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SECRETARIA DE ESTADO E DA EDUCAÇÃO - SEED SUPERINTENDÊNCIA DE EDUCAÇÃO
DIRETORIA DE POLÍTICAS E PROGRAMAS EDUCACIONAIS PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
O DESPERTAR PARA A SOCIOCULTURALIDADE RELIGIOSA DO TERRA SEM MAL, DO PROFANO E DO SAGRADO NA CONCEPÇÃO DOS MBYÁS
Ricardo Buch1 Orientador: Luis Rogério Oliveira da Silva2
Resumo O presente artigo foi elaborado como síntese de um projeto de implementação pedagógica produzido durante as pesquisas realizadas no Programa de Desenvolvimento Educacional. A abordagem realizada tem o intuito de promover reflexões que de fato sensibilize educadores e educandos para ressignificar o olhar aos processos de hibridismo que vêm ocorrendo na nacionalidade brasileira, com foco em alguns artefatos culturais religiosos presentes na cultura do Mbyás. As pesquisas de campo foram realizadas em Piraquara e no Litoral Paranaense. Durante o desenvolvimento do projeto, realizado no Colégio Estadual Helena Kolody – Município de Colombo/PR, foram produzidos alguns materiais que podem subsidiar a prática docente, tais como o Projeto de Intervenção Pedagógica, o Caderno Pedagógico e Slides em Powerpoint contendo reflexões e imagens ilustrativas da cultura dos Mbyás. Também foi ofertado aos professores o GTR como forma de aprofundar este debate. Como resultado, disponibiliza-se à esfera educacional uma contribuição pedagógica para promover estas discussões em sala de aula. Palavras-Chave: Mbyás, Religiosidade, Legislação Indígena, Transdiciplinaridade na educação. .
Abstract: This article has been written as a synthesys of a pedagogical interventional project that was produced during some PDE – Educational Development Program - researches. The approaching bring the aim to promote
1 Professor de História pertencente ao Quadro Próprio de Magistério. SEED/PR. Atualmente
lotado no Colégio Estadual Helena Kolody. 2 Professor efetivo da Universidade Federal do Paraná.
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reflections that really make teachers and students to feel the need to take a different look at the hybridism process, since it has been occurring into brazilian nationality. The focuses place at some religious cultural artefats in Mbyás culture. The field of these searches took place in Piraquara and in Litoral Paranaense. During the project development, some materials have been elaborated in order to scaffold pedagogical methods, sucha as Pedagogical Intervention Project, Pedagogical Notebook and Powerpoint Slides containing reflections and pictures that represent Mbyás culture. Indeed, as a way to deep this subject, the teachers have had the opportunity to launch into GTR – a networking group. As a result, Educational field has been gained a significant pedagogical contribution to promote these discussions in classroom. Key words: Mbyas; Religion; Indian Laws; Multiculturalism into Education.
1 Introdução
A “solução” guarani para a escola.
Um guarani mbya me dizia que a civilização é
muito ruim porque ela trazia escola e polícia, o
que adoentava o ‘modo de ser’ mbya. É bem
conhecido o caso de povos indígenas que por
isso procuraram na ecologia do analfabetismo a
preservação de sua identidade.
MELIÀ (1979:81)
A epígrafe acima constituiu o primeiro momento de reflexão para
repensar-se os processos excludentes, discriminatórios e preconceituosos que
se instalaram ao longo da historicidade indígena. As palavras de Meliá
promovem a sensibilização sobre que conceito se pode buscar a respeito da
civilização, como pessoas provenientes de culturas iletradas veem o papel do
Estado por meio dos agentes que, em tese, deveriam ser considerados portos
seguros, com credibilidade popular, bem como sobre a invasão intercultural
que se configura em atitudes desrespeitosa á ontologia dos povos indígenas.
Ora, ao ter toda construção histórica de sua subjetividade invadida, resta
manter a espiritualidade dos saberes cultivados ao longo das tradições na
ecologia do analfabetismo, eis a saída terrível e segregacionista para a
preservação dos traços identitários que lhes permitem reconhecer a identidade.
