seguro defeso para mulheres da pesca artesanal na colônia z3 (pelotas/rs): incertezas e...

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Seguro defeso para mulheres da pesca artesanal na Colônia Z3 (Pelotas/RS): incertezas e estratégias 1 Luceni Hellebrandt UFSC / Brasil 2 Carmen Silvia de Moraes Rial UFSC / Brasil Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão UFRPE / Brasil Resumo O texto expõe uma situação ocorrida no ano de 2011 no Estuário da Lagoa dos Patos (RS) que impactou as comunidades pesqueiras da região. Na ocasião, por um entendimento errôneo do Ministério do Trabalho e Emprego, o pagamento de seguro defeso às mulheres envolvidas na atividade pesqueira da região foi suspenso, trazendo à tona um conflito de gênero no âmbito da gestão pesqueira. Com registros da época do ocorrido, a situação é exposta aqui, mas o texto avança no sentido de averiguar as estratégias adotadas pelas mulheres para garantir a renda advinda do benefício, utilizando para isto, entrevistas realizadas com mulheres de uma das comunidades pesqueiras da região, a Colônia Z3, no município de Pelotas. As discussões apresentadas evidenciam um conflito de gênero na pesca que reforça a invisibilidade do trabalho executado por elas na cadeia produtiva da pesca e a dificuldade de reconhecimento por parte do Estado, contribuindo para os estudos sobre pesca e gênero. Palavras-chave: conflitos na pesca; gênero e pesca; seguro defeso para mulheres 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, tendo como orientadora e co-orientadora, respectivamente, as coautoras. Esta nota faz-se necessária para justificar a linguagem utilizada na escrita do texto, em primeira pessoa do singular, uma vez que este relata parte pertinente de minha pesquisa de doutorado, em andamento.

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conflitos na pesca; gênero e pesca; seguro defeso para mulheres

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  • Seguro defeso para mulheres da pesca artesanal na Colnia Z3 (Pelotas/RS):

    incertezas e estratgias1

    Luceni Hellebrandt UFSC / Brasil2

    Carmen Silvia de Moraes Rial UFSC / Brasil

    Maria do Rosrio de Ftima Andrade Leito UFRPE / Brasil

    Resumo

    O texto expe uma situao ocorrida no ano de 2011 no Esturio da Lagoa dos Patos (RS)

    que impactou as comunidades pesqueiras da regio. Na ocasio, por um entendimento

    errneo do Ministrio do Trabalho e Emprego, o pagamento de seguro defeso s mulheres

    envolvidas na atividade pesqueira da regio foi suspenso, trazendo tona um conflito de

    gnero no mbito da gesto pesqueira. Com registros da poca do ocorrido, a situao

    exposta aqui, mas o texto avana no sentido de averiguar as estratgias adotadas pelas

    mulheres para garantir a renda advinda do benefcio, utilizando para isto, entrevistas

    realizadas com mulheres de uma das comunidades pesqueiras da regio, a Colnia Z3, no

    municpio de Pelotas. As discusses apresentadas evidenciam um conflito de gnero na

    pesca que refora a invisibilidade do trabalho executado por elas na cadeia produtiva da

    pesca e a dificuldade de reconhecimento por parte do Estado, contribuindo para os estudos

    sobre pesca e gnero.

    Palavras-chave: conflitos na pesca; gnero e pesca; seguro defeso para mulheres

    1 Trabalho apresentado na 29 Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto

    de 2014, Natal/RN.

    2 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em Cincias Humanas da Universidade

    Federal de Santa Catarina, tendo como orientadora e co-orientadora, respectivamente, as coautoras. Esta

    nota faz-se necessria para justificar a linguagem utilizada na escrita do texto, em primeira pessoa do

    singular, uma vez que este relata parte pertinente de minha pesquisa de doutorado, em andamento.

