dimensão quando estou entrando na ação. Não pode existir uma ação pedagógica sem uma dimensão política, embora esteja distinguindo a questão da pesquisa educacional e a questão da política, sabendo que, na

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ação, também preciso das decisões políticas. Tenho discutido muito com os meus estudantes brasileiros a este respeito.

Selma: Estamos precisando mandar outros estudantes brasileiros para a Fran­ça porque, como eu já disse ao professor Charlot, a esquerda, no Brasil, tem muitas faces.

Questão 4: Gostaria de ouvir um pouco o que o senhor pensa a respeito de como os professores da escola básica podem se inserir na pesquisa sobre a sua própria prática. O senhor falou bastante dos limites da pes­quisa, no sentido da sua entrada na sala de aula, no sentido de que ela consegue mudar o discurso, mas não a prática dos professores. Como é que o senhor vê a possibilidade de o professor tornar-se um pesquisador da sua prática, em parceria com os pesquisadores da universidade, sen­do ele, também, o sujeito pesquisador?

Charlot: Depende do objetivo. De um certo ponto de vista, acho que é impossível pesquisar a sua própria prática, porque o objetivo da pesqui­sa não é o objetivo da ação. Sei que quando os meus orientandos estão pesquisando nas suas próprias salas de aula, eles têm problemas, por­que estão se olhando de fora e, olhando-se de fora, eles se tornam profes­sores ruins. É impossível assumir, ao mesmo tempo, os dois papéis: o de professor e o de pesquisador. Dois papéis diferentes. Mas é possível um professor ser pesquisador, inclusive na sua própria sala de aula, quando um outro professor assume o cargo de ensinar, em certos momentos. Mas acho que devemos aceitar a idéia de que, no sentido estrito da pes­quisa, pesquisar é desenvolver um olhar, é assumir uma postura, um olhar que não é o da ação. E não podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo; podemos fazer as duas coisas no mesmo lugar, mas em vários tempos. Esta é uma posição da pesquisa acadêmica, tradicional. Há tam­bém o fato de se estar trabalhando com o espírito de pesquisador, sem estar fazendo uma pesquisa com todo o rigor clássico do método, de se estar com o espírito sempre aberto para descobrir o que está acontecen­do na sala de aula. Ainda há outra coisa: a possibilidade de equipes, de conjuntos de pesquisadores mais professores. Quando fizemos a nossa primeira pesquisa sobre a questão da relação com o saber na escola, tra­balhamos com os professores da própria escola. Os professores pesquisaram conosco, mas estava claro que nós, os pesquisadores, é que conhecíamos os métodos, as práticas de pesquisa que eles, os professo­res, não conheciam. Foi um tempo muito curto de trabalho com eles. Depois, eles me disseram: "Vamos continuar a trabalhar juntos, não é?", e eu disse: "Eu concordo, mas temos que deixar claro que vamos continuar para

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tirar conseqüências práticas das nossas pesquisas, e, nesse momento, vocês vão dirigir". Eu estava dirigindo, no momento da pesquisa, mas, depois, no momento de saber o que fazer dos resultados da pesquisa para mudar coisas na escola, os chefes não devem ser os pesquisadores. Quem vai orientar a ação são os próprios professores, porque estamos entrando na área da ação. Foi muito difícil. Eles não conseguiam deixar o lugar de quem estava seguindo a palavra do pesquisador, para dirigir a situação. Existem lógicas que, embora relacionadas, não são as mesmas. Devemos construir, em cada caso, um dispositivo coerente, seja de pesquisa mais tradicional, seja de pesquisa-ação, seja da minha própria sala de aula, seja da de outro professor, seja outra coisa. Deixo abertas todas as opções, mas sempre exigindo que se reflita para encontrar um dispositivo coe­rente. É um pouco o que estou tentando fazer.

Questão 5 : 0 senhor acha possível que a escola cumpra o seu papel polí­tico e o seu papel de formar cidadãos se, hoje em dia, depois que o dis­curso construtivista tornou-se o discurso pedagogicamente correto, pa­rece ser cada vez maior a preocupação, na formação de professores, prin­cipalmente no Brasil, em ensinar ao professor as teorias da aprendiza­gem, estratégias de ensino, instrumentos para ele usar na sala de aula? Enfim, parece que a preocupação está em que o professor aprenda como é que a criança aprende, como é que ele deve ensinar e, me parece, está faltando conteúdo. Acho que seria mais importante que o professor lesse a boa literatura e as ciências humanas, a filosofia, a sociologia... Acho que ele está aprendendo a ensinar, mas não tem muito o que ensinar.

Charlot: O que é o mais importante, na verdade, quanto a isso — vou falar de dentro da posição do professor —, é sobreviver na sala de aula, na escola. Os pesquisadores já mostraram isso e temos que partir desse ponto de vista. Por exemplo, um pesquisador inglês, Peter Hudson, mostrou bem que a prioridade, como professor, é sobreviver e, depois, se puder, formar os alunos. Isto não é uma questão de princípio, é a realidade: sobreviver psiquicamente, sobreviver na sua identidade profissional e, às vezes, so­breviver fisicamente, não é? Este é o ponto de partida. Quero desenvolver um pouco este ponto porque o acho muito importante. Existem estraté­gias de sobrevivência do professor, existem também estratégias de sobre­vivência dos próprios alunos. O que importa para o aluno é sobreviver e vamos negociar a sobrevivência juntos. Quanto mais difícil é uma situa­ção, mais a necessidade de sobreviver vai ser a prioridade. Sem conside­rarmos essa questão como ponto de partida, não podemos entender o que está acontecendo nas situações de reformas e de inovações, porque existe

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a idéia, no mundo inteiro, de que os professores estão resistindo à mudan­ça. Acho que eles não estão resistindo à mudança, estão fazendo outra coisa, melhor ou pior, não sei; eles estão integrando as mudanças para que nada mude.

Cada vez que estamos chegando com uma reforma ou com uma pe­quena inovação, a primeira conseqüência disso é a de trazer o problema da sobrevivência ao professor, porque mudando as condições de trabalho estamos mexendo nas estratégias de sobrevivência do professor. O que vai fazer o professor? Ele vai tentar reintegrar a demanda de reforma, a demanda de inovação, para que a nova situação fique compatível com as suas estratégias de sobrevivência. E, ao fazer isso, geralmente, o professor vai guardar a forma exterior da mudança mas esvaziar a mudança de todo o poder de mudar realmente a situação. Isso não é o que eu queria, não é uma escolha lógica, é uma tentativa para descrever e entender o que está acontecendo, porque estou envelhecendo e queria mudar um pouco o mundo antes da minha morte, e não só denunciar e dizer o que deveria ser o mundo. Estou tentando entender como as coisas estão acontecendo. E, a partir deste ponto de análise, acho que cada vez que estamos defendendo uma idéia nova, uma reforma, uma inovação, temos que levar em consi­deração a questão das estratégias de sobrevivência. Não podemos vender uma inovação, vender uma reforma aos professores, se não podemos ven­der, ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência que acompanhe essa mudança. Se quisermos mudar verdadeiramente o ensino, temos que trabalhar junto com os professores para pensarmos em tudo isso, porque existem também as estratégias de sobrevivência dos alunos, não é?

A partir daí, não sei como posso responder à sua questão, porque não somos todos os mesmos. Enquanto seres humanos somos os mesmos, mas enquanto sujeitos singulares não funcionamos do mesmo jeito. Já en­contrei professores que mudaram suas práticas pedagógicas, sem nenhu­ma formação pedagógica. Estou pensando em professores de matemática que receberam uma formação na área da história da matemática e, depois disso, mudaram suas práticas pedagógicas. Já encontrei professores que mudaram, depois de entrarem em certas áreas de conhecimento, desco­brindo a importância do inconsciente e coisas assim. Encontrei, também, professores que criaram novas práticas muito interessantes a partir de uma análise das próprias condições de seu trabalho. Acho que devemos levar em consideração essa heterogeneidade e deixar de lado os nossos fantas­mas, o desejo de dominar tudo e de estabelecer uma transparência total. Estamos vivendo numa época em que, cada vez mais, está se desenvol­vendo um desejo, uma ambição de esclarecer tudo, de dominar tudo. E,

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assim, temos que pensar a transferência de um conteúdo e de uma capaci­dade cognitiva, de uma matéria para uma outra; temos que organizar tudo, queríamos conhecer tudo da criança, o que está acontecendo na sua famí­lia, o que está acontecendo na comunidade; queremos estabelecer uma transparência total. É o nosso fantasma de dirigir tudo, de dominar tudo, de conhecer tudo. Mas, o sujeito tem a sua espessura. Um adolescente não pode se tornar publicamente transparente. Vamos matá-lo, fazendo isso! Eu já disse, por exemplo, que a colaboração entre a família e a escola pode se tornar perigosa, psicologicamente perigosa para o adolescente. Estou dizendo para os meus estudantes não fazerem a mesma coisa que algu­mas famílias estão fazendo: "Nesta tarde, eu vou ligar para a sua esposa ou para o seu marido, para dizer que você estudou bem, viu? e, amanhã, ele ou ela vai me ligar para me dar notícias do que você fez ontem e do que pensa". Imagine! Crescemos nesta história e é terrível! E terrível a ideologia da colaboração total entre todas as autoridades que podem interferir na vida de um ado­lescente. Isso me assusta. Temos que deixar essa idéia de total domínio e de total dominação e transparência.

A partir deste ponto, temos que refletir sobre a questão da avalia­ção. O discurso existente sobre a avaliação, na nossa época, está tentan­do tratar da angústia institucional: a instituição tem a angústia de co­nhecer tudo, a instituição está pensando que, avaliando tudo com rigor tecnológico, vai poder conservar um mínimo de domínio sobre tudo e, quanto menos sabemos dominar uma situação, mais estamos exigindo avaliação. Qual é a relação interessante? Acho que estamos perdendo muito tempo tentando avaliar, em vez de tentar formar. Não estou di­zendo que a avaliação não vale nada, estou dizendo que o desejo de ava­liação, em primeiro lugar, é um discurso que responde às angústias da instituição. Qual é a avaliação que vale para um professor? E a avaliação do processo para saber se o processo que está usando para formar os alunos dá certo ou não, uma avaliação, no decorrer mesmo da ação, para saber se o processo tem eficácia ou não. Uma avaliação que não seja, ao mesmo tempo, do próprio processo é uma avaliação que não vai servir para o professor. E, nesta questão da avaliação, temos sempre que colo­car algumas questões: quem está avaliando? quem está sendo avaliado? o que está sendo avaliado? em nome de quê? a pedido de quem se está avaliando? por quê? para quê? em qual prazo — a curto ou a longo pra­zo? Uma avaliação a curto prazo, que é a avaliação pela qual a institui­ção opta, pode ser muito diferente de uma avaliação a longo prazo. Esta questão da avaliação é muito importante na formação dos professores porque tem a história da sobrevivência: quem vai avaliar o professor?

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para fazer o quê? a partir de quê? É por isso que, envelhecendo, estou cada vez mais sensível à questão de respeitar a diversidade dos interes­ses. Penso que não exista um método único que sirva para professores e também para os alunos. Tem um dito francês, não sei se existe o mesmo no Brasil, que diz "Não existe nenhum método de aprendizagem de lei­tura que possa impedir uma criança de aprender a ler".

Questão 6: O senhor falou que, quanto mais tempo a criança passar na escola para atingir seus objetivos, mais democrática é essa escola. Tem uma outra questão: nos países subdesenvolvidos, as pessoas têm que trabalhar cada vez mais cedo. Como conciliar essas duas questões, o alu­no passar mais tempo na escola e a necessidade socioeconômica de, cada vez mais cedo, trabalhar?

Charlot: Muito simples: não sou mágico. Eu não posso conciliar uma contradição. A questão do tempo me parece muito importante. Um pro­fessor está sempre correndo atrás do tempo (esta é também uma defini­ção para professor). Os alunos aprendem correndo atrás do professor, que também está correndo. Muitas vezes, penso que os alunos apren­dem muito pouco. Seria melhor que o professor ficasse um pouco mais tranqüilo, focalizando mais o que é essencial e correndo menos. Acho que o tempo é o principal adversário do professor, depois do aluno.

Questão 7: Gostaria de ouvir um pouco mais, a propósito da questão ligada à atividade intelectual do aluno, sobre a questão do sentido e do prazer. Acho que é importante olhar essa dimensão que a gente está cha­mando de estética do trabalho. E uma questão que diz respeito à sensibi­lidade e que pode acenar para a presença da alegria no trabalho docente e discente. Gostaria de ouvi-lo a partir do que já tivemos oportunidade de ler também em seu trabalho sobre a relação com o saber.

Charlot: Posso abrir a questão perguntando: Qual a questão que deve­mos nos colocar quando uma criança não consegue aprender na escola, quando um aluno não é bem-sucedido? Será que ele tem um perfil psico­lógico tal e carências socioculturais? A minha resposta é outra e próxima da experiência dos docentes do mundo inteiro. Isso é muito simples: será que este aluno estudou ou não estudou? Simples, porque se ele não estu­dou, não é mal ele não aprender. Se ele estudou, vai sempre saber ou não vai sempre saber? Descobrimos que estamos diante de algo mais com­plicado, porque estudar não tem o mesmo sentido para o professor e para a criança do meio popular. Então, outras questões devem ser colo­cadas: por que o aluno estudaria? qual é o sentido de estar na escola e de

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estudar? e qual é o prazer que o aluno pode encontrar nisso tudo? As­sim, as três questões básicas da nossa equipe, a partir das quais estamos pesquisando, são as seguintes: para a criança, particularmente para a criança do meio popular, qual sentido tem ir à escola, qual sentido tem estudar, ou não estudar, mobilizar-se intelectualmente ou não se mobili­zar intelectualmente, e qual sentido tem aprender, compreender, quer na escola, quer em outros lugares?

Estas são as três questões fundamentais, não esquecendo que a ques­tão do prazer não é simples porque não podemos separá-la da questão do esforço. Os esportistas sabem que o prazer vem do esforço; não podemos deixar de lado a exigência, não podemos criar uma criança sem exigência. Deixar as exigências é uma prova de desprezo pela criança. Não posso agüentar esse discurso que diz "com aquela criança do meio popular...". Cada vez que começamos uma frase assim, estamos prestes a fazer, com essa criança, coisas que não queremos para as nossas próprias crianças. "Com aquelas crianças não podemos fazer muita coisa, temos que deixar as exigências de lado." Isso é um desprezo. Temos que encontrar outros meios para atingir os objetivos que as crianças do meio popular também têm o direito de atingir. Não existe uma educação, uma criação, uma formação, sem exi­gências. E vou mais longe: não existe prazer sem exigências, prazer de se sentir capaz de atingir objetivos, prazer de se sentir funcionando bem dentro da sua cabeça, da sua mente. E, assim, a questão do prazer não é a do prazer imediato. Existe uma mediação na área do prazer, que é a questão do desejo e da construção do próprio sujeito.

Eu gostaria que vocês tentassem me responder às três questões: para um professor, qual é o sentido de ir à escola? qual é o sentido de ensinar? qual é o sentido de tentar ajudar os jovens a aprender e a compreender coisas? Assim, as questões básicas são as mesmas para o professor e para o aluno. Há ainda pouca pesquisa sobre a questão da relação do profes­sor com o saber. É muito difícil, porque no mundo inteiro, quando se está perguntando alguma coisa a um professor, seja qual for o conteúdo da pergunta, ele responde "não é minha culpa". E a primeira resposta: "não éminha culpa". Algumas pesquisas foram feitas. Sei de uma na Grécia e outra aqui em São Paulo. Beatriz Cornado fez uma pesquisa sobre a questão da relação dos docentes com o saber, em São Paulo. Acho que a questão "qual o sentido para um professor ir a escola a cada manhã?" é impor­tantíssima. Que sentido faz para o professor ensinar coisas, ajudar os estudantes a aprender? São questões importantes, que devem ser abor­dadas num programa de formação de professores. O que eu estou fazen­do neste mundo?

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EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E AUTONOMIA DA CRÍTICA.. 109

PARTE II

EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E AUTONOMIA DA CRÍTICA NA FORMAÇÃO

DE PROFESSORES/AS

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EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E AUTONOMIA DA CRÍTICA... 111

EPISTEMOLOGIA DA PRATICA:

o professor reflexivo e a pesquisa colaborativa

Silas Borges Monteiro*

As pesquisas sobre os saberes da docência têm ocupado boa parte da agenda da produção de conhecimento na educação. A esse campo de pesquisa e investigação tem sido dada a denominação de Epistemologia da prática docente (Pimenta, 2000). Inscrevem-se, nesse campo, as verten­tes de investigação "que tomam a prática de ensinar como fenômeno concreto" de modo a cobrir aqueles estudos

(...) sobre a sala de aula preocupados em conhecer e explicar o ensino e a apren­

dizagem em situações escolares, para estudar as práticas dos docentes, coleti­

vamente considerados, nos contextos escolares, desenvolvendo teorias a res­

peito dos saberes e conhecimentos docentes em situação de aula e, posterior­

mente, sobre a produção de conhecimentos pelos professores e pela escola,

(idem, ibidem: 91)

A preocupação com a implicação entre práticas docentes e teorias educacional ou mais comumente chamada de relação teoria — prática já vem ocupando as discussões na educação faz um bom tempo. Aliás, a relação teoria — prática é um antigo tema da filosofia e, portanto, da cultura ocidental. Esse esforço de elaborar princípios teóricos que res­pondam às demandas da vivência, da prática, é chamado de ética: um tema presente na filosofia grega, tanto a arcaica quanto a clássica.

* Professor na Universidade Federal do Mato Grosso e doutorando na Faculdade de Edu­cação da USP. [email protected].

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No século XVIII, Kant escreve um pequeno opúsculo intitulado Em torno ao tópico: talvez isso seja correto na teoria, mas não serve para a prática, publicado em 1793. Vemos Kant argumentando contra o senso comum que julga ser evidente a separação entre elaborações teóricas e seus re­sultados práticos. Sua resposta é que a teoria que não responde às de­mandas da prática requer ser revista.

Em termos da produção do conhecimento na educação, tenho visto que essa dicotomia tem sido problematizada e respondida a partir da dialética hegeliana relida por Marx. O conceito central para isso é o de práxis. Creio que Pimenta (1997) expressa bem essa concepção e essa preocupação em seu livro O estágio na formação de professores; unidade teo­ria e prática? O título do livro se vale de uma linguagem bem hegeliana. Pelo viés marxista de dialética, a autora dará ao termo práxis conteúdo do materialismo. Como já disse, esse é um bom exemplo de como a rela­ção entre teoria e prática tem sido encaminhada por boa parte dos teóri­cos da educação no Brasil.

Contudo, pergunto: haveria espaço para outras soluções à questão da teoria—prática além da solução oferecida pelo materialismo dialético? Nesse momento, pretendo argumentar sobre essa possibilidade.

Para isso, recupero o retrospecto feito por Pimenta (1999) sobre sua produção intelectual. E vejo que, num primeiro momento de sua trajetó­ria à época da pesquisa do mestrado, se vale da Fenomenologia como forma de avançar para além do psicologismo tão presente então nas pes­quisas sobre a educação, principalmente no que se referia à Orientação Vocacional, seu objeto de pesquisa na ocasião. Sobre a Fenomenologia como metodologia de investigação, Pimenta relata:

Com o estudo da Fenomenologia, minhas inquietações começaram a ter algu­mas respostas. Inicialmente, pelo método fenomenológico, foi possível apreen­der a necessidade de pensar algumas questões: qual a essência da educação? Para que educar? Qual a essência da Orientação Vocacional? O que é a forma­ção do Pedagogo e do Orientador Educacional? Uma interdisciplinaridade resolveria os problemas do tecnicismo na formação do educador? O problema de pesquisa inicialmente definido foi da decisão vocacional. O que é decidir? O Orientador contribui para a decisão profissional do aluno? O estudo da rea­lidade me mostrava que não, pois o Orientador só trabalhava o aluno psicolo­gicamente, sem captar a essência do decidir — condição fundamental para uma análise fenomenológica. (1999: 249)

A seguir, a autora entende que era necessário dar um passo a mais, no sentido de fazer um "erifrentamento da realidade escolar brasileira".

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Minha interpretação desse "passo a mais" é que, diante do contexto ad­verso sob o qual a educação brasileira viveu — sob a égide da ditadura militar —> as pesquisas na educação tenderam a uma opção metodológi­ca que tomasse como referência o conflito entre uma realidade adversa e uma intenção transformadora dessa realidade.

Diante disso, dou atenção ao seguinte fato: a opção teórica de Pi­menta ajuda-a a fazer perguntas. Não é isso que ela disse: "pelo método fenomenológico foi possível apreender a necessidade de pensar algu­mas questões"? Entendo, então, que a opção teórica contribui para fazer perguntas. Com a Fenomenologia, num momento inicial, a autora come­ça a fazer perguntas que não havia feito antes. Insisto: o recurso teórico contribui a se fazer perguntas que não eram feitas antes de se tomar con­tato com ele.

Na medida em que essas perguntas se esgotaram, Pimenta toma outro olhar (sentido literal da palavra grega theoria, pertencente ao ver­bo theoréo) e inicia outro olhar sobre a educação, mais especificamente, sobre a escola, como ela narra:

Os estudos de doutorado permitiram um conhecimento sistemático do pensa­

mento de Gramsci em quem, sobretudo, é preciso admirar a compreensão da

escola como uma totalidade contraditória, caminho para a formulação das teo­

rias críticas da educação. A seguir, estudei Marx já tendo como preocupação

fundamental a especificidade da educação e a importância do saber

escolarizado. A crítica à educação prossegui nos textos de Manacorda,

Suchdolski, Snyders e outros, sendo possível formular respostas para a fun­

ção da escola na sociedade capitalista. As contribuições de Saviani, através de

seus textos, aulas, orientação, para a organicidade dessas críticas, traduzidas

nas correntes e tendências da educação e, mais adiante, a discussão das rela­

ções entre educação e política, possibilitaram avançar no tema das relações

escola e sociedade. (1999: 252-253)

Podemos ver que nesse segundo momento a questão é: o que é a escola numa sociedade capitalista? Parece que a resposta mais convin­cente dada a ela foi: é uma totalidade contraditória, em si mesma e em relação à sociedade capitalista, que, de acordo com a autora, foi encon­trada basicamente no pensamento de Gramsci.

Em sua terceira fase, a da produção do livro que já citei sobre es­tágio na formação de professores, sua pesquisa é a investigação da re­lação teoria — prática em programas de formação com dinâmica tal que explicitava a intenção dessa relação durante a formação. E com o

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conceito de práxis, que a autora assume nesse momento, surgem novas questões:

(...) quais os conceitos de prática (e de teoria) presentes nas falas dos professo­

res e alunos? Como este conceito tem sido considerado nos cursos de forma­

ção de professores? A Pedagogia e a Didática têm pesquisado o tema? Quais

as contribuições? Os professores precisam de "mais prática" ou de "mais teo­

ria" em seus cursos? Os estudiosos vêm falando em "unidade teoria e práti­

ca"; será essa mais uma "teoria"? É possível tal unidade? Será que já ocorre?

Em quais circunstâncias? (Pimenta, 1999: 256)

Outra vez podemos notar que um conceito — o de práxis — auxilia Pimenta a elaborar outras questões que ainda não havia feito. E aqui vou sustentando o que disse sobre a possibilidade de a teoria trazer interro­gações novas sobre determinado fenômeno, ou melhor, de contribuir para um novo olhar sobre aquilo que toca como preocupação última em ter­mos de pesquisa.

Com isso, quero concordar com Pimenta que o conhecimento teóri­co "não se adquire 'olhando 7, 'contemplando7, 'ficando ali diante do obje­to 7; exige que se instrumentalize o olhar com teorias, estudos, olhares de outros sobre o objeto7 7; ainda mais, é preciso tomar "esse existente como referência77 (Pimenta, 1999: 120). Entendo que seu esforço teórico é o de conhecer o fenômeno — no caso, prática docente — para modificá-lo, tendo como base sua experiência profissional.

Há um termo corrente na educação e na filosofia que serve a esse tipo de investigação. E o grego epistêmê, do verbo epistamai. Este termo é formado por dois outros: epi e histêmi. O segundo forma a palavra ststêmi, de onde o português sistema. O prefixo epi significa sobre; o verbo hístêmi: fazer com que fique firmemente em pé. Logo, podemos deduzir que a união dos dois termos nos fala a respeito de algo que está literalmente sobre alguma coisa firme. Daí o uso corrente do grego epistêmê para significar ciência, pois se supõe que esteja de tal modo sobre aquilo que se pode subir com segurança e firmeza; e ainda mais: para olharmos (theôréô) com melhor visão.

Não há um vínculo direto entre epistêmê e verdade (alêtheia). As pa­lavras que ocorrem com mais freqüência, na literatura grega antiga, as­sociadas à epistêmê são: doxa, technê, iatrikós e aisthêsis; respectivamente, os significados são: aparência (como oposto à epistêmê), técnica (como arte da epistêmê), cirurgia (como a habilidade para), percepção sensorial (como elemento da epistêmê). Por isso, tenho certa segurança em dizer

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que a epistemologia diz respeito mais a uma habilidade, uma técnica (no sentido heideggeriano de produzir1) que dá segurança a quem faz por permitir um olhar sob um ponto de vista seguro. Ou seja, a ênfase está mais sobre a segurança que se tem em fazer algo (pois encontra justifica­tiva para fazer o que faz) do que basear esse fazer na verdade.

Esses apontamentos autobiobliográficos (na produção de Pimen­ta), conjugados ao que expus sobre epistemologia, auxiliam-me a argu­mentar, inicialmente, que a epistemologia da prática refere-se à produção (technê) de um saber, permitido por um outro olhar (thôréô), sobre o que e quê efeito (prássô). Por isso, é possível teorizar sobre a prática, pois essa é observável; toda prática (prássô) submetida a um novo olhar (theôréô) pode ser modificada.

A meu ver, isso é o que diz Pimenta (2000:92) quando fala do papel da teoria:

(...) o papel da teoria é oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como profissionais, nos quais se dá sua atividade docente, para nele intervir, transformando-os.

Também devo dizer que é possível produzir a não-relação entre teoria e prática: a primeira não-relação, com ênfase na teoria, chamaria de especulação; a segunda, com ênfase na prática, hábito. Mas não trata­rei sobre isso neste trabalho.

Da "teoria na prática é outra" à "prática na teoria é outra"

Nesse ponto quero argumentar sobre a necessidade da constante (re)visão das práticas, de tal modo que esse ver novamente permita modificá-la.

No texto já citado escrito por Kant, ele argumenta que "entre teoria e prática se requer um termo mediador" de modo a permitir o "trânsito de uma à outra". Esse termo mediador Kant chama de "faculdade de julgar". Se ocorre de determinada teoria responder pouco à prática, isso

1. Creio que vale a pena ler o artigo de Heidegger intitulado: La pregunta por la técnica e relacioná-lo com o artigo de Habermas: Técnica e ciência como "ideologia", ambos citados na bibliografia, pois, a meu ver, são complementares.

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se deve ao "fato de que não havia teoria suficiente", de modo que é neces­sário "aprender da experiência a teoria que falta". Para ele, "só em uma teoria fundada sobre o conceito de dever se desvanece inteiramente o re­ceio causado pela vacuidade" das teorias que são representadas tão-so­mente com conceitos; tais teorias "podem ser perfeitas e irreprova-velmente pensadas (por parte da razão), porém não podem ser dadas, se­não que talvez sejam elas idéias vazias das quais não cabe nenhum uso na experiência" (Kant, 1993: 3-6).

Outras respostas foram oferecidas para a questão da relação entre teoria e prática.

Hegel fala de uma relação baseada na unidade das contradições. Marx, aliado à dialética hegeliana, propõe uma dialética materialista his­tórica: o sujeito constrói a teoria em relação direta com as condições ma­teriais em que vive; e se faz, predominantemente, pelo trabalho, instru­mento de humanização. Como já observei, Pimenta insere-se, a partir de seu doutoramento, nessa linha teórica.

Outra solução foi oferecida pelo pragmatismo de William James. Em seu texto O que é pragmatismo, escrito em 1907, James define-o:

O método pragmático é, primariamente, um método de assentar disputas

metafísicas que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente. É o mun­

do um ou muitos? — predestinado ou livre? — material ou espiritual? — eis

aqui noções, quaisquer das quais podem ou não ser verdadeiras para o mun­

do; e as disputas em relação a tais noções são intermináveis. O método pragmá­

tico nesses casos é tentar interpretar cada noção traçando as suas conseqüên­

cias práticas respectivas. Que diferença prática haveria para alguém se essa

noção, de preferência àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada

nenhuma diferença prática qualquer, então as alternativas significam pratica­

mente a mesma coisa, e toda disputa é vã. (1974:10)

A resposta pragmatista é a de dissolver as disputas teóricas bus­cando sua base prática, ou seja, a teoria só faz sentido se for uma respos­ta para a prática.

O que posso apreender dessa discussão é que qualquer que seja a solução ela deve tomar por base a importância de se relacionar a prática à teoria, ou seja, ir além da especulação e do hábito, com todas as impli­cações políticas advindas dessa relação.

A solução que quero defender é a de que devemos examinar nossos hábitos à luz da teoria. E estou entendendo hábito ao modo de Hume, o que explicarei, brevemente, a seguir.

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Hume, em seu livro Investigação acerca do entendimento humano, de­fenderá a posição cética em torno da origem das inferências oriundas da experiência; isso dirá na seção 5, parte I, § 5 o:

todas as inferências da experiência são, pois, efeitos do hábito, não do raciocí­nio. (Hume, 1996: 62).

E aqui o filósofo inglês escreve uma grande nota de rodapé consi­derando a polêmica distinção entre razão e experiência, sobre a qual dirá:

A única diferença entre eles [argumentos racionais] as máximas racionais e

experimentais (estas vulgarmente consideradas resultantes da mera experiên­

cia) consiste em que as primeiras não podem ser estabelecidas sem algum pro­

cesso do pensamento e alguma reflexão sobre o que foi observado, a fim de

distinguir suas circunstâncias e traçar suas conseqüências; nas máximas expe­

rimentais, o evento experienciado é exata e completamente similar ao que in­

ferimos como resultado de uma situação particular qualquer. (...) A verdade é

que um homem que raciocina sem experiência não poderia raciocinar se olvi­

dasse inteiramente a experiência; quando designamos alguém com esta carac­

terística, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos que possui

experiência em grau mais ou menos imperfeito. (Idem, ibidem: 62)

Sua formulação fundamental é de que o hábito (ou costume) serve como fonte de raciocínios causais, ou seja, a vivência repetida de um ato ou de determinada operação

(...) produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem

ser impelida por nenhum raciocínio ou processo de entendimento. (Idem,

ibidem: 61).

