secretaria do planejamento, mobilidade e …desenvolvimento regional fundaÇÃo de economia e...

157

Upload: others

Post on 10-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

SECRETARIA DO PLANEJAMENTO, MOBILIDADE E ISBN 978-85-7173-134-9

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA

Siegfried Emanuel Heuser

OS CAMPONESES DO MORRO ALTO: FAMÍLIA E TRABALHO NO LITORAL NORTE DO RIO

GRANDE DO SUL NO PÓS-ABOLIÇÃO (1890-1930)

Rodrigo de Azevedo Weimer

Porto Alegre, janeiro de 2016

SECRETARIA DO PLANEJAMENTO, MOBILIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser CONSELHO DE PLANEJAMENTO: André F. Nunes de Nunes, Angelino Gomes Soares Neto, André Luis Vieira Campos, Fernando Ferrari Filho, Ricardo Franzói, Carlos Augusto Schlabitz CONSELHO CURADOR: Luciano Feltrin, Olavo Cesar Dias Monteiro e Gérson Péricles Tavares Doyll DIRETORIA

PRESIDENTE: IGOR ALEXANDRE CLEMENTE DE MORAIS DIRETOR TÉCNICO: MARTINHO ROBERTO LAZZARI DIRETOR ADMINISTRATIVO: NÓRA ANGELA GUNDLACH KRAEMER

CENTROS ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS: Vanclei Zanin PESQUISA DE EMPREGO E DESEMPREGO: Rafael Bassegio Caumo INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS: Juarez Meneghetti INFORMÁTICA: Valter Helmuth Goldberg Junior INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO: Susana Kerschner RECURSOS: Grazziela Brandini de Castro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecário responsável: João Vítor Ditter Wallauer — CRB 10/2016 Revisão bibliográfica: Kátia Midori Hiwatashi Composição, diagramação e arte final: Isadora Santos do Nascimento (estagiária) Capa: Laura Wottrich Foto da capa: Camponeses negros do Caconde, gentilmente cedida por Edite Maria da Rosa. Como referenciar este trabalho: WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016.

W422c Weimer, Rodrigo de Azevedo.

Os camponeses do Morro Alto : família e trabalho no litoral norte do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930) / Rodrigo de Azevedo Weimer. - Porto Alegre : FEE, 2015.

156 p. : il. ISBN 978-85-7173-134-9 1. Escravidão - Rio Grande do Sul. 2. Escravo - História - Rio

Grande do Sul. 3. Trabalhador rural - Rio Grande do Sul. I. Funda-ção de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser. II. Título.

CDU 326(816.5)

Para Wally.

Para Diva e Aurora.

Agradecimentos

O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa realizada

por ocasião de meu doutoramento; por isso, nada mais justo do que

apresentar minha gratidão junto àqueles que me acompanharam na-

quela jornada. Em primeiro lugar, esta pesquisa deve muito à minha

orientadora, professora Hebe Mattos, que durante meu doutorado na

Universidade Federal Fluminense deu todos os direcionamentos neces-

sários e adequados para o processo criativo.

Agradeço a Álvaro Nascimento, Martha Abreu, Verena Alberti,

Paulo Moreira e Jean Hébrard, que muito enriqueceram este trabalho

com suas participações nas bancas de defesa de qualificação e da

tese. Também registro minha gratidão em relação ao CNPq, que finan-

ciou a pesquisa da qual este e-book é desdobramento, à CAPES e à

FAPERGS, que possibilitaram a continuidade do trabalho, durante pós-

doutorado realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Alguns professores me acompanham desde há muito, e neles me

espelho e busco ser digno de seus exemplos e ensinamentos. Em pri-

meiro lugar, Paulo Moreira e Daisy Barcellos. Porém, durante o período

de doutoramento a esse “time” campeão se agregou Martha Abreu. A

eles, minha gratidão.

Agradeço a Carlos Eduardo da Costa pela interlocução nos deba-

tes sobre o período pós-Abolição.

Agradeço, sobretudo, a todos integrantes da comunidade negra

remanescente de quilombos de Morro Alto — em especial os descen-

dentes da família de Felisberta, que pacientemente compartilharam

comigo sua sabedoria e suas memórias.

Agradeço também à Fundação de Economia e Estatística Siegfried

Emanuel Heuser pelas excelentes condições de trabalho e pela oportu-

nidade de publicação deste e-book.

Um agradecimento especial para os meus amigos que estiveram

presentes ao longo do trabalho.

Sumário

Abreviaturas utilizadas ................................................................... 6

1 Prólogo ........................................................................................ 7

2 Considerações iniciais ................................................................ 10

3 Leituras do pós-Abolição ............................................................. 24

4 Família ........................................................................................ 35

4.1 Felisberta e Manoel Inácio Marques ..................................... 35

4.2 Filhos de ventre-livre, filhos livres e seus padrinhos ............. 43

4.3 Relações consensuais e noções locais de legitimidade ....... 52

4.4 Estratégias matrimoniais ....................................................... 64

4.5 Dinâmicas de trabalho familiar .............................................. 72

5 Trabalho ...................................................................................... 90

5.1 A folha de partilha ................................................................. 90

5.2 Aturar desaforo ..................................................................... 98

5.3 Aprender o trabalho na terra, o trato da cana ....................... 103

5.4 Quando os vizinhos se ajudam ............................................. 110

5.5 Carpinteiros, campeiros e tropeiros do Morro Alto ................ 115

5.6 Os camponeses e a forca ..................................................... 125

6 Considerações finais ................................................................... 131

7 Epílogo ........................................................................................ 138

8 Fontes .........................................................................................

8.1 Escritas .................................................................................

140

140

8.2 Orais ...................................................................................... 142

Referências .................................................................................... 144

Anexo ............................................................................................. 156

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 6

Abreviaturas utilizadas

AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Ale-

gre

AHO – APASF – Arquivo Histórico de Osório – Arquivo Público

Antônio Stenzel Filho

AM – Administração Municipal

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

COA – CA – Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Ar-

roio

CP – CA – Cartório da Provedoria de Conceição do Arroio

IJCSUD – CHF – Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias,

Centro de História da Família

It. – Item

LABHOI – UFF – Laboratório de História Oral e Imagem da Universida-

de Federal Fluminense

Mcf. – Microfilme

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 7

1 Prólogo

Lá no Morro Alto... Pois então, dotori, é lá pra quem vai pro Maqui-

né. Cheio de lagoa no caminho, do outro lado os morros: Morro Alto, do

Chiquinho, da Vigia... Muito bonito. Lindo que é uma barbaridade. Lá

chegando, à esquerda tem um banhado. É o Aguapés. Se quiser, pode

entrar pra dentro e procurar seu João Catarina, vovô Galdino. Eles vão

le informar. Voltando pra estradinha, tem as Barranceiras, uma faixa

fininha junto da lagoa da Pinguela. Eu só passo aí de dia, não senhori,

de jeito nenhum passo de noite. Tem aparição nas ruínas da senzala,

nas pedras da casa grande dos escravos. Bá, não vou lá de jeito ma-

neira. Cruz credo. Mas tem gente corajosa, que aí mora. Ih! O pessoal

dos Maria, dos Hortêncio, a velha Domiciana, a família Reginaldo...

Gente muito da boa. Ali tem a Lagoa das Negas. Às vezes aparece

fantasma de escravo judiado que cruza a lagoa de canoa. O senhori

não acredita, né. Pois eu que não me meto ali. Com assombração eu

não me meto. Cruz credo.

Agora a gente chegou no Morro Alto. Então, aqui nessa entrada de

morro, tem várias famílias. Tem a dona Olina. Mulher boa, pois tudo

que é criança ela acolhe e cria. Lá pra cima do morro tem a tia Tereza e

seu Manoeli do Céu. Tudo herdeiro dessa terra de uso e fruto. Pois não

é que uma senhora, solteirona, muito boa, deu as terras pros escravos?

Depois tem o tio Romão, que eu não atino se é herdeiro ou não, mas é

dessa mesma gente. Acho que é pai da dona Tereza, tio ou primo da

dona Eufrásia, mãe da tali de Olina. O irmão dela mora mais lá pra bai-

xo, parece que também é herdeiro nesse negócio, vovô Merêncio, pros

lados da Faxina. Descendo mais pra lá tem um monte, pois tem a tali

de Gasparina, a tali de Cira, a tali de Silvana... Umas quantas velhas.

Enquanto aqui no Ramalhete tem o Belisar e mais uns outros.

Isso, pois não, mais adiante tem o Ribeirão pro lado do morro, o

Borba pro lado da lagoa. Não é que tem os Fortes, a gente da Cipria-

na? São morenos, mas são fazendeiros. Ricaços. Não vê que têm terra

pro lado da lagoa e também do morro? Lá na beira da lagoa também

tem o seu Miligirdo, é moreno mas também é meio italiano. A gente

dele mora logo ali adiante, no Espraiado. Seu Valério, aqui... Deu casa

pro tio dele, pro primo. Mas antes, cá pro Ribeirão, tem uns Tereza

perdidos por aí, ali ainda morava dona Maria Tereza, mulher de cora-

gem, não teve medo dos fantasmas que tinham na ruína e ainda cavou

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 8

um pote de ouro. Deus o livre, muito valente. Mereceu, tão boa, tão

aprecisada. Bá! Mas também, criava sozinha uma criançada... Se foi-se

daqui! Diz até que foi pra não arrumar encrenca com as almas pena-

das.

Aí ficaram os vizinhos, o pessoal do seu Tiófi, que por sua vez é

parente daquela gente da Barranceira. Dona Jeroma irmã de Dona

Cesara. Mais adiante o velho Brás, que é parente do pessoal dos For-

tes. Não, o senhor não repare não que aqui todo mundo é parente. Eu

mesmo tenho parentada aqui por tudo... É assim desde o tempo do

cativeiro. Tem ainda seu Tibério, irmão do Belisar, tem o velho João

Colona, diz que degolou uns quantos maragatos na guerra... Nem me

meto, não quero saber. São vizinhos muito gente boa, amiga, generosa.

Isso que importa. Daí a gente chega no Espraiado, tem uns gringos

perdidos por aí, que não vou le jurar... Seu fulano pra cá, seu fulano pra

lá. Não sei se tão por bem, nem se tão por mali. Tem fofoca de rebalda-

ria, mas isso já não sei. Nossa! Muita coisa braba arrodeando pelas

escondidas, como diz o outro. Barbaridade. Dizem. E lá longe, atrás do

morro, tem a negrada da Prainha... O tali de Hilório, que é da espada, o

tio Lula, que é chefe do maçambique... Antônio Gaspar, tamboreiro. O

que? Não conhece? Um dia levo o dotori na festa de Nossa Senhora do

Rosário pra ver, coisa mais linda. Eu sou muito devoto, porque ela é a

mãe de Deus e padroeira dos morenos.

Mas antes tem aqui... A família desses que falei, quem, esses mo-

renos italianos. Aqui no Espraiado. E também a família da tia Bebeta.

Sim, sim, acho que é parente. Deve de ser. Longe. A vó dela veio da

África. Hoje tá aqui. Felisberta, o nome. Viúva, do senhori Manoeli Iná-

cio. Esses dois tenho certeza de que eram cativeiro, mas não me meto.

A família não gosta que fale no assunto. Aí morreu o velho, o guri mai-

or, Deodício, ficou cuidando do terreno. Da colônia e da irmandade. Do

Lasilau, o mais novo. E as gurias, que aos poucos foram casando. Do-

na Porquéria, dona Maria, dona Mercedes. Dona Rosalina se foi-se pra

vila da Conceição. Tem ainda as solteironas. Ingerca, Raqueli. Dona

Ingerca é mãe solteira, Deus me perdoe. Mas as duas muito sérias,

senhoras direitas, distintas. Então, Seu Manoeli Deodício casou com

dona Clara, filha do Miligirdo da lagoa. Tem uma carrada de gurias.

Gente trabalhadora, bá, como trabalham, fizeram a proeza de comprar

um pedaço de terra logo depois da forraria. É, uns dois anos mais tar-

de. Hum? Se o senhori tem dificuldade pra entender quem é quem,

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 9

quem faz o que, o que aconteceu com cada um, sugiro que anote num

papeli, assim dotori não esquece... Cabeça fraca de quem precisa es-

crever, que eu não me esqueço nada. Geneaquê? O senhori vem com

cada uma...

Sim, parece que os outros também foram escravos. Deus o livre, ô

vida triste. Cativo era que nem cachorro, não tinha direito a nada. Tudo

judiado. Mas um dia Nossa Senhora do Rosário trouxe a forraria. Quem

deu a carta foi a guria do nhonhô, essa mesma solteirona que deu as

terras. Foi aí que começou o maçambique, justamente que prometi ao

sinhô de levar pra ver lá na vila da Conceição. O dotori vá se progra-

mando, porque é em janeiro. A maior parte aqui, quem não foi escravo

nasceu no ventre-livre. Uns plantavam cana ou iam pra roça, outros

criavam os bichos, outras cuidavam da casa do sinhô, teve quem tro-

peasse: juntando dinheirinho, alguns compraram terreno, outros ganha-

ram, outros foram ficando onde os antigos sempre estiveram. Mas nin-

guém gosta muito de tratar desse assunto.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 10

2 Considerações iniciais Seja bem-vindo! A casa é de pobre mas aqui tudo é feito

no capricho. Aceita um cafezinho? Já arranjo uma mistura

pro senhori. Mas então, em que posso le ajudar?

Tratemos do assunto sobre o qual os ex-escravos da região do

Morro Alto não queriam falar. Apresentados por um guia em inícios do

século XX, obtivemos um panorama dos moradores dali naquele anta-

nho. Através de suas histórias — particulamente as da família dos ex-

escravos Felisberta e Manoel Inácio (que aqui foi escolhida como forma

de enfocar o segmento social de que faziam parte) — conheceremos

melhor o funcionamento do trabalho familiar, na roça e na criação, du-

rante a Primeira República. Mais história social do que história econô-

mica, logo adiante descobriremos, contudo, que são duas coisas que

não podem ser separadas, em especial no período e comunidade tradi-

cional em questão; sobretudo quando o assunto é família e trabalho.

Em lugar da quantificação massiva de fontes seriais optou-se pela rea-

lização de entrevistas de história oral e pela análise qualitativa de do-

cumentação esparsa.

Veremos que, com efeito, trata-se de segmento populacional invi-

sibilizado na sociedade sul-riograndense, de onde resulta em uma

quantidade de documentos disponíveis demasiadamente modesta para

aplicação de metodologia serial. O e-book inclui trechos da minha tese

e de artigos apresentados em congressos científicos, mas foram rees-

critos de forma a integrá-los em uma narrativa coesa, organizada em

torno dos eixos “família” e “trabalho”. Há material inédito, e o restante

sofreu ajustes e reestruturações. Esses eixos foram investigados em

referência a um momento no qual se operava a passagem de uma eco-

nomia solidária, amparada na ajuda familiar e vicinal, para outra já pau-

tada por transações monetarizadas, maior ligação com o mercado, tra-

balho temporário e circulação mais intensa de mercadorias.

Nos anos de 2001 e 2004 envolvi-me, respectivamente, na partici-

pação em equipes responsáveis pela elaboração dos laudos de reco-

nhecimento das comunidades de Morro Alto e Família Silva como “re-

manescentes de quilombos”, nos termos do artigo 68 dos atos das dis-

posições constitucionais transitórias. Elas situam-se, cada qual, na divi-

sa dos municípios de Maquiné e Osório, no litoral norte do Rio Grande

do Sul, e no bairro Três Figueiras da capital gaúcha. Esse dispositivo

legal oferece a garantia de titularização de suas terras para comunida-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 11

des negras tradicionais, e a ele recorreram tais grupos em situação de

conflitos fundiários diante dos quais figuras jurídicas como o usucapião

revelaram-se pouco eficazes. Em seu caso, o expediente constitucional

pôde servir como ferramenta de efetivação de direitos. Este livro resul-

ta, ainda que de forma mediada, e não diretamente, dos mencionados

esforços de pesquisa.

Na elaboração desses estudos de reconhecimento, veio à tona um

crescente incômodo: havia um evidente lapso na bibliografia acerca do

tema, particularmente no que toca ao meio rural do Rio Grande do Sul.

Havia muitas coisas escritas acerca do período escravista — o que era

considerado domínio de historiadores — e sobre a situação da popula-

ção negra na contemporaneidade — domínio dos antropólogos, mas

muito pouca sobre o ínterim, em especial no que toca aos negros ru-

rais. Estarrecido com o enorme silêncio dedicado ao que continha no

intervalo de tempo de um século, não pude deixar de atribuí-lo a um

racismo implícito na negação da historicidade da população negra (ao

menos, na condição de sujeitos de plena liberdade e exercício de cida-

dania). De lá pra cá, muita água rolou, e a temática dos negros posteri-

or à Abolição da escravidão tornou-se assunto de crescente interesse

entre os historiadores, culminando na criação de Grupos de Trabalho

acerca de Emancipações e pós-Abolição, na ANPUH regional e nacio-

nal (Associação Nacional de História).

Assim sendo, a partir de então tomei como foco de pesquisa diri-

mir itinerários negros nesse pós-Abolição tão mal conhecido em um

estado que se pretende “europeu”. Parti de uma questão ingênua, mas

pertinente quando a população negra “some” da bibliografia: o que

aconteceu com os antigos cativos depois que acabou a escravidão?

Investiguei, em minha dissertação de mestrado, alguns caminhos e

descaminhos tomados na última década do século XIX na serra gaúcha

(WEIMER, 2008). Agora apresento, neste e-book, algumas questões

que podem servir para se conhecer alguns aspectos da vida da primeira

geração nascida após a escravidão no litoral norte do Rio Grande do

Sul.

O presente trabalho corresponde, de certa forma, ao meu projeto

inicial de doutoramento. Ambicionava, então, a escrita, através da histó-

ria de uma família de Morro Alto, de itinerários negros na primeira gera-

ção nascida após a escravidão; de acordo com as preocupações ante-

riormente mencionadas, entender “o que aconteceu” depois que se

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 12

acabou a escravidão. O foco, pois, era no campesinato negro pós-1888.

As dimensões da pesquisa, contudo, foram se avolumando, de maneira

que acabei por abarcar quatro gerações — os escravos, seus filhos,

netos e bisnetos. A ênfase acabou por recair na memória acerca de

suas experiências sociais, mais do que nessas últimas propriamente

ditas. Por meio da pesquisa em história oral, a problematização da

memória necessariamente se impôs como foco de reflexão.

Neste e-book, seguiu-se utilizando fontes orais — as mesmas en-

trevistas realizadas por ocasião do doutorado, cruzando-as com fontes

escritas esparsas, obtidas em arquivos públicos estaduais e municipais,

bem como microfilmes de registros civis e de batismo sob a guarda da

Igreja Mórmon, e também documentos em poderes dos familiares. Para

a realização desse levantamento, bastante falhado em virtude da in-

completude das séries documentais, não se fugiu à metodologia pro-

posta por Ginzburg e Poni (1991a): perseguir, nos corpos documentais,

os nomes dos integrantes da família analisada a fim de flagrá-los em

diversas situações de atuação social, nutrindo assim a pretensão de

reproduzir por meio do trabalho documental a pluralidade de situações

e complexidade de atuações individuais com as quais o antropólogo se

defronta no trabalho de campo. Procurou-se, portanto, reconstituir a

malha fina do social.

Entendem-se as reminiscências dos entrevistados, sempre, como

um esforço contemporâneo de rememoração e, portanto, orientadas por

questões e preocupações da atualidade. É evidente — não eximo meu

papel — que esse diálogo foi mediado pelo historiador, que ajudou a

direcionar as entrevistas através de questionamentos e preocupações

historiográficas prévias. Eis a razão pela qual Portelli (2010) destacou,

com justeza, o caráter dialógico da produção documental na história

oral. Mas também é claro que o processo de entrevista sempre é sur-

preendente e os depoentes frequentemente deixaram o pesquisador

admirado ou subverteram seu questionário.

Dessa maneira, foram utilizadas para a construção deste e-book

tanto fontes escritas quanto fontes orais, tendo como perspectiva não

hierarquizá-las ou cotejá-las no sentido de conferir a uma o estatuto de

“verdade” ou de assumir como historiador o poder de decisão sobre seu

caráter de veracidade ou falsidade. Como bem assinalaram Arruti

(2006) e Mello (2012), não se trata de tratar a memória como “fonte” de

dados objetivos, por um lado, nem de reduzi-la à sua dimensão simbóli-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 13

ca ou mitológica. Sublinho, antes, as convergências entre o “objetivo” e

o “mítico”, e onde existam divergências entendo ser o papel do historia-

dor problematizá-las, e não preencher lacunas ou ainda contrapô-las

como juiz em um tribunal de “verdade”.

Por tratar-se de um grupo subalterno e de dificultoso acesso à pa-

lavra escrita, os relatos passados de geração em geração foram a for-

ma mais significativa de conservação da memória grupal e familiar.

Assim sendo, a história oral é fundamental para perceber a apreciação

dos sujeitos sociais sobre os processos vividos, ainda que no caso em

tela não tenham sido vivenciados diretamente pelos entrevistados (a

não ser quando falam de sua infância), e sim por meio de uma tradição

à qual se reportam e na qual foram socializados. Não se pode abstrair o

fato de que os entrevistados possuem um repertório de lembranças,

“causos”, anedotas, narrativas que constituem sua percepção do pas-

sado; seria obtuso considerá-los irrelevantes ao historiador. Existem

motivos contemporâneos que possibilitam a reprodução, reiteração,

ressignificação tomadas por essas narrativas no presente. Assim sen-

do, os significados assumidos pelo passado, ou mesmo o interesse por

ele, nunca são alheios às necessidades atuais (WEIMER, 2013).

A geração de filhos de escravos, elencada para análise, é particu-

larmente delicada no que toca ao problema das fontes. Seus pais, es-

cravos, que figuravam na documentação de propriedade de seus se-

nhores, como testamentos e inventários, ou que através do nome de

seus donos podiam ser facilmente individualizados em documentos

paroquiais, podem ser situados sem maiores dificuldades — o nome do

senhor funciona como um referencial, desempenha o papel de índice

nominal propugnado por Ginzburg e Poni. No que diz respeito aos filhos

de escravos, ou até mesmo aos próprios cativos depois de 1888, é

necessário uma peneira fina para encontrá-los na documentação escri-

ta, “detectando-os” através de indícios sutis que aparecem de forma

rarefeita em corpos documentais diversos. Muitas vezes são identifica-

dos por meio, apenas, do prenome — tive a sorte, aliás, de Felisberta

ser um prenome incomum dentre os registros coetâneos, e Manoel

Inácio, um nome composto. De toda forma, o aporte das fontes orais foi

essencial para a percepção ou confirmação desses tênues sinais.

Por outro lado, os entrevistados geralmente me falaram das expe-

riências de seus avós escravos com uma frequência muito maior do

que das de seus pais camponeses, quer porque julgassem que eram as

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 14

experiências escravistas aquelas que seriam interessantes ao pesqui-

sador, quer porque seus próprios interesses se direcionassem a um

Manoel Inácio e uma Felisberta heroicos, em lugar de pais e mães para

eles triviais. Se a experiência de ter trabalhado em um relatório de re-

conhecimento facilitou a entrada para trabalho de campo, por outro lado

obstaculizou a aproximação da realidade do pós-Abolição, já que, su-

punham, eram os escravos que deveriam me interessar. Assim sendo,

a busca por uma convergência possível entre o falado e o escrito reve-

lou-se a melhor — se não única? — possibilidade de acesso à historici-

dade da família estudada. Diante da escassez e da dificuldade de “loca-

lizar” esses sujeitos sociais, não pude (nem quis) me dar ao luxo de

descartar qualquer tipo de fonte como inadequada.

Ainda que não abrindo mão totalmente da história da memória —

isto é, as formas diacrônicas de construção e manifestação dos modos

de lembrar — para a qual direcionei meu interesse e meu olhar na tese

de doutorado, retorno aqui à história social como uma espécie de ajuste

de contas comigo mesmo, como uma maneira de retomar um projeto de

investigação parcialmente abandonado. Ainda que boa parte das pági-

nas que os leitores aqui encontrarão esteja, mesmo que bastante alte-

radas, contida em meu trabalho de doutoramento, ali a descrição das

experiências vividas funcionou mais como um quadro no qual procurei

articular historicamente os processos mnemônicos do que, propriamen-

te, dignas de interesse em si (TRAVERSO, 2005). Diversos trechos

foram merecedores de reescrita, síntese ou novas interpretações, mas

também vários elementos novos foram agregados. Organizadas através

dos eixos família e trabalho1 — em consonância com as preocupações

recentes da bibliografia especializada. Cada tema será discutido em um

capítulo, precedidos por outro que analisa o “estado da arte”.

História social pode ser facilmente associada ao legado de Edward

Palmer Thompson e, de forma mais genérica, do conjunto de autores

britânicos que procuraram renovar o marxismo por meio da ênfase na

ação subjetiva de atores sociais, no mais das vezes, coletivos. Suplan-

tando o individual, não enfocando a classe social, analiso um plano

1 A distinção entre ambos os aspectos é, em larga medida, arbitrária, porque na eco-

nomia camponesa o uso da mão-de-obra é essencialmente familiar. Por exemplo, te-

mos um subcapítulo sobre o trabalho familiar que poderia, com adaptações, estar em

ambos os capítulos. O mesmo pode ser dito do subcapítulo sobre a dinâmica das he-

ranças.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 15

intermediário, adequado à escala de problematização de meu estudo: a

esfera familiar. Tal era, não há dúvidas, o sujeito social fundamental em

um contexto de pós-Abolição (RIOS, 1990; WISSENBACH, 1998;

RIOS; MATTOS, 2005).

Os marxistas britânicos, com sua history from below, colocaram

em pauta, muitas vezes, os condicionamentos culturais da ação eco-

nômica, a exemplo de Thompson (1998a), que demonstrou haver uma

regulação, nesses termos, do preço do trigo e uma avaliação subjetiva

e moral quanto à justeza do mesmo. Creio que, aqui, eles se aproxi-

mam de Polanyi, que sustentou que, em sociedades não-capitalistas,

tradicionais, como aquela aqui examinada,2 é impossível desvincular

um plano propriamente econômico do funcionamento do restante da

sociedade. Fatores por nós considerados “não-econômicos” intervi-

nham permanentemente na produção e na circulação. A autonomização

do mercado, assim, seria uma criação historicamente muito recente

(POLANYI, 2000).3 Sendo assim, se os aspectos elencados para análi-

se podem ser situados por um historiador como história social, eles

também são imprescindíveis para o entendimento de seu comporta-

mento econômico — ou, para ser mais preciso, para a compreensão

daquilo que nós, no século XXI, identificaríamos como econômico.

Conforme dedicaremos todo um subcapítulo a um autor que

acompanhará os leitores ao longo do e-book, para Chayanov (1974) a

família seria um núcleo autossuficiente de produção e consumo. Se é

assim, diversas questões organizativas da unidade familiar que serão

examinadas encontram-se no cerne de sua atividade econômica. As

estratégias matrimoniais, a situação das crianças, as noções locais de

legitimidade, conforme veremos, foram fundamentais para as formas de

2 Não há dúvidas de que o Rio Grande do Sul, àqueles antanhos, encontrava-se em

processo de desenvolvimento capitalista. Tampouco se pretende ignorar que, durante

a Primeira República, existiram intercâmbios dos camponeses negros com a econo-

mia de mercado. Porém, naquele lugar, as relações de produção não eram capitalis-

tas, e sim familiares. Davam-se com base em parâmetros tradicionais, e não no assa-

lariamento.

3 Granovetter (2007) adota uma postura crítica em relação a Polanyi, dado que sugere

que a autonomização do mercado em sociedades capitalistas não é plena, da mesma

forma que as sociedades não-capitalistas não são impermeáveis a relações puramen-

te econômicas. Assumindo o risco de traçar um quadro um tanto idealizado do cam-

pesinato, não entraremos nessas minúcias, nos atendo às proposições de Thompson

e Polanyi.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 16

sobrevivência familiar, para os intercâmbios, distribuição de dotes e

heranças; em suma, para a estruturação de uma forma de produção

camponesa. Sob o prisma da indissociabilidade entre sociedade e eco-

nomia no que tange a grupos tradicionais, implícita na leitura apresen-

tada, o presente trabalho objetiva apresentar uma contribuição no que

diz respeito ao campesinato negro do Morro Alto.

Pode-se entender as famílias como o tipo organizacional, por ex-

celência, que tornava possível a sobrevivência para as famílias negras

no pós-Abolição. Era em âmbito doméstico que se traçavam estratégias

e se tomavam decisões. Isso vem desde o período escravista, o que

pode ser atestado por vasta bibliografia que dá conta da existência e da

dinâmica de famílias de cativos e, sobretudo, da possibilidade de cultivo

de alimentos no interior das unidades escravistas por estas (CARDO-

SO, 1987; MACHADO, 1987; SCHWARTZ, 1988; REIS; SILVA, 1989;

SLENES, 1999; GUIMARÃES, 2009). Tem sido discutido se essa alter-

nativa constituía modalidade de resistência, uma característica estrutu-

ral do escravismo, uma “brecha camponesa” ou, simplesmente, a eco-

nomia própria dos cativos. Todavia, esse debate não diz respeito ao

presente estudo.

O que cabe observar, aqui, é que mui provavelmente não coube

ao casal estudado conquistar esse espaço, e sim ampliá-lo e consolidá-

lo através da aquisição da propriedade da terra, uma vez livres. De

qualquer forma, conforme observou Mattos (1998), a formação de famí-

lias era um elemento fundamental para o acesso àquelas prerrogativas,

que permitiam a seus beneficiados fugir à homogeneização artificial-

mente construída pela condição cativa; isso os investiu de melhores

condições para o almejado “projeto camponês”. Certamente nem todas

famílias foram bem-sucedidas, depois de 1888, no estabelecimento de

unidades produtivas próprias. Mas é o caso daquela que enfoco e de

todas aquelas apresentadas no prólogo em uma hipotética visita à re-

gião do Morro Alto nas décadas iniciais do século XX. Decidi enfatizar

aqueles que se tornaram pequenos produtores de alimentos de forma a

me contrapor ao discurso vitimizante que, conforme veremos, absoluti-

za a exclusão social de negros no pós-Abolição. No entanto, sou o pri-

meiro a reconhecer a existência de reiteradas formas de discriminação,

tendo em vista a operação de um racismo século XX adentro sobre

todos negros, mais ou menos bem-sucedidos, e que foge à “herança da

escravidão”.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 17

Uma vez entendida a família como um sujeito social fundamental

para a atuação da população negra no pós-Abolição, é conveniente

qualificar como ela é entendida, já que seu significado não é auto-

evidente. Durante muito tempo, tomou-se a família nuclear como parâ-

metro, o que levou os autores da Escola Sociológica Paulista (FER-

NANDES, 1965; BASTIDE; FERNANDES, 1971) a qualificar como

“anômicas” as famílias descendentes de escravos, dado que não-

correspondentes àquele modelo. Mais recentemente, os olhares dos

estudiosos têm estado atentos a arranjos alternativos, como, por exem-

plo, núcleos compostos por mulheres e seus filhos, agregados informa-

dos pelo compadrio, pela irmandade, pela criação, etc. No meu caso,

cabe perceber a constituição e os significados das famílias para os

próprios moradores da região, como veremos quando se tratar dos

arranjos locais de legitimidade.

Em uma unidade campesina na virada do século XIX para o XX,

encontra-se o modelo de família negra identificado como tradicional por

Barcellos (1996, p. 169-174), que se expressa pela afinidade e pela

criação conjunta. Os integrantes do grupo analisado percebem-se por

meio da noção de “gente”4 (WEIMER, 2013). O guia em nosso prólogo,

por exemplo, certamente percebia as famílias apresentadas como “gen-

tes”, e não como núcleos. A unidade produtiva de Manoel Inácio abri-

gava mais de uma geração, e certamente muitos como o seu incorpo-

ravam agregados e filhos de criação. Seria o caso, por exemplo, da

mencionada família de Olina, que criou diversas crianças parentes de

seu marido.

A localidade de Morro Alto foi escolhida de acordo com os vínculos

formados, entre eu e eles, há mais de década — por meio do mencio-

nado relatório de reconhecimento. Situa-se na divisa entre os municí-

pios de Osório e Maquiné,5 onde hoje é o entroncamento de um braço

4 Gente constitui uma forma êmica pela qual os integrantes desta comunidade definem

suas relações familiares. Acredita-se que ela pode ser fértil para a análises de pro-

cessos históricos (WEIMER, 2013), por situar-se em uma dimensão supra-familiar

(entendendo-se, aqui, a família nuclear) e infra-comunitária, dando conta de vínculos

de afinidade, compadrio, etc. Sobretudo, serve como forma de desnaturalização das

famílias patriarcais ou nucleares como únicas alternativas válidas de estruturas de pa-

rentesco.

5 Osório e Maquiné são municípios originários de Conceição do Arroio. Em 1934, o

município mudou de nome para Osório, por determinação do interventor federal José

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 18

da estrada BR-101 e da RS-407, que segue para Capão da Canoa. As

atividades produtivas apresentadas no prólogo levaram a uma concen-

tração de cativos relevante durante o século XIX, o que faz da região

um locus interessante para estudo dos destinos de antigos escravos e

sua descendência. No capitulo 2, apresentar-se-ão maiores detalhes

sobre a produção da fazenda no século retrasado.

O litoral norte do Rio Grande do Sul contém um grande sistema

lagunar interligado entre si. A antiga fazenda do Morro Alto, bem como

a comunidade negra dela originária, se estende, grosso modo, do espi-

gão da serra, a ocidente, às lagoas dos Quadros, Ramalhete, Negra e

Pinguela a oriente. Até hoje ali reside significativa população negra que

se mobiliza na luta pela obtenção de direitos étnicos e que se estende

por uma série de localidades no entorno do dito encontro de rodovias

(Morro Alto, Aguapés, Barranceira, Faxinal do Morro Alto, Ramalhete,

Ribeirão do Morro Alto, Borba, Espraiado6 e, mais além, Prainha). Tra-

ta-se dos descendentes das famílias listadas no prólogo, e de tantas

outras. Suas coordenadas geográficas são 29° S e 50° W.

Nos dias de hoje, os moradores vivem da agricultura — banana,

cana de açúcar — e da criação de animais, mas também do trabalho

sazonal em praias de veraneio e do extrativismo mineral. A permanên-

cia da população negra naquela região levou Dante de Laytano, em

1945, a caracterizá-la como “habitat com as verdadeiras características

de um quilombo” (LAYTANO, 1945, p. 28, grifo nosso). Mais de quaren-

ta anos mais tarde, o folclorista Paixão Côrtes (CÔRTES, 1987) apon-

tou a Prainha e o Morro Alto como “tradicionais redutos de cultura afro”.

Uma década depois, a etnicidade característica foi acionada no sentido

de obtenção de direitos territoriais.

Escolheu-se uma família para observação intensiva (para facilitar a

leitura do e-book, sugiro a consulta à genealogia da família, anexa ao

final), nos termos postulados pela vertente historiográfica que se con-

vencionou denominar de micro-história. A escolha metodológica pela

redução da escala revelou-se acertada, porque uma observação macro-

histórica não permitiria uma observação apurada e detalhada e, portan-

Antônio Flores da Cunha, sem consulta à população local. Em 1992 o distrito de

Maquiné obteve sua emancipação.

6 A localidade aparece na documentação com a grafia alternativa de “Despraiado”.

Adotamos aquela correspondente à fala da maior parte dos moradores da região.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 19

to, uma compreensão substancial do funcionamento da dinâmica famili-

ar e laboral de campônios negros. Levi (1992) assinala que a redução

da escala de observação não deve levar a um objeto de estudo de di-

minutas dimensões, e sim a um locus privilegiado de análise.

Manoel Inácio e Felisberta haviam sido cativos na fazenda do Mor-

ro Alto, pertencentes aos senhores Osório Marques, mas também pro-

tagonizaram as transformações do regime de trabalho de fins do século

XIX. Seus filhos cresceram e viveram, propriamente, no âmbito de uma

economia camponesa. Essa família foi eleita como foco de análise por

motivos diversos. Em primeiro lugar, os vínculos de amizade e confian-

ça estabelecidos pelo pesquisador com seus descendentes desde iní-

cios da década de 2000 permitiram entrevistas mais sinceras e confi-

dentes, a abertura de redes de contato de novos depoentes e, ainda, o

acesso a um fabuloso acervo de documentos escritos de fins do século

XIX até meados do século XX, surpreendentemente conservados pelos

familiares, posto que fossem alfabetizados em grau precário. Além dis-

so, a partir de um tronco comum irradiaram-se ramos que representa-

ram possibilidades diversas de atuação no cenário do pós-Abolição e

condições diferentes de inserção, consequentemente, maiores ou me-

nores probabilidades de ascensão social. Dessa forma, não é possível

afirmar que a escolha de uma “gente” em especial leve à análise exclu-

siva de um mesmo segmento social. Os leitores em breve conhecerão a

história de Pulquéria Felisberta, que descreveu itinerário social oposto

ao da mãe e ao dos irmãos.

Perspectivas recentes (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005) apontam

que o pós-Abolição, longe de ter caminhos e trajetórias pré-definidos

pela herança escravista, foi um momento em que foram postuladas

questões cujas respostas estavam abertas à atuação dos indivíduos,

famílias e comunidades.7 Nesse sentido, trata-se de uma arena de con-

flitos e problemas cujos desfechos não estavam estabelecidos de an-

temão, mas dependiam da atuação subjetiva, individual e coletiva. As-

sim, uma observação mais minuciosa das ações dos personagens do

pós-Abolição — e a família é um sujeito fundamental nesse contexto,

como já destaquei — possibilita aproximar-se da agência desses sujei-

tos sociais sobre sua vida em liberdade.

7 Ao investigar a invisibilidade histórica e a segregação de descendentes de africanos

em Santa Catarina, Ilka Boaventura Leite observou a insuficiência da herança

escravista como fator explicativo do racismo contemporâneo (LEITE, 1996).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 20

Levi (2000) observa que as sociedades de Antigo Regime estavam

imersas em uma margem de grande incerteza e insegurança que, no

entanto, não tinha efeitos imobilizadores sobre os sujeitos sociais.

Mesmo sem considerar sociedades pós-Abolição sociedades de Antigo

Regime, podemos traçar um paralelo no que toca à incerteza, que,

ademais, atingia também aos ex-senhores.8 Se a indefinição dos papéis

sociais a ser desempenhados dali em diante criava incerteza, criava

também possibilidades a serem ocupadas e desempenhadas pelos ex-

escravos e seus descendentes. O melhor locus de observação dessas

possibilidades e limites encontrados pelos sujeitos sociais consiste nas

ações familiares. Mas para tanto, conforme destacado, a redução da

escala de observação apresenta-se como recurso metodológico im-

prescindível.

O recorte temporal deste trabalho é necessariamente impreciso,

dado que me apego à plástica noção de “geração”. Não há um “mo-

mento final ou inicial”, a não ser de forma aproximativa, dada a plurali-

dade de filhos desse ex-escravo que constituíram personagens de inte-

resse em meu estudo, não se podendo elencar o nascimento ou a mor-

te de um ou outro como momentos-limite. Considerando ser meu foco o

período em que a família afirmou-se como livre e pôde permanecer no

território onde Manoel Inácio e Felisberta haviam sido escravos, o que

coincide desde o período em que adquiriu o terreno no Espraiado

(1890) até a infância de seus netos, poderíamos situar, grosso modo, o

período de 1890-1930, isto é, a Primeira República.

