segregacao e violencia em sujeitos adolescentes
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Segregação e violência em sujeitos adolescentes
Vera Pollo1
No caderno ‘Mais’ da Folha de São Paulo, de 27 de julho próximo passado,
Slavoj Zizec concluía seu artigo nos seguintes termos:
Mais de um século atrás, em “Os Irmãos Karamazov”,Dostoievski lançou um aviso contra os perigos do niilismomoral ateu “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Alição que nos ensina o terrorismo de hoje é que, pelo contrário,se existe um Deus, então tudo – até mesmo explodir centenasde espectadores inocentes – é permitido àqueles que afirmamagir diretamente em nome desse Deus, como instrumento deSua vontade.
Em outras palavras, a lição que nos ensina o terrorismo de hoje é também a lição
que procuraram ensinar-nos Freud, em primeiro lugar, e Lacan, algum tempo depois.
Pois se nos dispusermos a reler os textos em que Freud indaga o que mantém os homens
unidos, verificaremos de imediato que não só ele nunca acreditou na existência de uma
pulsão social primária, uma força que nos aproximasse espontaneamente uns dos outros,
como concluiu que a grande maioria dos homens deseja mesmo é ser dirigida,
comandada e, se possível, até mesmo maltratada.
Freud havia lido Darwin e dele extraíra a existência de uma horda primeva. Por
outro lado, sua prática clínica, isto é, as análises que vinha conduzindo chamavam cada
vez mais sua atenção para a universalidade da tentação ao crime, inclusive como forma
de buscar o castigo e o alívio para uma culpa que não se sabia de onde vinha. Nas linhas
finais de Totem e tabu (1913), ele assinala as duas proposições das quais partiu: 1) a
existência de uma mente coletiva em que ocorrem processos mentais exatamente como
acontece na mente de um indivíduo; 2) a suposição de que o sentimento de culpa por
1 Psicanalista; professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga deAlmeida; psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, HUPE/UERJ; analista membro daEscola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
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um determinado ato persistiu por milhares de anos em pessoas que não só não o haviam
praticado, como não podiam sequer ter tido conhecimento do mesmo.
Freud então conclui que só há sociedade com base na cumplicidade de um crime
comum a seus membros (197.., p.174) e que a função social do sacrifício reside no
estabelecimento de “um vínculo sagrado que cria e mantém ativo um elo vivo de união
entre os adoradores e seu deus.”(Idem, ibid.)
Em Televisão, 1973, Lacan assevera que Totem e tabu é o único mito de nossa
era, demonstrando que, como todo mito, ele tem a natureza de uma criação simbólico-
imaginária destinada a dar conta de uma emergência do real. O mito freudiano não nos
ensina propriamente como se dá a humanização dos seres falantes, mas como nós nos
asseguramos dos fundamentos de nossa humanidade passando pelo assassinato do pai e
pelo complexo de Édipo. (Sauret 2000, p. 118)
Totem e tabu está longe de esgotar as elucubrações freudianas sobre os
fenômenos de segregação. Em Psicologia das massas e análise do eu, por exemplo,
Freud (1920) esclarece uma importante e inesperada fonte de segregação: o narcisismo
da pequena diferença, isto é, o pequeno traço de gozo que nos distingue daqueles
indivíduos que, sob todos os outros aspectos, são os mais semelhantes a nós.
É a mesma resposta que Lacan dá, também em Televisão, quando lhe indagam
de onde lhe vinha a segurança com que profetizava a escalada do racismo e por que
razão ele considerava importante dizer o que pensava. Cito-o: “Deixar a esse Outro seu
modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando
como um subdesenvolvido” (Lacan 1993, p. 58)
Para Freud, uma comunidade de irmãos, ou seja, uma sociedade fraterna só
poderia ter início mediante um ato de violência: o assassinato do pai déspota. A partir
de então, a sociedade fraterna se sustentaria na sublimação da libido homossexual. Mas
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esta vicissitude da pulsão sexual estaria fadada a fracassar de tempos em tempos. Por
isso, de forma análoga ao que acontece com sujeitos paranóicos, o fracasso da
sublimação daria livre curso às manifestações da pulsão de morte (pulsão agressiva ou
de destruição) que, por sua vez, se estenderiam das idéias e fantasias persecutórias de
um Outro gozador às passagens ao ato mais violentas e/ou cruéis.