Contudo, ao utilizar este termo, Hume pretende acentuar um prin­cípio da natureza humana e não dar razão última a essa tal propensão. Para ele, o hábito é o que dá sentido às ações humanas, sendo, portanto, o princípio que torna útil a experiência para torná-la prospectiva, ou seja, é aquele fator que nos leva a crer que no futuro haverá semelhante rela­ção entre eventos, tal qual já foi experimentado no passado, como, por exemplo, a relação entre o fogo e o calor.

Ora, no que diz respeito ao tema central desse trabalho — as ações docentes —, poderia valer-me do ceticismo humano para dizer que é a força do hábito, mais do que o raciocínio causai, que faz com que docen­tes reajam da mesma maneira em situações similares: essa é a principal

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crítica que tem sido feita pelos teóricos da educação. A questão que sur­ge, para dar um passo além de Hume, é: de que modo podemos introdu­zir mudanças nos hábitos docentes?

Tenho apostado na compreensão de que nossas ações docentes ten­dem a tornar-se habituais; os hábitos dão sustentação às nossas ações; a (re)visão de nossas ações permite a transformação delas. Lembrando que chamo de (re)visão a operação teórica, reflexiva sobre as ações efetuadas ou a serem efetuadas: é o estabelecimento de uma nova prática (que ten­derá a um novo hábito) por um novo olhar sobre ela. E todas as vezes que as experiências cristalizam-se em hábitos, essa (re)visão se faz ne­cessária, pois tem no horizonte as peculiaridades de novas circunstân­cias. A meu ver, o que acabei de afirmar vai ao encontro do que Libâneo e Pimenta dizem ao escrever:

As investigações recentes sobre formação de professores apontam como ques­tão essencial o fato de que os professores desempenham uma atividade teóri-co-prática. É difícil pensar na possibilidade de educar fora de uma situação concreta e de uma realidade definida. A profissão de professor precisa combi­nar sistematicamente elementos teóricos com situações práticas reais. (Libâneo & Pimenta, 1999: 267)

A "outra prática" da teoria do professor reflexivo

O que estou tentando defender é algo que Zeichner faz com melhor propriedade por meio do conceito de professor reflexivo.

Inicialmente, Zeichner esforça-se por mostrar que o ensino reflexi­vo não é um tipo de operação mecânica que pode ser contida em um modelo fabricado e consumido por professores (Zeichner, 1992). Como afirma em outro texto:

De acordo com Dewey, reflexão não consiste em uma série de passos ou pro­cedimentos para serem usados por professores. Mais do que isso, ele é uma forma integrada de perceber e responder a problemas, uma forma de ser pro­fessor. Ação reflexiva envolve, também, mais do que solução-de-problemas por procedimento lógico e racional. Reflexão envolve intuição, emoção e pai­xão, e não é algo que pode ser acondicionado em pacotes, como um programa de técnicas para professores usarem. (Zeichner & Liston, 1996: 9)

Percebe-se a crítica de Zeichner a processos formativos que ten­dem a reduzir a complexidade a fórmulas mecânicas, baseadas na lógi-

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ca causai, ou seja, para obter "x" deve-se fazer "y". A reflexão envolvi­da na ação docente não pertence à lógica estímulo-resposta, pois, como Zeichner diz:

Muito do ensino está enraizado em quem nós somos e como nós percebemos o mundo. (...) Então, voltamos nossa atenção às crenças e entendimentos dos professores, e como entender a relação entre esses entendimentos e suas práti­cas, atuais ou prováveis. (1992: 23)

Foi nesse sentido que afirmei anteriormente: a elaboração teórica é uma forma de visão de mundo, que é refeita, atualizada, por meio da reflexão, fazendo com que nossa compreensão sobre a prática, assim como todo o resto do que percebemos, seja alterada.

Dewey é um dos filósofos que dão sustentação teórica para o sentido de ensino reflexivo. Em seu livro Como pensamos, Dewey define o ato do pensar reflexivo:

O pensamento reflexivo faz um ativo, prolongado e cuidadoso exame de toda crença ou espécie hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz dos argu­mentos que apoiam a estas e das conclusões a que as mesmas chegam. Qual­quer das três primeiras categorias de pensamentos pode produzir e simular este tipo; mas para firmar uma crença em uma sólida base de argumentos, é necessário um esforço consciente e voluntário. (1953: 8)

O que Dewey afirma — que Zeichner dá destaque — é que a refle­xão não pode ser reduzida a qualquer operação mental; requer "esforço consciente e voluntário", ou seja, tem método e intenção. Podemos dizer que a reflexão é um tipo de labor intelectual.

E ao usar a palavra labor, tenho em mente a distinção que Arendt faz entre labor e trabalho.

0 sentido grego de labor

Hannah Arendt (Arendt 1999) aponta a distinção entre duas pala­vras que pode nos ajudar na conceitualização da prática reflexiva: a dife­rença entre trabalho e labor. São duas as palavras gregas para esses ter­mos que, com o tempo, tornaram-se sinônimas. Mas, como Arendt ob­serva, a distinção possui evidências fenomenológicas demais para que a ignoremos (p. 90), pois a maioria dos idiomas mantém uma tradução diferente para cada um dos termos.

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A palavra grega para trabalho é érgon; para labor, pónos. O verbo trabalhar é ergázomai; laborar: pénomai. Vamos nos aproximar um pouco mais desses termos.

O termo grego érgon significa, em termos gerais, trabalho. Hesíodo escreve um de seus poemas sob o título: Os trabalhos e os dias, e usa a palavra ergon. Nas Ilíadas de Homero, o termo é mais usado como traba­lho ou atividades de guerra. Também é usado como a atividade em con­cursos, como os jogos, por exemplo. Outro sentido é o de trabalho de produção, como amanhar, lavrar a terra; também está ligado à proprie­dade, riqueza, possessão. Finalmente, fala de diversas ocupações, tais como: pescaria, a vida no mar, e a ação relativa à produção de algum objeto. Por causa dessa conotação, refere-se, também, a coisa ou produ­to. Quando aparece na voz passiva, é aquilo que é causado, feito ou tra­balhado.

Assim, podemos dizer que, no grego, trabalho é um tipo de ocupa­ção com seus próprios negócios. Homero usa o termo no sentido de uma "façanha de guerra" ou para qualificar o engajamento na batalha. Tam­bém significa o trabalho na indústria, o amanhar a terra, campo, fazenda etc. Trabalhar, portanto, é um tipo de ação que se liga a um produto que resulta dessa ação.

Na língua grega, labor (pónos), do verbo pénomai, significa trabalho duro, faina. Em Homero é mais usado no sentido de faina de guerra; machêês poinos é a faina da batalha. De forma genérica, possui o significa­do de labor, como Platão faz esse uso em seus livros República (526c), Timeo (40d), O político (294e), Sofista (230a). Significa, também, um tipo especial de labor: o exercício do corpo. Outro sentido é de trabalho, no contexto de tarefa ou negócios. Por fim, quando se refere a uma pessoa, o termo fala de sua habilidade ou capacidade de labor; também é usado em relação a coisas, como o mar, por exemplo, sendo o lugar próprio para a labuta.

Do ponto de vista sensitivo, labor fala de tensão, problemas, dor, sofrimento: é o sentido que Homero mais se vale (veja llíada 19.227,21.525, 2.291). Heródoto fala do labor da tempestade ou sobre o labor de Medes, como sendo seu problema. Esse é o sentido mais ligado à dor.

Poucas vezes o termo aparece associado ao produto do trabalho. Por fim, Pónon é a personificação de um dos filhos de Éris, do qual falarei um pouco mais adiante.

Por isso, podemos dizer que o termo grego para labor significa faina, trabalho duro; está ligado ao esforço de corpo, ao exercício. Daí

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significar, também: tensão, problema, sofrimento, dor. Por essas razões, o termo é vinculado mais às atividades do escravo.

Contudo, devemos tomar cuidado para não lermos esses usos dos termos com nossos olhos modernos; é preciso empenho para retroceder­mos nosso entendimento ao mundo grego. Em primeiro lugar, trabalho escravo não é trabalho menor; os gregos não viam com preconceito essa atividade. Julgavam-na importante para a estrutura da sociedade. Como diz Arendt (1999: 95):

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravi­

dão na Antigüidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem ins­

trumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o

labor das condições da vida humana.

E isso é bem diferente do que se viu na modernidade. Estabelecer uma equação direta entre essas instituições é, a meu ver, ignorância his­tórica. O labor grego era uma escravidão às necessidades do corpo, à manutenção da vida, à condição humana.

O desprezo pelo labor, originalmente, resultante da acirrada luta do homem

contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo

esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer

grande obra digna de ser lembrada, generalizou-se à medida que as exigên­

cias da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos e com a

ênfase em sua abstenção (skolé) de qualquer atividade que não fosse política,

até estender-se a tudo quanto exigisse esforço (Arendt, 1999: 90).

Parece que a melhor expressão da distinção entre trabalho e labor encontramos em John Locke (1993: § 27), quando diz:

Embora a terra e todas criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens,

cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. Essa ninguém tem

qualquer direito senão ele mesmo. O labor de seu corpo e o trabalho de suas

mãos, podemos dizer, são propriamente dele.

É de Arendt (1999: 90) o mérito de identificar essa passagem; nela, observa-se Locke argumentando sobre o sentido de propriedade e o que cabe ao propriamente humano; ele entende que labor está ligado ao cor­po; trabalho, às mãos.

Quero ilustrar essa diferença a partir da literatura grega arcaica.

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Inicialmente, recorro a Hesíodo, no seu já citado texto Os trabalhos e os dias (escrito no século VII a.C). Esse texto é conhecido como os Erga. Na verdade, é um poema que reage à aristocracia grega (aristoi, no gre­go, significa: bem-nascido). O ponto central de Hesíodo é de que a virtu­de é resultado de esforço, de trabalho; é uma conquista. Assim ele termi­na seu poema (Hesíodo, 1995: v. 381, 382);

Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo,

assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha.

Esse é o mesmo sentido que o dicionário Aurélio dá ao verbo traba­lhar e ao substantivo trabalho:

Trabalhar: [Do lat. vulg. tripaliare, 'martirizar com o tripalium' (instrumento de tortura), pela f. trebalhar.] V. int. 1. Ocupar-se em algum mister; exercer o seu ofício; aplicar a sua atividade. [Sin. (gír.): batalhar.] 2. Esforçar-se para fazer ou alcançar alguma coisa; empregar diligência, trabalho; lidar, empe­nhar-se. (...) 7. Ocupar-se de algum mister; exercer o seu ofício; aplicar a sua atividade. 8. Empregar esforços; fazer diligência; esforçar-se. 9. Negociar, comerciar.

Trabalho: 1. aplicação das forças e faculdades humanas para alcançar um de­terminado fim; 2. atividade coordenada, de caráter físico e/ou intelectual, ne­cessária à realização de qualquer tarefa, serviço ou empreendimento; 3. o exer­cício dessa atividade como ocupação, ofício, profissão, etc.

Por essas razões, entendo que trabalho é o resultado do esforço e uso das mãos para produzir algum objeto, algo que possa servir como obra, como resultado do esforço; que se torne objeto com durabilidade; algo que fique para a posteridade.

Por outro lado, labor pode ser ilustrado pelo mito ligado ao termo grego correspondente: pónon, como já disse. Vou contar brevemente sua história.

Pónon era um dos filhos de Éris; esta, irmã gêmea de Ares (deus da guerra), filha de Zeus e Hera (também irmãos gêmeos). Zeus só con­segue casar-se com Hera após enganá-la. Como sabemos, atos sexuais entre os deuses não geravam filhos. Estes eram concebidos pela con­junção de eventos naturais; no caso de Éris, ela foi concebida quando Hera tocou uma flor espinhenta ao mesmo tempo que uma brisa passa­va pelo local. Por sua filiação e pelo evento que a gerou, recebe o nome de Éris, que no grego significa luta. Em português, Éris recebe o nome de Discórdia.

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Nos três episódios que registram a participação de Éris na mitolo­gia, vemo-la provocando disputas entre os deuses. Seus filhos mostram sua natureza; são eles: Fadiga (Pónon), Olvido (Lêthên), Fome (Limón), Do­res (Algea), Batalhas (Hysmínas), Combates (Máchas), Massacres e Homicídios (Phónous t' Androktasías), Litígios (Neíkeã), Mentiras (Pseúdeá), Falas e Dis­putas (Lógous t' Amphilloías), Desordem e Derrota (Dysnomíên £' Atên) e Ju­ramento (Hórkon), conforme Hesíodo na Teogonia (v. 226-232).

Não é sem um pouco de susto que lemos essa genealogia. À primei­ra vista, Pónon está cercado por deuses com os quais não queremos estar associados; nem mesmo nele vemos algo que possa inspirar-nos o senti­do de labor, a não ser que era algo ruim demais para os gregos deseja­rem, algo provido de maus valores, algo que podemos chamar imoral.

Eu estaria preso a esse nexo (de Éris e seus filhos como expressão de imoralidade) se não fosse o auxílio de Nietzsche:

A moral mesma — como? A moral não seria uma "vontade de negação da vida", um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com esse livro pro­blemático, o meu instinto, como um instrumento em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contravalorização da vida, puramente artística, anticristã. (1992: § 5)

O que aprendi com Nietzsche? Que se submetermos esses elemen­tos à ótica da moral cristã, perderemos seu sentido vital, isto é, o quanto esses deuses falam da vida humana, da condição humana. Com isso, quero dizer que labor, assim como tantos outros componentes da vida, convive com a luta (Éris), a má e a boa luta; com a desordem (dysnomíên), mas com a norma (nomós); com as disputas (Amphillogías), mas com a razão (Lógous); com o esquecimento (Lêthên), mas com a verdade (alêthês). Essa condição ambígua é a condição humana. Só a confiança em uma natureza não-humana poderá sustentar a idéia de que qualquer iniciativa humana não seja pertencente a esses elementos contraditórios. O que significa que pensar em labor imaginando um tipo de atividade sem a presença desses "deuses" é crer em algo sem base alguma na realidade.

0 labor reflexivo

Por que minha insistência na palavra labor? Vou responder. Estou num empenho em demonstrar que há grande fertilidade no

conceito de pesquisa colaborativa, adotado por Pimenta (Garrido, Pimenta

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& Moura, 2000). E essa fertilidade está no fato de que qualquer atividade co-laborativa fará emergir expressões humanas que a sabedoria grega já apontava. Imaginar que a co-laboração será uma atividade linear ou har­mônica é desconhecer as possibilidades de reações dos seres humanos. Contudo, não quero abordar esse tema sob a ótica da psique humana, ou do psicologismo que Pimenta (1981) já reagiu com propriedade.

Mas com isso não quero dizer que a co-laboração seja um processo dialético ao modo do marxismo, conceito caro a Pimenta (1997). Como ela mesmo afirma, "práxis é a atitude (teórico-prática) humana de trans­formação da natureza e da sociedade" (1997: 86). Aqui não está em ques­tão a transformação; isso colocaria meu discurso no âmbito da moral cristã, uma vez que, ao emergir "os filhos de Éris", haveria um empenho em transformar esses "demônios" em seres construtores, ou seja, domar os impulsos humanos por um condutor moral. O que defendo é o fato de o labor ser composto por tais elementos conflitivos, que devem ser vistos como elementos desse processo; lidar com eles é lidar com o humano, ou seja, tem a ver mais com a educação do que com o controle.

Do labor reflexivo à reflexão colaborativa

Como tenho insistido, o labor é uma atividade rica, pois tangencia a própria condição humana. Somos nós mesmos, com nossa idiossincrasia, em disputa, em polêmica, em labor com o outro.

Presente ao labor está sua irmã: a fala, que Hesíodo chama de lógos. Curiosamente, essa "divindade" nos é querida, isto é: queremos o lógos, o julgamos valioso para nós e nossa sociedade. E o que esperamos dele?

Parece-me que a expectativa que temos do lógos é que este conduza a sociedade e nossas relações. Queremos que o lógos conduza nosso pen­samento, nossa reflexão. Por isso traduzimos (a meu ver, precipitada­mente) este termo grego por razão.

A divindade grega, filho de Éris, chama-se Lógous; uma análise sin­tática dessa forma nos mostra que é um substantivo da 2a declinação, masculino acusativo plural. Isso significa que o termo funciona como um tipo de objeto direto. Pergunto: este termo é acusativo de qual ver­bo? Na Teogonia, Hesíodo nos diz: téke, cujo sentido, aqui, é "parir". Mas este verbo tem sua raiz em tékon, de onde vem outro verbo: téknê, que costumamos transliterar para o português técnica. Mas já disse que o sen­tido próprio desse termo é produzir, a partir de Heidegger e Habermas.

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Temos, então, que a Fala (plural, no grego), o Lógous, c filho, c produto, vem ao mundo a partir da Luta (Éris). Para a sabedoria mítica grega, as falas têm sua origem na luta, na discórdia, no conflito. Podemos dizer, portanto, que não há razão (lógos) fora do espaço do diálogo, da batalha, da polêmica, da disputa. Imaginar que a razão é consenso, novamente, estamos sub-traindo a palavra de seu lugar original. Direi: é o espaço coletivo que dá a luz ao saber, à razão.

m

Posso dizer, portanto, que o lógos está ligado ao que nós chamamos de reflexão: o pensamento sobre o pensamento (Heidegger, 1998: 210). Este pro-cede2 de Éris, da luta, do conflito; é irmão de Pónon, irmão do labor. Numa palavra: reflexão é co-labor.

E com esse conteúdo dos termos que entendo o que Pimenta afir­ma com:

A prática do professor estaria sendo constantemente reelaborada pela "refle­xão sobre a ação", isto é, pela reflexão empreendida antes, durante e depois da sua atuação, tendo em vista a superação das dificuldades experienciadas no cotidiano escolar (Garrido, Pimenta & Moura, 2000: 91).

Reelaborar a prática é o constante labor do que é feito, por instru­mento do lógos. Isso reconfigura a formação (também no sentido de pro­ceder) docente:

Esta perspectiva reorienta os cursos de formação, no que diz respeito, sobretu­do, às relações dialógicas entre teoria e prática e à importância da aprendiza­gem de procedimentos investigativos e de interpretação qualitativa dos da­dos. Nesse processo, fica explícita a importância da atuação coletiva dos pro­fessores no espaço escolar, propiciador de trocas reflexivas sobre as práticas, o que qualifica a profissão do professor, definindo-o como intelectual em pro­cesso contínuo de formação (Idem, ibidem: 92).

Relações dialógicas, os dois lógos, os lógos da Luta: esse é o labor docente. Por isso, creio que o sentido de pesquisa colaborativa é fértil para pensarmos a dinâmica dos processos escolares, visando à formação dos professores e à constituição de uma epistemologia da prática:

Essa sistemática de trabalho funda-se nos princípios da pesquisa colaborativa: não se pretende que o professor universitário, considerado especialista, dite

2. Téchnê diz respeito a toda produção, no sentido do modo humano de pro-ceder (Heidegger, 1998: 214).

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os rumos das mudanças, e que os professores da escola sejam meros executo­res. Ambos são parceiros, responsáveis pelo projeto (Idem, ibidem: 96).

Considerações finais

Quero insistir que meu empenho é por tentar trazer conteúdo a al­guns termos da Didática que, a meu ver, são férteis. Eles são: ensino refle­xivo e pesquisa colaborativa. Esse conteúdo torna-se contundente na me­dida em que voltamos nossa atenção às origens desses termos na literatu­ra grega arcaica e no tratamento filosófico que se tem dado a esses termos.

A meu ver, esse meu esforço é original na medida em que procura fugir das tradicionais leituras de origem dialética que têm sido feitas pelos teóricos da educação. Apesar de estar consciente de que ainda te­nho de me aprofundar mais nesse campo, penso que posso dar uma res­posta ao desafio proposto por Pimenta e Zeichner de pensar um tipo de formação e ação docente apoiadas nos conceitos (a meu ver, digo de novo) férteis de pesquisa colaborativa e ensino reflexivo.

Diria, neste primeiro momento, que a reflexão é da ordem do diálo­go e do embate entre seus atores; que esse embate caracteriza nossa condi­ção humana e deve ser assumido como tal; e que desse labor pro-cedem novas formas de atuação e inserção na escola, no cotidiano da escola.

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PROFES?' m r j — m m

da alienação da téc

Evandro Ghedin*

Introdução

As reflexões que aqui se encontram são resultado de uma tripla compreensão da problemática em torno da proposta de professor reflexi­vo. O primeiro movimento de reflexão vai do prático-reflexivo, que é uma proposta de Shõn, para uma epistemologia da práxis, isto é, um conhecimento que é resultado de uma ação carregada da teoria que a fundamenta. E neste sentido que se contesta um certo tecnicismo na for­mação de professores orientada por um positivismo pragmático, o qual impõe uma razão técnica e um modelo epistemológico de conhecimento prático que negligencia o papel da interpretação teórica na compreensão da realidade e na prática formativa dos docentes. É preciso transpor o modelo prático-reflexivo para uma prática dialética que compreenda as razões de sua ação social.

O segundo movimento parte da epistemologia da prática indican­do que a chegada do movimento intelectual do professor deve conduzi-lo à autonomia emancipadora da crítica. Para isto, começa-se afirmando

* Professor de Filosofia, pós-graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, pós-graduado em Antropologia na Amazônia e mestre em Educação pela Universidade Fede­ral do Amazonas. Doutorando em Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo. [email protected] / [email protected]

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que a epistemologia da prática limita o horizonte da autonomia, que só se torna possível com a emancipação da crítica. A reflexão crítica emana da participação num contexto social e político que ultrapasse o espaço restrito da sala de aula, pois se constitui num contexto de uma sociedade de classes.

O terceiro movimento parte da epistemologia da prática docente à prática da epistemologia crítica, entendendo-a como modelo explicativo e compreensivo do trabalho do professor como profissional que dá sen­tido e significado ao seu fazer num dado contexto histórico. O modelo crítico, como alternativa de mudança, propõe um processo de oposição e resistência a uma missão inscrita na definição institucional do papel do­cente, que se insere num contexto social a ser transformado.

Além de tudo, é importante que se diga, antes mesmo de come­çar, que toda reflexão está sempre historicamente situada diante de cir­cunstâncias concretas que estão ligadas ao contexto social, político, eco­nômico e histórico. Todo ser humano, pelo caráter geral de sua cultura e por ser portador da cultura humana e da cultura de uma determina­da sociedade, é um sujeito reflexivo. Porém, há sempre uma substanti­va diferença e graus diferentes entre as reflexões que os diversos seres humanos produzem. Partimos do pressuposto de que todo ser huma­no é dotado de reflexividade, mas afirmamos que nem toda reflexão é do mesmo grau ou nível. A questão distintiva das diversas formas so­ciais de reflexão são simultâneas e anteriores ao próprio processo refle­xivo. Este processo anterior e que marca radicalmente o resultado do conhecimento fundado na reflexividade situa-se, por um lado, nas con­dições históricas e objetivas do sujeito que reflete e, por outro, diría­mos, no trabalho, como ação fundante do humano e de sua condição. Com isto se quer dizer que o ser humano se faz num movimento contí­nuo e permanente através do trabalho. Somos muito mais o resultado deste fazer que as possibilidades de nosso pensar sobre ele. Mais que isto, esta dialética entre fazer e pensar possibilitou, no humano, a insti­tuição de seu ser.

O ser humano é fundado neste movimento contínuo, permanente e duradouro de pensar fazendo-se e ao fazer-se pensante fundamen­tar-se historicamente no tempo e só esta historicidade possibilita e condiciona toda a emergência de seu vir-a-ser. Assim, o trabalho é um processo contínuo e permanente de auto-construção que se faz pela abstração e concretização do mesmo. Ele institui uma dialética do fa­zer-se e do fazer ser.

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1. Do prático reflexivo à epistemologia da práxis

Revendo a literatura que aborda a questão da formação profissio­nal do professor, fundada num paradigma reflexivo, um problema se coloca evidente: o modelo de formação que se orienta no positivismo pragmático não responde às necessidades concretas de um profissio­nal que responda, mais amplamente, aos desafios contemporâneos. Isto quer dizer que não estamos diante de um problema exclusivamente prático, como quer o modelo tradicional de orientação pragmática, mas frente a uma questão eminentemente epistemológica, isto é, o proble­ma de formação dos professores não está centrado tanto no como for­mar bons profissionais da educação e sim, em quais os pressupostos que possibilitam e tornam possível uma proposta válida em detrimen­to e em oposição a outra.

Isto está ligado não só à formação docente, mas ao estatuto da ciên­cia da educação. É neste sentido que o problema da profissionalização está diretamente relacionado com a epistemologia que se constrói neste campo de saber. As abordagens sobre o problema estão muito centradas em situações práticas, que não deixam de ser relevantes, mas que não fundamentam suficientemente uma perspectiva que possibilite um salto da prática, como ponto de partida, para a construção do saber pedagógi­co sistematicamente fundamentado.

Portanto, a questão que precisamos nos colocar é a seguinte: em que base epistemológica se fundamenta a atual proposta de formação dos profissionais da educação? Esta é uma questão que não estamos em condições de resolver; o que se quer, de certo modo, é evidenciar uma problemática presente na proposta de formação de professores. Isto quer dizer que há uma necessidade intrínseca que precisa se tornar explícita no modo de tratar e propor a formação profissional dos professores.

O caminho aberto pela necessidade da reflexão, como modelo de formação, propôs uma série de intervenções que tornou possível, ao ní­vel teórico e prático, um novo modo de ver, perceber e atuar na forma­ção dos professores. Com todas as críticas e acréscimos que se façam à proposta feita por Schõn, é inegável a sua contribuição para uma nova visão da formação e, por que não dizer, de um paradigma esquecido pelos centros de formação. A grande crítica que se coloca contra Schõn não é tanto a realização prática de sua proposta, mas seus fundamentos pragmáticos. A questão que me parece central é que o conhecimento pode e vem da prática, mas não há como situá-lo exlusivamente nisto. E de-

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corrente desta redução que se faz da reflexão situada nos espaços estrei­tos da sala de aula que se situa sua crítica.

Esta crítica não é exclusiva a Schõn, mas à razão técnica, pois a ra­cionalidade técnica consiste numa epistemologia da prática que deriva da filosofia positivista e se constrói sobre os próprios princípios da in­vestigação universitária contemporânea (Schõn, 1992). A racionalidade técnica defende a idéia de que os profissionais solucionem problemas instrumentais mediante a seleção dos meios técnicos. Para Schõn (1992), os profissionais da prática que são rigorosos resolvem problemas instru­mentais bem estruturados mediante a aplicação da teoria e técnica que derivam do conhecimento sistemático. O questionamento a este tipo de profissionalização é que quando se esgota o repertório teórico e os ins­trumentos construídos como referenciais, o profissional não sabe como lidar com a situação. E diante disto que se justifica a proposta de Schõn, o problema foi ele ter reduzido a reflexão, como proposta alternativa para a formação, ao espaço da própria técnica.

Isto fica evidente quando propõe que a visão geral do que denomi­na de um "prático reflexivo" seja uma prática que pretenda ajudar os estudantes a adquirir as formas de arte que sejam essenciais para se com­preender as zonas indeterminadas da prática. Defende o argumento de que as escolas profissionais devem reimplantar tanto a epistemologia da prática como os supostos pedagógicos sobre os quais assistem seus pla­nos de estudo, para favorecer mudanças em suas instituições de modo que dêem espaço para um prático reflexivo, como um elemento-chave na preparação de seus profissionais (Schõn, 1992).

O que Schõn está criticando é que o conhecimento não se aplica à ação, mas está tacitamente encarnado nela e é por isso que é um conhe­cimento na ação. Mas isto não quer dizer que seja exclusivamente prá­tico. Se assim o for, estaremos reduzindo todo saber a sua dimensão prática e excluindo sua dimensão teórica. O conhecimento é sempre uma relação que se estabelece entre a prática e as nossas interpretações da mesma; é a isso que chamamos de teoria, isto é, um modo de ver e interpretar nosso modo de agir no mundo. A reflexão sobre a prática constitui o questionamento da prática, e um questionamento efetivo inclui intervenções e mudanças. Para isto há de se ter, antes de tudo, de algum modo, algo que desperte a problematicidade desta situação. A capacidade de questionamento e de autoquestionamento é pressupos­to para a reflexão. Esta não existe isolada, mas é resultado de um am­plo processo de procura que se dá no constante questionamento entre

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o que se pensa (como teoria que orienta uma determinada prática) e o que se faz.

Num processo mecânico de ensino — aprendizagem, a teoria se encontra dissociada da prática. Quando isto acontece, o conhecimento e seu processo são enormemente tolhidos e dificultados. Perceber a teoria e a prática como dois lados de um mesmo objeto é imprescindível para se compreender o processo de construção de conhecimento. Quando dissociamos estas duas realidades simultâneas, estamos querendo sepa­rar o que é inseparável, pois não existe teoria sem prática e nem prática alguma sem teoria. O que acontece é que, por conta de uma percepção alienada, não se percebe a sua dialética. Teoria e prática só se realizam como práxis ao se agir conscientemente de sua simultaneidade e separa­ção dialética.

Para Vásquez (1977), a atividade reflexiva como interpretação ou como instrumento teórico de sua transformação é sempre uma atividade intelectual teórica e, enquanto a teoria permanece em seu estado pura­mente teórico, não se passa dela à práxis e esta é negada. Para produzir mudança não basta desenvolver uma atividade teórica; é preciso atuar praticamente. Não se trata de pensar um fato, e sim de revolucioná-lo; os produtos da consciência têm que se materializar para que a transforma­ção ideal penetre no próprio fato. Assim, enquanto a atividade prática pressupõe uma ação efetiva sobre o mundo, que tem por resultado uma transformação real deste, a atividade teórica apenas transforma nossa consciência dos fatos, nossas idéias sobre as coisas, ruas não as próprias coisas. Porém, esta transformação da consciência das coisas é pré-supos-to necessário para se operar, no plano teórico, um processo prático.

No que diz respeito à formação de professore s, há de se operar uma mudança da epistemologia da prática para a epistemologia da práxis, pois a práxis é um movimento operacionalizado simultaneamente pela ação e reflexão, isto é, a práxis é uma ação final que traz, no seu interior, a inseparabilidade entre teoria e prática. O processo humano de com-preensão-ação é, intrinsecamente, uma dinâmica que se lança continua­mente diante da própria consciência de sua ação-. Mas a ação, puramente consciente da ação, não realiza em si uma práxis. A consciência-práxis é aquela que age orientada por uma dada teoria e tem consciência de tal orientação. Teoria e prática são processos indissociáveis. Separá-los é arriscar demasiadamente a perda da própria possibilidade de reflexão e compreensão. A separação de teoria e prática se constitui na negação da identidade humana. Quando se executa tal movimento permite-se o re-

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torno à negação do ser, isto é, ao se negar a indissociabilidade entre prá­tica e teoria, nega-se, em seu interior, aquilo que tornou o ser humano possível: a reflexão instaurada pela pergunta. A alienação encontra-se justamente na separação e dissociação entre teoria e prática.