  • Introduo

    As colnias de pesca brasileiras foram criadas atravs do artigo 73 da Lei n

    2.544 de 1912, lei que institua as Zs Zonas de Pesca, como estratgia de defesa nacional

    para cadastrar pescadores e utilizar o conhecimento destes sobre as regies martimas, em

    caso de uma possvel guerra (Diegues, 1999; Sacco dos Anjos et al, 2004). Assim, a

    exemplo de outras, surge a Colnia de Pescadores Z3, fundada na dcada de 1920 e

    tambm conhecida como Colnia de So Pedro, ou Arroio Sujo (Figueira, 2009).

    Pertence ao municpio de Pelotas, Rio Grande do Sul, fazendo parte da poro

    estuarina da Lagoa dos Patos (Figura 1), uma das maiores lagunas costeiras do mundo

    (extenso aproximada de 11.000 km). Devido ao ambiente estuarino de grande troca

    energtica entre lagoa e mar, a regio oferece um ambiente propcio para o

    desenvolvimento de diversas espcies pesqueiras, tais como camaro-rosa, tainha,

    corvina e bagre, entre outras.

    Com este contexto, a Colnia Z3 foi se constituindo atravs da migrao de

    pessoas de diferentes lugares, como explica Figueira:

    [...] o estabelecimento de grupos no espao se deu em quatro fases.

    [...]Na primeira fase, no incio do sculo XX, os moradores eram do

    Estado do Rio Grande do Sul, agricultores de cidades como Piratini,

    Tapes, Viamo e Rio Grande. J numa segunda fase, a partir da dcada

    de 1950, vieram grupos oriundos do Estado de Santa Catarina[...]. A

    partir da dcada de 1960 comearam a vir famlias oriundas de uma ilha

    conhecida como Ilha da Feitoria, localizada uma hora de barco da Colnia Z3. Numa fase final, a partir do incio da dcada de 1990,

    chegam grupos oriundos das periferias urbanas e da zona rural de

    Pelotas. Segundo relatos, o principal objetivo de todos que se

    estabeleceram no local sempre foi a melhoria da qualidade de vida,

    atravs da atividade pesqueira na Lagoa dos Patos. (FIGUEIRA, 2009:

    39-40)

    Atualmente, a Colnia Z3 possui 3.166 habitantes (IBGE, 2010) e concentra a

    maior parte dos 1.326 pescadores profissionais artesanais do municpio, cadastrados e em

    situao regular no Registro Geral da Pesca do Ministrio da Pesca e Aquicultura (MPA,

    2012). Em estudo recente (FAO, 2012), foi constatado que pelo menos 30% dos

    pescadores profissionais artesanais do esturio da Lagoa dos Patos so mulheres, e que

    elas esto concentradas, sobretudo, nas atividades de processamento de pescados ao longo

    da cadeia produtiva da pesca.

  • Figura 1 Localizao do Esturio da Lagoa dos Patos; Localizao da Colnia Z3

    Fonte: Adaptado de WALTER et al (2014) e Google Maps (2014)

    Nos ltimos quatro anos venho realizando visitas Colnia Z3, por esta se tratar

    de rea de estudo de minhas pesquisas. Nestas visitas, pude comprovar a atuao intensa

    de mulheres na atividade pesqueira, em pequenas peixarias, mas tambm nos ptios de

    suas casas, quando trabalham com o pescado capturado por elas, ou companheiros, ou

    filhos, portanto, dentro do ncleo familiar. Em conversas com estas mulheres, muitas

    vezes me relataram que executam ou j haviam executado atividades de captura,

    embarcando sozinhas ou acompanhando homens na pesca de tainha, bagre, corvina, ou

    mesmo, do camaro, mas trabalham principalmente processando pescado, preparando

    fils de peixes, descascando camaro, etc.

    Apesar dessa participao considervel de mulheres na atividade pesqueira da

    regio de estudo, no ano de 2011 houve um episdio que colocou em discusso o

    reconhecimento delas enquanto trabalhadoras da pesca: Por uma determinao do

    Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), as mulheres envolvidas na pesca artesanal da

    regio tiveram o benefcio de seguro desemprego suspenso, por conta de uma

  • interpretao diferenciada da legislao e exigncia uma especificidade na apresentao

    de um dos documentos requeridos para o acesso ao benefcio.