Em seu livro A subjetividade por vir. Ensaios sobre o voz obscena, Zizec chama
a atenção para o fato de que a sublimação oscila entre dois pólos: em um, é o abjeto que
emerge repentinamente sob o belo idealizado, como a carne podre surgindo sob a visão
da Dama do amor cortês; em outro, “é a virgem sagrada que se revela no coração da
sedutora dissoluta”, ou seja, é a sublimação inesperada. Do mesmo modo, observa ele, a
compaixão romântica bascula em direção a “uma compaixão fria que ensina a resistir à
necessidade urgente de ajudar os outros.” (Zizec 2006, p. 149). Esta é a lição de Brecht
contra Wagner, ressalta Zizec.
Em sua correspondência com Einstein, Freud conclui que ambos pertencem a
uma minoria de homens pacifistas. Pois, como dissemos acima, a massa não almeja
necessariamente o seu próprio bem-estar. Na esteira de Freud, como costumamos dizer,
Lacan prevê o fracasso das utopias comunitárias. Aliás, ele o prevê exatamente vinte
anos antes da queda do muro de Berlim, ou seja, em 1969. Em seus termos, a
segregação nada mais é do que a recusa de uma, e apenas uma, diferença muito bem
delimitada, isto é, a recusa de um modo de gozar.
Quando Lacan relê Totem e tabu, com a visada de indagar não tanto o desejo do
analista, mas o desejo do homem Freud e, conseqüentemente, indagar também o que há
no avesso do discurso do analista, já não pode furtar-se a uma certa ironia para com o
conteúdo do mito freudiano. Porém, é a estrutura do mito que lhe interessa. No mito,
salienta Lacan, o pai morto nada mais é do que um operador estrutural, uma advertência
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contra o possível retorno de um pai capaz de sacrificar o próprio filho: “o velho orango”
(Lacan 1992, p.107)
Este mito expressa, então, o esforço de Freud em posicionar o pai como Um da
exceção, sua vontade de forçar a lógica e, quiçá, impor um tempo de pacifismo. Pois “
as energias que empregamos em sermos todos irmãos provam bem evidentemente que
não o somos.”(Idem, ibid.) Atrocidades podem ser revestidas por um “humanitarismo
sentimentalóide de encomenda”. Todo laço social não tem outro objetivo senão o de
frear o gozo, barrar o suposto direito que teríamos de fazer do corpo do semelhante o
que bem nos aprouvesse.
Está ainda fresca em nossa memória a terrível lembrança do assassinato dos
jovens David, Wellington e Marcos por onze membros do Exército encarregados de
proteger os moradores do morro da Providência, na cidade do Rio de Janeiro. “O
inimaginável acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior [...] O absurdo é uma
das máscaras do mal”, escreve Kehl em um de nossos jornais de grande circulação. Na
opinião da autora, além disso, “acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar
alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós”.
Nunca é demais insistir no fato de que, na sociedade do capitalismo avançado, é
o direito de não ser incomodado, direito a uma distância sadia em relação aos outros,
que emerge como o mais fundamental dos direitos do homem. Mas é um direito
paradoxal em sua própria dialética, comprova-o o grande êxito de programas de
televisão do gênero Big Brother. O programa expressa a aceleração do direito não
apenas de vigiar meu semelhante, até mesmo o de fazer dele um objeto da minha fruição
escópica, como também o de votar por sua exclusão. Ao espectador oferece-se o gozo
do voyeur, e também o do exibicionista. Em suma, o gozo escópico o mais completo
possível. Contudo, o problema é que não há aí um ponto de basta. A crueldade é
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explicitamente convocada, quando é facultado ao espectador o exercício simultâneo de
um voto de exclusão. Ganho, assim, o direito de contribuir para a ruptura brusca de um
sonho, o direito de impedir que o pequeno outro em que me espelho se torne um outro
real diferente de mim, possivelmente um pequeno “mestre capitalista”.