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Neste sentido, o presente trabalho buscará viabilizar aos profissionais da
educação a possibilidade de reconfigurar o pensamento para a diversidade
cultural e os processos discriminatórios implícitos na construção da identidade
indígena ao longo deste 512 anos de descobrimento do Brasil. Em se
revelando outros pontos do prisma para provocar um redirecionamento do olhar
a esta realidade posta, cuja transformação é urgente, pretende-se que haja
intervenções na realidade concreta do dia-a-dia das escolas.
De que forma é possível sensibilizar educadores e educandos para que
percebam a história e a cultura indígena enquanto segmento da sociedade
contemporânea, e não como algo que ficou enclausurado no passado conforme
aparece em muitos manuais didáticos?
Atualmente, diante das discussões sobre inclusão e multidiversidade,
emerge a necessidade cada vez mais gritante de disseminar-se valores e
princípios que primem pela busca de redução das desigualdades. Quando
surgem as políticas afirmativas defendendo a ideia de reparação dos erros
historicamente cometidos contra afrodescendentes, indígenas, e contra os
filhos da classe trabalhadora, percebe-se implícito nestes discursos o ideal de
uma redemocratização da educação neste país. A tentativa eminente de
oportunizar àqueles cujos braços ergueram a economia do Brasil o acesso ao
letramento, à cientificidade produzida historicamente em prol das melhorias de
condições existenciais da humanidade.
A ciência alavanca os avanços tecnológicos por meio da força do
trabalho das classes socioeconomicamente desfavorecidas, pois privadas dos
próprios artefatos culturais que produzem, mal conseguem ter direitos
fundamentais garantidos como os previstos no Caput do Art. 227: É dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
Diante das inúmeras violações de direitos que tanto contribuem para
perpetuar a divisão da sociedade de classes, parece restar à educação a
tentativa de sensibilizar os indivíduos para que adquiram o espírito de
criticidade. Como diz Paulo Freire, não basta na escola ensinar a letra V de
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“Eva viu a uva”, mas sim fazer os sujeitos pensarem qual papel Eva ocupa na
sociedade enquanto mulher e trabalhadora, quais nutrientes estão presentes
na uva e quem tem acesso a todos os elementos físicos e químicos nutritivos
úteis à manutenção de um organismo humano saudável, quem planta a uva,
quais condicionantes agrários, climáticos, geográficos se fazem necessário
para uma boa safra. Finalmente, como ocorre a divisão do lucro deste produto.
A quem ele serve afinal?
Dessa forma, é papel das instituições de ensino resgatar os processos
históricos de constituição da nossa nacionalidade, marcadamente desde o
início do processo de colonização por grupos étnicos provenientes de diversos
espaços etnográficos e culturais. A população negra e indígena sempre fora
considerada a partir de estigmas de inferioridade, e podemos observar até
nossos dias o quanto são raras as oportunidades de acesso à educação no
ensino superior, de forma que venham a inculcar nos filhos das classes
trabalhadoras, descendentes deste processo miscigenatório que vêm ao longo
de séculos mantendo as segregações existentes na sociedade, o espírito de
luta por democratização à educação e igualdade de oportunidades numa
perspectiva de humanização.
Outrossim, também muito se tem debatido sobre a necessidade de
implementar-se no plano de trabalho docente a lei que torna obrigatória a
inserção no currículo do debate acerca da inter-culturalidade indígena. Então, a
presente proposta tem como foco aspectos religiosos construídos
historicamente, socialmente, de forma artística e afetiva, que compõem o ethos
cultural destas comunidades. Dentre outros, abordar-se-á os contingentes que
se situam no plano da natureza física e espiritual, ou até mesmo da
sobrenatureza correlacionada à crença na Terra sem Mal.
Para tanto, pretende-se recorrer a alguns conceitos como
multiculturalidade, diversidade, hybridismo, a aplicabilidade da Lei 11.645/08,
surgida a partir da Convenção 169 – artigo 31, que traz a obrigatoriedade de
inserir nos currículos escolares a temática da história e cultura indígena. A
literatura produzida por Pedro Vaz de Caminha também será aqui ilustrada
para refletir a transdisciplinaridade que tanto enriquece a ação educativa. A
SEED/PR propõe ações afirmativas que busquem fortalecer a educação das
relações étnorraciais, por meio da oferta de Cursos de Formação Continuada
como este programa PDE, no qual os participantes contribuem com a
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elaboração de projetos de intervenção pedagógica, de Cadernos Pedagógicos
e oferta de GTRs – Grupos de Trabalho em Rede.