    Este episdio exps um grande conflito relacionado gesto pesqueira e a

    administrao de polticas pblicas ao setor, mas sobretudo, evidenciou uma grande

    problemtica de gnero no universo da pesca artesanal: o no reconhecimento dos

    trabalhos produtivos executados por mulheres na atividade pesqueira.

    Nas prximas pginas, apresento mais detalhadamente como este conflito se

    estabeleceu e as aes dele derivadas. Para estas exposies, utilizo anotaes pessoais

    do acompanhamento de reunies do Frum da Lagoa dos Patos (FLP)3 do ano de 2011,

    atas das reunies do FLP, entrevistas e e-mails trocados com o presidente do Sindicato

    dos Pescadores da Colnia Z3, e atual coordenador do FLP (o presidente atual do

    Sindicato j estava no cargo em 2011), e entrevistas com 7 mulheres da Colnia Z3 2

    realizadas em 2011, outras 5 realizadas em 2014.

    Posto isto, o objetivo deste artigo divide-se em dois: 1) Registrar o conflito

    ocorrido, que evidencia a invisibilidade do trabalho executado por mulheres na atividade

    pesqueira; e 2) Avaliar as estratgias adotadas frente aos debates promovidos pelos

    estudos sobre pesca e gnero.

    Histrico do conflito

    No dia 26 de maio de 2011, acompanhei uma das reunies do Frum da Lagoa

    dos Patos (Figura 2) em que a pauta discorreu sobre uma situao inusitada e preocupante.

    Abaixo reproduzo trecho das anotaes pessoais sobre a reunio:

    A tarde da ltima quinta-feira de cada ms reservada para as reunies do

    Frum da Lagoa dos Patos. Como atividade de campo para a pesquisa de

    mestrado, na tarde do dia 26 de maio de 2011 fui acompanhar mais uma das

    reunies do FLP. As reunies mensais acontecem de forma itinerante,

    circulando entre os quatro municpios de abrangncia do frum (So Loureno

    do Sul, Pelotas, Rio Grande e So Jos do Norte).

    Desta vez, a reunio foi na sede da Colnia de Pescadores Z1, municpio de

    Rio Grande, e a pauta para reunio fora divulgada dias antes via e-mail pela

    coordenao do FLP: estava programada uma reunio para esclarecer ecos da

    3 O Frum da Lagoa dos Patos foi criado em julho de 1996 como uma resposta institucional crise na pesca estuarina. um arranjo de co-gesto, iniciado pela Pastoral da Pesca e as Colnias de Pesca, em

    conjunto com a representao local do IBAMA CEPERG. Elementos chave dentro desta nova concepo de gesto da pesca vo no sentido de uma parceria cooperativa entre comunidades, organizaes

    governamentais e no governamentais, bem como uma transio para um estilo de negociao e tomada de

    deciso descentralizado. [...] Na inteno de incluir todas as instituies impactadas pela gesto de recursos

    costeiros, em geral, e especificamente os pesqueiros, um total de 21 instituies, representando os principais

    atores sociais na gesto dos recursos costeiros, foram convidados a participar do Frum.[...]Participao no

    Frum voluntria, todos os representantes tm direito a falar e a votar. (Kalikoski et al. 2004)

  • reunio passada, em virtude da construo de uma obra de conteno,

    denominada molhes da Barra que, segundo os pescadores, estava limitando a entrada de espcies pesqueiras no esturio, implicando diretamente na queda

    das capturas e, consequentemente, na renda advinda da pesca. A pauta era a

    expresso de um grande conflito de uso, tema que me interessava diretamente

    para a pesquisa de mestrado, porm, ao chegar no salo da Colnia Z1 fiquei

    surpresa, inicialmente, como o nmero de pessoas presentes (em torno de 200,

    sendo que normalmente as reunies do FLP renem em torno 50 pessoas),

    segundo, pela grande maioria se tratar de mulheres (tambm, pouco comum a

    presena expressiva de mulheres nas reunies do FLP). Logo de incio foi

    explicada que a substituio emergencial da pauta, uma vez que o Ministrio

    do Trabalho e Emprego (MTE) havia suspendido o seguro desemprego (seguro

    defeso) para as mulheres de pescador no esturio da Lagoa dos Patos.