A pior das violências humanas é esta intencionalidade de separa­ção da teoria da prática. É uma violência porque nela se rompe a possibi­lidade de manutenção da identidade humana consigo mesma. A identi­dade é cultural, social, política, econômica, religiosa. Mas há algo que é anterior a estas manifestações da identidade. Justamente aquela funda­ção ontológica da humanidade, isto é, a separação entre teoria e prática é uma negação da identidade ontológica do ser humano porque, ao dicotomizar teoria e prática, simultaneamente, separa-se a reflexão da ação. Ao operar esta "mecânica" instaura-se uma negação, suprime-se ou reduz-se o ser humano apenas a um organismo agente. A negação da pergunta não é u:,,a negação do perguntar, mas uma negação ontológica, e esta é a maior violência; talvez a violência primeira que está na origem de todas as outras formas de violência.

O ser humano age, sempre, orientado para determinados fins, se­jam eles plenamente conscientes ou não. A atividade prática implica a modificação do ideal em face das exigências do próprio real. A prática requer um constante vai-e-vem de um plano a outro, o que só pode ser assegurado se a consciência se mostrar ativa ao longo de todo o processo prático. Resulta disso que a atividade prática é inseparável dos fins que a consciência traça.

As modificações impostas às finalidades das quais se partiram para encontrar

uma passagem mais justa do subjetivo ao objetivo, do ideal ao real, só fazem

demonstrar, ainda mais vigorosamente, a unidade entre o teórico e o prático

na atividade prática. Esta, como atividade ao mesmo tempo subjetiva e objeti­

va, como unidade do teórico com o prático na própria ação, é transformação

objetiva, real, na matéria através da qual se objetiva ou realiza uma finalidade:

é, portanto, realização guiada por uma consciência que, ao mesmo tempo, só

guia e orienta (...) na medida em que ela mesma se guia ou orienta pela pró­

pria realização de seus objetivos (Vásqucz, 1977: 243).

É nesta relação entre a prática e a teoria que se constrói também o saber docente, que é resultado de um longo processo histórico de organi­zação e elaboração, pela sociedade, de uma série de saberes, e o educador é responsável pela transmissão deste saber produzido. Neste momento de pós-Revolução Industrial (tecnológica), a produção e a transmissão do

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conhecimento se dão dentro de uma "ilógica" (irracionalidade) da divisão do trabalho que esfacela e divide o saber do ensino e da pesquisa. A pes­quisa passa a ser tarefa do pesquisador especializado e ao professor será dada a tarefa de transmissor do conhecimento. Nesta mesma "ilogicidade" a escola, por ser resultado da sociedade na qual está culturalmente inserida, oferece os saberes deste sistema social, que não possui a preocupação com a formação do cidadão, mas apenas em "formar" o empregado que irá ser selecionado (pela escola) para o mercado de trabalho.

Pelo fato de o conhecimento produzido (pelo especialista) não pas­sar pelo crivo da prática, o que chega ao educador é um conhecimento produzido e legitimado por outro. É o professor quem procura articular o saber pesquisado com a sua prática, interiorizando e avaliando as teo­rias a partir de sua ação, na experiência cotidiana. Deste modo, a prática se torna o núcleo vital da produção de um novo conhecimento, dentro da práxis.

Os saberes da experiência e da cultura surgem como centro nerval do saber docente, a partir do qual os professores procuram transformar suas relações de exterioridade com os saberes em relação à inferioridade de sua prática. Os saberes da experiência não são saberes como os de­mais, eles são formadores de todos os demais. É na prática refletida (ação e reflexão) que este conhecimento se produz, na inseparabilidade entre teoria e prática.

A experiência docente é espaço gerador e produtor de conhecimen­to, mas isso não é possível sem uma sistematização que passa por uma postura crítica do educador sobre as próprias experiências. Refletir so­bre os conteúdos trabalhados, as maneiras como se trabalha, a postura frente aos educandos, frente ao sistema social, político, econômico, cul­tural é fundamental para se chegar à produção de um saber fundado na experiência. Deste modo, o conhecimento que o educador "transmite" aos educandos não é somente aquele produzido por especialistas deste ou daquele campo específico de conhecimento, mas ele próprio se torna um especialista do fazer (teórico-prático-teórico).

Fundar e fundamentar o saber docente na práxis (ação-reflexão-ação) é romper com o modelo "tecnicista mecânico" da tradicional divisão do trabalho e impor um novo paradigma epistemológico capaz de emanci­par e "autonomizar" não só o educador, mas, olhando-se a si e à própria autonomia, possibilitar a autêntica emancipação dos educandos, não sen­do mais um agente formador de mão-de-obra para o mercado, mas o arquiteto da nova sociedade, livre e consciente de seu projeto político.

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2. Da epistemologia da prática à autonomia emancipadora da crítica

Como assinala o próprio Schõn, a prática profissional desenvolvi­da sob uma perspectiva reflexiva não é uma prática que se realiza abs-traindo-se do contexto social no qual ocorre. Este é um contexto que re­presenta também diferentes interesses e valores. Os professores não es­tão à margem da discussão pública sobre as finalidades do ensino e sua organização. Pelo contrário, encontram-se precisamente no meio das con­tradições presentes na sociedade. Por isso mesmo, não podem, de modo algum, nas suas reflexões e ações, deixar de levar em consideração tal contexto como condicionante de sua própria prática. Sob este ponto de vista, a deliberação prática e o juízo profissional autônomo se realizam no contexto dos elementos que intervém na reflexão, e ele participa do conflito ideológico ou da contradição de interesses que se desenvolve publicamente.

Aqui assume relevância ímpar a crítica, pois os professores têm a responsabilidade de ter opiniões informadas e critérios de valor argumentáveis, assim como de defendê-los publicamente. Ao estabele­cer as relações entre a prática reflexiva do ensino em aula e a participa­ção nos contextos sociais que afetam sua atuação, o professor reflexivo estende suas deliberações profissionais a uma situação social mais am­pla, colaborando para que se gere uma mudança social e pública que possa ser mais reflexiva (Contreras, 1997) e ampliar o horizonte da com­preensão crítica de sua atuação.

É claro que Schõn não está tentando propor um processo para a mudança institucional e social, mas centrando-se nas práticas individuais. Porém para poder falar de uma prática reflexiva competente nas escolas "as condições do ensino teriam que ser examinadas e, em definitivo, mudadas". Schõn, em princípio, parece mais interessado em apresentar um modelo alternativo de descrição da prática profissional, a partir de análises leva­das a cabo sobre casos concretos de exercício profissional em diferentes campos; é evidente que sua posição não se limita a descrever uma reali­dade. Suas análises demonstram que nem todos os profissionais se com­portam de forma reflexiva. E certo que os casos que analisa estão centrados em análises de processos muito vinculados às transformações imediatas de atores individuais, porém isso não quer dizer que Schõn não seja cons­ciente da limitação de sua análise (Contreras, 1997).

Quando se defende a idéia do professor como profissional reflexi­vo não se está revelando nenhum conteúdo para a reflexão. Não se está

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propondo qual deve ser o campo de reflexão e onde estão situados seus limites. Pressupõe-se que o potencial da reflexão ajudará a reconstruir tradições emancipadoras implícitas nos valores de nossa sociedade. O que está em dúvida é se os processos reflexivos, por suas próprias quali­dades, se dirigem a consciência e realização dos ideais de emancipação, igualdade ou justiça; ou se poderiam estar a serviço da justificação de outras normas é princípios vigentes em nossa sociedade, como a meritocracia, o individualismo, a tecnocracia e o controle social.

A escola representa aspirações e valores que nem sempre são resul­tados claramente compatíveis. Precisamos entender de que maneira os docentes podem manejar estes processos de interação entre seus interes­ses e valores e os conflitos que a escola representa, com o objetivo de entender melhor que possibilidades de reflexão crítica podem gerar-se na pertença à instituição educativa. A conclusão que poderíamos tirar é que os professores, ao defender uma posição mais vantajosa, acabam reduzindo suas preocupações e suas perspectivas de análise aos proble­mas e às situações internas ao espaço da sala de aula. Não se pode pre­tender que a situação mude apelando por uma simples transformação destas condições, como se um exercício de vontade pessoal por parte dos docentes fosse capaz de uma mudança; ou ainda, que a transforma­ção possa realizar-se só por um desejo de deixar de ser individualista, presentista e conservador. Se realmente os professores se encontram en­volvidos nesta lógica em que tudo se reduz às quatro paredes da sala de aula, haveríamos de aceitar o que diz Giroux (1997) de que o enfoque reflexivo finda naquilo que ignora. Teríamos que aceitar que a mera re­flexão sobre o trabalho docente em aula pode resultar insuficiente para elaborar uma compreensão teórica sobre aqueles elementos que condicionam sua prática profissional.

Muitos professores tendem a limitar seu mundo de ação e de refle­xão à aula. É necessário transcender os limites que se apresentam inscri­tos em seu trabalho, superando uma visão meramente técnica na qual os problemas se reduzem a como cumprir as metas que a instituição já tem fixadas. Esta tarefa requer a habilidade de problematizar as visões sobre a prática docente e suas circunstâncias, tanto sobre o papel dos professo­res como sobre a função que cumpre a educação escolar. Isto supõe: que cada professor analise o sentido político, cultural e econômico que cum­pre à escola; como esse sentido condiciona a forma em que ocorrem as coisas no ensino; o modo em que se assimila a própria função; como se têm interiorizado os padrões ideológicos sobre os quais se sustenta a estrutura educativa.

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Isto indica que o trabalho docente é uma tarefa eminentemente in­telectual e implica um saber fazer (Santos, 1998). Conceber o trabalho dos professores e professoras como trabalho intelectual quer dizer, pois, desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo em que se relaciona com a ordem social, assim como analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das aulas e do ensino (Contreras, 1997).

Giroux (1986 e 1997) tem sido quem mais desenvolveu a idéia dos professores como intelectuais. De um lado, permite entender o trabalho docente como tarefa intelectual, por oposição às concepções puramente técnicas ou instrumentais. De outro, fundamenta a função dos professo­res como ocupados em uma prática intelectual crítica relacionada com os problemas e as experiências da vida diária. Entende, ainda, que os professores devem desenvolver não só uma compreensão das circuns­tâncias em que ocorre o ensino, senão que, em união com os alunos e as alunas, devem desenvolver também as bases para a crítica e a transfor­mação das práticas sociais que se constituem em torno da escola.

A definição do professor como intelectual transformador permite expressar sua tarefa nos termos do compromisso com um conteúdo mui­to definido: elaborar tanto a crítica das condições de seu trabalho como uma linguagem de possibilidade que se abra à construção de uma socie­dade mais democrática e mais justa, educando seu alunado como cida­dãos críticos, ativos e comprometidos na construção de uma vida indivi­dual e pública digna de ser vivida, guiados pelos princípios de solidarie­dade e de esperança (Contreras, 1997).

Facilitar a conexão de uma concepção da prática docente com um processo de emancipação dos próprios professores, que se encaminhe para uma configuração como intelectuais críticos, requer a constituição de processos de colaboração com o professorado para favorecer sua re­flexão crítica. A reflexão crítica não se refere só àquele tipo de meditação que podem fazer os docentes sobre suas práticas e as incertezas que es­tas lhes ocasionam, senão que supõe ademais "uma forma de crítica" que lhes permita analisar e questionar as estruturas institucionais em que trabalham (Contreras, 1997).

Refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ação, na história da situação, participar em uma atividade social e tomar pos­tura ante os problemas. Significa explorar a natureza social e histórica, tanto de nossa relação como atores nas práticas institucionalizadas da educação, como da relação entre nosso pensamento e nossa ação educa-

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tiva. A reflexão crítica há de ser uma atividade pública, reclamando a organização das pessoas envolvidas e dirigindo-se a elaboração de pro­cessos sistemáticos de crítica que permitiriam a reformulação de sua teo­ria e sua prática social e de suas condições de trabalho (McCarthy, 1987).

Um processo de reflexão crítica permitiria aos professores avançar num processo de transformação da prática pedagógica mediante sua própria transformação como intelectuais críticos; isto requer a tomada de consciência dos valores e significados ideológicos implícitos nas atua­ções docentes e nas instituições, e uma ação transformadora dirigida a eliminar a irracionalidade e a injustiça existentes nestas instituições (Contreras, 1997). A reflexão crítica apela a uma crítica da interiorização de valores sociais dominantes, como maneira de tomar consciência de suas origens e de seus efeitos.

A teoria crítica não é uma simples perspectiva externa sobre os pro­cessos de transformação que levam a cabo os grupos sociais. Seu com­promisso com a emancipação não se limita a mostrar as formas emancipadoras da razão ou as diferenças entre invariantes sociais e rela­ções hipostasiadas, senão que integra o processo de transformação, aju­dando aos grupos a interpretar-se nas formas de dominação a que se encontram submetidos e a vislumbrar as possibilidades que se abrem para eles. Isto quer dizer que a teoria crítica, ademais de ser uma refle­xão pessoal, é uma construção social e política sobre como a sociedade se organiza politicamente em função de interesses de classe.

Habermas (1990) defende a auto-reflexão como a possibilidade de trazer à consciência os determinantes de uma forma concreta de estar estruturada a realidade social, processo pelo qual, ao fazer-se consciente de tais determinantes, se desfazem seus poderes repressivos sobre a ra­zão. Porém, a forma que resolve tal possibilidade da auto-reflexão que desfaz as distorções da consciência é distinguindo dois tipos de reflexão: o momento da crítica do particular e o momento das formas de reflexão transcendental ou de reconstrução racional, base dos teoremas críticos, a partir dos quais se desenvolve o anterior momento crítico do particular (Ghedin, 2001).

Isto está a nos indicar que as experiências e o conhecimento não são homogêneos nem idênticos. As diferentes posições sociais dos sujeitos e suas distintas experiências de vida criam diferenças que se refletem nas emoções, nas interpretações, nas aspirações, nos medos e nas ilusões. As contradições que vivem os professores são também produto do encontro com estas diferenças irredutíveis, e às vezes mutuamente incompreensí-

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veis, das distintas perspectivas e interesses que convivem no meio esco­lar, e do desejo entre a pretensão de unificar as perspectivas e interesses, ou da renúncia, isto é, a eliminação e o rechaço da diferença ou de sua aceitação. O desenvolvimento de uma reflexão crítica poderia estar não tanto interessado na superação das diferenças como em seu reconheci­mento (Allsworth, apud Contreras, 1997).

O que sugere o modelo do professorado como intelectual crítico é que tanto a compreensão dos fatores sociais e institucionais que condicionam a prática educativa, como a emancipação das formas de dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são proces­sos espontâneos que se produzem naturalmente. A figura do intelectual crítico é assim a de um profissional que participa ativamente no esforço por desvelar o oculto, por desentranhar a origem histórica e social do que se apresenta a nós como "natural", por conseguir captar e mostrar os processos pelos quais a prática de ensino atrapalha-se em pretensões, relações e experiências de duvidoso valor educativo. O intelectual críti­co está preocupado pela captação e potenciação dos aspectos de sua prá­tica profissional que conservam uma possibilidade de ação educati-vamente valiosa (Contreras, 1997).

Tudo isto supõe um processo de oposição ou de resistência a gran­de parte dos discursos, às relações e às formas de organização do siste­ma escolar, uma resistência a aceitar como missão profissional aquela que já aparece inscrita na definição institucional do papel docente. A aspiração à emancipação não se interpreta como a conquista de um di­reito individual profissional, mas como a construção das conexões entre a realização da prática profissional e o contexto social mais amplo, que também deve transformar-se.

3. Da epistemologia da prática docente à prática da epistemologia crítica

O conhecimento, como resultado de uma reflexão sistemática, rigo­rosa e de conjunto de nossa própria prática, de sua construção, atinge-nos, diretamente, no mais íntimo de nosso ser. Por ele nos envolvemos, distanciamo-nos da realidade justamente para poder compreendê-la na sua significação mais profunda, pois ela nos toca em todos os níveis. O real, quando objeto sistemático de estudo, atinge-nos a intimidade e ques­tiona radicalmente os preconceitos oriundos de um fazer-ser não refleti­do. Todos os sentimentos e emoções envolvem-se no processo de cons­trução do conhecimento, que não se encerra senão no fim da vida, do

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mesmo modo que implica uma vontade mtima de entender-se nas coisas que se vai procurando compreender.

O conhecimento não só é uma construção social como também uma possibilidade de resgatar a dignidade do ser humano no interior da cul­tura à qual pertencemos. O ideal que se coloca diante da nossa vontade de poder ser, que representa o mundo, torna possível um processo de humanização através do conhecimento que deseja, acima de tudo, por meio dele, afirmar a própria vida cotidiana num horizonte de compreen­são de seu sentido.

Alimentar as possibilidades infinitas das habilidades cognoscitivas dos sujeitos deve ser uma tarefa essencial de todo o processo educativo, pois é apenas diante da necessidade de um vir-a-ser que é possível a construção de um ser cidadão politicamente comprometido com as trans­formações radicais da sociedade.

Não há o que possa explicar melhor o sentido de nossas práticas pedagógicas educativas do que os limites e as possibilidades de estabe­lecer-se em nós um processo sistemático de reflexão sobre elas. O que fazemos não se explica pelo como fazemos; possui sentido diante dos significados que lhe são atribuídos. Estes significados não são latentes mas emanam, de fato, dos sentidos que construímos. O fazer prático só tem sentido em face do horizonte de significações que podemos conferir ao nosso por que fazer. Porém, isto pode estar marcado, inconsciente­mente, por um processo de dominação ideológica e alienante. O hori­zonte dos significados possibilita-nos um descortinar dos sentidos de nossa prática em relação às outras práticas sociais. Um fazer não refleti­do sistematicamente impede-nos o horizonte do sentido.

Conhecer é desvendar, na intimidade do real, a intimidade de nos­so próprio ser, que cresce justamente porque a nossa ignorância vai se dissipando diante das perguntas e respostas construídas por nós, en­quanto sujeitos entregues ao conhecimento, como dependência da com­preensão de nosso ser no mundo. Se há um sentido no ato de conhecer é justamente este: ao construirmos o conhecer de um dado objeto, não é somente ele que se torna conhecido, mas essencialmente o próprio sujei­to, isto é, o conhecimento de algo é também, simultaneamente, um auto-conhecimento.

Esta dinâmica, imbricada no processo de construção e autoconstru-ção do conhecimento do real e nele do próprio sujeito cognoscente, é o essencial de todo ato de conhecer. Se é possível sistematizar algo do sig-

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nificado real das coisas, isto acontece porque toda vida do sujeito está envolvida neste feixe de significações que possibilita a compreensão.

Compreender o fazer humano não é uma tarefa fácil numa socieda­de radicalmente marcada por um pragmatismo tecnicista, em que tudo se explica por sua utilidade. Por isso mesmo, a compreensão supõe uma reflexão analítica, crítico-criativa que possa, a partir do fazer-ser peda­gógico, superar os enganos cognitivos que dificultam o conhecimento de nossas próprias práticas. Isto quer dizer que a atividade pedagógica está, também, radicalmente marcada por um fazer político, do mesmo modo que a ação política implica um fazer pedagógico. Os caminhos (métodos) do conhecimento não se articulam por si mesmos. Eles são o resultado de uma experiência que se soma qualitativamente uma vez que possamos fazer deles objetos de nossa própria reflexão. Isto quer dizer que o ato reflexivo é uma atividade que implica uma mudança ativa (política) no interior da sociedade. Se não for assim, é mero exercí­cio intelectual marcadamente alienante e não a construção filosófica do mundo. Aliás, a reflexão que não se torna ação política, transformadora da própria prática, não tem sentido no horizonte educativo.

O olhar que se destina à percepção do concreto explica-se pela ha­bilidade de abstração que adquire sentido quando, dialeticamente, pode voltar-se à própria concreticidade das coisas para torná-las evidentemente conhecidas. O ato de conhecer torna-se uma habilidade de captar as coi­sas e os seres no seu processo dinâmico de manifestação radical, no hori­zonte cotidiano em que se dá a experiência da vida. As confirmações que buscamos nas outras reflexões (teorias e pensamentos), por mais que pareça um ecletismo, são uma tentativa de não nos isolar na auto-afir­mação da opinião pessoal. Se parecer exagero uma mescla de infindas definições, adquire sentido pelo significado abrangente do próprio obje­to sobre o qual nos debruçamos.

Poderíamos dizer que conhecer é tornar-se hábil em descortinar os horizontes escondidos por trás das aparências. E na superação dos pró­prios limites que o conhecimento adquirido e produzido fomenta-se de sentido em nós. Nisto, somos tocados e tocamos as coisas que custam um exercício permanente de busca.

No processo de construção do conhecimento amadurecemos com os nossos sofrimentos, mas também com as alegrias das descobertas que vamos fazendo de nós mesmos, do mundo e dos outros. Uma tarefa rea­lizada não pode, de modo algum, gerar acomodação. Ao contrário, deve gerar uma desinstalação, um choque no real, que seja capaz de impulsio­nar-nos para além de onde chegamos. Isto porque o conhecimento que

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acomoda não é conhecimento no sentido filosófico, mas alienação e ideo­logia. Se o conhecimento não nos desinstalar da poltrona confortável da acomodação irrefletida, não é digno deste nome. O sentido último do conhecimento que nos dignifica como sujeitos é justamente a desinstalação e o espanto que lançam cada ser humano, em particular, na direção de outros significados que transformam nosso modo de ser no mundo.

É neste sentido que o conhecimento nos toca no mais íntimo de nosso ser, apesar de ser algo que não depende desta intimidade pessoal, mas da relação intrínseca com as coisas. Somos modificados pelos sonhos que te­mos quando somos capazes de redimensioná-los diante de novas situa­ções. As feridas se abrem na ausência dos sonhos, na ausência da utopia; as cicatrizes são as marcas desta ausência. Nada substitui o sonho senão a nossa capacidade de sonhar, e nada eBmina esta capacidade revolucioná­ria, a não ser a desistência própria. Numa época de crise como a nossa, o caminho da busca de um tempo possível que não está presente é uma necessidade impulsionadora de nossa afirmação enquanto humanidade em construção. O conhecimento é real porque toca a possibilidade de uma proximidade daquilo que está distante. Os limites do conhecimento são limites de nossas habilidades criativas, não da infinidade da realidade. Por isso, ele é busca permanente que possibilita, ao longo de toda trajetó­ria, o descortínio de nosso próprio ser no horizonte do mundo.

É surpreendente a descoberta de si no próprio objeto e é por isso que, muitas vezes, o próprio sujeito torna-se "objeto" de investigação e de construção de conhecimento. E o horizonte da descoberta o descortinador da lógica da pesquisa, isto é, é o caminho sistemática e criticamente refletido que demonstra a possibilidade de uma construção metódica do próprio processo. Todas as construções possíveis são possi­bilidades de realização do ser que somos. O que "revelamos" no objeto conhecido é parte de nós na mesma medida em que somos sujeitos inte­grantes do mundo. Ser sujeito que interage no mundo é um sentimento de pertença demonstrado pelos apegos emotivos que representam nossa vontade permanente de ser mais. A realidade que fala em nós e por meio de nosso ser é o descortinar de um processo dinâmico na tarefa cotidiana de dissipar a ignorância das coisas, que tanto nos conduz ao sofrimento. O apego ao saber é a descoberta de uma possibilidade de superação dos limites que a sociedade de classes nos impõe (Ghedin, 2000).

Não há conhecimento pronto e acabado, do mesmo modo que não há vida absoluta. Tudo é processo contínuo de construção e de autocons-

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trução. Olhar o que estamos fazendo, refletir sobre os sentidos e os signi­ficados do fazer pedagógico é, antes de tudo, um profundo e rigoroso exercício de compreensão de nosso próprio ser. Marcar o ato cognitivo unicamente pelo resultado de um processo ou fundamentar um conheci­mento unicamente no método ou no objeto é empobrecer as dimensões de um processo totalizante que possui, também, causas subjetivas e, às vezes, inconscientes, que nos movem. O que nos atrai na construção de um "dado objeto" é justamente a nossa identidade com uma realidade concebida na mesma proporção que é um exercício de identificação subjetivada objetivamente no cotidiano em que a vida explode na busca constante de explicação.

A objetividade do subjetivo demonstra-se pelo objeto-sujeito ema­nado de um longo processo de reflexão crítica, que vai às causas de to­das as coisas, para identificar-se no horizonte da compreensão interpre-tativa, possibilitando-nos o entendimento num momento determinado de nosso fazer. A construção do objeto-sujeito é, antes, uma autocons-trução. É por isso que o real nos toca tão diretamente no mais íntimo de nosso ser.

O conhecimento adquire e tem sentido na medida em que nos toca existencialmente. Indicamos que conhecer implica, por conta do próprio processo, uma ação política calcada no compromisso ético-político para com a sociedade. O conhecimento é essencialmente o processo de uma atividade política que deve conduzir o sujeito que o produz a um com­promisso de transformação radical da sociedade, e se ele tem algo a di­zer é justamente isto: conduzir-nos a uma ação comprometida eticamen­te com as classes excluídas para que possam lançar mão deste referencial como exigência de mudança, emancipação e cidadania.

Pensar na reflexão refletida nela própria é uma tentativa de com­preender qual é sua estrutura, função e finalidade. Como estrutura po­deríamos dizer que é onde o ser humano se revela e se conhece quando se questiona; como função ela é a facilitadora do processo de sistemati-zação do pensamento, fazendo-o permanecer como filosofia que com­preende ou busca compreender o Ser; como finalidade é aquela que pos­sibilita a instauração da crítica e da criatividade.

A reflexão é instauradora do ser. Ela recoloca o ser no espaço do ente e, simultaneamente, lança o ente no ser. Assim, se poderia afirmar que o ente é manifestação do ser do mesmo modo que o ser se manifesta nos entes (Heidegger, 1988). A consciência desta presença se dá pela sis-tematização da compreensão de nosso ser-no-mundo. O filosofar se cons-

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titui na essência mesma do ser humano, especialmente naquele processo carregado de crítica e de criatividade.

O processo de reflexão é instaurador de uma ontologia da com­preensão da existência humana. E através dele que encontramos nossa identidade, nossa singularidade, nossa unicidade, nossa indivisibili-dade, nossa irreptibilidade. Por ele nos damos conta da nossa corporeidade, da sociabilidade e de nossa historicidade. É nestas di­mensões de nosso ser que somos o que somos. A ignorância destas di­mensões de nosso ser no mundo impossibilita a compreensão de nós mesmos. E quando ignoramos a totalidade de nosso ser e as partes por ele compostas que surgem os enganos e as ideologias como formas de manipulação da consciência.

Diríamos que a reflexão, como ontologia da compreensão, consti­tui-se no rompimento biológico de nosso ser. Seria a "biologia" de nosso estar no mundo, isto é, o processo reflexivo-crítico-criativo rompe com a normalidade das coisas. É o rompimento e a permanência; ao romper com a normalidade biológica lança-nos numa compreensão "revolucio­nária" do que somos; ao permanecermos nele lançamo-nos de volta à origem de nosso ser existente.

A reflexão se dá numa realidade situada histórica e socialmente, do mesmo modo que supõe o corpo como portador da possibilidade refle­xiva, e nesta situação de seu processo encontram-se os seus limites. Po­rém, apesar de todos os limites impostos historicamente ao pensamento, este sempre se situou num horizonte de rompimento com a tradição e como instaurador de novas compreensões.

O entendimento acontece sob muitas vias, mas um pensar reflexi­vo-crítico-criativo pode possibilitar a compreensão de nosso ser-no-mun-do. Isto porque o entendimento é uma visão do funcionamento de um dado processo e a compreensão, além disso, é uma experiência vivida no processo. Então, a reflexão é instauradora do sujeito que pensa, isto é, o processo de reflexão constitui-se numa ontologia não só da compreen­são, mas do próprio sujeito enquanto sujeito. Isto quer indicar que o su­jeito só está em condições de assumir-se como tal ao executar um movi­mento de pensamento reflexivo crítico e criativo. Sem esta habilidade os entes tornam-se meros objetos manipulados pelos sistemas políticos-ideológicos.

A reflexão é a ontologia da compreensão no sentido de que ela é instauradora do sujeito e se constrói como uma negação de todas as formas de negação do ser humano. A ontologia da reflexão é aquela

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que possibilita a compreensão do ser e o rompimento com todas as formas de alienação do sujeito. A negação da objetivação do sujeito se dá na ontologia da compreensão, expressa no filosofar como processo de reflexão.

Reflexão e Educação são temas indissociáveis ou, pelo menos, de­veriam ser, isto é, a escola deve ser, necessária e essencialmente, o lugar geográfico da construção e do diálogo crítico. A reflexão, na escola, há de buscar e cumprir esta tarefa de olhar o todo e suas relações com as partes e não as partes isoladas da totalidade. A possibilidade de instau­ração de um processo de reflexão tem na escola o seu lócus privilegiado. Construir este caminho é uma necessidade urgente, pois é nele que abri­mos, diante do horizonte, o caminho da construção da condição propria­mente humana.

A tarefa primordial de um processo reflexivo no ensino é a de pro­porcionar a si e a toda a educação um caminho metodológico que possi­bilite a formação de cidadãos autônomos. Isto se concretiza por meio de um processo reflexivo-crítico. Educar para e na reflexão é a tarefa essen­cial do presente, caso quisermos construir uma sociedade e uma huma­nidade distinta desta marcada radicalmente pela exploração. A busca de tal possibilidade passa por uma mudança de postura diante do mundo, das coisas e dos outros. Tal situação impõe e imprime a construção de uma metodologia que possibilite a sua sistematização no espaço do ensi­no. Formar mentes reflexivas é lançar-se num projeto de inovação que rompe com as formas e modelos tradicionais de educação.

Se é possível que a educação do presente seja aquela que propicie, no ensino, espaços de reflexão crítica e criativa, como condição necessá­ria à socialização e à humanização, ela implica, também, um novo hori­zonte de compreensão do sentido da existência humana e de todas as suas relações sociopolíticas. Significa que precisamos recolocar o lugar das coisas diante de novas perspectivas. Se a essencialidade do processo educativo situa-se na reflexão, como horizonte de autocompreensão, a possibilidade da cidadania ocorre na mesma proporção em que tal pro­cesso possa ser instaurado, através do ensino.

