sbs2007 gt17 leonardo leitao

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XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 29 DE MAIO A 1 DE JUNHO, UFPE, RECIFE (PE) GT 17 – QUESTÕES ÉTNICAS, RACIAIS E AÇÃO AFIRMATIVA ABRINDO A "CAIXA PRETA" DO TERRITÓRIO: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DO PROCESSO DE RECONHECIMENTO DE TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS LEONARDO RAFAEL SANTOS LEITÃO (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL) [email protected]

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Sbs2007 Gt17 Leonardo Leitao

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  • XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 29 DE MAIO A 1 DE JUNHO, UFPE, RECIFE (PE)

    GT 17 QUESTES TNICAS, RACIAIS E AO AFIRMATIVA

    ABRINDO A "CAIXA PRETA" DO TERRITRIO: ASPECTOS EPISTEMOLGICOS DO PROCESSO DE RECONHECIMENTO DE TERRITRIOS QUILOMBOLAS

    LEONARDO RAFAEL SANTOS LEITO (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL)

    [email protected]

  • INTRODUO

    Pensar, a partir da cincia, a regularizao fundiria de espaos ocupados por afro-descendentes, abre um espao de discusso interessante, que possibilita repensar as relaes entre cincia e sociedade, principalmente quando a cincia acaba sendo uma linguagem distante, ou no mnimo estranha aos grupos demandantes de reconhecimento de seus direitos. No caso aqui analisado, os relatrios tcnicos e os laudos periciais, produzidos geralmente por equipes multidisciplinares de cientistas, como antroplogos, gegrafos, historiadores, entre outros, vem sendo uma pea fundamental para concretizao do artigo constitucional1 que diz respeito aos direitos das comunidades remanescentes de quilombos. No entanto, a questo do reconhecimento desses direitos no se limita emisso de pareceres cientficos, mas sim, se apresenta como um fenmeno complexo, onde diferentes dimenses do mundo social se entrecruzam (poltica, interesses econmicos, desigualdades raciais, etc), o que demonstra a necessidade de buscar uma interpretao terica que no limite a cincia a uma esfera isolada do mundo social.

    A PERCIA CIENTIFICA EM CASOS ENVOVENDO COMUNIDADES ETNICAS A demanda pela elaborao de estudos periciais, em casos envolvendo

    grupos tnicos, caminha juntamente com as transformaes das normas jurdicas. O papel do cientista, neste contexto, vem sofrendo transformaes no que diz respeito percia judicial. Como os casos envolvendo a regularizao fundiria de grupos etnicamente diferenciados geralmente se apresentam em conjunturas conflitivas, a apurao de uma situao ou fato demanda de conhecimentos tcnico ou cientfico, atravs da colaborao de um ou mais especialista (Santos, 1994), que so chamados a apresentar provas e argumentos que auxiliem as tomadas de decises por parte do judicirio. No entanto, nos casos de reconhecimento de territrios quilombolas, a legislao infraconstitucional vem sofrendo, ao longo dos ltimos 15 anos, transformaes significativas, que deslocam e transformam o papel do cientista em momentos de percias.

    Em obra publicada pela Associao Brasileira de Antropologia (ABA) em conjunto com a Comisso Pr-ndio de So Paulo, no ano de 1994, onde se discutia a

    1 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a

    propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os ttulos respectivos. (Constituio Federal, 2004:159)

  • percia antropolgica em processos judiciais, poucos eram os textos que abordavam questes relacionadas a terras de quilombos, haja vista a marginalidade legal em que este tema se encontrava. somente em 1995 que se d o primeiro passo em relao a operacionalizao do texto constitucional2, atravs de uma Portaria3 do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) que determina que as comunidades quilombolas tenham as suas reas demarcadas e tituladas e institui uma modalidade especial de projeto de assentamento para esta populao - o projeto especial quilombola. Este instrumento norteou a ao do INCRA durante 1995 a 1999 - perodo em que este rgo titulou seis terras de quilombo. Em outubro de 1999 a competncia para regularizar as terras quilombolas foi delegada ao Ministrio da Cultura, e, somente em 2001 assinado o decreto lei 3.912 que regulariza o texto constitucional e institui que apenas aqueles territrios ocupados por mais de cem anos poderiam ser enquadrados na categoria Remanescentes de Quilombos.

