saul, ana maria paulo freire e a formacao de educadores

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1 SAUL, Ana Maria (org.) Paulo Freire e a formação de educadores: múltiplos olhares. São Paulo. Editora Articulação Universidade/Escola, 2.000. A obra contém 27 artigos, escritos em sua grande maioria por alunos que participaram, em 1999, da Cátedra Paulo Freire no pós-graduação da PUC/SP, coordenada por Saul. Apresenta-se em três blocos: 7 artigos “ Discutindo os referenciais teórico-práticos de Paulo Freire”; 2 artigos “Discutindo políticas de formação” e 18 artigos “Discutindo práticas de formação docente. O texto Revisitando os referenciais teórico-práticos do pensamento de Paulo Freire (Freitas), primeiro a ser apresentado, é inédito e traz o registro do diálogo de Paulo Freire com seus alunos do pós-graduação, em 1996, na PUC/SP, respondendo ao desafio de discutir as raízes epistemológicas do seu pensamento 1 . Paulo Freire coloca uma abordagem existencialista na raiz de seu pensamento. A experiência da fome, devido ao empobrecimento de sua família, na época da crise de 1929, deixa-o sensível aos problemas da classe trabalhadora. Segundo ele: “ eu fui um pouco o menino conectivo, quer dizer, do ponto de vista de classe, eu era um menino de classe média e, do ponto de vista da fome, eu era um menino da classe trabalhadora 2 . A empatia com o trabalhador pobre, a indignação pela injustiça o remetem à leitura de Marx, sem afastá-lo de seu posicionamento profundamente cristão. Para ele, Cristo é o “grande pedagogo”. Outras leituras são feitas por Freire no processo de compreensão de mundo, sempre numa relação teórico-prática: Mounier, Sartre, Merleau Ponty, Albert Memmi, Fanon, Kosik, Gramsci, Vygotsky. Algumas idéias de Freire são apontadas, como por exemplo, a que diz respeito à “questão da rebeldia”, vista por Freire como um saber indispensável para o profess or. A rebeldia exige, por parte dos que se rebelam, “ uma práxis fundada na leitura de mundo associada a uma leitura reflexiva daqueles que, de forma politicamente competente, apontam caminhos norteadores para essa ação3 . Cultura e consciência são categorias-chave na construção teórico-prática freireana. Na compreensão da categoria “cultura”, Freire, discordando dos que falavam que a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica ocorria mecanicamente com a mudança das condições econômicas, afirma que apenas a passagem da consciência semi-intransitiva para a consciência transitiva ingênua é automática, mas a passagem dessa última para a consciência transitiva crítica é ideológica, política e pedagógica. Logo, demanda intencionalidade por parte do educador que, ao discutir o mundo da cultura, possibilita o levantamento de questões como por exemplo: “ como é o mundo que fazemos, o mundo que não fizemos, se é possível mudar o mundo que não fizemos, por que não é possível mudar o mundo que fizemos?4 Nessa relação dialógica, a linguagem e o conhecimento do educando são profundamente respeitados. Freire discute também o conhecimento ingênuo e o conhecimentos científico, dizendo que sua diferença implica em superação e não em ruptura. 1 P. 10 2 p. 12 3 p.14 4 p. 16

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SAUL, Ana Maria (org.) Paulo Freire e a formação de educadores: múltiplos olhares.

São Paulo. Editora Articulação Universidade/Escola, 2.000.

A obra contém 27 artigos, escritos em sua grande maioria por alunos que participaram, em 1999, da Cátedra Paulo Freire no pós-graduação da PUC/SP, coordenada por Saul. Apresenta-se em três blocos: 7 artigos “Discutindo os referenciais teórico-práticos de Paulo Freire”; 2 artigos “Discutindo políticas de formação” e 18 artigos “Discutindo práticas de formação docente”.

