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Saúde e Indústria Farmacêutica em Debate

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© 2008 Meios comunicação Ltda.© 2008 Febrafarma - Federação Brasileira da Indústria

Projeto editorialmeios Future, unidade de estudos e pesquisas da meios ComunicaçãoDiretor de estudos André ResendeCoordenação de estudos Paula SantanaRevisão Vivianne Santos e Inara Gomes

Projeto gráfico Meios ComunicaçãoCapa e miolo Deiverson RibeiroFotografia da capa Niels Rameckers

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

per – bpe 08- 0209

2008Todos os direitos desta edição reservados à cubzac Editora. Rua Fiandeiras, 929, Cj 23, Vl. Olímpia. 04545-006 São Paulo - [email protected]

Nota Esta edição contou com atenção, cuidades e técnica. Contudo, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Caso o leitor perceba alguma imprecisão, por favor, escreva para [email protected]. A editora e os autores não assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desse livro, sem autoriza-ção prévia por escrito da editora , poderá ser reproduzida ou transmitida seja quais forem os meios empregados: eletrênicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Saúde e indústria farmacêutica em debate / Carlos Augusto Gadelha ... [et al.]; Federa-ção Brasileira da Indústria Farmacêutica. – São Paulo: Cubzac, 2008.217 p.Inclui referências

1. saúde pública – brasil – aspectos sociais. 2. saúde pública – brasil – aspectos eco-nômicos. 3. sistema único de saúde – brasil. 4. família – saúde e higiene. 5. indús-tria farmacêutica – brasil – aspectos sociais. 6. assistência social – brasil. 7. polí-ticas públicas. 8. estado e indivíduo. 9. medicamentos – brasil – aspectos sociais. 10. política de saúde – brasil. 11. propriedade intelectual – brasil – constituição. i. Gadelha, Carlos Augusto Grabois-. ii. Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica.

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Saúde e Indústria Farmacêutica em Debate

Carlos Augusto Grabois GadelhaClaudio Monteiro ConsideraFelipe Ohana Gonzalo Vecina Neto Jacob FrenkelMarcos Bosi FerrazMário Ramos Ribeiro Moisés GoldbaumPaulo KramerRoger Stiefelmann Leal Samuel de Abreu Pessoa

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Sumário

Apresentação: Novo paradigmaCiro Mortella

Algumas reflexões sobre a indústria farmacêutica, o sistema de saúde e o acesso a medicamentos no Brasil 9Gonzalo Vecina Neto

Saúde: direito de todos, dever do Estado e parte de um novo modelo de desenvolvimento 21Carlos Augusto Grabois Gadelha

Reforma Sanitária e a Perspectiva Econômica 29Felipe Ohana

Intelectuais, anticapitalismo e antiliberalismo: o caso da Reforma Sanitária no Brasil 67Paulo Kramer

Programas de acesso aos medicamentos: ações diretas do governo e/ou mecanismos de mercado 127Jacob Frenkel

Patentes na indústria farmacêutica 147Samuel de Abreu Pessôa, Claudio Monteiro Considera e Mário Ramos Ribeiro

A Reforma Sanitária, Assistência Farmacêutica e o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde 185Moisés Goldbaum

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A proteção à saúde na Constituição de 1988: a problemática do regime constitucional aplicável às políticas de saúde pública no Brasil 197Roger Stiefelmann Leal

Retomada da Reforma Sanitária para a formulação de políticas públicas 219Marcos Bosi Ferraz

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Apresentação

Novo paradigma

Passados 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, que estabele-ceu as bases institucionais e orçamentárias para o sistema sanitário vigente, estruturado em torno do Sistema Único de Saúde (sus), já há o distan-ciamento necessário para que se faça uma reflexão profunda e serena a respeito dos objetivos, fundamentos teóricos e dos avanços e obstáculos dessa empreitada, fruto da ampla mobilização de pessoas e entidades com-prometidas com a ampliação do acesso à saúde pela população brasileira.

A construção de uma rede de saúde universal, descentralizada, inte-gral e de qualidade continua sendo um grande desafio, embora muitas metas importantes tenham sido alcançadas.

Levando-se em consideração o fato de que cerca de 45 milhões bra-sileiros recorrem hoje ao Sistema de Saúde Suplementar, o que indica a incapacidade do atual modelo de atender ao conjunto da população, cabe repensar, de início, os papéis atribuídos ao Estado e às empresas e instituições públicas e privadas na gestão e operação do sistema.