    a partir do Decreto Lei de 2001 que se intensifica a demanda de percias judiciais, haja vista a necessidade de comprovao da ocupao territorial por parte destes grupos. Essa demanda inclui especialistas de diversas reas do conhecimento aptas a colaborarem atravs de suas tradies disciplinares com o entendimento dessas realidades. No entanto, a especificidade do tema, em lidar com questes envolvendo grupos humanos demandantes de reconhecimento de suas particularidades culturais, colocou a antropologia como uma das disciplinas centrais neste processo. Muitos dos laudos periciais, principalmente ligados a questes indgenas, vinham sendo elaborados por engenheiros e agrnomos, que pela prpria limitao relacionada suas formaes, demonstravam dificuldades em apontar a dimenso cultural que envolvia o processo de reconhecimento desses espaos ocupados. Ainda na dcada de 80 firmado um protocolo de intenes entre a Procuradoria da Repblica e a Associao Brasileira de Antropologia, no qual a ABA passaria a indicar profissionais para a realizao desses trabalhos (Leite, 2005).

    Mais recentemente, com a substituio do Decreto Lei de 2001 pelo assinado pelo presidente da repblica em 20 de novembro de 20034 instensifica-se a discusso jurdica e acadmica sobre a importncia da elaborao de relatrios tcnicos de identificao. A prpria necessidade desses estudos passa a ser questionada, tendo em vista que no novo texto legal, o critrio de reconhecimento desses grupos passa a

    2 Alguns projetos de lei foram encaminhados ao Senado e a Cmara dos deputados do no mesmo ano, sem

    que nenhum fosse aprovado. Ver P.L 129/95 e P. L 627/95. 3 Portaria 307/95

    4 Decreto 4.887 (em anexo). Esse decreto devolve ao INCRA as responsabilidades administrativas de

    reconhecimento, demarcao e titularizao.

  • ser a auto-identificao, no sendo mais necessrio estudos comprobatrios. No entanto, a auto-identificao, que vinha sendo uma demanda dos movimentos sociais envolvidos, no necessariamente se apresentou como uma soluo para a acelerao do processo de regularizao fundiria das terras de quilombos. Como colocava Veiga Rios, j em 1987:

    No h lugar assim para a chamada auto-indentificao, ou a auto-delimitao. Tais procedimentos podem, primeira vista, ser considerados simples e eficazes, mas so, ao contrrio, complexos, perigosos e no do nenhuma garantia de resultados concretos em favor das comunidades remanescentes de quilombos, uma vez que os particulares atingidos por essas auto-delimitaes podero reagir, de forma legtima por intermdio da justia ou de modo violento, por seus prprios meios, pretenso em contrrio aos seus interesses, j que, at ento, a rea em conflito lhes pertencia legalmente.(Veiga Rios, 1997: 76).

    O Decreto Lei 4.887 em seu artigo 2, pargrafos 2 e 3 coloca:

    2o So terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduo fsica, social, econmica e cultural.

    3o Para a medio e demarcao das terras, sero levados em considerao critrios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado comunidade interessada apresentar as peas tcnicas para a instruo procedimental.

    A grande dificuldade est em estabelecer parmetro de comparao entre os critrios de territorialidade indicados pela prpria comunidade e a demanda de objetivao em forma de uma carta geogrfica e de um memorial descritivo dessas terras por parte do estado. O papel de agentes mediadores, que traduzam esses critrios de territorialidade para meios de inscrio (mapas, relatrios, genealogias) mais universais, ainda se apresenta, neste contexto, como fundamental. Estas dificuldades de operacionalizao levaram o INCRA a manter os estudos periciais como uma pea importante no processo administrativo. No quadro abaixo temos os passos administrativos de responsabilidade do INCRA para titulao das terras de quilombos.

    Quadro 2: Procedimentos de regularizao de Territrios Quilombolas

  • Processo de Regularizao

    Procedimento

    Fases da Regularizao Abertura dos Processos Administrativos

    Reconhecimento Declarao de auto definio emitida pela Palmares. Elaborao do Relatrio Tcnico

    Identificao e delimitao Publicao das peas tcnicas no Dou. Consultas aos rgos e entidades.