Essa família, de fato, não era representativa do campesinato negro

daquela região, em um sentido estritamente numérico. Todavia, isso

não a torna menos digna de interesse histórico, haja vista que aspectos

desviantes de tendências gerais — “excempcionais” — podem ser es-

clarecedoras para conhecer um período ou grupo social (GRENDI,

1998). A incidência estatística, com efeito, não se traduz necessaria-

mente em representatividade histórica. Seu estudo permitiu um deta-

lhamento mais elucidativo do que o mapeamento de tendências mais

amplas. Assim, foi possível uma aproximação de trajetórias individuais

e familiares de forma mais minuciosa do que geralmente se tem aces-

so — o que devo creditar sobretudo à história oral —, relações de com-

padrio, mapear descendentes a se entrevistar, conhecer íntima e pro-

8 Ver Mattos (1998), Fraga Filho (2006) e Rios e Mattos (2007).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 21

fundamente vínculos genealógicos e relacioná-los a diferentes formas

de mobilidade social, de forma que creio ter conseguido — os leitores

avaliarão — dar um pouco mais de cor e vida às suas experiências

sociais do que se tivesse me tolhido em nome da dita representativida-

de. Não obstante essa opção metodológica, não se deve abstrair o fato

de que Felisberta e os seus estavam imersos em uma rede social de

trocas matrimoniais, laços de compadrio e apadrinhamento ou laços de

cooperação com camponeses negros seus vizinhos.

O termo “camponês” é aqui empregado a fim de proporcionar um

diálogo com a bibliografia pertinente e de demarcar uma inflexão diante

da lógica produtiva do sistema escravista e para assinalar sua especifi-

cidade em relação ao capitalismo. Todavia, ninguém naquela comuni-

dade, é certo, identifica-se ou identificava-se como “camponês”. A rigor,

não se trata de uma identidade compartilhada. Ainda assim, conforme

veremos, o comportamento econômico daquele segmento populacional

é coincidente com o daqueles grupos usualmente assim reconhecidos.

Isso não significa, porém, que não existam especificidades de natureza

etnicorracial.

Certa vez, em um seminário, fui perguntado sobre a existência de

um campesinato negro na região. Evidentemente, meu interlocutor não

tinha dúvidas sobre a existência de negros que eram camponeses, mas

seu problema era se havia, verdadeiramente, alguma especificidade

que os definisse como grupo e que os diferenciasse do campesinato

“em geral”. Respondi contando uma história que a senhora Diva e sua

prima, a senhora Eva, me relataram.

Segundo elas, um fazendeiro — aparentado dos ex-senhores, ali-

ás —, Manoel Machado, não gostava de nego9 e tinha o hábito de pas-

sar atirando para o alto, para assustá-los, quando os via. Essa memória

é muito viva na lembrança de Diva porque ela e suas irmãs escondiam-

se no mato quando Machado chegava disparando e porque seus pri-

mos, Antônio e Teodoro, certa feita, fugiram ao ouvir os tiros e se ras-

garam todos por causa da vegetação. Vale lembrar que Antônio e Teo-

doro — conheci o último —, filhos de uma filha de Felisberta chamada

9 As narrativas locais atribuem esse desgosto ao fato do pai de Machado ter sido morto

por um escravo. Para uma análise minuciosa das narrativas míticas acerca do

episódio, ver Chagas (2005). Existem registros documentais do mesmo episódio, que

podem ser acompanhados em Barcellos et al. (2004).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 22

Pulquéria, eram claros, mas ainda assim nos critérios sociorraciais lo-

cais, “morenos”.

É provável que as práticas econômicas e dinâmicas demográficas

de camponeses brancos e negros fossem as mesmas. Entretanto, não

só de economia e de demografia se faz o tecido social. Diante de Ma-

noéis Machados, a “cor” e a experiência do cativeiro poderiam contar,

em muito, para as vivências e possibilidades disponíveis. O racismo era

uma realidade palpável na conjuntura pós-Abolição e incidia sobre os

camponeses negros de forma a diferenciá-los dos brancos. Toma-se

aqui, portanto, a existência de um campesinato brasileiro e, dentre es-

se, de um segmento negro com experiências e trajetórias históricas

próprias. O econômico fazia desses negros, camponeses; o cultural e

etnicorracial fazia desses camponeses, negros. Ou, ainda, “não é por

serem campesinas que tais comunidades deixam de ser étnicas”

(MÜLLER, 2006, p. 18).

Chayanov, de fato, ignorou a variável sociorracial em sua análise,

talvez porque ela não fizesse o mesmo sentido no contexto russo por

ele estudado. Sua perspectiva não é suficiente para dar conta, portanto,

do caso estudado. É evidente, porém, que o trabalho na unidade eco-

nômica camponesa tinha sua base no trabalho familiar e que as unida-

des camponesas buscavam um equilíbrio entre a satisfação de suas

necessidades de consumo e a autoexploração da sua mão-de-obra.

Isso receberá devido desenvolvimento e discussão adiante, sobretudo

no item 4.5: “Uso la hipótesis del balance subjetivo trabajo-consumo

para analizar los procesos de las unidades de explotación y establecer

el tipo de motivación de la actividad económica de la familia campesina”

(CHAYANOV, 1979, p. 99).10

Outro problema da teorização proposta por Chayanov (1979) é,

por estar centrada na produção e no consumo, não levar em conta com

maior acuidade a inserção do campesinato em circuitos mercantis.

Perspectivas mais históricas dão conta de vínculos eventuais com o

mercado,11

a exemplo de Ciro Flamarion Cardoso:

10

[Uso a hipótese do balanço subjetivo trabalho-consumo para analisar os processos

das unidades de exploração e estabelecer o tipo de motivação da atividade econômi-

ca da família camponesa.] Minha tradução.

11 Thompson (1998b) refere contribuição de Thorner: “Sem dúvida nos desencaminha-

remos se tentarmos conceber as economias camponesas como orientadas exclusiva-

mente para a ‘subsistência’, suspeitando de capitalismo sempre que os camponeses

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 23

[…] uma estrutura camponesa se define do ponto de vista

econômico sobretudo por quatro características: 1) aces-

so estável à terra, seja em forma de propriedade, seja

mediante algum tipo de usufruto; 2) trabalho predominan-

temente familiar (o que não exclui, em certos casos, o re-

curso a uma força de trabalho adicional, externa ao nú-

cleo familiar); 3) economia fundamentalmente de sub-

sistência, sem excluir por isto a vinculação eventual ou

permanente com o mercado; 4) certo grau de autonomia

na gestão das atividades agrícolas, ou seja, nas decisões

essenciais sobre o que plantar e de que maneira, como

dispor do excedente, etc. (CARDOSO, 1979, p. 52, grifo

nosso).

A autonomia da unidade econômica camponesa foi tomada por

Archetti, Fossum e Reinton (apud CARDOSO, 1979) em termos de

segurança no acesso à parcela, grau de relação direta com o mercado

vertical (distinto de um mercado horizontal onde se efetua o intercâmbio

entre compradores e vendedores de igual status) e grau de gestão,

quanto à distribuição dos recursos disponíveis, do camponês sobre sua

parcela. Efetivamente, intercâmbios comerciais são recorrentes na his-

tória humana e seria ingênuo esperar que camponeses não os realizas-

sem.

A minha inocente questão de “o que aconteceu” com eles desdo-

bra-se, assim, em uma variedade de aspectos, direções e focos de

pesquisa. Elegi família e trabalho como eixos de análise, enfocando

uma história sócio-econômica, se não nos métodos, certamente nos

temas, para compreender os destinos tomados depois do 13 de maio.

As questões escolhidas foram construídas em um diálogo entre os de-

bates da historiografia contemporânea12

e os assuntos dos quais os

depoentes estavam dispostos a falar.

dão mostra de serem orientados para o ‘mercado’. É muito mais razoável admitir

como ponto de partida que durante séculos as economias camponesas tiveram dupla

orientação para ambos os fins. Dessa forma, é possível evitar muita discussão

infrutífera sobre a natureza das assim chamadas economias de ‘subsistência’”

(THORNER apud THOMPSON, 1998b, p. 441).

12 Sobre a importância da família, ver (por exemplo) Rios (1990), Machado (1994), Mat-

tos (1998); sobre trabalho, ver Rios e Mattos (2005); sobre cidadania, ver Cunha e

Gomes (2007), Carvalho (2008).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 24

3 Leituras do Pós-Abolição13

Pois converso com o senhori com muito gosto, porque

gosto de conversar. É bom encontrar alguém que saiba

conversar. Mas me pergunto o que que um dotori fino tem

pra prosear com uma velha pobre e analfabeta como eu.

Nem escrever e ler eu sei. Só sei cuidar da casa, traba-

lhar na roça... O senhori, aposto, sabe ler. Acaso seus li-

vros não tem mais nada a le ensinar?

Quando se discute os itinerários negros no pós-Abolição, existe

uma leitura arraigada socialmente sobre a mobilidade espacial dos ex-

escravos e descendentes entre o meio rural e o meio urbano no pós-

Abolição. Eles são associados à formação de aglomerados miseráveis

nas cidades e, de certa forma, são por eles responsabilizados, de tal

forma que a precariedade das condições de vida aparecem como “he-

rança nefasta do escravismo”, em lugar de resultado de cincunstâncias

e opções políticas posteriores a 1888. É o que se ensina na escola; é o

que se aprende e se reproduz no senso comum em qualquer conversa

cotidiana com não-profissionais (e eventualmente, com profissionais).

Na obra “Escravidão nunca mais!” o jurista Nelson Câmara sintetizou

essas posições de forma singela. Eis o destino dos libertos:

[...] o modo cruel como foi feita a Abolição, colocando na

rua da amargura milhões de almas escravizadas, sem ter-

ra e sem perspectiva alguma, resultou nas primeiras

aglomerações nas periferias dos maiores centros urba-

nos, formando-se favelas e palafitas, e depois, em fase

subsequente, os cortiços. (CÂMARA, 2009, p. 354)

O texto do qual foi extraído o excerto propõe-se a oferecer subsí-

dios à aplicação da lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino da

13

Vive-se atualmente um momento de profusão da bibliografia sobre o pós-Abolição,

sendo concluídas diversas teses e dissertações a respeito da temática a partir de

2013. Em 2015, um dossiê da Revista Brasileira de História (2015) foi integralmente

dedicado ao assunto. Isso se deve, em parte, às reivindicações pelo reconhecimento

de um passado histórico por parte de movimentos ligados à questão da negritude, em

parte por incentivos governamentais ao estudo da temática. A revisão historiográfica

aqui realizada, por motivos de fôlego, vai até 2013, não contemplando os estudos

mais recentes. Da mesma forma, irá se centrar nos trabalhos referentes ao meio ru-

ral, espaço abordado neste estudo, e não no conjunto de novas referências sobre o

pós-Abolição. Por mais que o recorte urbano/rural seja artificial, ele opera historiogra-

ficamente, no sentido de que a bibliografia referente ao campo dialoga pouco com

aquela voltada à cidade, e vice-versa. Isso ocorre por contingências que levam os

dois subcampos a pouco dialogar entre si.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 25

história e da cultura afro-brasileira nas escolas, e por essa razão é me-

recedor de atenção. Ao menos em um plano nacional, ultrapassou-se

um momento em que era necessário defender a relevância da discus-

são; a legitimidade do pós-Abolição como campo de estudos, ao mes-

mo em um plano acadêmico, está dada. Todavia, ainda se encontra em

pauta que caráter dar às interpretações sobre a temática, sobretudo a

respeito da contradição entre vitimização e atuação como sujeitos histó-

ricos.

No caso riograndense, contudo, lamentavelmente ainda nos en-

contramos na necessidade de justificar a necessidade de estudar a

população negra e, até mesmo, de destacar sua existência. É sabido

que se trata de segmento populacional que passou por intenso proces-

so de invisibilização, em virtude de uma identidade regional afeita a

raízes europeias e minimizadora de sua afrodescendência (LEITE,

1996). Mesmo entre alguns historiadores, há uma dificuldade para ad-

mitir a existência do pós-Abolição como um campo de pesquisa especí-

fico: “fulano ‘trabalha com’ escravidão”, no que está implícito que o re-

gime de trabalho compulsório esgota a historicidade da população ne-

gra.

Como destacado, ideias tais como a destacada no excerto tradu-

zem aquilo que comumente se pensa a respeito dos itinerários dos

antigos escravos no Brasil, e possivelmente servirá para a formação de

professores dos ensinos médio e fundamental. Essa visão arraigada

encontra-se criticada em trabalhos mais recentes, mas fundamenta-se

em autores como Bastide e Fernandes (1971). Um grande problema é a

percepção da população egressa do cativeiro, como se as efetivas mi-

serabilidade e precárias condições de vida que se lhes acometeram,

tivessem podado sua capacidade de iniciativa e agência. A denúncia

acaba por redundar na atribuição de impotência.

Mais do que um escritor pioneiro acerca do assunto, Nina Rodri-

gues (RODRIGUES, 1977, 2006) foi um contemporâneo que testemu-

nhou o processo social descrito no imediato pós-Abolição. Embora inte-

ressado em aspectos culturais dos africanos que julgava destinados a

desaparecer e em suas “sobrevivências” — particularmente linguísticas

e religiosas —, e não em processos macrossociais da população negra

como um todo, o autor opinou — talvez como forma de justificar seu

recorte geográfico — que a maior parte dos africanos na Bahia dirigiu-

se a Salvador, poucos permanecendo em cidades de médio porte e

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 26

menos ainda em antigos engenhos. A maior parte ter-se-ia dedicado ao

pequeno comércio e alguns teriam trabalhado como lavradores nos

arrabaldes soteropolitanos (RODRIGUES, 1977).14

Em contraponto,

obra bastante mais recente de Fraga Filho (2006), demonstrou por meio

de sólido levantamento documental a pluralidade de destinos assumi-

dos pelos negros do Recôncavo, o que inclui, também a permanência

de muitos nas circunvizinhanças dos antigos engenhos ou migração

para outros engenhos, em busca do encontro com familiares.

Gilberto Freyre, embora tenha constatado (e elogiado) a ascensão

social de “mulatos” e mestiços e tenha sublinhado o caso de ex-

escravos bem-sucedidos, os últimos apareciam como exceção. O qua-

dro delineado para os descendentes de escravos no pós-Abolição, em

geral, era bastante sombrio:

A liberdade não era bastante para dar melhor sabor, pelo

menos físico, à vida dos negros fugidos que simplesmen-

te conseguiam passar por livres nas cidades. Dissolven-

do-se no proletariado de mocambo e de cortiço, seus pa-

drões de vida e de alimentação muitas vezes baixaram.

Seus meios de subsistência tornaram-se irregulares e

precários. Os de habitação às vezes degradaram-se. Mui-

to ex-escravo, assim degradado pela liberdade e pelas

condições de vida do meio urbano, tornou-se malandro de

cais, capoeira, ladrão, prostituta e até assassino. O terror

da burguesia dos sobrados (FREYRE, 2006, p. 297).

Se em Freyre a liberdade cumpriu um papel degradante, os estu-

dos de Florestan Fernandes responsabilizavam o cativeiro por uma

herança nefasta sobre os libertos, na medida em que a ética de traba-

lho e o estado de “anomia” herdados do cativeiro ter-lhes-ia tornado

inábeis “psicossocialmente” para competir com a mão-de-obra imigran-

te no mercado de trabalho paulista (FERNANDES, 1965). Em que pese

todas suas divergências com Freyre, o caráter daninho da liberdade ou

do cativeiro constituía um espelho entre os dois autores.

É evidente que a inadequação encontrada por Florestan Fernan-

des era um espelho da própria concepção de “família” do autor, tomada

como natural. Como já assinalaram Rios e Mattos (2005), ambos con-

14

Câmara (2009, p. 354) menciona o mesmo trecho de Rodrigues, porém o atribuindo a

Wissenbach (1998 p. 113), sem referi-lo como uma citação. Dessa forma, passa a

impressão de que a autora compartilha daquela afirmação, o que não coaduna com

sua abordagem (ver adiante).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 27

vergiam na interpretação do pós-Abolição como um período incapaci-

tante para os egressos do cativeiro. A despeito de todas suas divergên-

cias, aqui os autores se encontravam. A antropóloga Daisy Barcellos

assinalou que os trabalhos da Escola Sociológica Paulista “pecam por

reduzir o papel do negro a um plano de passividade incompatível com o

grau de participação na formação do Brasil e do Rio Grande do Sul”

(BARCELLOS, 1996).

Vale destacar que o estudo de Florestan privilegiou o meio urbano

paulista do século XX, em um recorte nada inocente. Pelo contrário,

isso ajudou a sustentar o viés teórico segundo o qual negros originários

do campo encontravam-se desestruturados socialmente na grande

cidade. No entanto, a escolha de São Paulo — ainda que extrapolando

arbitrariamente suas conclusões ao conjunto da província — como foco

de análise15

não ajuda na sustentação empírica da própria interpretação

que ele defende. Fernandes verificou que, entre 1886 e 1893, a popula-

ção negra e “mulata” cresceu, naquele centro urbano, em uma propor-

ção inferior à população de brancos nacionais ou estrangeiros. Ainda

assim, Fernandes insistiu no êxodo direcionado a São Paulo e Santos

(FERNANDES, 1965), ignorando aqueles que permaneceram no meio

rural. Não há problemas na realização de estudos de caso; o que ocor-

re é que há dados contraditórios às teses do autor que não são discuti-

dos e, mais que isso, uma generalização arbitrária para espaços geo-

gráficos mais amplos.

Andrews (1998), a exemplo de Fernandes (1965), centra-se no

município de São Paulo, e também tira conclusões precipitadas para o

conjunto da província, inclusive seu meio rural, conforme a crítica de

Marques (2009). Para esse autor, Andrews manteve de Fernandes a

ideia de marginalização, porém a retirou do despreparo dos negros e a

atribuiu ao racismo dos brancos. De qualquer maneira, procurou expli-

car uma realidade social complexa somente a partir de dados quantita-

tivos e da variável mercado de trabalho.

Embora leve em conta a existência de libertos que permaneceram

nas fazendas onde haviam sido escravos, ou a elas próximas, a par

daqueles que migraram para as cidades, a tônica da análise de Carva-

15

O trabalho de Bastide e Fernandes (1971 p. 60) também privilegia São Paulo e afirma

que a “maioria [dos libertos], porém, abandonava os trabalhos agrícolas e procurava

as cidades”. [grifo nosso]

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 28

lho (2008, p. 52-53) é de crítica em relação à inserção marginal de

afrodescendentes em uma República que entende como excludente.

Eles teriam alternado a ausência de empregos fixos e “os mais brutos e

mais mal pagos”. Ao sublinhar a cidadania negada aos descendentes

de escravos, no entanto, o autor não percebeu a importância da busca

da mesma por parte dos cativos.16

Com uma grande sintonia em relação aos novos estudos que ve-

remos em seguir, o ensaio de Cunha e Gomes (2007) no livro por eles

organizado todavia destaca os mecanismos de exclusão e evitação que

caracterizaram a inserção social de antigos escravos na sociedade pós-

Abolição. Desnaturalizando concepções como liberdade e cidadania, os

autores colocam em pauta os processos de sua construção. Sua pro-

posta, portanto, é a compreensão de “como e através de que práticas

discursivas, processos sociais e históricos, homens e mulheres cujo

estatuto social estava condicionado à combinação de sua condição

jurídica, origem social e aparência física passam a ser vistos e a ver por

si próprios como iguais” (CUNHA; GOMES, 2007, p. 13).

Essa construção da igualdade, certamente, passava por obstácu-

los evidentemente perversos, já que dissimulados, implícitos, “envoltos

em retóricas fluidas, de preterição e evitação” (CUNHA; GOMES, 2007,

p. 15). Tais constatações parecem-me o ponto forte da argumentação

dos autores, mas apontam também para sua fragilidade, uma vez que

ao mesmo passo em que destacam as limitações para o exercício da

cidadania desta população — prefixada com o termo “Quase-” — se-

cundariza-se o poder reativo da mesma diante desses mecanismos de

preterição, a não ser sob o viés da rejeição e afastamento.

Um olhar mais sistemático dos estudos acadêmicos para os itine-

rários negros no meio rural foi dirigido a partir da década de 1990. Em

grande parte na onda das novas abordagens e estudos acerca da es-

cravidão desenvolvidos na década de 1980 (para um balanço, ver

SCHWARTZ, 2001), a exemplo desses, viam-se os (ex)-escravos como

atores sociais em busca de seus próprios interesses e com experiên-

cias, que não se resumiam à vitimização imposta pelo cativeiro. Afinal,

a partir de certo ponto tornou-se custoso acreditar que os escravos

16

Na esteira de José Murilo de Carvalho, Müller (2006, p. 55-59) percebeu a população

negra como vítima passiva da negação de direitos civis. Mattos (2000), em uma

abordagem distinta, demonstrou como os libertos, como sujeitos históricos ativos que

foram, procuraram lutar, ainda durante o século XIX, pelos direitos civis almejados.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 29

foram sujeitos ativos até o 13 de maio de 1888, e a partir da aquisição

da liberdade, teriam perdido essas capacidades.

Em paralelo a essa renovação historiográfica, percebe-se, nessa

década, a emergência no cenário político de comunidades negras ru-

rais, que exigem a concretização de direitos fundiários com base na

Constituição Federal de 1988 e sob a identidade de “remanescentes de

quilombos”. Inicialmente tais grupos atraíram mais o interesse de antro-

pólogos do que de historiadores (LEITE, 1996; O’DWYER, 2002; AR-

RUTI, 2006), mas em breve sua influência far-se-ía sentir, de forma

intensa, também na prática histórica, sobretudo quando historiadores

foram instados a participar de laudos ou relatórios de reconhecimento

comunitários.

Da parte de historiadores, três trabalhos foram pioneiros a respeito

da temática do pós-Abolição no âmbito rural e, por meio de esforços

paralelos e convergentes, ajudaram a estipular alguns parâmetros co-

muns para a historiografia que se seguiria.17

Rios (1990) ressaltou a

importância da família e do acesso à terra como condições de sobrevi-

vência e ideais de trabalho almejados depois de 1888. Machado (1994)

destacou a formação de uma economia camponesa à margem das

grandes propriedades cafeicultoras, dando ênfase a doações de terras

efetuadas por antigos senhores e sublinhando as dificuldades para sua

legalização. Observou, ainda, a formação de um conceito de liberdade

contrastivo em relação às relações sociais vividas sob o cativeiro.

O terceiro estudo é o de Mattos (1998). A autora apresentou uma

versão aprofundada dessa abordagem, ao discutir, dentre outras coi-

sas, os esforços dos cafeicultores fluminenses, no pós-13 de maio, em

manter e atrair uma mão-de-obra ora agraciada pela possibilidade de

mobilidade espacial, na qual acabou por prevalecer os deslocamentos.

Ela demonstrou os intrincados mecanismos de negociação, nem sem-

pre bem-sucedidos, dos fazendeiros para utilização da mão-de-obra ora

livre, e ressaltou que as expectativas dos forros em relação à liberdade,

forjadas sob a vigência da escravidão, foram elementos decisivos nes-

sas negociações. Finalmente, a autora problematizou a questão da

“cor” antes e após 1888.

17

No ano de 1990, Hebe Mattos, Sheila Faria e Ana Rios publicaram um “Caderno do

ICHF”, da Universidade Federal Fluminense, com estudos acerca de trabalho familiar

e escravidão (MATTOS DE CASTRO; FARIA; RIOS, 1990). Trata-se de um exemplo

indicativo do interesse pela temática naquela conjuntura historiográfica.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 30

Alaniz (1997), Papali (2003) e Guimarães (2006) versaram sobre a

tutela de órfãos nos primeiros anos da República, nos municípios de

Campinas, Taubaté e Juiz de Fora. A primeira autora destacou que

oferecer filhos para terceiros cuidarem podia ser, em situações de po-

breza e necessidade extrema, uma tentativa de possibilitar a sobrevi-

vência familiar e da criança (ALANIZ, 1997). Esses estudos, ao inclinar-

se sobre a temática, reafirmaram aspecto ressaltado pela historiografia

a respeito do tema: a importância dos vínculos familiares nos anos pos-

teriores à Abolição da escravidão.

Os estudos recentes a respeito do pós-Abolição tendem a ressal-

tar a diversidade regional e as diferentes situações vividas pelos liber-

tos, em lugar de uma leitura generalizante e unívoca. Wissenbach

aponta que a adequação à condição de livre foi condicionada por fato-

res como: “particularidades regionais e conjunturas econômicas diver-

sas, proporcionalidade do elemento negro no cômputo das populações

de cada parte do país, presença de outros segmentos na disputa do

mercado de trabalho e de agrupamentos negros já consolidados (...)”

(WISSENBACH, 1998, p. 51-52).

Se a marca dos novos estudos é a diversidade, conta-se hoje com

artigos, dissertações, teses e monografias regionais apuradas, a respei-

to de Pernambuco (SANTOS, 2010); do Recôncavo Baiano (FRAGA

FILHO, 2006); da região serrana do Rio de Janeiro (DEZEMONE,

2004); da área rural do Rio de Janeiro (RIOS; MATTOS, 2007); de Juiz

de Fora (SOUZA, 2003; GUIMARÃES, 2006, 2009); Curitiba e entorno

(MARQUES, 2009); de Desterro (LIMA, 2005); e da região serrana do

Rio Grande do Sul (WEIMER, 2008). Essas pesquisas compõem um

mosaico de experiências de vida, ocupações e atividades desempe-

nhadas pelos antigos escravos no pós-Abolição, contemplando tanto

aqueles que permaneceram no meio rural, na fazenda onde foram es-

cravos ou não, quanto aqueles que se direcionaram para as cidades.

Costa (2008) pôs em pauta a variável geracional no debate sobre

a migração rural-urbana. O autor, que analisou os migrantes do Vale do

Paraíba que se dirigiram a Nova Iguaçu, constatou que a geração que

partiu de forma massiva foi a segunda nascida após a Abolição, e não a

primeira. Levar em conta as gerações nos deslocamentos populacio-

nais é importante para historicizar os processos migratórios e relacioná-

los a aspectos políticos e econômicos, em lugar de discuti-los em abs-

trato. O autor também situou (Souza também fez isso (SOUZA, 2003))

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 31

as migrações na dinâmica interna da economia camponesa, na qual a

expulsão de contingente populacional faz parte dos mecanismos ne-

cessários para impedir a fragmentação da propriedade e, em última

análise, para a sobrevivência, quer da unidade econômica camponesa

abandonada, quer do jovem migrante que parte em busca de novas

oportunidades.

Rios (2005a), por seu turno, tentou organizar por meio de uma

classificação a diversidade de itinerários constatada no pós-Abolição no

Sudeste cafeeiro. As trajetórias de vida agrupadas como campesinato

itinerante, pacto paternalista e terras de preto demarcam experiências

sociais diversas, no que diz respeito a “conduta, trabalho e socializa-

ção”. O primeiro caso engloba aqueles que tiveram dificuldades de

manter um acesso estável à terra, e assim, tiveram em um sofrido des-

locamento a tônica de suas narrativas. O segundo refere-se àqueles

que permaneceram orbitando no mesmo espaço geográfico em que

seus ancestrais foram escravos, e não relataram maiores privações

decorrentes do deslocamento espacial ou dificuldades para obtenção

de roças, ainda que para tanto muitos tivessem de realizar negociações

com e concessões a fazendeiros. O último exemplo refere-se às comu-

nidades negras rurais, em parte caracterizadas pelo isolamento, origi-

nárias de doações ou aquisições de terrenos descapitalizados.

Essa caracterização mais precisa das possibilidades do campesi-

nato negro da região permitiu à autora discutir os contratos de trabalho

no pós-Abolição, assim como verificar a existência de diferentes mar-

gens de tolerância e flexibilidade, por parte de fazendeiros, em relação

a variadas parcelas da população (Rios, 2005b). Sua tipologia funciona

como uma poderosa ferramenta de análise. Os exemplos permitem

vislumbrar possibilidades de substancialização da discussão sobre o

campesinato negro no pós-Abolição, melhor caracterizando suas expe-

riências sociais. Essas referências serão importantes para a percepção

dos espaços de atuação dos sujeitos sociais aqui abordados.

Em muitos estudos, o ambiente rural é apresentado como espaço

de estagnação e reação em face da modernização (CARVALHO, 1998).

Na obra clássica de Victor Nunes Leal, os trabalhadores rurais encon-

tram-se em uma situação de submissão política e resumidos, mesmo, a

uma condição “sub-humana” (LEAL, 1975). Rios (2007), porém, assina-

lou que essa abordagem menospreza a necessidade de estabelecer

formas de captura do trabalho e da lealdade dos trabalhadores rurais,

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 32

dentre os quais ex-escravos e descendentes. Esses aspectos não eram

dados e deveriam ser cativados por meio da negociação. Em suma, a

autora coloca a ênfase nos embates sociais em jogo nos contratos de

trabalho e relações políticas no meio rural, demonstrando que a lealda-

de não era assegurada. Como sujeitos ativos, os pobres do campo

tinham condições de jogar com os instrumentos a eles disponíveis na

dinâmica do social. Também Mattos (2012) apresenta discussão sob

viés similar.

Em termos mais gerais, vê-se um lapso entre uma narrativa de his-

tória social sobre o processo de desagregação do escravismo e, por

outro, uma análise sobre a Primeira República que privilegia aspectos

políticos, econômicos e institucionais e uma reflexão sobre as engrena-

gens de um sistema coronelista de relações de poder. Há, no máximo,

uma história social do movimento operário, mas não da população no

meio rural, a não ser quando abordada sob o viés da imigração ou dos

movimentos messiânicos.

Apesar das contribuições dos estudos mais recentes, suas abor-

dagens não chegaram a trabalhos de síntese ou coletâneas de artigos

a respeito da história do Brasil, seja genéricos ou específicos do perío-

do republicano. A exemplo da “História Geral da Civilização Brasileira”

organizada por Sérgio Buarque de Hollanda (HOLLANDA, 1978), da

“História Geral do Brasil”, organizada por Maria Yedda Linhares (LI-

NHARES, 1990) — anteriores à nova historiografia analisada —, a sín-

tese de Thomas Skidmore (SKIDMORE, 1998), e a organizada por Fer-

reira e Delgado (2008) não levaram em conta, no período posterior à

Abolição, uma apreciação aprofundada sobre a história social da popu-

lação egressa do cativeiro. Considero isso um grande problema, sobre-

tudo no caso dos estudos realizados a partir de 2000, quando já havia

uma visibilidade muito maior da população negra. O que talvez seja

pior, o trabalho organizado por Priore e Venâncio (2010) contempla

esse segmento populacional, reiterando, contudo, uma leitura vitimizan-

te, que não cabe diante dos novos conhecimentos:

O início da República conviveu com crises econômicas,

marcadas por inflação, desemprego e superprodução de

café. Tal situação, aliada à concentração de terras e à

ausência de um sistema escolar abrangente, fez que a

maioria dos escravos recém-libertos passasse a viver em

estado de quase completo abandono. Além dos sofrimen-

tos da pobreza, tiveram de enfrentar uma série de pre-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 33

conceitos cristalizados em instituições e leis, feitas para

estigmatizá-los como subcidadãos, elementos sem direito

a voz na sociedade brasileira. (PRIORE; VENÂNCIO,

2010, p. 219-220, grifo nosso)

Na historiografia gaúcha, o quadro difere apenas no sentido de

uma maior invisibilidade, como era de se esperar, aliás, pela constitui-

ção da identidade regional. Os livros de síntese sobre história do Rio

Grande do Sul organizados por Reckziegel e Axt (2007), parte de uma

coleção maior, não deram conta dos descaminhos da população des-

cendente de cativos no meio rural durante a Primeira República, não

obstante ser antiga a tradição de estudos acerca da escravidão e da

liberdade no Brasil meridional e de ela encontrar-se sistematizada em

catálogo de referência (XAVIER, 2007). Não pretendo esgotar o materi-

al existente, até porque ele já se encontra levantado no referido guia

bibliográfico, sobretudo aqueles que dizem respeito ao espaço urbano.

Temos, porém, um curioso paradoxo: não obstante profícua produção,

ela encontra-se silenciada e, portanto, invisível, em trabalhos que se

propõem a uma visão mais global.

O pioneiro dos estudos afro-gaúchos foi Dante de Laytano, cujas

pesquisas, aqui, adquirem relevância por se ter debruçado sobre a

mesma comunidade por mim estudada, ao analisar as congadas do

município de Osório (LAYTANO, 1945). Aqueles que as promoviam

eram originários da antiga fazenda do Morro Alto (como nosso guia, no

prefácio, relatou ao “dotori” que orientava). Sob um viés micro-histórico,

porém, um maior aproveitamento de sua pesquisa fica comprometido,

dado que, infelizmente, o autor não citava o nome de seus informantes,

de forma a ajudar-nos a acompanhar itinerários. Laytano, ainda assim,

já se preocupava em meados do século XX com a cultura negra na

área rural do Rio Grande do Sul, uma vez transcorrida a Abolição da

escravidão. Ele a encarava de uma forma folclórica, dificultando uma

apreciação sistêmica e, ao manter o anonimato dos maçambiqueiros,

impossibilitou levantamentos microscópicos para as gerações vindouras

de historiadores. Contudo, estudioso algum terá domínio sobre as de-

mandas do porvir...

Existem alguns trabalhos mais recentes, anteriores ao esforço his-

toriográfico de síntese mencionado. Alguns vieram a público, oriundos

de estudos de reconhecimento de comunidades rurais “remanescentes

de quilombos” (BARCELLOS et al., 2004; ANJOS; SILVA, 2004), e ou-

tros resultam de trabalhos acadêmicos acerca de territorialidades ne-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 34

gras no meio urbano porto-alegrense (KERSTING, 1998; MATTOS,

2000) e da formação de uma “elite” negra diferenciada econômica e

intelectualmente no interior da irmandade de Nossa Senhora do Rosá-

rio em Porto Alegre (MULLER, 2013). Esses estudos eram objeto de

discussão e circulação no meio acadêmico no momento em que foi

organizada a obra de síntese de Reckziegel e Axt (2007). Isso leva a

crer que, efetivamente, o silenciamento acerca de uma parcela signifi-

cativa e historicamente relevante da população gaúcha na Primeira

República deve-se antes a determinado olhar dos organizadores, do

que a uma dificuldade de acesso à produção mais recente.

Outros estudos a respeito do pós-Abolição no Estado são posterio-

res a essa obra (WEIMER, 2008; GOMES, 2008; MAGALHÃES, 2010;

SILVA, 2011; ROSA, 2014). O primeiro dos trabalhos citados acompa-

nha trajetórias de antigos cativos naquilo que elas podiam ajudar a

esclarecer o imediato pós-Abolição na serra gaúcha, assim como a

participação de ex-cativos na Guerra Civil de 1893-1895. Os seguintes

tratam do associativismo negro nas cidades de Caxias do Sul, Novo

Hamburgo e Pelotas, e o último refere-se aos territórios negros em Por-

to Alegre. Note-se, uma vez mais, uma preferência majoritária pelo

estudo do espaço urbano. Por outro lado, acredita-se ser possível, atra-

vés do presente estudo, apresentar uma contribuição à história dos

rurais, segmento populacional amplissimamente majoritário entre os

negros no período em tela.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 35

4 Família

4.1 Felisberta e Manoel Inácio Marques É verdade, já fui escrava. Difícil, muito difícil falar nisso.

Pro nego era brabo... Barbaridade. Não podia fazer nada,

tratado que nem cachorro. Não se governava, não tinha

governo. Não gosto nem de lembrar. Falo com o senhori

porque não é daqui, não vai ficar fazendo fofoca. Mas não

é um assunto... Eu e o velho Manoeli éramos escravos

dos Marques. Antes da forraria. Ah, o falecido. Sinto tanta

falta do meu velho. Se hoje temos alguma coisa, essa co-

lônia, foi porque ele comprou pra nós.

O acompanhamento da origem dos escravos que deram origem à

família aqui enfocada — Felisberta e Manoel Inácio Marques, escolhi-

dos por fazerem parte da geração que protagonizou o processo de

transição entre o cativeiro e a liberdade e a montagem da unidade pro-

dutiva familiar — ajuda a acompanhar a história da fazenda do Morro

Alto,18

desde sua apropriação pelas famílias senhoriais Marques da

Rosa e Nunes da Silveira (nas primeiras décadas do século XIX), até

finais do período escravista. Essas famílias vieram de Santa Catarina e

progressivamente ocuparam terras na região: em 1824, por exemplo,

Manoel Nunes da Silveira e José Marques da Rosa já estavam presen-

tes na mesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senho-

ra da Conceição (o primeiro como tesoureiro).19

Os primeiros batismos

de escravos dessa família na freguesia rio-grandense foram registra-

dos, contudo, em 1814, com numerosos africanos no ano de 1815.20

Aquela irmandade concentrava a nata dos escravistas da freguesia. Por

alianças matrimoniais, juntaram-se a uma família da terra, os Osório.21

Pode-se dizer que, com raras exceções, essas extensas famílias segui-

ram a casar-se entre si por gerações.

18

A narrativa aqui apresentada acompanha os trabalhos de Barcellos et al.(2004) e

Weimer (2013).

19 AHCMPA - Livro Oso II 2.1.8.1 - Eleição de mesas da Irmandade do Santíssimo Sa-

cramento de Conceição do Arroio, f. 13.

20 IJCSUD- CHF, Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 7-10 anos 1814-1815.

21 Tomás José Luís Osório, por exemplo, já compunha a mesa da Irmandade em 1792.

AHCMPA, Livro Oso II 2.1.8.1 - Eleição de mesas da Irmandade do Santíssimo Sa-

cramento de Conceição do Arroio, f.2.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 36

Mais interessante do que acompanhar a história da fazenda do

Morro Alto por meio da trajetória dos senhores, para os fins deste e-

book, é acompanhá-la através de três gerações de escravos. Grosso

modo, é possível identificar a avó de Manoel Inácio e Felisberta, (Iná-

cia), com o período de estabelecimento daquela unidade produtiva, que

se dedicou principalmente à criação pecuária, nos faxinais, e à planta-

ção de cana-de-açúcar na encostas dos morros; o tempo dos filhos

daquela, (Angélica e Romão), e ainda a juventude dos netos Felisberta

e Manoel Inácio com o momento de auge da fazenda do Morro Alto; e

quando os últimos já começaram a ter seus filhos, já sob a vigência da

lei do ventre-livre (ver abaixo), com o processo de sua decadência.

A escrava Inácia deve ter nascido em finais do século XVIII ou

princípios do século XIX. Era filha da escrava Isabel, natural de Santa

Catarina,22

e acompanhou seus senhores em sua migração. A condição

de crioula e os antigos vínculos com os senhores José Marques da

Rosa e a sua esposa Isabel Maria Osório devem ter contado pontos em

prol de Inácia.23

Teve muitos filhos e netos que multiplicaram a escrava-

ria de seus senhores.24

A quantidade de cativos paridos e os antigos

vínculos com a família senhorial, desde Santa Catarina, podem ter sido

levados em conta no momento de sua libertação, em algum momento

entre o nascimento de sua filha Inês (1841) e o de seu neto Herculano

22

Essa informação consta no batismo de sua neta Inácia, IJCSUD - CHF, Mcf.

1391101, It. 4, livro 2 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 48, nascida

em 1854.

23 Mattos (1998, p. 127) assinala que uma antiguidade maior das escravarias favorecia

processos de integração.

24 Em 1822, nasceu Severino (IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos

de escravos de Conceição do Arroio, f. 40-40v); em 1825, Angélica (IJCSUD - CHF,

Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 54v);

em 1827, Reginalda (IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de

escravos de Conceição do Arroio, f. 66v); em 1829, Romão (IJCSUD - CHF, Mcf.

1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 81v); em

1838, Marinha (IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2 de batismos de escravos

de Conceição do Arroio, f. 1) e em 1841, Inês (IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4,

livro 2 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 1). Não se sabe se todas

essas crianças sobreviveram, considerando os altos índices de mortalidade infantil,

porém se tem notícias posteriores de Angélica, Reginalda, Romão e Marinha.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 37

(1855)25

: na última ocasião, foi apontada como “ex-escrava”, enquanto

antes ainda era cativa.

Dentre seus filhos,estavam Angélica (n. 1825)26

e Romão (n.