1.1 Aspectos Científicos Literários como alternativa transdisciplinar para
aprofundar o debate sobre a cultura indígena.
Cabe uma retomada no período histórico quando se sabe, por meio dos
cronistas, aventureiros marítimos e historiadores, como a nação indígena foi
influenciada e influenciando desde Cabral. Os índios nativos são retratados
como sujeitos que se assujeitavam diante do dominador considerado
“civilizado”, foram considerados extremamente dóceis, passivos, ingênuos,
subservientes, características que facilitava o processo de escravização e
exploração pelo europeu.
O processo de inferiorização e servidão “voluntária” ocorreu com o índio
de uma forma um pouco diferente de como fora aviltada contra os
descendentes africanos, pois estes sim não tinham sequer visibilidade humana.
De certo modo, pode-se dizer que os índios tinham uma certa proteção por
parte da igreja. Os catequizadores promoviam-lhes um pouco do letramento,
por meio da escrita e dos princípios éticos e morais provenientes da
nacionalidade portuguesa.
Ao impor o ethos da cultura portuguesa, relegava-se a espiritualidade, os
princípios e valores de vida dos povos indígenas. Deste modo, Tupã perde na
construção do imaginários das gerações vindouras seu lugar sagrado, para ser
gradativamente substituído pelos valores cristãos que compreendiam a
perspectiva de Deus e do cristianismo. O tupi-guarani, como artefato lingüístico
comunicativo do índio vai sendo substituído pela língua latina, assim poderiam
rezar para o Deus “português”.
A cultura da oralidade na qual as tribos transmitiam seus saberes e
tradições às crianças e adolescentes fica aos poucos relegada, em detrimento
dos conhecimentos valorizados pelo colonizador. A Literatura Brasileira, mais
especificamente produzida no período histórico intitulado Quinhentismo, ou
Literatura de Informação, revela-se marcada pela poética manifestada na
manifestação do eu-lírico, perceptível tanto na poesia quanto na prosa literária.
Os diversos gêneros discursivos revelam um sentimento de nacionalidade, sob
a ótica da pluriculturalidade. Isso pode ser observado nas crônicas, cartas, no
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relatos dos aventureiros marítimos, dos quais muitos se tornaram contos e
romances. O Romantismo por excelência retoma a idealização do índio e a
exaltação da natureza e da nacionalidade, provendo a reflexão sobre o
processo hybrido-cultural. Quando o escrivão Pero Vaz de Caminha relata sua
experiência ao chegar à Terra de Vera Cruz, na mesma caravela que Pedro
Álvares Cabral, deixa um documento histórico considerado a certidão de
nascimento do Brasil. A forma poética e literária como descreveu detalhes do
ambiente físico e psicológico da cultura indígena, torna a carta ao Rei Dom
Manuel em Portugal um texto magnífico, no qual relata o encantamento diante
do novo, do exótico, a partir do momento em que “houveram vista de terra”, e
todos os efeitos sinestésicos que suas palavras atingem no leitor ao
desencadear as emoções vivenciadas no momento da descoberta, os cinco
sentidos são aguçados por sua arte literária ao discorrer sobre a riqueza da
fauna, da flora e da cultura indígena. E seguem-se as descrições que refletem
a expectativa do encontro com a terra desconhecida.
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Ao se deparar diante de árvores e plantas exóticas, fica nítida a
preocupação do indivíduo em atribuir nomes aos seres vivos presentes na
natureza. Assim, constroem-se neologismos, criam-se palavras novas como
formas de representação imaginativa de objetos quando ausentes do plano
real. Interessante destacar os processos de assimilação a conceitos já
construídos anteriormente pelos sujeitos.
Diante do novo, percebe-se o êxtase experienciado tanto pelo português
como pelo indígena. Quando se entrecruzaram, em princípio havia dois ou três,
logo em seguida, lá estavam entre dezoito e vinte curiosos extasiados diante
do diferente:
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
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arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Outro aspecto hybrido a observar se refere às dificuldades
comunicativas. Por um lado, a variante linguística utilizada pelos índios é
conhecida por tupi- guarani. Após a convivência com o português o processo
posterior de catequização o processo plurilinguístico começa a se manifestar
por ambos os povos, ainda que a predominância acabe por se tornar o uso da
língua do dominador. Igualmente os costumes e conhecimentos populares vão
se assimilando gradativamente, e intensifica-se o fenômeno da
multiculturalidade enquanto movimento dialético vivido pelas sociedades desde
sempre.