    Demarcao Medio e colocao dos marcos divisrios. Reassentamento dos ocupantes no quilombolas

    Titulao Concesso do Ttulo

    Fonte: INCRA

    A insero do trabalho do cientista se d no segundo momento, o do reconhecimento, onde o laudo pericial apresenta-se como uma das peas do relatrio tcnico, que inclui desde a elaborao do laudo histrico antropolgico, at a elaborao da cadeia dominial e o cadastro de todos os moradores da rea reivindicada. No processo de elaborao do relatrio tcnico, uma srie de especialistas (engenheiros, cartgrafos, agrnomos, antroplogos, historiadores, etc) so acionados. Este segundo momento ser o foco deste trabalho de pesquisa. Encara-se aqui, o Relatrio Tcnico como o objeto que representa a inscrio do territrio em medidas e textos, onde o controle intelectual do cientista se exerce, no diretamente aos fenmenos estudados, mas sim as prprias inscries por eles construdas (Latour, 2004) que representam a legitimidade de todo processo de reconhecimento.

    Ainda que o relatrio tcnico seja elaborado por profissionais de diferentes reas do conhecimento, indiscutvel o papel desempenhado pela antropologia, que vem sendo uma das nicas reas a desenvolver um debate acadmico sobre o processo de elaborao de relatrios tcnicos, promovendo seminrios, grupos de trabalho, encontros e publicaes sobre o tema. Neste sentido, apresentar a discusso atual sobre o papel da cincia em processos de percias envolvendo grupos tnicos, passa pela ainda pouca literatura produzida pela antropologia. No entanto, cabe ressaltar que a pesquisa as ser desenvolvida no tem como foco apenas o papel do antroplogo neste processo, mas sim do conjunto de cientistas e instituies, o que est em jogo no so os atores no sentido estrito, mas sim o produto final das relaes desses atores, o relatrio tcnico.

  • ENTRE O CIENTISTA COMO CONTADOR E O CIENTISTA COMO TRADUTOR: OS DILEMAS DA PERCIA CIENTFICA.

    Busca-se aqui sintetizar a discusso atual acerca do papel da cincia no processo de elaborao de percias envolvendo grupos tnicos. Sabendo dos riscos de polarizar qualquer tema complexo, pode-se dizer que as questes levantadas acerca do papel do cientista nesse processo oscila entre, como coloca Dos Anjos (2005), uma perspectiva crtica do cientista, esta mais prxima a noo do cientista enquanto censor, e uma perspectiva pragmtica, que colocaria o cientista na posio de tradutor das demandas do grupo. A perspectiva crtica est relacionada com a demanda e as exigncias por parte do estado, no momento em que contrata um cientista como perito, segundo Dos Anjos:

    ...no se trata apenas de um mandato tcnico, mas de uma exigncia de contribuio para institucionalizao de processos administrativos que tendem a imobilizar e fixar fronteiras fundirias que no foram necessariamente vivenciadas pelos moradores segundo o modelo cartogrfico oficial, Fica assim, particularmente exposto, no momento de definio da rea que cabe a comunidade, o carter de pesquisa instituinte que os rgos oficiais impem aquele que elabora um laudo antropolgico (Dos Anjos, 2005: 90).

    Como contraponto a esta perspectiva, o autor rene as posturas que recusam-se em separar a dimenso analtica do fazer cientfico do empreendimento nativo (Dos Anjos, 2005), buscando, atravs da percia, trazer a tona o discurso local como mais um discurso entre os tantos constituintes do momento de emergncia da demanda social.

    Ainda que a segunda postura seja quase que intrnseca ao trabalho do antroplogo, esta no se apresenta como dominante, haja vista a pluralidade de disciplinas e agentes envolvidos. A demanda jurdica de percia, como coloca Santos (1994), v na cincia um instrumento capaz de levantar provas suficientemente satisfatrias para comprovao de um determinado fato, o que refora as expectativas de um relatrio tcnico que traga evidncias sobre a existncia de um determinado grupo enquanto Remanescente de Quilombo. Se de um lado temos uma tradio disciplinar que sempre esteve engajada em demonstrar os pontos de vistas do outro atravs de seus prprios critrios, do outro temos a demanda de instituies por um trabalho que traga questes objetivas referentes a determinado territrio.

    Sob esta discusso, Oliveira Filho (1994) coloca que a elaborao desses relatrios por parte de antroplogos no corresponde s questes terica levantadas pela disciplina, o que obriga a aceitao por parte deste de certas regras e expectativas que no so formuladas no contexto das formulaes antropolgicas. O autor coloca que ao cientista social so demandados critrios semelhantes aos das

  • cincias naturais, ignorando a especificidade do objeto da antropologia. Acontece, portanto, um contraste entre as diferentes ticas, a do direito e a do antroplogo, contraste este muitas vezes irreconcilivel e que coloca em xeque principalmente os preceitos do prprio fazer antropolgico (Leite, 2005).