1829).27

O segundo trabalhava como campeiro no início dos anos

1870.28

Corroborando a hipótese de uma situação privilegiada dessa

família, destaca-se que nenhum deles foi para o eito ou labutou como

roceiros, trabalhando em ofícios especializados e não em canaviais. Da

mesma forma, as mulheres desse núcleo familiar dedicaram-se aos

trabalhos domésticos, em lugar da agricultura. Estima-se que a fazenda

do Morro Alto estivesse envolvida com o mercado atlântico de escra-

vos. Mesmo depois de 1850 aportaram navios negreiros na costa de

Tramandaí (MOREIRA, 2000; OLIVEIRA, 2006). No circuito comercial

em que a fazenda estava envolvida, produzia-se, a partir da cana, a

aguardente, que servia como moeda de troca no tráfico de cativos.

O novo momento coincide, aproximadamente, com o nascimento

de Manoel (n.1847), filho de Angélica, descrito na ocasião como “par-

do”. 29

Segundo relatos de seus descendentes, amparados em relações

de compadrio com a casa-grande, o pai de seu avô tinha laços de pa-

rentesco com a família senhorial. Sua prima, Felisberta, nasceu, estimo,

em finais da década de 1850 — não me foi possível localizar seu regis-

tro de batismo — e era filha de Romão com a escrava Severina, a últi-

ma filha de uma africana chamada Tereza.30

Mesmo que se tratasse do período de fim do tráfico negreiro, essa

geração de escravos ainda conheceu a fazenda do Morro Alto em uma

relativa pujança. Aos poucos, porém, as famílias escravistas foram des-

25

IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 51, ano de 1855.

26 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 54v, ano de 1825.

27 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 81v, ano de 1829.

28 APERS, COA – CA, estante 159, caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz

Osório Marques, ano de 1883, f. 25.

29 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 23r

30 APERS, COA – CA, estante 159, caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz

Osório Marques, ano de 1883, f. 25 (no que diz respeito à filiação materna); relatos

orais (no que diz respeito à filiação paterna).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 38

locando seu capital fundiário e em gado vacum e cavalar para outras

localidades onde também eram terratenentes, sobretudo São Francisco

de Paula de Cima da Serra e Capivari (BARCELLOS et al., 2004). De-

pendente que era dos braços escravos e do tráfico atlântico como mer-

cado consumidor de aguardente (WEIMER, 2013), a decadência da

escravidão, marcada pelas leis abolicionistas, representou um progres-

sivo abandono da fazenda do Morro Alto, onde foram permanecendo os

cativos ou ex-cativos e suas famílias. Além disso, trata-se de período

de fim de vida da geração dos filhos dos senhores originais daquela

propriedade, o que não deixa de representar, de certa forma, a “morte”

da fazenda do Morro Alto, já que alguns deles não deixaram descen-

dência.31

É nessas circunstâncias que esse casal de primos cativos consti-

tuiu família — mais adiante conheceremos as peculiaridades dessa —

entre 1881 (ano de nascimento de Pulquéria, filha apenas de Felisber-

ta32

) e 1883 (ano de nascimento de Angélica, filha de ambos)33

. Depois

disso, tiveram oito filhos, que teremos oportunidade de conhecer logo

adiante. Na onda de alforrias em massa que caracterizou o ano de

1884 (MOREIRA, 2003), libertou-se Manoel Inácio, por meio de carta

outorgada pelo senhor Thomaz Osório Marques (SCHERER; ROCHA,

2006). Pertencente ao mesmo amo, Felisberta foi herdada por sua irmã

Rosa Osório Marques por ocasião de seu inventário, do ano seguinte. A

documentação levantada não deixa claro o momento exato em que

Felisberta libertou-se; todavia, ela figura, já na condição de “ex-

escrava”, como beneficiária, junto com 23 companheiros, em uma doa-

ção de terras doadas em testamento por Rosa, que não possuía fi-

lhos.34

Mesmo os descendentes de cativos não-herdeiros naquele do-

31

O inventário de Pascoal Osório Marques data de 1884, de Thomaz Osório Marques,

de 1885, e de Rosa Osório Marques, de 1888. Ver referências escritas ao final. É

verdade que havia outros senhores Marques da Rosa e Nunes da Silveira nos arredo-

res, mas eram esses três que habitavam o “núcleo” do Morro Alto e a quem pertenci-

am os escravos em questão. Suas irmãs Ana e Maria já eram mortas havia muito.

32 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de Concei-

ção do Arroio, f. 79-79v, ano de 1881.

33 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de

Conceição do Arroio, f. 97, ano de 1883.

34 Cartório de Órfãos e Ausentes de Viamão, estante 24 e/c, caixa 030.0125, auto n.

108, inventário e testamento de Rosa Osório Marques, ano de 1888.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 39

cumento seguiram ocupando o território descrito anteriormente, sob a

modalidade de compras de terras ou posse mansa.35

Inobstante Felis-

berta ser “herdeira”, Manoel Inácio optou por adquirir um terreno para

sua família.36

Ele já aparecia desempenhando o ofício de carpinteiro no inventá-

rio da senhora Isabel Maria Osório37

e, mais tarde, no de seu filho Tho-

maz Osório Marques.38

A acumulação proporcionada por meio dessa

profissão, aprendida durante os anos do cativeiro, permitiu que ele ra-

pidamente adquirisse um terreno como garantia do sustento de seus

filhos nos primeiros anos do pós-Abolição. Afinal, como ressalta Gue-

des (2008), em regiões de produção canavieira, o trabalho dos carpin-

teiros era fundamental para o conserto e manutenção dos engenhos,

um prestígio social que foi utilizado como ferramenta de ascensão soci-

al. Para o autor, ao contrário do que tanto se repete na historiografia,

podia haver, sim, uma valoração positiva do trabalho de libertos.

Na vida em liberdade que os esperava, conforme visto nas consi-

derações iniciais, era dificultoso o acesso à terra para a maior parte das

famílias negras ou pardas (RIOS, 2005a). Ao mesmo tempo era funda-

mental uma maior autonomia, porque essa viabilizava modos de sobre-

vivência independentes e, portanto, melhores condições de negociação

em relação aos grandes fazendeiros. Essa perspectiva foi analisada por

diversos historiadores através da noção de “projeto camponês”. A situ-

ação social almejada era a de pequenos produtores de alimentos. Tra-

35

O que gera na comunidade que hoje a ocupa a sensação de justiça da fazenda como

um todo lhes pertencer. Isso, de fato, ecoa o processo de ocupação territorial históri-

ca ao longo do século XX, que está para além das dimensões doadas por Rosa, das

regras do direito sucessório ou ao necessário pertencimento às famílias do rol de

herdeiros da senhora escravista.

36 Segundo uma neta, como de fato não foi entregue, o terreno doado por Rosa era uma

“herança sim ou não”, diante do que o previdente patriarca optou por adquirir terras

familiares. Entrevista filmada com dona Aurora Inácia Marques da Silva no dia 13 de

março de 2010 em Osório. (LABHOI – UFF)

37 APERS, COA – CA, estante 159, caixa 026.0306, auto n. 99, inventário de Isabel Ma-

ria Osório, ano de 1867

38 APERS, COA – CA, estante 159, caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz

Osório Marques, ano de 1883. Manoel era afilhado de Thomaz, isto é, de seu senhor,

o que o colocava em uma situação sui generis, considerando a incompatibilidade en-

tre escravidão e apadrinhamento propugnada por alguns historiadores (SCHWARTZ,

1988). Por outro lado, isso reforça a hipótese de um estatuto privilegiado.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 40

ta-se da aspiração por estabelecer-se em terras próprias, de forma a

garantir sustento e autonomia para definir os ritmos de trabalho. Ou, em

outros termos, a ambição era tornarem-se camponeses nos termos

chayanovianos, que veremos logo mais.

As expectativas em relação à vida em liberdade foram forjadas du-

rante a vigência do próprio cativeiro. Alimentava-se um ideal contrastivo

em relação à realidade escravista (MATTOS, 1998), diante de visões da

liberdade mais do que propriamente através de critérios de natureza

étnica. Da homogeinização, à diferenciação familiar; do trabalho no eito,

ao trabalho familiar e ao acesso à terra; do trabalho para outrem, ao

trabalho para si. É possível que Manoel Inácio e Felisberta já gozassem

de algumas dessas prerrogativas, duramente conquistadas durante a

vigência do cativeiro. Eram cativos situados em uma posição relativa-

mente bem-sucedida (na medida em que é possível ser bem-sucedido

diante das agruras do cativeiro), e isso não pode ser esquecido (vere-

mos adiante que existe, nessa família, a crença de que Manoel Inácio

era filho de um integrante da família senhorial). De acordo com o que

vimos na introdução, existia a possibilidade do desenvolvimento de

roças familiares por parte dos escravos no interior das fazendas escra-

vistas, sobretudo entre mais bem situados. De todo modo, estava em

jogo a manutenção dessas prerrogativas.

O status de camponeses independentes foi alcançado em agosto

de 1890, quando Manoel Inácio Marques comprou de Manoel Osório

Marques, integrante da família de quem havia sido escravo — situação

inscrita na mesma dinâmica do redirecionamento das propriedades dos

Marques para localidades mais promissoras —, um terreno de tamanho

de 100 braças na localidade do Espraiado, por 500 mil réis.39

Não se

sabe se era, de fato, a instituição de uma nova unidade produtiva, ou

ocorria deslocamento de uma roça familiar preexistente no interior da

fazenda escravista, ou ainda, a gleba adquirida se situava no mesmo

lugar onde já plantavam anteriormente. A última possibilidade era, é

claro, mais favorável ao núcleo familiar, mas também deveria envolver

negociações complexas com os antigos senhores.

A família guarda, ainda, a lembrança de ter tido uma atafona na

localidade denominada Ramalhete. Conforme recordam, o terreno no

Espraiado era para futura partilha entre os filhos, ao passo que a outra

39

Recibo em poder de sua neta Aurora Inácia Marques da Silva, em Osório.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 41

propriedade era dedicada ao trabalho do patriarca na produção de fari-

nha. Lamentam, contudo, que, vitimado por um infarto, Manoel Inácio

faleceu sem ter tempo de registrar a partilha do Ramalhete entre seus

filhos, apenas do Espraiado.

Diante da ausência de escritura pública, no que toca ao Espraiado,

do qual há mais referências documentais, operou-se o tipo de transa-

ção denominada como “venda por recibo”, na qual um papel de quita-

ção emitido pelo vendedor fazia as vezes do documento oficial. Era um

estatuto precário para demonstração de propriedade, mas, ainda assim,

a relação de Manoel Inácio e seus familiares com aquele pedaço de

chão era de proprietários, e não de posseiros, o que torna incompreen-

sível a omissão do terreno familiar em censo que seria realizado trinta

anos mais tarde.

Em 1920, com efeito, foi realizado um levantamento dos imóveis

rurais do Rio Grande do Sul.40

A família em questão nele não figurava,

e tampouco os diversos camponeses negros do Morro Alto arrolados no

prefácio. Descendentes dos antigos senhores — os Marques — foram

devidamente cadastrados, o que descarta a possibilidade do distrito ter

sido esquecido e sugere ter havido um recorte racial na escolha de

quais propriedades registrar. O “esquecimento” presente no censo pode

ser inserido, de uma forma mais ampla, em silenciamentos discursivos

acerca da existência e das práticas sociais de lavradores autônomos

negros ao longo do século XX, inseridos que estão em uma invisibiliza-

ção histórica mais ampla como segmento social (LEITE, 1996). Já se

falou anteriormente acerca da questão.

De toda forma, tratava-se, por meio da aquisição de glebas pró-

prias, de um momento de afirmar-se como livres, e isso se expressava,

também, por meio dos padrinhos escolhidos para as crianças.

40

BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Recenseamento do Brasil

realizado em 1º de setembro de 1920: relação dos proprietários dos

estabelecimentos ruraes recenseados no Estado do Rio Grande do Sul. Rio de

Janeiro, 1927. v. 1, p. 379-395.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 42

Foto 1 – Recibo de aquisição das terras no Espraiado

Recibo de aquisição das terras no Espraiado, em poder de Aurora Inácia Mar-ques da Silva, neta de Manoel Inácio Osório Marques: “Recebi de Manoel Inácio a quantia de quinhentos mil rs 500:000 proveniente de cem braças de terras que vendi no lugar denominado Espraiado como não tendo escritura publica por isso passo o presente fico em lhe passar a escritu-ra pública e me assino. Cima da Serra, 5 de agosto de 1890. Manoel Osório Marques”.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 43

4.2 Filhos de ventre-livre, filhos livres e seus padrinhos

É verdade, nós temos compadre e comadre por tudo aí.

Nesse Morro Alto, nesse mundão de Nossa Senhora do

Rosário. Também, oito filhos, mais a Porquéria, que é só

minha, e o Belisar, que é só dele. Tem parente, gente po-

bre, gente rica, parentada do nhonhô e do Manoeli.

Em pesquisa sobre a mobilidade social de libertos em uma fregue-

sia da Província de São Paulo na primeira metade do século XIX, Gue-

des (2008) concluiu pela importância de laços verticais de compadrio

entre ex-cativos em trajetórias de ascensão social. Esses vínculos via-

bilizariam oportunidades mais favoráveis de inserção, pelos recursos

materiais e simbólicos acessados. Concordo, mas com ressalvas. No

caso por mim estudado, as alianças verticais são majoritárias, mas não

exclusivas. É evidente que trabalho com uma amostra pequena, já que

seria impossível reconhecer a totalidade de ex-escravos nos livros de

batismo e identificar a natureza dos elos que os ligavam aos padrinhos,

meramente a partir de seus nomes. Todavia, a análise qualitativa que

desenvolvo possibilita a compreensão da natureza das relações, para

além da dicotomia horizontal/vertical. A horizontalidade e a verticalidade

devem ser percebidas através de um gradiente: mais ou menos hori-

zontais ou verticais.

Entre dez filhos de Felisberta e/ou Manoel Inácio (ver genealogia

ao final do e-book) foi possível localizar o registro de sete deles. Porém,

se há alguma distorção, é no sentido de maximizar, e não de minimizar,

alianças ascendentes: trata-se de cativos com um relativo trânsito na

casa-grande. A eles era reservada uma relação privilegiada que não

estava disponível aos demais. Lembro ainda de que, antes de constituí-

rem família, Felisberta e Manoel Inácio haviam tido filhos com outros

pais. Mais adiante suas histórias serão examinadas com maior minúcia.

Em 2 de abril de 1874 a escrava Libânea, pertencente a Clara

Marques da Silveira — uma prima em segundo grau do senhor de Ma-

noel Inácio — deu à luz um menino de nome Belisário.41

A paternidade

desse rapaz de “ventre livre” é atribuída a Manoel Inácio. Os descen-

dentes de Belisário reconhecem os filhos de Felisberta como tios e

41

IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de

Conceição do Arroio, f. 26v, ano de 1874.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 44

vice-versa.42

Sete anos mais tarde, nasceu Pulquéria, filha de Felisberta

e de pai ignorado.43

Ambos, rebentos de pais diferentes, gozavam de

uma situação diferente daquela dos irmãos. O caso de Belisário era

peculiar, porque ele foi criado no fogo materno, ao passo que Pulquéria,

bem ou mal, residia na mesma casa de sua mãe e do padastro. Criou-

se, assim, junto aos demais irmãos. A unidade doméstica,44

já vimos,

foi estabelecida entre 1881 e 1883, quando nasceu Angélica, ainda

ingênua, nos termos da lei do ventre livre.45

A filha seguinte, Raquel, já

nasceu no exercício da liberdade, no dia 18 de fevereiro de 1886,46

a

exemplo de Rosalina, de data de nascimento estimada em 1885,47

de

Maria, nascida a 15 de janeiro de 1890,48

de Manoel, de 1º de novem-

bro de 1894,49

Mercedes, de 8 de dezembro de 1896,50

Ladislau, de

42

Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF); Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de

janeiro de 2009 no Caconde (LABHOI – UFF).

43 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de Concei-

ção do Arroio, f. 79-79v, ano de 1881.

44 É quase certo que escravos nas condições de Manoel e Felisberta tivessem conquis-

tado o direito a instituir um rancho próprio, em contrário de seguir ocupando as mora-

dias coletivas da senzala.

45 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de

Conceição do Arroio, f. 97, ano de 1883.

46 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 4, livro 13 de batismos de Conceição do Arroio, f.

88, ano de 1886. Felisberta deve-se ter emancipado por ocasião da grande leva de

alforrias de meados dos anos de 1880 no Rio Grande do Sul (a respeito, ver Moreira,

2003). No registro de batismo de Raquel, Felisberta é mencionada como Felisberta

Osório Marques.

47 De acordo com o inventário de seu pai, nascida em 1885 (APERS, COA - CA, estante

159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano

de 1906). Embora o registro de batismo de Raquel aponte 1886 como data de

nascimento e o inventário indique 1885 como nascimento de Rosalina, o título de

herdeiros do inventário aponta Rosalina como mais jovem que Raquel. Creio que o

ordenamento dos filhos no título de herdeiros seja um indicativo mais confiável que a

idade estimada.

48 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 6, livro 15 de batismos de Conceição do Arroio, f.

75, ano de 1890.

49 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 1, livro 16 de batismos de Conceição do Arroio, f.

83, ano de 1894.

50 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 2, livro 17 de batismos de Conceição do Arroio, f.

79, ano de 1896.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 45

data de nascimento estimada em 1898,51

e José, nascido depois de

1898 e falecido entre 1904 e 1906.52

Classifiquei os filhos em cinco casos distintos, a fim de avaliar

quem foi escolhido como padrinhos e madrinhas nas diferentes situa-

ções da família: em primeiro lugar, Belisário, filho de “ventre-livre” de

Manoel Inácio com outra escrava, e que, até onde me consta, não tinha

o mesmo estatuto de Felisberta na escravaria de sua senhora. Em se-

gundo lugar, temos Pulquéria, também nascida sob a vigência da lei de

1871, porém filha apenas de Felisberta. Outra condição é a de Angéli-

ca, filha do casal e da mesma condição jurídica dos meio-irmãos mais

velhos. O quarto caso é o de Raquel, Rosalina e Maria, filhas nascidas

livres, porém antes dos pais tornarem-se proprietários de um terreno;

finalmente, Manoel Filho, Mercedes, Ladislau e José nasceram quando

seus pais já tinham uma situação estável como camponeses negros,

donos de terras. Creio que organizar cronologicamente o nascimento

dos filhos é importante, a fim de verificar com mais precisão os critérios

utilizados para escolha de padrinhos.

51

APERS, COA - CA, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel

Inácio Osório Marques, ano de 1906.

52 APERS, COA - CA, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel

Inácio Osório Marques, ano de 1906.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 46

Quadro 1 – Filhos de Manoel Inácio e Felisberta – padrinhos e madrinhas – 1874-

1896

Nome Mãe Nascimento Padrinhos Madrinhas Livro Folha

Belisário (caso 1)

Libânea (parda, escrava de Clara Marques da Silvei-ra)

02.04.1874 Elias (escravo de Sebas-tião Mar-ques da Silveira)

Jacinta (escrava de Clara Silveira)

Filhos livres de mães escravas

26v

Pulquéria (caso 2)

Felisberta (escrava de Tomás Osório Marques)

01.03.1881 José Marques Osório

Maria Osório Marques

Filhos livres de mães escravas

79/79v

Angélica (caso 3)

Felisberta (escrava de Tomás Osório Marques)

28.11.1883 João Osório Nunes

Isabel de Azevedo

Filhos livres de mães escravas

97

Raquel (caso 4)

Felisberta Osória Marques

18.2.1886 Zeferino Antônio de Oliveira

Raquel Marques

13 88

Rosalina (caso 4)

Maria (caso 4)

Felisberta da Con-ceição

15.1.1890 Feliz Luirissi

Nossa Senhora da Concei-ção

15

Manoel (caso 5)

Felisberta Severiana

1.11.1894 Marcelino Osório Marques

Isabel Osório Marques

16 83

Mercedes (caso 5)

Felisberta Silveira Marques

8.12.1896 Luiz Eu-frásio Marques

Serafina Francisca Pastorina

17 79

Ladislau (caso 5)

José (caso 5)

Belisário era afilhado de uma escrava pertencente à mesma se-

nhora de sua mãe e de um cativo de um irmão daquela senhora. A crer

na genealogia apresentada em Barcellos et al. (2004), Jacinta era mãe

de Libânea e portanto, avó do batizado. É possível que Elias fosse,

também, um cativo, no máximo, aparentado, ou no mínimo, das rela-

ções de amizade e confiança daquele núcleo cativo. É possível que

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 47

Libânea não tivesse à disposição os mesmos vínculos verticais para os

quais apelar. No entanto, creio que não se pode definir tais relações

unicamente pela ausência de alternativas, pelo negativo: é provável que

essa mãe tenha, simplesmente, confiado o parentesco espiritual de seu

filho àqueles por quem sentia confiança e afeto.53

Opção distinta foi a de Felisberta: embora Pulquéria e Angélica

não fossem filhas do mesmo pai, em ambos os casos apelou-se a pa-

drinhos oriundos da família senhorial. Os padrinhos de Pulquéria eram

sobrinhos do senhor de sua mãe, e irmãos de Manoel Osório Marques

(BARCELLOS et al., 2004), aquele que em 1890 vendeu o terreno no

Espraiado para Manoel Inácio. Quanto aos padrinhos de Angélica, não

sei de quem se trata João Osório Nunes, mas possivelmente seja irmão

de Ana Osório Nunes, cunhada do senhor de Felisberta e esposa do

possível pai de Manoel Inácio Marques. De qualquer maneira, o sobre-

nome evidencia tratar-se de integrante da família senhorial. É o mesmo

caso de Isabel de Azevedo, que tinha tal sobrenome por casamento

com Antônio de Azevedo e Souza, mas era Osório Marques de nascen-

ça e, também, irmã dos padrinhos de Pulquéria (BARCELLOS et al.,

2004).

Machado (2008) destacou o grande número de alianças de com-

padrio a unir cativos e membros da família senhorial em uma freguesia

paranaense em inícios do século XIX. A autora sublinha que, se era

raríssimo senhores apadrinharem seus próprios cativos, era relativa-

mente comum que padrinhos fossem escolhidos no seio da família se-

nhorial. Sem querer discutir o caráter paternalista envolvido nessas

alianças, procuro, contudo, ponderar que, no pós-Abolição, Felisberta e

Manoel Inácio, sem prescindir desses vínculos, procuraram diversificá-

los. É o que vemos quando analisamos o batismo de Raquel. A madri-

nha, homônima da batizada, era Marques. Porém, no exaustivo levan-

tamento daquela família senhorial realizado por Barcellos et al. (2004),

não há nenhuma integrante da casa-grande com esse nome. Mais pro-

vável tratar-se de uma irmã de Felisberta assim denominada,54

que

53

Como bem destacou Cacilda Machado, “a despeito da importância estratégica do

compadrio com membros da parentela senhorial e da elite branca, esses escravos

nunca deixaram de relacionar-se com outros cativos, com forros, com livres de cor, e

mesmo com brancos pobres” (Machado, 2008, p. 196).

54 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 5, livro 3 de batismos de escravos de Conceição do

Arroio, f. 45v, ano de 1867.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 48

tendo obtido a liberdade teria assumido o sobrenome senhorial, o que

era uma prática comum na região. Seu padrinho, Zeferino Antônio de

Oliveira, não pertencia à família senhorial e tampouco me parece ser

um notável local, assim como o padrinho de Maria, Feliz Luirissi — não

vi o nome de nenhum dos dois em meus estudos sobre Conceição do

Arroio. A madrinha da última era Nossa Senhora da Conceição, em

homenagem à padroeira da freguesia. Essas alianças com homens

livres — e com o divino — demonstram um esforço no sentido de am-

pliar o arco de alianças familiares. Não significa um abandono dos vín-

culos com a antiga família senhorial. Pelo contrário, esses se encontra-

vam consolidados e era possível buscar outros compadres.

Aqueles vínculos foram reforçados no batismo de Manoel Inácio

Filho, quando Marcelino Osório Marques e Isabel Osório Marques fo-

ram chamados a serem padrinhos do primogênito do sexo masculino do

casal. Esse batismo é marcante por duas razões. Em primeiro lugar,

não se trata de um apadrinhamento tão vertical quanto antes. Afinal,

Manoel Inácio Marques procurou novamente a antiga família senhorial

justamente no momento em que se tornou proprietário de uma gleba.

Não deixa de ser uma forma de demonstração de que o desnível social

entre eles, se ainda era elevado, não era abissal quanto antes. Orgu-

lhosamente, Manoel Inácio apresentava-se para Marcelino e Isabel

como um pequeno proprietário de terras, próspero e bem-sucedido.

Mais do que isso, considerando a possibilidade de Manoel Inácio

Osório Marques ser filho de Pascoal Osório Marques, irmão de Rosa e

Thomaz, conforme acreditam os seus descendentes —, Marcelino e

Isabel eram meio-irmãos de Manoel Inácio.55

Filho de Pascoal ou não,

as filhas de Manoel Inácio Filho certamente mencionam esse compa-

drio como evidência do parentesco com a família senhorial, além de

acreditarem ser ele “branco”, e de lembrarem-se da assunção do so-

brenome senhorial.56

Em uma fala, Diva afirma que a madrinha de seu

55

Marcelino e Isabel Osório Marques eram filhos de Pascoal Osório Marques e Ana

Osório Nunes (BARCELLOS et al., 2004).

56 É moeda corrente na historiografia o quanto a herança nominal senhor-escravo era

comum; destaco apenas que esta situação foi acionada pela família em questão para

justificar o pretenso parentesco com os antigos senhores. Poderíamos mencionar,

ainda, uma carta em poder dos familiares, repleta de censuras relativas à manuten-

ção de uma benfeitoria, em pleno pós-Abolição, dirigida por Ana Osório Nunes, viúva

de Pascoal, a Manoel Inácio.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 49

pai poderia ser, precisamente, irmã do avô: “A madrinha dele era dessa

gente do Romário Machado, essa gente dele, do meu avô, Rodrigo, a

madrinha do meu pai era dessa gente do meu avô, não sei se era irmã

do meu avô, uma coisa assim. Era, só gente...”57

Dois anos mais tarde batizaria Mercedes, a outra filha nascida

após a aquisição do terreno no Espraiado de cujo nascimento tenho

registro escrito. Os vínculos horizontais não foram desprezados pelos

pais. Para batizá-la, foram chamados Serafina Francisca Pastorina,

meia-irmã de Manoel Inácio Marques, filha de Angélica Inácia com

Francisco Pastorino, e seu marido, Luiz Eufrásio Marques, também

oriundo da senzala dos Marques. Se o apadrinhamento de Manoel Filho

por Marcelino e Isabel Osório Marques não foi tão vertical, poderíamos

dizer que o apadrinhamento de Mercedes por Serafina e Luiz Eufrásio

não foi tão horizontal. Não há dúvidas de que Manoel Inácio procurou

camponeses negros como ele, isto é, pessoas em situação sócio-

econômica similar. Sua meia-irmã, porém, fora alforriada aos nove

anos, enquanto Manoel padeceu do cativeiro até, aproximadamente,

seus 37. Serafina tinha terras herdadas de seu pai (que era italiano, e

que, quase certo, foi quem bancou a alforria dos filhos); as de Manoel

eram fruto do seu trabalho.

Se o batismo de Manoel foi uma tentativa de equiparação, ou pos-

sível redução do distanciamento58

com meio-irmãos paternos, havia um

esforço similar diante de uma meia-irmã materna libertada ainda crian-

ça. Apresentar-se com o estatuto de pequeno proprietário podia ter um

grande simbolismo para alguém que, havia poucos anos, tinha sido

escravo.

Esse jogo de alianças verticais e horizontais — dicotomia que, es-

pero ter sido convincente, nem sempre é tão evidente — poderia estar

concluído não houvesse um outro aspecto, ainda que dificilmente per-

57

Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF). Grifos meus.

58 É claro que padrinhos, como sustentam alguns, tinham estatuto social superior aos

afilhados, o que relativiza essa equiparação, que só seria atingida, veremos adiante,

quando Felisberta casasse seu filho Manoel Inácio Filho com uma neta de Serafina.

Por ora, basta afirmar que se trata de uma aliança menos vertical do que seria em se

tratando de um integrante da família senhorial. Todavia, é de destacar que Manoel

Inácio esperou tornar-se proprietário de um terreno para procurar irmãos, maternos e

paternos.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 50

ceptível na documentação oficial. O fato é que, paralelamente aos ba-

tismos oficiais, registrados na igreja, havia batismos realizados em ca-

sa, sobretudo diante da indisponibilidade dos padres percorrerem todo

município. Não apenas, mas principalmente quando a criança tinha

problemas de saúde e havia o temor de que ela morresse pagã, reali-

zava-se um ritual doméstico:

Diva – Ah, o batismo em casa é porque a gente não pode

ter criança dentro de casa sem ser batizada, porque o an-

jo é pagão. Então a gente pega uma velinha, acende uma

velinha, bota água dentro do [?] e batiza a criança. “Em

nome do pai, do filho, do Espírito Santo, Amém”. Reza o

Pai Nosso, reza o Deus Pai, o padrinho garra a velinha, a

madrinha [incompreensível].59

A prática do batismo em casa, entretanto, dava-se mesmo quando

a criança era saudável. Parece ter havido uma possibilidade de amplia-

ção das possibilidades de compadrio — havia também os padrinhos de

crisma — e de conciliação de alianças verticais com as horizontais. A

senhora Diva contou uma história que ilustra essa situação. O fazendei-

ro João Machado — filho da madrinha de seu pai — fora escolhido

como seu padrinho. No entanto, ele nunca conseguira descer a serra

junto com sua esposa para a realização do rito, e tampouco seu pai

conseguira subir a serra com a filha e a esposa para batizar Diva. Nes-

se impasse ficaram até que ela ficou mocinha — cerca de treze anos —

e ainda possuía, apenas, o batismo “em casa”. “Eu disse pro pai, ah, eu

vou convidar um padrinho para mim. Mas tu não quer teu padrinho? Eu

quero, mas ele não desce nunca pra me batizar, cada vez que ele vinha

ele me dava dinheiro, ele não sabia o que fazia comigo, mas ele não

vem!”60

Formalizou-se, assim, o batismo na igreja. A própria afilhada esco-

lheu um padrinho pertencente à comunidade — Manoel Maria — e a

madrinha no religioso foi a mesma que a havia batizado em casa, Ben-

ta, sua irmã mais velha.61

A situação acabou, de fato, pela escolha de

59

Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

60 Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

61 O batismo em casa podia ser consagrado na Igreja, referendando os mesmos padri-

nhos do rito doméstico, ou, pelo contrário, possibilitando a escolha de padrinhos dis-

tintos e multiplicando de vínculos de apadrinhamento.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 51

padrinhos horizontais, mas isso só se deu pelo fracasso da escolha

inicial de um fazendeiro para o ritual na Igreja. De acordo com o plane-

jamento prévio, apenas em casa seria realizado o ritual envolvendo

integrantes da comunidade.

Entre os integrantes da geração de Diva cujos laços de apadri-

nhamento pude acompanhar — seus irmãos —, prevaleceu um padrão

de padrinhos elencados no interior da família extensa. A escolha da-

quele fazendeiro foi exceção. A mais velha, Benta, era afilhada dos

avós maternos. A seguinte, Amélia, era afilhada de uma tia-avó e de um

tio; Aurora, de um tio-avô e de uma tia-avó; Maria, de uma prima, neta

de Pulquéria, e de um tio; Geni, de Pulquéria e seu marido; Manoel

Inácio Neto, de uma pessoa de Morro Alto de quem não pude identificar

um eventual parentesco e de um primo, filho de Belisário; e, finalmente,

Eva, de uma irmã de seu pai e seu filho. A geração seguinte parece

consolidar uma tendência desenhada com a Abolição da escravidão de

buscar relações de apadrinhamento mais equânimes.

De qualquer forma, acredito ser necessário relativizar a oposição

apadrinhamentos verticais/horizontais e levar em conta, mesmo que de

difícil acesso, as modalidades informais de apadrinhamento. É claro

que são raros documentos que permitem apreciar comparativamente

quão verticais ou horizontais eram as relações. Isso só se torna viável a

partir do cruzamento de um sem-número de fontes e de uma grande

intimidade entre o historiador, o assunto pesquisado e os personagens

envolvidos. O apadrinhamento na informalidade, sem dúvida, só me foi

acessível por meio da oralidade; sua face formal foi desenvolvida basi-

camente a partir de fontes documentais escritas, basicamente os regis-

tros de batismo, ainda que cruzados com informações constantes em

alforrias e, sim, na oralidade. Foi essa última, no entanto, que possibili-

tou elucidar as tramas sócio-políticas por trás dos elos de compadrio,

assim como observar relações de conjugalidade não perceptíveis por

meio da documentação escrita.

Se a verticalidade ou horizontalidade das relações permitia mati-

zes, o mesmo pode ser dito em relação à legitimidade das relações.

Mesmo quando não sacramentadas na Igreja ou registradas em cartó-

rio, em um âmbito local a algumas se reconhecia legitimidade e a ou-

tras não. Examinemos esse problema.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 52

4.3 Relações consensuais e noções locais de legitimidade62

Sim, nós nunca casamos. Naquele tempo nem se sabia o

que era casar. Mas quem falava em casar? Mas ele me

tratava por esposa. A vizinhança também nos tratava de

casados. E era assim.

A bibliografia mais recente tem questionado o modelo freyriano de

família patriarcal, isto é, aquela que inclui, além do núcleo doméstico,

um sem-número de unidades menores de dependentes e agregados,

todos subordinados ao poderio patriarcal inquestionável do senhor de

engenho. Sob esse prisma, mesmo os cativos fariam parte da área de

abrangência dessa família extensa. Dessa forma, esse modelo teórico

não prevê a possibilidade de arranjos familiares específicos da senzala.

Desenvolveu-se, posteriormente, nos anos 1980 e 1990, uma atenção

especial para modalidades alternativas de arranjo familiar e formas

consensuais de relacionamento. Segundo Machado,

[...] inúmeros historiadores destacaram a vigência, no

passado brasileiro, de modalidades de relações consen-

suais entre iguais, conhecidas e aceitas pela comunidade,

pelos parentes e por autoridades civis e eclesiásticas, as

quais estariam na origem da constituição de outras for-

mas de família que não aquela de nítidos traços patriar-

cais (MACHADO, 2008, p. 71).

Existe uma polêmica identificada pela autora sobre a existência

efetiva da família patriarcal como síntese da arquitetura do poder da

sociedade colonial, ou, pelo contrário, como ideal disciplinador, conjun-

to de valores e práticas norteadoras das vivências familiares. Não se

possui, nesta pesquisa, de elementos empíricos que permitam um posi-

cionamento diante dessa questão, mas destaco o excerto por resumir

mui brevemente o “estado da arte”. A partir dele, pretendo verificar, no

grupo por mim estudado, como algumas dessas relações consensuais

foram tomadas como legítimas e outras não pelas próprias pessoas que

as viveram ou por vizinhos e amigos com quem interagiam. Em outros

termos, quais foram, no campesinato negro do Morro Alto, as noções

específicas e locais de legitimidade.

62

Uma versão preliminar deste subcapítulo foi apresentada no XXVIII Simpósio Nacio-

nal de História, Florianópolis, 2015.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 53

Felisberta e Manoel Inácio não eram legalmente casados, porém

em testamento ele legitimou os filhos que tivera com essa mulher, le-

gando-lhes a totalidade de seus bens. Manoel Inácio prevenia, ainda, a

possibilidade de nascimento de outro filho além daqueles que Felisberta

tivera com ele, contemplando-o antecipadamente em sua última vonta-

de:

Declaro que sou natural deste município, filho de pais in-

cógnitos, sou solteiro e não tenho impedimento algum pa-

ra casar-me, porém há muito vivo amasiado com a mulher

também solteira de nome Felisberta Marques, com quem

tenho os filhos seguintes: Angélica, Raquel, Rosalina, Ma-

ria, Manoel Deodício,63 Mercedes, Ladislau e José; pos-

suindo alguns bens de fortuna, tenho resolvido que por

minha morte sejam estes meus filhos reconhecidos como

filhos legítimos e meus únicos e universais herdeiros, e se

durante a minha vida esta mulher Felisberta tiver mais al-

gum filho, peço ao meu testamenteiro que o contemple

como irmão dos outros, e que goze das mesmas regalias

que a lei deve direito aos oito primeiros filhos.64

A um observador desavisado, é possível perceber um trivial caso

de perfilhação, não incomum no Brasil Imperial ou, anteriormente, no

Império Português: um casal de amásios — nesse caso, Felisberta e

Manoel Inácio — tinha filhos, naturais por não serem casados os pais.

Na sequência dos anos, no desenvolvimento dos afetos ou desenrolar

de interesses diversos, o pai reconhecia sua prole como legítima, as-

sumindo a paternidade que lhe cabia.

Existem, porém, alguns elementos que levam à crença sobre a

existência de especificidades locais nas formas de lidar com o estatuto

das crianças. A validade de uma relação não encontrava fundamento

nas prescrições legais ou eclesiásticas. A perfilhação não instituía uma

condição legítima. Sustento, por outro lado, que ela oficializava vínculos

anteriormente assim aceitos (não perante a lei, mas conforme a per-

cepção comunitária). Aqueles filhos, argumento nesse sentido, eram

63

Deodício era o apelido familiar de Manoel Inácio Marques Filho.

64 APERS, COA - CA, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel

Inácio Osório Marques, ano de 1906.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 54

localmente reconhecidos previamente à formalização representada pelo

testamento.

Felisberta parecia digna da confiança necessária para o reconhe-

cimento prévio. Do meu ponto de vista, naquela geração, mais que

aquelas prescrições, bastava à vizinhança o estabelecimento de uma

casa, de um lar compartilhado aceito como tal.65

Essa questão irá apa-

recer de forma recorrente e está no cerne das questões aqui discutidas.

Além do mais — e isso é muito importante, como símbolo de continui-

dade dos vínculos ancestrais (WEIMER, 2013) —, no caso dos relacio-

namentos admitidos como legítimos, os pais legaram os nomes de suas

linhagens às crianças, independente de terem ou não contraído matri-

mônio. Portanto, elas eram incorporadas a um sistema de parentesco

totalmente alheio à organização familiar católica. Procuro demonstrar

que era essa admissão a uma linhagem o determinante para a avalia-

ção da validade de uma relação, muito mais do que os laços matrimo-

niais firmados perante a Igreja.

Clifford Geertz (1997) apontou a discrepância existente entre con-

cepções legais formalizadas e sentimentos de justiça locais. O autor

pensou as sensibilidades jurídicas em uma escala muito mais ampla e

sistêmica do que a aqui desenvolvida. O antropólogo americano inda-

gou-se em que medida as percepções do Direito presentes no sudeste

asiático — malaia, muçulmana e hindu — expressavam noções judiciá-

rias locais e concepções de mundo. Minha escala é local, e meu pro-

blema é tão-somente um pequeno aspecto que, todavia, pode ser pen-

sado a partir da proposta geertziana. As proposições do autor muito

têm a ensinar acerca das concepções locais sobre os critérios locais de

pertencimento familiar. Para tanto, a observação do comportamento

matrimonial recente ou nas gerações anteriores no Morro Alto pode

ajudar a lançar luzes sobre os critérios locais de pertencimento familiar.

A analogia etnográfica, é claro, sempre comporta precauções, so-

bretudo por saber-se que as sociedades são dinâmicas. Obviamente, o

65

É bastante provável que esta seja, de fato, uma herança dos padrões de formação de

famílias escravas, nos quais a baixa legitimidade fazia da constituição de um fogo

critério suficiente para o reconhecimento de vínculos de parentesco; ou, até mesmo,

resultante de raízes culturais africanas. Ver Slenes (1999). Por outro lado, Silveira

(2006) localizou um documento de inícios do século XIX no qual se admitia o

reconhecimento por parte de “pessoas de amizade” dos vínculos entre um pai e seus

filhos naturais. Portanto, essa espécie de “aval” externo (não necessariamente do

Estado ou Igreja) circundava a questão da legitimidade desde havia muito.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 55

comportamento coletivo de inícios do século XXI não corresponde

àquele de um século antes. Efetivamente, as atitudes compartilhadas

na atualidade só podem informar sobre aquelas do oitocentos de forma

indireta. Inobstante, ao que se pode perceber, o século XX representou

um período de adaptação e adequação desse grupo aos parâmetros do

direito de família.