O texto Revisitando os referenciais teórico-práticos do pensamento de Paulo Freire (Freitas), primeiro a ser apresentado, é inédito e traz o registro do diálogo de Paulo Freire com seus alunos do pós-graduação, em 1996, na PUC/SP, respondendo ao desafio de discutir as raízes epistemológicas do seu pensamento1.

Paulo Freire coloca uma abordagem existencialista na raiz de seu pensamento. A experiência da fome, devido ao empobrecimento de sua família, na época da crise de 1929, deixa-o sensível aos problemas da classe trabalhadora. Segundo ele: “eu fui um pouco o menino conectivo, quer dizer, do ponto de vista de classe, eu era um menino de classe média e, do ponto de vista da fome, eu era um menino da classe trabalhadora”2. A empatia com o trabalhador pobre, a indignação pela injustiça o remetem à leitura de Marx, sem afastá-lo de seu posicionamento profundamente cristão. Para ele, Cristo é o “grande pedagogo”. Outras leituras são feitas por Freire no processo de compreensão de mundo, sempre numa relação teórico-prática: Mounier, Sartre, Merleau Ponty, Albert Memmi, Fanon, Kosik, Gramsci, Vygotsky.

Algumas idéias de Freire são apontadas, como por exemplo, a que diz respeito à “questão da rebeldia”, vista por Freire como um saber indispensável para o professor. A rebeldia exige, por parte dos que se rebelam, “uma práxis fundada na leitura de mundo associada a uma leitura reflexiva daqueles que, de forma politicamente competente, apontam caminhos norteadores para essa ação”3.

Cultura e consciência são categorias-chave na construção teórico-prática freireana. Na compreensão da categoria “cultura”, Freire, discordando dos que falavam que a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica ocorria mecanicamente com a mudança das condições econômicas, afirma que apenas a passagem da consciência semi-intransitiva para a consciência transitiva ingênua é automática, mas a passagem dessa última para a consciência transitiva crítica é ideológica, política e pedagógica. Logo, demanda intencionalidade por parte do educador que, ao discutir o mundo da cultura, possibilita o levantamento de questões como por exemplo: “como é o mundo que fazemos, o mundo que não fizemos, se é possível mudar o mundo que não fizemos, por que não é possível mudar o mundo que fizemos?”4 Nessa relação dialógica, a linguagem e o conhecimento do educando são profundamente respeitados.

Freire discute também o conhecimento ingênuo e o conhecimentos científico, dizendo que sua diferença implica em superação e não em ruptura.

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Em relação às filosofias, o pensador vai afirmar que as filosofias pessimistas, que pregam uma imobilização da história, mantêm a opressão e não ajudam o ser humano a “ser mais”, a “humanizar-se”. Entre essas filosofias, coloca o neoliberalismo. Pelo mesmo motivo critica também o marxismo distorcido, mecanicista, dizendo que a filosofia que ajuda “é exatamente aquela que, negando a reflexão que se restringe a classes sociais, descobre que no mundo atual há, também, outros possíveis e prováveis sujeitos históricos que não estão contidos na classificação de Marx”5.

Finalmente, a respeito da pós-modernidade, Paulo Freire não a vê como um momento desligado do que aconteceu anteriormente, mas que o incorpora e supera e, nesse sentido, enquanto a modernidade exacerbou a validade do conhecimento científico, colocando-o como objetivo primeiro, a pós-modernidade é mais humilde e prudente.

O autor do artigo conclui, colocando várias correntes filosóficas como referências do pensamento de Freire: “fenomenologia, existencialismo, personalismo cristão, marxismo humanista e hegeliano”6 e acrescenta que “seu enfoque ultrapassa os limites do perfil de cada uma destas correntes”7.