1.2 O misticismo presente na religiosidade Mbyá
A fim de aprofundar o olhar para a temática por ora proposta, optou-se
por aprofundar os conhecimentos no misticismo dos Mbyás. As pesquisas
revelam que os processos sociointeracionistas dos índios com a natureza lhes
permitem reconstruir alguns elementos religiosos e os leva a recorrer a outros
patamares transcedentais, para cuja compreensão se fazem necessários
investigar-lhes as crenças e ritos.
Emergem outros planos “superiores” da mesma realidade, na qual
natureza e sobrenatureza se entrecruzam como níveis distintos da mesma
esfera real. Isto pode ser observado no “Xamã”. Este termo expressa o ente
responsável por intermediar os níveis supra mencionados. A perspectiva da
dualidade da alma do indivíduo, constituído em sua indivi/dualidade, pode ser
considerada uma chave para se adentrar na cosmologia dos Mbyás, uma vez
que elucida com plenitude o constructo semântico dos conceitos de superação
da condição humana.
Nesta concepção, pode se dizer que o Mbyá é um hybrido composto
por uma porção divina, a alma-palavra-nome, oriunda da região das
divindades. Incluem-se nesta reflexão a dual existência dos seres eternos e
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terrestres, remetendo a possibilidade de uma alma terrestre, a qual estaria
vinculada a este mundo numa perspectiva efêmera, marcada pela
impermanência, pelo perecível, por meio da finitude que se concretiza na
morte. Vista sob este prisma, a individualidade se interconecta às paixões
humanas, ao histórico do indivíduo em interação com mundo material.
A ideologia construída pelo Mbyá seria buscar uma passagem de ida
para a região dos eternos sem experienciar a materialidade da morte. Com o
intuito de atingir tal objetivo, faz-se necessária a participação de atividades
desenvolvidas na aldeia, dentre elas, uma série considerada de rituais, tais
como as migrações. Também se deveria obedecer a certos padrões normativos
convencionados a fim de regerem a consciência entre eles, enquanto
materialidade, e interação com entes de outras dimensões, tanto do mundo
sobrenatural ou natural.
Isto posto, alguns princípios morais não podem ser esquecidos. Podem
ser ilustrados, dentre outros, a força espiritual, a coragem, o esforço ou a
perseverança (mborayu) e a reciprocidade.
Desde a mais tenra idade, a criança é ensinada sobre sua condição, é
lembrada constantemente de suas raízes socioculturais, do seu destino. O
calendário da vida social e organizacional é marcado de modo especial no
período exato da colheita das plantas, para as quais o milho se destaca pela
similaridade com que corresponde a crença. Eis um momento de maior
concentração das pessoas tanto na aldeia, como na casa de rezas. Trata-se de
um momento no qual o xamã busca desvendar de proveniência do nome-alma
de determinada pessoa.
O significado do milho no universo guarani remete ao ritual de
nomeação. A colheita, realizada sincronicamente ao momento do batismo da
criança, traz como intenção principal invocar a produtividade nas próximas
colheitas. Diante disso, o milho auxilia na elaboração de um calendário que
organiza a sociedade na aldeia em determinadas épocas do ano. A importância
disso é tamanha de tal forma que para os mbyás, sem milho é inviável realizar
o batismo, tamanha dimensão simbólica.
Ao estudar o comportamento educativo das aldeias na formação das
crianças, fica perceptível que a contenção da impulsividade começa a ser
treinada a partir do momento que cada um tem a oportunidade de se
sobressair. Emerge então o ritual da nomeação como substrato impeditivo do
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esquecimento do destino ao qual a pessoa está fadada. Neste sentido, o
“nome” caracteriza a identidade do modo de ser Mbyá e permite à palavra
circular no esqueleto, mantém a pessoa erguida. O nome é sua porção
sagrada, sua alma, sua palavra.