    Em um documento elaborado como contestao ao relatrio tcnico da Comunidade da Famlia Silva, Quilombo Urbano da cidade de Porto Alegre, os redatores questionam a posio que tomada por parte dos antroplogos e historiadores responsveis pelo relatrio, os quais explicitam que um antroplogo jamais poder escrever um relatrio prejudicial comunidade. Para os contestadores, este tipo de postura demonstra o carter tendencioso dos antroplogos, o que leva os resultados de suas percias a serem previamente a favor do grupo estudado, antes mesmo da pesquisa.

    Sem entrar nesse momento, nas questes polticas que envolvem tal embate, o fato que vm sendo constantes as contestaes aos relatrios tcnicos, o que fomenta o debate acerca dos critrios de produo e das questes ticas envolvidas. Poderia um antroplogo realizar um estudo que prejudicasse um grupo quilombola? Santos (1994) coloca que a resposta a essa pergunta no uma questo de direito, mas sim uma questo tico/moral pertinente apenas s organizaes dos profissionais envolvidos no processo de elaborao desses relatrios. Este embate remete-nos as discusses acerca do prprio fazer cientfico, principalmente quando este se apresenta em momentos de percia. Para Pacheco de Oliveira (1994) a percia se apresenta como uma outra modalidade de pesquisa, cujos critrios de validao se diferenciam dos critrios estabelecidos pela academia. A esta outra modalidade de pesquisa, Cantarino (2005) coloca que a distino est no engajamento do antroplogo em relao ao grupo estudado. Enquanto que em pesquisas acadmicas a preocupao est mais relacionada aos pares, os outros antroplogos, no trabalho pericial o interesse do pesquisador est em possibilitar dividendos simblicos e acesso a recursos pblicos (Cantarino, 2005) para os grupos estudados.

    Esta discusso pode ser interpretada luz da prpria fundao da cincia, o seu ideal de pureza, a sua separao do mundo poltico e social e o seu comprometimento com a verdade. Este o discurso da cincia que est no senso comum, a cincia enquanto um domnio autnomos dos demais, portanto apta a emitir pareceres isentos de juzos de valores. Se o discurso moderno da cincia, como coloca Latour (2004) est fundado na separao da cincia da poltica, este discurso no interessa a anlise da pesquisa cientfica. Tomar cientistas enquanto objetos de estudo mostrar, como faziam os estudos antropolgicos sob as sociedades

  • primitivas, que existe uma distncia, uma diferena, entre o que dito e o que feito. A pureza da cincia est em seu discurso e no na sua prtica. No h objetos puros, o que h so objetos purificados atravs do trabalho do cientista. 1.1 AS CONTRIBUIES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA CINCIA.

    Liderado na Frana por Bruno Latour e Michel Callon, os estudos sociais da cincia propem uma alternativa interessante para pensar a articulao entre as vises internalistas e externalistas da cincia. Latour (2001) propem que desloquemos os estudos sobre a cincia para os estudos sobre a pesquisa cientfica:

    Se a Cincia possui certeza, frieza, distanciamento, objetividade, iseno e necessidade, a Pesquisa parece apresentar todas as caractersticas opostas; ela incerta, aberta, s voltas com problemas insignificantes como dinheiro, instrumentos e know how, incapaz de distinguir at agora o quente do frio, o subjetivo do objetivo, o humano do no humano. Se a Cincia prospera agindo como se fosse desvinculada do coletivo, a pesquisa antes vista como uma experimentao coletiva daquilo que humanos e no humanos, juntos, podem suportar (Latour, 2001: 33/34).

    O estudo da cincia enquanto pesquisa permite que articulemos tanto questes relacionadas ao prprio contedo cientfico, como as questes relacionadas ao contexto de produo destes. As verdades cientficas consolidadas tendem a ser encaradas fora de seu contexto de produo, como cincia acabada. O que os estudos sociais da cincia propem que pensemos na cincia em construo, onde as caixas pretas5 ainda no foram fechadas, o que torna possvel visualizar e analisar todo o trabalho de articulao dos contedos cientficos e das relaes sociais necessrias para produo de fatos como verdades.