Monteiro, a autora do artigo seguinte: Autoformação para ser mais: processo de humanização e de constituição da identidade, toma por base Pineau e Marie-Michéle

definindo “autoformação como formação contínua”8. Essa pode ocorrer nas mais diversas situações, em grupo ou individualmente, tendo como condição necessária que a(s) pessoa(s) disponha(m) do “poder de pensar e gerir sua própria formação, [tornando-se] sujeito e objeto do seu próprio desenvolvimento intelectual, afetivo, político, histórico, ético e moral”9. Esse conceito é correlacionado com a perspectiva freireana sobre “construção e reconstrução da identidade pessoal e profissional do/a educador/a”10, sempre no sentido de “ser mais”.

Embora a autoformação possa ser vista como formação contínua, nem todo processo de formação contínua no trabalho com professores/as é autoformação, uma vez que as escolhas envolvidas nesse processo muitas vezes não são feitas por eles/elas., mas vêm “de cima para baixo”.

Monteiro aponta diversos momentos em que os educadores estariam se autoformando:

ao realizar leituras, refletindo sobre sua prática, num diálogo interno que possibilita ampliar e aprofundar a compreensão sobre o seu fazer pedagógico;

ao participar de eventos de educação, perguntando, refletindo, relatando sua prática enfim, dialogando com outros educadores;

ao dialogar com os alunos/as, buscando em conjunto, superar as dificuldades encontradas no processo educativo;

ao demonstrar gestos de “solicitude, de solidariedade, de compaixão, de respeito, de consideração”11, testemunhando a teoria na prática cotidiana;

ao reconhecer nos colegas de trabalho, ou nos educando a “justa raiva” pelas distorções/injustiças percebidas no sistema e trabalhar junto com eles/elas para que essa se transforme em força construtiva e não “raivosidade”;

5 p. 19 6p. 21 7 Idem. 8 p. 23 9 p. 23.

10 p. 22 11 p.24

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ao buscar, em “narrativas de vida pessoal e profissional”, compreender o que foi, o que é e o que projeta ser, pessoal e profissionalmente.

Todas essas percepções encontram-se nas obras de Freire, na importância dada à dialogicidade, no exercício permanente de “ser mais”.

A discussão de temas atuais, como: globalização, multiculturalismo, subjetividade, pós-modernidade. é também ponto importante para a formação de uma visão crítica sobre o mundo em que se vive. Freire argumenta que para “ser mais” é preciso o estabelecimento de uma “unidade dialética entre consciência-mundo, pensamento-existência, objetividade-subjetividade”12.

A autora conclui enfatizando que “as experiências , os contextos, acontecimentos que acompanham a nossa trajetória de vida vão sempre nos construir e reconstruir como seres humanos e é importante que as identidades pessoais e profissionais dos/as educadores/as os tornem mais conscientes, mais lutadores, mais humanos para abraçar um projeto de vida para todos os seres humanos”13.

O artigo O ato de perguntar na Pedagogia Freireana (Oliveira), com base no livro “Por uma Pedagogia da Pergunta”, de Freire e Faundez14, aborda o que é e qual a importância da Pedagogia da Pergunta na formação do educador. Parte de considerações acerca da “pergunta como categoria pedagógica” que, ao possibilitar o desenvolvimento da atitude crítica, dá condições para que a educação se faça de maneira transformadora, no sentido de ser um processo de desalienação e libertação.

O ser humano é um ser inconcluso, um ser de busca e a educação pode ser vista como esse processo de busca de conhecimento, a qual não se faz solitariamente, mas na comunhão com os outros seres humanos. Freire vai falar sobre o ser humano como “”ser de relações” (plural, reflexivo, transcendente, temporal e conseqüente), cuja relação dialética “homem-mundo”, possibilita a sua característica existencial de “sujeito” do conhecimento, da história e da cultura”15.

