seleção textos odylo costa, filho

29
Dedicatória Tanto quisestes ter um filho poeta! E que esse filho fosse eu, pedia, apontando o mais velho, uma secreta aspiração, quase uma profecia... Bem cedo me perdi na busca inquieta dos caminhos mas sempre a poesia foi para mim patética e incompleta, desaeitada aora, aora fria. "eio depois a vida e merulhou a minha alma na rande dor severa, barco afoado em rio adormecido. Do sofrimento o verso rebentou. #ntes, meu $ai e minha %ãe, quisera que esse verso amais fora nascido.

Upload: antoniacosta4

Post on 05-Jul-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 1/29

Dedicatória

Tanto quisestes ter um filho poeta!

E que esse filho fosse eu, pedia,

apontando o mais velho, uma secreta

aspiração, quase uma profecia...

Bem cedo me perdi na busca inquieta

dos caminhos mas sempre a poesia

foi para mim patética e incompleta,

desaeitada aora, aora fria.

"eio depois a vida e merulhou

a minha alma na rande dor severa,

barco afoado em rio adormecido.

Do sofrimento o verso rebentou.

#ntes, meu $ai e minha %ãe, quisera

que esse verso amais fora nascido.

Page 2: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 2/29

# ponte

$ara quem sabe andar de olhos abertos

e&iste um mundo em cada rão de areia.

Dentro dele h' seredos encobertos

onde a matéria se desencadeia.

E ao mesmo tempo o mar é meu consolo.

( homem criou o barco, e de paredes

fe) a casa, tiolo após tiolo,

para o abandono sensual das redes.

( infinito da linha do hori)onte

se dispersa e concentra no infinito

do universo das coisas pequeninas.

*ão tenhas medo, minha amia. # ponte,

que lia a vida e a morte como um rito

de amor, cobriu +se aora de boninas...

Page 3: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 3/29

. Boca da noite

Boca da noite

De repente, eis+me em tudo tão tranquilo

como se a morte ' tivesse vindo.

*ão me ocupa o amanhã para constru-+lo.

*em me lembra se o ontem não foi lindo.

Da cin)a não me quei&o pois foi brasa.

Entre os livros não sofro solit'rio.

rvore e fi lhos deram lu) / casa.

Tive flores de irmãos no meu calv'rio.

0into entre as sombras o invis-vel rio

descer tão lento aora que a canoa

para no susto antio que a povoa.*em aleria ou dor, calor ou frio.

*o mundo ponho uns olhos bons de av12

foi a boca da noite que cheou.

3ivro Boca da *oite, Editora 0alamandra, 454

Page 4: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 4/29

6. # morte do atleta

# morte do atleta

7omo um fruto partido

soluça a mão do atleta.#inda quase um menino.

$odia ser um poeta.

( tiro que o matou

nasceu da madruada

tra)endo a doida face

da morte mascarada.

( tiro que o matou foi

tiro de assassino.

Era apenas um atletadesarmado, um menino.

*ão era rei, filósofo,

pol-tico ou profeta.

Tinha alma de menino

em seu corpo de atleta.

( tiro que o matou

era um tiro sem meta2

o ódio abriu+lhe no ar

uma estrada secreta.

E o rande corpo morto

santificou o chão.

8uem morre pelos outros

nunca morreu em vão.

9amais a ideia limpa

e o oo do destino

encobrirão de sonho

o tiro do assassino.

8uem mata um inocente

com riso de menino

não quer a liberdade2

tem alma de assassino,

qualquer que sea o credo,

a raça, a roupa, o hino,

quem mata um inocente,

um atleta, um menino.

%assacre de %unich, 4563ivro *ot-cias de #mor, Editora #rtenova, :io, 454

Page 5: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 5/29

;. Eterno

Eterno

0ou o perfeito imperfeito,

de imperfeiç<es é que sei.

%as, se me deres teu corpo,

perfeito me tornarei.

$enso por ve)es na morte,

pois sou mortal, morrerei.

%as, se me deres a boca,

nela ressuscitarei.

%esmo, porém, nessa boca = ai de mim! que bem o sei = 

o travo da areia amara

pune em meu beio de rei.

 = 7apitão, foi na tua alma

que a perfeição encontrei.

7apitão, d'+me tua alma2

para sempre viverei.