    A construo de um fato cientfico mobiliza uma srie de agentes e instituies, que passam despercebidos quando tomamos como anlise o produto final da cincia, os fatos. Uma sociologia da prtica cientfica busca justamente restituir, como coloca Corcuff (2001), os dispositivos atravs dos quais um fato toma forma. Ao propor a reconstituio dos dispositivos que possibilitam um fato se tornar verdade, Latour retoma o princpio da simetria proposto por David Bloor em seu programa forte de sociologia. Para Bloor, as explicaes sociolgicas ou psicolgicas geralmente so utilizadas para explicar os fracassos da cincia, ocorrendo o contrrio no caso dos empreendimentos cientficos bem sucedidos, que so explicados a partir de critrios racionais de validao. Como coloca Latour:

    At ento, a sociologia do conhecimento s explicava, atravs de uma grande quantidade de fatores sociais, os desvios em relao trajetria retilnea da razo. O erro podia ser explicado socialmente, mas a verdade

    5 Latour retira esse termo da ciberntica, onde caixas pretas so colocadas no lugar de sistemas muito

    complexos. Ou seja, esta metfora simboliza a ignorncia de todos os acontecimentos necessrios para produo de um fato, onde se toma a caixa preta como algo dado. (ver Latour, 2000)

  • continuava a ser sua prpria explicao. Era possvel analisar a crena em discos voadores, mas no o conhecimento dos buracos negros; era possvel analisar as iluses da parapsicologia, mas no o saber dos psiclogos; os erros de Spencer, mas no as certezas de Darwin. Fatores sociais do mesmo tipo no podiam ser igualmente aplicados aos dois. Nestes dois pesos, duas medidas, encontramos a antiga diviso da antropologia entre cincias impossveis de estudar e etnocincias possveis de estudar. (Latour, 1994: 92)

    Em A vida de Laboratrio6, estudo no qual Latour (1997) passou, juntamente com David Woolgar, dois anos pesquisando a produo cientfica em um laboratrio de neuroendocrinologia no estado da Califrnia, o autor aplica o principio de simetria proposto por Bloor, porm de forma crtica:

    A partir do momento em que conseguimos nos aproximar das cincias, tratando-as em detalhe, preciso desfazer-se das noes habituais da sociologia. E forjar outras noes, por mais esquisitas que elas possam parecer. A noo de simetria implica, para ns, algo mais do que para Bloor: cumpre no somente tratar nos mesmos termos os vencedores e os vencidos da histria das cincias, mas tambm tratar igualmente e nos mesmos termos a natureza e a sociedade. (Latour & Woolgar 1997: 24)

    a partir desta crtica que o autor introduz a dimenso da natureza para explicao do fazer cientfico. Explicaes apenas sociolgicas no do conta do que o trabalho do cientista, que est em constante relao com o mundo no humano, o mundo dos objetos. A este principio que insere os no humanos na anlise da cincia, Latour chama de princpio da simetria generalizada. Na figura abaixo temos um esquema criado por Latour que sistematiza as duas formas por eles consideradas assimtricas de explicao e o seu modelo proposto.

    Figura17: Princpios de explicao da realidade

    Plo Natureza Plo sujeito/sociedade

    6 Livro originalmente publicado em lngua francesa no ano de 1979.

    7 Esquema retirado de Latour (1994)

    O que verdadeiro explicado pela natureza

    O que falso explicado pela sociedade

    Explicaes

    assimtric

    as

    A natureza no explica nem o que falso, nem o que

    verdadeiro

    Tanto o que verdadeiro quanto o que falso so explicados pela

    sociedade

    Prim

    eiro

    prin

    cipio de

    simetria

  • Os quaseobjetos nada mais so do que hbridos, matrias, fatos e objetos que no esto nem no domnio da natureza nem no domnio do social, mas no processo de mediao. Para os estudos cientficos, a cincia est inserida dentro de uma constituio8 moderna, fundante da mentalidade ocidental, que tende a separar natureza e cultura. A cincia, dentro deste projeto moderno, aquela que se ocupa da natureza, em desvend-la e explic-la. Ela funciona como uma espcie de porta voz da natureza. No entanto, se fomos estudar aquilo que os cientistas fazem no seu dia a dia, veremos que temos uma proliferao dos hbridos, de matrias de interesse (matters os concern) que so purificadas e apresentadas como matrias de fato (matters os fact)9 atravs do processo de mediao cientfica.