O caminho percorrido pelo horizonte da reflexão é a direção que possibilita, diante de todos os limites, um rompimento radical com os mesmos. A reflexão como alternativa à educação, no contexto da globa­lização, é uma especificidade que nos permite ultrapassar os muros da mera reprodução das informações e dos conhecimentos produzidos por outros, para que cada ser humano seja sujeito produtor de um conheci-

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mento que se faz como práxis comprometida politicamente. Isto é, o co­nhecimento não está situado no nível da informação. Ele vai muito além disso, ele é uma sistematização reflexiva a partir das informações que a realidade nos apresenta. As informações não são mais que fatos "secos" que não se explicam por eles mesmos. A possibilidade de transformar informações, enquanto fatos, em conhecimento está na mesma medida em que, pela reflexão, possamos explicar suas causas geradoras e, por meio delas, compreender o seu horizonte de sentido. Sem isto o conheci­mento não é possível ou é apenas parcialmente atingido, traduzindo-se como neutralidade diante dos fatos, neutralidade que não passa de um ardil ideológico, pois todo conhecimento implica um comprometimento radical ou nasce desta radicalidade. A informação transmite-se, o conhe­cimento adquire-se através da reflexão crítica.

O processo reflexivo não surge por acaso. Ele é resultado de uma longa trajetória de formação que se estende pela vida, pois é uma manei­ra de se compreender a própria vida em seu processo. Não é algo impos­sível de realizar-se. É difícil porque a sociedade em que nos encontra­mos, de modo geral, não propicia espaços para a existência da reflexão e a educação, em particular, não raro reduz-se à transmissão de conteúdos mais do que à reflexão sobre eles e as suas causas geradoras.

Quem não se sentir atraído pela vontade de mudar e de inovar não será autônomo; continuará dependente, tendo-se concedido a si mesmo tornar-se uma coisa (Alarcão, 1996). A possibilidade de mudança criati­va e qualitativa passa pela instauração de um processo reflexivo-crítico. Isto quer dizer que a reflexão não é fim em si mesma, mas um meio pos­sível e necessário para que possamos operar um processo de mudança no modo de ser da educação.

Ninguém deve ser obrigado a ser reflexivo, embora todos devam ser estimulados a sê-lo. Nós estamos propondo que tal processo tenha início pelo ensino em todos os níveis. Mas tal fato há de iniciar-se, pri­meiramente, pelo próprio professor. Se não há um professor com postu­ra reflexiva, como podemos esperar alunos reflexivos? A introdução de metodologias de formação reflexiva no nível dos alunos e dos professo­res tem de ser progressiva e atender à maturidade dos sujeitos envolvi­dos. É um processo que requer paciência, pois os resultados não são visí­veis a curto prazo.

A reflexão nos retira do enigmático, desinstala-nos do momento presente. Todavia o ser humano possui uma tendência permanente à acomodação. Há sempre um desejo de mudança, do novo, da revolução

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que é abafado pelas dificuldades e pelos riscos que ela implica. Todos queremos que as coisas mudem, mas temos certo medo diante da desinstalação. Esta é uma tendência "nata" no humano, pois ele é marca­do pela busca da estabilidade e da burocratização, como tendência das instituições. A questão central é como desinstalar em nível cognitivo, psíquico e prático a acomodação emergente de um mecanismo incons­ciente. Diante da tensão permanente entre mudança e acomodação é que se faz necessário a instauração do processo reflexivo-crítico-criativo pois, através dele, a tensão é mantida viva e na sua vivacidade possibilita a construção de novos horizontes de ação. Tal processo não é nunca auto­mático, mas resultado de uma série de conflitos e transgressões possibi­litando a autonomia do humano que se desacomoda para romper e, rom­pendo, percebe-se autonomamente ele próprio sujeito de sua história.

O paradigma reflexivo em educação, se assim pudermos chamá-lo, propõe uma reflexão sistemática sobre o fazer educativo de modo que as práticas pedagógicas possam passar por ele como horizonte facilitador de um processo que torna possível a construção de novas realidades e métodos educativos. O caminho da reflexão é o meio pelo qual se pode­ria propor outra forma de cognição, quebrando-se com determinados modelos tradicionais impostos como única alternativa de perpetuação da educação. Pensar a reflexão como caminho exige-nos um ato de von­tade e um ato de coragem gerador e impulsionador de mudança. Todos os limites impostos à reflexão não são mais que portas abertas em dire­ções que ainda não havíamos percebido. Tal apologia da reflexão tem por suporte a mais firme razão de que sem ela não podemos ter acesso ao ser da humanidade. É nesta, e só por esta razão, que o processo refle-xivo-crítico se sustenta no horizonte da educação, como meio para que o humano se torne possível.

Educar, diante deste horizonte, é ter a coragem de romper consigo mesmo para poder instaurar uma nova compreensão da ação e dela impri­mir uma nova ação reflexiva, tornando possível a ampliação do poder de autodeterminação. Somente desta maneira poderemos possibilitar a construção da cidadania responsável, tornando possível a democracia participativa e a negação da democracia deliberativa. A primeira institui a plena liberdade e a segunda vende-a aos mercenários da politicana-lhagem que imprimem sobre todos a alienação e a dominação. Um pro­jeto de tal natureza implica uma mudança revolucionária, radicalmente comprometida com as classes populares na construção e na organização de uma sociedade civil, sem se impor como sistema político, mas como alternativa à democracia.

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O ponto de chegada da reflexão não é ela própria, nem mesmo o ensino, mas a construção política de uma sociedade democrática, porém não de qualquer democracia, pois muitas delas são formas de ditadura disfarçada. Por isso, a sociedade que negligencia a reflexão, além de con­denar a todos ao não-ser da irreflexão, condena-se a um destino imposto pelos instintos e não a uma autodeterminação, nascida na potencialida­de dos níveis diferentes de pensar, refletir, criticar e criar enquanto pen­samento que age e reflete sobre o sentido e o significado social de tal ação-reflexiva.

Assim sendo, a reflexão sistemática, rigorosa e de conjunto (Saviani, 1986), atuante no ensino, propõe-se como reflexão radical de nosso ser no mundo, como alternativa, juntamente com todo o processo educati­vo, que amplia a compreensão de si e permite-se o descortínio da huma­nidade comprometida ética e politicamente com sua construção. Isto quer nos dizer que o horizonte da reflexão no ensino é a potencialidade ou deve ser potencializador do questionamento radical de si mesmo e da educação como possibilidade de rompimento da exploração, reproduzi­do ideologicamente por meio da escola. Tal situação não se dá de forma mecânica, mas é um processo de luta que começa com a reflexão e se traduz em ação concreta, imprimindo nova reflexão e um novo fazer diferenciado. Esta ação cotidiana e criativa é que pode tomar possível o advento de uma humanidade, não mais fundada no princípio do poder e da violência. Aliás, é a possibilidade de superação de todas as formas de violência que nos atingem, especialmente a violência política, oriun­da de sua sustentação no poder econômico.

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SUPERANDO A RACIONALIDADE TÉCNICA MA

FORMAÇÃO: sonho de uma noite de verão

Maria Isabel Batista Serrão*

Sendo este texto resultado de um estudo bibliográfico, o que se ob­jetiva é tecer introdutoriamente algumas considerações acerca das con­tribuições teóricas referentes às características do professor como um profissional reflexivo.

Opondo-se à racionalidade técnica, que estrutura a formação aca­dêmica de diversos profissionais segundo o desenvolvimento da capaci­dade desses últimos em resolverem problemas práticos por meio da apli­cação de teorias e instrumentos técnicos, Schõn (1992a) apresenta os problemas da dicotomia entre teoria e prática e, mais especificamente, do entendimento da prática como um campo de aplicação de teorias e do exercício de utilização de instrumentos técnicos.

Considera o autor que essa racionalidade, além de outros aspectos, fortalece a hierarquia tanto dos saberes como das profissões, apesar da necessidade imposta pelo acelerado ritmo das mudanças sociais e tecnológicas, que vêm obrigando as tradicionais áreas de conhecimentos a diluírem suas rígidas fronteiras.

Para Schõn, a prática é um campo de produção de saberes próprios, que deve ser considerado de modo diferenciado ao comumente referenciado no processo de formação de profissionais. Fundamentan-

* Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

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do-se em Jonh Dewey propõe o aprender fazendo como princípio forma­dor, pois acredita que somente o sujeito, pela própria experiência vivida em conhecer, apropriar-se-á verdadeiramente de conhecimentos. E ain­da defende a reflexão como o principal instrumento de apropriação des­ses saberes. Assim, concebendo esse sujeito como um "practicum refle­xivo", propõe uma outra racionalidade para o processo de formação de profissionais, pautada pela reflexão na ação, reflexão sobre a ação e reflexão sobre a reflexão na ação, isto é, na epistemologia da prática. Em suma, elabora um sistema de valores que transforma-se em critérios normativos para a prática profissional.

Nessa perspectiva, caberá ao professor organizar as condições para a realização dessa experiência de aprendizagem, orientando todo esse processo.

Mas como se processa essa reflexão quando se trata da formação de um profissional em especial, qual seja, o professor?

Schõn afirma que, no que se refere à educação, a crise central pela qual passa baliza-se no "conflito entre o saber escolar e a reflexão-na-ação dos professores e alunos" (1992b:80, grifos do autor).

A lógica burocrática é o parâmetro da vida cotidiana escolar e seu regulador é o saber escolar, entendido por Schõn como

um tipo de conhecimento que os professores são supostos possuir e transmitir aos alunos. É uma visão dos saberes como factos e teorias aceites, como propo­sições estabelecidas na seqüência de pesquisas. (...) É tido como certo, signifi­cando uma profunda e quase mística crença em respostas exactas (1992b:81).

Os mecanismos de controle e de legitimidade do saber escolar regi­dos pela burocracia e meritocracia são os principais obstáculos para a prática reflexiva. Tal prática exige determinados comportamentos do pro­fessor como, por exemplo: surpreender-se com os alunos; buscar as ra­zões dessa surpresa para poder compreendê-la, formulando problemas e hipóteses de resolução que serão possíveis de serem verificadas. Esse processo é denominado pelo autor como o momento da reflexão na ação que deve ser seguido pela reflexão sobre a reflexão na ação, que por sua vez proporciona ao professor reconstituir o trajeto percorrido desde a surpre­sa até a solução do problema originalmente advindo da ação docente.

Nesse percurso a incerteza é seu motor. A confusão ou o erro apre­sentado pelo aluno não se constitui em obstáculos para aprendizagem, mas sim numa manifestação de seu entendimento, que oferece elemen-

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tos para o professor orientar e reorientar o sentido da ação educativa. Assim, o verdadeiro obstáculo é a racionalidade burocrática que, dentre outros aspectos, exige um modo padrão de quantificação de conheci­mentos específicos, aqueles relacionados ao saber escolar, como caracte­rizado anteriormente.

Outro obstáculo para a formação do practicum reflexivo refere-se à epistemologia da prática, que, mesmo ao se tratar da prática escolar, as­sume características próprias da já mencionada racionalidade técnica. Para Schõn, tal epistemologia tão comum, especialmente às universida­des, se resume em ensinar primeiramente "os princípios científicos rele­vantes, depois a aplicação desses princípios e, por último, tem-se um practicum cujo objectivo é aplicar à prática quotidiana os princípios da ciência aplicada" (1992b:91).

Nesse sentido, pode-se concluir que para a formação do practicum reflexivo faz-se necessário, desde o processo de formação inicial, romper com o paradigma da racionalidade técnica e burocrática que rege as ins­tituições educacionais. No entanto, parece que o enfoque dado centra-se no âmbito individual, dependendo principalmente da ação volitiva dos sujeitos envolvidos nesses processos, balizada em parâmetros morais, visto que, uma vez decididos, assumiriam uma perspectiva outra de or­ganização do sentido de direção de sua prática. Há também um risco de interpretação do que foi escrito por Schõn a esse respeito, no que tange aos limites da prática, podendo chegar ao entendimento de que a cate­goria prática reduz-se a ações realizadas por um sujeito em particular e tanto o critério de verdade como as possibilidades de mudanças estariam também circunscritos a ela própria. Isto parece acarretar um relativismo que pouco poderá contribuir para a superação da racionalidade técnica, a qual tanto se critica. E de conhecimento público que essa racionalida­de, apesar de se manifestar em cada realidade particular, deita suas raízes em âmbitos mais amplos e complexos. E tal dimensão parece que não é considerada (cf. Contreras Domingo, 1997).

A busca da superação da racionalidade técnica na formação de pro­fessores também está presente nas formulações de Stenhouse (1994 e 1987) e Elliot (1990), que consideram a prática docente como locus de produção de conhecimento, pois concebem a investigação como inerente ao exer­cício profissional nesse campo. Entendem os autores que o professor, cotidianamente, depara-se com problemas oriundos de sua prática, que requerem soluções a fim de prosseguir seu trabalho. O professor recupera o que tem acumulado para solucionar os problemas encontrados. As-

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sim, na tentativa de resolvê-los, produz necessariamente conhecimen­tos. O conhecimento, portanto, é produto da sua experiência. Nesse sen­tido, a teoria assume um papel de mediação entre uma prática passada e uma prática presente, visando à transformação dessa última, uma vez que ela se torna fonte de problemas que geram ações e saberes e o pro­fessor torna-se, então, um pesquisador.

Desse modo, também fica evidente a singularidade de cada prática docente desenvolvida, pois o que guiará a ação de investigação do pro­fessor é o seu senso crítico, que se constitui por uma ética e uma estética configuradas pela racionalidade prática. Tal categoria, retomada de Aris­tóteles, oferece os elementos para compreender que a prática desenvol­vida por um sujeito volta-se para o exercício do bem. E mais, os sujeitos visam realizar bem suas práticas em busca do bem.

Segundo Contreras Domingo (1997), Elliot, prosseguindo o pensa­mento de Stenhouse e msistindo na idéia de que o professor é capaz de produzir teoria na própria prática, recorre à metáfora do artista em oposi­ção à do artesão. Em uma prática regida pela racionalidade técnica, o que se sobressaem são as características do professor como um artesão. Um profissional que conhece os processos de trabalho possui o conhecimento e os instrumentos de produção do que pretende realizar, controla o ritmo e o resultado da sua produção e é capaz de, individualmente, produzir o que se propôs, não necessitando de crítica externa. Mas realiza ações me­cânicas e repetitivas, produzindo sempre um mesmo produto.

Já no que se refere a uma prática na qual a racionalidade técnica foi superada e a reflexão é concebida como o principal meio de produzir aquela prática, o professor é comparado a um artista. Um sujeito que é capaz de elaborar um projeto possui os meios de produção para concretizá-lo, age intencionalmente, expressa, por meio de diversas linguagens, em seu pro­duto, que sempre será único, valores éticos e estéticos.

Quando os autores recorrem a essa metáfora estão tecendo a crí­tica sob a ótica do sujeito que realiza as ações, visando romper ou im­primir uma outra lógica em seu trabalho. Portanto, parece que falam do posto de trabalho do profissional e do processo de trabalho, não abordando o modo de produção, tampouco as relações sociais de pro­dução estabelecidas.

Contreras Domingo (1997) observa, ainda, que a dimensão da críti­ca do contexto social no qual está inserida a prática desse chamado "pro-fessor-investigador", ou qualquer outro professor, é ausente nas formu­lações de Stenhouse.

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Tais formulações desconsideram também, como já mencionado em relação a Schõn, que há aspectos que configuram a prática do professor que são de ordem institucional e política. Os aspectos apresentam-se or­ganizados a partir de uma trama social complexa e contraditória que dificultará provavelmente as possíveis ações de um professor que, acre­ditando se tratar de ações que dependem primordialmente de sua atitu­de reflexiva e crítica diante daquele estado de coisas que conformam sua prática profissional, possa desejar rompê-la.

Ademais, o risco de apropriações acríticas dessas formulações é iminente, pois quem não gostaria de ser um sujeito de sua prática? Quem não gostaria de poder exercer a autonomia e a autoria em seus saber-fazer e fazer profissional docente? A ocorrência desse tipo de apropriações foi evidenciada em recentes produções acadêmicas brasileiras, mediante a pesquisa realizada por Pimenta (2000). A autora, ao analisar o grau de abstração que tais produções apresentam, alerta para a necessidade de um exercício cuidadoso ao se investigar de forma concreta a realidade educacional brasileira, dadas suas peculiaridades forjadas historicamente, que, na maioria das produções, não são levadas ao termo e ao cabo.

Mesmo concebendo a escola como "instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis" (Gramsci, 1985:9), os contextos de pro­dução da investigação acadêmica e as condições de trabalho do profes­sor de uma escola, quer pública quer privada, particularmente no Brasil, são bastante distintos. Mesmo aquelas instituições escolares privadas que entendem ser a reflexão e a pesquisa importantes instrumentos no exer­cício do trabalho docente, não oferecem as mesmas condições de traba­lho das instituições educacionais de pesquisa. Há, nestas últimas, uma gama de recursos e uma infra-estrutura para a investigação bibliográfi­ca, o estudo, a leitura, enfim, para a realização de ações necessárias para o exercício da pesquisa, ainda que nas instituições públicas tais condi­ções estejam precárias.

Processo de trabalho e relações sociais de produção

Processo de trabalho e relações capitalistas de produção são duas categorias que poderiam nos auxiliar a pensar os limites e as possibilida­des do trabalho dos professores e, portanto, da fertilidade da metáfora do professor como artesão ou artista.

Explicar a complexidade das relações capitalistas de produção em poucos parágrafos tende a ser, no mínimo, leviandade! Por isso, o que se

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pretende aqui é, apenas, traçar em linhas gerais algumas das peculiari­dades do trabalho que geralmente é realizado sob o modo de produção capitalista, para que se possa ter em mãos alguns instrumentos analíti­cos e, dessa forma, compreender os limites e possibilidades de se conce­ber o trabalho do professor como um artesão, constrangido pela raciona­lidade técnica, ou como um artista, livre proprietário de mercadorias únicas, além de sua própria força de trabalho.

Para Marx, o processo de trabalho em geral, considerado indepen­dentemente de qualquer forma social determinada, é

atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do meta­bolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igual­mente comum a todas as suas formas sociais (1974:153).

Se tomarmos novamente o exemplo do artesão e o localizarmos no período do feudalismo e no da transição deste para o capitalismo, ire­mos encontrar características típicas. Neste caso, o trabalho artesanal é considerado aquele por meio do qual o artesão produzia valores de uso e valores de troca, possuía os conhecimentos necessários para a realiza­ção das ações voltadas ao fim proposto e tinha a propriedade dos meios de produção — objetos e meios de trabalho1 — e, portanto, do produto de seu trabalho.

No entanto, essa forma de trabalho foi historicamente superada pelo trabalho assalariado, que se constituiu por um longo processo de aliena­ção do trabalhador. O trabalho assalariado, elemento fundamental da relação de produção capitalista, realizado sob novos processos dc traba­lho, inicialmente pela cooperação e posteriormente pelo advento da gran­de indústria e da empresa capitalista em geral, subordinou toda e qual­quer outra relação social de produção.

A relação capitalista de produção é estabelecida entre sujeitos li­vres e proprietários de mercadorias a serem comercializadas em um mercado comum. De um lado, sujeitos que não mais possuem a proprie­dade dos meios de produção, tampouco do produto de seu trabalho. Possuem apenas uma única mercadoria que podem colocar à venda nes-

1. Meio de trabalho é "uma coisa ou um conjunto de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve como condutor de sua atividade sobre esse objeto". (Marx, 1974:150)

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se mercado, sua força de trabalho, isto é, "o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie" (Marx, 1974:139). De outro lado, sujeitos que detêm a propriedade dos meios de produção e que, portanto, necessitam comprar essa mercadoria especial — força de trabalho — a fim de que produzam valores de uso e de troca. Mas o curioso é que essa mercado­ria apresenta um atrativo muito grande. Ela é capaz de produzir um valor maior do que o necessário para a garantia da sua produção e re­produção. Um valor a mais do que vale! Uma mais-valia, que é um valor para além do valor da força de trabalho.

Assim, a relação social de produção estabelecida pelo proprietário da mercadoria, força de trabalho do professor, ou seja, ele próprio, confi­gurou o modo pelo qual irá organizar o seu processo de trabalho e prin­cipalmente o nível de autonomia e criação das ações que realizará.

Ora, se tomarmos o professor de uma escola privada, teremos um trabalhador que vende sua força de trabalho ao proprietário da escola, uma empresa capitalista, mesmo que essa se assuma juridicamente fun-dacional, sem fins lucrativos. O seu proprietário, por sua vez, vende o serviço educacional de ensino como a mercadoria. Contudo, o valor pro­duzido pelo professor tem uma grandeza maior do que o valor da força de trabalho, pago na forma de salário. Desse modo, o professor não só está alienado do produto de seu trabalho como também do valor exce­dente que produziu.

Se for professor há muitos anos e realizar práticas repetitivas, em­bora com a competência técnica exigida, respeitando princípios éticos e estéticos estipulados pela instituição que o contratou, nem assim será um artesão. Será, talvez, um bom profissional aos olhos institucionais, mas continuará sob a égide do trabalho assalariado.

Se, no entanto, tomarmos um outro professor que se propõe ser, como define Schõn (1992a e 1992b), um practicum reflexivo, ou ainda, como defendem Stenhouse (1984 e 1987) ou Elliot (1990), um professor pesquisa­dor, por mais criativa que tenha sido sua aula, por mais reflexiva que tenha sido sua prática pedagógica, por mais competente tecnicamente, no sentido de garantir apropriados determinados conhecimentos pre­viamente estabelecidos a este fim, por melhores que sejam as condições de trabalho para o estudo, pesquisa e reflexão, a autonomia de seu traba­lho estará configurada, fundamentalmente, por esses aspectos da rela­ção de produção que estabeleceu. O que significa dizer que ele pode agir

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intencionalmente, eventualmente de forma crítica, mas se ferir a condi­ção fundamental do contrato social ao qual subordinou sua prática pro­fissional, ou seja, não mais vender sua força de trabalho, não existirá a continuidade de seu trabalho pedagógico. Assim, nem artista, como al­guns autores defendem que possa ser, será.

Se o professor de escola privada estabelece uma relação de produ­ção especificamente capitalista, conforme caracterizado anteriormente, o professor de escola pública, por sua vez, estabelece uma relação de produção de natureza distinta. Diferentemente do professor de escola privada, ele não vende sua força de trabalho para um capitalista, pro­prietário dos meios de produção, e este fato, de início, já descaracteriza a relação especificamente capitalista. Ademais, em decorrência disso, o professor de escola pública não produz valor de troca e, conseqüente­mente, mais-valia e capital. Entretanto, embora sejam relações de pro­dução fundamentalmente diferentes, o professor de escola pública, as­sim como parcela considerável da população, é desprovido da proprie­dade de meios de produção e, por esse motivo, não pode produzir mer­cadorias e vendê-las no mercado, o que o obriga a vender a única merca­doria de que dispõe, sua força de trabalho. O professor de escola pública é, portanto, vendedor de força de trabalho, vale dizer, trabalhador assa­lariado. Assim, ele também estabelece uma relação de exploração, ainda que diferenciada da relação de exploração especificamente capitalista.

Não obstante serem relações de produção de conteúdos distintos, apresentam elas características comuns. Ambos, professor de escola pri­vada e de escola pública, não são proprietários dos meios de produção e, conseqüentemente, dos produtos por eles produzidos e, por essa razão, não são vendedores de outras mercadorias, senão de sua força de traba­lho. Ora, são justamente essas características, que não estão presentes nas relações de produção dos professores de escola pública e de escola privada, que definem a relação de produção do artesão e do artista. Tan­to o artesão como o artista são proprietários dos meios de produção e do produto de seu trabalho e, nesta condição, vendedores das mercadorias que produziram — não da força de trabalho — de acordo com as condi­ções necessárias aos respectivos processos de trabalho.

Isso significa dizer que, mesmo que sejam garantidas as condições materiais e institucionais para a viabilização e organização do trabalho de pesquisa e reflexão, rompendo a lógica imposta à instituição escolar, o trabalho do professor, seja ele de escola pública seja de escola privada, não poderá ser concebido como trabalho do artesão ou do artista. Ape-

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sar de poder ser capaz de criar, realizar ações com relativa autonomia e construir produtos únicos e saberes próprios, não poderá vendê-los como sua criação.

E ainda, por mais criativo que o professor seja, tendo ou não a cons­ciência da intencionalidade, suas ações serão sempre regidas por uma ló­gica, por um movimento de organização das ações com uma determinada finalidade, portanto obedecerão a uma "racionalidade", mesmo que não seja àquela burocrática e meramente técnica que tanto se deseja superar.

Há muito mais que investigar e analisar a esse respeito. Entretanto, pela natureza de um texto como este, fica a indicação da necessidade de se prosseguir investigando e aprofundando um tema tão complexo e tão em moda.

Assim, considerando os limites e as possibilidades, ainda que de forma preliminar e introdutória, da apropriação e formulação dos con­ceitos "professor reflexivo" e "professor investigador", especialmente pensando na necessidade de apreender concretamente parcela da reali­dade educacional brasileira, o que parece manifestar-se é algo semelhante ao que William Shakespeare escreveu em Sonho de uma noite de verão. Parece que os desejos tão ardentes podem de igual forma e de maneira efêmera serem realizados como delírios ou verdadeiramente como so­nhos. Ao contrário, se fossem recuperados os "velhos" instrumentos teórico-metodológicos e utilizados na pesquisa educacional como ferra­mentas para compreensão da realidade, e com os quais se pudesse de­senvolver uma análise concreta de situação concreta, ao mesmo tempo concebendo-se a realidade como síntese de múltiplas determinações, con­forme defendia Marx (1974), poder-se-ia, talvez, transformar um sonho de uma noite de verão em um exercício teórico, político e profissional de sujeitos pertencentes a uma determinada classe social, em uma utopia. Sujeitos, relembrando Gramsci (1985 e 1986), que podem se tornar "inte­lectuais orgânicos", autores de um projeto utópico de sociedade capaz de superar as formas convencionais de desigualdade social, de explora­ção humana e, por fim, da racionalidade técnica criticada, que também não permite ao ser humano se constituir em sua onmilateralidade.

Referências bibliográficas

CONTRERAS, Domingo José. La autonomia dei profesorado. Madrid: Morata, 1997.

ELLIOT, J. La investigación-acción en educación. Madrid: Morata, 1990.

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GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasi­leira, 1986.

. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

MARX, Karl. Prefácio à Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril, 1974.

PIMENTA, Selma Garrido. A pesquisa em Didática — 1996 a 1999. In: SILVA, Aída Maria Monteiro et al. Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

SCHÕN, Donald. La formación de profesionales reflexivos: bacia un nuevo diseno de la ensenanza y el aprenáizaje en Ias profesiones. Barcelona: Paidós, 1992a.

. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, Antônio

(coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992b.

STENHOUSE, L. Investigación y desarrollo dei currículo. Madrid: Morata, 1984.

. La investigación como base de la ensenanza. Madrid: Morata, 1987.

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PARTE III

ONAIS DA EDUCAÇÃO E AS MEDIAÇÕES NA FORMAÇÃO DO

PROFESSOR REFLEXIVO

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REDIMENSIONANDO 0 PAPEL DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO: algumas considerações

Maria do Socorro Lucena Lima* Maríneide de Oliveira Gomes**

Introdução

As propostas de professor reflexivo têm sido a tônica dos cursos de formação de professores(as) nos últimos tempos. Essa idéia, que tem re­cebido a simpatia e ampla adesão dos(as) educadores(as), parte de Donald Shõn,1 com um trabalho proferido em Congresso da American Educatio-nal Research Association, em 1987.

De acordo com estudos realizados por Alarcão (1996), o interesse suscitado pela idéia do(a) professor(a) reflexivo(a) vem da atualidade

* Professora de Didática e Prática de Ensino da Universidade Estadual do Ceará, doutora pela FE-USP, com a pesquisa: "Formação contínua dos professores, os (des)caminhos da qua­lificação". [email protected]

** Professora de Didática do Centro Universitário da Fundação Santo André/SP, douto­randa pela FE-USP, com a pesquisa: "Do 'eu' ao 'nós': caminhos na construção da identidade do educador de crianças pequenas". Agradecemos a revisão textual feita pelo prof. José Mari­nho do Nascimento do Centro Universitário da Fundação Santo André, [email protected]

1. Para Schõn (docente do Massachusetts Institute of Technology), o pensamento reflexi­vo do(a) professor(a), no enfrentamento das situações divergentes da prática, se desenvolve através da competência de refletir sobre a ação, criando uma nova realidade, experimentan­do, corrigindo e inventando através do diálogo que estabelece com essa mesma realidade. Por outras palavras, o professor sc desenvolve através da reflexão, reflexão na ação, reflexão so­bre a reflexão na ação.

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dos temas que ela contempla, quais sejam: a necessidade da eficiência, a aproximação entre a teoria e a prática e a proposta de formar para a reflexão.

A alternativa que propõe a epistemologia da prática, ou seja, um conhecimento produzido na ação e sobre a ação de ensinar (ação/refle­xão/ ação refletida), faz a contraposição ao racionalismo técnico e revela receber em sua base filosófica a influência de John Dewey por sua pers­pectiva de resolução de problemas.

Tais perguntas merecem ressignificação quando trazidas para o nosso contexto, permitindo o mergulho em conceitos, valores e crenças que trazemos submersos em nossas práticas. É preciso termos clareza a respeito de que reflexão estamos falando e a quem ela interessa. É preci­so considerar ainda as condições objetivas de vida e de trabalho docente e até que ponto o(a) professor(a) pode ser reflexivo(a) nessas condições. Pensamos que a reflexão necessária para os(as) pedagogos(as) e demais educadores(a) nesse momento histórico é aquela que tem como ponto de partida e de chegada um projeto de emancipação humana, não perden­do de vista os(as) professores(as) como uma categoria profissional. En­tendida dessa maneira, a reflexão não é uma atitude individual, ela pres­supõe relações sociais, revela valores e interesses sociais, culturais e po­líticos, não é um processo mecânico nem tampouco gerador de novas idéias. É antes uma prática que deve expressar o nosso poder de recons­trução social.

A proposta de professor reflexivo nos cursos de formação de professores(as) e profissionais da educação pode adquirir novas nuances se considerarmos o compromisso histórico com a educação e com a pro­fissão docente.

Vivemos, hoje, momentos de grandes incertezas que se traduzem de variadas maneiras na vida humana em geral e, em particular, nas instituições educacionais. Tempo de transformações muito rápidas, tempo que deixa suas marcas em cada um de nós na sua marcha de globaliza­ção, de tantas desigualdades e distâncias sociais. Em muitos momentos podemos até pensar como nos versos cantados por Adriana Calcanhoto:

"Eu perco o chão, eu não acho as palavras,

Eu ando tão triste, eu ando pela sala,

Eu perco a hora

Eu chego no fim,

Eu deixo a porta aberta,

Não moro mais em mim!"