O ser humano é um ser cultural, que se constrói ao produzir a cultura. A alienação do fazer cultural leva à desumanização do ser humano, que deixa de ser sujeito e passa a objeto do fazer de outrem. Nesse sentido, a luta pela humanização é uma luta pela desalienação e uma pedagogia humanizante será uma pedagogia do oprimido, que devolva ao ser humano a capacidade, o desejo de perguntar, de se admirar frente ao mundo, a percepção de que é o sujeito de seu destino. A Pedagogia da Pergunta, opõe-se à Pedagogia da Resposta, pois essa última, mata a curiosidade do indivíduo, vendo o ato de ensinar como transferência de conhecimento.

Segundo Freire e Faundez, o ato de perguntar comporta três dimensões: existencial, porque faz parte do “existir humano”; metodológico, por tratar-se de “um procedimento de investigação do conhecimento” e o político, “porque perguntar é um ato democrático”, capaz de eliciar a crítica, o compartilhar de idéias, de soluções, de novas buscas, possibilitando a construção de uma “concepção crítica da realidade social”. Nesse sentido, a tarefa magna do educador é “ensinar a questionar, a problematizar”.

12 p. 27 13 p.35 14

FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

15 p. 38-39

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Em “Dimensões do conceito de formação em Paulo Freire”, Almeida parte de uma perspectiva de consideração dialética do pensamento freireano para apontar três dimensões do conceito de formação:

Freire afirma que a linguagem não pode ser ensinada, mas é socialmente criada. Em sua teoria, o diálogo é a categoria principal sobre a qual tudo o mais é construído. A primeira dimensão levantada pela autora é o “papel pedagógico da oralidade”.

A outra dimensão no conceito de formação é “a função do professor”, a qual é ensinar o aluno a aprender, ou seja criar possibilidade para a construção do conhecimento, o que implica no exercício de profundo respeito pelo educando; convívio e aceitação das diferenças; a horizontalidade na relação professor(a) – aluno(a) e a coerência da prática pedagógica com a teoria.

A terceira dimensão é a exeqüibilidade da esperança no cotidiano docente. Quando Freire foi Secretário da Educação da cidade de São Paulo colocou em prática os postulados, base de sua “concepção de administração da coisa pública”. Desses postulados, a autora ressalta: a “estimulação à autonomia” e a “concepção de formação permanente”.

O artigo “O educador frente ao conflito dos saberes do aluno e os saberes escolares” (Pinto) parte da análise das categorias: o saber do aluno, isto é, o conhecimento que o educando já tem construído sobre o mundo; a cultura escolar, que possui características singulares em virtude de se fazer em uma instituição social, que possui normas, papéis, rotinas típicos e a cultura da escola, que é “a identidade de cada escola”. Na superação dos conflitos decorrentes do encontro desses saberes, a autora ressalta a importância da dialogicidade.

“Desvelando o conceito de autonomia de Paulo Freire na prática de educadores sociais de rua” (Mesquita) é um convite à reflexão e à busca de alternativas para os

desafios colocados no processo de desenvolvimento de uma pedagogia que se volta para a prática histórica real, que possibilite ao homem tornar-se sujeito de sua própria história.

A autora parte do relato de sua experiência como educadora de crianças e adolescentes que viviam em uma favela, sob condições extremamente precárias. Seu olhar amplia-se para outros excluídos da sociedade e a problemática enfrentada pelos educadores sociais de rua, levando-a ao mestrado na PUC em busca de melhor compreender os desafios e alternativas que “o educador social de rua encontra como agente facilitador no processo de construção da autonomia dos meninos e meninas em situação de rua”16.

„Autonomia‟ é um potencial que existe no ser humano, mas deve ser conquistado. É a capacidade de se autogovernar, com consciência e responsabilidade. A autonomia não pertence apenas ao campo do pensamento, mas se faz no mundo, traduzindo-se no exercício da cidadania – possibilidade de participar e usufruir das conquistas sociais. Para poder optar pelo exercício da cidadania, o indivíduo precisa ter oportunidades para experienciar o fazer escolhas, precisa conhecer seus direitos, e mais ainda, precisa reconhecer-se como “sujeito de direitos”.