    A idia de que cientistas em suas prticas produzem hbridos, mostra-se interessante para pensar o contexto deste projeto. A produo de relatrios de identificao demanda dos cientistas envolvidos a demonstrao factual de que certa comunidade se constitui enquanto comunidade quilombola, ao mesmo tempo em que se apresenta em um momento onde a configurao jurdica e poltica das lutas sociais acerca do tema permite a emergncia da demanda pelo trabalho cientfico. Como coloca Dos Anjos:

    Se determinados sujeitos estariam emergindo como remanescentes de quilombos, seria na medida em que o laudo se apresentaria como escrita e fato poltico que se estabelece no momento do fechamento do real. Algo humano e no-humano, jurdico e cientfico, poltico institucional e insurgente, o territrio delimitado pelo laudo seria um hbrido, nem apenas fato, nem to somente fico ou fetiche: seria um fatiche, se pudssemos aqui empregar o termo de Latour. (Dos Anjos, 2005: 91)

    A idia de fatiche, cunhada por Latour (2001) busca dar conta do processo de proliferao dos hbridos. A distino entre fatos como expresso direta do real, em contraposio ao fetiche, aspiraes e crenas do cientista aplicado a um determinado

    8 Latour define o termo como: a distribuio de seres entre os humanos e no humanos, os objetos e os

    sujeitos . Diferentemente de cultura, a constituio remete s coisas e tambm s pessoas, e ao contrrio de estrutura, ela assinala o carter voluntrio, explcito, escrito desta repartio (Latour, 2004) 9 Diferena entre o questionvel (opinio, interpretao e valores) e o inquestionvel (dados dos sentidos),

    ver Latour (2004)

    A natureza e a sociedade precisam

    ser explicadas

    A explicao parte dos quase-objetos

    Prin

    cipio de

    simetria

    generalizada

  • objeto se mostra insuficiente para pensar o processo de pesquisa. O conceito de fatiche busca romper com esta dicotomia. Segundo Latour, o pensamento modificado, alterado na interao do humano, o cientista, com os no humanos, as coisas, os objetos, ao mesmo tempo em que estas, dada essa oportunidade pelo trabalho do cientista, alteram suas trajetrias, seus destinos, suas histrias (Latour, 2001).

    O papel dos intelectuais no , ento, pegar um martelo e destruir as crenas com os fatos, ou pegar uma foice e cortar fatos com crenas (como nas caricatas tentativas construtivistas sociais), mas serem eles prprios fatiches e talvez tambm um pouquinho faceciosos ou seja, proteger a diversidade de status ontolgico contra a ameaa de sua transformao em fatos e fetiches, crenas e coisas (Latour, 2001: 332).

    Romper como uma postura realista ingnua que cr que os fatos falam por si e com uma explicao construtivista, que encara a produo cientfica como simples produo social tambm implica em repensar sobre a agncia humana, sobre a ao social. A metfora da construo leva ao questionamento sobre o sujeito construtor, ou seja, quando construmos algo, no caso aqui analisado, um territrio quilombola, quem constri esse fato? O cientista ou a coisa? Latour nos propem a seguinte resposta:

    O cientista faz o fato, mas sempre que fazemos alguma coisa ns no estamos no comando, somos ligeiramente surpreendidos pela ao: todo construtor sabe disso. Assim, o paradoxo do construtivismo que ele usa um vocabulrio de domnio que nenhum arquiteto, nenhum pedreiro, planejador urbano ou carpinteiro jamais usaria (...). Eu nunca ajo, sempre sou ligeiramente surpreendido pelo que fao. O que age por meu intermdio tambm surpreendido pelo que fao, pela possibilidade de que eu e as circunstncias ao meu redor me oferecem quilo que foi convidado, redobrado, saudado (Latour, 2001:322).

    Nesse sentido, o que os estudos cientficos propem que no h mais ao social, pelo menos no da forma como entendemos a questo do agenciamento humano. Toda ao humana mediada por objetos que reagem e se constituem tambm nessa interao. No contexto aqui pesquisado, poderamos dizer que no h um territrio a ser desvendado, assim como no h um cientista construindo e fabricando um territrio, o que h sim so eventos10, momentos onde todos os elementos constituintes de um fato ganham histria, inclusive elementos no humanos que constituem as circunstncias de emergncia de um fato (Latour, 2001). A EXISTNCIA RELATIVA DOS FATOS: AS REDES SOCIO-TCNICAS E A CONSTRUO DE UNIVERSAIS EM REDES.