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO. 165

Os trabalhadores(as) em educação e todos os outros "perdem o chão" quando vêem seu emprego ameaçado pela empregabilidade e pela ter­ceirização, pela minimização dos direitos profissionais conquistados com muita luta, e, mais uma vez, na história da humanidade, pela exploração de sua força de trabalho. Perdem o chão quando o avanço, as novas tec­nologias, em vez de proporcionarem ao homem a oportunidade de ter uma qualidade de vida, são tomados como arma para ser um fator de exclusão. Perdem o chão quando não se sabe para onde se vai, quando as condições de vida e trabalho estão longe de se aproximarem das propa­gandas oficiais. O discurso que foi construído pelas demandas da área, historicamente representadas nos movimentos de lutas dos educadores, tais como democratização, qualidade, trabalho coletivo, professor reflexivo/pes­quisador, já não é mais uma referência que designa a opção política da qual ele se originou.

A tais perguntas, nos fazemos outros questionamentos, como, por exemplo: Qual a função do(a) professor(a) na sociedade informatizada?

Fazemos parte daqueles(as) educadores(as) que defendem e inves­tem na formação de professores(as)2 na certeza de que o seu trabalho é cada vez mais necessário para o estabelecimento de articulações que busquem condições mais justas, em que o homem tenha a compreensão dos seus direitos e a fruição de direitos já conquistados. Defendemos, também, algo aparentemente óbvio — que, infelizmente, ainda se faz necessário afirmar devido às grandes desigualdades sociais que vive­mos —> que é o respeito à condição dos dos(as) alunos(as), professores(as) e profissionais da educação em geral, como seres humanos em toda a sua inteireza.

Queremos, a partir dessas questões, convidar você, leitor, a refletir sobre essas preocupações e partilhar essas reflexões.

Objetivamos examinar nesse artigo, em sua primeira parte, o traba­lho do(a) professor(a) e os seus desafios no contexto atual e, nesse caso, analisamos o tipo de profissional da educação que tem sido objeto da atual Política Educacional Brasileira. A segunda parte assinala as impli­cações geradas pelo impacto das grandes mudanças do cenário educa­cional, especialmente aquelas vivenciadas pela pedagogia e pelos(as) pedagogos(as) brasileiros(as). Já na terceira parte buscamos resgatar a

2. Vamos utilizar, ao longo deste trabalho, as expressões no masculino e no feminino visando respeitar a construção das relações de gênero, buscando reafirmar — pelo menos no âmbito da linguagem — a existência dessa construção.

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trajetória das alterações legais no que se refere à formação de profes-sores(as) e às questões polêmicas presentes nesse debate. Conclui-se o artigo com uma proposição acerca da função dos cursos de pedagogia e do(a) Pedagogo(a) para o contexto educacional brasileiro, oferecendo elementos de aproximação acerca das contribuições da atual política educacional brasileira para o conceito de professor reflexivo.

1. Os novos paradigmas da ciência e os profissionais da educação na

sociedade atual

Entender as instituições educacionais, hoje, pressupõe compreendê-las e colocar em relação com novos paradigmas acerca das funções do conhecimento, da relação escola — sociedade e das interações produzi­das nesses contextos. Lembramos, para isso, alguns pensadores que têm contribuído com estudos nessa área — entre eles, Edgar Morin, pensa­dor francês contemporâneo que, na busca do "ser" e do "saber", aponta para um caminho em que as novas descobertas e certezas se elaboram, compreendendo o ser humano ao mesmo tempo sujeito e objeto de sua construção e do mundo. O uso de metáforas, recorrente em suas obras, pode nos dar uma dimensão desse momento que atravessamos:

Para que a lagarta se converta em borboleta, deve encerrar-se numa crisálida. O que ocorre no interior da lagarta é muito interessante: seu sistema imunológico começa a destruir tudo o que corresponde à lagarta. A única coi­sa que se mantém é o sistema nervoso. Assim é que a lagarta se destrói como tal para poder construir-se como borboleta. E quando esta consegue romper a crisálida, a vemos aparecer, quase imóvel, com as asas grudadas, incapaz de desgrudá-las. E quando começamos a nos inquietar por ela, a perguntar-nos se poderá abrir as asas, de repente a borboleta alça vôo (Morin, 1996: 284).

Boaventura de Souza Santos, sociólogo português, também presen­te no debate sobre os novos paradigmas da ciência, ajuda-nos a elucidar esse mesmo cenário. Denomina "crise" a perda da confiança epistemoló­gica, aliada à insuficiência de o paradigma dominante apontar o próxi­mo paradigma. Questiona o papel do conhecimento científico acumula­do no enriquecimento ou no empobrecimento prático de nossas vidas. Defende, para essa construção, o exercício da insegurança e não o seu sofrimento (Santos, 1988).

Os(as) estudiosos(as) da área da educação têm sido quase unâni­mes em confirmar a complexidade que envolve a instituição escola, com-

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preendida nas dimensões humana, científica e técnica. 3 No entanto, para que essa questão possa ser entendida, é preciso explicitar sua dimensão política, especificamente, da política neoliberal ditada pelo capitalismo, sobre a qual o professor francês Istvan Mészáros (1995:1) explica:

Não se pode imaginar um sistema de controle mais devorador (que atrai para si) e, nesse sentido, "totalitário", que o sistema capitalista globalmente domi­nante. Porque este, sutilmente, sujeita a saúde não menos que o comércio, a educação, não menos que a agricultura, a arte, não menos que a indústria manufatureira, aos menos imperativos cruelmente superimpondo a tudo o pró­prio critério de viabilidade, desde as menores unidades de seu "microcosmos", aos mais gigantescos empreendimentos internacionais, e das relações pessoais mais íntimas aos mais complexos de poder de tomada de decisões dos monopó­lios industriais, sempre favorecendo o forte contra o fraco.

Quem seriam, então, os agentes capazes de decifrar tal complexi­dade e concretizar as mudanças nas instituições educacionais? Apenas os(as) professores(as)? Aos(às) docentes caberia a responsabilidade de operar tais transformações?

O tema sobre formação de professores(as) apresenta-se hoje como tema de destaque em variados cenários. Da parte dos órgãos governa­mentais, nunca houve tanta ênfase na função dos(as) professores(as) como agentes das mudanças requeridas pela nova ordem mundial emergente. Por outro lado, os(as) próprios(as) professores(as), de variadas formas, mostram a premência por ações de formação que dêem conta de atender às reais necessidades da escola, que se apresenta real, multifacctada, car­regada de ambigüidades e contradições, à semelhança da sociedade.

Ao efetuarmos uma breve análise das reformas educacionais dos últimos vinte anos, percebemos que na esteira dessas reformas, implan­tadas em diferentes países , inclusive no Bras i l , a formação de professores(as), juntamente com as mudanças curriculares e o incentivo aos materiais didáticos, encontram-se na ordem do dia (Sacristán, 1999). 4

3- No cenário político brasileiro das últimas décadas, a educação tem sido considerada pedra de toque dos governantes, mobilizando ações no sentido de entendê-la como estratégia de alívio da pobreza. Sobre esse tema, vários autores vêm apontando a inconsistência dessas políticas em face da real demanda por uma escola de qualidade para todos. Nessa linha de análise, podemos citar, entre outros, Pablo Gentili (1994) e Perry Anderson (1996).

4. A esse respeito, Pablo Gentili (1992) e Sacristán (1999), entre outros, denunciam a ver­dadeira afronta feita aos profissionais da educação, na insistência dos órgãos governamentais em definir políticas de fora para dentro da escola, sem a participação daqueles que de fato fazem a educação no "chão da escola".

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É importante, mais uma vez, recorrer ao contexto da política neoliberal diante das mudanças propostas e pela implementação de medidas advindas dos organismos internacionais.

Nesse cenário ambíguo, temas como "Produção da profissão docente/ professor reflexivo-pesquisador", associados a palavras como desenvolvi­mento de habilidades e competências, vêem à tona e buscam apresentar um perfil de professor(a) que dê conta das novas dimensões do conhecimen­to, das relações interpessoais, de desenvolvimento humano, entre ou­tras, instigando, dessa maneira, novas análises.

Para Zeichner, autor que têm se destacado por sua abordagem criteriosa sobre formação de professores e que tece críticas à forma como o conceito de professor reflexivo tem sido tratado nas últimas reformas educacionais dos Estados Unidos, há um perigo ao se considerar a refle­xão como um fim em si mesma, desconectada de quaisquer outros obje­tivos mais gerais (Zeichner, 1992).

Entre nós, remontam ao contexto do movimento denominado "Es­cola Nova" — através de John Dewey — as concepções acerca do pensa­mento reflexivo do(a) professor(a), especialmente pela distinção que esse autor faz entre a ação reflexiva e a ação rotineira. A primeira estaria liga­da diretamente à consideração ativa, persistente e cuidadosa de toda cren­ça ou prática à luz dos fundamentos que as sustentam e das conseqüên­cias a que conduzem, constituindo-se em um processo que ultrapassa a solução lógica e racional de problemas. A reflexão, para Dewey, implica­ria intuição, emoção e paixão. A segunda estaria dirigida pelos impul­sos, pela tradição e pela autoridade. Os profissionais que não refletem sobre seu exercício docente tendem a aceitar de maneira acrítica a reali­dade cotidiana das escolas, buscando meios para alcançar os fins e resol­ver problemas que são, de maneira geral, decididos pelos outros, para eles. Existiria assim, para Dewey, três atitudes consideradas necessárias para a ação reflexiva: a abertura intelectual, a atitude de responsabilida­de e a sinceridade (apud Zeichner, 1992).

Especialmente a partir da década de 1970, vários autores brasilei­ros e estrangeiros buscam alargar essa concepção, sobretudo após os es­tudos de Donald Schõn (1992), numa clara abordagem que se contrapõe ao ensino / aprendizagem de técnicas e à instrução, entendendo a refle­xão como uma atitude a ser desenvolvida nos professores, indissociável da atitude de pesquisa.

Partindo dos conceitos fundamentais da prática pedagógica, tais como o conhecimento na ação e reflexão na ação e sobre a ação, o autor defen-

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de uma epistemologia da prática e o desenvolvimento de profissionais reflexivos. No entanto, os estudos de autores como Alarcão (1996) e Contreras (1996) fazem uma análise das idéias de Schõn, questionando-as e aprofundando o conceito de professor reflexivo.

Alarcão (1996:174) diz que o homem no final do século precisa reaprender a pensar. O simples exercício da reflexão, entretanto, não é ga­rantia de salvação dos cursos de formação de professores, pois a reflexão não é um processo mecânico. Deve, antes, ser compreendida numa pers­pectiva histórica e de maneira coletiva, a partir da análise e explicitação dos interesses e valores que possam auxiliar o professor na formação da identidade profissional; portanto, dentro de um processo permanente, voltado para as questões do cotidiano, através de sua análise e implica­ções sociais, econômicas, culturais e ideológicas.

Contreras (1997) faz uma análise sobre a teoria de Schõn (professor reflexivo) e de Stenhouse (professor investigador), uma vez que ambas possuem semelhanças, entre elas a oposição à racionalidade técnica. De acordo com Contreras, um profissional que reflete a ação deverá refletir também sobre a estrutura organizacional, os pressupostos, os valores e as condições de trabalho docente. Deverá compreender ainda como o modo de organização e controle do trabalho do professor interfere na prática educativa e na sua autonomia profissional. Assim, a reflexão não encerraria uma concepção concreta sobre si mesma, nem tem seu uso adaptável a qualquer corrente pedagógica.

A reflexão guarda estreita vinculação com o pensamento e a ação, nas situações reais e históricas em que os professores se encontram. Não é uma atividade individual, pois pressupõe relações sociais que servem a interesses humanos, sociais, culturais e políticos e, dessa for­ma, não é neutra. Para Contreras, a reflexão não é um processo pura­mente criativo para a elaboração de idéias; é uma prática que expressa o poder de reconstruir a vida social e, sendo vista a partir dos condicio-nantes que determinam os contextos sociais dos docentes, compreen­der a base das relações sociais e de trabalho em que ela se realiza e a que interesses poderá servir. Nesse sentido, a reflexão deverá estar a serviço da emancipação e da autonomia profissional do professorado. O professor como sujeito que não reproduz apenas o conhecimento pode fazer do seu próprio trabalho de sala de aula um espaço de práxis do­cente e de transformação humana. E na ação refletida e na redimensão de sua prática que o professor pode ser agente de mudanças na escola e na sociedade.

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Nessa perspectiva de análise, o(a) professor(a) seria um intelectual em processo contínuo de formação, a exemplo do artesão, que domina o processo e o produto do seu trabalho. Busca-se, assim, compreender a função docente como a capacidade desse profissional em prever suas ações, ou seja, intencionalizá-las, produzindo um conhecimento no exer­cício da profissão, sendo a investigação a ela inerente, visto que a prática apresenta problemas que necessitam ser superados para a continuidade do trabalho (Contreras, 1997).

Aprender, ensinar, partilhar saberes, pensar com a escola e não só sobre a escola, fortalecer a instituição educacional, compreender a refle­xão como prática social, oportunizando apoio e estímulo mútuos — na forma de trabalho coletivo —> analisar os contextos de produção do en­sino e da aprendizagem, qualificar melhor os discursos oficiais que se utilizam de termos ou conceitos da moda, ressignificando-os, são atribu­tos de um(a) profissional capaz de dar novas respostas às situações hoje demandadas por estas instituições e pela sociedade (Zeichner, 1992,1998; Gomez, 1992; Nóvoa, 1992; Alarcão, 1996; Pimenta, 1998).

2. Pedagogia e Pedagogos. Para quê?

O pesquisador Antônio Joaquim Severino lembra que o conheci­mento do ponto de vista epistemológico é inerente ao próprio homem, mas faz um destaque para a questão epistemológica construída na práti­ca cotidiana, no decorrer do trabalho do(a) professor(a). Levanta ainda alguns questionamentos para reflexão: seria a ciência a única responsá­vel pelo conhecimento? E o conhecimento que se constrói na prática, não seria também responsável pelo saber do(a) professor(a)? Que conheci­mento seria esse?

Ele salienta o processo reflexivo e crítico como sendo a maneira de ultrapassar a condição de mero reprodutor e a possibilidade de levantar problemas e questionar a realidade. O caráter inconcluso do ser humano o leva, assim, à procura de espaços de educação. Dessa forma, à Filosofia da Educação, fazendo parceria com a Pedagogia, caberia oferecer os fun­damentos necessários para que os(as) profissionais da educação pudes­sem refletir criticamente sobre os seus valores, seu contexto social e a realidade em que estão inseridos. A Pedagogia cabe estudar, conhecer e explicitar os diferentes modos de como a Educação se manifesta, histori­camente, como prática social.

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Nesta mesma perspectiva teórica, Selma Garrido Pimenta defende a Pedagogia como ciência da educação, cujo ponto de partida e de chega­da é a prática. A idéia por ela desenvolvida é a de que o ensino ocorre em contextos sociais específicos, tais como nas aulas, nas escolas e nos siste­mas de ensino. No entanto, é preciso conhecer e exercer essa prática, pois a teoria tem também um papel fundamental e determinante na práxis, que é a prática refletida. Dessa forma, valendo-se das idéias de Álvaro Vieira Pinto e de Vásquez, reconhece a práxis como ação transfor­madora da realidade pelo trabalho teórico-prático humano.

Em decorrência do posicionamento e do entendimento de que a Pedagogia é ciência prática, que tem como objeto de investigação a edu­cação, como prática social e histórica, o método dialético estaria respon­dendo às expectativas das pesquisas nesta área. A dimensão dialética que ocorre no movimento de articulação, realizado entre a continuidade da formação e o trabalho do professor, é colocada como potencialidade para uma prática transformadora (práxis).

José Carlos Libâneo, em seu livro Pedagogia e pedagogos, para quê?, faz uma pergunta instigante: "Estariam os cursos de Pedagogia ensinan­do Pedagogia?". Aponta que nesses cursos, de um modo geral, os alunos estudam psicologia, história, sociologia em seus campos disciplinares sem dar conta da especificidade do fenômeno educativo, na sua realida­de histórico-social, na sua multiplicidade, o que apontaria para a dimen­são interdisciplinar. Tal concepção não diminui, porém, a contribuição que outras ciências possam dar ao processo educativo. Os atuais Fóruns Permanentes de Formação de Professores(as) e Especialistas da Educa­ção em todo o país, em seus últimos Seminários e Congressos, vêm apon­tando a insuficiência dos cursos de Pedagogia, tanto na formação do(a) professor(a) para as demandas hoje colocadas pela sociedade, quanto no que se refere à formação dos(as) especialistas em Educação. Isso não sig­nifica prescindir da docência como base da formação de professores(as) para o exercício de qualquer tarefa no sistema de ensino. A docência deve ser o chão pelo qual se construirão os caminhos para as diferencia­das funções do Magistério.

Os cursos que pretendem caminhar na busca de uma melhor quali­dade na formação dos(as) educadores(as) deveriam considerar a gestão pedagógica ou a coordenação num fluxo de idas e vindas do(a) profis­sional que aproveitaria esse trânsito como instâncias de auto-formação e desenvolvimento profissional. A idéia cristalizada de que se é diretor de escola, orientador ou coordenador perdendo a dimensão da docência

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necessita ser revista. Daí a importância de estarmos atentos para os sabe­res da docência, que são ao mesmo tempo os saberes do(a) pedagogo(a), podendo ter maior abrangência, dependendo das funções e tarefas que esse profissional venha a desempenhar.

Segundo Pimenta (1998:59), na profissão docente existiriam três saberes que se complementam: o saber da experiência, o saber científico e o saber pedagógico. Sobre o saber da experiência, a autora diz que, mesmo que não sejam professores(as), as pessoas têm uma experiência socialmente acumulada sobre essa profissão e o seu exercício. Sabem quem são os bons e os maus profissionais e até comentam: "o professor X sabe, mas não sabe ensinar". O saber da experiência seria aquele saber adqui­rido no espaço da docência e com a prática, na tentativa de superação dos problemas do cotidiano. É preciso assim, que nos cursos de Licenci­atura, de maneira geral, os(as) alunos(as) resgatem, das suas memórias, de forma contextualizada, professores(as) que marcaram sua trajetória de aprendizagem e se vejam como professores(as), no sentido de inicia­rem o processo de constituição da identidade profissional. O saber da experiência representaria, o primeiro passo para a construção dessa iden­tidade. Sobre o saber científico, a autora recorre a Edgar Morin (1993):

Conhecimento não se reduz à informação, é seu primeiro estágio. O conhecer implica em um segundo estágio, em trabalhar com as informações, classifican­do-as, analisando-as e contextualizando-as. O terceiro estágio tem a ver com a inteligência, a consciência ou sabedoria. A inteligência, por sua vez, tem a ver com a arte de vincular o conhecimento de maneira útil e pertinente, isto é, produzindo novas formas de progresso e desenvolvimento. A consciência e a sabedoria envolvem reflexão, isto é, a capacidade de produzir novas formas de existência, de humanização.

Vale refletir ainda sobre esse tema indagando? O que estamos fa­zendo com o nosso conhecimento? Para que e a que /quem ele serve? Com que compromisso social temos tratado desta questão? Como trans­formar o conhecimento em sabedoria em nossas salas de aula e em nos­sas vidas, considerando a indissociabilidade dos âmbitos pessoal, pro­fissional e organizacional? Quanto aos saberes pedagógicos, via de re­gra, estes têm sido desenvolvidos nos cursos de formação de professo-res(as) de forma puramente técnica, como se fossem receitas desarticula­das da realidade e sem a devida contextualização e atualização. Esses saberes precisariam ser entrelaçados interdisciplinarmente para que pos­samos formar professores(as) a partir da prática social e, dessa forma,

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reinventar e recriar os saberes pedagógicos. É preciso ainda, de acordo com Pimenta (1998:63),

Problematizar, propor e desenvolver projetos nas escolas; conferir dizeres de

autores e da mídia, as representações e os saberes que têm sobre a escola, o

ensino, os alunos, os(as) professores(as), nas escolas reais.

Nesse ponto, o(a) pedagogo(a) tem muito a contribuir, uma vez que o seu saber científico se constitui da própria ciência da educação, que é a Pedagogia. Os estudos de Pimenta e Libâneo nas suas últimas publica­ções, e somando-se a outras formas de luta de educadores(as) brasileiros(as), defendem a Pedagogia como ciência da educação, dando assim sua contribuição para a busca de espaço e de reconhecimento para a Pedagogia e para os pedagogos, utilizando-se de autores como:

• Suchodolski, que considera a Pedagogia uma ciência sobre a ativida­de transformadora da realidade educativa, exatamente devido ao seu caráter histórico e social;

• Schmied-Kowarzik, que considera a Pedagogia a ciência da e para a educação, tanto na teoria como na prática;

• Jean Houassaye ao afirmar que "a Pedagogia busca unir a teoria e a prá­tica a partir de sua própria ação. E nesta produção específica da relação teoria-prática em educação que a Pedagogia tem sua origem, se cria, se inventa e se renova" (1995:28). Diz ainda "a especificidade da formação pedagógica, tanto a inicial como a contínua, não é refletir sobre o que se vai fazer, nem sobre o que se deve fazer, mas sobre o que se faz" (1995:28). Este mesmo autor assinala que os cursos de formação são pautados em ilusões e isso precisa ser corrigido para que a Pedagogia seja ressignificada: "a ilusão do saber didático, a ilusão do saber das ciências do homem, a ilusão do saber pesquisar, a ilusão do saber-fazer". (1995:31)

É importante que os(as) educadores(as) tenham a firmeza de juntar os esforços, de somar as lutas em torno da profissão magistério e na de­fesa do lugar do(a) educador(a), como elemento de transformação social e de humanização do homem.

3. Sobre a identidade do(a) Pedagogo(a)

Neste momento, mais do que nunca, é necessário definir as possibili­dades de atuação do(a) educador(a) pedagogo(a) no campo educacional.

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No Brasil, o curso de Graduação em Pedagogia, em seus primeiros pas­sos, aderiu ao modelo da Escola Normal Superior Francesa, sendo que esse curso destinava-se a formar professores(as) para o Curso Normal. Com a Reforma do Ensino Superior em 1968, consolidaram-se as habili­tações em Administração Escolar, Orientação Educacional, Supervisão e Inspeção Escolar.

Já na década de 1970, através da LDB 5692/71, com o surgimento do segundo grau profissionalizante, a dissolução do Curso Normal, e o debate presente à época da docência como base para a formação, ficou evidenciada a tendência dos cursos de Pedagogia a também formarem professores(as) para atuar nas séries iniciais do ensino fundamental. Pa­rece que a definição da identidade do(a) pedagogo(a) apresenta-se como necessária nos tempos atuais, no sentido de qualificar melhor as atribui­ções de pedagogos(as), assim como as de professores(as).

Pimenta enfatiza que a identidade não é algo imutável, é um pro­cesso historicamente situado:

Uma identidade profissional se constrói a partir da significação social da pro­fissão (...) Constroem-se também pelo significado que cada professor, enquan­to ator e autor confere à atividade docente no seu cotidiano, a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações (...) assim como suas relações com outros professores, nas es­colas, sindicatos e outros agrupamentos (Pimenta, 1998:58).

4. Um breve resgate das últimas alterações legais sobre a formação dos(as)

profissionais da Educação

Entendemos ser a partir da promulgação da última Lei de Diretri­zes e Bases da Educação Nacional — Lei Federal 9394/96 — e de todo o movimento de regulamentação de seus dispositivos que se concentram as formulações pelas quais poderemos nos pautar para apresentar o ce­nário atual dessas mudanças:

1) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394/96 — em seu artigo 62 5 — traduziu antiga reivindicação da categoria docente,

5. Artigo 62: A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em Universidades e Institutos Supe­riores de Educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na edu­cação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível mé­dio, na modalidade Normal.

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ao exigir formação em nível superior para os(as) professores(as) que atuam, ou venham a atuar, na educação básica, mesmo que seja admiti­da ainda a formação mínima em nível médio /Normal. Tal formação em nível superior ocorrerá, segundo a referida lei, em Universidades ou nos Institutos Superiores de Educação (ISE). O Curso Normal Superior (CNS) nova/velha modalidade de formação teria a prerrogativa de formar professores(as) para a educação infantil e séries iniciais do ensino funda­mental. A lei ainda se refere a programas de educação continuada para professores(as) em exercício; programas de formação pedagógica para alunos portadores de diploma de nível superior (cursos seqüenciais) e programas de pós-graduação lato e stricto sensu, admitindo-se ainda, para as tarefas de administração, planejamento, inspeção, supervisão e orien­tação educacional para a educação básica, a formação em curso de Peda­gogia ou em nível de pós-graduação (artigo 64).

2) Movimento de definição/regulamentação de diretrizes gerais/ curriculares para a formação de profissionais da educação em nível nacional:

Foi instalada pelo Ministério de Educação e Cultura, através da Se­cretaria de Educação Superior (SESU) (em setembro de 1999), uma Co­missão de especialistas para definição das diretrizes curriculares refe­rente à formação de professores(as) e profissionais da educação que apon­taram diretrizes para a formação, acompanhamento e desenvolvimento de projetos pedagógicos das Instituições de Ensino Superior que ofere­cem cursos de formação de professores, além da necessidade de existir um Sistema Nacional de Formação de Professores(as).

Ao longo desse debate, duas tendências se fizeram presentes. A primeira, protagonizada pelas posições assumidas publicamente pela Associação Nacional de Formação de Professores e Profissionais da Edu­cação (Anfope), através da profa. dra. Helena Maria de Freitas, da Unicamp/SP, defende a existência de uma base comum nacional de for­mação; ter a docência como base para a formação do(a) professor(a) e do(a) especialista; existência de princípios norteadores da formação; só­lida formação teórica e interdisciplinar, unidade teoria e prática, gestão democrática, compromisso social e polít ico, trabalho coletivo e interdisciplinar, formação inicial e contínua. Apresenta também a pro­posta da Escola Única de Formação — organizada pelas Universidades e Centros de Educação, garantindo conteúdo da formação de forma arti­culada e comum aos profissionais da educação básica.

A segunda, apresentada especialmente por ocasião da Comissão do MEC que iniciou o debate acerca das Diretrizes Curriculares para os

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cursos de formação de professores — representada pelos professores doutores Selma Garrido Pimenta e José Carlos Libâneo —, defendia como locus da formação de professores para a educação básica a Faculdade de Educação, que ofereceria o curso de Pedagogia para a formação do(a) pedagogo(a) com pluralidade de abordagens do fenômeno educativo, tendo como concentração de sua temática investigativa os saberes peda­gógicos e a existência de um currículo orientado para a pesquisa. Tal proposta sugere ainda a criação de um Centro de Formação, Pesquisa e Desenvolvimento Profissional de Professores (CFPD), organizado junta­mente com as Faculdades de Educação para a formação de professores(as) da educação básica; a criação de um programa especial de formação pe­dagógica (desenvolvimento de projetos colaborativos com outras insti­tuições), programas de educação continuada e de pós-graduação; reali­zação de pesquisas na área de formação e desenvolvimento profissional de professores(as); formação de educadores(as) para contextos não esco­lares, rejeição à criação do Curso Normal Superior, entendido como reedição da antiga Escola Normal; rejeição também a modelos únicos de formação, considerados incompatíveis com a diversidade e desigualda­de existentes no país.

Como vemos, a busca de consensos, prerrogativa do necessário exer­cício democrático, apresenta-se como um processo trabalhoso, lento, porque supõe o diálogo e o intercâmbio de posições assumidas no deba­te público que, às vezes, se apresentam contraditórias, carecendo de explicitações.

3) Acerca do processo de regulamentação dos ISES/ CNS, dois Pa-receres do Conselho Nacional de Educação buscaram apontar os pressu­postos para a regulamentação desses "novos" centros de formação. São eles: o Parecer CNE/CP 115/99, que indica normas e orientações gerais para a organização dos ISE e o Parecer CNE 970/99, que apresenta o curso de Pedagogia para a formação do(a) especialista e pesquisador(a) em educação. Indica ainda a não-autorização da Habilitação Magistério para a educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental nos cur­sos de Pedagogia. O conselheiro Jacques Veloso — nessa oportunidade — discorda do Parecer, alegando que o artigo 64 da LDB 99394/96 não determina explicitamente que o curso de Pedagogia formará somente o(a) especialista em educação. Para ele, a definição do CNS para forma­ção de professores(as) contrariaria o espírito de flexibilidade, autonomia e inovação presentes na referida lei.

Ainda sobre os Institutos Superiores de Educação, o próprio Con­selho Nacional de Educação (CNS) elabora um documento intitulado

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"Projeto de Diretrizes para a formação inicial de professores de educa­ção básica em nível superior e a estruturação do Curso Normal Supe­rior". Nesse documento, há uma análise sobre a inadequação dos atuais cursos de formação de professores(as), apontando princípios orienta­dores para uma Reforma nessa formação e a organização do CNS. Para isso aborda: a concepção de competência (nuclear na orientação da for­mação inicial dos professores); a necessidade de coerência entre a for­mação oferecida e a prática esperada do futuro professor (simetria in­vertida); concepção de conteúdo: conceituai, atitudinal e procedimental (à semelhança do que se apontava nos Parâmetros Curriculares Nacio­nais a ser desenvolvido com os alunos da educação básica); concepção de avaliação — indicando formas de organização / avaliação do traba­lho didático-pedagógico.

4) Nos diferentes estados do país, os Conselhos Estaduais de Edu­cação também passam por momento de definição de regulamentação das medidas traçadas em nível federal. De maneira geral, as orientações estaduais estão reafirmando as orientações de âmbito nacional.

5) Sobre o perfil desejado para o curso de Pedagogia: a determina­ção legal e os Movimentos de Educadores:

A partir da promulgação da LDB 9394/96, sobretudo no que se re­fere aos(às) profissionais da educação, 6 movimentos de educadores eclodiram pelo país na defesa do curso de Pedagogia tendo como base de formação: a docência, a gestão e a pesquisa. Variados Fóruns de Edu­cação, Faculdades de Educação das Universidades públicas — federais e estaduais —> a Anfope, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên­cia (SBPC) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) se colocaram de forma contrária à exclusividade do curso de Pedagogia na formação do(a) especialista em educação — de forma separada da docência.

6) Não obstante a dificuldade de produção de consenso acerca da formação de professores(as) em nível universitário e do(a) pedagogo(a), o senhor presidente da República toma para si a tarefa de definir o lócus do professor da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamen­tal, delimitando assim o território da atuação do curso de Pedagogia no

6. Artigo 64: "A formação de profissionais da educação para administração, planejamen­to, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica será feita em cursos de graduação em Pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional".