Em algum ponto da centúria passada, a sensibilidade jurídica mu-

dou, tudo indica, muito em função da disseminação de relações propri-

amente regularizadas. Desde então, as relações consensuais foram

progressivamente marginalizadas, e aos poucos perderam a aceitação

de que gozavam até aquele momento.

Explico melhor: a legitimidade não-formalizada que atribuem, hoje,

aos avós, é atribuída às dificuldades de acesso ao casamento religioso

ou civil “no tempo dos escravos”. Olham para o passado com critérios

de avaliação do presente e se apegam a uma justificativa impeditiva.

Certamente, nos dias de hoje, a condição que uniu Manoel Inácio e

Felisberta não seria reconhecida como correta, e tampouco desejável

pela descendência. Casamento “certinho” é no civil e no religioso. No

entanto, o olhar retrospectivo permite-os relativizar as circunstâncias

vividas pelos avós, ao enfatizar a carência de recursos disponíveis na

situação de cativeiro. Contrastivamente, é isso que os leva a valorizar

matrimônios regularizados, como contraponto a um benefício ao qual

outrora não teriam tido acesso.

Sendo assim, se há algum tipo de distorção pela ação do tempo,

não é no sentido da realização de uma transposição mecânica das

concepções de casamento e filiação. A historicidade, aqui, é devida-

mente reconhecida em contraste à continuidade. Percebe-se uma ma-

ximização das diferenças entre um tempo de alteridade — “dos antigos”

“dos avós” “dos escravos” — no qual não existia casamento, e um pre-

sente no qual ser marido, esposa, pai, mãe, filho são coisas devida-

mente regulamentadas. Conforme uma senhora que entrevistei, o regis-

tro de nascimento de sua sogra foi feito ao fim de sua vida por parte da

nora. A idosa registrada era filha de uma escrava da fazenda do Morro

Alto. “E naquela época não registravam, não casavam nem nada. Fos-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 56

se viver como quisesse. Branco tinha o direito de casar e ser registrado,

agora negro não”.66

É possível que, ao contrário da alegada proibição de casamento

entre os cativos, o matrimônio tivesse sido vedado ou constrangido em

virtude do próximo grau de parentesco do casal: conforme examinado

anteriormente, o pai de Felisberta era irmão da mãe de Manoel Inácio.

Eram, portanto, primos cruzados. Conforme destaca Silveira (2006), os

impedimentos canônicos levavam ao cerceamento de casamentos em

situações como essa durante o século retrasado. De acordo com a

mesma autora, ainda, a partir da segunda metade do século XIX (época

de nascimento do patriarca da família analisada), os direitos sucessó-

rios de filhos naturais foram ainda mais restringidos. Ora, como se

amasiaram entre 1881 e 1883, poucas chances havia de formalização

da situação. Talvez por uma resistência por parte da Igreja, talvez por

inércia, sua condição nunca foi sacramentada, em se tratando de ma-

trimônio incestuoso. Todavia, eis uma questão de mais difícil admissão

para os descendentes do que especificamente a ideia de que cativos

não podiam se casar. O parentesco entre Manoel Inácio e Felisberta foi

concluído por mim a partir dos livros paroquiais; é algo que escapa à

consciência dos entrevistados. Eis, portanto, uma razão para a explica-

ção adotada pela descendência, sustentada, é verdade, no indubitável

fato de uma baixa legitimidade entre os cativos, como era, consenso na

historiografia, comum em todo Império do Brasil.

Destaquei a existência de um reconhecimento comunitário de rela-

ções consensuais. Resta, porém, demonstrar esse argumento por meio

de exemplos empíricos. Não me limito aos registros de memória para

fazê-lo. Além das coincidências narrativas e documentais, percebe-se a

existência contrastiva de padrões de ilegitimidade. Pulquéria e Belisá-

rio, como visto, filhos, respectivamente, apenas de Felisberta ou Mano-

el Inácio, não foram contemplados no testamento de seu padrasto e

pai. Aos olhos da Igreja, todos eram filhos naturais, mas Manoel optou

por perfilhar apenas aqueles que tivera com sua prima.

O caso de Pulquéria não é surpreendente, já que era filha apenas

da esposa do testador. Dificilmente herdaria alguma coisa, mesmo ten-

66

Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva e Eva Inácia Marques no

dia 9 de janeiro de 2010 em Osório (LABHOI – UFF). O trecho citado é uma fala de

Aurora.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 57

do ali coabitado. Já Belisário, porém, era filho de Manoel Inácio, mas

não foi reconhecido como os demais. É simples: a relação estabelecida

com Felisberta era admitida como legítima; um caso ocasional e juvenil

com Libânea, não. As noções locais levaram-no a reconhecer apenas

os filhos que teve com a esposa com quem coabitou, constituindo um

fogo, uma casa — nos termos locais, uma família. A coabitação, tudo

indica, era o principal critério por meio do qual se percebia localmente a

legitimidade de uma união.

É surpreendente, ainda, a inexistência entre uma correlação entre

a aparência e a legitimidade. Não há privilégio aos mais claros. Tanto

pai quanto mãe de Belisário foram registrados como pardos, e sua des-

cendência é, de fato, mais clara do que a dos primos. O pai de Pulqué-

ria, por sua vez, é lembrado como “branco”. Veremos adiante os cami-

nhos pelos quais, pelo contrário do que se pode supor, os filhos mais

claros geralmente foram associados à condição ilegítima.

São relativamente comuns, em Morro Alto, narrativas assemelha-

das, relativas a filhos considerados ilegítimos nas primeiras décadas do

século XX ou mesmo mais recentemente. Um integrante de uma família

identifica ou se relaciona com alguém pertencente a outro “ramo” como

“tio”, “primo”. O parentesco sanguíneo é admitido, mas a pertença fami-

liar, em um sentido de aceitação em uma linhagem, não.

Dito em outros termos, se um homem tem um filho que não em um

casamento contemplado pelo consenso comunitário, a criança perten-

cerá ao “ramo” de sua mãe, e não ao de seu pai — em Morro Alto exis-

te uma forma de organização social por meio de ramos de parentesco,

nomeados conforme os ancestrais considerados seus fundadores

(BARCELLOS et al., 2004). Veremos um exemplo logo em seguida.

Mesmo pertencendo a ramos distintos, familiares paternos (meio-

irmãos, primos, sobrinhos, etc) reconhecem vínculos biológicos que,

contudo, não implicam na legitimidade comunitária. Para os netos de

Manoel Inácio, Pulquéria e Belisário são “tios” e seus filhos, “primos”.

Contudo, eles não fazem “parte da família”.

Um exemplo similar é aquele da família de Romão, também ex-

escravo, tio de Manoel Inácio e pai de Felisberta. A última, e mais al-

guns irmãos, eram filhos seus com a escrava Severina. Nos registros

de batismo dos filhos da última das décadas de 1850 e 1860 compulsa-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 58

dos, porém, consta, sempre, apenas o nome da mãe.67

Não há referên-

cias ao pai, que só se pôde identificar por meio da oralidade. Posteri-

ormente, entre as vésperas da Abolição e fins do século, dentre os

filhos de Francisca Maria da Silva, Romão Inácio Marques figura siste-

maticamente como pai das crianças.68

Não se dispõe de informações

que permitam inferir o caráter consensual ou formalizado da nova rela-

ção assumida, nem, tampouco, o porquê de ter sido explicitado como

pai dos filhos de Francisca e não dos de Severina. É possível haver, no

último caso, influência da conjuntura final do escravismo e do imediato

pós-Abolição.

A exemplo de seu sobrinho, os filhos que tivera com a primeira

mulher não foram reconhecidos. Não se sabe se Romão coabitou com

Severina (que já era morta quando ele “casou-se” novamente), mas é

certo que compartilharam o ambiente da senzala. Com Francisca, con-

tudo, habitou o mesmo espaço, um quinhão de terras no Morro Alto que

é, até hoje, ocupado por “sua gente”. A descendência de Severina e de

Francisca assume a familiaridade com os demais, empregando pala-

vras como “tio”, “primo” ou “parente” para se referirem uns aos outros.

Ora, os descendentes de Romão com Francisca pertencem ao

ramo dos “Romão”;69

ramos distintos são os “Tereza” e os “Felisberta”,

famílias identificadas com as filhas de outra mulher. Por meio da nome-

67

Batismo de Israel: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2 de batismos de

escravos, Conceição do Arroio, f. 45, ano de 1854; Batismo de Tereza: IJCSUD -

CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2 de batismos de escravos, Conceição do Arroio, f.

60v, ano de 1856; Batismo de Cassiano: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 4, livro 2

de batismos de escravos, Conceição do Arroio, f. 94v, ano de [1859 ou 1860];

Batismo de Filomena: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 5, livro 3 de batismos de

escravos, Conceição do Arroio, f. 11, ano de 1862; Batismo de Inocência: IJCSUD -

CHF, Mcf. 1391101, It. 5, livro 3 de batismos de escravos, Conceição do Arroio, f. 23,

ano de 1864; Batismo de Maria: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 5, livro 3 de

batismos de escravos, Conceição do Arroio, f. 41, ano de 1866; Conceição do Arroio,

f. 23, ano de 1864; Batismo de Raquel: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 5, livro 3 de

batismos de escravos, Conceição do Arroio, f. 45v, ano de 1867.

68 Batismo de Joaquim: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 3, livro 12 de batismos,

Conceição do Arroio, f. 123, ano de 1883; Batismo de Idalina: IJCSUD - CHF, Mcf.

1391100, It. 5, livro 14 de batismos, Conceição do Arroio, f. 73v, ano de 1887;

Batismo de José: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 6, livro 15 de batismos, Conceição

do Arroio, f. 99, ano de 1891; Batismo de Inácio: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 7,

livro 16 de batismos, Conceição do Arroio, f. 42v, ano de 1893.

69 Variante de Romão.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 59

ação das linhagens, os vínculos de filiação foram demarcados como

legítimos ou não. Quem não pôde se vincular ao ramo paterno, consti-

tuiu novas linhagens. Voltando à família tomada como exemplar, Pu-

lquéria é Pulquéria Felisberta, ao passo que os irmãos guardam em seu

nome o “Inácio” paterno. Belisário, por sua vez, traz consigo o “Oliveira”

de sua mãe. Nada disso tem a ver, por outro lado, com eventuais víncu-

los afetivos, percebidos através da nomeação das crianças. Com efeito,

em 1884, Tereza, a rigor preterida da legitimidade conferida pelo pai,

atribuía a seu filho o nome de Romão.70

Em outra família examinada, o

primogênito de Belisário atendia por Manoel.

O italiano Francisco Pastorino, por sua vez, também instituiu em

testamento como legítimos os filhos naturais que tivera com Angélica

Inácia, com quem tampouco contraíra matrimônio na Igreja.71

Tudo

indica tratar-se de prática recorrente na virada dos séculos XIX-XX.

Declaro que tenho 63 anos de idade. Declaro que nunca

fui casado. Declaro que no estado de solteiro com que me

acho, digo, em que me conservo, tenho quatro filhos de

nomes Herculano Francisco Pastorino, com vinte e nove

anos de idade, Serafina Francisca Pastorina,, com [f. 12]

vinte e sete anos de idade, Clementina Francisca Pastori-

na, de vinte e três anos de idade, e José Francisco Pasto-

rino, com vinte e um anos de idade, os quais houve no

estado de solteiro, com Angélica Ignácia Isabel, também

solteira. Declaro que os meus quatro filhos acima menci-

onados havidos no estado de solteiro, na forma do decre-

to número 463 de 2/9/1847, os reconheço como meus le-

gítimos filhos, e como tais os instituo meus únicos e uni-

versais herdeiros de todos os meus bens, direitos e

ações, como se fossem filhos de legítimo matrimônio. De-

claro que deixo à mesma Angélica Ignácia Isabel , mãe

de meus quatro filhos o usufruto de todos os meus bens,

e por sua morte passará a pertencer seus ditos filhos.72

70

Batismo de Romão: IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 4, livro 13 de batismos,

Conceição do Arroio, f. 18, ano de 1884.

71 A família do padrasto de Manoel Inácio aparece neste estudo apenas na perspectiva

comparativa de seus testamentos, dado que posteriormente sumiu da vivência e da

memória familiares, passando por um processo de embranquecimento.

72 APERS, Cartório da Provedoria – CA, IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 4, livro 13 de

batismos, Conceição do Arroio, f. 18, ano de 1884.

estante 159, maço n. 2, auto n. 39, inventário de Francisco Pastorino, ano de 1887.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 60

Pastorino, assim como o enteado, instituiu seus filhos como her-

deiros legítimos.73

Ainda que nada tenha legado à ex-escrava Angélica,

a ela deu o usufruto de todos os bens deixados. O que torna o caso

ainda mais eloquente, é que o conceito comunitário de legitimidade

possibilitou a alforria de Herculano, Serafina, Clementina e José. Apre-

sentado valor em inventário de sua senhora Isabel Maria Osório, em

1867, com recursos certamente originários de seu pai, o quarteto liber-

tou-se,74

ao passo que ocorreu a manutenção da condição cativa dos

meio-irmãos entendidos como ilegítimos (Manoel Inácio e Felipe Angé-

lico).

Quer dizer, a condição legítima sob um viés local, mesmo que sem

repercussões legais, produzia efeitos bastante palpáveis e significativos

na vida dos indivíduos: em um primeiro momento, pôde delinear frontei-

ras entre a escravidão e a liberdade; posteriormente, a condição de

herdeiro repercutia no acesso a terra e animais para os homens, ou a

um bom casamento, para as mulheres. Tudo indica que dentre os filhos

de Felisberta, Pulquéria, a “ilegítima”, fez o pior casamento, porque não

gozava do dote ou do status dos irmãos que lhes valessem para a ob-

tenção de um matrimônio mais favorável.75

Ao mesmo tempo em que o caráter consensual dos relacionamen-

tos representava um evidente “saber local”, no sentido geertziano, creio

que a opção de pais/maridos por não formalizar seus laços afetivos

está em diálogo também com a perspectiva da sociedade envolvente.

“Inexistir casamento entre os escravos” era uma inverdade — ainda

73

A família do padrasto de Manoel Inácio aparece aqui na perspectiva comparativa de

seus testamentos, dado que posteriormente sumiu da vivência e da memória

familiares, passando por um processo de embranquecimento.

74 APERS – COA – CA, estante 159, caixa 026.0306, auto n. 99, inventário de Isabel

Maria Osório, ano de 1867.

75 É provável que esse velado jogo de explicitar e ocultar relações consensuais fosse

uma circunstância recorrente entre cativos e libertos no mundo atlântico. Darei alguns

breves e aleatórios exemplos. Segundo Motta (1999), durante o século XIX em

Bananal, entre os escravos as uniões consensuais estavam sub-representadas. Quer

dizer, existiam maiores vínculos afetivos entre os cativos do que aqueles que as

fontes permitem antever, e, suponho, boa parte delas fosse reconhecida como

plenamente válidas pela escravaria. Scott e Hébrard (2012) também destacaram a

existência de padrões de legitimidade não necessariamente coincidentes com os

estatais ou eclesiásticos. Já no pós-Abolição cubano, os membros da comunidade,

conforme Scott e Zeuske (2004), tinham ciência de quem eram os pais das crianças e

consideravam pais não casados como um casal estabelecido.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 61

que, de fato, fossem raros nos livros compulsados —, e além do mais

os relacionamentos consensuais também podiam ser encontrados entre

indivíduos nascidos livres. Parece ser sobretudo uma justificativa cons-

truída a posteriori pela descendência. A questão que fica é: por qual

razão, sendo tacitamente aceitas as relações de coabitação em um

contexto circunscrito, eles não as oficializaram — especialmente em

momentos já distanciados da realidade escravista?

Há uma resposta evidente: ainda que compartilhassem padrões

locais onde podiam ser respeitáveis pais de família e segundo os quais

os fogos por eles constituídos eram aceitos como legítimos, aqueles

homens não eram alheios aos padrões de legitimidade vigentes na

sociedade envolvente, àquele afirmado pelos brancos. Todos os ho-

mens mencionados até o momento eram mais brancos do que suas

esposas. É o caso de Romão Inácio, Manoel Inácio e, ainda mais, do

italiano Francisco Pastorino. Não é à toa que os dois últimos declara-

ram-se solteiros em testamento. Ao mesmo tempo, em um plano local,

a formalidade legal, até certo momento, era indiferente.

Gozavam, assim, de duplo estatuto: diante do mundo dos brancos,

não se haviam casado e não tinham quaisquer compromissos com

aquelas mulheres, às quais sequer deixaram bens como herança; ao

passo que no Morro Alto, eram pais de família ciosos de seu núcleo

doméstico.

Talvez — em virtude de raras oportunidades, se existentes, de

aparição pública fora da comunidade negra com as esposas —, consi-

derassem desnecessária qualquer formalização. Poderia haver, tam-

bém, um menosprezo em virtude de diferenças cromáticas: Manoel

Inácio era “quase branco” e Felisberta “preta”, ao passo que Pastorino

era “italiano” e Angélica, ex-escrava. A descendência do último sempre

foi mais clara do que sua esposa — segundo critérios informais —, em

virtude da ancestralidade na península itálica.

O mesmo padrão aparece novamente uma geração mais tarde,

entre os filhos de José Francisco Pastorino, meio-irmão de Manoel e

filho de Francisco. Em três de agosto de 1921, Idalino Gomes Cidade

registrou o nascimento de seu filho José Emídio Gomes, nascido na

véspera. A mãe era Galdina Gomes, e o registro apontava José Fran-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 62

cisco Pastorino e Guilhermina Juliana como seus avós maternos.76

Ocorre que três anos antes foi registrada, já adulta, Maria José Francis-

ca, nascida em 1º de janeiro de 1895,77

filha da mesma Guilhermina

Juliana. Apenas dela.

O declarante era José Francisco Pastorino.78

Ao que tudo indica, o

pai da criança não se apresentou nessa condição, mas encarregou-se

do registro, ao passo que na certidão de Idalino ambos apareciam co-

mo avós. Weimer destacou que eram tênues os limites que separavam

declarantes de pais, sobretudo no caso de mães solteiras; esses procu-

ravam cercar-se das precauções para evitar confusões nesse sentido

(WEIMER, 2008).

A percepção de um relacionamento consensual entre José e Gui-

lhermina é reforçada (além de sublinhada pelos relatos orais) pela exis-

tência de outra neta da última que teve o primeiro como declarante:

Angélica Idalina Gomes, irmã de José Emídio, nascida em 6 de julho de

1914 e registrada em 22 de maio de 1915.79

Nesses casos, a não-

admissão da paternidade era, de certa forma, compensada por, talvez,

certa proteção, manifesta pela condição de declarante. Parecia tratar-se

de uma forma de, sem assumir a paternidade de uma criança, fazê-lo

de forma implícita. De toda maneira, ele não admitiu publicamente sua

condição paterna.

Filho de um italiano e de uma ex-escrava, José Pastorino tinha

dupla pertença: era um homem de prestígio na sociedade de Conceição

do Arroio. Ele testemunhou e assinou um sem-número de registros civis

no tabelionato de Maquiné, a rogo de pessoas que não sabiam escre-

ver. Ao mesmo tempo, tinha sólidos vínculos comunitários em Morro

Alto. Vivia uma relação consensual tida como legítima na região de

origem, e registrava os rebentos de sua família, sem, contudo, apresen-

tá-los dessa forma perante a sociedade em que era um homem respei-

76

IJCSUD - CHF, Mcf. 1444093, It. 9, livro 2 de registros civis de nascimento do

tabelionato do distrito de Maquiné, f. 46v, ano de 1921.

77 IJCSUD - CHF, Mcf. 1444093, It. 8, livro 1 de registros civis de nascimento do

tabelionato do distrito de Maquiné, f. 110, ano de 1918.

78 Relatos orais de moradores da região, particularmente dos filhos de Maria José

Francisca, dão conta da união matrimonial entre Guilhermina Juliana e José

Pastorino.

79 IJCSUD - CHF, Mcf. 1444093, It. 8, livro 1 de registros civis de nascimento do

tabelionato do distrito de Maquiné, f. 31, ano de 1915.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 63

tável. Nesse sentido, seguia os passos de seu pai e de seu meio-irmão.

No século XX, existiram continuidades e descontinuidades na aceitação

de relações consensuais, ainda que a formalização legal de uniões

consensuais tenha sido amplamente valorizada.

Não se trata, de modo algum, de especificidade do litoral norte-

riograndense, e tampouco do meio rural. Esteves (1989) demonstrou

que, no período inicial do século, era comum, entre os populares do Rio

de Janeiro, a existência de relações que, inobstante não estarem regu-

ladas legalmente, eram aceitas em âmbito local como legítimas. A auto-

ra explora, então, todos os conflitos e contradições que daí poderiam

decorrer. Ao que entendo, porém, no caso por mim estudado, na legiti-

midade diferencial estava em jogo o pertencimento a uma linhagem,

forma tradicional de organização sócio-familiar.

Esse padrão foi constatado pela antropóloga Cíntia Beatriz Müller

na mesma comunidade que estudo; a autora descreveu, inclusive, os

critérios localmente avaliados para aceitação de um casal. O matrimô-

nio “encontrava-se vinculado a coabitação e não às formalidades da

igreja e do Estado, necessariamente” (MÜLLER, 2006, p. 157). A situa-

ção perdurou até a década de 1920, conforme as estimativas da autora.

O que a levou a essa conclusão foi a narrativa, na década de

2000, por parte da senhora Lídia Laurinda, moradora da região exami-

nada. Segundo ela, seu pai, Barnabé Idalino, habitante do Faxinal do

Morro Alto, roubou Maria Laurinda, com pleno consentimento da moça.

Ambos eram netos de escravos. De acordo com Müller, era um proce-

dimento utilizado quando não havia autorização para namoro por parte

dos pais.

Ao longo dos anos, tiveram três filhos; instado por sua mãe, o ra-

paz “casou-se” com Maria — em termos locais, não oficiais. Dessa for-

ma, não se tratava de um casamento institucionalizado diante da Igreja

ou do Estado. Era, sim, ali aceito por ele ter “cuidado” da família, por ter

“morado” com Maria Laurinda e as crianças, por lhes ter dado comida.

Morar junto e o papel de provedor eram critérios definidores da condi-

ção paterna e que bastaram para assim identificá-lo aos olhos dos vizi-

nhos.80

80

O estudo de Silveira (2006) evidencia, em circunstâncias muito diversas, que em

princípios do século XIX os “cuidados” exercidos pelo também eram destacados

como evidência de paternidade.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 64

No momento em que Maria Laurinda foi posta sob suspeição, a

aceitação comunitária esgotou-se. O caso acabou mal: diante de fofo-

cas quanto à verdadeira paternidade dos filhos, Barnabé a abandonou,

e também às crianças. O núcleo, outrora legítimo de acordo com a per-

cepção coletiva, perdeu essa condição diante da maledicência, com a

saída daquele homem de seu fogo. Lídia, por exemplo, acabou por

conservar o nome — e, portanto, o pertencimento à linhagem — de sua

mãe, em lugar do “Idalina” paterno.

Em outros casos, porém, a formalização do casamento foi anterior

à década de 1920. Manoel Inácio Filho, primogênito de Felisberta e

Manoel Inácio, por exemplo, casou-se civilmente com Clara Amélia da

Rosa ainda em 1915, rompendo com o padrão de consensualidade da

geração de seus pais.81

Desde então, práticas de casamento até então

validadas em âmbito circunscrito seriam rechaçadas de uma forma

mais ampla, em parte por um novo acesso à justiça, em parte porque

os “filhos legítimos de pais solteiros” desejaram conferir a sua prole

uma proteção legal e uma bênção eclesiástica mais efetivas, a que

supostamente não tiveram acesso. Eis as razões, talvez, para Maria

Laurinda ter enfrentado fofocas que, imagina-se, não atingiram Felis-

berta. Das décadas de 1880/1890 à de 1920, eram outros os tempos. O

casamento de Manoel e Clara, assim, fornece uma bela porta de entra-

da para o estudo das práticas matrimoniais do grupo estudado.

4.4 Estratégias matrimoniais Seu Merêncio é vô da minha nora. Que guria trabalhadei-

ra, minha nossa! Ele também é cria da senzala da Nhá

Rosa. Minha guria também casou com um rapaz dele.

Gente muito nossa amiga, desde o tempo do cativeiro.

Imagino o orgulho de Felisberta naquele 4 de setembro de 1915,

quando, mais do que o matrimônio do primogênito do sexo masculino,

Manoel Inácio Filho, ganhava concretude uma aliança matrimonial du-

plamente favorável. A noiva era bisneta do italiano Francisco Pastorino;

neta de Serafina e portanto sobrinha-neta de Manoel Inácio (ver gráfico

81

IJCSUD - CHF, Mcf. 1444093, It. 10, livro do registro civil do estado do Rio Grande do

Sul – Cartório Distrital de Maquiné – Conceição do Arroio – 5º Distrito – Matrimônios

1914-1928, f. 7v-8, ano de 1915.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 65

genealógico a seguir). Ao mesmo tempo em que a aliança com uma

prima reforçava laços de solidariedade internos ao grupo familiar — e,

inclusive, consolidava a equiparação com parentes mais bem-

sucedidos, esboçada no batismo de Mercedes —, não era, contudo,

apenas uma aliança autocentrada na família extensa.

Também se tratava de um vínculo social estabelecido com outros

camponeses negros de estatuto social simétrico, já que o avô materno

de Clara era Merêncio Jacinto Marques. Merêncio era, além de herdeiro

da senhora Rosa Osório Marques, também é lembrado como carpintei-

ro e filho de um senhor. Esse casamento significava, portanto, uma rara

e feliz combinação entre duas soluções possíveis para problemas que

tensionavam as opções matrimoniais: endogamia ou exogamia; reforço

de vínculos internos ao núcleo familiar ou criação de alianças com famí-

lias de condições sociais similares.

Essa tensão foi sintetizada por Bourdieu, no que toca ao discurso

dos nativos da Cabília, em relação a casamentos realizados no interior

do núcleo familiar ou com elementos externos a ele.

A escolha entre a fusão e a fissão, entre o dentro e o fora,

entre a segurança e a aventura, impõe-se a propósito de

cada casamento: se ele garante o máximo de proteção ao

grupo mínimo, o casamento com a prima paralela não faz

senão redobrar a relação de filiação pela relação de ali-

ança, desperdiçando assim, por essa espécie de redun-

dância, o poder de criar alianças novas que o casamento

representa (BOURDIEU, 2009, p. 307).

Pode-se perceber, através do excerto de Bourdieu, uma tensão

entre casamentos realizados no seio do núcleo familiar e alianças ma-

trimoniais com outras famílias da região — escravas, nas gerações

mais remotas, ou de camponeses negros. O gráfico genealógico abaixo

dá conta de uma relação privilegiada entre descendentes das escravas

Inácia e Eufrásia e, ao mesmo tempo, da recorrência de casamentos

entre primos.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 66

Gráfico genealógico 1 – Casamento entre Manoel Inácio Marques Filho e Clara

Amélia da Rosa82

Manoel

Inácio

Marques Filho

Clara

Amélia

da Rosa

Ermenegildo

Luís

Francisco

Amélia

Ermenegilda

Francisca

Manoel

Inácio

Marques

Felisberta

Inácia

Marques

Serafina

Francisca

Pastorina

Luís

Eufrásio

Marques

Angélica

Inácia

Romão

Inácio

Marques

Inácia

Sibirina

Tereza

Marques

Jacinta

Merêncio Vitalina

Eufrásia

82

Fonte: registros de batismo da IJCSUD – CHF e relatos orais. Além do casamento

entre os primos-segundos Manoel Inácio Marques Filho e Clara Amélia da Rosa,

temos nessa árvore genealógica Felisberta Inácia Marques e Manoel Inácio Marques

como primos-irmãos e Ermenegildo Luiz Francisco e Amélia Ermenegilda da Rosa

como primos em segundo grau.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 67

Foto 2– Manoel Inácio Filho, com suas filhas Eva e Maria

Eva à sua direita e Maria à sua esquerda

Acervo particular de Eva Inácia Marques

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 68

É digno de registro o fato de que Manoel Inácio se casou com a fi-

lha de um irmão de sua mãe, de que Ermenegildo Luiz Francisco con-

traiu matrimônio com a neta de uma irmã de seu pai. O mesmo foi feito

por Manoel Inácio Filho. No caso específico, o casamento com primas

cruzadas pode ser uma maneira de escolher parceiras “familiares”, mas

não pertencentes à linhagem paterna. Além disso, no caso de cativos

como Manoel Inácio e Merêncio, referidos como filhos da família senho-

rial, a patrilateralidade não estava disponível para a celebração de ar-

ranjos matrimoniais.

Celebrar casamentos entre primos implicava em promover alian-

ças entre indivíduos já conhecidos de longuíssima data, e que prova-

velmente nutriam vínculos de afeto e amizade. Era uma maneira de

aumentar a probabilidade de obtenção de um “bom casamento” — o

matrimônio, particularmente em uma sociedade tradicional, sempre é

uma aposta —, já que a condição dos noivos era previamente conheci-

da. Não se pode, ainda, circunscrever os casamentos entre primos a

uma mera tentativa de manter indivisa a propriedade da terra, haja visto

que essa família já se casava entre si desde o tempo do cativeiro, des-

de antes de se tornar dona de um terreno.

Há duas possíveis explicações, não-concorrentes, para essa práti-

ca no caso de escravos: por um lado, a reiteração dos elos comunitá-

rios e afetivos. Eles eram bastante importantes para a reiteração de

laços solidários que permitissem vencer as agruras do cativeiro. Sob

outro ângulo, é possível considerar a promoção de matrimônios entre

primos a fim de manter roças familiares de cativos indivisas no interior

da propriedade escravista — a famosa economia dos escravos ou “bre-

cha camponesa”, como queiram os leitores. Esse, todavia, é um tema

de difícil investigação, se é que existem fontes. Não temos acesso a

práticas de herança de roças entre os escravos, e a oralidade não nos

permite alcançar um período tão distante. Até que se descubram docu-

mentos e métodos que nos permitam avaliar essa questão, só nos resta

especular.

Não é o caso do pós-Abolição, todavia. No caso do casamento en-

tre Manoel Inácio Filho e Clara, as terras da família do pai da noiva

eram no Borba, sem continuidade territorial ao Espraiado. Nesse caso,

não parece haver uma tentativa de estabelecer um continuum territorial;

pelo contrário, conforme veremos, as mulheres costumavam ser siste-

maticamente apartadas da herança paterna, no momento de instalar-se

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 69

no terreno dos maridos. Trata-se, de fato, de um esforço para promover

casamentos mais sólidos com famílias com quem havia maior intimida-

de, escapando ao esforço de conhecer os antecedentes familiares e

individuais dos pretendentes.83

Há, além disso, uma tentativa de cele-

brar casamentos com famílias com condição social mais ou menos

simétrica.

Entre os filhos de Manoel Inácio e Felisberta, a aliança matrimonial

com parentes de Merêncio surgiu, além dos evidentes vínculos de ami-

zade, como uma alternativa no sentido desse ideal de simetria: além de

sua condição de terratenente e das atividades econômicas de tropeiro e

carpinteiro, também existem rumores quanto à possibilidade desse

outro camponês negro ser filho da família senhorial, segundo os relatos

de sua descendência.

Quadro 2 – Alianças matrimoniais entre as famílias de Manoel Inácio e Merêncio –

primeira metade do século XX

Nome Cônjuge Parentesco com Merên-cio

Nome Cônjuge Parentesco com Merên-cio

Belisário Emília Filha Maria Timóteo

Pulquéria Zeferino José Teodoro

Manoel Inácio Filho

Clara Maria de Jesus

Neta

Angélica Solteira Mercedes Bento Merêncio

Filho

Raquel Solteira Ladislau Solteiro

Rosalina Solteira José Solteiro

Clara era cunhada de Mercedes; mas também era sobrinha de seu

marido Bento. Ter a esposa de seu meio-irmão como cunhada fazia da

mesma Mercedes concunhada de Belisário. A recíproca é verdadeira:

irmãos casados com irmãos, Emília e Bento eram concunhados entre

si. Ou, ainda, concunhados de sua sobrinha. Poderíamos ir longe nesse

83

Em certa ocasião, a senhora Diva comparou meu trabalho investigativo a respeito da

história familiar com o esforço que seu pai tinha, a cada vez que uma filha se casaria,

a respeito da família do noivo: se se tratava de uma “boa família”, com bons

antecedentes, enfim, se se trataria de uma aliança familiar favorável e se a filha

estaria entregue em boas mãos. Não há dúvida de que celebrar casamentos entre

primos poupava esse trabalho. Diário de campo de 7 de janeiro de 2009 em Osório

(LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 70

exercício indutivo de relações de parentesco entre as famílias de Me-

rêncio e Felisberta; no entanto, é algo que soa anacrônico, porque nas

práticas sociais percebiam-se como gentes aliadas, e não posicionadas

individualmente em relações de parentesco atomizadas. Eram, sim-

plesmente, compadres e comadres. Ao mencionar gerações anteriores,

há referência a todos como “tios”, sem muita reflexão sobre os laços de

parentesco da forma como estamos colocando. Por outro lado, a inten-

sidade dos casamentos entre as parentelas não dissolve as fronteiras

entre duas gentes. Os “Felisberta” e os “Merêncio” seguiram como ra-

mos distintos, ainda que admitissem filiações duplas (como a da senho-

ra Eva Marques Correia, neta dos dois ancestrais).

Há, não há dúvidas, uma preferência pela família do outro ex-

escravo no que toca a matrimônios. De cinco filhos que se casaram,

três desposaram filhos ou neta de Merêncio. À exceção de Belisário,

cujas opções matrimoniais certamente tinham independência da orien-

tação paterna, e de Pulquéria, que desposou um camponês negro tão

despossuído quanto ela e instalou-se como agregada no Pontal de

Miguel Ventura,84

os casamentos celebrados pelos demais irmãos esta-

vam sujeitos ao arbítrio familiar.85

Verifica-se uma certa “troca matrimo-

nial”. Em momentos, estimo eu, próximos (ver adiante a tabela 1), a

família de Merêncio “cedeu” uma neta à família de Manoel Inácio; de-

pois o circuito de reciprocidade se completou, quando Mercedes foi

“cedida” ao núcleo familiar do avô de sua cunhada.

Uma determinada configuração do conjunto de irmãos e a situação

específica de cada moça e de cada rapaz podiam ser determinantes

nas estratégias matrimoniais adotadas que, aponta Bourdieu, eram

cartadas em um jogo familiar mais amplo, e não iniciativas individuais

(BOURDIEU, 2009). Dessa forma, determinada sequência e disposição

84

Segundo seu neto, Pulquéria já era mãe quando se casou com Zeferino José Teodo-

ro. Diferenciando “pais para fazer” e pais para “criar”, ele sublinha que sua avó já era

“usada”. Zeferino ajudou Pulquéria a criar a prole de sua esposa. Entrevista com um

neto de Pulquéria Felisberta no dia 12 de janeiro de 2009 em Porto Alegre. Desse

ponto de vista, tratava-se de um casamento altamente vantajoso, já que um homem

assumiu uma criança de outro pai que necessitava ser criada. Mais adiante veremos

o caso de Pulquéria Felisberta de uma forma mais detalhada.

85 Para Bourdieu, “ já que as estratégias matrimoniais pretendem sempre, pelo menos

nas famílias mais favorecidas, fazer um “bom casamento” e não somente um

casamento, isto é, maximizar os benefícios econômicos e simbólicos associados à

instauração de uma nova relação” (BOURDIEU, 2009 p. 245).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 71

de filhos e filhas são decisivas na tomada de decisões relativas ao ca-

samento, e as iniciativas próprias e espontâneas dos jovens, fatores de

desestabilização, que podiam colocar este “jogo” em risco.

Foi decisivo nessa família o fato de que o primogênito do sexo

masculino fosse, apenas, o quinto filho. Enquanto seu irmão não se

casou, suas irmãs parecem ter sido privadas da possibilidade de tam-

bém contrair matrimônios; ao menos, foi um aspecto refletido por Bour-

dieu (2009) a partir do exemplo da Cabília. Angélica, Raquel e Rosalina

permaneceram solteiras, sendo que a primeira e a terceira tiveram fi-

lhos. É possível que eventual imperativo de espera por que seu irmão

estivesse em condições de se casar as tenha impedido de desposar os

pais de suas crianças, ou ainda que se tenham entregue a paixões e

gerado filhos naturais — interdito que estava o casamento —, em lugar

de aguardar por um matrimônio convencionado pela família.

Desconheço se Maria se casou antes ou depois de seu irmão Ma-

noel. Sei, porém, que Timóteo, seu marido, ou não era de Morro Alto,

ou era de uma família da região que não deixou marcas significativas,

já que não é lembrada pelos moradores dali nos dias de hoje. É possí-

vel, assim, que ou Maria tenha esperado o casamento de seu irmão

mais novo, ou tenha promovido um matrimônio menos vantajoso por

motivações afetivas alheias ao interesse familiar, contrariando o aguar-

do pelo funcionamento das estratégias matrimoniais familiares. Isso não

deixa de ser o mesmo que Angélica e Rosalina fizeram, ao ter filhos

sem se casar. Por outro lado, também existe a possibilidade de que o

casamento de Maria tenha seguido à risca prescrições familiares: pode-

ria haver interesse em diversificar alianças.

Antes ou depois de Manoel Inácio Filho, à revelia ou com a bênção

de seus pais, Maria casou-se com um indivíduo, ao que tudo indica,

externo à comunidade de Morro Alto e certamente de outra família que

não aquela escolhida para se celebrar matrimônios de forma preferen-

cial. Não há dúvidas de que outros fatores contribuíram para que aque-

le segmento familiar se dispersasse e se inserisse socialmente de for-

ma desfavorável perante seus primos. Segundo conta uma filha de

Maria por mim entrevistada, criada por Rosalina, sua mãe faleceu

quando seus filhos eram pequenos e eles tiveram que ser distribuídos

entre diferentes famílias — no seu caso, para a de sua tia — que conti-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 72

nuaram sua criação.86

Filhos de criação, é sabido, nem sempre têm as

mesmas oportunidades educacionais oferecidas aos filhos legítimos. O

fato é que essa foi a única senhora da família de Maria que logrei con-

tatar, e mesmo assim por intermédio de um afilhado, neto de Rosalina.

Os demais se perderam do contato familiar.

Uma vez casado Manoel Inácio, Mercedes, sua irmã mais nova,

também pôde desposar um integrante da família de Merêncio, tio de

sua cunhada. A mais moça usufruindo do benefício de casar-se depois

de seu irmão mais velho e sem o impeditivo de aguardar por seu casa-

mento, conseguiu um matrimônio nos termos prescritos pela família e

mais favorável sob o prisma das condições sócio-econômicas do futuro

marido. Casar-se, todavia, era o momento final de cartadas matrimoni-

ais finais lançadas pela família no sentido de obter um bom casamento,

mas também o momento inicial de uma dura vida de trabalhos.

4.5 Dinâmicas de trabalho familiar87 Senhori não faz ideia do que é trabalhar na roça. Agora já

tô velha, só me ocupo de casa. Mas o Deodício, mais a

Clara, as crianças maiorzinhas. De sol a sol, Deus o livre.

Eu às vezes me sinto um peso, Deus que me perdoe,

mas como sem trabalhar. É ruim, né, vizinho?