Dentre as técnicas corporais presentes nos rituais, encontram-se as
danças e cantos, as caminhadas ou migrações e a dieta alimentar, elementos
necessários para concretizar o ideal de cuidados especiais sobre o corpo como
uma forma de ascensão à Terra sem Mal. Os próprios Mbyás destacam a dieta
humana, que é caracterizada pela posse do fogo. Também permite diferenciar
repertórios comportamentais humanos dos animais.
O sujeito deve ser orientado para seguir o comportamento do seu grupo
em oposição ao de certos animais. Nesta perspectiva, constitui-se em uma
transgressão o ato de comer cru, como o faz animais tais qual o jaguar, a
onça pintada, um animal de hábitos noturnos e solitário. É imprescindível a
paciência nos preparativos que antecedem o cozimento destes alimentos, pois
dentro da aldeia, o contrário seria uma forma de transgressão que poderia
resultar em transformação do corpo humano em, corpo de animais, ou em
outros termos, poderia representar a morte.
Todos os seres vivos são então dotados de alma, as pessoas Mbyá, os
animais e as plantas. O meio básico para a superação da condição humana do
Ser Mbyá requer uma modelagem do comportamento que o diferencia das
demais espécies e, sobretudo, por uma capacidade que somente o seu corpo
humano permite manifestar. Dentre os recursos do mundo natural das suas
representações vale destacar a palmeira, as rochas, que representam as
entidades, como os ossos da terra, a vegetação e até os pelos, seriam também
consideradas entidades que se vinculam às ruínas das missões.
Interessante observar o que os Mbyás se referem como tekoa, lugar
considerado ideal para exercerem os seus costumes, o teko, como organismo
vivo. O tekoa precisa ser buscado por meio do sonho, para que as pessoas
sejam concebidas. Isso por que o sonho seria um dos meios de comunicação
com a divindade. O xamã, responsável pela aglutinação das pessoas nas
aldeias, assim como nas casas de reza, é considerado o ente que pode levar
as pessoas à Terra sem Mal e também teria um papel mediador na
comunicação com as divindades por meio do sonho.
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Estas dinâmicas podem acontecer em momentos variados, a depender
do modo como se articulam as relações numa aldeia. Dependendo da situação,
pode se verificar sinalizações que indicam doença, ou seja, que está cansada
ou já deixou de permitir ou possibilitar que as relações se dêem ali de modo a
tornar possível o desenvolvimentos exercícios espirituais adequados para os
Mbyá atingirem o objetivo da divinização.
Implícita na ideia de fim do mundo por parte do Mbyás está a crença no
seu fim total, presentificado diante do cansaço e do peso da terra, motivação
para implicar o término. Estas concepções encontram respaldo em outros
escritos da literatura tupi-guarani, e estão correlacionadas ao conceito de morte
das pessoas.
Dessa forma, porção terrestre integrativa da materialidade do ser ficaria
neste mundo, igualmente o corpo do falecido representaria um mal sinal, posto
que o ideal seria desviar-se da morte visando a chegar a terra dos eternos.
cansaço da terra, o seu peso, a doença e a imperfeição são termos vinculados
à vida desta terra, algo que devem fazer o possível para afastar e assim
procurar o desenvolvimento do ideal da leveza do corpo, de sua sublimação ou
transformação em corpo de imortal, perfeito porque eterno. O cedro é uma
árvore que tem relação com a idéia de vida, renovação, eternidade.
Dentre os alimentos principais, os Mbyá citam o tabaco utilizado no
cachimbo e atribuem um sentido significativamente diferente a este produto, se
comparado com outras culturas. A fumaça do tabaco é relacionada ao
carvalho. Segundo suas crença, a fumaça teria dado origem à palavra, à alma,
sendo o seu dono a divindade JACAIRA RU ETE, dono da primavera. A
concepção de personificação da natureza, como metáfora de que árvores e
animais possuem alma é estabelecida simbolicamente e tornada crença para a
cultura Mbyá.
Numa concepção de perspectivismo, animais e plantas compartilhariam
com os humanos a condição de humanidade em função da alma. Os pássaros
têm um espaço importante na cosmologia GUARANI. O colibri, ora como
mensageiro dos xamãs, ora aparece como personificação da divindade, assim
como a coruja. A sua leveza é alvo de atenção, já que é também uma das
intenções dos Mbyás expressa na intenção de obterem a leveza do corpo em
oposição a idéia de um corpo pesado, vinculado à porção terrestre da alma que
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devem evitar que se desenvolva seguindo as normas indicadas pela divindades
através dos xamãs.