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que se refere à formação de professores(as). A promulgação do Decreto Presidencial 3276 / 99, de dezembro do mesmo ano, caiu como uma bom­ba nos meios acadêmicos e de formação de profissionais da educação, entendido como uma atitude equivocada da Presidência da República quando assume a definição de uma carreira profissional, ultrajando as demandas colocadas pelos Movimentos de Educadores em nível nacio­nal e que inclusive, através de diferentes formas de representação, parti­cipavam do processo de construção das Diretrizes Curriculares dos cur­sos de graduação desencadeado pelo próprio Conselho Nacional de Edu­cação. Vamos a ele:

Decreto Presidencial 3276/ 99 — Artigo 2o — A formação em nível superior de professores para atuação multidisciplinar destinada ao magistério na educa­ção infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental far-se-á EXCLUSIVA­MENTE em Cursos Normais Superiores.

Eclodiram, a partir deste decreto, inúmeras manifestações de educadores(as) no país, denunciando inicialmente a ação presidencial, assim como o provável aligeiramento da formação de professores(as) para este nível de ensino, que poderá representar a qualidade educacio­nal a ser ofertada pelo Curso Normal Superior, entendida aqui como uma modalidade pós-nível médio de caráter profissionalizante e não necessariamente com a qualidade de curso superior. Entre outras razões, a titulação acadêmica de professores(as) requerida pelos Institutos Su­periores de Educação, ao qual o Curso Normal Superior se vinculará, apresenta-se como uma razão preocupante. As características indispen­sáveis para a qualidade do trabalho universitário que se articula em en­sino, pesquisa e extensão estariam prejudicadas nesse caso.7

A par dessas manifestações, o Conselho Nacional de Educação, vi­sando "minimizar" tais demandas, substitui a palavra "exclusivamente",

7. A respeito das Universidades, o artigo 52 da LDB 9394/96 assinala: "As Universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profis­

sionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que se caracteriza por:

I — produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional;

II — um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;

III — um terço do corpo docente em regime de tempo integral".

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presente no decreto, por "preferencialmente". Mesmo assim, o entendi­mento corrente ainda é o de que a prioridade será para a formação de professores(as) de educação infantil e séries iniciais no Curso Normal Superior. Dessa maneira, provavelmente teremos, nos próximos anos, atuando no mercado de trabalho da educação, profissionais formados em diferentes cursos que, para além do título, poderão representar um diferencial na qualidade da formação.

5. Questões polêmicas a serem enfrentadas no debate institucional ainda...

Entendemos que o debate sobre esse tema ainda não está finaliza­do. As instituições formadoras de profissionais da Educação necessitam dimensionar essas questões, buscando alternativas de consolidação, em seus projetos pedagógicos, de uma estrutu :a capaz de dar conta das po­lêmicas presentes nesse cenário.

Pelo menos três questões nos parecem emergentes.

A primeira: é fundamental que se defina, por parte das instituições formadoras, a identidade do curso de Pedagogia e sua vinculação insti­tucional.

A segunda: refere-se à forma de articulação e elaboração de propo­sições dos cursos de Pedagogia junto aos cursos de Licenciatura, visan­do emoldurar um quadro diferenciado da histórica formação fragmen­tada do conhecido "Esquema 3 + l". 8

A terceira, e não menos importante, se circunscreve na ação das instituições formadoras em programas de Educação Continuada, bus­cando ampliar a relação dessas instituições com as escolas de educação básica, na perspectiva de promover a formação em serviço dos(as) pro­fissionais que já atuam nos diferentes níveis e sistemas de ensino. Por essa ótica, frutíferas experiências desenvolvidas entre Universidades e escolas de educação básica, denominadas "pesquisa em colaboração", oportunizam aos participantes a construção indissociável enquanto su-

8.0 chamado Esquema 3 + 1 consiste na organização do currículo dos cursos de Licencia­turas na forma de três anos de Bacharelado acrescido de um ano das disciplinas pedagógicas de formação de professores. As variações dessa organização curricular ocorrem, por vezes, na forma de diluição do que seria o ano de disciplinas pedagógicas, ao longo dos quatro anos do curso, fragmentando o conhecimento necessário à docência. A insuficiência dessa organiza­ção curricular para fazer frente às novas demandas de formação de professores tem sido apon­tada em inúmeros trabalhos na área.

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jeito e objeto do processo de aprendizagem, a ampliação da compreen­são da consciência acerca dos fenômenos da realidade, problemati-zando-os. Além desses aspectos, os participantes desse processo formam-se pesquisadores, concomitantemente ao processo de se construírem tam­bém educadores(as). São colocados em xeque nessas ações: as relações de poder, os privilégios, a voz e status na pesquisa educacional, propon­do a eliminação / delimitação entre professores(as) pesquisadores(as) e professores(as) — atribuindo papel mais decisivo aos últimos na toma­da de decisões, a definição de um padrão ético mais acentuado pelos acadêmicos nas suas relações de pesquisa com professores(as) e com as escolas, rompendo com os velhos padrões de dominação acadêmica, ofe­recendo suporte às investigações feitas pelos(as) professores(as) e aco­lhendo os resultados desses trabalhos como conhecimento socialmente válido (Zeichner, 1998; Elliot, 1998; Kincheloe, 1997; Carr, 1996; Pimenta, 2000a).

Para além dessas questões enunciadas, outros temas merecem defi­nições, tais como: o perfil do(a) aluno(a) e dos cursos formadores; a arti­culação teoria e prática; a definição de conhecimentos / competências necessários aos(às) futuros(as) professores(as); a educação formal e a não formal; a reconfiguração do tempo e do espaço de aprendizagem do alu­no; a valorização dos saberes/práticas docentes; a unidade escolar como espaço de formação docente, da valorização, do desenvolvimento pro­fissional e do trabalho coletivo; a valorização de atitude crítico-reflexiva no processo de formação docente; a introdução de temáticas emergentes como as relações de gênero, de minorias culturais e de etnias, entre outras.

6. Por uma Pedagogia e docência de qualidade: o "locus" e o "focus"

Para deixar como ponto de reflexão, em meio a esse debate sobre formação de profissionais da educação, e de professor(a) reflexivo(a), os/as leitores(as) podem se perguntar: mas afinal, qual professor(a), pedagogo(a) as autoras defendem ser formado(a)?

Mesmo considerando o cenário aparentemente nebuloso que se apresenta para a formação dos profissionais da educação, a nossa preocupação nesse trabalho não é de uma definição do "locus" e do "focus" de formação desses profissionais, pedagogos(as) e /ou professores(as). Trata-se mais de refletir sobre o como formar, visando estabelecer indicativos que assegurem a luta pela qualidade da forma­ção oferecida pelas instituições. Essa luta precisa resgatar a história

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dos(as) educadores(as) — tanto a história individual quanto a história coletiva da educação e da categoria docente — que perpassa o debate e a explicitação das questões acima enunciadas. Ressaltando ainda a im­portância da formação na Universidade, queremos lembrar também o chão da escola, como espaço de formação para uma qualidade possível no trabalho educacional, no seu cotidiano, que tem a grande responsa­bilidade dos(as) profissionais que ali atuam. Trata-se de constituir co­munidades de aprendizagem de professores de modo que estes se apoiem e estimulem mutuamente, superando ações de formação indi­vidualizadas (Zeichner, 1992). Os professores necessitam comprovar que as situações concretas que enfrentam em seu cotidiano não estão longe daquelas situações vividas pelos seus parceiros de trabalho. As condições objetivas de vida e de trabalho, as competências e /ou in-competências de sua formação, construídas e reconstruídas no exercí­cio cotidiano do ofício docente, fazem parte de uma teia social e huma-na. E preciso compreender essa teia, ressignificando esse contexto, jun­tando os esforços da categoria, sem, no entanto, perder o horizonte da luta e nem o real concreto em que estamos inseridos. Para além das leis, parece iminente encontrarmos formas de iniciar o debate institu­cional que vá além das definições nos planos e projetos — que se con­cretize através de práticas transformadoras e criativas capazes de fazer frente à complexidade da realidade social e educacional que vivemos. Quando o professor fecha a porta da sala de aula, suas práticas são reveladoras de um conjunto de crenças e convicções que vão além das intenções assinaladas no plano formal.

Defendemos sim um(a) professor(a) intelectual e, fundamentalmen­te, cidadão(ã) em processo contínuo de formação, capaz de articular a teoria e a prática, aprendendo e refletindo sobre a última, iluminada com teorias, construída e sistematizada inclusive por ele(a); que se forma atra­vés da prática coletiva — de cidadão(ã) solitário(a) para cidadão(ã) solidário(a) —; que desenvolva a escuta, a tolerância e o respeito com o(a) outro(a) — o igual e, sobretudo, com o diferente; que seja capaz de construir uma identidade profissional buscando superar a suposta "neu­tralidade"; que tenha disponibilidade para o novo, ousando alternativas educacionais comprometidas com a aprendizagem do(a) aluno(a), com a igualdade e a justiça social; que seja menos consumidor das políticas oficiais de forma acrítica, para ser mais produtor de conhecimentos; que seja livre para educar para a cidadania, fundado no futuro, tendo o ho­mem/ o humano como projeto (Santos, 1998). E o mais importante: que se disponha, enquanto cidadão, a lutar por melhores condições de vida e

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de trabalho da sua categoria e nas instituições em que atua o que o(a) qualifica sobremaneira para poder desenvolver essas dimensões.

Quanto ao(à) pedagogo(a), defendemos uma tríplice função (com­plementar e articulada): de docente, de pesquisador(a) e de gestor(a).

A função docente — considerada base para a atuação dos profissio­nais da educação — garante o conhecimento prático necessário para a orientação, coordenação, pesquisa e gestão de unidades ou sistemas. Como orientar outros profissionais sobre um fazer que não se conhece na prática? As experiências têm mostrado a insuficiência da atuação de orientadores /coordenadores cheios de teoria e vazios de compreensão prática sobre o fazer pedagógico com os(as) alunos(as), ou ainda aqueles(as) que de todas as maneiras fogem da sala de aula, desviando dessa maneira da essência do trabalho docente. Nessa perspectiva, pou­co ou nada contribuem com o trabalho do(a) professor(a).

Já a dimensão de pesquisa — fortemente assinalada no corpo deste trabalho —, como uma função essencial à pratica docente, necessita ser qualificada no sentido da sistematização das produções e da potenciali-zação de ações formadoras, tais como o estágio interdisciplinar como instrumento privilegiado para a compreensão da escola e do sistema educacional, para além do que acontece somente na sala de aula. A problematização de práticas docentes, partindo das experiências dos próprios alunos, seja na condição de alunos ou de professores, se apre­senta também como um instrumento importante na formação e desen­volvimento profissional. Trata-se aqui de estranhar o que é habitual, desenvolvendo assim uma atitude científica de olhar a realidade educa­cional para além do senso comum.

Por último, a dimensão da gestão, pensada na perspectiva de or­ganizadores de políticas públicas. Atuar nos organismos de adminis­tração, tanto em nível local quanto regional ou nacional, supõe com­preender as relações existentes entre escola e sociedade de forma contextualizada, oferecendo suporte às ações de construção de siste­mas e unidades escolares de fato democráticas, tornando acessível a participação de todos(as) os(as) agentes envolvidos(as) no processo edu­cacional: alunos(as), famílias, profissionais da educação e as institui­ções do entorno e parceiras nesse processo. Além disso, criar condições para que a escola cumpra a sua função que é a de ensinar, de forma que todos os alunos consigam aprender, função essa que tem sido desqualificada nos últimos tempos especialmente da parte dos siste­mas de ensino.

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Podemos concluir que a política educacional brasileira, como ti­vemos oportunidade de apresentar no início desse trabalho, vem se apresentando retrataria às necessidades dos(as) professores(as) e das escolas. O que temos assistido — pelo menos no que se refere às políti­cas oficiais — é ainda a concepção do(a) professor(a) e/ou profissional da educação como consumidor de teorias e investigações produzidas, via de regra, fora do cotidiano das escolas. Os recursos financeiros gas­tos com programas de formação de professores/profissionais da edu­cação, os materiais didáticos que estão sendo produzidos para as esco­las e os(as) professores(as) e não com as escolas e os(as) professores(as), são merecedores de nossa atenção no sentido do exercício da reflexão crítica sobre o significado dessas ações no cenário atual brasileiro e mundial no tocante à produção de um tipo de profissional da educação. Terminamos perguntando: tais ações estariam contribuindo para a for­mação de um profissional autônomo, reflexivo, capaz de pensar e deci­dir sobre o processo e o produto de seu trabalho, sobre como criar e utilizar meios, procedimentos, programas, sendo capaz de questionar sobre seus pressupostos?

A resposta a essa pergunta parece ser o grande desafio das escolas, dos sistemas educacionais, das universidades, dos sindicatos, entre ou­tros, cada um à sua maneira, oferecendo interessantes elementos para essa análise.

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0 PROFESSOR DIANTE DO ESPELHO: reflexões sobre o conceito de professor reflexivo

Juarez Melgaço Valadares*

Introdução

Nosso objetivo para este trabalho é provocarmos a reflexão sobre um conceito presente em diversos artigos sobre educação: o de "professor reflexivo", introduzido por Donald Schõn na década de 1980. Para tal, nos remetemos inicialmente aos aspectos relevantes da prática reflexiva como é percebida por diversos autores e presentes na literatura acadê­mica atual. A seguir, teceremos um diálogo entre estas representações e uma prática concreta vivenciada em uma escola da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, local onde um coletivo de professores vem trabalhando na Educação de Jovens e Adultos, desde 1995, com formas alternativas de organização do trabalho pedagógico. E, finalmente, tra­zemos para discussão alguns elementos relacionados à importância da autonomia do professor na organização e execução de projetos pedagó­gicos em suas escolas.

0 profissional reflexivo

Na década de 1980 Donald Schõn, como forma de problematizar as questões referentes à relação teoria — prática na aprendizagem profis­sional ou na aprendizagem cotidiana, introduziu o conceito de "profis­sional reflexivo". Propunha-se, desta forma, levantar uma crítica ao que

* Mestrando na Faculdade de Educação da USP.

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ele denominou racionalidade técnica: ações didáticas que se reduziam à escolha pelos professores dos meios necessários para a realização de ob­jetivos prescritos externamente ao ambiente de trabalho. Os professores tinham suas ações limitadas à escolha de estratégias que fossem eficazes na intervenção prática e consecução daqueles objetivos. Assim sendo, quanto maior for a parcela de intervenção que se possa regular e deter­minar de antemão, por especialistas externos, mais garantias existem de evitar a subjetividade na atuação do docente, ou de outros agentes que distorcem e perturbam a intervenção científica eficaz (Pérez Gómez, 1998).

A concepção dos processos de ensino como simples intervenção pedagógica e a visão do professor como técnico retomam, na educação, o modelo taylorista de eficiência industrial. Taylor, considerado o pai da organização científica do trabalho, centrou seus estudos principalmente nos métodos e na organização do trabalho, e no controle sobre ele. A separação entre concepção e execução, alvo da crítica de Schõn, é explicitada no princípio proposto por Taylor (apud Valadares, 1998): Todo possível trabalho cerebral deve ser banido da oficina e centrado no de­partamento de planejamento ou projeto. Para Schõn, os problemas que surgem na prática são marcados pela incerteza, instabilidade, singulari­dade e conflitos de valores, e, desta forma, resistem a ser enquadrados em esquemas rígidos e predeterminados. O contexto da racionalidade técnica mecaniza o pensamento negando o mundo real da prática vivi­da, reduzindo o conhecimento prático do professor a um conhecimento como técnica.

Após conceber a crítica à racionalidade técnica, Schõn situa os pro­blemas que surgem em uma realidade complexa no marco da prática reflexiva, uma prática social saturada de valores éticos. Explorando as características do pensamento de um profissional competente, ele anali­sa as componentes da atividade daquele praticante diante de uma situa­ção problemática, distinguindo três situações que são elevadas à catego­ria de conceitos: o conhecimento na ação, a reflexão na ação, a reflexão sobre a ação. Quando um profissional reflete sobre uma anomalia tendo como referência a sua experiência, ocorrem as três situações citadas aci­ma que não são encontradas no modelo tecnicista. O profissional não aborda um problema como cópia de uma teoria geral, e sim utilizando a intuição, analogias e metáforas, ou seja, usa seu conhecimento tácito já automatizado devido a reflexões e experimentações anteriores. As refle­xões na ação consistem em um diálogo com a situação, no exato momen­to em que os imprevisíveis e incertos fenômenos são encontrados. Sob

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esta ótica, os problemas não são moldados e estabelecidos de uma pers­pectiva externa, sendo posteriormente acompanhado de uma análise que o prático realiza sobre os processos de sua atuação, ou seja, de uma refle­xão sobre a ação.

O modelo de um profissional reflexivo com referência nestes três conceitos — uma epistemologia da prática — reafirma a competência pessoal gerada por meio de reflexões sobre e na experiência vivida, con­solidando o processo reflexivo como forma de investigação e não como descoberta do já existente.

Críticas ao conceito de professor reflexivo

Quando falamos em professor — reflexivo estamos nos referindo a expectativas que são geradas quanto ao seu desempenho no cotidiano da escola, e como elas são responsáveis pelo desenvolvimento de práti­cas inovadoras, ou manutenção das existentes, que dependem das ações daquele profissional. Essas expectativas, bem como as representações sobre o professor competente, manifestam no discurso e nas ações de cada um, e foram construídas nas diversas interações e vivências ao lon­go da vida. A superação de determinadas visões sobre a função da esco­la e sobre os papéis que o professor deve desempenhar supõe tanto a reflexão teórica quanto ações individual e coletiva. O diálogo do conhe­cimento pessoal e ação aborda a questão da teoria e prática no plano da subjetividade do sujeito.

No estudo de Pimenta (2000) podemos notar o crescente aumento de trabalhos em torno do conceito de professor — reflexivo. A fertili­dade do conceito merece a seguinte consideração: (...) as pesquisas que adentram os contextos escolares e as salas de aula, examinando seus ne­xos e suas mútuas determinações nos contextos das políticas mais am­plas, apontam para a fertilidade do conceito ao acentuar a possibilidade de produção do conhecimento dos saberes da docência, ao apontar para a importância da escola na produção da docência e no desenvolvimento profissional dos professores, ao pôr em relevo essa produção no coletivo do projeto pedagógico. Em conseqüência, apontam para a valorização do sujeito/profissional professor e para a possibilidade da autoria/ autono­mia na docência.

Se, por um lado, mostra a preocupação com a complexidade da prá­tica educativa e a busca de uma compreensão mais abrangente do dis-

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curso que esse conceito subentende, por outro, demonstra uma discre­pância dos resultados da pesquisa em educação e uma efetiva mudança educacional. No trabalho de Lampert (1991) podemos observar o grande número de papéis e competências implícita e explicitamente atribuídos ao professor como forma de garantir práticas pedagógicas concernentes ao atual momento que passamos. De maneira semelhante, os aspectos de uma educação ideal são freqüentemente veiculados em grande parte das teorizações acadêmicas sobre o ensino, e transformados em recursos e estratégias didáticas, propostas de ensino, sem que os fundamentos que lhe deram origem ou as bases que as sustentam sejam considerados. Os dilemas vivenciados a partir do contato dessas proposições com os professores são que, sem a existência de oportunidades de reflexão so­bre elas, parece haver uma adesão a opiniões aparentemente contraditó­rias, bem como a falta de argumentação para justificar a seleção de uma ou outra proposta (Almeida, 2000). E nesse contexto que parece ganhar fôlego a necessidade de aprofundarmos o conceito de professor reflexi­vo no momento atual para facilitar a superação de assimilações acríticas constatadas nestes trabalhos. Esta tarefa requer a problematização das visões sobre a prática docente e suas circunstâncias, e também os funda­mentos e suas conseqüências para a educação escolar. Ficamos aqui com Elliot (1998): O conhecimento prático não envolve somente uma aprecia­ção da cultura ocupacional de ensino, mas sua localização social.

De acordo com Contreras (1997) são raros os trabalhos sobre educa­ção que não fazem uma defesa da necessidade da reflexão sobre a prática como parte essencial da formação e função do professor no exercício de seu trabalho. Apesar desta presença, Contreras reafirma, como Zeichner (1998), o esvaziamento de sentido do termo nas reformas e programas de ensino sugeridos pela pesquisa acadêmica. Esta preocupação também é apontada no levantamento realizado por Pimenta (2000). Para Zeichner (1992), a pergunta não é "se os professores são reflexivos, mas como e sobre o que estão refletindo". Chega a ser irônico: "Há uma diferença qua­litativa entre refletir sobre o racismo, amendoim ou queijo, por exemplo".

O autor, ao mencionar sobre os perigos de uma reflexão sem finali­dade, ressalta quatro tradições de práticas docentes existentes: a acadê­mica (refletem sobre seu próprio exercício profissional eliminando as condições externas); a eficácia social (aplicação de regras determinadas pela investigação); desenvolvimentista (reflete unicamente sobre os alu­nos nas condições de sala de aula); e a reconstrução social (reflete sobre o contexto social e político do ensino e a valorização de ações nas escolas que direcionem a uma maior igualdade e justiça social).

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Nestas práticas identificamos uma que reformula o conceito de efi­ciência social, sugerindo um retorno a uma nova versão de racionalida­de técnica. No entendimento de Contreras (1997) esta é uma das contra­dições envolvidas na utilização do conceito: Uma primeira questão evi­dente a partir desta análise é que o uso do termo tem perdido o sentido com que era usado por Schõn. Como se observa, dentro das perspectivas reflexivas tem sido incluída uma sobre a racionalidade técnica (a versão de eficiência social, segundo denominação de Zeichner), quando era pre­cisamente contra este enfoque da prática profissional que se opunha ini­cialmente esta teoria.

Apesar de uma aparente imagem de modernidade e autonomia do professor, ainda há diferença nas relações entre trabalho prescrito e trabalho real, concepção e execução em alguns processos de trabalhos inovadores.

A imagem habitual da reflexão como uma prática individual e a demanda sobre o que realmente deve ser objeto desta reflexão chega a supor, como nos mostra Contreras, que sobre os professores pesa toda a responsabilidade na resolução dos problemas educativos. À menção de um profissional reflexivo, sujeito de seu processo, contrapõe-se uma visão de professor polivalente, flexível, que "veste a camisa" da pro­posta, mas que continua sem o poder de tomar decisões sobre suas in­tervenções. A novidade é que os professores têm sido chamados a in­corporar seus saberes nos projetos, mas permanece inexistente a legitimação destes saberes, tanto do ponto de vista epistemológico quan­to social e político.

Uma incursão novamente ao atual mundo do trabalho poderá nos fornecer algumas pistas importantes. O trabalho em uma empresa flexí­vel e automatizada também não faz uma ruptura com os pressupostos básicos do taylorismo. As novas tecnologias, ao informatizar e robotizar a produção, colocam, no lugar do trabalho desqualificado, um operário polivalente. Em vez de uma linha individualizada, ele integra uma equi­pe. Esta reconstrução e desenvolvimento da produção através de mode­los baseados em alta tecnologia, que podemos caracterizar como toyotismo, questiona os princípios de Taylor, mas permanece dentro dos marcos da separação concepção / execução. A produção em massa passa a ser questionada por exigência de clientes que especificam o tipo e qua­lidade do produto. O melhor aproveitamento do tempo é garantido pelo just in time. Surge o Team Work, divisão das linhas de produção em uni­dades de produção flexível, em que cada time pode produzir o produto

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final, com empregados polivalentes, e com certo grau de autonomia em relação as decisões sobre como organizar o seu trabalho. Vejamos a com­preensão de Valadares (1998:): Tais aspectos se vinculam ao conceito de qualidade. Antes havia um setor ou especialistas no controle de qualida­de, que avaliavam o produto final. Atualmente todos são responsáveis pela qualidade em todas as etapas da produção. Tornou-se comum dis­cutir e aplicar o diagrama de Ishikawa, um inventário de todas as causas de erro. Ou o diagrama de Pareto que identifica problemas-chave e prin­cipais determinando as prioridades de intervenção, ou ainda o círculo de Deming, uma integração prática-teoria-prática.

No que diz respeito à relação entre concepção e execução, o foco central da diferença estaria no deslocamento da prescrição para as ope­rações voltadas à realização dinâmica de objetivos mais amplos, associa­dos à regulação do sistema, em substituição à realização passiva de ope­rações específicas prescritas. O toyotismo, com sua visão sistêmica, diri­ge-se, primeiramente, ao psiquismo e ao comportamento do trabalha­dor, para depois atingir a sua demanda. A prescrição incumbe o traba­lhador da descoberta do imprevisto para melhor funcionamento do sis­tema técnico, introduzindo termos que são incorporados no discurso cotidiano: "qualidade", "zero pane", "produtividade" e "eficiência". Os esforços são voltados para apagar os riscos do inesperado na produção. E dentro de seu grupo de trabalho. Parece que estamos procurando uma teoria "total", que dê conta de todas as incertezas da prática educativa, sem deixar restos. E sem correr riscos.

Parece-nos então que a discussão sobre o retorno às idéias de efi­ciência técnica encontra ressonância em esferas distintas da educação. Uma das principais críticas sobre a utilização da reflexão pelos professo­res é que ela não transpassa os muros da sala de aula e da prática ime­diata (Zeichner, 1992, Contreras, 1997). A imagem no espelho é a de um professor que enfrenta, por si mesmo, individualmente, os caminhos de ação em sala de aula que sejam expressões dos ideais educativos. Afir­ma-se, sobremaneira, que os professores devem romper a cerca imposta por esta reflexão autolimitada, e que a prática reflexiva deve incorporar os elementos que normalmente se mostram inquestionáveis e que cons­tituem empecilhos às ações inovadoras, ou seja, uma compreensão mais ampla do contexto social na qual se desenvolve a prática educativa. Para Grundy (apud Contreras, 1997), é necessário desenvolver uma consciên­cia crítica a partir da qual se pode determinar os limites que em nossa consciência dificultam a prática emancipatória e reconhecer as interven­ções escolares que estão guiadas por interesses de dominação. Desen-

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volver, segundo o autor, um conceito de emancipação que se oponha àquela proposta pelo liberalismo toyotista, pois esta supõe que os pro­fessores e indivíduos são capazes de provocar mudanças sem a necessi­dade de uma consciência sobre as dimensões históricas e sociais em que se inscrevem seus intentos.

A questão que parece estar colocada é a contradição que envolve o conceito de "qualidade" nas diversas variedades de prática reflexiva mencionadas por Zeichner. Portanto, no dizer de Contreras (1997): O que está em dúvida é se os processos reflexivos, por suas próprias quali­dades, se dirigem a uma consciência e realização de ideais emancipatórios, de igualdade e justiça, ou se, da mesma forma, ao não se definir o com­promisso com determinados valores, poderia estar a serviço de justificar outras normas e princípios vigentes em nossa sociedade, como a meritocracia, o individualismo, a tecnocracia e o controle social.

A prática reflexiva é entendida com um propósito claro: incluir os problemas da prática em uma perspectiva de análise que vai além de nossas intenções e atuações pessoais. Implica colocar-se contexto de uma ação, participar de uma atividade social e tomar decisões frente a ela. Associa-se, neste sentido, à autonomia do professor (Contreras, 1997; Elliot, 1998; Pacca & Villani, 2000). As capacidades acima somente po­dem ser exercidas no contexto de práticas inovadoras nas quais os pro­fessores são livres para experimentar e ao mesmo tempo comprometi­dos com o perfil de seus alunos. No campo escolar, as ações dos profes­sores coadunam-se com a construção permanente do saber-fazer tendo como referência as necessidades e desafios que o ensino como prática social lhes coloca no dia-a-dia (Pimenta, 2000).

Conhecimento, então, é ação.

Organização do trabalho na escola — reflexões a partir de um relato de

experiência

Para que possamos compreender melhor as possibilidades de trans­gressão à rotina escolar e a construção da autonomia discutiremos o con­ceito de professor reflexivo a partir do relato de uma experiência na Edu­cação de Jovens e Adultos de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. Dialogaremos com o relato a partir do estudo de Lortie (apud Contreras, 1997), que afirma que os professores desenvolvem, em seus processos de inserção na instituição escolar, três orientações para o seu trabalho: presentismo (esforços em atingir metas a curto prazo em

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194 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

suas classes), conservadorismo (evitar discussões, reflexões ou compro­missos com propostas transgressoras), e individualismo (dificuldades no trato com o coletivo, e o medo às críticas que podem surgir no grupo). Mais do que considerar um relato abrangente, o que aqui nos interessa é chamar a atenção para alguns aspectos pontuais das orientações men­cionadas acima na dimensão do trabalho concreto.

Parte-se do pressuposto que neste relato estão contidos elementos tais como a problematização, a intencionalidade do fazer educativo, a experimentação, o enfrentamento de situações complexas, enfim, práti­cas inovadoras que estão contidas no fazer docente.

Uma interpretação inicial da experiência nos leva à elaboração de algumas metas para discussão do projeto: 1) envolver alunos e professores na elaboração do currículo, considerando-os sujeitos do processo; 2) com­preensão do currículo numa perspectiva mais ampla; 3) construção de um projeto interdisciplinar a partir da Pedagogia de Projetos; 4) compreender os novos espaços de formação de professores. Conforme nos indica Pi­menta (2000:20): Os saberes da experiência são também aqueles que os professores produzem no seu cotidiano docente, num processo perma­nente de reflexão sobre sua prática, mediatizada pela de outrem — cole­gas de trabalho, textos produzidos por outros educadores.

Desde 1995 o coletivo de professores, a partir dos elevados índices de evasão e repetência apresentados pela escola no turno da noite, deci­diu-se a uma intervenção radical nos tempos e espaços da escola. Foram introduzidas modificações curriculares e, com um esforço permanente e contínuo de reflexão dos responsáveis pelo projeto — os professores, co­ordenadores, diretores —, produzimos manifestações concretas de proje­tos interdisciplinares que são desenvolvidos até hoje. Não só reconhece­mos a escola enquanto inserida em seus múltiplos aspectos — políticos, sociais e culturais — como nos reconhecemos parte dela, produtores de sua história. Construímos, desta forma, também a nossa identidade.

Acreditamos que a prática de construir projetos interdisciplinares permite, de um lado, rejeitar uma visão de meros implementadores de programas e estratégias desenvolvidas externamente e, por outro, a ne­gociação entre os diferentes saberes disciplinares para a construção cole­tiva de conhecimentos sobre a realidade permite desenvolver competên­cias, como perceber diferenças e singularidades, vislumbrar complemen-taridades, e experimentar satisfações, como iniciar uma aventura ou ela­borar o impensado, que podem se tornar referência motivadora para a futura vida docente (Pierson et al., 2000). É em relação a um sentido mais

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amplo de currículo que cabe ressaltar que, cm nossa prática, o conteúdo é sempre construído a partir de problematizações com nossos alunos, também sujeitos e detentores de conhecimentos que tentamos resgatar na escola. A intervenção pedagógica tem uma finalidade explícita, ou seja, responder aos problemas ou situações colocados pelos atores so­ciais, e a partir daí são criados e desenvolvidos módulos de aprendiza­gem que trabalhem as problemáticas propostas. O conhecimento esco­lar, nesta perspectiva, é gerado no encontro de quatro eixos: o conheci­mento disciplinar, os problemas contemporâneos, as concepções e os in­teresses dos alunos.