3ivro *ot-cias de #mor, Editora #rtenova, :io, 454

Page 6: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 6/29

>. 0oneto da #rca da #liança

0oneto da #rca da #liança

*ão contemos os anos, mas as noitese as madruadas e as manhãs e as tardes.

*ão contemos o rio, mas o barro,

as otas d?'ua, as roças, os caueiros.

*ão contemos as dores mas o 7risto.

*em quanto sanue nosso se perdeu

mas o oo, a conversa, a aralhada

que cantou infantil em nossa casa.

Barra do dia quando os trens acordamvenha de novo nos lavar a vida

e somar as canoas do 3evante.

0ea o n@mero em nós desfeito em canto

e nas cercas da beira dos caminhos

a rosa aponte os arcos sobre o mar.

3isboa, A de 9aneiro de 4A5

#rca da #liança, livro 7antia ncompleta, 3ivrara 9osé (lCmpio, 45

Page 7: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 7/29

. #ntemanhã

#ntemanhã

8uem cr na vida não recusa a morte,

sabe que a noite vem, espera a aurora.%erulha ambas as mãos no a)ul da sorte,

auarda, seren-ssimo, sua hora.

3embra Fe dóiG a del-cia que encerrou

nos paladares crus da mocidade.

%as em ve) de prender+se ao que passou

desenha as utopias de outra idade.

De uma outra idade mais feli) = e quanto! = 

onde haa imperfeição, onde haa pranto

mas não falte consolo humano a quem

precisa de outro aluém que o sinta aluém.

*esse mundo melhor, de braço dado,viveremos o sonho inacabado.

(s mirantes do lhéu, livro Boca da *oite, Editora 0alamandra, :io,

454

Page 8: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 8/29

A. nocncia

nocncia

8uando eu era pequenosonhava fa)er um acordo com todos os homens

para não prenderem mais p'ssaros.

Hoe me perunto2

*em homensI

3ivro *ot-cias de #mor, :io, 455

Page 9: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 9/29

5. ( $erseuido de Deus

( $erseuido de Deus

Deus dói dentro de mim como estrela cadente.

%as por que sua linuaem é de e&tremosI

$or que fala mais sofrimentoI $or que tantas ve)es se calaI

$or que esconde a aleria como semente no chão secoI

Deus pula dentro de mim como o alto+mar nas manhãs,

como a diferença das marés no porto, de que dependem os barcos para

partir.

%as por que tão descompassadoI $or que aos saltosI

Deus não é uma casca de 'rvore a se desmanchar de velha.

Deus é novo. *ovo! *ão só eterno, mas novo.*ão uma pele esticada a se romper sobre um corpo,

mas uma presença entre os homens,

um companheiro a quem se d' o braço para ir ao café da esquina.

$or que então aos ritos me fala como um

desconhecido a outro desconhecidoI

6

$enso em Deus como rede de dormir dentro da noite,

na mata, sob as estrelas.*oite suave, noite fresca mas sem ventos que a turvem2

luar que s@bito invade, rilos @midos, mãe+da+lua lone.

Deus de repente, porém pressentido e manso.

Então me oarei em Deus como num tambor reteso

e em foo = mas de que nasçam apenas sons encadeados de marcha

volunt'ria

/ espera da cheada do :eino na clareira.

E da alma brotarão rios de sono

para serem partilhados de porta em porta como pão.

:io, fevereiro de 456.

3ivro *ot-cias de #mor, Editora #rtenova, :io, 455

Page 10: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 10/29

J. 0oneto do amor correspondido

0oneto do amor correspondido

%ore happC love! %ore happC, happC love!

Keats

0ei apenas do amor correspondidoL

outros falem do amor mais infeli).

Das triste)as da vida nunca hei sido poupado,

mas aquele é o meu pa-s.

*ele penetro e reino, e sou mantido

no seu brando calor que sempre quisL

e se não me alucino nem divido,

é que fui humil-ssimo aprendi).

0im, a felicidade se decora

como um soneto de 7am<esL e após

nunca se esquece. *ão h' mais desraça

que apaue os rastros dessa lona aurora.

Meli) amor, #mada, esse que em nós

tem a força da terra que não passa!

3ivro 7antia ncompleta, Editora #rtenova, :io de 9aneiro, 455

Page 11: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 11/29

4. ( ano da uarda

( ano da uarda

Deus fe) um ano para cada homem,

confiou+lhe seu corpo e seu destino.Disse+lhe2 = Nmpede que as pai&<es o domem.