A questão da receita e do financiamento é outro ponto que precisa ser reavaliado. De um lado, é fundamental definir e equacionar definitiva-mente as fontes de verbas para a saúde. De outro, há uma dispersão de recursos, pois empresas e cidadãos pagam em dobro pela assistência à saú-de: ao governo (por meio dos impostos) e às empresas de seguro-saúde.

E não se pode falar de fontes de financiamento sem abordar o aspec-to fiscal, que também carece de melhor direcionamento. A alta taxação que incide sobre os medicamentos, por exemplo, é um aspecto contra-ditório de um sistema tributário que concede benefícios a setores e pro-dutos estratégicos para a economia e a sociedade, mas, estranhamente, não contempla um bem tido como essencial.

Enquadra-se na mesma categoria a regulação econômica, que se propõe a ampliar o acesso aos medicamentos, por meio do controle de preços, sem consegui-lo, e se constitui efetivamente num fator de

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desestímulo e incertezas para um setor intensivo em investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento (vale dizer, em capital de alto risco), que requer regras claras e estáveis.

Nesse contexto, os programas de fomento setorial abriram algumas janelas de oportunidade, mas não conseguiram alavancar a produção e o acesso aos medicamentos, por meio da ampliação da oferta e do barateamento de produtos, em parte por falta de articulação e coerência entre medidas voltadas para instituições públicas e o setor privado.

Políticas para a área pública (sus e laboratórios oficiais) precisam estar articuladas com o setor privado, para que uma área não concorra com a outra. Um enquadramento estratégico é condição indispensável para a existência de um complexo produtivo da saúde sólido, moderno e eficiente, que atenda às necessidades da população e alargue as frontei-ras tecnológicas e econômicas do país.

A assistência à saúde – e a assistência farmacêutica como um de seus instrumentos relevantes – requer uma sintonia fina entre atores e ações, além de políticas adequadas. É esse requisito que explica porque o mero aumento de verbas para a compra de medicamentos no marco do sus não ampliou o acesso.

Se a pedra de toque da complexa montagem de um sistema de saúde pudesse ser resumida numa única palavra, esta seria gestão. Uma gestão comprometida, sim, com o social, com a oferta de serviços de saúde a toda a população, seja qual for sua posição na pirâmide social e de ren-da, região, idade ou gênero.

Mas a principal conquista a ser alcançada talvez seja o abandono dos dogmas, das visões reducionistas e idiossincráticas. A experiência acumulada, ao longo da segunda metade do século passado, pelas na-ções que estabeleceram sistemas de saúde exemplares, demonstra que modelos gerados por teses romântico-ideológicas do fim do século xix e início do século xx simplesmente não funcionam. São idéias bonitas, mas inviáveis. Alguns conceitos que inspiraram o sus têm raízes nessa matriz anacrônica. O sonho de construir no Brasil um sistema sanitário universal, integral e de qualidade está vivo. A tarefa que se apresenta é a de descobrir e desenvolver um novo paradigma.

Ciro Mortella

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Algumas reflexões sobre a indústria farmacêutica, o sistema de saúde e o acesso a medicamentos no BrasilGonzalo Vecina Neto*

A assistência à saúde no Brasil hoje

Muito rapidamente pode-se dizer que o sistema de saúde público do país caracterizou-se nestes últimos 17 anos por buscar sair de um modelo hospitalocêntrico, baseado no atendimento à doença e muito centrali-zado, para um modelo descentralizado (com base nos municípios), com um projeto de atenção integral (vertical – complexidade e horizontal – durante todo o ciclo do processo saúde doença), universal e guiado pela necessidade de construir inclusão social.

Naturalmente, podem-se festejar muitos sucessos como as coberturas do Programa Ampliado de Imunizações, o Programa da Aids, dos Trans-plantes, dos Genéricos, do Programa da Saúde da Família, etc. Porém, também existem muitos desafios a enfrentar – as filas (todos os países com sistemas de saúde modernos têm filas, a diferença é a equidade, ou seja, as filas são para todos), o financiamento, o acesso a medicamentos, a efi-ciência gerencial, etc. O sus é responsável pelo atendimento de cerca de 80% da população e, em relação às ações de alta complexidade, embora este não seja adequadamente medido, é responsável por mais de 95% do cuidado (veja-se a área de hemodiálise, transplantes, dispensação de medi-camentos de alto custo, atendimento a portadores do vírus da aids, etc.).