Analisar esse processo do ponto de vista da formação dos professo­res desloca o nosso olhar para a construção das estratégias coletivas de trabalho, pois estas permitem visualizar nossas dimensões formadoras. Vejamos, resumidamente, algumas de nossas práticas:

• Criação da "Oficina de Idéias" (Valadares, Gomes & Moura, 1998): O que se faz nas oficinas de idéias é traçar uma metodologia que leve, gradualmente, o educador a proceder de forma semelhante aos educandos. As oficinas orientam-se pelos seguintes eixos: não pode­mos ter medo de lançar idéias e toda idéia considerada absurda pode ser trabalhada e aprimorada. As oficinas permitem a apresentação de sugestões e desenvolvimento de metodologias para o trabalho coleti­vo. Como exemplo, professores que têm receio de trabalhar com pro­jetos desenvolvem temáticas escolhidas por eles próprios para o gru­po de professores. O professor não só compartilha seus medos e receios como reconhece que seu conhecimento é sempre parcial e limitado ao conviver com as linguagens e olhares de outras áreas. As oficinas re­tomam nossa auto-aprendizagem para refleti-la coletivamente e apren­der nossos métodos no próprio percurso;

• Reuniões semanais para discussão, avaliação e acompanhamento do projeto. Nestas reuniões são realizadas leituras coletivas de obras ci­entíficas e literárias que serão trabalhadas com os alunos; discutem-se problemas que surgem na implementação do projeto, realiza-se preen­chimento coletivo das fichas de avaliação dos alunos etc. Em 1999, a partir de uma reflexão dos projetos desenvolvidos em anos anterio­res, alteramos os itens da ficha de avaliação do aluno, incluindo os pontos em que as áreas se encontram e podem desenvolver as mes­mas dimensões formadoras. Empenhamos na produção de metas que são comuns a todas as disciplinas, distintamente da preocupação de operar com objetivos específicos para cada intervenção desenvolvida.

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Um contexto propício para o debate sobre os recursos mais eficazes e sobre as situações do cotidiano escolar que tornam o desenvolvimen­to dos nossos educandos mais pleno;

• Participação nos diversos movimentos culturais da cidade, com a pre­sença de todos os professores. Tentamos romper, desta forma, com a noção de "aula do professor" e passamos a trabalhar com "aula de todos". Assim, exposições de arte, festival de teatro, Festival de Arte Negra, palestras temáticas contam com a presença de todos os profes­sores, refletindo no perfil de um novo profissional da educação, nos seus saberes e em sua formação. Uma maneira diferente de formação, por não se tratar de adquirir uma competência técnica, mas pela per­cepção e sensibilidade das possíveis manifestações de formação com que convivemos no cotidiano. De aprender múltiplas linguagens. Tam­bém configura-se uma nova visão do tempo educativo, e do valor dado a este tempo, com o currículo sendo preenchido por leituras múltiplas da realidade, com traços presentes da mídia, do cinema, da música, literatura etc. Para professores e alunos.

Por outro lado, ressalta-se que todos os professores participam de cur­sos de formação e relatos de experiência em outras escolas, encontros e se-rninários — na contramão de orientações tradicionalistas que somente os coordenadores e diretores, ou pesquisadores externos, devem participar destes momentos. Todos falam pelo grupo, significando não só compromis­so como afirmação e defesa de uma identidade individual e coletiva.

Queremos desvelar com esse relato a possibilidade de construção de práticas autônomas no interior das escolas adequando-se a projetos emancipatórios tanto de professores quanto dos alunos. Somente recu­perando a centralidade dos sujeitos envolvidos podemos marcar nossos sentimentos e ações, produzindo idéias e instrumentos de trabalho. En­fim, recuperar a subjetividade e a identidade perdida. Ao contrapor esse relato às orientações identificadas por Lortie — presentismo, conserva­dorismo e individualismo — vemos emergir os três processos propostos por Nóvoa para a formação docente: produzir a vida do professor, a profissão docente, e a produção da escola (apud Pimenta, 2000).

Considerações finais

Como discutido ao longo deste trabalho, o conceito de professor reflexivo insere-se no contexto da separação entre concepção e execução,

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e da refutação proposta por Schõn à racionalidade técnica. Quanto a nós, professores, parece que esta questão aborda diretamente a relação entre pesquisa acadêmica e prática, entre universidade e outros níveis de ensi­no, e, conseqüentemente, a formação de professores. É nesta direção que teceremos algumas considerações.

O modelo de organização e gestão do trabalho presente na atua­lidade coloca como imperativo o resgate do saber do professor e de sua importância, e novas relações entre concepção e execução decor­rem nos modos de estabelecer esta relação. Como visto, essa discus­são bifurca no entendimento do significado do termo "qualidade" em educação. A diferença entre concepção e execução, elemento fundante do sistema taylorista, não logrou resolver os atuais problemas do pre­sente sistema produtivo, apesar de ter os seus conceitos revisitados. Sobre este aspecto, vale a pena ver, apesar de extensa, a seguinte cita­ção de Santos (1997): Questionado desde sempre pelos trabalhadores, a partir da metade deste século esta separação passa a ser questiona­da também pelos próprios gestores da produção vindo a constituir um dos focos principais dos novos modos de organizar e gerir o tra­balho. Esta mudança de mentalidade deve-se ao reconhecimento de que há no trabalho concreto, entre trabalho prescrito e trabalho real, um espaço onde o saber é necessariamente colocado em trabalho. As soluções criadas neste espaço pelos trabalhadores sempre foram, e continuam sendo, fundamentais para que a produção se efetive. O trabalho convoca a inteligência de cada trabalhador e do coletivo de trabalho na descoberta, na aprendizagem, no desenvolvimento e na produção de saberes.

A questão que queremos ressaltar deve-se ao fato de que, entre tra­balho prescrito e trabalho real, existe uma zona fluida perpassada pela subjetividade dos trabalhadores, ou seja, a relação entre trabalho e saber é da ordem da relação do sujeito com a linguagem e com o saber. Trans­borda, também, para a relação entre ciência e cultura, entre conceito e experiência. A experiência do real possui dados que podem ser formali­zados, codificados e simbolizados. A pesquisa que ocorre no cotidiano na tentativa de solucionar problemas imprevistos pelo campo teórico acontece, desta forma, na importante dimensão do "informal". Porém, na escola há saberes que carregam elementos que possibilitam a sua codificação e formalização. Esta visão parece ecoar com as críticas de Zeichner (1998) e Elliot (1998) sobre o distanciamento existente entre universidade e o nível fundamental de ensino, em que a primeira não legitima a produção de professores dos outros níveis, utilizando os pro-

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cessos de investigação apenas como coleta de dados que permitam suge­rir novas estratégias e recursos para o ensino, seguindo-se uma "represcrição". E esta "represcrição" atua diretamente sobre a subjetivi­dade do trabalhador, e, neste caso, do professor. Aqui nos defrontamos com uma outra bifurcação: essa pesquisa pode se apresentar como "uso de si" pelo próprio professor ou como "uso de si" pelo outro. Por isso a importância de este se ver como produtor de seu processo, como sujeito que busca formas de legitimar o seu saber. Para Santos (1997), A legitimação do saber do trabalhador, formalizado ou não, apresenta-se como o elemento em torno do qual deve se articular o debate sobre o significado do saber do trabalhador, sobre a relação entre concepção e execução, entre trabalho prescrito e trabalho real na atualidade do mun­do do trabalho.

Devemos nos reportar à subjetividade do professor quando fala­mos de sua formação, inicial ou continuada, ou seja, da relação entre um sujeito e o saber. Diversas pesquisas têm sido realizadas neste sentido. Para Zeichner (1998) um grande passo é, ao tratar os profes­sores como sujeitos, reconhecer que estes não estão buscando respos­tas fáceis ou receitas prontas, mas estão desejando ser desafiados in­telectualmente e reconhecidos pelo que sabem e fazem. Sugere dois eixos para a formação de professores: a reflexão enquanto prática so­cial, colocando seus alunos em contato com todas as tradições de en­sino reflexivo, e o trabalho com textos produzidos por professores do ensino secundário, reconhecendo que o significado de um ensino ade­quado não é propriedade dos centros universitários e dos especialis­tas da educação.

Pacca & Villani (2000) colocam, ao discutirem questões relaciona­das à educação científica, que os professores devem conviver com duas metas aparentemente conflitivas: desenvolver a possibilidade de utiliza­ção do conhecimento e, ao mesmo tempo, adequar-se à tradição de res­peito e tolerância cultural com os saberes alternativos e do senso comum. Retomam, novamente, a questões ligadas à subjetividade e a componen­tes afetivos da aprendizagem, e propõem como meta para a formação de professores o que chamam competência dialógica: a capacidade do pro­fessor em estabelecer e conduzir uma interação pessoal com seus alunos, levando-os a se envolverem em um processo de aprendizagem e a uma posição pessoal autônoma frente ao conhecimento. Reconhecem que es­tas interações escapam aos limites de uma generalização, uma regra ou planificação, e sugerem a utilização de um referencial psicoanalítico como aporte para orientações em contextos concretos. Como conseqüência, a

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formação e a aprendizagem são interpretadas como consistindo de uma série de mudanças na natureza da relação entre o aluno, o professor e o conhecimento. Uma excelente síntese dessas relações pode ser vista em Villani & Freitas (1998) e cabe aqui mencionar: Partimos de categorias que descrevem níveis de envolvimento com o saber (recusa ou desprezo, demanda passiva, abertura para o risco, aprendizagem ativa e produção criativa), com o professor (rejeição ou indiferença, dependência total, aceitação de seu papel questionador, transferência simbólica e assesso-ria) e com os colegas (dispersão, dependência inconsciente do líder, dis­ponibilidade para os questionamentos, transição para a colaboração e grupo operativo) e chegamos a definir um conjunto de instrumentos pri­vilegiados para provocar as mudanças.

A capacidade do professor em monitorar o desenvolvimento dos alunos, competência dialógica, torna-se importante para intervir e fixar as tarefas que permitam a passagem entre os patamares subjetivos de aprendizagem mencionados na citação acima, facilitando o caminhar do professor em formação de uma situação de identificação com o saber do docente para outra marcada pela independência e criatividade.

A formação do professor reflexivo e autônomo é importante por­que na prática sempre despontam elementos perturbadores: resistências, bloqueios, e os mais diversos imprevistos. Ao se refletir sobre uma ação deve-se ter claro que essa análise é realizada à luz de um referencial teórico, e assim fica evidente a necessidade de uma formação teórica do professor que possibilite o resgate de sua prática. Ou será a ação maior do que a teoria? Por outro lado, parece evidenciar-se que as reflexões são mais eficazes quando realizadas por um grupo, e, desta forma, a prática de trabalhos e planejamentos coletivos e interdisciplinares desponta com certa importância para a formação inicial e continuada. De forma seme­lhante às interações mantidas com os alunos, a importância da vincula-ção da construção da subjetividade e identidade dos professores com a exploração das relações entre as leituras oferecidas pelos vários campos do saber gera um clima propício às trocas e complementação dos sabe­res (Pierson et al., 2000).

A formação do professor será sempre uma auto-interrogação por­que as possibilidades nunca se esgotam. O professor nunca estará acaba­do, nunca dominará plenamente seu percurso. E por isso a formação nos coloca em confronto com nós mesmos, com o possível humano existente em nós. Espera-se que o professor, ao olhar-se no espelho, depare com a alteridade mais radical.

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200 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO... 201

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PROCESSO DE INTER-RELAÇAO DA LEITURA - ESCRITURA

Rita de Cássia Monteiro Barbugiani Borges*

Certa palavra dorme na sombra

de um livro raro.

Como desencantá-la?

a senha do mundo

Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro,

não desanimo,

procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo

minha palavra.

Carlos Drummortd de Andrade

É a senha da vida

Pretende-se, neste orientação do processo

texto, discutir possibilidades de ação docente na de inter-relação da leitura — escritura, por meio

* Professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás — UCG. Especialista em Educação — Metodologia do Ensino Superior — pela Uni­versidade Católica de Goiás. Mestranda em Educação pela Universidade Católica de Goiás.

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de uma intertextualização da teoria do professor reflexivo-crítico e da relação leitura — escritura. Este estudo tem a finalidade da busca do processo de ler e de escrever para uma melhoria do ensino superior. Então, a leitura e a escritura serão analisadas como habilidades inter-relaciona-das, ou seja, de possuírem uma relação de interação, já que esse processo é circular, pois a leitura leva à escritura e esta àquela, principalmente no processo do ensino superior.

Para tentar fazer essa intertextualização da inter-relação leitura — escritura e a prática do professor reflexivo-crítico far-se-á, inicialmente, uma análise da relação leitura — escritura nas sociedades letradas. A partir do discorrer dessa questão, será apresentada uma síntese da teo­ria, das contradições, dúvidas e buscas do profissional reflexivo como intelectual crítico, baseando-se na obra de J. Contreras (1997) sobre La autonomia dei profesorado. Por último, tentar-se-á a interligação dessas ques­tões junto às análises do professor-pesquisador Ezequiel Theodoro da Silva em seus estudos sobre o processo da leitura na educação brasileira, e da professora-pesquisadora Selma Garrido Pimenta quanto à impor­tância da formação de professores na sociedade contemporânea, onde este trabalho torna-se cada vez mais necessário na mediação da melhoria do ensino, da superação do fracasso e das desigualdades escolares. E, juntamente a essas considerações, a tentativa da minha pesquisa que visa à inter-relação da leitura — escritura no processo ensino-aprendizagem em nível superior.

Discutir a inter-relação leitura — escritura é ir ao encontro de mul­tiplicidade de questões que desafiam o pensamento e a conduta pedagó­gica. E evidente, pois, o papel que tem o professor na orientação, refle­xão e crítica no desenvolvimento de inter-relação leitura — escritura, levando o educando a ser um leitor crítico e um sujeito capaz de produ­zir seu texto com um discurso autônomo, criativo-reflexivo e crítico.

1. A Inter-relação da Leitura — Escritura

A sociedade vigente está assentada sobre um cabedal de conheci­mentos que são acumulados e registrados por escrito. Então, nessa socie­dade letrada, a leitura tornou-se uma exigência por ser o solo, a base, o suporte do conhecimento. A leitura propicia ao indivíduo os meios ne­cessários para apropriar-se dos bens culturais registrados pela escrita, visto que essa é característica essencial, própria do ser humano.

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Toda sociedade, nos diferentes níveis de evolução, constrói a sua memória, isto é, o seu registro cultural, por meio de suas literaturas, pes­quisas e produções científicas. Então, a leitura e a escritura são manifes­tações da realidade, e essa relação leitura — escritura vem a ser um dos mediadores para o conhecimento e para a transformação da sociedade. Mais ainda, esse processo representa tarefa importante que proporciona ao homem possibilidades de sua participação na vida em sociedade, pois o homem pela leitura e escritura compreende o seu presente, como o seu passado e tem, portanto, condições de antever e transformar o seu futu­ro. Portanto, para compreender a história, individual ou social, a leitura e a escrita são fundamentais para a atribuição de significados do proces­so da vida.

Dessa forma, pode-se caracterizar a leitura e a escritura como uma inter-relação que permite à pessoa compreender a sua razão de ser no mundo, buscando, incessantemente, mais conhecimento sobre a realida­de, observando diretamente a concretude do real ou fazendo registros da cultura por meio de diferentes linguagens ou códigos. O ser humano, pela leitura e escritura, insere-se na história, registrando todos os pro­cessos e, portanto, além de possuir a memória desses fatos, acumula-os, inevitavelmente, por ser leitor e escritor.

O domínio da leitura e da escritura é fator essencial para o sucesso acadêmico de qualquer estudante. Compete à escola, desde os seus pri-mórdios, a capacitação das gerações para o ler e o escrever e o subsídio às expectativas da sociedade em relação ao ensino eficiente da leitura e da escrita. Essa inter-relação leitura — escritura é o que realmente mais pesa no que diz respeito à totalidade dos trabalhos escolares. Forçosa­mente, o processo da leitura implica o processo da escritura e vice-versa, pois, como analisa Paulo Freire, "são indicotomizáveis" (Freire, 1990:17), porém praticadas pelas escolas de forma dissociada, fragmentada, não levando o aluno a ser realmente leitor e também a não ser eficiente na escritura.

É preciso transpor as barreiras existentes no processo da leitura e da escritura. É necessário ter uma metodologia para o verdadeiro apro­veitamento da leitura e da escritura, ou seja, não haver mais esta ruptura entre a leitura e a produção textual. Essa associação leitura e escritura provocará ânimo, maior eficácia e domínio dessa questão. A leitura e a escritura interligadas levarão o aluno à predisposição ou vontade de co­nhecer melhor o ato de ler e escrever. É urgente a formação dos professo­res pelas universidades, no que tange à busca dessa interação leitura —

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204 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

escritura para que a prática pedagógica tenha a real eficácia na aprendi­zagem do aluno. Deve-se lutar por esta conquista no processo ensino-aprendizagem da questão leitura — escritura para a formação do cida­dão, leitor crítico e produtor de textos escolares, profissionais e/ou até literários.

A leitura e a escritura fazem parte do mundo, requerendo diferen­tes saberes, além das habilidades de observação, decifração de sinais, síntese, reflexão, interpretação e criatividade. Dizer leitura e escritura é dizer texto. E, segundo a pesquisadora Furlan,

texto é toda obra de produção humana, produto humano, e se expressa atra­vés dos mais variados meios simbólicos: peças de teatros, filmes, televisão, pinturas, esculturas, literatura, poesia, livros científicos e filosóficos, artigos de revistas e jornais, etc , e tc , etc. (Furlan, 1998:131)

Logo, leitura e escritura devem ser entendidas como habilidades indissociáveis e não fragmentadas. E, ainda, para haver uma construção do conhecimento é importante desenvolver uma aprendizagem signifi­cativa, a partir de uma concepção multifacetária. O crescimento intelec­tual do aluno surgirá a partir do aprender a pensar que terá como base a interação da leitura — escritura. Portanto, o processo leitura — escritura facilitará o desenvolvimento cognitivo e propiciará a melhoria dos co­nhecimentos que se refletem na maneira de ler e de escrever desse aluno.

Atualmente, com o avanço tecnológico, que faz com que o processo leitura — escritura esteja também na tela do computador, na tela da TV, nos CDs, é imprescindível que haja a verdadeira formação do sujeito leitor-produtor e que a pedagogia da questão leitura — escritura seja revista num processo indissociável, que alunos e professores estejam ar­ticulados para o resultado de uma aprendizagem significativa, favore­cendo a construção do conhecimento, analisando os aspectos multifacetários dessa realidade: ler e escrever.

Hoje, em tempos de vários textos — textos escritos, jornais falados e televisionados, vídeos, computadores —> mobilizam-se distintas faces no processo da leitura — escritura. Com as necessidades decorrentes do desenvolvimento das instituições e das técnicas de reprodução da escri­ta e da imagem, o papel da escola e das universidades é fundamental para ampliação do público leitor/produtor, bem como do material, dos modos e do ritmo de ler e escrever. Neste caso, a leitura e a escritura revertem-se de multifaces na textualidade. São os cruzamentos dos sa­beres, que remetem infinitamente a outros textos e também às novas for-

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO.. 205

mas de textos que a célere evolução tecnológica vem proporcionando ao homem.

O aspecto multifacetário da inter-relação leitura — escritura ins­taura um encontro de um ser com outro ser, do mesmo e do outro. Esse processo dialético permite que o sujeito se individualize (o buscar de si mesmo) e também se socialize (o compartilhar com o outro). Essa face social da leitura — escritura permite os questionamentos, o diálogo com o texto e sua compreensão; enquanto a leitura — escritura, voltada para a individualização, traz a reflexão de si mesmo.

É importante que os professores se preocupem mais com essa rela­ção leitura — escritura para transformar essas habilidades em aprendi­zagem significativa. É preciso atentar para o ler e o escrever num proces­so de dialogiddade e interrogatório centrado no raciocínio do aluno, pro-porcionando-lhe oportunidades para debates, para conhecimento de teo­rias, de técnicas e da prática do ler e do escrever. Haverá, então, nos educandos a sensação do amadurecimento, da consciência viva a partir da concepção da inter-relação da leitura — escritura e da percepção das multifaces desse processo.

O trabalho com a leitura e a escritura deve ser organizado, reflexi­vo, crítico para se instanciar das mais variadas maneiras. E preciso levar o aluno a usar efetivamente a leitura e a escritura, a refletir continua­mente sobre esse uso e a criticar esse processo no contexto sócio-históri-co nas suas dominações e diversidades. Faz-se, então, necessário que o professor trabalhe com o aluno uma prática reflexivo-crítica em que haja a inter-relação leitura — escritura. Só assim o sujeito terá condições de ser um leitor crítico e ter acesso à escrita com autonomia e criticidade. E nessa busca pedagógica que está o interesse da atuação do professor crí-tico-reflexivo, a partir de um suporte teórico e de uma prática emancipa-tória e democrática na construção do cidadão-leitor, do cidadão-escritor numa sociedade voltada à construção do humano.

2. 0 Professor Reflexivo-Crítico

Esta síntese pretende pontuar, a partir do teórico J. Contreras, as­pectos relevantes e contraditórios do professor reflexivo tendo como base a teoria de Schõn. A partir dessa teoria, pontos importantes surgem da análise de vários teóricos para o caminho do professor reflexivo-crítico, centrado em Giroux.

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206 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

Desde a obra de Schõn (1983) a concepção do docente como um profissional reflexivo tem sido muito contemplada na literatura pedagó­gica. O termo reflexão tem sido muito difundido e usado por qualquer autor ou corrente pedagógica e isso tem acarretado conseqüências, na prática, a ponto de se tornar um slogan sem o devido conteúdo. Portan­to, encontramos vários autores que têm tentado fazer uma revisão sobre o enfoque reflexivo: Zeichner (1993), Zeichner & Tabachnick (1993), Smith (1992) e Bartlett (1989). E, segundo Zeichner (1993), chega-se à conclusão que o termo reflexão perdeu o sentido usado por Schõn e que esse termo denomina qualquer concepção de professor como reflexivo.

Esse uso indiscriminado da concepção dos docentes como profissionais refle­

xivos não obedece apenas a um modismo, mas cumpre uma função que ex­

pressa e legitima as atuais reformas educativas. (Smyth apud Contreras,

1997:101)

A racionalidade técnica se apresenta como pensamento reflexivo, e, com este novo linguajar, se reconstituem os procedimentos técnicos, lineares para solucionar os problemas.

Então, a partir das análises, percebe-se que o princípio da reflexibi-lidade pode ser usado para fins opostos, correndo o perigo de responsa­bilizar os professores pelos problemas estruturais do ensino, em nome da modernidade e da autonomia do professor. Essa visão da reflexão como prática individual, de que os docentes devem refletir mais sobre sua prática, leva a supor que são eles que devem resolver os problemas educativos. E necessário, pois, aprofundar essas análises para se evitar a confusão e o desgaste do princípio da reflexão.

Liston & Zeichner (1993) têm assinalado os limites da teoria de Schõn. A obra de Schõn está realizada sobre pressupostos profissionais que se aplicam individualmente em práticas reflexivas e que têm como objeto o que está ao seu alcance para mudanças imediatas. Para Liston & Zeichner esse enfoque é reducionista e estreito, limitando o sentido da prática reflexiva. Portanto, Schõn não ignora o componente institucional da prática profissional, porém sua teoria não proporciona uma análise que ajude a entender a base que perspectiva esta reflexão e que questio­na os limites institucionais, levando a um repensar das condições bási­cas de análises e valoração que têm os profissionais. Schõn não está ten­tando implantar um processo para mudança institucional e social, mas somente centrado nas práticas individuais. Porém, para falar de uma prática reflexiva competente nas escolas, as condições de ensino teriam

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO. 207

de ser examinadas e realmente modificadas. Schõn, em princípio, parece mais interessado em apresentar um modelo alternativo de descrição da prática profissional, a partir de análises de casos concretos do exercício profissional em diversas áreas. Sua posição não se Hmita a descrever uma realidade, mas está dirigida a defender uma forma de entender a prática profissional, inspirada na prática real e que se observa na maioria dos profissionais que enfrentam situações problemáticas. A maioria dos casos que analisa está centrado em processos vinculados a transformações ime­diatas de atores individuais. Schõn está consciente dessa limitação em suas análises, porque, em sua opinião, as mudanças institucionais se produ­zem num tempo mais extenso que os episódios singulares da prática.

A crítica de Liston & Zeichner se dirige à falta de especificidade de Schõn com relação a esses problemas. Schõn concede aos profissionais uma missão de mediação pública nos problemas sociais, facilitando a reflexão na conversação social para entender e resolver esses problemas. Porém não está defendendo o conteúdo concreto para essas conversa­ções como compromisso e responsabilidade pública dos profissionais. Apoia a posição de facilitador do diálogo público, porém não defende os argumentos referentes ao conteúdo que os profissionais deveriam de­fender. E, no caso dos professores, o diálogo deve promover uma educa­ção comprometida com a igualdade e com a justiça. O que Liston & Zeichner temem é que, ao não se estabelecer um conteúdo específico que aponte para as preocupações sociais e políticas da prática educativa, evi­te-se um critério de contraste, o que dificulta o surgimento daqueles que podem ser questionados e transformados nos contextos institucionais.

Da mesma forma que teóricos têm criticado as limitações do pensa­mento de Schõn, outros têm criticado Stenhouse a respeito de sua con­cepção do professor como investigador, pois no seu trabalho há a ausên­cia de uma compreensão crítica do contexto social no qual se desenvolve a ação educativa. O interesse de Stenhouse está centrado na necessidade de que as idéias educativas devem se traduzir numa forma prática e ex­perimental nas aulas. Porém, há fatores externos às aulas, como a concreção dos currículos e seu desenvolvimento. Isso não quer dizer que Stenhouse tinha uma visão do professor como limitado em suas delibe­rações sobre problemas de classe, mas a força da liberação e da autono­mia do professor está na investigação, já que esta representa a capaci­dade de desenvolver estruturas de juízo e valorização educativas que não se encontram submetidas a autoridades.

Esta concepção leva à metáfora do artista de Schõn, já que este exem­plo da atividade se baseia na indagação, não submetida ao dogma, mas

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208 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRAS;_

sim à busca contínua. A idéia do artista reflete também aquele que ex­plora consigo mesmo, com seus recursos e com sua própria compreen­são, para desenvolver as qualidades artísticas de sua obra, dentro de uma tradição estética. Pois o professor, da mesma forma, investiga e tra­ta de indagar em sua própria concepção e em seus critérios educativos, explorando seu significado e sua versão prática. Quando se defende a idéia do professor reflexivo, tem-se o mesmo problema: há uma configu­ração das relações entre as pretensões e as práticas profissionais num contexto de atuação, porém não se revela nenhum conteúdo para tal re­flexão. Portanto, não se está propondo qual deve ser o campo de reflexão e onde esta reflexão tem os seus limites. Ao não se definir esses valores, a reflexão pode estar a serviço da justificativa de princípios e normas vigentes em nossa sociedade que levem ao individualismo, à tecnocracia e ao controle social em vez da realização dos ideais de emancipação, igual­dade e justiça, conforme explicitação do teórico Contreras (1997:113).

A lógica do controle tecnocrático entra em contradição com a forma em que as

instituições educativas expressam qual é o sentido da missão que têm enco­

mendado. Se, por um lado, formulam-se as finalidades educativas como for­

mas de preparar para a vida adulta, com capacidade crítica em sociedade

pluralista, por outro lado, o trabalho docente e a vida escolar se estruturam

negando essas pretensões.

Portanto, os limites da reflexão levam à conclusão de que a mera reflexão sobre o trabalho docente na sala de aula pode ter um resultado insuficiente para a elaboração de uma compreensão teórica sobre os ele­mentos que sustentam a prática do professor, e que esses professores podem não ter consciência.

Tendo em vista os limites da reflexão, em que se encontra definido o sentido de ensino e os fins que se pretende, onde os professores atuam só como funcionários submetidos à autoridade burocrática, alguns auto­res têm justificado a necessidade de se dispor de uma análise teórica, de uma teoria crítica, que permita aos professores tomarem consciência dessa situação. E necessário que tenham uma explicação para os problemas, para as instalações em que vivem e para as condições estruturais do en­sino, que se mantêm inquestionadas, ou melhor, nem sequer se pensa que possam ser fatores explicáveis. É importante, então, conceber o tra­balho dos professores como um trabalho intelectual, desenvolvendo um conhecimento sobre o ensino que reconhece e questiona sua natureza socialmente construída e a forma como se relaciona com a ordem social,

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO... 209

assim como analisa as possibilidades transformadoras, que estão implí­citas no contexto social das aulas e da docência.

Essa concepção dos professores como intelectuais tem sido desen­volvida por Giroux, a partir das idéias de Gramsci sobre a fundação dos intelectuais na produção c reprodução da vida social. A posição teórica de Giroux se baseia na posição de que as teorias radicais sobre a educa­ção não têm sido capazes de criar uma linguagem que possibilite uma mudança lógica da dominação e nos inúmeros fracassos dos professores ao enfrentar este processo. Então, Giroux defende que a teoria deve ter um potencial próprio para construir críticas e estabelecer uma base, na qual se assentem novas formas de relações sociais. Esse autor analisa o seguinte:

(...) o sentido dos professores entendidos como intelectuais reflete todo um programa de compreensão e análise do que, para o quê devem ser os docentes. De um lado, permite entender o trabalho docente como tarefa intelectual, por oposição às concepções puramente técnicas e experimentais. De outro, propõe a função dos docentes como envolvidos numa prática intelectual crítica, rela­cionada com os problemas e as experiências da vida diária. Em terceiro lugar, entende que os docentes devem desenvolver não só uma compreensão das circunstâncias em que ocorre o ensino, mas na união com os alunos, e os alu­nos devem desenvolver também as bases para a crítica e a transformação das práticas sociais, que se constituem em torno de escola (Giroux apud Contreras Domingo, 1997:118).

Porém, este desenvolvimento teórico também apresenta seus pro­blemas. O programa de Giroux apresenta o que deve ser a situação dos professores enquanto intelectuais, mas não como certos professores que ficam apenas no limite de suas aulas podem chegar a desenvolver tal posição crítica a respeito de sua profissão. Giroux representa o conteúdo de uma nova prática profissional, mas não expressa as relações com as experiências concretas dos docentes que já seriam possíveis. Portanto, não há uma indicação, uma orientação do conteúdo para essa prática.