Ouarda+o para ser bom desde menino.P

*a inumer'vel multidão dos povos,

na confusão das l-nuas e das entes,

não falta um ano em meio aos anos novos

para seuir os seres inocentes.

$or mais que a vida dispa as ilus<es

e enodoe a pure)a, por ferina

que sea, e mate a fé, mate a esperança,

h' sempre uma hora para os coraç<es

em que, dobrando o canto de uma esquina,

volta o ano da uarda da criança.

3ivro (s #nos em Terra Editora %onteiro 0oares :io de 9aneiro 454

Page 12: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 12/29

Q. # #ssunção

# #ssunção

# mais pura das mulheres,entre elas abençoada,

sobe para os céus abertos

pelos anos carreada.

#s almas todas dos homens,

em perfeita comunhão,

se untam para pedir+lhe

sua doce intercessão.

:ede nos céus naveando,

por entre os astros subindo,não se sabe se %aria

vai morta ou se vai sorrindo.

#nos e estrelas em volta

da mãe de *osso 0enhor

cantam cantias de roda,

embalos de puro amor.

3ivro (s #nos em Terra Editora %onteiro 0oares :io de 9aneiro 454

Page 13: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 13/29

. # andorinha

# andorinha

a uma andorinha

caminho do 7éu.

$artiu+se uma asa,

caiu num mundéu.

 = N*o céu não se caçaP,

me reclama o 3u-s.

 = N%as foi na viaemP,

a #ninha lhe di).

(ra esta andorinha,muito distra-da,

caiu num mundéu,

quase perde a vida.

9esus pequenino

no colo a peou,

com cuspe e palavra

a asinha sarou.

3ivro (s Bichos no 7éu, :io de 9aneiro, 45J

Page 14: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 14/29

6. ( astronauta

( astronauta

a um astronauta

pelo céu so)inho2

dei&ou seu fouete,

perdeu seu caminho.

Era tudo branco

 = por dentro ou por fora = 

porém não chorava,

porque homem não chora.

$ediu2 = N%eu 0enhor,acabai com a Ouerra,

mesmo que eu não possa

voltar para a Terra!P

Moi Deus e mandou

um ano levar

o moço, na $'scoa,

de volta pro lar.

E e&ércitos de asas

vieram pelo arcom palmas e rosas

a Ouerra acabar.

3ivro (s Bichos no 7éu, :io de 9aneiro, 45J

Page 15: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 15/29

;. # dor

# dor

Ma) que a dor apenas te aponte num canto da boca2

assim as pedras escondidas no marse desmancham na espuma dos recifes.

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 16: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 16/29

>. Di'loo

Di'loo

Rm homem cheou e disse2

 = # mim interessa sobretudo o porqu das coisas.$or que a cobraI

%as outro respondeu2

 = # mim ainda mais interessa o para qu.

$ara que o marI

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 17: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 17/29

. Eleia

Eleia

# pedra, e o que h' dentro dela.# 'rvore, e o que h' dentro dela.

( corpo, e o que h' dentro dele.

3eves são as nuvens no céu.

%esmo no cemitério abandonado

h' flores e velas acesas2 o amor vive.

(s asmineiros cobrem as sepulturas

pobres como renda cheirosa e lençol branco.

#s mãos se fecham. 9untas escondem

a veia aberta.

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 18: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 18/29

A. *oite

*oite

( pior não é quando o sono custa a chear.

H' sempre invenç<es Fvelhas e novasG para suportar a vida.

8uantos séculos ter' a palavra passatempoIG

0e não sabes me&er no amão, que menino viste os velhos oarem na

varanda,

vai ao cinema ou mesmo toma 30D.

# televisão não te d' sonoI

( pior é acordar no meio da noite

e esperar = esperar! = até que as sombras se me&am na antemanhã.

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 19: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 19/29

5. $'tria

$'tria

*ão te quero, Brasil, para sonhar+te

na fantasia in@til de quem dorme,nem muito menos chearia a odiar+te

na confissão de um desespero enorme.

Em cada face que a meu lado escuta

procuro ler+te. E veo desde o campo

onde a flor mi@da encobre a lae bruta

e cheira aos pés do meu cavalo pampo.