1.3 A legislação atual sobre as questões indígenas
Como pontuado neste artigo até o momento, a sociedade Mbyá tem
reproduzido sua concepção de mundo por meio do pensamento estruturado na
crença da Terra sem Mal, considerada não apenas enquanto um mito que se
atualiza e se consolida nos rituais, mas também como manifestação da
expressão de uma forma de pensar e interagir no mundo. O respeito a estas
tradições está assegurado nos documentos jurídicos que versam sobre os
direitos dos índios.
A Constituição da República Federativa do Brasil traz assegurado de
forma explícita os direitos dos indígenas.
A educação para a cidadania requer estas reflexões como forma de
mostrar aos descendentes indígenas quais instrumentos jurídicos têm a seu
favor para que possam sair do conformismo e comodismo por meio do
conhecimento científico e partir em luta de conquistas já asseguradas no
aparato jurisdicional.
Pode-se recorrer a outro exemplo de respaldo legal, retomando a
Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais em países independentes,
aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 07 de junho de
1989. Convocada pelo Conselho Administrativo da Repartição Internacional do
Trabalho, em Genebra, a convenção constituiu a septuagésima sexta sessão,
na qual se tornou institucionalizada a Convenção Sobre os Povos Indígenas e
Tribais, 1989.
1.4 Principais elementos abordados no Caderno Pedagógico como
instrumento subsidiador da prática docente
Além das reflexões propostas até aqui sobre a Literatura, sobre a
religiosidade Mbyá e a Legislação vigente, também foi elaborado um Caderno
Pedagógico para subsidiar a prática docente. Este material foi subdivido em
quatro unidades temáticas. Primeira delas se refere a aspectos míticos e
religiosos da cultura Mbyás, de forma mais ampliada do que a síntese
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apresentada neste artigo. A segunda ficou intitulada “Políticas Públicas:
Projetos que estão sendo implementados para salvaguardar a
socioculturalidade indígena”, que vale a pena conferir e exercitar na prática da
sala de aula.
A terceira unidade aborda a representação dos índios no livro didático. A
reflexão sobre como vem sendo abordada esta temática nos manuais didáticos
se fundamentou no artigo intitulado “A temática indígena no livro didático”,
elaborada pelas pesquisadoras 3Rosa Maria Cavalheiro e 4Flamarion Laba da
Costa. Na abordagem apresentada, as autoras como observam a percepção
cultura indígena, trabalhada na perspectiva de evento concretizado no
passado, distanciada dos tempos atuais, como se não mais fizesse parte da
pós-modernidade.
A socioculturalidade do índio é veiculada a partir de um viés
generalizado de não contemporaneidade, “como se fossem um todo
homogêneo, iguais entre si, fazendo parte apenas do passado” (SILVA &
GRUPIONI, 1995. p. 11). A indagação pertinente se refere ao questionamento
sobre onde pairam os fenômenos dialéticos que se circunscrevem nos dias de
hoje, as contribuições interculturais e os valores tradicionais que até a
atualidade se consolidam nas trocas inter-geracionais.
Nos questionamentos propostos cabe uma reflexão sobre generalização
da figura do índio, de forma a desconsiderar não somente a existência atual
das aldeias e tradições, mas também as singularidades específicas de cada ser
em articulação com os valores do organismo social no qual constroem suas
subjetividades. As interrogações são pertinentes aos contingentes culturais de
edificação da identidade individual “como se fossem um todo homogêneo,
iguais entre si, fazendo parte apenas do passado” (SILVA & GRUPIONI, 1995.
p. 11).
Nas pesquisas realizadas pelas autoras, as discussões propostas nos
materiais didáticos, na maioria das vezes, oferece aos educadores e
educandos o contato com referências desatualizadas e não confiáveis. As
abordagens feitas a partir destas ferramentas pedagógicas desatualizadas
3 Professora de História da Rede Estadual de Ensino do Paraná. Participante do
Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE. E-mail: <[email protected]>. 4 Orientador. Professor do Departamento de História. Universidade Estadual do Centro
Oeste – UNICENTRO. E-mail: <[email protected]>. M te
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propiciam uma visão fragmentada a respeito da dimensão temporal e espacial,
possibilitando-lhes a concluírem que os povos indígenas não fazem parte da
sociedade atual, e que estas relações só se deram na época da chegada dos
europeus ao Brasil, principalmente porque esse assunto aparece nos livros
somente quando abordado o período específico da História do descobrimento
do Brasil. São fragmentados na medida em que não apresentam reflexões
sobre a participação indígena nos períodos posteriores, pois se apresentam
presos e limitados nos estudos sobre o Império e a República, mantendo–os,
de certa forma, desconectados da história recente do país.