A reflexão crítica não se concebe como um processo de pensamento sem orientação. Ao contrário, entende-se como um propósito muito claro de definição perante os problemas e atuação conseqüente. Incluem em suas análises os problemas como tendo uma origem social e histórica. Contreras faz uma leitura de Kemmis (apud Contreras, 1997: 121) e salienta que

refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ação, na história da situação, participar de uma atividade social e histórica, tanto de nossa rela-

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210 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

cão como atores nas práticas institucionalizadas da educação, como na relação

entre nosso pensamento e nossa relação-ação educativa.

Deve-se não apenas aceitar a prática reflexiva, mas também anali­sar qual é o tipo de vínculo com a ação que se pretende estabelecer, que relações sociais vai se realizar, a quem interessa servir e que construção social apoiar-se nela. Para essa pretensão, de ir além das condições que marcam a prática social, tratando de desvelar a sua origem sócio-históri-ca e os interesses a que serve, pode-se dizer que o interesse que move a reflexão crítica é a emancipação. O ensino, enquanto prática institucio­nalizada, está submetido à influência de grupos hegemônicos que de­fendem interesses que podem ser opostos aos valores educacionais. É necessário desvelar o sentido ideológico que se manifesta no ensino e descobrir as possibilidades de transformação que não são vistas. Nesse sentido, a reflexão crítica é emancipatória, porque liberta as visões acríticas, os hábitos, as tradições e costumes não questionados, as for­mas de coerção e de dominação que tais práticas supõem o auto-engano dos professores. Para Smyth (apud Contreras Domingo, 1997:123) veri­fica-se que

é necessário trabalhar criticamente com os docentes, de maneira que esta ca­

pacidade de questionamento que se pretende deles possa seguir uma lógica

de consciência progressiva.

Para tanto, é necessária uma crítica sócio-histórica dos professores e das escolas, reconstruindo o sentido político a respeito da função do ensino e configurar um novo significado para a prática educativa, mais justa, mais satisfatória e mais racional, concebendo novos futuros. Por isso, a reflexão crítica busca uma crítica da interiorização de valores so­ciais dominantes, como forma de tomar consciência de suas origens e de seus efeitos. Portanto, é importante defender uma orientação para a re­flexão, ou seja, ter um compromisso político expresso.

Todas estas propostas sobre a reflexão crítica encontram seu fun­damento na Teoria Crítica e nas concepções de Habermas. O projeto teórico desse autor tem sua base na idéia de emancipação, na profundi­dade de seu significado, na fundamentação de sua razão e no papel do conhecimento dessa emancipação. A teoria de Habermas parte dos in­teresses constitutivos do conhecimento e mostra "uma estrutura da re­lação entre as condições de comunicação e a deformação ideológica da razão" (Habermas, apud Contreras Domingo, 1997:127). A partir dessa

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teoria, dos interesses constitutivos do conhecimento, o autor analisa que as concepções práticas que supõem uma ação comunicativa dire­cionada ao acordo e ao entendimento, e sobre as concepções que sus­tentam o modelo do profissional reflexivo, não são possíveis em uma sociedade em que os modos dominantes de produção, o acirramento da mentalidade tecnológica aplicada aos sistemas de relações huma­nas e aos interesses dos grupos que detenham o poder têm forçado relações que estão embasadas em uma comunicação distorcida, dando lugar a uma consciência deformada pela ideologia. Para o teórico, os grupos sociais devem buscar, sem coações, as formas práticas de rela­ção, ou seja, buscar acordos intersubjetivos por meio de uma ação co­municativa não deformada. Nesse caso, a teoria crítica não é uma sim­ples perspectiva externa sobre os processos de transformação. Há um compromisso com a emancipação, não apenas mostrando as formas emancipadoras da razão e as diferenças entre variantes sociais, mas que se integra no processo de transformação. Isso ajudará os grupos a interpretar as formas de dominação a que se encontram submetidos e a vislumbrar as possibilidades de ação existentes entre eles, desembo­cando, inevitavelmente, na questão das relações que estão presentes entre a teoria e a prática no campo da ciência crítica. Para tanto, Habermas assinala três funções diferentes para essa questão: os teoremas críticos (formulações de caráter teórico), os processos de ilus­tração de grupos por meio dos teoremas críticos e a organização e con­dução da luta política. Por conseguinte, as razões para esta posição es­tão na busca do entendimento da autonomia da prática política. Então, para Habermas toda tentativa de emancipação é uma hipótese, da qual não se sabem suas conseqüências, porque se desconhecem as fronteiras do humano. Não se pode impor, por razões teóricas, uma forma de experimentação da hipótese prática que supõe as intenções da emanci­pação, pois há seus efeitos. Os sujeitos devem poder saber o que fazem, e mostrar discursivamente uma vontade comum. Todas as referências são sempre à participação em processos de ilustração de grupos que compartilham um interesse comum e que ocupam a mesma posição em um sistema social antagônico. Então, o professor reflexivo-crítico deve estar atento a essas questões levantadas pelo teórico Habermas. Na convicção de Habermas é possível dispor de uma posição teórica capaz de revelar todas as distorções ideológicas de uma posição teóri­ca, as quais se encontram submetidas às pessoas e aos grupos sociais. Percebe-se que a crítica e a auto-reflexão são processos de desvelamento e não de posição privilegiada.

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212 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

A insuficiência mostrada por certas concepções sobre o professor como profissional reflexivo, a falta de um conteúdo concreto que reflita um programa para a prática de um conteúdo concreto para a prática de um compromisso social emancipador, é que leva à busca de modelos que entendem os professores como intelectuais críticos, com intenção transformadora. Porém, na opinião do teórico Ellsworth, as teorias pe­dagógicas críticas alimentam ideais sociais sobre o falso suposto de que é possível construir uma perspectiva crítica da educação e da sociedade que permita liberar todas as opressões e dependências. A teoria crítica faz acreditar que é possível identificar de forma clara as contradições e dificuldades em que vivem professores e estudantes, e construir um pro­cesso de reflexão crítica, pelo qual estas podem ser teorizadas e supera­das. Porém, o predomínio da razão, como força libertadora, traz consigo concepções implícitas que estão associadas a determinadas posições de classe, gênero e raça, pois um conhecimento ou uma perspectiva de análi­se, que se revela libertadora para umas pessoas, pode ser opressora para outras. Para Ellsworth (apud Contreras Domingo, 1997:137), todo conhe­cimento é complexo e parcial, ou seja,

todo conhecimento e toda voz é parcial; parcial no sentido de que é imperfeito,

inacabado e ilimitado; mas parcial também no sentido de que projeta os inte­

resses de uma parte acima de outras.

Isso permite a compreensão de que as experiências e o conhecimento não são homogêneos nem idênticos. É possível que aquilo que compromete significativamente a experiência de muitos professores não possa ser com­preendido pelas perspectivas críticas de outros. Portanto, para Ellsworth, seguir valores, utopias inalcansáveis, leva a mitos repressivos. E necessário ter um compromisso com a prática da problematização das próprias parcia-lidades perante a experiência dos outros. E a busca da diferença. Negar o absoluto da razão para defender o absoluto dos seres humanos que sofrem.

O modelo do professor como intelectual crítico, diferente da visão do professor reflexivo, sugere que deve ser analisada a compreensão dos fatores sociais e institucionais, que condicionam a prática educativa, como a emancipação das formas de dominação, que afeta o pensamento e a ação, e esses processos não são espontâneos. A função do professor inte­lectual crítico é a de um profissional que participa ativamente para des­velar o oculto, para compreender a origem histórico-social que se apre­senta como "natural" e que capta e mostra os processos pelos quais a prática educativa pode atrapalhar as pretensões, relações e experiências

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO.. 213

de valor educativo. Esforça-se, também, para desvelar as formas dos valores ideológicos dominantes, as práticas culturais e as formas de or­ganização que podem limitar as possibilidades da ação docente e tam­bém as perspectivas de análises e compreensão do ensino, de suas finali­dades educativas e de sua função social. O intelectual crítico preocupa-se com o potencial de sua prática profissional, conservando possibilida­des de ação educativamente valiosas, buscando a transformação e recondução daqueles aspectos que estão falhos, de forma pessoal, organizativa e social. Tudo isso supõe um processo de oposição ou de resistência a grande parte de teorias, discursos, relações e formas de or­ganização do sistema escolar. Para o intelectual crítico, seu compromis­so consiste não somente com um ideal a serviço da sociedade, mas tam­bém com a convicção de converter a educação em uma prática mais justa e democrática em conexão com os movimentos sociais. Sem dúvida, os processos de reflexão crítica e de emancipação necessitam de influências externas, sejam sob a forma de teorias críticas (leituras adequadas dos fenômenos da vida social e da educação que deve ser modificada); de ilustradores (conhecimentos que colaboram na auto-reflexão dos docen­tes para que superem suas distorções ideológicas) e de pontuações do mito repressivo (processo de unificação do pensamento e práticas me­diante categorias fixas que assumem o significado "correto" do projeto emancipador). Deve-se aceitar que os processos e experiências de eman­cipação podem ser variados, pois, no encontro com o outro, a autonomia profissional, ou melhor, a emancipação deve se empenhar no reconheci­mento do Hmite de cada um e das parcialidades como forma de com­preensão do outro. Esse reconhecimento não é espontâneo, nem tampouco imposto por meio de verdades já estabelecidas, mas buscado de forma auto-exigente e trabalhosa. Assim, o professor reflexivo-crítico não é um profissional auto-suficiente, a sua autonomia profissional está na solida­riedade, na emancipação de um ensino voltado para a justiça, para as diferenças, para a democracia.

3. 0 Professor Reflexivo-Crítico como Mediador do Processo de Inter-relação da

Leitura — Escritura

O professor reflexivo-crítico como mediador do processo de inter-relação da leitura — escritura deve, antes de mais nada, centrar a sua atenção sobre a realidade social brasileira, buscando o desvelamento das condições de convivência, existência e sobrevivência. Isso decorre por-

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214 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

que a leitura e a escrita cumprem propósitos e finalidades de comunica­ção entre os homens que interagem em sociedades. Portanto, leitura é uma prática social, escritura também é uma prática social, e esse processo está condicionado, historicamente, pelos modos da organização, da pro­dução da existência e pelos valores relevantes da circulação da cultura.

O sistema capitalista traz em seu patamar uma série de contradições, entre as quais se destacam a dominação de uma classe sobre a outra e a hegemonia da visão de mundo da classe dominante por meio da propa­ganda ideológica em todos os setores sociais. Neste final de século o capi­talismo se acirra em nível mundial, por meio dos valores neoliberais, pro­duzindo efeitos drásticos junto aos países periféricos. As contradições es­tão cada vez mais presentes no quadro brasileiro. E é dentro desta socie­dade brasileira que a inter-relação leitura — escritura deve ser analisada, repensada, refletida e criticada, levando o educando a compreender as raízes históricas das contradições e a buscar, por meio da reflexão, da crí­tica e pela ação concreta, uma sociedade em que os benefícios do trabalho produtivo e, por conseguinte, da riqueza nacional não sejam privilégios da minoria. Esta é uma necessidade maior da inter-relação da leitura — escritura, fazendo nascer valores de sujeitos críticos que acabem com a conservação e com a reprodução de esquemas daqueles que detêm o po­der. A ignorância e o conformismo acabam sendo formas de escravização da consciência. É necessário leitores críticos, assim como escritores, pro­dutores textuais com um discurso autônomo e crítico, pois leitura supõe escrita, assim como nesse processo uma questão implica a outra.

Tendo em vista a necessidade preemente das práticas de leitura crí­tica e de um discurso pessoal crítico na dinâmica da sociedade brasilei­ra, urge analisar o valor dessa inter-relação leitura — escritura e sua im­portância em referência ao trabalho pedagógico. Tal será feito por meio de uma análise baseada nos estudos de Ezequiel Theodoro da Silva (1998) e que trará à tona aspectos do contexto escolar e das relações da prática educativa na inter-relação leitura — escritura.

Neste final de milênio, a existência do fenômeno da explosão de in­formações está muito intensa. Além dos suportes impressos, há os eletrô­nicos fazendo crescer e desenvolver excepcionalmente a circulação da es­crita nas sociedades letradas. É necessário saber julgar a qualidade desses materiais, tendo em vista, nesse processo de seleção o uso objetivo do tem­po, que se impõe como necessidade concreta e que não se pode negar. A prática da seletividade visa orientar e incrementar a leitura crítica, pois o aluno que sabe selecionar o que vai ler se transformará em cidadão crítico, capaz de avaliar as informações e as idéias de um número cada vez maior

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO. 215

de materiais para leitura. O professor reflexivo-crítico precisa ensinar o educando a ler com criticidade e isso acarretará uma escrita mais autô­noma e criticante, levando então esse educando a ser um cidadão eman­cipado politicamente. Ainda nessa questão, na sociedade de consumo, a linguagem escrita tem propósitos de persuasão para efeito de publicidade e propaganda. Nesses campos, as agências publicitárias criam mensagens apelativas para a comercialização. Mais uma vez, é importante a leitura crítica, pois levará o leitor ao exame criterioso, à seletividade desse tipo específico de mensagens de modo a não cair em enganos irreparáveis. Esse processo está, pois, presente na leitura e na relação com a produção tex­tual, uma vez que esse leitor poderá atuar também na escrita para a pro­dução de um discurso individualizado ou coletivo.

Os conteúdos transmitidos pela escola são veiculados por suportes escritos (impressos em livros, revistas, jornais, apostilas, folhetos e ou­tros). Existe uma relação íntima entre a prática educativa e o mundo da escrita. E, ainda, considerando-se a infra-estrutura pedagógica da maio­ria das escolas brasileiras, há uma hegemonia da linguagem escrita em prol de outras linguagens, tais como a oral, a sonora, a magnética. A escrita, no imaginário social, é tida como signo infalível no que se refere aos referenciais que veicula, pois os escritos oferecidos dentro da insti­tuição escolar não são passíveis de dúvida ou questionamentos. Isso re­sulta em que os textos escolares escritos, privilegiados pelos professores, não podem ser objetos de crítica. Sabe-se que o livro didático contém também suas inconsistências. E, além do mais, a escrita, numa sociedade de classes, pode servir a interesses de alienação ou de emancipação, de­pendendo do tipo e do uso do discurso ideológico. Então, reforça-se ain­da mais a necessidade da atuação do professor crítico-reflexivo para a prática da leitura crítica e da escrita crítica nas escolas por meio do de­senvolvimento da capacidade crítica nos espaços concretos para colocá-la em prática, de forma coletiva e num processo de análise sócio-históri-ca do local juntamente ao global para que o educando perceba as mu­danças existentes no discurso ideológico do processo capitalista vigente.

O trabalho docente deve ser o do ensino da leitura crítica inter-relacionada a uma escritura crítica. A leitura e a escritura devem ser pi­lares para a formação do cidadão enquanto habilidades que desenvol­vam a criticidade, pois, segundo Silva (1998: 26),

cidadania e criticidade são termos indicotomizáveis, a menos que o primeiro

termo (cidadania) seja pensado ao estilo burguês, como sinônimo de obediên­

cia e docilidade quanto à forma prevalecente da organização das relações

sociais.

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2 1 6 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL

Urge, pois, a necessidade de uma discussão coletiva, isto é, do cole­tivo escolar sobre a política, a filosofia, que sustentam as ações da escola, principalmente no que diz respeito ao tipo de cidadão que essa escola deseja promover via processo ensino — aprendizagem e por meio das habilidades da leitura e da escritura. O papel do professor crítico-refle-xivo deve ser o de incentivar as competências do leitor crítico e também da produção textual autônoma. Essa é uma principais funções da docência e da escola numa concepção criativa da linguagem e numa concepção libertadora de ensino. O professor reflexivo-crítico deve trabalhar o pro­cesso leitura — escritura, buscando o cerne das contradições da realida­de. Dessa forma, por meio desse processo, o sujeito percebe o mundo das incertezas, elabora e dinamiza conflitos, organiza sínteses, combate as distorções ideológicas e pontua as unificações de pensamentos e prá­ticas mediante categorias estabelecidas pelos dominantes.

O professor reflexivo-crítico deve ter um projeto definido no processo leitura — escritura envolvendo uma dinâmica específica, porém voltada ao social, ao histórico, às teorias críticas, enfim à emancipação do sujeito numa prática democrática. Esse intelectual crítico deve estar voltado para uma prática de leitura orientada aos aspectos inerentes do texto e a uma análise comparativa com outros textos sobre o assunto para o desenvolvimento, no educando, da percepção intelectual crítica, ou seja, da tarefa intelectual de leitor numa prática intelectual crítica relacionada com os problemas, experiências e contradições da vida cotidiana. E, ainda, o processo da es­crita, conseqüência da leitura, estar voltado para um discurso libertador, orientado, definido para as questões sócio-históricas institucionalizadas, reconstruindo o sentido social e histórico a partir de um compromisso político. Daí ser importante lembrar, segundo Silva (1991: 81), que

a leitura crítica sempre leva à produção ou construção de um outro texto: o

lexLo do próprio leitor (...) a leitura crítica sempre gera expressão: o

desvelamento do SER do leitor. Assim, esse tipo de leitura é muito mais do

que um simples processo de apropriação de significado; a leitura crítica deve

ser caracterizada como um projeto, pois concretiza-se numa proposta pensada

pelo ser-no-mundo.

Então, o processo leitura — escritura deve ser centrado numa at­mosfera de confiança, abertura, discussão, debate para aflorar o coletivo dos estudantes numa visão emancipatória que não bloqueie o surgimento de conflitos, das parcialidades, empenhando-se no reconhecimento de cada um e na compreensão do outro.

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PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO. 217

Na sociedade atual, cada vez mais se torna necessário perceber a função do professor e, principalmente, na função de intelectual crítico. Para tanto, torna-se necessário repensar a questão da formação de pro­fessores. E importante repensar a formação inicial e contínua, pois o tra­balho do professor enquanto mediador do conhecimento e do desenvol­vimento da cidadania dos alunos está num processo gradativo para a superação do fracasso e das desigualdades sociais. O professor reflexi­vo-crítico como mediador do processo de inter-relação da leitura — es­critura deve ter uma formação inicial e contínua. O professor deve ter seu conhecimento trabalhado a partir das informações, do trabalho com essas informações e de produzir novas formas de desenvolvimento na produção desse conhecimento a serviço da vida material, social e exis­tencial da humanidade. Deve saber trabalhar mediando entre a atual sociedade da informação e a reflexão-crítica dos alunos para a perma­nente construção do humano. Além desse conhecimento específico, vol­tado para a humanização, é necessário desenvolver os saberes pedagó­gicos, a partir do conhecimento e do reconhecimento por meio de estu­dos e das realidades escolares ou sistemas em que o ensino ocorre. E, de acordo com a pesquisadora Selma Garrido Pimenta, esse processo deve ser desenvolvido, pois

é nesse contexto que as pesquisas sobre a prática então anunciando novos ca­

minhos para a formação docente (...) tenho desenvolvido o ensino de didática

nos cursos de licenciatura e realizado pesquisas sobre a formação inicial e con­

tínua de professores (...) (Pimenta, 1999:17).

Esse profissional deve ter ainda uma atitude investigativa, isto é, co­locar a prática educativa como objeto de pesquisa. Pesquisar as questões do processo leitura — escritura enquanto prática social, estando esta inter-relação do ler e do escrever contida em todas as demais ciências, e procu­rar desenvolver pesquisas sobre esse processo como princípio de estudo e também formativo na docência. Isso contribuirá para uma formação espe­cífica inicial e contínua e, ao mesmo tempo, para uma formação pedagógi­ca que implica a dependência da teoria e da prática, da investigação siste­mática da própria prática. A partir da formação inicial e contínua, especí­fica e pedagógica numa atitude investigativa, esse professor, com cons­ciência e sensibilidade de um projeto humano emancipatório, poderá de­senvolver a inter-relação leitura — escritura numa valorização do cida­dão, na formação dos educandos em constante busca da prática do discur­so da solidariedade e da liberdade, num processo coletivo.

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E, retomando a epígrafe inicial, o poema de Carlos Drummond de Andrade, a busca incessante da palavra, por meio da inter-relação da leitura — escritura, fará do educando um cidadão reflexivo-crítico. Essa procura, a partir de processos investigatórios, do domínio dos conteú­dos específicos e do conhecimento dos conteúdos pedagógicos aconte­cerá possivelmente com a prática do profissional reflexivo-crítico asso­ciada à inter-relação leitura — escritura para uma visão mais ampla, reflexivo-crítica, do processo ensino — aprendizagem em nível superior.

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Racionalidade técnica, pesquisa colaborativa e

desenvolvimento profissional de professores

Luiz Fernando Franco*

1. Da Racionalidade Técnica e Dos Saberes da Experiência

Esta reflexão tem como ponto de partida a análise de depoimentos de professores integrantes da pesquisa1, citados no subtítulo Manifesta­ções de conflito e de resistência à mudança. Nesse percurso procuro destacar a dicotomia entre produtor e reprodutor de conhecimento marcante na racionalidade técnica, que segundo a leitura que está presente em depoi­mentos citados na pesquisa em questão. Vale destacar que a pesquisa referência é uma importante revelação de que a parceria universidade — escola pode gestar novas práticas escolares. A pesquisa se enquadra no campo da epistemologia da prática, que busca a superação de uma perspectiva individualista de reflexão para uma perspectiva pública (de compromisso social) das práticas escolares (Contreras, 1997). Levar os professores a se reconhecerem como co-autores do processo e produto da pesquisa onde pudessem dar voz e vez com orgulho à própria confu­são, conforme destaca Schõn (1992b:86). Os envolvidos no trabalho de pesquisa, pesquisadores e professores do ensino básico, tomaram a prá­tica destes profissionais no seu local de trabalho, como objeto dê refle-

* Mestrando na Faculdade de Educação da USP. [email protected]. 1. Pimenta, Selma; Garrido, Elsa; Moura, Manoel O. Pesquisa colaborativa na escola como

abordagem facilitadora para o desenvolvimento profissional do professor. In: MARIN, Alda J. (org.). Educação continuada. Campinas: Papirus, 2000.

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xão. Constataram a situação conjuntamente, analisaram-na e propuse­ram ações no sentido de provocar mudanças nas práticas escolares. As­sim os pesquisadores atuaram como tutores dos professores envolven-do-os num diálogo de palavras e desempenhos, num practicum reflexi­vo, segundo Schõn (1992b:89).

Sou provocado, também pela pesquisa base de reflexão deste texto, a pensar como efetivamente "Os saberes da docência — a experiência" (Pimenta, 1994) se constituem em possibilidade de alargamento do olhar dos professores envolvidos. A experiência não vista como apologia ao praticismo (Pimenta, 2000:8-9), mas como integrante da história de vida daqueles profissionais que interagem com os seus saberes disciplinares (conhecimento) e os saberes pedagógicos num caminho de reflexão colo­cado muitas vezes diante de situações imprevistas pelos envolvidos na pesquisa. Instigado pelo novo enfoque sobre esses saberes (Pimenta, 1999; Nóvoa, 1992) é possível perguntar: Qual é a importância dos saberes da experiência para um profissional reprodutor? Para pensá-la como inte­grante da construção do processo identitário do professor, conforme nos alerta Pimenta (1999: 20-21).

A partir de Zeichner (2000:10) se revela uma nova postura diante da dicotomia criada no racionalismo técnico, em que aquele que planeja não executa as ações e o executor não planeja o trabalho por ser ativida­de nobre longe do seu alcance. Zeichner, reconhecendo a necessidade de aproximação entre a universidade e a escola básica, nos diz o seguinte:

Algumas pessoas, inclusive eu, estão tentando trabalhar na direção de algo mais equilibrado entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento dos que estão na prática.

A valorização dos saberes da experiência, articulados ao conhe­cimento e aos saberes pedagógicos são componentes importantes num processo de pesquisa-ação colaborativa, conforme reconhece Zeichner (2000:13), quando destaca que, ao ser convidado para acompanhar um trabalho de desenvolvimento na Namíbia, conseguiu fortalecer a idéia de que não era importando vídeos e livros dos Estados Unidos que os africanos da Namíbia atingiriam os seus objetivos. Pelo con­trário, era necessário produzir conhecimento no interior do contexto africano. Portanto, partindo da experiência daqueles representantes da Namíbia dedicados à educação, e contando com o apoio de tuto­res, entre eles o próprio Zeichner é que o percurso poderia indicar resultados positivos.

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2. Os Depoimentos e a presença de componentes da racionalidade técnica

Começando a recompor os depoimentos para pensar as influências de uma política de formação de professores pautada na racionalidade téc­nica, cito o depoimento de Regina: "a universidade não conhece o que a escola pública faz, nós não devemos desmerecer o nosso trabalho". Essa postura reforça a hierarquia existente nas instituições educacionais, onde a universidade não necessitava conhecer um espaço, onde grassavam conhecimentos por ela produzidos e que eram reproduzidos, via de regra, acriticamente. No entanto, para a escola pública e seus profissionais era motivo de diferen­ciação profissional conhecer o que a universidade produzia e as discus­sões por ela disseminadas. Os encontros realizados pela universidade e abertos aos professores da rede pública serviam para "envernizar" esses profissionais presentes nessas atividades. Quando de retorno ao local de trabalho, os profissionais da rede pública chegavam reluzindo e satisfei­tos com a condição de reprodutor de conhecimento. Pensar, portanto, em formação profissional num contexto de hegemonia do racionalismo técni­co era prolongar a dicotomia produção — reprodução do conhecimento. Penso que a frase da professora ilustra a importância hierarquizada na relação universidade — escola básica. Trabalhos como os de Zeichner (2000), Pimenta (2000) e Elliot (1998) referenciam a possibilidade de man­ter as características institucionais da universidade e da escola básica numa relação mais horizontal e facilitadora da produção de pesquisa numa pers­pectiva de parceria. Da mesma forma que a citação da professora Regina foi no início do trabalho, e portanto refletindo muito a herança da política de formação de professores fortemente presente na rede pública estadual de São Paulo, a frase da professora Terezinha, que utilizarei agora, se dá no mesmo momento da pesquisa. Terezinha alega que no início sentiam-se expostos diante dos colegas, temiam a avaliação da academia. Novamente é pos­sível visualizar a relação verticalizada marcante no racionalismo técnico, em que a academia tem o poder de avaliar o ensino básico, mas este não possui o mesmo poder para fazê-lo em relação a academia. Reprodutor não avalia o produtor de conhecimento.

Sacristán (1996), ao abordar a relação universidade — escola básica, lança o que chama de suspeitas para problematizar a formação de profes­sores nos últimos tempos. A primeira suspeita do autor é que os professo­res da escola básica trabalham e os pesquisadores da academia fazem dis­cursos sobre estes, que por sinal não possuem capacidade de fazer discur­sos. A segunda destaca diferenças entre o pesquisador da academia e o professor do ensino básico (status, realidade de trabalho, preços e poder).

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A terceira é a de que a investigação sobre formação de professores é enviesada e não entra na essência das questões. Portanto, quando no iní­cio do trabalho os professores-pesquisadores da Feusp estabelecem a apro­ximação com os professores da rede pública estadual, a herança do distanciamento e da verticalização entre eles vai se revelando nas falas daqueles profissionais que estavam sendo provocados a se tornarem par­ceiros na elaboração de conhecimentos resultantes de um processo de pes­quisa a ser desenvolvido na escola onde estavam inseridos os professores.

No relato anual de Rosa e Rinaldo, a herança de uma formação pro­fissional racionalista técnica também aparece, quando estes destacam que a atividade de -pesquisa é algo que está fora da cultura escolar. Segundo estes professores, os colegas de escola tinham dificuldades em entender aque­la aproximação com os professores da Faculdade de Educação da Uni­versidade de São Paulo (Feusp). A imagem que os professores da escola estadual possuíam dos professores da USP indicava como a herança do racionalismo técnico dicotomizava os papéis destes profissionais. É no­tória a relação de subalternidade presente no olhar dos professores da escola, a partir do seguinte trecho do relato anual de Rosa e Rinaldo:

Começamos a perceber um distanciamento entre os professores da Escola e da FEUSP... Percebemos, nesse instante, a imagem que nossos colegas faziam dos professores da universidade: imagem que os colocava distantes, em um lugar de quem detém o poder do conhecimento.

Esta situação inicial indicava os enormes desafios que estavam co­locados para os professores da escola e da Feusp, no sentido de possibi­litar a inversão daquela lógica de relação universidade — escola. Em decorrência desta situação é possível compreender o porquê daquela eu­foria revelada quando da apresentação de relato parcial da pesquisa no IX Endipe em Águas de Lindóia (SP). A superação das dificuldades ini­ciais encontravam no Endipe um espaço adequado e justo para socializar aquela experiência construída por caminho de valorização e parceria entre os profissionais da educação que produziram um resultado que agra­dou muito aos presentes naquele fórum em 1998.

3. Dos Saberes da Experiência na Construção de um Profissional Reflexivo

A necessidade de falar com a escola, e não sobre a escola, levou os pesquisadores a imergirem naquela realidade, com a finalidade de

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problematização das práticas existentes e a possibilidade de gestação de novas. Assim, conhecer a experiência profissional daqueles professores era fundamental para a compreensão de suas práticas no interior da es­cola. A escola era o retrato de prática e relações interpessoais construí­das por aqueles profissionais em contato com alunos /pais e demais segmentos presentes no local de trabalho. O reconhecimento desta expe­riência está registrado na pesquisa (Pimenta, Garrido & Moura, 2000:1) em que

A pesquisa científica pressupõe que o pesquisador adentre na realidade a ser estudada, integre-se nos modos de produção da existência dessa realidade que foi criada pelos sujeitos que serão investigados.

A experiência é trabalhada como uma componente importante na construção de um profissional reflexivo, que toma a sua prática e a relação coletiva que estabelece com outros colegas, elementos de reflexão que pos­sibilitam mudanças. Pimenta (1999: 20-21), reforça essa compreensão:

Em outro nível, os saberes da experiência são também aqueles que os profes­sores produzem no seu cotidiano docente, num processo permanente de refle­xão sobre sua prática, mediatizada pela de outrem — seus colegas de trabalho, os textos produzidos por outros educadores. E aí que ganham importância na formação de professores os processos de reflexão sobre a própria prática e do desenvolvimento das habilidades de pesquisa da prática.

Vale destacar que os resultados da pesquisa base desta reflexão fo­ram extremamente positivos para os profissionais da rede pública nela inseridos. Muitos deles fizeram cursos na Faculdade de Educação da USP. Uma parte ingressou no programa de pós-graduação desta faculdade e um deles ingressou na Universidade Federal de São Carlos — UFSCAR, o que no mínimo atribui uma nova postura diante das necessidades de formação profissional. Situações como esta são indicadores de melhorias nas práticas educativas no interior da escola em questão, pois o acúmulo no final do processo ficou evidente.

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