#bro a anela sobre a rua escura

e alta. # cidade rande ri mas sente

crescer, sob aço e vidro, a desventura.

$'tria, te escondo em mim. Ss a semente

que no sanue ermina impressentida

para que não pereça ressequida.

0ão $aulo, abril de 45Q

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 20: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 20/29

J. 0oneto do amor teimoso

0oneto do amor teimoso

#mo+te hoe do mesmo amor teimosodaquele dia em que te vi primeiro

e se te amei desde o primeiro instante

hei de te amar até o derradeiro.

0omam+se em mim para te amar a vida

e a morte2 nem amais eu suspeitara

que do capricho pela adolescente

viesse esta força indefinida e rara.

#mor feito resina, porque chora,

calado como as coisas, como o chão,mas capa) de irromper = estranha lava = 

numa festa de flor, só flor, mais nada,

cobrindo o tronco velho e os alhos secos

como as quaresmas que teu filho amava.

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 21: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 21/29

4. 0oneto do retrato de $ortual que o autor não conseue concluir

por se ver perdido em meio /s suas lembranças

0oneto do retrato de $ortual que o autor não conseue concluir por

se ver perdido em meio /ssuas lembranças

%ulheres no mercado da montanhaL

campos abertos, p'lido trialL

e o mar emendo, numa dor estranha,

bicho vencido, aos pés do pinheiralL

e o casarão do amio em meio / serraL

e os rios a descer entre vinhedos

sobre o sanue dos homens e da terraL

vilasL barcosL touradasL arvoredosLe o pão de ló na quinta, o arro) de pato

que mãos amadas sabem preparar...

%as onde me perdiI Este retrato

dói de escreverI Dói mais de recordar.

0anram nele sobreiros mutilados

na desordem dos sonhos acordados.

Em #rca da #liança, 3ivro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 22: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 22/29

6Q. 0oneto de *ossa 0enhora do Bom $arto

0oneto de *. 0. do Bom $arto

# adolescente era a palmeira esuia

de tranças. %as no mel do seu cabelotal mistério morava que de v+lo

a alma desesperada renascia.

Era a Bele)aI # simples aleriaI

Era a presença do sutil desveloI

Era a raça, era o corpo, era a poesiaI

Era a saudade do materno )eloI

Era a esperança, a fé, a caridadeI

mposs-vel di)+lo com certe)a.

%as nela havia tanta eternidade

que p1s *ossa 0enhora do Bom $arto

nove bocas em torno / nossa mesa

e uma sombra perene em nosso quarto.

# "isita do #no, livro 7antia ncompleta, 45

Page 23: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 23/29

6. 0oneto do menino chorão

0oneto do menino chorão

Mui menino chorão. #s alerias

alaavam de sol os meus instantesmas afloravam l'rimas constantes,

poços de timide) entre meus dias.

Daqui me curvo sobre aquele pranto.

:io, feiras, cavalos, pescadores,

currais e tanques, céu no chão sem dores,

e o menino no meio a chorar tanto.

0em nenhuma ra)ão. %as pressentia

o sofrimento que depois viria,

maré de areia como um rosso mar.

Hoe, sobrevivente malferido,

de olho seco, submisso, desmedido,

quero chorar mas não sei mais chorar.

Tempo de 3isboa, livro 7antia ncompleta, :io, 45

Page 24: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 24/29

66. lhéu

lhéu

*asci numa ilha.

Era meu destino.*uma ilha vivo

desde pequenino,

a estender os braços

pelo mundo todo

em busca de traços

que / terra me liuem.

8uero o continente!

*ão me dei&em só,

não me quero ausente.

*inuém me compreende

esta busca ansiosa2tenho o mar comio,

quero ainda a rosa.

9ouem fora a Uncora!

$ois o amor que achei,

meu anel de amios

e a casa do rei

tra)em sede e fome

de mais terra e céu.

$or Deus compreendam

quanto sou ilhéu!

7areço de afetosem roda de mim.

Moi sorte ou desraça,

numa ilha vim.

Tempo de en&urrada

nessa ilha nasci,

como a 'ua que corre

sou daqui, dali.

$or Deus me acarinhem

que nasci na ilha,

num ms de en&urrada,ms de 'ua andarilha,

sobrados e terra

porém terra pouca,

lavado a)uleo

sob uma 'ua rouca.