Como crianças e adolescentes que vivem em situação precária podem construir sua autonomia, como reconhecer-se como “sujeito de direitos”, se a elas tudo é negado?

A autora critica as políticas públicas pelo que têm-se mostrado desastrosas para essa grande parte da população e o sistema educacional que tem ajudado no processo de exclusão, garantindo as diferenças individuais. Para ela “Garantir direitos de crianças e adolescentes, hoje, significa uma opção pela destruição do modelo econômico-político-

16 p. 77

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social existente e para isso é indispensável entender a educação como um dos instrumentos de intervenção social”17. A Escola deve atrair e exercer sua função de ensinar com qualidade e preparar a todos para o exercício da cidadania.

Nas suas obras, Freire vai falar no processo de humanização, como vocação do homem e a idéia de autonomia vincula-se a ela, como “uma eterna busca de ser e estar no mundo”. A Educação, que não se separa de conscientização é o ponto de partida para milhões de oprimidos no alcance de sua autonomia.

A postura do educador, democrático ou autoritário, depende de sua visão de mundo, levando-o a uma prática que denuncia ou apóia o modelo político-econômico-social. Finalizando, Mesquita levanta algumas questões para reflexão e conclui citando Freire: “... não há esperança da justiça social por isso; só na luta se espera com esperança”18.

O último artigo do bloco que discute os referenciais teórico-práticos de Paulo Freire versa sobre “A ação educativa em Paulo Freire: um misto de encantamento e transformação”. A autora, Denise Aparecida Campos, discorre sobre o papel político do professor, colocando a escola como local onde a atuação contra-hegemônica do educador pode ser concretizada. Chama a atenção para um tema presente nas obras de Freire: a crença na educação. Em contrapartida, o desencantamento, quanto à importância da ação educativa, é delatado como uma estratégia política conservadora.

A crença na educação, o sentimento de esperança não deve ser entendido como uma posição ingênua, um cruzar de braços, esperando por um final feliz.. Pelo contrário, é o engajamento num sonho, de maneira consciente, crítica. Para Freire, o bom professor tem clareza política, conhece a história de seu povo, de seu país, além de “ter competência científica, ,conhecimento de metodologias e domínio de conteúdo”, tudo isso empregado numa relação de profundo respeito pelo educando.

A utopia é, portanto, perpassada por três tempos: o passado de onde é resgatada a história, o presente, denunciado em suas injustiças, desequilíbrios e o futuro para o qual dirigem-se os projetos.

O educador, ao trabalhar com sua turma no sentido de uma Pedagogia da Autonomia, faz de sua sala de aula um local de encontros, discussão de idéias, diálogo constante, pois interação e cooperação são “elementos imprescindíveis para que os sujeitos cresçam da diferença”19. Esses elementos devem estar presentes na formação do(a) professor(a) que se faz em grupo. Segundo Freire: “o educador pertence a um grupo e é pertencido por ele”20.

A autora fecha o artigo dizendo que Paulo Freire revolucionou a História, colocando “o motor da utopia” e revolucionou a Educação, ao apontá-la como “prática libertadora”. Lições que buscam “compreender e explicar a complexidade do ato de ensinar: uma curiosa combinação entre amorosidade e revolução”21.

Dois artigos discutem políticas de formação. O primeiro deles, “A formação dos educadores e da cidadania cultural em Diadema: um modo paulofreireano de fazer!” (Arelaro) inicia com considerações críticas dirigidas ao Cursos Normal Superior e Instituto Superior de Educação, pela ênfase que colocam nos aspectos práticos da formação do educador em detrimento dos teóricos. A autora relata alguns dados sobre o local no qual

17 p. 80 18 p. 87 19

p.94 20 p. 93 21 p. 96

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ocorreu a experiência e como se deu a construção do projeto político pedagógico, em Diadema, município da Grande São Paulo.