Uma vez historicizada essa família em sua genealogia, nos pa-

drões de legitimidade e nas estratégias matrimoniais, convém agora

inscrevê-la na dinâmica da economia camponesa, isto é, da produção

para si amparada na auto-exploração da mão-de-obra doméstica. Para

tanto, nos amparamos nos aportes de Chayanov, para quem é assim

que a pequena produção agrícola familiar deve ser analisada. Através

da história oral, de documentação e de pressupostos explicitados no

texto, acompanharei, por meio do grupo familiar aqui discutido, a evolu-

ção da mão-de-obra disponível para a labuta em sua gleba. Com isso,

não pretendo “testar” suas teorizações no grupo por mim estudado, e

tampouco conferir-lhe o poder de certificação sobre o caráter camponês

do núcleo examinado. Trata-se de algo mais simples. Chayanov (1974),

86

Entrevista com uma filha de Maria Inácia Marques no dia 26 de janeiro de 2009 em

Porto Alegre.

87 Uma versão preliminar deste subcapítulo foi apresentada no 7º Encontro Escravidão

e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba, 2015.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 73

em uma das tentativas de demonstrar suas teorias, ordenou anualmen-

te, em uma tabela, o número de integrantes de uma família de lavrado-

res típica-ideal junto com sua idade; com isso, objetivava descrever

comportamentos, especialmente ao verificar quais eram os momentos

de maior ou menor disponibilidade de mão-de-obra e, portanto, as oca-

siões em que havia maior fadiga ou conforto para o núcleo doméstico /

produtivo.

Percebi tratar-se de um caminho fértil para conhecer o campesina-

to negro em sua especificidade, e também para descobrir no que ele se

aproxima e no que se afasta do modelo chayanoviano. Não se trata de

tomar os agricultores russos como parâmetro, mas de uma oportunida-

de metodologicamente rica de conhecer a vida e a economia doméstica

desses sujeitos sociais. Ao mesmo tempo, é possível uma leitura mais

panorâmica, já que um mesmo núcleo campesino é acompanhado por

quatro décadas88

. Me restringindo nesse subcapítulo à divisão entre as

variáveis consumidores/trabalhadores (doravante C/T), índice central no

pensamento chayanoviano, tornou-se possível abranger duas gerações

de lavradores: o casal de ex-escravos e seus filhos, seus filhos e seus

netos.

A proporção (C/T) é fundamental na ótica do autor. Na definição

de campesinato, conta muito o fato de tratar-se de um pequeno empre-

endimento agrícola, no qual o empresário e o trabalhador são a mesma

pessoa. Isso permite a definição do tempo e da intensidade da labuta,

na qual o núcleo doméstico se vê implicado, em um mecanismo de

autoexploração (CHAYANOV, 1979). Isso permite à família balancear

maiores ou menores graus de fadiga em contraponto a maiores ou me-

nores graus de satisfação de suas necessidades: “El balance trabajo-

consumo que hemos analizado es la expresión del mecanismo que

limita las tendencias consumidoras de la familia campesina” (Chayanov,

1974, p. 133).89

Era isso, conforme visto, a que almejavam aqueles que

investiam em um “projeto camponês”: a autonomia em relação ao fa-

zendeiro dizia respeito, em boa medida, à capacidade de decisão sobre

as formas de organizar o trabalho, suas intensidades e ritmos.

88

O corte temporal deste trabalho, 1890-1930.

89 O balanço trabalho-consumo que analisamos é a expressão do mecanismo que limita

as tendências consumidoras da família camponesa.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 74

A correlação numérica (C/T) apresenta-se como decisiva na de-

terminação desse balanço: um número muito grande de crianças, ido-

sos ou incapazes sustentados por braços trabalhadores pode colocar

em risco o bem-estar e, no limite, a viabilidade ou sobrevivência do

núcleo doméstico. Por esse motivo, aquele índice expressa a definição

das possibilidades de desenvolvimento e o delineamento de momentos

mais prósperos ou mais agudos para a sobrevivência. O momento em

que as crianças são pequenas ou em que os velhos pais arranjam-se

por si sós são de dificuldades. Um número elevado de filhos adultos,

por sua vez, até o momento de seus casamentos, pelo contrário, repre-

senta bonança para o núcleo campesino.

O índice perfeito seria a mesma quantidade de pessoas a serem

alimentadas e disponíveis para o trabalho. No cálculo (C/T), decisivo,

há aspiração ao ideal de 1, isto é, todos que comem trabalham e por-

tanto não há integrantes não-produtivos a serem sustentados pelos

demais. Inversamente, relações superiores a 1 — e quanto mais eleva-

das forem — (isto é, maior número de pessoas não-produtivas a sus-

tentar por trabalhador), maior o grau de fadiga e autoexploração do

núcleo; mais difíceis as condições de sobrevivência, pela falta de bra-

ços para a labuta e o excesso de bocas para alimentar. Nesse sentido,

a entrada de um filho em idade produtiva sempre era um alívio para a

pressão sobre o núcleo familiar.

Considerando os índices ao longo do tempo, é possível perceber

(e visualizar graficamente) os momentos em que a família enfrentou

dificuldades de maior ou menor porte. Tabulei, ano a ano, os integran-

tes daquela unidade produtiva com sua idade, indicando a correlação

entre o total dos moradores, que deveriam ser alimentados, e aqueles

capazes de trabalhar. Manoel Inácio, Felisberta e sua descendência,

sob certo viés, são representativos da coletividade a que pertencem, já

que são camponeses negros “normais”, do ponto de vista das ativida-

des econômicas desempenhadas, a exemplo daqueles apontados no

prólogo; sob outro viés, porém, conforme visto, ela representa um seg-

mento melhor localizado nas hierarquias locais. Foi bastante difícil fazer

o levantamento necessário à elaboração da tabela no que toca a um

núcleo doméstico, e necessitamos apelar a diversas suposições, passí-

veis, contudo, de controle, apresentadas logo mais. Número superior

seria inviável, o que impossibilitou qualquer abordagem comparativa.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 75

São necessárias algumas ressalvas metodológicas. Chayanov

(1974) jamais se propôs a uma análise empírica do desenvolvimento

histórico das unidades familiares; e sim a um modelo. Ao defender-se

de críticas, entretanto, o autor afirmou ser seu sistema calcado na ob-

servação do comportamento econômico na produção agrícola domésti-

ca, e não em uma abstração teórica (Chayanov, 1979). Mesmo assim,

sua perspectiva é formalista e estática, ainda que destaque que o estu-

do morfológico pode ser útil para a realização de estudos dinâmicos

(Chayanov, 1979). Podemos, então, empregá-lo como ferramenta de

análise, não para “confrontá-lo” com a realidade empírica estudada,

mas sim para buscar nele a inspiração para uma análise mais qualifica-

da.

São grandes os potenciais de uma avaliação dessa natureza, mas

a análise histórica implica em imprecisão ao estabelecer as variáveis

necessárias ao cômputo, já que não temos os dados precisos constata-

dos por Chayanov por meio de trabalho de campo. Dada a sua fertilida-

de, porém, não convém desistir do empreendimento analítico. Existe a

vantagem de ser possível perceber essas questões em uma abrangên-

cia temporal muito maior; ao passo que a tabela equivalente do agrô-

nomo russo se restrinja a 26 anos, ou uma geração, aqui será abrangi-

do um intervalo de quatro décadas, permitindo entender em que medida

os padrões repetem-se (ou mudam) entre as gerações, o que a pers-

pectiva sincrônica não possibilita. Além disso, nossa análise está inscri-

ta na especificidade da família em questão como descendentes de es-

cravos, que montaram sua unidade no raiar da vida em liberdade. No

entanto, quando não se pode reunir, no conjunto, todas as variáveis

necessárias para dar conta das proporções entre (C/T), é possível ul-

trapassar essas limitações com alguns “admitindo que...”.

O historiador de pretensões científicas certamente franzirá a fronte

e, talvez com razão, questionará quanto à viabilidade de produzir dados

numéricos a partir de referências fugidias ou suposições. Ora bolas,

como tabular aquilo que se “admite”? O problema é que não se preten-

de traçar um retrato exato e positivo, o que está além do alcance deste

estudo e da documentação disponível. As variáveis imprecisas não nos

devem desencorajar de ambicionar a percepção de tendências gerais.

De diversos aspectos específicos em minha tabela não tenho e nunca

terei certeza — por exemplo, do ano de migração de Rosalina. É possí-

vel, isso sim, fazer inferências a partir da idade de nascimento, em Osó-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 76

rio, de seus filhos, o que garantirá que minhas estimativas sejam, se

não exatas, tampouco disparatadas. A tabela como um todo, porém,

ouso assegurar, não deve fugir muito à correspondência com a realida-

de, porque tudo nela se ampara nos indícios reunidos, devidamente

apresentados. O que não é certo é bastante aproximado.

Respondo com Ginzburg àqueles posicionamentos, quando ele

avalia a dimensão conjectural do conhecimento histórico: “A orientação

quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de

Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou

assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevan-

tes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de

pouca relevância” (GINZBURG, 1989, p. 78). Ao realizar a opção pela

primeira alternativa — a fragilidade científica associada à relevância

dos resultados soa-me mais atrativa —, admito que essas pressuposi-

ções, devida e honestamente explicitadas pelo historiador, poderão ser

avaliadas pelos leitores, que decidirão por si sós se as consideram con-

vincentes ou não. A criação do historiador seria desonesta se não fosse

assim explicitada; devidamente evidenciada, porém, é uma ferramenta

transparente na construção do conhecimento.

É o que quer dizer o autor quando fala em imaginação histórica.

Em análise crítica d’ “O retorno de Martin Guerre” de Natalie Zemon

Davis, Ginzburg propõe que a capacidade imaginativa não é apenas

possível e desejável ao historiador, mas necessária (GINZBURG,

1991b). Impossível não praticá-la, mesmo que nem todos saibam ou

admitam que a exercitam. Todavia, não se devem imaginar disparates.

A imaginação deve ser rigorosamente controlada, amparada nas evi-

dências disponíveis e explicitada como tal, a fim de não impingir em-

bustes aos leitores, que poderão avaliar, por conta própria, se as julgam

persuasivas.

Em alguma medida, assim, meu quadro é ficcional. Ao apresentar

e justificar os critérios pelos quais optei, minha ficção torna-se passível

de controle pelos leitores, que poderão avaliar sua verossimilhança.

Estimo que as crianças começassem a labutar na roça aos dez anos.

Chayanov apresenta a idade de quinze em suas estimativas, mas dez

pareceu-me mais adequado ao caso, amparado nas entrevistas reali-

zadas com integrantes da família e em uma avaliação mais realista das

agudezas da vida de ex-escravos. Os chefes daquele terreno, afinal,

poucos anos antes haviam saído da condição cativa. Era essa a dinâ-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 77

mica de trabalho infantil naquele momento, marca de uma cultura labo-

ral específica.90

Em documentos do período escravista, há referências a

crianças no eito já aos oito anos.

É provável que em momentos extremamente agudos de demanda

de mão-de-obra, isto é, com proporções (C/T) muito superiores a 1,

crianças ainda menores tenham ido à roça — como na última década

do século XIX e o primeiro lustro do XX. Não contabilizei essas ativida-

des como “trabalho” por duas razões: em termos culturais, era uma

situação encarada como “aprendizado” e não “produção” propriamente

dita. Por outro lado, o auxílio dado pelos pequenos fazia, certamente,

diferença, mas era tida apenas como ajuda, já que sua capacidade

produtiva não podia ser comparada à dos adultos. Certamente, contu-

do, quando duas pessoas sustentavam sete, deve ter havido uma cola-

boração de um número maior de produtores infantis. Parti também do

suposto de que as filhas que se casaram o fizeram com 20 anos, ampa-

rado na idade média de casamento da geração seguinte e na data de

matrimônio de Clara — 19 anos (essa última não se trata de estimativa,

mas do devido registro documental).91

Atribuo que Angélica teria tido Beta aos vinte anos (equiparando à

idade de casamento das irmãs), e amparado no relato de que “era do-

ente”, ela não é nunca contabilizada como mão-de-obra; sustentado em

relatos semelhantes, avalia-se quinze anos como o tempo de sua mor-

te. A partir de uma lista de matrículas de escravos, avalia-se em 1857 o

ano de nascimento de Felisberta.92

A partir do nascimento de seus fi-

lhos, em Osório, supõe-se que Rosalina partiu do Espraiado em 1915,

aos 30 anos. Tomando a idade de suas irmãs Diva e Aurora, estimou-

se o nascimento de Benta em 1916, de Amélia em 1921 e de Maria em

1928. Avalia-se que os integrantes da família trabalharam na roça até

os 60 anos, a partir do relato de que Manoel Inácio ainda trabalhava em

90

É possível, contudo, que a família se tenha disposto em um ideal laboral de trabalho infantil contrastivo àquele do cativeiro, poupando os pequenos de trabalhos pesados, particularmente em momentos de maior prosperidade. Esse cálculo, porém, revela-se demasiado complexo do que o presente empreendimento analítico pode dar conta.

91 IJCSUD – Centro de História da Família, microfilme. 1444093, item. 10, livro do

registro civil do estado do Rio Grande do Sul – Cartório Distrital de Maquiné –

Conceição do Arroio – 5º Distrito – Matrimônios 1914-1928, f. 7v-8, ano de 1915.

92 APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes - Conceição do Arroio, caixa 027.0338, Auto

883, Estante 159, inventário de Thomaz Osório Marques, Ano 1885

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 78

uma atafona no momento de sua morte. Finalmente, supus o nascimen-

to e morte de José em 1900 e 1905, a partir do intervalo constante no

testamento e no inventário de seu pai. Os documentos dão a entender

que nascera depois de 1898 e falecera entre 1904 e 1906.93

Proponho

o nascimento de Honorata, uma filha que Pulquéria teve antes de ca-

sar-se, em quatro anos antes do matrimônio, ou seja, aos 17 de sua

mãe.

Os leitores hão de reparar que temos um quadro um tanto hipotéti-

co. Porém, em nada descabido (e é isso que me interessa), dado que

construído a partir dos indícios disponíveis para o núcleo doméstico.

Apela-se aos leitores para que, o considerando conjectural, porém não

descabido, avaliem as conclusões que a partir dele tirarei como, elas

também, conjecturais, porém não descabidas. Caso o considerem con-

jectural e descabido, azar é do autor. A tabela a seguir registra anual-

mente a idade dos presentes à unidade produtiva; a ausência de al-

guém, a partir de dado momento, é expressa por lacunas que indicam

morte (+), migração (M) ou partida do terreno familiar consequente a

casamento (C). A fim de facilitar a visualização da proporção C/T, apre-

sentam-se os produtores grifados em itálico.

93

APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes – Conceição do Arroio, estante 159, caixa

027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 79

Tabela 1 – Proporção entre consumidores e produtores na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-1930)

1890 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898

Manoel Inácio 43 44 45 46 47 48 49 50 51

Felisberta 33 34 35 36 37 38 39 40 41

Pulquéria 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Honorata 1

Angélica 7 8 9 10 11 12 13 14 15

Beta

Raquel 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Rosalina 5 6 7 8 9 10 11 12 13

Maria 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Manoel 1 2 3 4 5

Clara

Benta

Amélia

Aurora

Maria

Diva

Mercedes 1 2 3

Ladislau 1

José

Consumidores 7 7 7 7 8 8 9 9 11

Trabalhadores 2 3 3 4 4 5 6 6 6

C/T 3,5 2,33 2,33 1,75 2 1,6 1,5 1,5 1,83

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 80

Tabela 1 (continuação) – Proporção entre consumidores e produtores

na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-1930)

1899 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907

Manoel Inácio 52 53 54 55 56 57 58 59 +

Felisberta 42 43 44 45 46 47 48 49 50

Pulquéria 18 19 20 C

Honorata 2 3 4

Angélica 16 17 18 19 20 21 22 23 24

Beta 1 2 3 4 5

Raquel 13 14 15 16 17 18 19 20 21

Rosalina 14 15 16 17 18 19 20 21 22

Maria 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Manoel 6 7 8 9 10 11 12 13 14

Clara

Benta

Amélia

Aurora

Maria

Diva

Mercedes 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Ladislau 2 3 4 5 6 7 8 9 10

José 1 2 3 4 5 6 +

Consumidores 11 12 12 10 11 11 11 10 9

Trabalhadores 7 7 7 6 7 7 8 8 8

C/T 1,57 1,71 1,71 1,66 1,57 1,57 1,37 1,25 1,12

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 81

Tabela 1 (continuação) – Proporção entre consumidores e produtores

na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-1930) 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916

Manoel Inácio

Felisberta 51 52 53 54 55 56 57 58 59

Pulquéria

Honorata

Angélica 25 26 27 28 29 30 31 32 33

Beta 6 7 8 9 10 11 12 13 14

Raquel 22 23 24 25 26 27 28 29 30

Rosalina 23 24 25 26 27 28 29 30 M

Maria 19 20 C

Manoel 15 16 17 18 19 20 21 22 23

Clara 19 20

Benta 1

Amélia

Aurora

Maria

Diva

Mercedes 13 14 15 16 17 18 19 20 C

Ladislau 11 12 13 14 15 16 17 18 19

José

Consumidores 9 9 8 8 8 8 8 9 8

Trabalhadores 8 8 7 7 7 7 7 8 6

C/T 1,12 1,12 1,14 1,14 1,14 1,14 1,14 1,12 1,33

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 82

Tabela 1 (continuação) – Proporção entre consumidores e produtores

na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-1930) 1917 1918 1919 1920 1921 1922 1923 1924 1925

Manoel Inácio

Felisberta 60 61 62 63 64 65 66 67 68

Pulquéria

Honorata

Angélica 34 35 36 37 38 39 40 41 42

Beta 15 +

Raquel 31 32 33 34 35 36 37 38 39

Rosalina

Maria

Manoel 24 25 26 27 28 29 30 31 32

Clara 21 22 23 24 25 26 27 28 29

Benta 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Amélia 1 2 3 4 5

Aurora

Maria

Diva

Mercedes

Ladislau 20 21 22 23 24 25 26 27 28

José

Consumidores 8 7 7 7 8 8 8 8 8

Trabalhadores 6 5 5 5 5 5 5 5 6

C/T 1,33 1,4 1,4 1,4 1,6 1,6 1,6 1,6 1,33

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 83

Tabela 1 (continuação) – Proporção entre

consumidores e produtores na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-

1930)

1926 1927 1928 1929 1930

Manoel Inácio

Felisberta 69 70 71 72 73

Pulquéria

Honorata

Angélica 43 44 45 46 47

Beta

Raquel 40 41 42 43 44

Rosalina

Maria

Manoel 33 34 35 36 37

Clara 30 31 32 33 34

Benta 11 12 13 14 15

Amélia 6 7 8 9 10

Aurora 1 2 3 4 5

Maria 1 2 3

Diva 1 2

Mercedes

Ladislau 29 30 31 32 33

José

Consumidores 9 9 10 11 11

Trabalhadores 6 6 6 6 7

C/T 1,5 1,5 1,66 1,83 1,57

Fonte: dados explicitados no corpo do texto.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 84

Gráfico1 – Proporção entre consumidores e produtores na gleba familiar de Manoel

Inácio e Felisberta

Fonte: Tabela 1.

A partir do índice (C/T), estabelecido na tabela e expresso no grá-

fico, é possível demarcar quatro períodos. Entre 1890 e 1894, quando

Manoel Inácio estabeleceu sua gleba no Espraiado, já com filhos pe-

quenos, houve um momento de desequilíbrio crítico. No primeiro ano, o

casal sozinho chegou a alimentar sete pessoas. Nesse momento, é

quase certo que crianças, mesmo menores de dez anos, se tenham

juntado à lavoura a fim de viabilizar a sobrevivência da unidade domés-

tica. Não descarto a possibilidade de que, naquele momento, o trabalho

de crianças pequenas tenha sido um mal menor diante da fome, ou

mesmo que tenham padecido da última que, por conseguinte, deve

colocar em perspectiva seu estatuto “privilegiado”.

É provável que antes da aquisição de seu terreno, Felisberta e

Manoel Inácio usufruíssem o direito de roças próprias no terreno senho-

rial, como era costume corrente no Brasil escravista, particularmente

entre escravos de prestígio. Em relação a isso, existem duas possibili-

dades: ou Manoel Inácio trasladou as roças familiares para o terreno

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 85

adquirido em 1890, ou negociou junto à família senhorial a oportunida-

de de comprar terras no exato local onde anteriomente cultivava como

escravo. Em ambas as hipóteses, é plausível que as filhas nascidas “de

ventre livre”, isto é, Angélica e Pulquéria, tenham ajudado no trabalho

para o sustento dos irmãos.

Esse sobre-esforço foi necessário para o sucesso do empreendi-

mento familiar de tornarem-se proprietários de uma gleba própria, e

concretizar o dito “projeto camponês”. Para isso, porém, no primeiro

momento a auto-exploração chegou a um ponto agudo. Certamente, o

patriarca apostou nesse sacrifício como forma de estabelecimento au-

tônomo. É incerto generalizar essa situação ao conjunto do campesina-

to negro da região, mas ela evidencia tratar-se de caminho dificultoso

mesmo para aqueles considerados em uma posição mais favorável,

gozando, supostamente, de maiores recursos. Para cada família “visi-

tada” no prólogo, muitas outras devem ter visto frustrado seu projeto de

instalar-se por conta (haja visto termos uma grande maioria de nomes

de cativos arrolados nos inventários da família senhorial sem nenhum

vestígio de descendência no Morro Alto). Uma dificuldade adicional

desse momento inicial, ainda que não se expresse em uma tabela que

leva em conta somente as variáveis consumidores / produtores, deve

estar na devastação e saques ocorridos por ocasião da Guerra Civil de

1893-1895.

Ao longo do tempo, os filhos foram entrando em idade produtiva,

de forma que a assimetria entre o número de trabalhadores e consumi-

dores foi se tornando menos acentuada do que no momento inicial da

gleba de Manoel Inácio. É certo que a diminuição da idade de trabalho

efetivo adiantava um alívio à pressão por alimentos. No pouco mais de

década entre 1895-1906, o índice (C/T) descresceu de 1,66 a 1,25,

ainda que com picos entre 1898-1901, certamente devido ao abrigo, no

terreno familiar, de Honorata, nenê de Pulquéria (o que foi temporário,

já que a mãe brevemente casou-se). Raquel, Rosalina, Maria, Manoel e

Mercedes, aos poucos, passaram a labutar na roça, o que lentamente

reequilibrou a proporção. O período tem fim, ainda, com a morte de

Manoel Inácio. Se seu passamento ensejou uma crise quanto à defini-

ção da liderança daquela unidade familiar — que, afinal, veio a ser

compartilhada pela viúva e pelo primogênito do sexo masculino —, do

ponto de vista da mão-de-obra disponível, sua morte não deve ter re-

presentado um ônus tão grande assim à economia doméstica, dado

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 86

que faleceu próximo ao momento em que, é provável, deixaria de de-

sempenhar atividades produtivas.

Quando os filhos de Felisberta ficaram adultos — ou, ao menos,

habilitados a trabalhar — a família conheceu um período de equilíbrio

(C/T), em uma correlação próxima a 1, que perdurou entre 1907 e

1915. Isso é mais significativo quando avaliamos que o equilíbrio foi

obtido apesar da presença de uma criança incapacitada de ajudar na

roça e do momento em que supomos ter havido o afastamento de duas

filhas que contraíram núpcias. Aliás, é possível que o momento de

prosperidade tenha sido “aproveitado” para “liberar” a mão-de-obra de

Mercedes e Maria; cedo ou tarde elas deveriam se casar e o melhor era

que isso acontecesse em um momento de fartura, quando o impacto de

sua retirada não seria tão elevado.94

Nem a chegada de uma adulta que poderia ajudar na lavoura, Cla-

ra, esposa de Manoel Inácio Filho, em 1915, foi suficiente para desca-

racterizar um novo (mas muito menos agudo) período (1916-1930) de

desequilíbrio (C/T) naquele terreno. Na mesma época parecem ter par-

tido Mercedes, para casar-se, e Rosalina, que foi embora para Osório.

A partir desse novo momento, uma nova geração de crianças, filhas de

Manoel Inácio Filho e Clara, ainda não podia ajudar. Um ciclo comple-

tava-se e a desproporção entre consumidores e trabalhadores se repe-

tia. O desequilíbrio foi muito menos agudo do que em fins do século

XIX, quando a auto-exploração da mão-de-obra familiar deve ter se

tornado de tal forma acentuada, que as crianças devem ter trabalhado

abaixo de uma idade mínima. A diferença estava no fato de a unidade

produtiva já se encontrar em funcionamento, e não em processo de

montagem (ou reestruturação, supondo o traslado de roças familiares

do período escravista).

É claro que, conforme Bourdieu, aos sujeitos sociais não se pode

imputar o cálculo daquilo que a análise sugere.95

A racionalização de

94

Vale lembrar que tudo indica que foram estes os casamentos sobre os quais a família

pôde exercer algum tipo de arbítrio e, portanto, algum tipo de planejamento: Raquel e

Angélica permaneceram solteiras (mas a última foi mãe solteira, o que certamente

deve ter frustrado expectativas parentais de matrimônio); Rosalina migrou para

Osório, não se sabe se à revelia ou não de seus pais (onde também teve filhos

naturais); e Pulquéria, por não ser filha de Manoel Inácio, pode ter se casado de

acordo com critérios próprios, e não submetida à vontade do padrasto.

95 “não são, como a linguagem inevitavelmente empregada para descrevê-las poderia

levar a crer, procedimentos que a imaginação jurídica inventa para contornar o direito,

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 87

padrões se dá a posteriori pelo analista, e não naquele momento pelos

sujeitos sociais. As soluções não foram planificadas, mas, antes, defini-

das na dinâmica do jogo social e de acordo com critérios culturais pró-

prios. A definição do ritmo de casamentos ou migrações, por mais que

estivessem imersas em necessidades vitais, às vezes agudas e que

exigiam respostas urgentes, também pode ter sido condicionada ou

explicada por situações especiais, e não exatamente conforme constru-

ções racionais ou respostas mecânicas às circunstâncias.

Por exemplo, Mercedes pode ter esperado o casamento de seu

irmão para fazer o mesmo, conforme visto anteriormente. As temporali-

dades da conclusão de benfeitorias, de ocasiões do calendário agrícola,

da situação de um ou outro animal que serviria de dote, de alguma

gravidez indesejada, do pagamento de promessas ou outros ritos cris-

tãos, podiam ser importantes condicionantes das decisões tomadas. O

certo é que não consultaram a tabela supra para tomá-las. As ferramen-

tas analíticas são bastante precárias diante da complexidade do vivido.

Ainda assim, a necessidade era um fator imperativo a bater em suas

portas, diante do qual era necessário dar uma resposta.

Ainda que não caiba submeter o teórico russo “à prova” dos cam-

poneses negros de Osório (ou vice-versa), pode-se perceber uma con-

vergência entre alguns resultados aqui apresentados com conclusões

de Chayanov (1974) que não custa examinar. Entre negros ou entre

eslavos, a proporção (C/T) passa por um crescente, elevando-se cerca

de quinze anos após a constituição da família. No caso em questão, há

uma elevação em 1898 (1,83), passado o momento crítico de estabele-

cimento da unidade. Ou seja, temos um pico oito anos após a aquisição

do terreno por Manoel Inácio, decaindo posteriormente.96

A defasagem

entre o estimado pelo teórico e o momento encontrado nesta pesquisa,

quinze ou oito anos, decerto deve-se à possibilidade da unidade não ter

sido montada “do zero” em 1890, mas com diversas bocas para alimen-

tar e, como visto, possivelmente avizinhando-se a fome. Se admitirmos

nem mesmo estratégias sabiamente calculadas, à maneira dos “golpes” de esgrima

ou do xadrez. É o habitus que, como o produto das estruturas que tende a reproduzir

e porque, mais precisamente, implica a submissão “espontânea” à ordem estabeleci-

da e à ordem dos guardiões dessa ordem (...)” (BOURDIEU, 2009, p. 264-265, grifo

do autor).

96 No entanto, no início da organização da unidade, a família já se encontrava

constituída; era anterior àquela. Daí, talvez, a diferença entre doze e quinze anos.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 88

uma história deste núcleo familiar prévia à aquisição do terreno no Es-

praiado, tomando como ponto de início 1883, nascimento de Angélica,

primeira filha em comum de Manoel Inácio e Felisberta, encontraremos,

exatamente, quinze anos em 1898.

É uma situação que decorre da peculiaridade de recente aquisição

de um terreno, após a constituição de uma família de escravos e “ven-

tres livres”. Quando ali chegaram, já havia muitas bocas a alimentar. A

ocupação do terreno se deu em ocasião em que havia crianças peque-

nas, o que decorre, é evidente, da montagem da unidade produtiva do

Espraiado por parte de um casal de antigos cativos.

A partir de determinado momento, o número de trabalhadores co-

meçou a crescer, à medida em que os filhos tornaram-se mão-de-obra.

No que diz respeito a Manoel Inácio Filho, temos o auge da carência de

braços (1,83 em 1929) para o sustento da unidade quando há um nú-

mero elevado de crianças: catorze anos depois de seu casamento com

Clara, em 1914, dessa vez, com uma unidade produtiva em funciona-

mento, aproximadamente de acordo como os quinze anos da teoria

chayanoviana. É provável que depois disso essa proporção tenha dimi-

nuído conforme o prognóstico de Chayanov, nos mesmos termos ocor-

ridos na lavoura do patriarca: o nascimento de novas crianças deve ter

sido compensado pela entrada dos mais velhos em idade produtiva — o

que já havia acontecido com Benta e Amélia. Dessa maneira, o índice

(C/T) deve ter decaído.

O estabelecimento de unidades produtivas por ex-escravos não

pode, portanto, ignorar a história pregressa de suas famílias. A monta-

gem de unidades produtivas novas implica em dificuldades inexistentes

para camponeses que as encontram em pleno funcionamento. Não se

pretende, em absoluto, ocultar obstáculos vividos por campônios “em

geral”. No entanto, a comparação entre Manoéis Inácios pai e filho evi-

dencia que, inobstante a existência de momentos duros para a família

do segundo, eles eram bastante menores do que aqueles enfrentados

por seu pai na década final do século XIX. O ônus de montar (ou rees-

truturar) uma unidade produtiva já com muitas crianças para alimentar,

nascidas de ventre-livre, certamente foi um problema para a família

analisada e, provavelmente, um obstáculo para a formação mais ampla

do campesinato negro, já que nem todos foram tão bem-sucedidos

como Manoel Inácio e os seus. Alguns, certamente, malograram diante

das mesmas dificuldades.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 89

O trabalho camponês é, de certa forma, o ponto de encontro de

dois aspectos, aqui separados de forma artificial. Por um lado, família;

por outro, trabalho. No entanto, com Polanyi, com Chayanov, e também

com os camponeses do Morro Alto, viemos tentando aprender que não

eram duas coisas passíveis de separação. As relações de parentesco

eram definidoras das (e definidas pelas) atividades laborais. Imbrica-

vam-se. Vamos, então, à outra face da moeda.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 90

5 Trabalho

5.1 A folha de partilha Falecido deixou nada pra mim não. Foi tudo pra filharada.

Melhor assim, o que ele queria era que a irmandade dele

não tomasse conta. Manoeli, sempre com os olhos bem

abertos. Ô homem esperto! Não me importo. Hehehe, no

fim das contas quem ficou no governo disso aqui tudo fui

eu mesma...

Imagino a reação de Felisberta ao descobrir que Manoel Inácio,

ainda que a reconhecesse como mulher com quem vivia amasiado há

muito, nada lhe deixara de seus bens no testamento de 1904. Teria

sido uma supresa no momento de falecimento do côjuge? Ou, pelo

contrário, era algo de que já tinha ciência prévia? Qual era o poder de

influência da matriarca na tomada de decisões relativas à destinação do

patrimônio familiar? Teria sido pega de surpresa, se frustrado? O patri-

arca não a julgava merecedora de um quinhão? Tinha como assegura-

do que os filhos dariam sustento e amparo à companheira de uma vi-

da? Ou tratava-se de uma estratégia familiar escrupulosament urdida?

Não temos como responder a essas perguntas, porém é possível inves-

tigar as respostas dadas a essas questões por seus netos.

Tampouco temos elementos para saber quais práticas eram mais

usuais no campesinato negro da região, legar ou negar bens às amá-

sias no momento do falecimento. Uma coisa é certa: havia precedentes

familiares nos quais houve uma maior atenção às viúvas. Com efeito,

conforme visto, o italiano Francisco Pastorino estabeleceu a sogra de

Felisberta, a ex-escrava Angélica, como usufrutuária de todos os seus

bens. Seu filho, todavia, repartira o terreno do Espraiado apenas entre

sua prole, ao passo que o terreno do Ramalhete foi considerado perdi-

do naquele momento crítico. Ao que consta, outras mulheres de Manoel

Inácio também ficaram a ver navios, a exemplo da mãe de Belisário.

Nessa narrativa convergem os documentos escritos e os depoi-

mentos orais. Todavia, os netos a tiram de um registro desabonador e

situam a atitude do avô em um claro esforço por preservar a integridade

e a sobrevivência da família. Nunca poderemos ter certeza das verda-

deiras intenções de Manoel Inácio ou da concordância ou não de Felis-

berta, mas a hipótese é bastante verossímil, no sentido de uma saída

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 91

engenhosa para a possibilidade de apropriação do terreno por seus

irmãos:

Rodrigo – E ela ficou sem nada?

Manoel – Deixou sem nada, porque ele fez isso por causa

dos irmãos dele não deixar ela e os filhos dele sem na-

da.97

Não se sabe se se tratam dos irmãos da família senhorial — afinal,

por seu poderio os Marques tinham maiores condições de expropriar

aquela família — ou dos filhos de seu padrasto — já que os Pastorinos,

em uma situação social de maior simetria, tinham maior probabilidade

de interesse na gleba do Espraiado. Pesa contra a primeira possibilida-

de a dinâmica de saída da antiga família senhorial de Morro Alto. Nesse

sentido, o terreno talvez despertasse mais facilmente a cobiça dos

“Pastorinos”. De qualquer modo, ainda que sua verificação seja dificul-

tosa, a hipótese de um esforço familiar protetor sobre uma família vul-

nerabilizada por um casamento não travado no civil ou no religioso faz

bastante sentido. O legado aos filhos, oportunamente legitimados, era

inquestionável, enquanto o sustento e, até mesmo, autoridade, da mãe

permaneciam assegurados na informalidade. Ao longo da Primeira

República, Felisberta não aparece como uma fragilizada viúva, mas

como uma senhora cuidadosa da manutenção da regularidade fundiária

do terreno coletivo, assumindo, assim, seu protagonismo (WEIMER,

2015b). Igualmente, os relatos dos netos indicam o cuidado com o sus-

tento da avó.

Diva – Da mãe... Tudo que ele [Manoel Inácio Filho] com-

prava ele fazia a gente levar pra vó. Ela morava no mes-

mo terreno nosso, lá no Espraiado. Ele cuidou toda vida

da mãe dele. Ele era o único homem.

Rodrigo – E daí quando ele tinha doze anos faleceu o pai

dele.

Diva – Era criança, era muito criança! Pra tomar conta de

uma família e tomar conta dos terrenos tudo!

Rodrigo – Ele tinha bastante terreno, daí...

97

Entrevista com o senhor Manoel Inácio Marques Neto no dia 9 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 92

Diva – Daí os irmão do pai, do meu avô, eles dali desgar-

raram.

Rodrigo – Eles desgarraram?

Diva – Sim, porque naquela época não usava casamento.

O que passou pro nosso nome ficou. O que não passou,

não deu tempo, né, porque ele morreu de ataque do co-

ração. Então morreu ali na atafona, na hora que o ataque

saiu.98

Existe uma convergência entre essa forma de resguardar a unida-

de familiar de intrusos com algumas abordagens historiográficas recen-

tes, que sublinham a importância da família negra como sujeito social

no pós-Abolição e, portanto, seu resguardo e esforços protetivos. Con-

forme Ana Rios (2005a) muito bem demonstrou, não havia alternativa

pior do que a vacância, a itinerância, a submissão aos humores e arbí-

trios dos fazendeiros. O mais desejável era ter um terreno próprio. Al-

guns descendentes afirmaram que, ao comprar aquela gleba, Manoel

Inácio aspirava a impedir que seus filhos ficassem “na estrada”, “sem

nada”.99

Segundo Aurora Inácia Marques da Silva: “Ali era uma coisa

certa, pros filhos dele não ficarem rolando, trabalhando nessas fazen-

das aturando desaforo”.100

Os contratos de trabalho no pós-Abolição, com efeito, poderiam

ser bastante desarmônicos e, até mesmo, violentos (RIOS, 2005b).

Meus entrevistados aparentemente querem dizer que seu avô procurou

poupar a descendêndia de tais constrangimentos e situações vexató-

rias. Tratava-se de uma situação em nada estranha para esse núcleo

familiar, já que uma irmã, considerada ilegítima, conforme veremos em

seguida, nada recebeu e precisou se submeter aos ditames de um fa-

98

Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001 em

Osório.

99 Entrevista com a senhora Ercília Marques da Rosa e Wilson Marques da Rosa no dia

26 de agosto de 2001 na Prainha. Entrevista realizada por Cíntia Müller, Mariana Fer-

nandes, Alessandro Gomes e Cíntia Rizzi; Entrevista com a senhora Ercília Marques

da Rosa e Wilson Marques da Rosa no dia 13 de setembro de 2002 em Porto Alegre.

Realizada por Claudia Fonseca, Miriam Chagas e Rodrigo de Azevedo Weimer

100 Entrevista filmada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 13 de março

de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 93

zendeiro para ter o seu terreno para criar e plantar. O “desaforo” em

nada era uma realidade distante, mas sim uma iminência palpável.

É bastante comum, em sociedades camponesas, a dificuldade da

realização da partilha do quinhão familiar, já que uma divisão em lotes

de idênticas dimensões pode levar a um esfacelamento que, em última

instância, implica no suicídio econômico da unidade familiar, tendo em

vista que a terra pode se tornar insuficiente para o sustento de todos.

Bourdieu (2009), ao estudar a Cabília, identificou uma tendência à pre-

ferência — explícita ou dissimulada — por um herdeiro. Isso também é

recorrente, e, pode-se dizer mais, geralmente o beneficiado é o primo-

gênito ou o caçula. Todavia, existem imperativos legais e morais que

dificultam um favorecimento tão claro, de tal forma que o processo de

herança é um momento particularmente delicado entre campesinos. 101

É devido ao fato de que a tensão entre favorecer um filho e contemplar

todos eles não ser uma questão exclusiva da Cabília que a abordagem

de Bourdieu pode “servir pra pensar” o caso dos camponeses negros

no Rio Grande do Sul. A seguir veremos como a família estudada lidou

com essas questões.

Diante dos riscos da itinerância, era óbvio que, no caso esturado,

havia um temor por deixar os irmãos “na estrada”; por outro lado, a

divisão de 35 hectares entre todos eles era uma insensatez. Thompson

(1976) aponta, ainda, que os camponeses almejavam transmitir aos

filhos considerados legítimos o mesmo estatuto social atingido pelos

pais. No caso em tela, não há dúvidas, o prestígio social de Manoel

Inácio e Felisberta que se queria perpetuar na geração seguinte estava

diretamente ligada à autonomia como produtores de alimentos para si e

à posse da terra. Difícil problema: o fato é que o terreno, em seu con-

junto, era suficiente para o sustento da “irmandade”, mas exíguo para o

cultivo individual de cada um.

Ocorre que, ao que me parece, era praticamente uma obviedade

que na prática o terreno permaneceria, em sua integralidade, sob o

mando do irmão mais velho dentre os filhos do sexo masculino, sem

esquecer da autoridade materna, de alguma forma preservada. Não

apenas para aquela família, mas para a comunidade em que estava

instalada, era um terreno ocupado coletivamente, pertencente a uma

101

Burguière (2011) assinalou que as regras de divisão desigual expressam uma ne-

cessidade, mais do que um desejo de desigualdade.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 94

“irmandade”, uma “gente”. Creio que era algo tido como dado, sujeito a

poucos questionamentos. Se houve descontentamentos, não ficaram

registrados na memória. O fato é que, em situações desse tipo, geral-

mente se produzem migrantes que vão embora insatisfeitos com possí-

veis injustiças. A migração efetivamente ocorreu na geração seguin-

te — como retomaremos ao fim de nosso percurso —, de forma bastan-

te relevante, mas naquele momento foi estancada por diversos meca-

nismos que analisaremos a seguir. No caso analisado, a maior parte

dos irmãos ali permaneceu.