%eu amor me abraça

porque sou ilhéu

ando só = na areia

entre 'uas e céu.

(s mirantes do lhéu, livro Boca da *oite, 454

Page 25: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 25/29

6; 7r1nica da outra #mérica

7r1nica da outra #mérica

# Homero ca)a+0'nche)

0onhei contio, %anuel, mas o sonho não basta.

8ue pena não estares vivo = e conosco = para nos acompanhares = e

uiares = 

nesta visita a um mundo insuspeitado. *ão *orte #mérica!

*ão, pelo menos, a #mérica do *orte do mito contemporUneo,

substituta do dem1nio das abus<es medievais.

Em Harvard o velho livreiro de JQ anos

que não sabia se abriria aos s'bados = era tão velho!

e só abria ou fechava quando lhe dava vontade, mais para servir /s

moças e rapa)es,e menos porque não pudesse andar só

do que por h'bito de amor e osto da

companhia esperava a mulher para sair do pequeno quarto

coalhado de livros em cua porta orulhosamente escrevera2

N$oetrC! (nlC poetrC! *o laVs,

*o science,

*o economics,

*o public health, (nlC literature!P

r-amos untos / missa dos estudantes católicos na Harvard Warde participar-amos da aleria coletiva pelo batismo de #le&ander,

no Xidnapped, sim, não raptado mas admitido /s portas de uma esperança

maior,

e ouvir-amos a mãe de #le&ander falar sobre o tempo em que o trou&e no

ventre,

e o pai de #le&ander sobre a confiança no ser humano.

Depois comunar-amos sob as espécies do pão e do vinho,

o esp-rito de Deus seria em nós uma aleria de primavera,

e dançar-amos em roda, com o padre e as

crianças, de mãos dadas, uma canção das ilhas, com sereias e ervas,

Deus, vento e sol.

8ue não diria o 7outoI

Era capa) de entrar na roda também.

( Dante %ilano ficaria só olhandoI *ão é capa).

3evar+te+-amos em seuida a conhecer 0eu

Oilberto que est' h' cinco anos na #mérica e não sabe

inls = nem pretende aprender = 

pois para lavar chão basta a fala dos #çores

e, entretanto, ' tem uma casa de trs andares

e ouve o 7ardeal de Boston nesta nossa fala de *ossa 0enhora.

Page 26: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 26/29

Em *ova orque a mulher na noite me disse2

 = 9e suis une trYs pauvre femme!

Todavia não lhe dei esmola.

Esse pecado ser+me+' cobrado no 9u-)oI Deus me perdoe.

%anuel, que saudade!De repente sou todo recordação de filhos e amios mortos e vivos

e tenho de recorrer ao amor sem limites de

7risto e de Zalt Zhitman para me reencontrar comio = e com a

esperança.

Page 27: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 27/29

$avana para um preto defunto

de maio de 4>5

0e alum dos meus leitores conheceu o preto %anuel do

*ascimento, que era carabineiro de elevador no rande e frio

edif-cio de tristes colunas neras, que fica atr's da Escola deBelas #rtes, que saiba apenas que ele morreu, mas não queira

saber como foi. Basta a triste)a de sab+lo morto, porque se o

conheceu, certamente ostava dele. # profissão de carabineiro

tem suas vantaens, como ele costumava me di)er, e entre essas

est' a de estar subindo sempre, mesmo descendo se tem a certe)a

de que vai subir de novo. %as o certo é que este subir e descer

não em anos, mas em minutos, termina cansando até a morte. D' um

tédio enorme da vida. 7onheço aluns que procuram fuir da

monotonia de subir e descer contando o n@mero de passaeiros Fh'

até um aparelho para issoG. (utros foem e ficam lone,

sonhando, dei&am só o corpo atendendo maquinalmente aos comandos

mal silabados.

%anuel do *ascimento descobriu um eito de fuir muito melhor2

conversando. Ele era um desses homens que Deus enche de aleria

e solta no mundo2 e a aleria desse tipo é profunda, mas não

silenciosa como a do nosso maior poeta. Ela ou rebenta pelos

poros, pelas mãos, pela fala, ou a ente enlouquece. # verdade é

que %anuel do *ascimento parecia mesmo um p'ssaro, com sua farda

a)ul, o nari) sem-tico, o biode nero no rosto nero, uma

anhuma que em ve) de soltar seu rito de solidão e de lamento,

transmitisse aos demais seres uma lição de pacincia e decoraem2 aleria.