    A reunio teve a presena de mulheres dos quatro municpios de abrangncia

    do FLP, bem como dos presidentes das colnias de pesca (Z1 Rio Grande, Z2 So Jos do Norte, Z3 Pelotas, Z8 So Loureno do Sul), representantes polticos (1 Vereador de Pelotas e a assessoria de um Deputado

    Federal da regio), associaes de pescadores, ONGs, instituies de pesquisa

    (EMATER e FURG), Superintendncia do Porto de Rio Grande, Ministrio da

    Pesca e Aquicultura, Ministrio do Trabalho e Emprego e Ministrio Pblico

    Federal. Alm destes, a presena da mdia local, produzindo matrias

    veiculadas em jornais escritos e televiso. (HELLEBRANDT, 2011)

    Figura 2 Reunio do Frum da Lagoa dos Patos em 26 de maio de 2011

    Fonte: Acervo pessoal

  • Esta reunio foi a primeira forma de resposta deciso do MTE de suspender o

    seguro defeso para as mulheres, situao surpreendente a todos envolvidos com a pesca

    artesanal da regio, pelo exposto a seguir: Para requerer o benefcio de seguro

    desemprego, o pescador profissional artesanal deve apresentar uma srie de documentos,

    entre eles, a Licena Ambiental de Pesca. Este documento habilita a realizao da captura

    de uma ou mais espcies de pescados pelo portador da Licena, porm, nem todos os

    trabalhadores da pesca executam a atividade de captura, como o caso da maioria das

    mulheres da regio quando atuam em atividades de pr ou ps captura relacionadas ao

    ncleo familiar, por exemplo, consertando redes e/ou processando os pescados com

    finalidade de agregar valor ao produto.

    At o presente ano, a licena foi aceita pelo MTE estando em nome de algum dos

    membros da famlia, de forma a caracterizar o regime de trabalho baseado em unidade

    familiar. Porm, no ano de 2011, a interpretao do MTE foi a de que a Licena

    Ambiental de Pesca deveria ser nominal ao requerente do benefcio de seguro

    desemprego, extinguindo assim o entendimento da atividade pesqueira artesanal realizada

    em regime de economia familiar (BRASIL, 2009), ou seja, de acordo com o MTE,

    somente o pescador responsvel pela captura ficava identificado como apto a acessar o

    benefcio de seguro desemprego. No entendimento do MTE, mulher de pescador (FLP,

    2011) no tem direito a acessar o benefcio, pois no est embarcada exercendo a captura

    dos pescados, suas atividades de pr e ps captura so apenas complementares pesca,

    portanto, no passam de ajuda.

    Desdobramento do conflito

    A resoluo retirada na reunio do FLP citada foi o encaminhamento de um

    documento para o MTE de Braslia, Porto Alegre e Rio Grande, com as reivindicaes

    levantadas na reunio, bem como o envio de cpia do documento para a representao do

    Ministrio Pblico Federal em Rio Grande e secretarias do Ministrio da Pesca e

    Aquicultura de Rio Grande e Porto Alegre (FLP, 2011).

    A partir deste documento, o Ministrio Pblico Federal entrou com Ao Civil

    Pblica, que foi aprovada liminarmente, determinando que o MTE concedesse o seguro

    defeso para as mulheres que atuam em regime de economia familiar na atividade

    pesqueira, mediante a apresentao de documentao em nome prprio, em nome do

    cnjuge ou companheiro ou em nome de ambos (Silva, 2012) tal como j acontecia nos

    anos anteriores.