Sua descrição é permeada por colocações de idéias de Paulo Freire, dentre as quais o alerta sobre o equívoco em que muitas vezes se incorre, ao acreditar que a prática, por si só, pode responder por toda a complexidade do ato pedagógico.

A prática é social e histórica, acontece em um determinado tempo e espaço, isto é, é contextualizada. A prática humanizadora não parte apenas de uma vontade individual, de um idealismo, pois não se dá no mundo das idéias e também não pode ser espontaneista, pois não pode negar o intelectual, que organiza espaços. Essa compreensão encaminha para a construção coletiva da proposta pedagógica e foi assim que se deu em Diadema.

Arelaro relaciona dez pressupostos pedagógicos que orientaram a busca pela qualidade de ensino nas escolas do município:

1. A possibilidade de oferecer aos educandos(as) uma escola prazerosa, que se constituísse em Centro Cultural.

2. Conhecimento entendido como permanente processo de construção pelo sujeito, resultado das interações estabelecidas com o meio físico e social.

3. Estímulo a múltiplas linguagens e à convivência das diferenças (de raça, idades, gênero, potencialidades).

4. Aprofundamento da “capacidade do ser humano de produzir e viver em um mundo de relações sociais”.

5. A escola vista como local no qual “se aprende a pensar”.

6. A escola voltada para o “conhecimento de uma realidade múltipla”, superando fragmentação e hierarquização dos saberes.

7. Um local que compreenda e apoie o(a) professor(a) para assumir o seu papel de mediador entre o sujeito e o conhecimento.

8. Uma proposta educacional que responda “para que serve” e “a quem serve”.

9. Superação das formas burocráticas do fazer, que envolve o “planejamento, organização, tomada de decisões e avaliação”.

10. “Entendimento da educação como ato político”, cujo objetivo é a “emancipação dos seres humanos”.

No artigo são ainda relatados outros momentos do Projeto de Formação Permanente do Professor.

O artigo seguinte “Paulo Freire e a política Nacional de Formação da CUT” (Gomes), após um relato sobre a história de criação da Central Única dos Trabalhadores, com sua preocupação e ação na educação de trabalhadores, vai apontar a contribuição de Paulo Freire para a concepção político-pedagógica da Política Nacional de Formação (PNF), que é atualmente uma das mais estruturadas políticas da CUT tendo-se tornado referência no meio sindical em várias partes do mundo.

São comentadas as idéias de Freire que dizem respeito a: Formação integral; Respeito pelo saber do educando; Construção coletiva do conhecimento; Inacabamento do ser humano e Relação entre teoria e prática.

Abrindo o bloco que vai discutir as práticas de formação docente tem-se o artigo “A prática pedagógica na universidade com base na Pedagogia Freireana: relato de uma experiência”.

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Em um primeiro momento são apresentados princípios da Pedagogia Freireana, que segundo a autora, “circula entre objetividade-subjetividade; a dimensão individual-social; a teoria-prática”22. A trajetória de Paulo Freire já traz os princípios de sua proposta no que aponta para o ouvir-falar, indagar-discutir sobre a realidade social, o enfoque político colocado na educação, a coerência entre discurso político e prática pedagógica

A atitude relacional indicando aproximação, articulação, unidade é um dos elementos fundantes da teoria de Paulo Freire. Relação entendida como “ir de par com”, compreensão de diferentes que se aproximam. “Relação”, em Paulo Freire é uma categoria de análise e uma atitude, sendo também uma categoria síntese, ao reunir princípios básicos da educação problematizadora e dos processos metodológicos que permitem uma prática de ensino crítica e criativa.

O artigo descreve práticas construídas com e a partir dos princípios freireanos, tanto em cursos de graduação, como de pós-graduação, culminando com a criação do Centro Paulo Freire, junto à Universidade Federal de Pernambuco.