%orreu, isto é, mataram+no. 8uem foiI 8uando peruntei isso,

ouvi de muitas bocas uma coisa imposs-vel, uma coisa que

lembrava as superstiç<es não direi da dade %édia, mas de nossa

dade 7ontemporUnea, aluma coisa assim de indefinida ou

misteriosa como o %orceo de Dusseldorf, o Homem da 7apa $reta,

MranXenstein ou o %icróbio. Di)iam2 foi a $ol-cia. %as apenas

voltando a mim, reai contra a imaem que formara de uma sombra

nera e iante, sem nome nem mãos. Rm dos que foram v+lo no

necrotério me disse que se notava n-tida, na arca do peito, amarca de uma botinaL e se botina havia, alum pé a calçara.

*essa mialha de lóica é que me seurei para voltar a mim e

raciocinar com calma. Dio mialha de lóica porque quem afirma

que uma botina, para matar um homem, precisa estar calçadaI

Depois é que fui liando os demais detalhesL soube que %anuel do

*ascimento tinha bebido um pouco na tarde de s'bado, quisera

entrar num baile em Botafoo, parece que ou preto não entrava ou

ele não era sócio, chamaram os uardas Fos uardas, os soldados,

é sempre mais aceit'vel do que este mito, a $ol-ciaG, deram nele

até o Distrito, onde morreu. 0e no Distrito apenas morreu ou

ainda apanhou, ninuém soube contar. E se era mesmo porque preto

não entrava na afieira de Botafoo, não procurei saber, fui de

Page 28: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 28/29

saber. 8ueriam me contar, mas me recusava a ouvir. *ão seria

monstruoso que mesmo entre os pobres houvesse o preconceito de

corI *ão quis saber ou então não dormiria tranq[ilo, iria, pela

primeira ve), / sessão esp-rita, para convocar o velho 9oaquim

*abuco, contar a ele que não bastava que os neros tivessem

profiss<es diversas e até reliião diversa, ' aora nem nobaile dos brancos pobres podiam entrar. #ceitei a versão de que

%anuel do *ascimento não entrara no baile porque não era sócio.

*em mesmo porque tivesse bebido, por que quem pode dei&ar de

beber um pouco neste pa-s e com este overnoI

7reio também, para honra dos uardas ou soldados, que eles forma

v-timas de um monstruoso mal+entendido, um dos maiores desta

terra de equ-vocos. De muita ente tenho ouvido que a função da

pol-cia é bater. N(nde voc viu pol-cia que não bataIP, me

peruntava um antio e perpétuo estudante de direito em Belo

Hori)onte. E arumentava, triunfante e desatinado qual se fora

um dos irmãos Oóis %onteiro2 N$ol-cia que não bate não é

pol-cia. $ol-tica tem que baterP. Docemente, declarei que me

parecia que o fim da pol-cia é impedir que se bata e não bater,

não substituir+se aos que batem. # utilidade de uma pol-cia que

batesse só me pareceria defens'vel se todos os desordeiros \ e

dos demais criminosos \ abdicassem sinceramente das suas

atribuiç<es, direitos e deveres, em favor da pol-cia, que então

tomaria a si as funç<es, que deve prevenir, daqueles que deve

prender. Estabelecer+ia então um reime lóico, claro e

perfeitamente coerente, baseado no e&clusivo NsóP e não no

contraditório NtambémP. E&emplo2 NsóP a pol-cia mata, só apol-cia anavalha, só a pol-cia esbordoa, só a pol-cia rouba, só

a pol-cia furta, só a pol-cia atenta contra a moral e os bons

costumes. E ser-amos todos feli)es.