  • Esta deciso reconheceu a atuao tradicional das mulheres na pesca do Esturio

    da Lagoa dos Patos, mesmo que as atividades realizadas por elas sejam em terra. A

    deciso se baseou nas caractersticas peculiares da execuo da atividade pesqueira no

    Esturio da Lagoa dos Patos, conforme descrito na liminar:

    [...] desde a instituio do benefcio no esturio da Lagoa dos Patos, em 1998

    (Portaria IBAMA n 171/98 c/c Lei n 8.287/91), o benefcio vinha sendo pago

    s mulheres que no realizam diretamente a captura do pescado, mas sim

    tarefas em terra, nos trabalhos de confeco e reparos de artes e petrechos de

    pesca, bem como em reparos realizados em embarcaes de pequeno porte e,

    ainda, no processamento do produto da pesca artesanal.

    [...] salvo raras excees, a mulher integrante das comunidades tradicionais de

    pescadores artesanais que atuam no Esturio da Lagoa dos Patos exerce suas

    atividades em terra, e no embarcada, argumentando que apenas 'injustificvel

    desconhecimento da realidade ftica local' por parte do Ministrio do Trabalho

    e Emprego levaria a supor que, em regra, exercesse direta e/ou individualmente

    a atividade de captura no mencionado esturio.

    [...]sendo o seguro-defeso direito fundamental social, garantidor do mnimo

    existencial para comunidades tradicionais e pescadores artesanais, e

    considerando que a renda do ncleo familiar o resultado do conjunto de

    atividades - e no apenas da captura do pescado em si -, desenvolvido tambm

    pela mulher que dele participa, durante o perodo do defeso a atividade

    profissional dela igualmente resta prejudicada, no havendo razo

    juridicamente defensvel para que seja excluda da percepo do benefcio,

    sobretudo tendo em vista o princpio da igualdade. (SILVA, 2012 grifo no original)

    Apesar da deciso favorvel s mulheres do esturio da Lagoa dos Patos, a

    validade do documento no abrange geograficamente o municpio de Pelotas, pois a

    deciso no extrapola a competncia territorial deste Juzo, uma vez que a presente

    deciso abrange apenas as mulheres que exercem sua atividade pesqueira artesanal no

    Esturio da Lagoa dos Patos, nos municpios integrantes desta Subseo (Rio Grande e

    So Jos do Norte). (Silva, 2012). Contudo, na prtica, a deciso se estendeu ao

    municpio de Pelotas e s mulheres da Colnia Z3, porm no h garantia legal para este

    municpio. A situao do seguro defeso das mulheres continua a assombrar, como um

    fantasma, uma vez que o pedido do benefcio deve ser feito anualmente.

    A situao atual e a estratgia adotada

    Abaixo reproduzo alguns trechos que explicitam a situao atual referente aos

    pedidos de seguro defeso para mulheres da Colnia Z3. Primeiro, a resposta do presidente

    do Sindicato dos Pescadores de Pelotas, e em contraponto, alguns trechos de entrevistas

    realizadas com mulheres da Colnia Z3, incluindo uma entrevista com uma representante

    da Colnia de Pescadores de Aquicultores de Pelotas, entidade que iniciou suas atividades

    em 2013, em rivalidade ao Sindicato dos Pescadores de Pelotas.

  • Em e-mail trocado com o presidente do Sindicato dos Pescadores de Pelotas, a

    situao referente aos pedidos de seguro defeso para mulheres est dentro da normalidade,

    no havendo necessidade de temor por parte delas:

    pelo k sei esta tudo normal, desde k a mulher possua a licena propria ou do companheiro, a suspensao nao teve validade, tanto k todas k foram impedidas,

    ja receberam o seguro da epoca e tbem o do ano passado (sic) Presidente do Sindicato dos Pescadores de Pelotas, em e-mail enviado dia 31 de maro de

    2014 s 08:21:47 h.

    Por outro lado, as mulheres que entrevistei e questionei sobre a situao do defeso,

    revelaram algumas estratgias para assegurar a continuidade da renda:

    [E1] eu fao o do vero

    [P] quando que tu comeou a fazer este do vero?

    [E1] o ano passado

    [P] e como que tu ficou sabendo que podia fazer o seguro do vero?