O texto “Experiências de alfabetização de adultos em Moçambique: a proposta freireana” (Ivala) relata experiências de trabalho que aconteceram em Nampula, norte de Moçambique. Parte de uma contextualização do local de que se fala e descreve os vários momentos de formação do educador e construção da proposta pedagógica, frente às várias etapas do movimento revolucionário e pós-revolucionário, as dificuldades e limitações deparadas.

“A educação no meio rural na Amazônia: a dialética opressão x libertação em Paulo Freire” (Moreira), que aborda o cotidiano das professoras da áreas ribeirinhas e terrestres da zona rural, enfoca a proposta de Paulo Freire como alternativa para superar desafios inerentes a uma situação educacional de fronteira”23.

A autora ressalta na proposta de Freire três pontos que vão ajudar professores e alunos a superar os desafios de viver o processo educacional de maneira libertadora: a necessidade da radicalidade pedagógica; a concepção de História como possibilidade e a necessidade de rever o papel do professor.

A radicalidade pedagógica leva à conscientização, por meio da problematização. Ela obriga o educador a acolher os saberes do aluno e, junto com ele reorganizá-los, ampliando a percepção da realidade.

O segundo ponto, a história como possibilidade é a percepção que somos “condicionados e não determinados”. A Educação, como ação interventora, apesar de não ser um fator que sozinho possa mudar o mundo, tem um caráter fundamental na reinvenção do mundo.

Finalmente, a formação permanente dos educadores é um fator condicionante para a qualidade da educação.

Em “Mudando a prática pedagógica em Moçambique: a contribuição de Paulo Freire”, Jó António Capece faz uma crítica à prática pedagógica vigente em Moçambique no que diz respeito ao formalismo e autoritarismo que a marcam, herdados do período colonial. A seguir, declarando o seu propósito de resgatar “a riqueza cultural e pré-científica existente nas comunidades” levanta pontos de reflexão para novas abordagens

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na formação de professores e construção de um currículo com perspectivas políticas e emancipatórias.

Apoia-se nas idéias de Paulo Freire sobre o papel político da escola que é tida como um território de luta, no sentido em que ela pode ampliar as capacidades dos que nela transitam para intervir na formação de suas subjetividades, perceber-se capaz de exercer poder e, ainda na escola, desenvolver conhecimento para usar esse poder no sentido de mudar as condições materiais e as condições ideológicas de dominação, fortalecendo o poder social.

Questões como resgate e valorização da cultura local, formação contínua dos professores são abordadas.

O artigo seguinte “Educação bancária na formação de professores primários em Moçambique – passado e presente” (Bonnet) analisa a prática da formação de professores primário em Moçambique, desde o período colonial até o momento.

O ensino primário era dado de duas maneiras: uma para os “indígenas” - um ensino rudimentar, dirigido pela Igreja Católica, marcado pela discriminação racial e outro ensino era para os “civilizados”, um ensino primário comum.

O professor que ensinava nas escolas dos “indígenas” fazia um curso de habilitação nas missões católicas, em regime de internato, aprendendo além das disciplinas regulamentares: “prática agrícola, canto coral, educação física, higiene, educação moral e cristã”24.

O período colonial é marcado por uma educação bancária, na qual o professor fala, despeja seu conhecimento e o aluno ouve e o reproduz. Esse fazer se dava tanto nos cursos de habilitação de professores, como nas escolas para as crianças. O autoritarismo, atitude comum aos professores, reproduz as relações coloniais. Esse ensino traz como frutos o número mínimo de estudantes negros em curso de ensino médio e superior.

O artigo prossegue colocando os esforços do Governo moçambicano pós-independência o qual, no entanto, não levaram a resultados positivos, uma vez que não houve mudança na postura professoral. Conclui dizendo que, tal como no passado, a educação continuava com seu cunho “bancário”, causando a exclusão.

Em “A formação docente e a cultura caipira: abrindo a porteira”, Judas Tadeu de Campos conta um “causo” ocorrido em uma escola rural no município de São Luís do Paraitinga, Vale do Paraíba, São Paulo e segue fazendo considerações a respeito de aspectos de uma pedagogia libertadora, alguns dos quais encontrados na prática da professora, personagem de seu relato, e ausentes na prática dos cursos oficiais de formação de professores.