1.5 GTR – Grupo de Trabalho em Rede – Curso de formação continuada
ofertado a professores sobre a temática da socioculturalidade Mbyá,
com ênfase na religiosidade
Outro instrumento de reflexão sobre a temática aqui proposta se refere
ao curso de formação continuada direcionado a professores da rede estadual
de ensino, na modalidade à distância. O GTR – Grupo de Trabalho em Rede.
As propostas de formação ofertadas na modalidade a distância trazem aos
professores a oportunidade de se, de aprofundarem o repertório didático e
metodológico numa perspectiva que vem de encontro aos avanços dos meios
tecnológicos de informação e comunicação.
A oferta da educação nos ambientes virtuais de aprendizagem se revela
grande parceira do processo de edificação cognitiva e profissional dos
educadores, pois ultrapassa fronteiras geográficas e as limitações espaço
temporais cronológicas. Os educadores podem estar em constante busca por
novos saberes de quaisquer lugares onde possam se conectar às plataformas
de aprendizagem. Os recursos utilizados neste GTR se constituíram de
produção textual no qual os participantes eram solicitados a encaminhar suas
reflexões, a partir dos referenciais teóricos disponibilizados no modle, por meio
de arquivo único produzido em um editor de textos como o Word ou o Broffice
Writer. A socialização das experiências de implementação das idéias
propostas no caderno pedagógico foi amplamente debatida no fórum de
discussão virtual disponibilizado na plataforma digital.
Como resultado, percebe-se que os professores, após leitura, produção
escrita e debate sobre a temática, forma estimulados a promover estas
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discussões em sala de aula, fazendo com que o cumprimento da lei não fique
apenas no plano ideológico teórico do papel, mas a cultura indígena seja fonte
inesgotável de enriquecimento do indivíduo para o exercício da cidadania.
1.6 Considerações Finais - A implementação do Projeto de Intervenção
Pedagógica no Colégio Estadual Helena Kolody – Colombo/PR
A apresentação da proposta de trabalho ocorreu conforme previsto no
cronograma de execução do projeto, durante o momento pedagógico. Após
apresentar de forma sintetizada o objetivo e os slides contendo imagens com
fotos ilustrativas dos artefatos culturais dos Mbyá. Ao personalizar a animação
para a apresentação dos slides, músicas que retomam a religiosidade Mbyá
atribuíram ao momento de discussão um clima de aproximação sensível
intersubjetiva e inter-lírica entre os participantes. Desta forma, mobilizou-se
professores, equipe pedagógica e diretiva para contribuir com idéias e auxiliar
na re-elaboração de um trabalho articulado numa perspectiva de
multidisciplinaridade que transcende a perspectiva de mero cumprimento da
normatização institucionalizada a partir da Lei 11.645/08.
A partir das discussões, surgiu a idéia de organizar-se um oficina na
realização da feira de Ciências, abordando aspectos não somente da
religiosidade Mbyá, mas também outros componentes culturais que constituem
a base da economia, como artesanatos e demais peculiaridades cultivadas até
os dias atuais. Oportunizou então a alunos e professores ressignificar o olhar
para as tradições indígenas e despertar para o quanto direitos têm sido
violados a este segmento da população. Também como resultado intensificou-
se a necessidade de enfatizar a segmentação da sociedade de classes e
outros direitos negados que inviabilizam a ascensão social de comunidades
desfavorecidas economicamente.
Referências: CLASTRES, Helénè. A Terra sem mal. O profetismo Tupi-Guarani. SP, Editora brasiliese, 1978.
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CLASTRES, Pierre. “O arco e o cesto”. In. A Sociedade contra o Estado; pesquisa antropologia política. RJ, Editora Francisco Alves, 1986
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