    [E1] as gurias j faziam, porque assim , as guria que no tinham licena,

    porque o seguro do vero seguro de gua doce, ento no te pede nada, s

    te pede um braso, ttulo, identidade e cpf, e a carteirinha, s [...] no os

    quatro meses, trs meses s. (sic) [E1] Entrevistada que recebia o seguro defeso desde o ano de 2006 e teve o benefcio suspenso em 2011 por falta da

    Licena Ambiental de Pesca. / [P] Pesquisadora. Entrevista realizada em 2014.

    [E2] porque no arroio no tem a legislao. At eu ia te falar sobre isso, as

    mulheres que o marido tem licena, tem como comprovar ali ficaram nesse, as

    outras partiram pro arroio. Ento assim, o nmero dos pescadores do arroio

    aumentou muito, n, por falta da documentao pra lagoa [...] eles vivem da

    lagoa, no vivem do arroio.

    [P] acaba sendo alternativa pra no ficar sem o benefcio?

    [E2] foi a alternativa. (sic) [E2] Entrevistada que recebe o seguro defeso desde o ano de 1997 e atualmente 1 secretria da outra entidade

    representativa de pescadores de Pelotas Colnia de Pescadores e Aquicultores de Pelotas. / [P] Pesquisadora. Entrevista realizada em 2014.

    A estratgia adotada por algumas mulheres da Colnia Z3 para evitar a incerteza

    quanto a documentao requerida foi entrar com pedido de defeso para a pesca de gua

    doce, regulamentada pela Instruo Normativa n 197, de 2 de outubro de 2008, sobre a

    pesca na rea de abrangncia da bacia hidrogrfica do Rio Grande do Sul (IBAMA, 2008),

    assumindo que realizam a atividade pesqueira com pescado oriundo das guas da bacia

    hidrogrfica e lagoas marginais e outros corpos dgua consequentes desta bacia (pode

    ser observado um corpo dgua prximo Colnia Z3 na Figura 1 linha azul adjacente

    ao quadro vermelho utilizado para destacar a rea de estudo). Contudo, como explicitado

    por [E2], continuam executando atividade pesqueira na Lagoa dos Patos, retirando dali

    seu sustento. Esta atitude tem uma razo fundamentada em um conflito de gnero que

    permeia a pesca: o no reconhecimento das atividades produtivas das mulheres na pesca,

  • que so vistas pelo Estado sempre como dependentes, executando apenas papel de ajuda,

    sempre atreladas aos homens, cnjuges ou companheiros, como possvel perceber na

    fala de duas outras entrevistadas:

    [E3] a gente conhece pessoas que vivem s do peixe, a (identificao nominal

    suprimida) no tem marido, separada e ela no pode receber o seguro, sabe,

    tu v ela passar aqui 7 horas da manh pra ir pra salga, ela passa inverno e

    vero, todo dia limpando peixe, chega no dia do seguro ela no pode fazer. E

    tem mulher que faxineira, no querer falar das outras, que faxineira no

    centro mas no assina carteira, que o marido pescador, a ela no assina a

    carteira pra receber o seguro do inverno, e t recebendo porque mostrou a

    certido de casamento que o marido pescador.

    [E4] A minha irm vive a 40 anos com o marido e no casada com ele, no

    recebeu. 40 anos, tem filhos.

    [E3] Pessoal de Porto Alegre, porque antes os de Pelotas daqui faziam, j

    eram conhecido da gente [...] ento j sabiam, ah te conheo, faz o seguro,

    todo mundo, a trouxeram de Porto Alegre n pra fazer em 2011, um pessoal

    estranho, a chegaram aqui pra pegar um gelo aqui, uns 3 ou 4 rapaz com o

    presidente do sindicato e disseram Ah, amanh a gente ainda t a, mas quem

    no casado com pescador no vai receber, j vou dizer pra vocs, e ela disse

    Ah, mas eu sou casada a 40 anos, mas no tenho,, e eles disseram Ah no

    posso fazer nada, amanh ns tamo indo embora daqui e vocs tem at

    amanh pra conseguir um marido pescador. J pensou?