Enquanto a crueldade é expressamente um atributo da instância do supereu, que
me ordena fruir daquilo que devo fazer, a violência está, com mais freqüência, na
própria natureza do objeto presente no laço social. Como ressalta Zizec, uma das
características mais marcantes da cultura em que vivemos é a de que o objeto deve ser
um produto que contenha o agente de sua própria negação: a “cerveja sem álcool”; o
“café descafeinado”; o “chocolate laxativo” e assim por diante. Até mesmo o sexo se
inscreve como produto nessa série, devendo ser o “sexo seguro”, com camisinha, sem
contato direto, possivelmente sem prazer. E a “tolerância politicamente correta” só
conduz a uma “crença descafeinada”, isto é, que não fere mas tampouco engaja quem
quer que seja. Em suas palavras, “o Lacan dos últimos anos tinha inteira razão ao
reservar o termo ‘ato’ para alguma coisa mais suicidária e real do que o ato falado.”
(Idem, p. 25)
Todo aquele que trabalha em um ambulatório público do Rio de Janeiro conhece
de perto a segregação e a violência que experimentam os adolescente e jovens
moradores das favelas.
Com treze anos Marcos é trazido ao ambulatório do NESA por sua mãe, que diz
temer por seu futuro. Moram aos pés de uma favela de traficantes e Marcos, que falta
freqüentemente à escola, está sob a ameaça de ser expulso desta por pertencer a um
grupo totalmente indesejável aos olhos da diretora. A mãe desconfia de que ele se
tornou um “avião”. O pai é motorista de uma casa de show e, segundo ela, não tem
nenhuma ascendência sobre o filho. Sempre mal-humorado, o jovem é de poucas
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palavras, lê e escreve muito mal e parece não ter ambição. No entanto, aceita vir com a
mãe ao ambulatório. Acredita ter uma tarefa a cumprir e expressa claramente seu
aprisionamento na demanda do Outro: “Tenho que vingar a morte de meu tio!”.
Comenta que o considerava como um irmão, devido à pequena diferença de idade, e
acrescenta que sabe por que o tio morreu, pois havia se envolvido com drogas, motivo
pelo qual foi assassinado aos dezoito anos.
No início de uma sessão de atendimento, ao ser indagado sobre a razão do
curativo que traz em um dos ombros, responde sucintamente: “um tiro me pegou de
raspão”. Atormentado pelo peso das palavras, que o fazem calar, e para fugir do
aprisionamento no Desejo da Mãe, resta-lhe encenar sua própria versão do drama de
Hamlet: receber o fantasma do tio morto que clama por vingança e aguardar a boa hora
em que irá pagar com a própria vida a morte do duplo de si mesmo.
Poderíamos citar muitos outros exemplos, e cada um dos quais teria
evidentemente um traço de singularidade. Entretanto, como já sugerimos, há algo que
reúne esses jovens em um sub-conjunto dentro do conjunto maior, que é a sociedade em
que vivem. Este traço de gozo os transforma em segregados da sociedade e em objetos
assujeitados à violência do Estado. Como bem mostrou Nomine (2001), em A
adolescência ou a queda do anjo, a mesma sociedade que, na infância, os fabrica,
posteriormente os exclui.
Por isso termino com as palavras de outro adolescente que procurou o NESA e
lá se trata de alguns sintomas fóbicos e outros conversivos: “É bom que o exército
ocupe a favela, porque assim dá pra brincar na rua.” Será? Talvez, apenas, enquanto não
levar um tiro.
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Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. (1913 [1912-13]) “Totem e tabu” In: Obras Psicológicas
Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972-1976,
vol.XIII
----------------------- (1921) “Psicologia de grupo e a análise do ego” In: Obras
Psicológicas Completas. Op. cit., vol.XVIII
------------------------(1939[1934-38]) “Moisés e o monoteísmo: três ensaios” In:
Obras Psicológicas Completas. Op. cit., vol. XXIII
LACAN, Jacques (1969-1970) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
-------------------- (1973) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
NOMINÉ, Bernard. “Adolescência ou a queda do anjo”. In: Revista Marraio.
Formações Clínicas do Campo Lacaniano, n.1.Rio de Janeiro, 2001.
SAURET, Marie-Jean. Psychanalyse et Politique. Huit questions de la
psychanalyse au politique. Presses Universitaires du Mirail, 2000.
ZIZEC, Slavoj. A Subjectividade por Vir. Ensaios Críticos sobre a Voz Obscena.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, Setembro de 2006.
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