    Para os estudos cientficos, a capacidade de um fato se apresentar enquanto verdade no est, como visto anteriormente, na sua capacidade de remeter a um estado de coisas, mas sim na sua capacidade de articular e de conectar uma srie de

    10 Latour utiliza esse termo elaborado por Whitehead. Um evento substitu a noo de descoberta. Ver

    WHITEHEAD, A. Process and reality: an essay in cosmology. New York: Free Press, 1978.

  • elementos pertencentes ao domnio humano e no humano. Neste sentido, a existncia das coisas remete ao processo de mediao, ao trabalho do cientista em estabelecer conexes dos diferentes domnios.

    A metfora da rede empregada pelos estudos cientficos para representar o processo de produo de fatos cientficos enquanto verdades. Callon (2000) coloca que no modelo cientfico clssico, o qual o autor qualifica como linear, as verdades cientficas (teorias, modelos, mtodos) so produzidos por especialistas e posteriormente divulgados e apropriados por no especialistas, constituindo-se como informaes de carter universal. A esse modelo Callon v um problema, pois mantm a idia de que a veracidade de algo ainda est relacionada diretamente com um estado de coisas, passveis de serem verificados por qualquer um e em qualquer lugar do mundo. Sendo assim, o que se propaga no a verdade, o conhecimento, como coloca o autor:

    O que se desloca e o que se produz no so conhecimentos, so os laboratrios, ou seja, no apenas os textos, mas tambm as competncias incorporadas nos engenheiros e nos pesquisadores, assim como os dispositivos experimentais, sem os quais os textos so desprovidos de sentido e de utilidade. A cincia s pode ser transferida replicando os prprios laboratrios, ou seja, fabricando verdadeiras redes logsticas; a cincia s circula em redes equipadas, instrumentalizadas (Callon, 2000: 68).

    Essa perspectiva da rede abre caminho par repensar a cincia enquanto um regime produtor de verdades universais. Sem cair em um relativismo ingnuo, o que se busca nos estudos cientficos demonstrar que as verdades cientficas no fazem sentido quando colocadas fora de sua rede de produo. A esse tipo de rede, Latour e Callon chamam de redes socio-tcnicas, que nada mais so do que as relaes e vnculos estabelecidas entre um conjunto de atores, humanos e no-humanos participantes do processo de produo de um fato (Callon, 2000).

    A verdade, portanto, radicalizando a proposta dos estudos cientficos uma questo de escala, depende do tamanho e da densidade da rede scio tcnica na qual foi produzida. Remetendo-se ao objeto de estudo desse projeto, poderamos dizer que para um territrio se constituir enquanto verdade necessita estender uma ampla rede que mobilize uma srie de elementos humanos como (instituies pblicas, operadores de direito, representao poltica, movimentos sociais, memria, etc..) e no humanos (mapas, acidentes geogrficos, limites municipais etc..) articulando-os e dando sentido as suas conexes ao ponto de serem reconhecidos publicamente. No h um territrio, que no aquele inserido em uma rede, quer seja uma rede local, que est presente na memria e na cultura da comunidade, quer seja a rede dos antroplogos, gegrafos, historiadores e juristas. O que passa que no pensamento

  • moderno, como coloca Latour, as redes formadas pela cincia tendem a serem encaradas como universais:

    A ampliao das redes estava interrompida at ento e forava a manuteno de territrios. Mas ao multiplicar estes seres hbridos, meio objetos, meio sujeitos, a que chamamos de mquinas e fatos, a topografia dos coletivos mudou. Como o envolvimento destes novos seres gerou efeitos extraordinrios de dimensionamento, ao provocar a variao das relaes entre o local e o global, embora continuemos a pens-las com as antigas categorias do universal e do circunstancial, temos tendncia a transformar as redes ampliadas dos ocidentais em totalidades sistemticas e globais. (Latour, 1994: 115)

    No se trata aqui de ignorar os efeitos totalizadores que a idia de universal constitudas pela modernidade gerou, mas sim, o de buscar novas causas para o seu sucesso, um novo modelo de anlise que de conta das operaes que transformam um objeto local em um conhecimento global.

    BIBLIOGRAFIA

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