    [E4] uma falta de respeito.

    [E3] A o seguro do fim do ano que 1 ms a menos no pediram nada disso.

    Recebe 1 ms a menos, 3 meses de seguro.

    [P] Essa coisa de passar pro seguro de gua doce recente?

    [E3] Desde 2011. (sic) [E3] e [E4] Entrevistadas que administram uma fbrica de gelo na Colnia Z3, como parte de uma associao formada somente

    por mulheres, a Cooperativa Mulheres da Lagoa. / [P] Pesquisadora. Entrevista realizada em 2014.

    Desta forma, o pedido de seguro defeso de gua doce acaba por funcionar como

    estratgia para aquelas que no se enquadram no padro reconhecido pelo Estado, as

    mulheres de pescador, como so denominadas. A consequncia direta desta estratgia

    adotada a reduo de renda pois, ao invs de receber os 4 meses de seguro defeso de

    acordo com a legislao a Lagoa dos Patos, recebem 3 meses. Mas, embora a estratgia

    funcione em termos de garantir alguma renda advinda de benefcio de seguro defeso,

    descaracteriza a relao destas mulheres com o ambiente e com a atividade tradicional

    que executam, pois passam a reivindicar benefcios de uma pesca de gua doce enquanto

    so personagens da atividade pesqueira tradicional do Esturio da Lagoa dos Patos.

    Discusses sobre o caso

    A situao ocorrida no ano de 2011 no Esturio da Lagoa dos Patos caracteriza-

    se como um conflito pois evidenciou o antagonismo entre indivduos ou grupos na

    sociedade (Giddens, 2000: 732) num claro conflito de mecanismo de gesto (Charles,

  • 1992), pela poltica pblica de seguro desemprego (seguro defeso) enquanto tentativa de

    gesto do recurso pesqueiro, falha em abranger o caso das mulheres. Mas, sobretudo,

    um conflito de gnero pelas razes expostas ao longo do texto.

    Se, por um lado, a percepo de que o conflito algo negativo, uma disfuno da

    sociedade (Pasquino, 2002), ele tambm extrapola, segundo SEDH (2010), aspectos

    positivos, como o estmulo ao pensamento crtico e criativo, a melhoria na capacidade de

    tomada de decises, o respeito pelas diferenas, a promoo da auto compreenso, entre

    outros. A estratgia adotada pelas mulheres da Colnia Z3, recorrendo ao seguro defeso

    de gua doce foi uma alternativa para responder a uma situao de descaso, que diminui

    o papel das mulheres na atividade pesqueira, pois ao identific-las como mulheres de

    pescador, o Estado refora o carter de ajuda das atividades executadas por elas,

    reproduzindo a invisibilidade do trabalho realizado em mbito domstico. Mesmo quando

    uma atividade produtiva e com significado econmico, passa despercebida e

    classificada como complemento atividade do homem produtor socialmente e

    publicamente reconhecido (Leito & Leito, 2012; Sales, 2007).

    A atitude de acessar o seguro de gua doce tem consequncias negativas

    destacadas no texto, mas acaba sendo uma alternativa para escapar um pouco da

    imposio de dependncia do cnjuge, colocada pelo Estado para acessar o seguro da

    Lagoa dos Patos. A necessidade da renda advinda do seguro defeso j foi destacada em

    outros estudos, como FAO (2012) e Walter et al (20140 que demonstram a importncia

    socioeconmica do benefcio para as comunidades pesqueiras tradicionais, onde a

    suspenso do benefcio s mulheres acaba por reduzir pela metade, ou totalmente, a renda

    do ncleo familiar durante os meses de defeso.

    Desta forma, registrar o ocorrido no ano de 2011 no Esturio da Lagoa dos Patos

    e descrever as alternativas buscadas pelas pessoas atingidas nesta situao uma

    contribuio para os estudos com foco em comunidades pesqueiras, gesto da pesca e

    relaes de gnero na pesca.

  • Referncias Bibliogrficas

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