Todavia, havia formalidades legais às quais cabia responder. As

disposições formais prescreviam a distribuição de quinhões idênticos

que, ao menos para fins de inventário, deveriam ser observadas. Cada

filho herdou 108$571 réis de um monte-mor avaliado em 760 mil-réis.

Como o patrimônio continha terra mas também reses, houve uma leve

discrepância na distribuição dos animais. A mais velha recebeu uma

quantidade um pouco menor de gado, compensada por uma extensão

superior de terra. 102

A distribuição dos bens em unidades monetárias

dificultava a avaliação da extensão territorial em medidas de área, ou a

localização da parcela pertencente a cada um. Das terras e matas no

Espraiado, quem herdou matos e quem herdou matos? Onde ficavam?

Na prática, como se concretizava a herança de 72$571 réis de terras e

matos no Espraiado por Angélica, quando todos seus irmãos recebe-

ram 54$571 réis ali?

Eis a oposição identificada por Moura (1978) entre avaliação arit-

mética e geodésica. A quantificação de um patrimônio nem sempre

encontrava fácil expressão em termos de uma projeção espacial con-

creta. Se a quantificação aritmética facilitava o cálculo da partilha para

fins de avaliação de bens, a incongruência com o plano geodésico cria-

va problemas para individualização da propriedade da terra, de maneira

que o terreno acabava por manter-se indiviso. Eis o subterfúgio por

meio do qual era possível conciliar a prática legal da herança igualitária

e a lógica camponesa de privilégio ao filho mais velho. 103

102

APERS, COA – CA, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel

Inácio Osório Marques, ano de 1906. f. 18v-21r.

103 Em um período muito mais recente (década de 1970), Margarida Moura (1978) tam-

bém constatou, entre grupo camponeses de Minas Gerais, uma aparente aceitação

de modelos legais / igualitários de realização de partilhas, mas sua subversão na

prática social, por meio de expedientes diversos.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 95

Em realidade, a questão colocada era política. A quem caberia o

poder de mando sobre a “irmandade”, que evidentemente permaneceria

unida diante da partilha formal? Quem assumiria o lugar social do patri-

arca? Estava em questão o poder de imposição da liderança sobre a

“irmandade”, mais do que a divisão técnico-jurídica da herança. As ir-

mãs, dificilmente poderiam fazê-lo, não apenas pelo machismo social-

mente arraigado, mas também pela organização social patrilocal, que

estabelecia que as mulheres, ao casarem-se, deveriam abandonar o

terreno familiar e instalar-se nas terras de seus maridos. Foi o que

aconteceu com Maria e com Mercedes. Essa prática, é evidente, sub-

traía às mulheres o seu quinhão paterno, representando, por um lado,

uma faceta de dominação masculina e, por outro, acentuando a neces-

sidade de contrair um “bom casamento”, já que era com ele que podiam

contar para seu futuro. É possível que o gado recebido em testamento

desempenhasse o papel de dote, seja no sentido de ajudar a lhes pro-

porcionar uma vida melhor, seja como tentativa de compensação pelas

terras ficarem em poder do irmão.

Angélica, Rosalina e Raquel (ainda que as duas primeiras tenham

tido filhos) permaneceram solteiras. Rosalina partiu para Osório, onde

se instalou como lavadeira, em busca de uma vida nova. As demais,

todavia, permaneceram no Espraiado, sem nunca subtrair seus braços

à força de trabalho da irmandade. Tampouco o irmão, Ladislau, contraiu

matrimônio, ficando e trabalhando ali.104

Se todos esses permaneciam

ali trabalhando e tirando o sustento, talvez a divisão geodésica não

fosse uma questão colocada; pelo contrário, uma preocupação extem-

porânea. Os irmãos não legitimados, por motivos evidentes, não subtra-

íram parcelas à gleba familiar; Pulquéria, no entanto, ali contribuiu com

sua força de trabalho.

Ao fim e ao cabo, a autoridade acompanhou a primogenitura, con-

siderando, é claro, apenas os filhos do sexo masculino. Não se sabe

com que grau de clareza essa delegação foi dada em vida pelo patri-

arca, mas é sintomático que Manoel Inácio Filho tenha o nome do pai.

Preservada estava a lógica camponesa de manutenção de um terreno

104

Bourdieu destacou que, na Cabília, o celibato dos caçulas é entendido como uma

contrapartida da “proteção familiar”: “deve pagar a maior parte do tempo com a re-

núncia ao casamento a segurança econômica e afetiva garantida pela participação

na vida familial” (BOURDIEU, 2009, p. 262).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 96

indiviso. 105

Mais que isso, aparentemente a “sucessão” foi feita de for-

ma bastante bem sucedida, já que não há registros de brigas. A perma-

nência de Angélica, Raquel e Ladislau no terreno impediram que algu-

ma alteração mais significativa na força de trabalho prejudicasse a pro-

dução. Como demonstrou a tabela 1, o trabalho dos irmãos foi impor-

tantíssimo para a manutenção do equilíbrio entre consumidores e pro-

dutores naquela gleba e, por conseguinte, para a sobrevivência e a

prosperidade do núcleo camponês.

Algumas netas de Felisberta disseram para mim que o terreno foi

dividido de forma igual entre todos; contudo, empregaram também o

verbo “cuidar” para referir-se às terras da mãe, dos irmãos que perma-

neceram em celibato, das irmãs que partiram para a cidade ou para

casar-se. 106 Uma neta de Felisberta, ao ser entrevistada, afirmou que o

terreno foi dividido de forma igualitária entre os herdeiros, não tendo

ocorrido venda entre os irmãos. Admitiu, porém, que seu pai “cuidou”

da terra daquelas que partiram, por casamento ou migração e a daque-

les que mantiveram celibato.107

Há indícios de algum grau de ascendência de Felisberta, que nada

herdou, sobre o terreno de seus filhos. Existem guias de impostos terri-

toriais conservadas pelos netos.108

Até 1908 os lançamentos de impos-

tos correspondem a 35 hectares; depois disso, algumas irmãs solteiras,

Angélica e Raquel, pagaram impostos por si, mas certamente suas

parcelas estavam inclusas na totalidade do terreno em que permanece-

105

O privilégio de um filho em específico como herdeiro do terreno familiar, entre

comunidades camponesas – de variadas identidades étnicas – no século XX, em

contradição à herança igualitária legalmente definida, foi constatado também por

Moura (1978) e Woortmann (1995).

106 Emprega-se aspas, aqui e adiante, com o verbo “cuidar” não com intenções de ironi-

zar ou relativizar os significados assumidos pelos depoentes, mas sim para assinalar

tratar-se de termo não apenas êmico, como com sentidos muito específicos e rele-

vantes em sua fala.

107 Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, no dia 13 de

março de 2010, em Osório (LABHOI – UFF). Entrevista a Rodrigo de Azevedo

Weimer com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhora Diva Inácia

Marques Terra e senhor Celso Rodrigues Terra em 28 de janeiro de 2001.

108 Guias de pagamentos de impostos territoriais por integrantes da família nos anos de

1899, 1903, 1904, 1905, 1907, 1908, 1909, 1911, 1912, 1913, 1914, 1915, 1916,

1917, 1918, 1924, 1925, 1926, 1927, 1928, 1929, 1930, 1931, 1932, 1933, 1934,

1936, 1937, 1938, 1939, 1940 e 1941. Documentação sob a guarda, e gentilmente

disponibilizada, pela senhora Aurora Inácia Marques da Silva.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 97

ram. A maior parte das guias, contudo, foram pagas pela mãe:19 em

41 — quase 50% — delas foram pagas por Felisberta que, assim, apa-

rece como uma matriarca cuidadosa que pode muito bem ter comparti-

lhado com o filho a administração do terreno — não se sabe com que

grau de consenso.

As relações econômicas, referidas na introdução, encontravam-se

“imersas”, nos termos de Polanyi (2000), em relações sociais que ex-

trapolavam essa dimensão. A bem dizer, não existiam tais dissociações

como hoje realizamos. No caso específico, estavam em jogo as formas

de organização de parentesco e as microrrelações de poder no núclo

familiar. A produção no terreno comum estava imediatamente permea-

da pelos aspectos extra-econômicos mencionados. A organização do

sistema de parentesco, a um só tempo “cultural”, “moral” e “econômica”

estabelecia as formas de produção e reprodução.

A prática social é mais complexa do que conseguimos observar e

descrever. É evidente que as estratégias sociais não foram calculadas

ou premeditadas; antes, as soluções foram encontradas à medida em

que as coisas aconteciam.109

Os riscos eram enfrentados assim que os

problemas vieram à tona, e as diversas possibilidades de lidar com

situações de sucessão e herança eram adotadas de maneira heterócli-

ta.

Existia uma exigência legal por uma partilha igualitária. Era neces-

sário conservar a unidade indivisa para a sobrevivência e reprodução

do modo de vida camponês. Ambicionava-se a conservação do estatuto

social dos pais entre os filhos. Não eram dilemas (THOMPSON, 1976)

fáceis, e tampouco eram exclusivos da família analisada. Todos cam-

poneses do Morro Alto, como os visitados no prólogo, se defrontaram

com situações similares. No caso de Felisberta e Manoel Inácio as coi-

sas foram “facilitadas” pelo fato de haver, somente, dois filhos homens.

109

Conforme assinala Bourdieu, em relação à Cabília: “As ações que visam superar a

contradição específica desse sistema e, mais precisamente, as ameaças que todo

casamento faz pesar sobre a propriedade, e por meio dela sobre a linhagem (...) não

são, como a linguagem inevitavelmente empregada para descrevê-las poderia levar

a crer, procedimentos que a imaginação jurídica inventa para contornar o direito,

nem mesmo estratégias sabiamente calculadas, à maneira dos “golpes” de esgrima

ou do xadrez. É o habitus que, como o produto das estruturas que tende a reproduzir

e porque, mais precisamente, implica a submissão “espontânea” à ordem

estabelecida e à ordem dos guardiões dessa ordem (...)” (BOURDIEU, 2009, p. 264-

265, grifo do autor).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 98

A evasão de mulheres e o celibato funcionaram como formas de privile-

giar herdeiros e contornar o dilema.110

Todavia, o destino dado ao pa-

trimônio estava implicado na destinação do papel social desempenhado

pelo morto. Dessas questões, no entanto, ocupavam-se os filhos repu-

tados legítimos. Pulquéria Felisberta, por sua vez, tinha problemas mais

urgentes com que lidar.

5.2 Aturar desaforo Às vezes sinto muita dó da minha guria. Minha filha, né,

tem o mesmo espaço no coração que os outros. Mas fi-

cou, hoje tá naquela fazenda, trabalhando a troco de ba-

nana, Deus que me perdoe. Ai, Jesus. Não arranjou bom

casamento, era mãe solteira, coitada. Mas Deus sabe o

que faz.

Conforme visto, Felisberta teve uma filha, Pulquéria, ainda antes

de amasiar-se com Manoel Inácio. Ainda que todos fossem filhos natu-

rais, essa menina era tida como ilegítima, ao passo que seus irmãos

tinham uma legitimidade localmente reconhecida. Não se sabe o nome

do pai da menina, mesmo entre seus descendentes. Pulquéria teve

uma filha, Honorata, ainda antes de juntar-se com Zeferino José Teodo-

ro, com quem veio a ter mais cinco crianças. É incerto ou não sabido se

o casamento havia sido legitimado conforme os critérios estatais, ecle-

siásticos, ou meramente pela aceitação comunitária, do mesmo modo

como ocorrera com sua mãe. O pai de Honorata, José Luís da Silva,

era sobrinho de Manoel Inácio. Tão parecidas as sinas de Felisberta e

sua filha! Muito diferentes, também: ao passo que o marido da primeira

possuía habilidades que possibilitaram a aquisição de terras em 1890,

Pulquéria casou com um homem pobre, sem posses, eira ou beira.

Foram, assim, agregar-se à propriedade de um fazendeiro da região.

Segundo um neto de Pulquéria, os homens daquela época gosta-

vam de “usar e não cumprir”.111

Honorata também foi “usada” por José

110

Müller (2006) verificou que, no século XX, em Morro Alto, também se privilegiava um

herdeiro com a finalidade de conservar a integralidade dos terrenos.

111 Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 11 de fevereiro de 2009 em

Porto Alegre. Por motivos diversos, não me sinto à vontade para apresentar o nome

desse entrevistado, e tampouco tenho autorização para tanto (ao contrário dos de-

mais). Referencio-o, portanto, através de uma relação de parentesco.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 99

Jeremias, ele mesmo sobrinho de Zeferino, seu padastro. É incerto e

não sabido se se trata ou não de coincidência; mas algumas situações

repetiram-se de geração em geração. As mulheres tinham filhas antes

de estabelecer uma relação definitiva; essas mulheres, certamente

menosprezadas por sua condição de ilegitimidade, eram “usadas” por

familiares dos maridos de suas mães.

Também operavam, aqui, não há dúvidas, critérios cromáticos e

raciais. Todos relatam que Pulquéria era mais clara que seus irmãos e

que seu pai era branco. José Luís da Silva, pai de Honorata, pertencia

à família de Francisco Pastorino, sendo, portanto, de ascendência itali-

ana. As mulheres “ilegítimas” eram consideradas disponíveis ao “uso”

de homens mais claros. Isso criava uma situação peculiar. Ao passo

que os relacionamentos entendidos como legítimos produziam uma

prole negra, nas linhagens paralelas ocorreu um processo de branque-

amento — paralelo, contudo, com o abandono. O neto de Pulquéria que

tive oportunidade de conhecer me parece (e a diversos de seus primos)

fenotipicamente branco, apesar de considerar-se “moreno” “para acom-

panhar sua família”.

Essa complexa narrativa genealógica — a confusão está mais no

enredo do que na exposição, ao menos asseguro aos leitores que pro-

curei apresentá-la da forma mais clara possível —,112

de usos, abusos

e incertezas, dá início a meu relato acerca da incerta e não sabida vida

de Pulquéria, que foi a integrante da família mais próxima daquilo que

Lima (2005) definiu como precariedade da liberdade.113

Ainda que se

tenha conseguido fixar, essa mulher nascida de ventre livre esteve no

limiar de ocupações incertas, descontínuas e mal pagas.

Talvez sua situação seja um exemplo de tantos outros destinos

negros incertos e não sabidos no litoral norte do Rio Grande do Sul. Em

um sentido estatístico, certamente ela deve ter sido mais “representati-

va” do que seus familiares, os meio-irmãos filhos de Manoel Inácio.

Efetivamente, naqueles anos, uma quantidade muito grande de negros

como Pulquéria “aguentou desaforo”, sem deixar a quantidade de ves-

tígios documentais — que já são escassos — disponíveis para famílias

112

Para melhor acompanhá-la os leitores poderão consultar o anexo.

113 A própria escassez de dados acerca de sua vida é um indicativo de uma vida insegu-

ra que deixou menos registros. Até mesmo a obtenção de contatos para a realização

de entrevistas de história oral foi dificultosa, na medida em que a maior parte de sua

descendência acabou por afastar-se dos familiares.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 100

“legítimas”. O segmento de seus irmãos, que a essa situação foi pou-

pado, certamente constitui exceção. Sob outro viés, no entanto, Pulqué-

ria é a prova de que mesmo o estudo de uma família bem-sucedida

permite uma aproximação daqueles de menor êxito.

O casamento representou, para todas as filhas de Felisberta, a re-

tirada do terreno familiar. Pulquéria contribuíra, é óbvio, ao sustento da

unidade produtiva, mas ao contrário das demais não pudera ser com-

pensada por meio de animais que servissem como dote, o que viabiliza-

ria um casamento mais vantajoso. Na condição de mãe solteira, era-lhe

aceitável alguém que a acolhesse com sua menina.

Ela e Zeferino instalaram-se como agregados na fazenda de Mi-

guel Ventura, fazendeiro no Pontal, no Faxinal do Morro Alto. É prová-

vel que Felisberta tenha ensinado a sua filha as habilidades que possu-

ía, isto é, prendas domésticas. No entanto, ao contrário da carpintaria

que, veremos, Manoel Inácio legou aos filhos homens — “legítimos” ou

não —, aquelas não lhe asseguravam uma vantagem diferencial peran-

te os demais. Todas mulheres de seu estrato social eram conhecedoras

dos ofícios domésticos e do trabalho na roça. Sendo assim, deserdada,

conforme visto, e sem nenhuma habilidade diferenciadamente vantajo-

sa, seu ramo familiar teve dificuldades maiores do que seus meio-

irmãos e até mesmo Belisário, igualmente ilegítimo.

O fazendeiro em cuja fazenda ela se refugiou é lembrado por um

neto como detentor de uma bondade que não passava pela remunera-

ção salarial.114

Pelo contrário, era o trabalho nas terras do fazendeiro

que compensava a cessão de um chão, de uma casa onde se pudes-

sem instalar. Naquele momento, era aquela contrapartida que se espe-

rava; ela era interpretada como uma dádiva. Não era sobre a pecúnia

que se assentavam as relações de trabalho, mesmo que quantias mo-

netárias pudessem ser eventualmente dadas.

Neto de Pulquéria Felisberta – Não. Naquela época lá

nem tinha salário.

Rodrigo – Como é que pagava?

Neto de Pulquéria Felisberta – Ganhava lá uns troquinhos

lá pra trabalhar nas roças dos outros lá, e mais nada.

114

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 12 de janeiro de 2009 em

Porto Alegre.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 101

Nem sabia falar o que era salário. Era uma briga até se

falasse no salário. Ninguém sabia o que era salário.

Quem é que sabia o que era salário naquela época? Ago-

ra só vim saber o que era salário aqui. [Porto Alegre] Sa-

lário começou muito... Começou o salário mínimo. Ga-

nhava era uma mixaria. Derramava o suor na roça dos

outros mas não por salário.115

Tratava-se de escapar das privações e destinos errantes do cam-

pesinato itinerante de Rios (2005a), o que era bastante palpável para

ela. O mesmo entrevistado sustenta que sua avó morreu em Osório,

para onde foi após o falecimento de Zeferino, porém seu tio Teodoro

afirma que Pulquéria terminou seus dias no Pontal.116

Seja lá onde for

que terminou seus dias, é evidente que a agregação foi o meio para a

aquisição de certa estabilidade. “Derramar o suor na roça dos outros”

foi o preço pago por Pulquéria e Zeferino para tornar a vida de sua fa-

mília um pouco menos incerta e não sabida. Para garantir que Honorata

e os demais irmãos não “rolassem na estrada”.

Mesmo que tenha conseguido ali estabelecer casa, é claro que

não pôde usufruir do estatuto de camponeses independentes gozado

por seus irmãos. A residência oferecida pelo fazendeiro, mais do que

uma estrutura física — de barro e chão batido até a geração seguin-

te117

— era uma unidade de produção, pois implicava o acesso à terra e

à produção camponesa.

Mesmo que seu neto ressalte a bondade de Ventura, a família de

Pulquéria pode ter “aturado o desaforo” de que Manoel Inácio queria

poupar a sua prole, ao sujeitar-se, nos termos de Rios (2005a), a um

pacto paternalista. Comparativamente aos irmãos, as margens de auto-

nomia e a sujeição a terceiros era consideravelmente superior. A per-

cepção da “bondade” do fazendeiro podia representar uma gratidão

sincera a Ventura, mas também dissimular aspectos não verbalizáveis

a um entrevistador com quem o informante não tinha intimidade algu-

ma. As recordações costumam refugiar-se em versões que tornam su-

portáveis circunstâncias sofridas (POLLAK, 2000).

115

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 11 de fevereiro de 2009 em

Porto Alegre.

116 Entrevista com o senhor Teodoro José Cardoso no dia 9 de janeiro de 2009 em Osó-

rio (LABHOI – UFF).

117 Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no

Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 102

Em suma, tratava-se de uma tentativa de escapar do dito campe-

sinato itinerante, alternativa que era um perigo palpável. Não havia

poucas coisas em jogo: escapar a “percorrer estradas por dias, acom-

panhados de filhos pequenos, passando por vezes anos sem ver seus

parentes” ou por “duras privações”. (RIOS, 2005a). É bem provável que

Pulquéria tivesse noção de circunstâncias ruins sofridas por outros co-

mo ela. Provavelmente, a submissão a Ventura resultou de um com-

preensível preço a pagar, não se sabe com até qual grau de consciên-

cia. Desse ponto de vista, convém colocar em perspectiva a “bondade”

do fazendeiro. Na fala de seu neto há aparente gratidão pela casa con-

cedida. Sendo assim, casa, terreno e animais oferecidos figuram como

dádivas — de onde a percepção de “bondade” —, e o trabalho ofereci-

do, como contra-prestação.118

Neto de Pulquéria Felisberta – Não tinha terreno, não ti-

nha nada pra morar. Então ele como tinha dava proprie-

dade pra nós morar.

Rodrigo – Dava propriedade?

Neto de Pulquéria Felisberta – Dava o terreno, tudo, nós

construíamos casa, tudo. Esse meu avô fazia casa, minha

mãe fez uma casa também, junto, tudo ao redor assim.

Depois a falecida minha avó, tudo, tudo, morava tudo uni-

do.119

O pacto paternalista possibilitou o estabelecimento de uma territo-

rialidade não viabilizada por meio de herança ou casamento. A obten-

ção da concessão de terras para plantio e moradia, tendo o trabalho

não remunerado monetariamente como contrapartida, foi um arranjo

razoavelmente corriqueiro no Brasil rural da primeira metade do pós-

Abolição. Conforme Palmeira (1976) e Dezemone (2004), aos colonos

eram cedidos espaços de moradia que deveriam ter, como recíproca, a

prestação de trabalho nas lavouras do fazendeiro e a entrega de parte

da sua produção. O seguinte trecho, referente à “plantation” açucareira

tradicional do Nordeste Brasileiro, apesar de dizer respeito a outro es-

paço geográfico, pode ajudar a elucidar as relações entre cessão de

118

Destaque-se que uma relação de reciprocidade não necessariamente é simétrica.

119 Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 12 de janeiro de 2009 em

Porto Alegre.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 103

moradia e obrigação de plantio, no que toca à localidade de Morro Alto

e, particularmente, à família de Pulquéria.

[...] não é qualquer casa, no sentido que nós damos a es-

sa palavra, que ele procura, mas sim casa de morada,

uma casa que permita o sustento dele e de sua família e

lhe assegure certas vantagens no engenho e lhe abra

certas possibilidades como a do usufruto de um sítio [...] a

casa representa mais do que a simples construção e in-

clui sempre um terreiro, chão de terra ou fundo de casa

que lhe é coextensivo, que é uma peça da casa. Isso va

de soi e não precisa ser explicitado no “contrato” de mo-

radia. O proprietário não reconhecer isso significa um

desrespeito intolerável às regras do jogo, como fica evi-

denciado nas queixas generalizadas dos trabalhadores de

que os proprietários estão plantando cana “dentro da ca-

sa dos moradores” ou na formulação inversa daqueles

para quem as regras da morada representam uma espé-

cie de imperativo absoluto: “Em todo lugar que eu moro

eu planto”. (PALMEIRA, 1976, p. 306-307, grifo do autor).

Em sua vida, a filha mais velha de Felisberta, certamente, poderia

ter sido exposta a muitos abusos, tiranias e desaforos. A itinerância,

não há dúvidas, a exporia a situações ainda mais desfavoráveis do que

o pacto paternalista. Todavia, também é evidente que não gozava das

mesmas condições de seus irmãos, que, por meio das batalhas pela

vida e estratégias sociais de seus pais conseguiram alcançar o tão

almejado “projeto camponês”. Seja em terras próprias, seja na “casa”

cedida por um fazendeiro, porém, todos se dedicaram a algumas ativi-

dades em específico. Fosse maior ou menor a estabilidade, havia pro-

cessos produtivos dos quais não se podia escapar.

5.3 Aprender o trabalho na terra, o trato da cana

Eu, o Manoeli, a gente já sabia trabalhar a cana, colocar

no engenho... Aprendemos no cativeiro. Ele também era

campeiro, domador. Depois foi só ensinar pras crianças.

A gente diz que não sabe, pois sabe. Sabe muito. Eu sei

trabalhar. E meus filhos também. Trabalho duro. Se tem

uma coisa que a gente não tem medo é trabalho, graças

a Deus.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 104

Tive a oportunidade de entrevistar diversos netos de escravos,

portanto, filhos daqueles camponeses da virada do século XIX para o

XX. Na faixa entre 80 e 90 anos de idade na década de 2010, suas

lembranças infantis remetem ao cenário da produção camponesa nos

anos finais da Primeira República e expressam, mais propriamente,

recordações e representações contemporâneas acerca daquele tempo.

Os relatos coletados oferecem ricas descrições do cotidiano na roça e

dos ciclos diários de trabalho. O trabalho no tempo de infância foi lem-

brado como sofrido, difícil, resultante de grande esforço familiar.

Aurora – Era brabo. Deus do céu. A pessoa trabalhar. E

era o clarear do dia. Não tinha relógio. Não tinha nada.

Clareava o dia e o negro tinha que saltar e o café era to-

mado às nove horas. Não era levantar de manhã, encher

a barriga e sair. Não. Sair de barriga vazia, às nove horas

que tinha o café. Podia trabalhar onde quisesse. Podia

ser o serviço que fosse.120

Apesar disto, existia a outra face da moeda. Da mesma forma que

o trabalho é associado a esforço e sofrimento, ele assumia, também,

uma dimensão lúdica e de sociabilidade que extrapolava o plantar e o

colher. Pode tratar-se, novamente, de uma forma de relativizar a peno-

sidade de uma experiência de trabalho de sofrimento não-dizível. Toda-

via, tais recordações não poderiam funcionar e ser compartilhadas por

diversos depoentes se não através de um repertório de experiências

vividas em comum. Segundo uma das primas da entrevistada supraci-

tada (em uma situação em que três pessoas estavam sendo entrevista-

das, em um momento de memórias compartilhadas, portanto):

Eva – O que nós cantávamos, né, Aurora. Nós íamos tra-

balhar no morro, nós trabalhávamos no morro, aquilo a

gente cantava, subia... eu me levantava de manhã numa

alegria só. Cantando, assobiando.121

Eva – É, só a família chegava, e aquilo era tocado a boi,

né. Botava os bois, cangava, moia, botava a ferver o... a

guarapa pra fazer o açúcar, né. Era muito bom, muito di-

vertido. [sorri]

Rodrigo – Era divertido, dona Eva?

120

Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva e Eva Inácia Marques no

dia 9 de janeiro de 2010 em Osório – LABHOI – UFF

121 Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de janeiro de 2009 no

Caconde (LABHOI – UFF)

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 105

Eva – [sorri e olha pra baixo] É, era divertido.122

Além disso, os saberes decorrentes do trabalho na roça eram ain-

da fonte de orgulho e auto-estima. A sabedoria e a iniciativa para fazer,

a competência, a capacidade e a habilidade são virtudes valorizadas

nesse olhar retrospectivo sobre o passado:

Diva – Nós pegávamos o machado, nós íamos derrubar

as roçadas junto com o pai, nós roçávamos, nós pintáva-

mos e bordávamos junto com o pai, não deixávamos o pai

sozinho. E ela [uma prima que, segundo Diva, não possu-

ía os mesmos conhecimentos das lides agrícolas] não ti-

nha essa sabedoria que nós temos. Nós tínhamos enge-

nho de açúcar, nós tínhamos, nós carregávamos cana,

nós fechávamos, nós cortávamos, nós moíamos, nós fa-

zíamos açúcar, nós fazíamos guarapa, nós fazíamos tu-

do. Junto com o pai.123

Sistematizei, a seguir, os principais produtos agrícolas e de cria-

ção lembrados pelos entrevistados, agrupados pelo nome dos donos

das unidades produtivas.

122

Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF).

123 Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 106

Quadro 3 – Produção agrícola e criação de animais entre camponeses negros do Morro Alto na primeira metade do século XX.

124

Unidade de produção camponesa

Produção agrícola Criação

Manoel Inácio Mar-ques Filho

125

Cana-de-açúcar, milho, feijão, arroz, trigo, batata doce, aipim.

Porco, cavalo, vaca de leite, boi, galinha, cabra.

Bento Merêncio Marques

126

Cana-de-açúcar, milho, feijão, arroz, trigo, batata inglesa.

Gado, cavalo, ovelha

José Inácio da Ro-sa

127

Milho, feijão, arroz, trigo, batata doce, mandioca, banana.

Não mencionado

Belisário de Olivei-ra

128

Milho, feijão, batata, aipim, amendoim.

Porco, gado, galinha, ove-lha.

Note-se a recorrência da lembrança do milho, do feijão e da batata

em suas variedades, constituindo, é provável, o fundamento da dieta.

Arriscaria aqui incluir mandioca / aipim, não lembrada por todos por sua

obviedade. A plantação de cana dependia do acesso a terrenos de

morro, o que, por exemplo, não estava disponível para a família de

Belisário de Oliveira. Não obstante, plantava-se amendoim que não se

limitava ao consumo interno, tendo uma função comercial e de acumu-

lação de excedentes. Mesmo que não tenha sido lembrado por todos

(exatamente por, assim como a mandioca, se tratar de algo para eles

comum e natural, auto-evidente), arrisco o palpite de que todos, ou

quase todos, tenham criado galinhas e porcos, quer pela menor dimen-

são dos animais, por um espaço relativamente diminuto ocupado por

galinheiros e chiqueiros ou pelo menor investimento. Esses animais

deveriam constituir a principal fonte proteica em sua alimentação.

124

Atividades relatadas em entrevistas.

125 Entrevista com a senhora Amélia Inácia Marques no dia 7 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF) ; Entrevista com a senhora Eva Inácia Marques no dia 9 de

janeiro de 2009 em Osório (LABHOI – UFF); Entrevista com o senhor Manoel Inácio

Marques Neto no dia 9 de janeiro de 2009 em Osório (LABHOI – UFF); Entrevista

com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 16 de janeiro de 2010 em Osório

(LABHOI – UFF).

126 Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF).

127 Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no

Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF).

128 Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 107

No entanto, além do plantio, o trabalho rural dos camponeses ne-

gros no litoral norte envolvia também o processamento dos produtos,

particularmente da cana-de açúcar. Assim sendo, quem possuía um

engenho na sua casa, dedicava parcela do trabalho rural à extração da

guarapa. De acordo com a senhora Diva: “E a gente trabalhava na roça,

engenho, nós moíamos cana, nós cortávamos a cana, nós botávamos

no engenho, nós moíamos quando nós queríamos aproveitar a guara-

pa, uma, o engenho, não sei se tu conhece o engenho.”129

Para quem não possuía engenho, uma alternativa consistia no

empréstimo das benfeitorias por parte de vizinhos. É o caso da família

da senhora Eva Marques Correia: ela, seu irmão e seus pais moíam a

cana no engenho de um fazendeiro seu primo, Valério.130

Por outro

lado, Manoel Inácio Marques Filho, tio de Eva, também emprestava o

engenho a vizinhos e familiares.131

Vale lembrar que esse acesso não

era mediado, naquele momento, por transações monetárias, e sim pe-

las relações de parentesco, vizinhança e sociabilidade.

Nas entrevistas vêm à tona, também, minuciosas e ricas descri-

ções do trabalho rural; vale lembrar que as falas não foram estimuladas

pelo entrevistador: vieram de forma espontânea, sistematicamente, por

diversas entrevistados, evidenciando tratar-se de assunto relevante

para eles, quer por um tom de nostalgia, quer (principalmente) por uma

ética do trabalho que até hoje marca suas identidades.

Aurora – Desde pequeninho ao clarear do dia ele nos ti-

rava da cama, vamos lavar o rosto, e vamos tratar gali-

nha, e vamos tratar porco, e vamos tirar leite, e já vamos

pra roça, depois que fizer o serviço em casa, já feito. En-

tão nós somos umas criaturas assim, dedicadas, como

ele foi criado pela mãe dele e o pai dele, nós fomos cria-

dos.132

129

Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12 de março de

2010 em Osório (LABHOI – UFF).

130 Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF).

131 Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório.

132 Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 9 de janeiro de

2009 em Osório. (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 108

Diva – Carregando um monte de lenha nas costas pra

trazer pra, pra trazer pra casa como eu fazia, feixos de

cana, cana, batata pros bichos, que nós tínhamos cria-

ção... os, os, as, os cestos assim, naquele tempo chama-

va balaio, os balaios assim [mostra] desse tamanho chei-

os de batata pra dar pros bichos, pros porcos, pra cozi-

nhar pras galinhas, [primeiro eu quero ver ?] daí no tempo

que era pra criar porco, tinha os inhames, não sei se tu já

ouviu falar, é uns, uns [mostra com as mãos as dimen-

sões] uns coisos assim grandes e é, é plantado, a gente

trazia aqueles, aquele balaio de inhame, chega cá, botava

pra cozinhar na panela pra dar pros porcos. O colono

quase não trabalha pra engordar um bicho.133

As atividades econômicas descritas contavam com a participação

de crianças, conforme visto. Além de essa ser uma característica fun-

damental da unidade camponesa também era uma maneira de propor-

cionar o aprendizado das habilidades necessárias para a vida adulta.

Nesse sentido, as meninas — e na família de Manoel Inácio Marques

Filho havia sete moças e apenas um rapaz — deveriam aprender além

do trabalho da roça, as lides domésticas que, afinal, seriam necessárias

para um bom casamento, o destino a elas tido como natural. Foi-lhes

útil, também, na busca e exercício do trabalho na cidade. Sua esposa,

Clara, utilizava de curioso expediente para formar as filhas como do-

nas-de-casa. A senhora Diva Inácia Marques Terra narrou, divertida,

que a cada semana sua mãe encarregava uma das filhas — a dona da

semana — por assumir todos trabalhos do lar, sendo as demais, hós-

pedes. Assim sendo, cada menina se familiarizaria com a administração

do lar, porque a mãe não dava instruções sobre aquilo que deveria ser

feito. As garotas tinham que se assegurarem de seu desempenho por si

sós:

Diva – É, da semana; então aquela semana a gente to-

dos, as outras todas, nós somos de oito, elas eram hós-

pedes, na hora do almoço, a gente vinha da roça, a mãe

só cozinhava o feijão, não pensa que a mãe fazia comida

que o pai não deixava. Ela tinha criado nós, nós que fôs-

semos fazer o almoço e arrumar a cozinha. A gente che-

gava, tava só feijãozinho cozido. E aí tu ia fazer arroz, tu

ia fazer carne, tu ia fazer salada, tu ia te virar. Se era ai-

133

Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12 de março de

2010 em Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 109

pim tu ia desgastar o aipim sozinha, botar no fogo, antes

do almoço o pai gostava de tomar chimarrão. E a gente ia

fazer o almoço.134

O trabalho infantil, rural ou doméstico, portanto, direcionava-se

não apenas ao sustento familiar, mas também ao ensino de capacida-

des laborais que seriam necessárias às crianças quando se tornassem

crescidas. Não é à toa que a senhora Amélia estabeleceu uma linha de

continuidade entre as lides camponesas de sua infância e aquelas da

idade adulta: “encarreirando assim, todos trabalhando na roça, primeiro

criança e depois com marido e filhos”.135

Essa forma de aprendizado

doméstico era concorrente, muitas vezes, com o ensino formal.

A senhora Aurora Inácia Marques, indagada se havia frequentado

a escola, explicou que o fizera apenas por seis meses, já que precisou

ajudar sua família na roça desde a tenra infância.136

Conforme a teoria

chayanoviana, a sustentação do núcleo familiar dependia da auto-

exploração de sua mão-de-obra, isto é, a produção de bens dependia

da força-de-trabalho dos próprios integrantes do núcleo doméstico.

Assim sendo, oportunizar às crianças a possibilidade de frequentar

escolas, ainda que uma possibilidade de garantir chances de ascensão

social futuramente (algo do que a maioria não tinha ciência), era tam-

bém uma perigosa quebra de um frágil equilíbrio quando o que estava

em jogo era a sobrevivência familiar. Filhos na escola representavam

braços subtraídos à lavoura, de que dependia o sustento de todos.

Ademais, as escolas eram distantes do terreno, sendo o deslocamento

outro empecilho.

Aparentemente, esse é o motivo pelo qual Manoel Inácio Marques

Filho “não pôde dar estudo”137

à maior parte de seus filhos; todavia,

teve a providência de lhes garantir o que foi possível, isto é, meses na

escola suficientes para o aprendizado do alfabeto e noções elementa-

134

Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório.

135 Entrevista com a senhora Amélia Inácia Marques no dia 7 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF)

136 Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 9 de janeiro de

2009 em Osório. (LABHOI – UFF).

137 Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 9 de janeiro de

2009 em Osório. (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 110

res de matemática. Os entrevistados, via de regra, sabiam assinar, o

que foi útil para a vida posterior no meio urbano. Todavia, a escola não

detém o monopólio sobre o processo educativo, sendo o lar, também,

um espaço de aprendizado, ainda que de outras competências então

julgadas mais úteis — ou melhor, necessárias, apostando na continui-

dade de um modo de vida camponês — para a sobrevivência na idade

adulta.

Aurora era, na ordem de nascimento dos irmãos, a terceira mais

velha. Sua infância se deu em um momento de consolidação da unida-

de econômica familiar. Os caçulas, Manoel e Eva, tiveram oportunida-

des diversas de acesso ao ensino formal, na medida em que, já na

década de 1940, os irmãos “já estavam criados”, e a propriedade de

Manoel Inácio Marques Filho era próspera. Os últimos tiveram a opor-

tunidade de estudar.138

É impossível mensurar até que ponto isso re-

presentou um calculado investimento dos pais nos mais novos ou pro-

priamente uma feliz decorrência da evolução de sua propriedade.

O tempo que as crianças puderam permanecer na escola, assim,

foi inversamente proporcional à sua ordem de nascimento; reservou-se

aos caçulas maior possibilidade de acesso ao estudo, enquanto os

mais velhos estavam diretamente engajados no sustento da unidade

econômica familiar. Em outros termos, o trabalho dos caçulas era um

pouco menos necessário em um momento em que o trabalho familiar

naquela “colônia” estava estruturado. Mesmo que se contasse com o

trabalho infantil, contudo, por vezes era necessário recorrer ao auxílio

da vizinhança.

5.4 Quando os vizinhos se ajudam Naquele tempo era tudo mais unido. A gente fazia pixuru.

O senhori sabe o que é pixuru?

Em seu clássico estudo acerca do campesinato do interior paulis-

ta, Mello e Souza (2010) assinalou a necessidade, entre os “caipiras”,

da ajuda vicinal necessária para a realização de tarefas em que a força

de trabalho doméstica era insuficiente: “derrubada, roçada, plantio,

limpa, colheita, malhação, construção de casa, fiação, etc”. Reunía-se,

138

Certa ocasião, na década de 2010, fui visitar a senhora Eva Inácia e ela estava colo-

rindo e preenchendo mapas com os nomes dos estados brasileiros. Estudava geo-

grafia, já idosa, para “ocupar a cabeça”.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 111

então, o vecindário, a fim de dar conta dos trabalhos envolvidos. Essas

atividades inseriam-se em um circuito de reciprocidade, já que quem

ajudava em um dia provavelmente necessitaria de auxílio do vizinho

posteriormente. Assim, os chefes de unidades domésticas camponesas

cediam aos demais sua mão-de-obra e a de sua família, em uma rela-

ção de confiança de que o auxílio seria correspondido.