7onfesso francamente que o sistema atual me parece um pouco Fum

pouquinho sóG ilóico. # pol-cia /s ve)es intervém quando h'

dois sueitos briando, embora sea uma bria proporcionada e

arad'vel. (utras ve)es intervém quando um herói autntico, um

desses que uardam na terra, sob os mais sutis disfarces, a

imaem da cavalaria andante, bebeu um pouco e desafia de)enas de

outros. $oder+se+ia supor que entra ao lado da minoria, mesmoquando essa minoria não precisa de auda nem ritou2 N#qui, d?El

:eCP, para restabelecer o equil-brio de uma boa bria. %as não,

não é a dinidade da luta que a preocupa. ntervém sempre ao

lado da maioria, e intervém para retirar do local, sob pancada,

a minoria Fmesmo quando ela é de um só e est' vencendoG e para,

conservando a desproporção, impor+lhe a humilhação da derrota.

ntervém ao lado dos filisteus contra 0ansão, transforma a

vitória de 0ansão na mais esmaadora derrota, e, satisfeita de

ter imposto a vinança de muitos contra a revolta de um só, que

não a convocara, esfrea as mãos de contente.

Tão e&aerada quanto a opinião do antio estudante de Belo

Hori)onte foi a dos médicos que encontrei ontem. Eram contra a

Page 29: Seleção textos Odylo Costa, filho

8/16/2019 Seleção textos Odylo Costa, filho

http://slidepdf.com/reader/full/selecao-textos-odylo-costa-filho 29/29

forca, o fu)ilamento, mas achavam que um caso desses ustificava

a pena de morte2 o abuso do poder que provoca morte d?homem.

$enso de outro eito. 8ue haa um inquérito, est' bem, mas nem

isso mesmo a rior é necess'rio. Entre as poucas coisas que

podemos confiar na vida, est' o ulamento divino. Miquemos

tranq[ilos que Deus h' de medir se houve crimeL e se crimehouve, de que importa a ustiça dos homensI Melinto pode ser

senador, ir' para as profundas. Estivesse eu tão tranq[ilo

quanto /s demais coisas desse mundo quanto estou neste ponto,

isto é, quanto / presença de outro mundo nos nossos destinos.

( que me dói é saber tão pouco da morte de %anuel do *ascimento,

mas posso afirmar que pareceu com sua vida. Ele era sempre tão

iual a si próprio, mesmo depois tantas horas de trabalho

monótono. #inda sinto sua mão no meu ombro, numa alere

recomendação que esqueci, naquele s'bado. Era s'bado, a tarde

fria, quieta, a)ul, tudo convidava a beber um pouco. 0e beber

vinho é ou não um bom costume, não entrarei nessa discussão.

3embrarei apenas que para simboli)ar o 0eu sanue, *osso 0enhor

9esus 7risto escolheu o vinho, não a 'uaL e que nem de Hitler,

nem de 0talin, ambos derramadores e bebedores de sanue de

homens, nunca se ouviu di)er que tomassem alum dia um porre+

mãe. %as parece que nem no porre+mãe estava %anuel do

*ascimentoL e disso tenho pena, embora deva acrescentar que

ainda que estivesse, não era motivo para o matarem. $orém tanto

não estava que ao chear na Deleacia creio que ainda riu para

mulher. Entreou+lhe o relóio e o dinheiro que tra)ia. # alma

deu+a a Deus, e era leve. Bastou um ano para lev'+la aos pés do7riador. E nem foi preciso um ano muito forte.

$.0. Espero não ter escrito um chorinho muito soluçado para este

nero defunto2 ele não ostaria. S certo que nem sempre atendia

aos seus pedidos. $or e&emplo2 não votei nele para vereador.

Todavia por um motivo muito simples2 nenhum partido o apresentou

candidato. #inda assim me pediu o voto2 NEu sei que o senhor não

vai votar em branco. Tem de votar é em preto mesmoP. *em o seu

próprio voto ele teve. Talve) tenha votado em branco. 3ia os

proramas dos partidos, eram todos tão iuais. *ão me lembro selhe pedi voto para este admir'vel moleque da rua 7arioca, para

esse $edro ]avier de #ra@o, que não h' eito de envelhecerL que

perto dos cinq[enta anos ainda recorda o menino alaoano que

pulava muro, fa)ia com-cio e tirava ornal em %aceió. *ão creio

que %anuel do *ascimento pertencesse a nenhum partidoL se

pertencesse, a 7Umara e o 0enado talve) ouvissem discursos

inflamados peruntando por ele. Também não adiantaria nada. (

eito é tocar p?ra frente, nunca esquecendo que quem desce sobe

de novoL quem sobe, tem que descer. E que vive, est' sueito a

morrer, inclusive se um dia tiver a desraça de ser preso. Dirão

depois que sofria do coração.