“Narrativas (auto)biográficas de formação e as matrizes pedagógicas de Paulo Freire”, texto de Roberto Luiz Machado faz um relato de situações no contexto escolar, vividas pelo autor e, a partir daí, levanta e comenta algumas matrizes pedagógicas freireanas: diálogo e confiança; leitura de mundo; postura humanizadora.

“Uma experiência de formação docente na gestão Paulo Freire” (Borges) versa sobre a experiência vivida pela autora, como professora da rede municipal de São Paulo, durante a gestão de Paulo Freire, frente à Secretaria de Educação. A partir daí, duas

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idéias são desenvolvidas: a formação passa pelo pensar crítico sobre a própria vida e a formação envolve pré-disposição para que esse pensar se realize.

No artigo “Trabalhando a Pedagogia da Autonomia em uma Oficina de Internet”, os

autores Guiot e Arnt expõem seu percurso na programação e realização de uma oficina para uso de Internet para professores de uma escola pública da rede municipal da cidade de São Paulo.

“Transformações pessoais e profissionais: influência da Pedagogia de Paulo Freire” é um artigo, no qual Ana L. M. Carneiro, coordenadora pedagógica, com formação

em História, relata como a descoberta da categoria “diálogo” nas leituras de Paulo Freire penetrou em sua prática, dando-lhe um novo olhar sobre as relações professores/alunos.

Cecília N. Martins, autora de “Aprendendo para ensinar, ensinando para aprender: repensando a formação de professores”, parte de sua experiência como professora universitária e, direcionando o pensamento para a relação dialética das categorias ensinar e aprender, discute a formação do professor.

Em “A pedagogia do oprimido e o ensino de História”, José Mauro M. Fernandes discute a prática pedagógica de professores/as de História no momento em que se faz requalificação dos currículos através dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Aborda criticamente concepções liberais de educação, encontradas tanto na educação tradicional, como no escolanovismo, tendo em vista “a dimensão ideológica presente na qualidade de ensino”25 e a ótica emancipatória possibilitada pelas leituras das obras de Paulo Freire.

“A sala de aula: um espaço para a construção do professor libertador” (Rios) discorre sobre o exercício do diálogo que pode ocorrer na sala de aula e que é o centro da educação libertadora. Comenta formas e conceitos abordados na prática de professora do ensino superior, que dirigidos para desencadear a participação de alunos no processo dialógico, ao mesmo tempo constróem a professora libertadora.

“Contribuições de Paulo Freire na formação de professores da educação especial em busca da autonomia dos educandos” (Nardi) analisa o trabalho de formação em serviço de professores na linguagem de programação LOGO, realizado na Associação de Assistência à Criança Defeituosa, sob a ótica dos conceitos freireanos.

“O papel político-pedagógico do professor” (Santos) toca na “função social da ação docente”, considerando a constante tensão entre o seu discurso inovador e as práticas que o contrariam, tendo por base leituras e análises de obras de Freire, bem como a história da autora como educadora.

“Um olhar semiótico sobre Paulo Freire”, artigo de Vera Maria P. M. Gozzo apresenta uma relação entre a o estudo de alguns aspectos da semiótica peirceana e a proposta freireana.

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“Uma experiência de formação de professores: aportes Freireanos” (Pinto) é o relato e (re)leitura de uma experiência, realizada em Belém do Pará, em 1994, em uma escola pública municipal, cuja maioria dos professores eram leigos.

O último artigo, “Desencontros entre discurso e prática na escola: a contribuição de Paulo Freire” (Souza) faz a descrição e análise do “desenvolvimento de uma pesquisa

participante em currículo, com vistas à implementação do projeto pedagógico em escolas públicas municipais de Três Lagoas”, MS.