O mutirão — como era chamado entre os “caipiras” estudados por

Mello e Souza — era praticado pelo grupo por mim estudado, mas de-

nominado como “pixuru”. Assim como existia o empréstimo de benfeito-

rias, ocorria também a cooperação laboral. Meus entrevistados dele se

lembram, pois participaram durante suas infâncias. Segundo a senhora

Aurora, “pixuru é reunir os amigos pra... pra trabalhar, plantar, pra ro-

çar, pra derrubar. Eram os vizinhos.”139

A dimensão de amizade aqui

ressaltada não é ocasional: mais do que a mobilização de força de tra-

balho tendo em vista a obtenção de recursos econômicos, estava em

jogo a construção ou consolidação de redes de sociabilidade, coopera-

ção e afeto entre vizinhos. Além da obtenção de um auxílio econômico,

tratava-se de uma forma de saber “com quem se pode contar”; conhe-

cimento esse que realimentava o trabalho para obtenção de recursos.

Quando, porém, a senhora Eva Marques Correia, quase nonage-

nária por volta de 2010, falou na realização de pixurus em sua proprie-

dade, estava pensando em trabalhadores pagos para ajudar na roça.

Os primos mais novos, por sua vez, afirmam não terem conhecido o

pixuru — apenas por “ouvir dizer”. “Não alcancei” — afirmam. Dessa

maneira, mesmo que de uma forma bastante grosseira, é possível iden-

tificar um momento “solidário” do pixuru nas décadas de 1920 e 1930

(quando os octogenários e nonagenários eram crianças); e sua deca-

dência na década de 1940 (infância dos septuagenários).140

Esse últi-

mo momento, equivale à mercantilização de relações sociais, dado que

os braços adicionais passaram a receber uma compensação monetá-

ria.141

É claro que havia contraprestações não-pecuniárias, como a

oferta de alimentos e bebidas para a refeição dos trabalhadores. De

139

Entrevista filmada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 13 de março

de 2010 em Osório (LABHOI – UFF). 140

No caso de Eva, trata-se dos momentos distintos em que era solteira e casada.

141 Caberia investigar o que acontecia na fazenda de Ventura: o assalariamento teria

ganho maior terreno?

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 112

toda forma, aquele mutirão embasado na cooperação vicinal não mais

existia.

Rodrigo – E outra coisa da entrevista passada. Que eu

perguntei pra senhora se fazia pixuru aqui. A senhora fa-

lou que botava uns quatro, cinco pra capinar.

Eva – Aham.

Rodrigo – Esses quatro, cinco vinham de favor, ou paga-

va?

Eva – Não, era pago.

Rodrigo – Era pago.

Eva – Não, não, era pago. Comida e bebida. Café de ma-

nhã, café às nove e almoço meio-dia. Só a janta que eles

iam jantar em casa [aponta para fora do terreno].

Rodrigo – Mas pagava dinheiro?

Eva – Aham. [balança a cabeça afirmativamente] A di-

nheiro.

Rodrigo – E caro?

Eva – Ah, ainda tem o sujeito aí [aponta para fora do ter-

reno com a cabeça] que ainda capinou conosco na roça.

Rodrigo – Ah é?

Eva – Uh-hum. Ainda tem aí. Não, naquele tempo era ba-

rato, né? Agora não [balança a cabeça negativamente] dá

mais.142

Distinta é a narrativa no que toca à sua infância: ao relatar a moa-

gem de cana por sua família, que não possuía engenho, a mesma se-

nhora apresentou a propriedade de um primo, Valério, onde realizava

tal atividade, o que além do aspecto econômico deveria fomentar soli-

dariedades familiares e vicinais. Ousaria dizer, até mesmo, que o pri-

meiro tipo de pixuru, aquele em que a solidariedade estava implicada,

possuía exatamente essa função: talvez mais do que o compadrio,

cimentava laços comunitários necessários em uma vida rural dificultosa

e eventualmente violenta. Eram diversas as linhagens e deveriam exis-

tir mecanismos para estabelecer vínculos entre elas.

142

Entrevista filmada com dona Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010 no

Caconde

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 113

Essas explicações a respeito do pixuru, bem como sua dimensão

de reciprocidade, podem ser encontradas nas falas do irmão e de uma

prima de Aurora:

Manoel – O pixuru era uma união. Mesma coisa que nós

tamos aqui reunidos agora palestreando, memória, uma

palestra, outra, aquela coisa toda. Seria isso aí. Só que

ele ia pra lá então aquele dia ele ia pra lá, roçava uma

quarta de terra pra milho, pra feijão, sei lá, na época de

plantar, porque agora é época de colher essa planta aqui

da nossa região. Nos outros lugares não. Mas assim ó,

isso aí era muito bom, ia pra lá de manhã, quando chega-

va de noite largava tudo tava pronto, aquela roça ali. Aí

cinco, seis, não sei quando depois, machado, ficava pron-

to.143

Maria – É. E os vizinhos, a comunidade lá, a vizinhança

uns trabalhavam na roça dos outros pra ajudar. Por

exemplo, se tu tinha lá uma roça eu te ajudava. Eu e mi-

nha família ia lá um dia, dois dias, fazia o tal de pixuru

que eles chamavam, ia [num monte?], capinavam. Aí ou-

tro dia compensavam aquilo. Por exemplo, tu ia lá na mi-

nha roça, na roça dos outros, é assim que eles faziam.144

A sobrevivência como unidade econômica impunha-se como fina-

lidade para além da segregação racial — presentes, por exemplo, na

realização dos bailes, hermeticamente separados entre negros e bran-

cos, dado que constituíam um espaço de formação de casais (WEI-

MER, 2015b). Todos deveriam cooperar. São diversos os relatos que

apontam para, ao menos nesse momento, a participação de brancos e

negros juntos nos pixurus. Permito-me, assim, uma pequena discor-

dância em relação a estudo anterior.

O “pixuru” é uma espécie de mutirão. Trata-se de uma

prática onde se troca força de trabalho e sociabilidade.

[...] Com a ausência de dinheiro no interior da comunida-

de as trocas de dias de trabalho eram algo comum. Isso

além de refletir um modo de organização para a produção

deixa clara uma idéia do trabalho como algo que poderia

ser trocado, como algo que ensejasse a interação social

143

Entrevista com o senhor Manoel Inácio Marques Neto no dia 9 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

144 Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 114

entre parentes e vizinhos. Essa troca, entretanto, não se

dava com qualquer pessoa “de fora” mas com pessoas

nas quais se depositava a confiança da contrapartida, do

contra dom, afinal “antigamente era tudo unido” (BAR-

CELLOS et al., 2004, p. 338-339).

Tenho acordo com a interpretação dada pela equipe de Daisy Bar-

cellos: a ajuda fornecida amparava-se na confiança quanto à retribui-

ção. Porém, ela também se realizava com os “de fora”. Os pixurus eram

um dos raríssimos espaços de integração interétnica. O critério não era

familiar, racial ou grupal, e sim vicinal. Segundo dona Diva, ao falar dos

pixurus, e sobre com quem realizava: “Lá em, no Espraiado. Lá em

Espraiado. Tinha os Gatelli, também no Espraiado. Tinha os ah, meu

Deus, os Dambrosa, era italiano.”145

O mesmo é enfatizado por sua

prima, Edite Maria da Rosa, que destaca que o pixuru, em sua infância,

independia de critérios raciais.146

Se havia reciprocidade, todavia, ela não necessariamente era si-

métrica, já que uma unidade econômica podia contar com mais ou me-

nos braços para trabalhar, e ter diferentes graus de carência de braços

adicionais. Ao indagar a senhora Diva sobre o fato de sua família fazer

pixuru com os vizinhos, ela me corrigiu, afirmando que eram os vizinhos

que faziam com eles147

. O que ela queria dizer com essa inversão? Ao

que me parece, significava que em sua família eram bastantes gurias

para trabalhar. Ela assinalou, ainda, que seus vizinhos — brancos —

recorriam a seu pai em busca de sua sabedoria e conhecimento. Ex-

pressa isso com um pequeno orgulho, na medida em que não eram os

negros que recorriam aos brancos, e sim o contrário.

Ou seja, a solidariedade vicinal envolvia reciprocidade, porém era

desigual na medida em que sua família não precisava do acréscimo de

mão-de-obra dos vizinhos na mesma medida em que os lindeiros ne-

cessitavam de seu auxílio, seja no que toca a braços, seja no que tange

a conhecimentos. A prole de Manoel Inácio, por exemplo, era numerosa

145

Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório.

146 Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no Ribei-

rão do Morro Alto (LABHOI – UFF).

147 Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12 de março de

2010 em Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 115

o suficiente para que a demanda por força de trabalho adicional fosse

menor. Assim sendo, havia uma expectativa de que todos se ajudas-

sem mutuamente; não obstante, alguns tinham mais a demandar e

outros, mais a oferecer. Isso, provavelmente, repercutia em uma distri-

buição desigual de status, prestígio e poder, que, nesse caso, nem

sempre acompanhava a condição racial. O exercício de algumas profis-

sões em particular ajudava na vitória da competência ocupacional sobre

discriminações raciais.

5.5 Carpinteiros, campeiros e tropeiros do Morro Alto

É como le disse. Tudo que se aprende no cativeiro, se

passa adiante pros filhos também saberem. O falecido

ensinou carpintaria, a campear, domar, tropear, pro Deo-

dício e também pro Belisar. Eu também ensinei as gurias

a cuidar da casa.

Diversos filhos de escravos campeiros da senzala dos Marques

trabalharam para as famílias senhoriais de seus pais. Não vejo nesses

vínculos apenas uma relação de dependência ou clientelismo. Perceber

apenas assim significa contentar-se com um olhar de cima. Sob o ponto

de vista das famílias dos egressos do cativeiro, pelo contrário, havia

mecanismos de acumulação de recursos, de ampliação das possibili-

dades de sustento e de distinção frente aos demais descendentes de

cativos que não gozavam de uma relação privilegiada com os antigos

senhores. Em suma, tais relações não dependiam de uma obediência

cega às famílias de ex-senhores, mas de mecanismos palpáveis de

busca por uma vida melhor.

Nos relatos de seus descendentes, há uma coincidência discursiva

que sempre põe em paralelo o desempenho de atividades para os fa-

zendeiros com os já analisados laços de compadrio, que por sua vez

são concebidos como demonstrativos de vínculos de parentesco. Além

disso, seus filhos desempenharam as mesmas profissões dos pais,

para os mesmos fazendeiros, outrora senhores, por um processo de

aprendizado de ofícios no seio familiar. Isso não se esgota na depen-

dência, mas com a transmissão de competências e habilidades a pro-

porcionar uma vida melhor (ver adiante).

Nas relações de matrículas devidas à lei de 1871 e anexas ao in-

ventário do Capitão Thomaz Osório Marques, Manoel Inácio e seu tio

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 116

Romão figuram dentre os escravos. A profissão do primeiro é identifica-

da como carpinteiro, e a do segundo como campeiro.148

Trata-se de

ofícios especializados, considerando que a maior parte dos demais

cativos do sexo masculino em Conceição do Arroio era composta de

lavradores. Sobretudo o de Manoel Inácio demonstra uma grande quali-

ficação, o que confirma a impressão de tratar-se de um cativo com o

estatuto privilegiado frente os demais.

Guedes (2008), estudando a freguesia de Porto Feliz no século

XIX, argumentou, em contraposição às proposições historiográficas que

postulavam a depreciação do trabalho manual em função da associa-

ção com o trabalho escravo, que o desempenho de ofícios poderia ser-

vir como marca de estima social. O autor apresentou como exemplo

eloquente o caso dos carpinteiros, que adquiriam um lugar de destaque

em uma sociedade agrária, sendo imprescindíveis para o conserto e

manutenção de benfeitorias. Essa habilidade aprendida na vida em

cativeiro poderia servir como mecanismo de inserção social na liberda-

de (GUEDES, 2008). No caso de Manoel Inácio, foi o que possibilitou a

aquisição do terreno no Espraiado. Segundo a recordação da senhora

Aurora: “Ele que comprou. Ele que comprou que ele trabalhava, ele era

car... carpinteiro, era o maior carpinteiro que tinha. (...) Ele ia pras fa-

zendas fazer móveis. Aí ele ganhou aquele dinheirinho, naquela época

era barato, ele comprou e deu pros, pros filhos.”149

Em uma carta, em poder de Aurora Inácia Marques da Silva, João

Silveira Machado — aparentado da família senhorial Marques e do

“famoso” Machado que dava tiros para o ar ao ver negros — dirigiu-se a

Manoel Inácio. Escrevendo de Palmares em quatro de outubro de 1905,

após as gentilezas habituais, solicitava que lhe trouxesse madeiras que

o ex-escravo Merêncio encomendara: “½ dúzia de varas de porteira

finas e um eixo de boa qualidade e uma guilhada”.150

Conforme visto,

as famílias de Manoel Inácio e Merêncio fizeram trocas matrimoniais.

148

APERS, COA - CA, estante 159, caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz

Osório Marques, ano de 1883.

149 Entrevista filmada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no dia 13 de março

de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

150 Tendo lido esse documento para a senhora Aurora, ela reconheceu um assunto de

“uma coisa boa”, de “prosperidade” (Entrevista com a senhora Aurora Inácia

Marques da Silva e Eva Inácia Marques no dia 9 de janeiro de 2010 em Osório –

LABHOI – UFF). Sua irmã, por seu turno, recordou que João Machado seria seu

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 117

Da leitura da carta advêm duas conclusões: em primeiro lugar,

conclui-se pela existência de circuitos de circulação de recursos —

madeira — e reciprocidade entre camponeses da região com estatuto

social similar e que, como veremos, se tornaram parentes por aliança.

Mais impressionante é que essa relação se encontra mediada por um

integrante da antiga família senhorial, que menciona Merêncio de forma

surpreendentemente íntima: “peço-lhe para trazer as madeiras que o

Merêncio lhe encomendou” (grifo nosso).

Uma neta de Manoel Inácio e Merêncio, Eva Marques Correia,

lembra-se de ambos avós como carpinteiros:

Rodrigo – No que que ele [Merêncio] trabalhava?

Eva – Ele trabalhava de carpinteiro naquela época, ele ti-

nha saúde.

Rodrigo – Ele era carpinteiro.

Eva – Era. Trabalhava na roça também. As minhas tias

ajudavam muito. Trabalhavam, elas eram de quatro. To-

das elas trabalhavam.151

Merêncio também é recordado pela senhora Eva Marques Correia

como filho ilegítimo da família senhorial, filho de “Zé Azevedo ve-

lho”152

— um indicativo para tanto era o fato de chamarem-lhe por oca-

sião das carneações de animais, sendo, assim, um vínculo reconhecido

pelos antigos senhores153

. Assim, o abismo social entre ex-cativos e a

ex-senhores era matizado pelo presumido parentesco com a casa-

possível padrinho e que cortavam madeiras no terreno do Espraiado (Entrevista com

a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 16 de janeiro de 2010 em Osório – LA-

BHOI – UFF). O documento encontra-se em poder e foi gentilmente cedido pela se-

nhora Aurora Inácia Marques da Silva.

151 Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF).

152 Conferir árvore genealógica da família senhorial produzida por Barcellos et al (2004).

Azevedo era marido de uma mulher da família Marques.

153 Com a palavra, a senhora Eva: “Então quando chegava meio de maio, eles

mandavam chamar o falecido meu avô e davam duas vacas pro meu avô trazer pra

carnear. E quando meu avô morreu, o falecido vovô tinha uma porção de cavalos lá,

aí eles mandaram chamar o pai, o pai foi, e aí venderam tudo que tinha lá.

Repartiram o dinheiro. E eles tinham meu vô por irmão. Sabiam que o meu vô era

irmão deles”. Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de

março de 2010 no Caconde (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 118

grande pelo compartilhamento da carne; esse último, por sua vez, sim-

bolizava tais elos parentais.154

A senhora Diva orgulha-se pela habilidade de seu avô Manoel Iná-

cio como marceneiro, afinal ele fazia móveis apenas através de encai-

xes, sem utilizar sequer um prego.155

Seu pai não apenas aprendeu o

ofício com Manoel Inácio como dele herdou ferramentas que passaram

de geração em geração.

Diva – Ele tinha uma enorme caixa de ferramentas que eu

conheci. Que ele fazia tudo que era coisa. O meu avô sa-

bia trabalhar. Ele não era dessas pessoas preguiçosas

que não sabiam. Ele sabia. E o meu pai ficou a mesma

coisa, o meu pai ficou com aquelas ferramentas, o meu

pai fazia casa, o meu pai fazia tudo que ele queria fazer

ele fazia.156

Assim como Manoel Inácio ensinou Manoel Inácio Marques Filho a

exercer a carpintaria, o último repassou seu conhecimento do ofício

para Manoel Inácio Marques Neto, através do auxílio prestado ao pai

quando garoto. Assim como o trabalho na lavoura ou na pecuária, por-

tanto, a ajuda se dava em paralelo com o aprendizado.

Rodrigo – Mas quem foi que lhe ensinou a fazer trabalho

com madeira?

Manoel – Ah, pois meu vô era carpinteiro. O meu pai era

carpinteiro.

Rodrigo – Ah, aprendeu com seu pai.

Manoel – Claro. Era carpinteiro. Ajudava ele quando era

garotote.

Rodrigo – Do avô passou pro pai e do pai passou pro se-

nhor.

154

O neto de Pulquéria Felisberta que entrevistei, afirmou ter sido frequentemente cha-

mado por seu avô, que “usara” de Pulquéria e “não cumprira” para participar das

carneações. Tais exemplos sugerem que o compartilhamento da carne era tomado

como uma forma compensatória das relações ilegítimas e lembrado, nas entrevistas,

como um reconhecimento tácito de vínculos de parentesco.

155 Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009

em Osório (LABHOI – UFF); Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no

dia 16 de janeiro de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

156 Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12 de março de

2010 em Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 119

Manoel – Exato. Eu tinha aqui ferramenta do meu vô. Tu-

do que era ferramenta que meu vô deixou.157

Da mesma forma que uma habilidade específica foi repassada de

geração em geração, o foram as ferramentas necessárias para as ativi-

dades laborais. O senhor Manoel lamenta o extravio dos instrumentos

herdados do pai e do avô. Ele guarda, porém, ferramentas que sobrevi-

veram ao tempo, ainda que não destinados à carpintaria. Trata-se de

uma chaira,158

uma marca de gado e uma tesoura de cortar lã de ove-

lha. Não possuindo Manoel Neto animais no ambiente urbano de Osó-

rio, eles não têm qualquer função prática, a não ser a de relíquias do

pai de seu pai. O senhor permitiu-me fotografá-los.

Foto 3 – Manoel Inácio Marques Neto e Aurora Inácia Marques da Silva

Foto: Rodrigo de Azevedo Weimer

157

Entrevista com o senhor Manoel Inácio Marques Neto no dia 9 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

158 “Instrumento para afiar facas e similares, composto de uma peça de aço com cabo

de osso ou de madeira” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 686).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 120

Foto 4 – Chaira, marca de gado de Manoel Inácio e tesoura de cortar lã de ovelha

Foto: Rodrigo de Azevedo Weimer

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 121

Foto 5 – Marca de gado de Manoel Inácio Marques no cimento fresco da casa de

seu neto

Foto: Rodrigo de Azevedo Weimer

A herança geracional de habilidades e ferramentas pautou a ativi-

dade dos “carpinteiros do Morro Alto”, e esse parece ter sido um bom

caminho para a inserção e mobilidade social no pós-Abolição.159

Para

Manoel Inácio, fazer de um filho carpinteiro foi uma maneira de lhe as-

segurar um melhor futuro, oportunidades tais como as que ele tivera

pelo domínio do ofício.

Além desse, temos o exemplo do outro “carpinteiro do Morro Alto”

que resta por aqui analisar, além de Manoel Inácio e Merêncio: nin-

guém menos que Belisário, o filho considerado ilegítimo. Segundo rela-

tos familiares, desempenhou essa profissão, o que lhe valeu, é prová-

vel, um pecúlio que lhe permitiu a compra de um terreno. Não seria

159

É significativo que a herança de habilidades, engajamento e instrumentos profissio-

nais acompanhe a transmissão prenominal. A fim de aprofundar o tema, ver Weimer,

2013, capítulo 5.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 122

extrapolar os limites de razoabilidade da “imaginação histórica” supor

que apesar de Manoel Inácio não lhe ter legado nome, uma condição

de legitimidade, terras e ferramentas, tenha-lhe ensinado a carpintaria,

não o deixando totalmente desamparado. Se ele não foi legatário do

aspecto econômico da herança, seu pai teria assegurado um patrimônio

imaterial, uma atividade que, naquele contexto, poderia ser considerada

um diferencial em face dos demais — inclusive rendendo dividendos

materiais. Não por acaso, provavelmente em virtude das habilidades

ensinadas pelo pai e dos possíveis contatos com clientes da família

senhorial, em 1904 ele já aparecia como contribuinte dos impostos

territoriais municipais.160

Entrevistei uma filha dele, e ela relatou que seu pai pôde perma-

necer na terra de Morro Alto porque, em contraste com camponeses

“fracos” — palavra da entrevistada —, Belisário possuía criação de

porco, gado, galinha, ovelha, por causa do artesanato de cobertas ali

confeccionadas e, principalmente, pelo trabalho de seu pai como car-

pinteiro. Ele trabalhava para Cima da Serra para a família dos Macha-

do. Maria de Oliveira Caetano ainda me disse que graças a esses ex-

cedentes podiam adquirir coisas no mercado.161

Embora a senhora

Maria não soubesse com quem seu pai tinha aprendido a atividade de

marcenaria, o paralelismo com a família “legítima” de seu avô é eviden-

te. Há uma prosperidade relativa de Belisário face ao restante do cam-

pesinato negro da região. A palavra utilizada pela entrevistada é mar-

cante. Ainda que “ilegítimo” Belisário acumulou recursos que o impedi-

ram de ser “fraco”; não foi o caso de Pulquéria, já que as habilidades

aprendidas com sua mãe não lhe ofereciam quaisquer vantagens dife-

renciais.

Além da carpintaria, os homens também se dedicavam ao tropei-

rismo. Concluí, em estudo anterior, pela existência de um trânsito de

cativos e ex-cativos entre a serra gaúcha e o litoral (WEIMER, 2008),

conduzindo gado pertencente às famílias de seus senhores e ex-

senhores. Já parece questão superada o emprego de cativos na pecuá-

160

AHO – APASF, códice AM-05.

161 Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF). A senhora Eva, prima de Maria por parte de pai e de mãe,

também se lembra do tio Belisário como carpinteiro. Entrevista filmada com a

senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010 no Caconde (LABHOI –

UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 123

ria gaúcha (ZARTH, 2002; OSÓRIO, 2007; ARAÚJO, 2008; WEIMER,

2008; TEIXEIRA, 2008; FARINATTI, 2010). Como dito anteriormente,

depois da carpintaria essa parece ter sido a atividade de maior especia-

lização dentre os escravos dos Marques residentes no Morro Alto. Co-

mo tal, gozavam de um estatuto superior no interior da escravaria.162

Sobretudo levar gado de Cima da Serra para o litoral e vice-versa impli-

cava em uma relação de confiança, mobilidade espacial e autonomia,

mas também do exercício de relações de poder por parte dos proprietá-

rios dos animais.

O relato da falecida senhora Ercília dá conta das atividades de-

sempenhadas por seu avô.

Ercília – Ela [Diva] disse pra mim um dia: “Olha, Ercília, o

falecido nosso avô era um homem bem de vida. Ele trazia

tropa de cima da serra, trazia gado”.

Alessandro – De cima da serra onde?

Ercília – De São Francisco de Paula. Subindo ia pra cima

da serra. Diziam que meu avô trazia... Não sei se ele ti-

nha terreno lá, não sei se não tinha, porque a falecida

mãe nem, nunca falou isso. A minha tia [sic] que falou, lá

Osório nos encontramos [Diva e Ercília] na igreja. O meu

falecido avô tinha bens, e agora?163

É interessante observar elementos narrativos comuns quando se

referem a Manoel Inácio Filho. Os relatos são mais numerosos e deta-

lhados, já que se trata de um personagem conhecido pelos entrevista-

dos, e, mais significativo, há um paralelismo, e mesmo uma relação de

causalidade entre a escolha dele como tropeiro e o presumido paren-

tesco e apadrinhamento pela casa-grande. Por exemplo:

Diva – Família dele é serrano. Eles eram campeiros. Era

tropeiro, era laçador, ele sabia. As coisas que tinha que

fazer ele sabia. Da época dele, né? Então a gente tinha,

162

Todos tropeiros possuíam a habilidade para desempenhar o papel de campeiros. A

recíproca não é verdadeira: nem todos os capacitados para as lides do gado goza-

vam de confiança e prestígio para a condução de tropas para Cima da Serra.

163 Entrevista com a senhora Ercília Marques da Rosa e Wilson Marques da Rosa no dia

26 de agosto de 2001 na Prainha. Entrevista realizada por Cíntia Müller, Mariana

Fernandes, Alessandro Gomes e Cíntia Rizzi. Relatos similares encontram-se na

entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009

(LABHOI – UFF) em Osório e na entrevista filmada com a senhora Diva Inácia

Marques Terra no dia 12 de março de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 124

aquela coisa boa, quando chegava domingo, a gente tava

feliz, todo mundo que era sábado.164

Diva – Meu pai era, meu pai era tropeiro, como se diz, ele

nos criou assim, ele era tropeiro, ele saía oito dias pra lá,

pra cima da serra, descia com a tropa de gado gordo pra

vir pra Osório pra Conceição do Arroio. O gado vinha de

cima da serra. Pra cá. Pra cá tinha, né, mas ele às vezes

trabalhava praqui porque conhecia todo mundo, era só

essa gente rica que ele conhecia, porque ele era afilhado

não sei de quem, essa gente rico, tudo, só rico!165

O pai de Eva Marques Correia, filho de Merêncio, chamava-se

Bento. As narrativas dessa senhora a respeito de seu pai assemelham-

se bastante às de suas primas acerca de Manoel Inácio Filho. Seu pai

também teria trabalhado como campeiro e tropeiro junto a famílias ter-

ratenentes no Morro Alto, com as quais mantinha boas relações.

Eva – Ele foi levar uma tropa de gado junto com o seu

João, falecido João Machado, que era filho do seu Mane-

ca Machado, um fazendeiro que tinha quem vai pra Ca-

pão [aponta em direção a Capão da Canoa].

Rodrigo – E ele era tropeiro?

Eva – Ele, [balança a cabeça afirmativamente] o falecido

meu pai era tropeiro. Tropeiro, domador, ele era danado.

Só que era muito doente, coitado.

Rodrigo – E se dava com esses Machado?

Eva – Tudo! [balança a cabeça afirmativamente]

Rodrigo – Trabalhava pra eles?

Eva – Trabalhou, nunca, não sei se o senhor viu falar no

Antonico Marques que era brabo que era um tigre, né?

Até com esse ele trabalhou. [balança a cabeça afirmati-

164

Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório.

165 Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janeiro de 2009

em Osório (LABHOI – UFF). (grifo nosso).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 125

vamente] Ele era muito trabalhador e sabia muito lidar no

campo, né? Ele trabalhou. Seu Miguel Ventura, tudo era

nosso amigo.

Rodrigo – Campeiro mesmo.

Eva – Era, campeiro [balança a cabeça afirmativamente].

O meu pai era. [respira fundo] Era campeiro, domador,

ele era danado. Laçador, né.166

Desnecessário dizer que essas atividades propiciavam também

um mecanismo de acumulação mais estritamente pecuniário, mas nisso

não se esgotavam as vantagens advindas dessa posição, que também

era simbólica e social. Não ignoro a importância da prosperidade para

esse campesinato, mas sublinho a existência de dimensões igualmente

importantes.

Não afirmo que apenas as gentes de Felisberta, Manoel Inácio e

Merêncio ocupassem um lugar de “elite”167

no campesinato negro da

região. Foram essas, no entanto, que me foi possível acessar neste

trabalho. Não há dúvidas de que, tropeando gado e trabalhando como

marceneiros, essas famílias alcançaram um estatuto relativamente pri-

vilegiado. É exatamente por essa razão celebraram, preferencialmente,

casamentos entre si, conforme visto anteriormente. Por outro lado, es-

tavam sujeitos a injunções de uma economia monetarizada, com a qual

não necessariamente tinham total familiaridade.

5.6 Os camponeses e a forca Pois é, de uns tempos pra cá apareceu uns negociantes

unha-de-fome! Uns esganados! Pra que, se desse mundo

nada se leva? Mas quem sofre é a negrada, cada vez

166

Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF).

167 Grafo “elite” entre aspas por compartilhar da advertência de Liane Muller: “Devido às

próprias especificidades do processo histórico brasileiro, torna-se difícil configurar

esse grupo diferenciado de negros dentro dos conceitos de elite mais utilizados na

historiografia e nas ciências políticas, razão pela qual sempre que o termo for

utilizado será colocado entre aspas. Esse fato remete para a necessidade urgente de

construirmos categorias de análise próprias à realidade brasileira, tarefa essa que,

diga-se de passagem, extrapola em muito os objetivos desse trabalho” (MULLER,

2013 p. 146-147).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 126

mais sacrifício para comprar e vender as mercadorias no

armazém.

Entre os entrevistados que viveram suas infâncias no período de-

limitado, é recorrente a fala de que era episódico o apelo ao mercado, e

que o necessário à sobrevivência era produzido em casa (ver quadro

3). Os relatos apontam para uma produção agrícola diversificada, mas

também indicam que as indústrias vegetais só eram acessíveis aos

camponeses donos de engenhos e atafonas. Aqueles que não os pos-

suíam, ou recorriam ao empréstimo da parte de familiares mais aqui-

nhoados,168

ou pagavam pelo uso das benfeitorias.169

As criações de

maior monta, como bois, vacas e cavalos também estavam reservadas

aos mais bem-sucedidos. Os demais limitavam-se a porcos e galinhas,

ao passo que a pesca era uma alternativa produtiva para aqueles que

residiam nas proximidades de rios e lagoas, de fato abundantes na

região.

Entretanto, não só de produção para si se vivia. Ainda que a maior

parte dos bens necessários à alimentação fosse produzida nas glebas,

é o que se relata em diversas entrevistas, o sal e a querosene eram

buscados em vendas e armazéns.170

Os camponeses costumavam

recorrer ao mercado de forma ocasional, afirma Cardoso (1979). Meu

estudo corrobora a argumentação do autor: embora os artigos aludidos

sempre sejam lembrados como de consumo regular e impossíveis de

se produzir no ambiente doméstico, existiam outros que, todavia, eram

necessários.

Júlio Elói da Rosa, genro de Rosalina Inácia Marques, possuía um

armazém na localidade de nome Prainha — o que o define, também,

como um segmento de “elite” no campesinato negro da região — no

168

Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde; Diário de campo de 9 de junho de 2010 em Osório. (LABHOI – UFF).

169 Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no

Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF). Isso, contudo, parece ter acontecido em um

momento posterior.

170 Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva, senhor Celso

Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia 28 de novembro de 2001

em Osório; Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12 de

março de 2010 em Osório (LABHOI – UFF); Entrevista com a senhora Eva Marques

Correia no dia 14 de janeiro de 2009 no Caconde (LABHOI – UFF); Entrevista com

Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da Rosa no dia 20 de janeiro de

2010 em Capão da Canoa (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 127

qual se abasteciam seus vizinhos. Através do relato de seu filho, se

pode ter uma ideia do que Júlio Elói vendia e de outras demandas,

além do sal e da querosene.171

Wilson – E o pai também tinha o armazém de secos e

molhados; então a gente tinha lá as tulhas de feijão, ven-

dia feijão, pra quem não... feijão, é, arroz, é, açúcar preto,

que não tinha esse açúcar branco, era açúcar preto, açú-

car preto que eles chamavam de... que eles chamam de

açúcar mascavo, mascavo, farinha de trigo, sal, querose-

ne, cachaça, bala pra molecada, [?] e aí, assim, enxada,

é, machado, foice, é, sandália, tinha umas sandálias.172

Certos meios de produção, como enxadas, machados e foices,

eram buscados no mercado, e mesmo peças de vestuário como sandá-

lias. Também era o caso de armas de fogo e armas brancas. Aqueles

que as possuíssem, evidentemente não as produziam em casa. Perce-

be-se, portanto, uma contradição latente no discurso dos entrevistados:

por um lado, a produção é apresentada como destinada à subsistência,

só se buscando no mercado o sal e a querosene. Não há, porém, maio-

res esclarecimentos a respeito de como se pagava por tais produtos. A

memória “evita” esse ponto. Quando instei as pessoas que entrevistei a

falar a respeito, foram recordadas memórias dolorosas de humilhações

impostas por comerciantes. “Pois eu quero esquecer daquilo”, disse-me

a senhora Eva.173

Em busca de esclarecer esse ponto, perguntei aos

diferentes entrevistados como é que se obtinha dinheiro para pagar o

mercado, obtendo os resultados organizados no quadro a seguir:

171

O depoimento já se refere à segunda metade do século XX, portanto havia novas

necessidades de consumo. É necessário relativizar os paralelos possíveis com o

período examinado. De todo modo, a recorrência a vendas e armazéns como meio

de acesso a itens indisponíveis através da produção familiar foi recorrente ao longo

do século XX. 172

Entrevista com Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da Rosa no dia

20 de janeiro de 2010 em Capão da Canoa (LABHOI – UFF).

173 Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de janeiro de 2009 no

Caconde (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 128

Quadro 4 – Falas sobre como pagavam as mercadorias no armazém – século XX

1) Endividavam-se. Nem sempre restavam excedentes para venda. Pagavam com alguns tostões que recebiam pagos por Miguel Ventura.

174

2) Compravam fiado para pagar depois ou nunca mais. Tiravam ovos ou uma galinha para pagar o armazém. Podiam pagar em serviço.

175

3) A aquisição de mercadorias fiado é associada a uma “forca”, porque se perdia o con-trole sobre o quanto se comprara e o quanto se gastava, e poder-se-ia imputar dívidas não realizadas. No armazém, além de ser muito caro, o endividamento pelas aquisições fiadas deveria ser realizado nas plantações dos camponeses da região. Pagava também o trabalho de um mês inteiro com mercadorias — meio porco — consideradas despropor-cionais ao serviço prestado.

176

4) Seu marido não gostava de comprar fiado — há uma valoração negativa para compras fiadas.

177

5) O pai de Edite nunca ficou endividado “ele sempre foi certinho, nas contas dele!” 178

6) Para pagar pelo uso do engenho e o mercado, usavam do dinheiro ganho nas granjas e na comercialização de leite.

179

7) A família de Wilson produzia excedentes vendidos para o balneário de Capão da Ca-noa através da navegação lacustre.

180

8) A maior parte da produção era para subsistência. O máximo que se vendia era um porco, uma galinha, banana.

181

9) Os irmãos de seu pai pescavam comercialmente.182

10) A venda de cobertas era uma maneira de adquirir um dinheiro para aquisições no mercado.

183

11) Vendiam os produtos para a praia, aonde chegavam através de carroças.184

12) Café, sal, charque, roupa eram comprados em armazéns em Maquiné. Seus pais tinham dinheiro para fazer essas aquisições porque ele trabalhava como carpinteiro e ela como costureira.

185

174

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 12 de janeiro de 2009 em

Porto Alegre. 175

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 11 de fevereiro de 2009 em

Porto Alegre. 176

Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de janeiro de 2009 no

Caconde (LABHOI – UFF). 177

Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de março de 2010

no Caconde (LABHOI – UFF). 178

Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no

Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF). 179

Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de 2010 no

Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF). 180

Entrevista com Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da Rosa no dia

20 de janeiro de 2010 em Capão da Canoa (LABHOI – UFF). 181

Entrevista com um filho de Ercília Marques da Rosa no dia 23 de janeiro de 2009. 182

Entrevista com um filho de Ercília Marques da Rosa no dia 23 de janeiro de 2009. 183

Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF). 184

Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 129

Os dois primeiros excertos, retirados das entrevistas com o dito

neto de Pulquéria Felisberta, dão conta de como as relações mercantis

eram vividas pelo setor desse campesinato negro em uma situação de

maior fragilidade, isto é, aqueles que dependiam de uma relação de

agregação com um grande fazendeiro. Os relatos apontam para pro-

cessos de endividamento com os armazéns da região. Quando não

sobravam excedentes para pagamento às vendas, sacrificavam-se

criações, apelava-se pra venda de ovos ou ainda para o parco dinheiro

pago pelo fazendeiro.

Outro recurso acionado era o pagamento de dívidas através da

prestação de serviços para os proprietários do armazém. Essa situa-

ção, contudo, não pode ser considerada uma relação social semisservil,

como a permanência forçada na fazenda por dívidas que Rios (2005b)

constatou efetivamente não ser majoritária no pós-Abolição). No caso

estudado, o armazém com quem Pulquéria e descendentes mantinham

vínculos de endividamento não pertencia ao fazendeiro, mas sim a uma

família de italianos nas circunvizinhanças. Além disso, os serviços pres-

tados aos comerciantes eram episódicos, na eventualidade de não se

conseguir pagar dívidas através de outros expedientes. O que mantinha

aquela família agregada nas terras de Ventura não era qualquer coação

econômica por meio do endividamento, mas a possibilidade de acesso

estável a uma roça familiar, mesmo que não própria. A maior parte da

população egressa do cativeiro, aliás, tinha interesse em se fixar.

Curiosamente, o descendente de Pulquéria entrevistado, ao con-

trário de seus primos, não nutre mágoa ou ressentimento em relação

aos donos do armazém: “Nunca tiveram orgulho de negro. Eles eram

tudo italiano, alemão, não sei o que, mas nunca tiveram orgulho comi-

go. Não tinham orgulho de negro nenhum”.186

Quem fazia parte do ra-

mo da família em situação de maior fragilidade social percebe, anos

após, o proprietário do armazém de uma forma condescendente, ou

mesmo favorável.

Já os pequenos produtores de alimentos têm uma percepção dife-

rente. Para sua prima Eva Marques Correia: “Os [nome de uma família

185

Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janeiro de 2009 em

Osório (LABHOI – UFF).

186 Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 11 de fevereiro de 2009 em

Porto Alegre.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 130

de italianos] depois já levaram à breca tudo”.187

Por que “levaram à

breca”? Tal como apresentado no terceiro excerto, comparados a uma

“forca”, os mecanismos de endividamento estrangulavam a economia

dos pequenos produtores. Nesse sentido, os camponeses de acesso

próprio à terra viam-se, ou percebiam-se, mais prejudicados pelos ar-

mazéns do que os agregados de fazendeiros. A percepção mais nega-

tiva das atividades dessa família de comerciantes italianos deve-se

àquilo que elas tinham de onerosas à economia familiar: as mercadori-

as acabavam por ser pagas com parte da colheita. Assim, a cobrança

parece ter incidido de forma mais pesada entre aqueles que consegui-

ram estabelecer roças próprias. Também nesse segmento social exis-

tem relatos de pagamentos realizados por meio da força de trabalho.

O quarto e o quinto excerto demonstram a existência de uma valo-

ração negativa entre os camponeses negros mais prósperos região

quanto às compras fiadas. Trata-se das famílias de Eva Marques Cor-

reia e dos pais de Edite Maria da Rosa, por exemplo. Quem podia as

evitava, e assim que se pudesse fazê-lo, imprimia-se a transações des-

sa natureza uma carga altamente negativa. É o caso da família de Edite

(excerto 6), que podia custear as despesas no mercado através da

comercialização de leite, e do trabalho nas granjas de arroz.

A família da senhora Ercília Marques da Rosa, seu marido e cu-

nhados (excertos 7, 8 e 9) vendia peixes pescados na lagoa dos Qua-

dros e excedentes da produção agrícola para o balneário de veraneio

de Capão da Canoa. A família de Belisário encontrava na produção de

cobertores, na carpintaria, na costura e na comercialização de produtos

com a praia (excertos 10, 11 e 12) mecanismos de poupança para

aquisição de mercadorias.

Aos poucos, dessa forma, o campesinato negro da região se inse-

ria nas relações comerciais de uma economia monetarizada. Creio, no

entanto, que essa tinha o potencial de desequilibrar o sistema econômi-

co camponês, mas não a capacidade de desmantelá-lo. Muito mais

significativas parecem ter sido as migrações entre o campo e a cidade,

que trouxeram novos problemas e situações para o campesinato da

região. Essa é, porém, uma outra história.

187

Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de janeiro de 2009 no

Caconde (LABHOI – UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 131

6 Considerações finais Fique mais um pouco, vizinho, não tem pressa. O dotori

pode pousar aqui essa noite, é só não reparar na nossa

casinha. É de chão batido, pau a pique, mas é acolhedo-

ra. Pois não vê que o rapaz não quer voltar, tá com medo

de assombração? Lá no Morro Alto tem aparição mesmo,

pros lados de cá não tem. Eu gostei desse serão, obriga-

da pela palestra. Eu gosto de palestrear.

Aonde nos leva, afinal, esse trajeto panorâmico sobre algumas

questões relacionadas a família e trabalho em que os camponeses

negros do litoral norte do Rio Grande do Sul estiveram implicados de-

pois de 1888? Em primeiro lugar, à sua visibilização. De fato, a narrati-

va presente no senso comum — reproduzida por meio dos livros didáti-

cos e exemplificada pelo excerto com o qual inicio a revisão bibliográfi-

ca neste e-book — dá conta dos negros que partiram para o meio urba-

no e “ficaram sem nada”, dando origem a favelas. A presença negra no

meio rural resta invisível, tal como era no início do século XX; não nos

esqueçamos do censo agrícola de 1920 e seu recorte racial a respeito

de quem deveria ou não ser recenseado, e portanto ter reconhecimento

público como produtores.

Por outro lado, frequentemente os egressos do cativeiro são res-

ponsabilizados por mazelas do meio urbano. Se a leitura mais corrente

possui o mérito de sublinhar a inegável subtração de direitos de cida-

dania pela qual os negros brasileiros foram acometidos, por outro lado

é unilateral e subestima sua capacidade de responder às dificuldades,

assumir um protagonismo, lidar de forma ativa com as contradições de

seu tempo. No limite, aquela perspectiva torna-se involuntariamente

racista, uma vez que apresenta o negro reificado, apenas como objeto

da violência e da privação de direitos operados pelos brancos, e não

como sujeitos capazes de tomar para si — diante de um leque de pos-

sibilidades, é claro, muito mais restrito do que o daqueles que não vi-

venciaram a experiência escrava — o rumo de seus destinos.

Efetivamente, houve aqueles que passaram por grandes dificulda-

des, e muitos realmente devem ter engrossado legiões de desvalidos a

caminho das cidades ou circulando, sem rumo certo, pelas paragens

rurais. Parece, contudo, que a maior parte das migrações rural-urbanas

data de um período bastante posterior e da geração subsequente

(COSTA, 2008). Mas, da mesma forma como existiram Pulquérias,

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 132

também havia Manoéis Inácios. Se a primeira situação era, provavel-

mente, majoritária, a segunda é mais acessível por ter deixado maior

número (ainda assim, pequeno) de registros documentais, e ajuda na

ruptura com percepções exclusivamente vitimizantes.

Essa última perspectiva vem sido colocada em xeque por estudos

sobre o pós-Abolição que, nas décadas de 2000 e 2010, se inspiram na

importante ruptura efetivada nos trabalhos sobre escravidão nas déca-

das de 1980 e 1990 (ver, por exemplo, Reis e Silva (1989) e Schwartz

(2001)). Naquela ocasião, sob o impacto das discussões sobre o cente-

nário da Abolição, se chegou a uma percepção mais sofisticada e com-

plexa sobre a atuação social dos cativos, na qual eles não figuram nem

como vítimas inertes, nem como heróis dotados de força sobre-

humana, mas como homens de carne e osso vivendo as contradições

de seu tempo.

Essa percepção mais realista e humana dos sujeitos sociais valo-

riza e maximiza seu protagonismo, me parece, em lugar de uma pers-

pectiva heroicizante em que só personagens lendários têm lugar. O

locus da resistência às agruras escravistas é deslocado de situações-

limite para as práticas cotidianas / costumeiras. A vida dos escravos é

politizada de forma perene. Os estudos de pós-Abolição têm aprendido

com essa historiografia — e com as comunidades quilombolas — e vêm

dando um enfoque similar ao período posterior a 1888. Afinal, se não

faz sentido o “escravo-coisa”, igualmente absurdo seria um “ex-

escravo-coisa”, alheio a um novo momento de exploração de novas

possibilidades.

Sabe-se que o historiador dirige ao passado os questionários de

seu tempo. Inexiste uma relação de congruência ou linearidade, mas a

verdade é que boa parte de nossas perguntas — mas não, e isso é

louvável, as respostas — acompanham o pioneirismo das discussões

propostas pelos movimentos sociais. Pesquisadores e as lideranças

das mobilizações, quilombolas ou negras urbanas, ocupam lugares de

locução distintos — e igualmente legítimos. Esse diálogo, por vezes

difícil, tem servido para impulsionar uma reflexão sobre a história do

negro no Brasil, trazendo novos debates à pauta. Não basta a vitimiza-

ção, por mais que ela seja importante para a denúncia dos limites da

cidadania brasileira na Primeira República. Importante, mas insuficien-

te.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 133

Insuficiente porque, este e-book procurou demonstrar, os campo-

neses negros no pós-Abolição não estavam impotentes à espera da

atuação opressiva — ou providencial — do homem branco. Eles tinham

parâmetros culturais bastante significativos, que cumpre investigar.

Desenvolveram lógicas relevantes para escolha de padrinhos e cônju-

ges, atualizando redes de sociabilidade necessárias para a vida em

liberdade — já tecidas durante o cativeiro. Tinham noções próprias de

justiça. Tinham uma compreensão específica de quais relações conju-

gais eram legítimas e quais não eram. Articulavam a herança de seus

bens conforme lhes fosse mais conveniente, dialogando com — ou

driblando, se necessário — os parâmetros legais. Possuíam regras

próprias de trabalho familiar e cooperação vicinal — e essa poderia

incluir vizinhos brancos, nos casos em que estava em jogo a sobrevi-

vência familiar. Tinham circuitos próprios de aprendizagem de lides

laborais, não necessariamente ligadas ao ensino formal — e isso não

pode ser criticado a partir de critérios extemporâneos —, e de herança

de profissões e ferramentas de trabalho. Suas atividades econômicas

nem sempre coincidiam com ocupações precárias, mas frequentemente

estavam ligadas ao estabelecimento autônomo como camponeses.

Atividades econômicas, aliás, inteligíveis apenas a partir de parâmetros

tradicionais de parentesco, trabalho e herança, distintos da crescente

mercantilização e acumulação capitalistas em operação no Rio Grande

do Sul na Primeira República, nas quais, porém, transitaram de acordo

com suas possibilidades.

Esse quadro mais complexo, mais vivo e mais colorido da vida dos

negros, personagens de “carne e osso” também depois de 1888, pode

levar a uma melhoria da autoestima de uma população que paga ca-

ro — inclusive em sua autopercepção — pela vitimização a que é sub-

metida. Nascimento identifica os efeitos de bullying entre crianças ne-

gras da associação de seus antepassados como “‘marginais’, ‘prostitu-

tas’, ‘ladrões’, ‘assassinos’, ‘bêbados’, ‘miseráveis’ entre outros”. (NAS-

CIMENTO, 2005 p. 12). Para o autor, especialmente no ambiente esco-

lar, “ler ou ouvir falar de um antepassado — que está presente na cor

da pele do indivíduo — de forma depreciativa, pode contribuir para a

construção de um auto-conceito negativo, diminuindo a auto-estima do

aluno” (NASCIMENTO, 2005, p. 12).

Não se pode esquecer, no entanto, que essa história de carne e

osso também é uma história de sangue. Se procuro penetrar nas lógi-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 134

cas próprias da conduta dos negros do litoral norte gaúcho, jamais me

esqueço da existência de narrativas de dor e sofrimento. Esses aspec-

tos estiveram muito presentes quando ouvi entrevistas que falavam de

trabalho árduo, dificuldades de toda ordem, bailes segregados, racismo

e situações adversas diante dos comerciantes brancos. Nunca se pode

esquecer o caráter assimétrico daquela sociedade, e a precariedade da

situação de Pulquéria Felisberta comparativamente à de seus irmãos

deixa muito claro os limites a que a comunidade negra esteve submeti-

da.

Sim, existiram possibilidades de ascensão social, mas elas não es-

tavam disponíveis para todos. Não custa enfatizar uma vez mais, creio

ter sido muito maior o número de Pulquérias do que Manoéis Inácios

Rio Grande do Sul afora; quando não indivíduos itinerantes, que “rola-

ram na estrada” por sequer terem encontrado Miguéis Venturas onde

tivessem acesso a casa. É evidente que a ênfase na atuação subjetiva

não significa, e não pode significar, uma ideia de igualdade de oportu-

nidades. Essas foram desiguais, e muito. Mas também não se pode

esquecer o poder de iniciativa dos camponeses negros do pós-Abolição

no litoral norte do Rio Grande do Sul para lidar com essa assimetria.

Eis a contribuição que trago a uma nova bibliografia que tem bus-

cado colocar em perspectiva as proposições de Carvalho (1987, 2008),

que enfoca a cidadania no Brasil a partir de uma ideia de incompletude,

da melancólica constatação do caráter precário dos direitos cidadãos

na Primeira República e de um pacto de não-interferência do Estado na

vida privada. De um povo que a tudo observava “bestializado”, contudo,

chego à agência coletiva de uma família que, em um recôndito distante

do interior do Rio Grande do Sul, se esmerou por regularmente manter

seus impostos em dia (WEIMER, 2015c). Que manejou os imperativos

legais para garantir a sucessão das terras de seu patriarca de forma a

não prejudicar a economia campesina. Que funcionava a partir de agu-

dos e complexos critérios culturais e de organização social.

Em trabalho anterior (WEIMER, 2013) desenvolvi uma série de

elementos que podem ser tomados como explicativos, no caso da famí-

lia estudada, de migrações na geração seguinte, no mais das vezes no

sentido rural-urbano. Aspectos como processos de expropriação, dimi-

nuição da fertilidade da terra, a busca por direitos trabalhistas e previ-

denciários, o exercício de identidades masculinas longe da tutela famili-

ar, foram alguns fatores lembrados como causa daquilo que Bittencourt

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 135

Júnior (2006) denominou como “diáspora interna”, isto é, o circuito mi-

gratório rumo a Osório, Capão da Canoa ou Porto Alegre em meados

do século XX.

Feita a ressalva de que esse não foi um processo universal, dado

que muitos permaneceram em seus territórios de origem, e tampouco

de vetor único — há raros, mas existentes, casos de migração no senti-

do oposto —, é fato que a mobilidade espacial campo-cidade deve ser

compreendida de uma forma mais complexa do que o mero abasteci-

mento de mão-de-obra do complexo industrial em montagem em mea-

dos do século XX. A partir da investigação das motivações dos migran-

tes rurais, torna-se viável uma apreciação mais realista, consistente e

esclarecedora dos processos migratórios.

No que toca às temáticas centrais deste e-book, a migração para

as cidades, no caso específico, pode ser percebida como uma conse-

quência do colapso da produção familiar camponesa. Na primeira gera-

ção após Manoel Inácio, foi possível evitar o parcelamento da terra por

meio de uma série de expedientes descritos, que deixaram o domínio

sobre aquela gleba efetivamente nas mãos do filho mais velho do sexo

masculino. Os mecanismos arrolados “amorteceram” uma série de difi-

culdades que seguiram latentes, mas que voltaram a se manifestar na

geração seguinte.

Em meados do século XX era ainda maior o número de netos de

Manoel Inácio e Felisberta, sobretudo se considerarmos os filhos da-

queles que não mantiveram o usufruto sobre o terreno, mas que a ele

tinham direito legal. Nesse sentido, alguns entrevistados destacaram as

dimensões diminutas tomadas pelos terrenos, caso não se tivessem

deles desfeito. A venda — ainda que também existam relatos de expro-

priação — foi a alternativa mais viável, e muitos reconstruíram suas

vidas no ambiente urbano.

Por um lado, essa transição pode ser percebida como um desdo-

bramento natural da economia camponesa, já que a expulsão de con-

tingente populacional faz parte de sua lógica e de suas condições de

sobrevivência (MOURA, 1978; WOORTMANN, 1995; SOUZA, 2003;

COSTA, 2008), na medida em que era necessário impedir a fragmenta-

ção da terra. Todavia, essa reconstrução de suas vidas em um novo

ambiente não significava, tão-somente, o resultado da reprodução soci-

al da unidade familiar camponesa, dado que obedecia também, em

muitos casos, a uma tentativa consciente de atingir direitos de cidada-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 136

nia. Parte significativa partiu objetivando obter os novos direitos sociais

instaurados na Era Vargas (WEIMER, 2011).

É curioso, nesse sentido, perceber uma ressignificação dos senti-

dos emprestados à noção de cidadania. Na primeira geração nascida

após o cativeiro (ou, eventualmente, de ventre-livre), o trabalho familiar

se consubstanciava em paralelo à ambição de participar do aparato de

Estado por meio da regularização de sua situação fundiária ou da arti-

culação de formas próprias de proceder à partilha de terras com as

determinações legais. Além disso, ocupar um território por conta própria

sempre tinha uma dimensão política, já que isso contrariava o poderio

dos grandes fazendeiros, configurando uma instância de afirmação de

cidadania.

Na geração seguinte, almejava-se o acesso a direitos sociais — de

obtenção nem sempre fácil, sobretudo entre as mulheres, para quem a

maior possibilidade de emprego era os trabalhos domésticos, não con-

templados pela legislação trabalhista — em uma situação de “serviço”

atomizado. Não estava mais em jogo a cooperação familiar para lidar

com o trabalho da terra. Não obstante, os vínculos solidários familiares,

expressos pela coabitação, vizinhança, compadrio e criação de crian-

ças de parentes com maiores dificuldades reproduziram-se no ambiente

urbano.

Em suma: família e trabalho foram instâncias por meio das quais

os camponeses negros do pós-Abolição no litoral norte do Rio Grande

do Sul lograram disputar um espaço de atuação cidadã. Ainda que a

família examinada correspondesse a uma parcela minoritária e mais

bem situada dos egressos do cativeiro, existia, para todos, uma arena

de disputa por melhores condições de vida. Conquistou-se a liberdade:

uma liberdade relativa e limitada, como de resto todas as liberdades do

mundo, algumas mais e outras menos.

Não vejo o 13 de maio como um engodo. Mas, quem sou eu, ex-

temporâneo pesquisador branco? Contudo, com toda certeza, tampou-

co creio que Manoel Inácio e Felisberta o viram assim. Até mesmo para

Pulquéria Felisberta, a lei do ventre-livre e o 13 de maio implicaram em

uma mudança de circunstâncias de vida. O pós-Abolição constituiu um

novo espaço de embates e combates, sobretudo pelos direitos cida-

dãos — no mínimo, pela redefinição do poderio de que a classe senho-

rial poderia dispor. Por parte de famílias que conquistaram e usufruíram

da liberdade, e com maiores ou menores recursos, dela tiraram provei-

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 137

tos diferenciados. Não a receberam de mão-beijada, não a despreza-

ram como engano descartável.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 138

7 Epílogo

Pois então, agora o senhori conhece o pessoal da tia Bebeta e de

certo sabe tudo deles. Não deu pra voltar, fez-se noite e como le disse,

assombração eu não enfrento. Bá! Então, gente muito boa. Ofereceram

pouso. Coisa mais boa, aquele cafezinho com mistura hoje cedo. Como

houvera de não ser? A Benta que é a dona da semana. Guria mais

velha. Guria caprichosa.

Tudo eles que fazem lá. Rosca, biscoito, cuscuz, cueca virada,

açúcar, bolo, ambrosia, bolinho enrolado na folha da bananeira. Mas

que coisa mais boa! Também achei. Dona Felisberta le falou que por

aqui tudo é feito em casa? Moem a cana, fazem a farinha, tiram o leite

de umas vaquinhas. Só querosene e sal que não. Já falou disso, tam-

bém.

Eh! O dotori não leve a mali, mas como é xereta, hein. Barbarida-

de! Nunca vi. Vem lá de Porto Alegre, uma viagem pro fim do mundo,

só pra inquirir a negrada. Muito curioso, mas é muito interesseiro. Dotori

da cidade é doido mesmo. Me deixe sossegadinho aqui no meu canto.

Até quem casou com quem, se é no papeli, se não é, o senhori atina de

preguntar. Pra que quer saber disso tudo? Se eu não tivesse visto que

é homem sério, ia desconfiar que tá de olho nas gurias daqui. E, tam-

bém sou xereta, o senhori se importa de contar o que descobriu?

Não é que é verdade? Nunca havia me dado por conta, mas o

pessoali ali da tia Bebeta casa tanto com a turma do vovô Merêncio!

Dotori... Sério? Tia Bebeta falou do tempo dos cativos? Mas nunca quer

saber do assunto. Decerto é porque o senhori não é daqui, pro povo do

Morro Alto... Nem um pio.

Que mais? Agora fiquei curioso. Os padrinhos. Sim, aqui o pessoal

do Deodício tem padrinhos entre os antigos sinhôs e também com gen-

te da família. Não, em geral a turma chama os vizinhos, nossa gente. É

pouco que se costuma chamar Seu fulano. Pos vou le dizer, não me vá

repetir porque eu não sou fofoqueiro, mas o falecido Manoeli Inácio,

Deus o tenha, era um pouco nariz em pé. Le contaram que era filho do

sinhô? Pois era. Carpinteiro, tropeiro, um montão de coisas. Homem

sabido, de admirar. Meu pai que era fraco, só podia com a roça.

O que? É verdade, tem razão, os velhos não casavam. Escravo

não podia casar. Era uma judiaria, que barbaridade. Mas todo mundo

tratava de casado. No dia de hoje não, tem cartório, tem padre. Todo

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 139

mundo certinho. Se não fica até feio. Me dá uma dó desses filhos natu-

rais. Consumidor, trabalhador,russo? Não entendo nada disso, só o que

sei é plantar minha terrinha, com minha família, meus filhinhos, quando

precisa a gente trabalha mais, se dá uma folguinha trabalha menos, e

agora vai dar uma aliviada porque o guri tá crescendo e vai ajudar.

O senhor tá me dizendo que o falecido só deixou herança pros fi-

lhos? Pra tia Bebeta não? Nem um tiquinho? Mas ela sempre tá lá,

governando, sempre, sempre. Não acredito. O senhori quer me enga-

nar. Mentira. Ah, lá isso é verdade. Todo mundo sabe, Dona Porquéria

e seu Belisar ficaram sem nada. Ele até não ficou na rua, aprendeu

carpintaria e comprou o cantinho dele. Dona Porquéria... Que dó! Vida

difícil. Aturou muito desaforo. Bá! Por pouco não rola na estrada. Ao

menos o Migueli Ventura lhe deu casa. Homem bom!

Escola? Hehehe, e pra que escola? Nunca que filho meu vai pra

escola. Perda de tempo. O que? Pra que, se não vão ser dotori? Não

dá. Nós somos fracos. Não precisa ler nem escrever. Tem mais é que

trabalhar na roça. Isso sim que tem que aprender. E eu ensino. Eu sei.

Se precisar lidar de peão, também vai saber. Meu sonho era ter um

filho domador. Não tenho moenda não senhori, mas vou lá no seu Valé-

rio e ele empresta. Ensino pra gurizada. Aquela guarapa, coisa boa. Pra

fazer o mesmo açúcar moreno que o senhori viu lá na tia Bebeta.

Ela falou do tali de pixuru? Eu gosto. Faço muito com a vizinhança.

É, vai branco, moreno, vai tudo. Aí não tem importância, negócio de

racismo é só nos bailes, por que fazer na roça? Ninguém quer passar

fome. Junta os amigos pra fazer um roçado, derrubar uma mata, qual-

quer coisa assim. Isso, então, ela já explicou. Mas é claro que a gente

vende nos armazéns. Claro. Tem dotori que diz que não? Pois nunca

vieram aqui, como hão de saber? De onde a gente houvera de tirar

dinheiro pra comprar o sal e a querosene? Não tenho estudo mas isso

não é difícil de se dar por conta. Realmente, por isso que eu digo que

não precisa estudar. Tchê, me perdoe a intimidade, mas tanto estudo

quebra a cabeça do cristão.

Já le disse, vir pra esse fim de mundo. Que que o senhori faz aqui

mesmo? Historiadori? Não sei que negócio é esse, mas já vi que é gen-

te muito da enxerida.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 140

8 Fontes

8.1 Escritas

Arquivo Histórico de Osório – Arquivo Público Antônio Stenzel

Filho

Códice da Administração Municipal 05.

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

Inventários e testamentos:

Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Arroio, estante 159,

caixa 026.0306, auto n. 99, inventário de Isabel Maria Osório, ano de

1867.

Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Arroio, estante 159,

caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz Osório Marques,

ano de 1883.

Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Arroio, estante 159,

caixa 026.0360, auto n. 839, inventário de Pascoal Osório Marques,

ano de 1884.

Cartório da Provedoria de Conceição do Arroio, estante 159, maço 2,

auto n.39, inventário e testamento de Francisco Pastorino, ano de 1887.

Cartório de Órfãos e Ausentes de Viamão, estante 24 e/c, caixa

030.0125, auto n. 108, inventário e testamento de Rosa Osório Mar-

ques, ano de 1888.

Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Arroio, estante 159,

caixa 027.0335, auto n. 814, inventário e testamento de Manoel Inácio

Osório Marques, ano de 1906.

Cartório de Órfãos e Ausentes de Conceição do Arroio, estante

159,caixa 027.0334, auto 789, inventário de Manoel Marques da Rosa,

ano de 1913.

Documentos esparsos pertencentes a Aurora Inácia Marques da

Silva, franqueados ao pesquisador

Guias de pagamentos de impostos territoriais pela família nos anos de

1899, 1903, 1904, 1905, 1907, 1908, 1909, 1911, 1912, 1913, 1914,

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 141

1915, 1916, 1917, 1918, 1924, 1925, 1926, 1927, 1928, 1929, 1930,

1931, 1932, 1933, 1934, 1936, 1937, 1938, 1939, 1940 e 1941.

Recibo de aquisição de terras a Manoel Osório Marques por Manoel

Inácio (5/8/1890).

Carta de João Silveira Machado a Manoel Inácio (4/10/1905).

Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Centro de

História da Família

Microfilme 1391100, Item 4, livro 13 de batismos de Conceição do Ar-

roio

Microfilme 1391100, Item 6, livro 15 de batismos de Conceição do

Arroio.

Microfilme 1391101, Item 1, livro 16 de batismos de Conceição do

Arroio.

Microfilme 1391101, Item 2, livro 17 de batismos de Conceição do

Arroio.

Microfilme 1391101, It. 3, livro 1 de batismos de escravos de Conceição

do Arroio.

Microfilme 1391101, Item 4, livro 2 de batismos de escravos de Concei-

ção do Arroio.

Microfilme 1391101, Item 5, livro 3 de batismos de escravos de Concei-

ção do Arroio.

Microfilme 1444093, Item 8, livro 1 de registros civis de nascimento do

tabelionato do distrito de Maquiné.

Microfilme 1444093, Item 9, livro 2 de registros civis de nascimento do

tabelionato do distrito de Maquiné.

Microfilme 1444093, It. 10, livro 1 de registros civis de matrimônios do

tabelionato do distrito de Maquiné.

Biblioteca da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Ema-

nuel Heuser.

BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Recensea-

mento do Brasil realizado em 1º de setembro de 1920: relação dos

proprietários dos estabelecimentos ruraes recenseados no Estado do

Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, 1927. v. 1, p.379-395.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 142

8.2 Orais188

Entrevista com a senhora Ercília Marques da Rosa e Wilson Marques

da Rosa no dia 26 de agosto de 2001 na Prainha. Entrevista realizada

por Cíntia Müller, Mariana Fernandes, Alessandro Gomes e Cíntia Riz-

zi.

Entrevista realizada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva,

senhor Celso Rodrigues Terra e a senhora Diva Inácia Marques no dia

28 de novembro de 2001 em Osório.

Entrevista com o senhor Romão Maria da Silva, não datada, em fins de

2001 ou início de 2002. Entrevista realizada por Daisy Barcellos, Miriam

de Fátima Chagas e Rodrigo de Azevedo Weimer.

Entrevista com um filho de Ercília Marques da Rosa no dia 23 de janei-

ro de 2009.

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 12 de janeiro de

2009 em Porto Alegre.

Entrevista com um neto de Pulquéria Felisberta no dia 11 de fevereiro

de 2009 em Porto Alegre.

Entrevista com uma filha de Maria Inácia Marques no dia 26 de janeiro

de 2009 em Porto Alegre.

Entrevista filmada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no

dia 13 de março de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva e Eva Inácia

Marques no dia 9 de janeiro de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista filmada com a senhora Aurora Inácia Marques da Silva no

dia 13 de março de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 23 de janei-

ro de 2009 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 16 de janei-

ro de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista filmada com a senhora Diva Inácia Marques Terra no dia 12

de março de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com a senhora Edite Maria da Rosa no dia 10 de junho de

2010 no Ribeirão do Morro Alto (LABHOI – UFF).

188

Todas as entrevistas em que não menciono os entrevistadores foram realizadas por

mim.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 143

Entrevista com a senhora Eva Marques Correia no dia 14 de janeiro de

2009 no Caconde (LABHOI – UFF).

Entrevista filmada com a senhora Eva Marques Correia no dia 12 de

março de 2010 no Caconde (LABHOI – UFF).

Entrevista com o senhor Manoel Francisco Antônio no dia 16 de outu-

bro de 2010 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com o senhor Manoel Inácio Marques Neto no dia 9 de janei-

ro de 2009 em Osório (LABHOI – UFF)

Entrevista com a senhora Maria de Oliveira Caetano no dia 23 de janei-

ro de 2009 em Osório (LABHOI – UFF).

Entrevista com Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da

Rosa no dia 20 de janeiro de 2010 em Capão da Canoa (LABHOI –

UFF).

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 144

Referências ALANIZ, A. G. G. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição 1871-1895. 1. ed. Campinas: Centro de Memória Unicamp, 1997. 107 p. ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São Paulo: 1888-1988. Bauru: Edusc, 1998. ANJOS, J. C. dos; SILVA, S. B. da (Org.). São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: UFRGS, 2004. ARAÚJO, T. L. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila da Cruz Alta, província do Rio Grande de São Pedro, 1834-1884). 2008. 333 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ARRUTI, J. M. A. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: EDUSC, 2006. BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. (Coleção Brasiliana, v. 305). BARCELLOS, D. M. Família e ascensão social de negros em Porto Alegre. 1996. 313 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. BARCELLOS, D. M.; CHAGAS, M. de F.; FERNANDES, M. B.; FUJIMOTO, N. S.; MOREIRA, P. R. S.; MÜLLER, C. B.; VIANNA, M.; WEIMER, R. de A. Comunidade negra de Morro Alto: historicidade, identidade e direitos constitucionais. Porto Alegre: UFRGS, 2004. BITTENCOURT JUNIOR, I. C. Maçambique de Osório: entre a devoção e o espetáculo: não se cala na batida do tambor e da Maçaquaia. 2006. 452 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. BOURDIEU, P. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 145

BURGUIÈRE, A. Le mariage et l’amour en France, de la renaissance à la révolution. Paris: Seuil, 2011. CÂMARA, N. Escravidão, nunca mais!: um tributo a Luiz Gama. São Paulo: Lettera.doc, 2009. CARDOSO, C. F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. _________. Escravo ou camponês?: o protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. CARVALHO, J. M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. _________. Brasil 1870-1914: A força da tradição. In: CARVALHO, J. M. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 107-139. _________. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. CHAGAS, M. de F. Reconhecimento de direitos face aos (des)dobramentos da história: um estudo antropológico sobre territórios de quilombos. 2005. 382 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión SAIC, 1974. _________. La organización de la unidad económica campesina: introducción. In: PLAZA, O. Economía campesina. Desco: Centro de Estudios y Promoción del Desarrollo, 1979. p. 85-104. COOPER, F.; HOLT, T. C.; SCOTT, R. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. CÔRTES, J. C. P. Folclore gaúcho: festas, bailes, música e religiosidade rural. Porto Alegre: CORAG, 1987.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 146

COSTA, C. E. C. Campesinato negro no pós-abolição: migração, estabilização e os registros civis de nascimentos: Vale do Paraíba e Baixada Fluminense, RJ (1888-1940). 2008. 201 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. CUNHA, O. M. G. da; e GOMES, F. dos S. Quase-cidadão: histórias e antropologias do pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. DEZEMONE, M. A. de O. Memória camponesa: identidades e conflitos em terras de café (1888-1987): Fazenda Santo Inácio, Trajano de Moraes – RJ. 2004. 284 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói. ESTEVES, M. de A. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. FARIA, S. de C. História da família e demografia histórica. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 241-258. FARINATTI, L. A. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: UFSM, 2010. FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus: USP, 1965. FERREIRA, J.; DELGADO, L. de A. Neves (Org.). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. FRAGA FILHO, W. Encruzilhadas da liberdade. Campinas: UNICAMP, 2006. FREYRE, G. Sobrados e mocambos. São Paulo: Global, 2006.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 147

GEERTZ, C. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: O SABER local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 249-258. GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: _________. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179. GINZBURG, C.; PONI, C. O nome e o como. In: ________. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL, 1991a. p. 169-178. _________. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre” de Natalie Zemon Davis. In: _________. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991b. p. 179-202. GOMES, F. R. Sob a proteção da princesa e de São Benedito: identidade étnica, associativismo e projetos num clube negro de Caxias do Sul (1934-1988). 2013. 188 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. GRANOVETTER, M. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE Eletrônica, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 1-41, jun. 2007. Disponível em: <http://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/10.1590_S1676-56482007000100010.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015. GRENDI, E. Repensar a micro-história? In: REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas: experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. GUEDES, R. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008. GUIMARÃES, E. S. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: família, trabalho, terra e conflito. São Paulo: Annablume; Juiz de Fora: Funalfa, 2006. ________. Terra de preto: usos e ocupação da terra por escravos e libertos. 1. ed. Niterói: UFF, 2009.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 148

HOLLANDA, S. B. (Org.). História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978. t. 3. HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. KERSTING, E. H. de O. Negros e a modernidade urbana em Porto Alegre: a colônia africana (1890-1920). 1998. 221 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. LAYTANO, D. As congadas do município de Osório. 1. ed. Porto Alegre: Associação Rio-grandense de música, 1945. 132 p. (Boletim de Estudos do Folclore do Rio Grande do Sul). LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975. LEITE, I. B. Negros no sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. LEVI, G. Sobre a micro-história. In: BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1992. ________. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LIMA, H. E. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 289-326, jul.-dez. 2005. LINHARES, M. Y. (Org.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990. MACHADO, C. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 149

MACHADO, M. H. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras Paulistas: 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. _________. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: UFRJ: EDUSP, 1994. MAGALHÃES, M. L. Entre a preteza e a brancura brilha o Cruzeiro do Sul: associativismo e identidade negra em uma localidade teuto-brasileira (Novo Hamburgo/RS). 2010. 219 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. MARQUES, L. Por aí e por muito longe: dívidas, migrações e os libertos de 1888. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. MATTOS, H. M. Das cores do silêncio: significados da liberdade no Sudeste escravista: Brasil, século XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. _________. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. _________. Prefácio. In: COOPER, F.; HOLT, T. C.; SCOTT, R. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 13-38. __________. A vida política. In: SCHWARCZ, L. M. (Coord.). História do Brasil nação: a abertura para o mundo (1889-1930). Rio de Janeiro: Objetiva; Madrid: Fundación Mapfre, 2012. v. 3., p. 85-131. MATTOS DE CASTRO, H. M.; FARIA, S. S. de C.; RIOS, A. M. L. Estudos sobre a escravidão II. [Niterói]: UFF/ICHF, 1990. (Cadernos do ICHF, n. 23) MATTOS, J. R. “Que arraial que nada, aquilo lá é um areal”: o areal da Baronesa: imaginário e história (1879-1921). 2000. 152 f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. MELLO, M. M. Reminiscências dos quilombos: territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 150

MELLO E SOUZA, A. C. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. MOREIRA, P. R. S. ‘Boçais e malungos em terras de brancos – o último desembarque de escravos nos arredores de Santo Antônio da Patrulha: 1852’. In: BEMFICA, C.; FIGUEIREDO, L.; GOMES, S.; BIER, T.; BARROSO, V. (Org.). Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: EST, 2000. _________. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST, 2003. MOTTA, J. F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999. MOURA, M. M. Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural. São Paulo: HUCITEC, 1978. MÜLLER, C. B. Comunidade remanescente de quilombos de Morro Alto: uma análise etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da identidade jurídico-política de “remanescentes de quilombos”. 2006. 285 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. MULLER, L. S. As contas do meu rosário são balas de artilharia. Porto Alegre: Pragmatha, 2013. NASCIMENTO, Á. P. Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão? O pós-abolição no ensino de História. In: SALGUEIRO, M. A. A. A república e a questão do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. p. 11-26. O’DWYER, E. C. Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos. In: ________. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: ABA: FGV, 2002. p. 13-42. OLIVEIRA, V. P. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais. Porto Alegre: EST, 2006.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 151

OSÓRIO, H. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. PALMEIRA. M. Casa e trabalho: nota sobre as relações sociais na plantation tradicional. In: CONGRÉS INTERNATIONAL DES AMÉRICANISTES, 42., 1976, Paris. [Analles...]. [S.l.: s.n, 1976]. p. 305-315. PAPALI, M. A. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). 1. ed. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2003. POLANYI, K. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. POLLAK, M. L’expérience concentrationnaire: essai sur le maintien de l’identité sociale. Paris: Métailié, 2000. PORTELLI, A. A dialogical relationship: an approach to oral history. Disponível em: <http://www.swaraj.org/shikshantar/expressions_portelli.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2010. PRIORE, M. del; VENANCIO, R. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. RECKZIEGEL, A. L. S.; AXT, G. (Org.). História geral do Rio Grande do Sul: República: República Velha. Passo Fundo: Méritos, 2007. REIS, J. J.; SILVA, E. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. São Paulo: ANPUH, v. 35, n. 69, 2015. Disponível em: <http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/revistas-anpuh/rbh>. Acesso em: 16 jul. 2015.

RIOS, A. L. Família e transição (famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920). 1990. 133 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 152

_________. Filhos e netos da última geração de escravos e as diferentes trajetórias do campesinato negro. In: RIOS, A. L.; MATTOS, H. M. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a. _________. Conflito e acordo: a lógica dos contratos no meio rural. In: RIOS, A. L.; MATTOS, H. M. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b. _________. Campesinato negro no período pós-Abolição: repensando Coronelismo, enxada e voto. Cadernos IHU Ideias, São Leopoldo, v. 5, n. 76, p. 1-19, 2007. RIOS, A. L.; MATTOS, H. M. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. _________. Para além das senzalas: campesinato, política e trabalho rural no Rio de Janeiro pós-Abolição. In: CUNHA, O. M. G. da; GOMES, F. dos S. Quase-cidadão: histórias e antropologias do pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. RODRIGUES, R. N. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. (Coleção Brasiliana, v. 9). ________. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: UFRJ, 2006. Edição fac-similar de originais de 1896 e 1897. ROSA, M. V. de F. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-Abolição (1884-1918). 2014. 312 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. SANTOS, M. E. V. dos. Veja que o mundo virou: considerações sobre o processo-crime envolvendo os negros do Engenho Salgado – Pernambuco, 1890. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DO TRABALHO, 1.; JORNADA NACIONAL DE HISTÓRIA DO TRABALHO, 5., 2010, Florianópolis. Histórias do trabalho no sul global. Florianópolis: UFSC, 2010. p. 1-14. Disponível em:

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 153

<http://www.labhstc.ufsc.br/globalsouth/Sessao%201.zip>. Acesso em: 16 maio 2011. SCHERER, J.; ROCHA, M. (Coord.). Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade: acervos dos tabelionatos de municípios do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul: CORAG, 2006. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/1169142561.Cat_Sel_Cartas_Liberdade_Vol_1.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011. SCHWARTZ, S. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. _______. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: _______. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p. 21-28 SCOTT, R.; ZEUSKE, M. Le “droit d’avoir des droits”: les revendications des ex-esclaves à Cuba (1872-1909). Annales: histoire, sciences sociales, Paris, v. 59, n. 3, p. 521-545, mai-juin 2004. SCOTT, R.; HÉBRARD, J. Freedom papers: an Atlantic odyssey in the age of emancipation. Cambridge: Harvard University, 2012. SILVA, F. O. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento desses espaços: associações e identidades negras em Pelotas. 2011. 228 f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. SILVEIRA, A. Legitimação e transmissão de heranças na Mesa do Desembargo do Paço, Rio de Janeiro, século XX. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 15., 2006, Caxambu, MG. [Anais...] [S.l. : s.n., 2006]. p. 1- 24. Disponível em: <www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_616.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2015. SKIDMORE, T. E. Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 154

SLENES, R. W. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. SOUZA, S. M. Terra, família, solidariedade: estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição: Juiz de Fora (1870-1920). 2003. 308 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói. TEIXEIRA, L. Muito mais que senhores e escravos.Relações de trabalho, conflitos e mobilidade social em um distrito agropecuário do sul do Império do Brasil (São Francisco de Paula de Cima da Serra, RS, 1850-1871). 2008. 203 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. THOMPSON, E. P. The grid of inheritance: a comment. In: GOODY, J.; THIRSK, J.; THOMPSON, E. P. Family and inheritance: rural society in Western Europe 1200-1800. Cambridge: Cambridge University: Past and Present Society, 1976. p. 328-360. ________. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: ________. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 150-202. ________. A economia moral revisitada. In: ________. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998b. p. 203-266. TRAVERSO, E. Le passé, modes d’emploi. Paris: La fabrique éditions, 2005. WEIMER, R. de A. Os nomes da liberdade: ex-escravos na Serra Gaúcha no pós-Abolição. São Leopoldo: Oikos: UNISINOS, 2008. _________. Migrações rural-urbanas entre descendentes de escravos no litoral do Rio Grande do Sul em meados do século XX. História Unisinos, São Leopoldo, v. 15, n. 1, p. 14-22, 2011. Disponível em: <http://www.unisinos.br/revistas/index.php/historia/article/view/955>. Acesso em: 11 mar. 2014.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 155

_________. A gente da Felisberta: consciência histórica, história e memória de uma família negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação (c.1847 – tempo presente). 2013. 497 p. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói. _________. O que se fala e o que se escreve: produção de presença e consciência histórica em uma família negra no litoral norte do Rio Grande do Sul. Varia História, Belo Horizonte, v. 31, n. 55, p. 221-251, jan./abr. 2015a. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752015000100221&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 4 jun. 2015 _________. Rodrigo, tu não é italiano, né?: tensões e cooperações étnicas entre negros e imigrantes em uma localidade do Litoral norte do Rio Grande do Sul. In: TEDESCO, J. C.; NEUMANN, R. Colonos, colônias e colonizadoras: aspectos da territorialização agrária no Sul do Brasil. Porto Alegre: Letra e vida, 2015b. v. 4, p. 197-216. _________. Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 35, n. 69, p. 59-81, jan/jun. 2015c. Disponível em: <http://anpuh.org/download/download?ID_DOWNLOAD=1545>. Acesso em: 16 jul. 2015 WISSENBACH, M. C. C. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: SEVCENKO, N. História da vida privada no Brasil 3: república: da Belle Époque ao Estado Novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. WOORTMANN, E. F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Edunb, 1995. XAVIER, R. C. L. História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional: guia bibliográfico. Porto Alegre: UFRGS, 2007. ZARTH, P. A. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Unijuí, 2002.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os camponeses do Morro Alto: família e trabalho no litoral norte

do Rio Grande do Sul no pós-Abolição (1890-1930). Porto Alegre: FEE, 2016. 156

Anexo Genealogia dos descendentes de Manoel Inácio e Felisberta