Paralelamente, no setor privado, o principal problema é a falta de visão no tocante à integralidade da ação, tanto em relação à construção de escalas econômicas quanto em relação a gerenciar a sinistralidade. Em outras palavras, o setor privado não tem conseguido construir siner-

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gias através da montagem de redes hierarquizadas e compartilhadas, seja entre diferentes operadoras, seja com o próprio setor público (a bem da verdade, este também tem escassa compreensão desta possibilidade). O gerenciamento da sinistralidade poderia ser enfrentado com um con-junto de ações no campo da promoção e proteção da saúde e, sobretudo, da utilização de instrumentos como o da gestão de casos e gestão de doenças. Muito mal enfrentado, um dos desafios na gestão da sinistrali-dade é a garantia de acesso a medicamentos. Na maior parte das vezes, o máximo que o setor tem oferecido para seus beneficiários são programas de desconto travestidos de política de acesso.

Na verdade, o setor privado também tem importante problema de ges-tão. Até 1994, ele vivia não de assistência e sim do imposto inflacionário. Hoje os tempos são outros, mas os hospitais vivem de vender medicamen-tos e próteses e as operadoras de propiciar o atendimento a doenças.

A economia brasileira ainda não chegou a estruturar de fato o sistema de saúde. No setor público impera um clima de que tudo deve ser entre-gue. Mas sem financiamento adequado, o processo é uma peneira. No setor privado, que existe em função da peneira, impera o laissez-faire. Por enquanto, tudo é pago e pouca coisa é questionada.Daí se poder dizer que pelo menos uma semelhança existe entre os dois setores: o projeto de ambos não tem a ver com saúde e sim com doença. Nenhum dos dois sistemas tem um projeto de porta de entrada do siste-ma, algo que pudesse regular a utilização da tecnologia disponível. Nem, tampouco, tem-se um projeto de assistência farmacêutica que, se existisse, juntamente com um projeto de promoção e proteção da saúde, poderia significar mais qualidade de vida, menos doença e até mais lucro.

Financiamento da saúde

Os gastos públicos do país em saúde estão ganhando mais transparência graças aos lançamentos obrigatórios dos gastos realizados pela esfera de governo no siofs (Sistema de Informação Orçamentária e Financeira em Saúde), que vem permitindo acompanhar o cumprimento da ec-29, uma vez que sem o preenchimento dos dados as transferências deixam de ser realizadas. Assim mesmo, ainda existem problemas de consolidação e de

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classificação, o que vem, entre outras questões, pedindo uma lei que re-gulamente definitivamente a ec-29 (dadas estas interpretações, somente 7 estados cumpriram a cota de 12% de suas receitas em saúde em 2005). Com todos esses problemas, os gastos públicos em saúde têm, estimati-vamente, a seguinte composição em 2006:

Federal - 40,8 bilhões de reaisEstados - 18,8 bilhões de reaisMunicípios - 19,4 bilhões de reais

O total do gasto público, portanto, é de 78,9 bilhões de reais. Consideran-do-se uma população de 185 milhões de habitantes, e descontando-se a po-pulação informada pela ans (com planos de saúde), de 45 milhões de habi-tantes, tem-se um per capita/ano de gasto público da ordem de R$544,14.

Os gastos privados com assistência à saúde (a pnad de 2003 estima o total do gasto, mas a extrapolação para 2006 tem inferências que não cabem nesta proposta de análise), levando-se em conta apenas aqueles apontados pela ans (Agência Nacional de Saúde Supletiva), foi de 44,9 bilhões de reais. Levando-se em conta a população acima mencionada, tem-se um gasto per capita/ano de R$997,80. Agregue-se a questão do desconhecido financiamento do sus ao setor privado, via a alta comple-xidade e o atendimento de beneficiários da supletiva na rede pública. Na verdade, o gasto público é insuficiente e não se necessita de com-parações com outros países para demonstrá-lo. Mais uma informação relevante sobre a cobertura privada é que 85% de seus beneficiários têm como patrocinador o empregador. Ou seja, é mais uma agregação que indica a necessidade de se repensar o modelo de financiamento da assis-tência à saúde. É urgente rediscutir o modelo.

A assistência farmacêutica

Não existem dados para analisar políticas de assistência farmacêutica no setor privado, exceto as inferências a partir da pnad. Mas em relação à assistência médica supletiva, não é possível analisar tendências, embora o mercado esteja começando a se mover.

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Com relação à assistência pública, existem propostas muito elabora-das, como a da portaria 3916/98, particularmente na esfera federal, e que serão apresentadas abaixo. No entanto, não se poderão agregar dados das propostas estaduais e municipais, visto que não existem dados confiáveis.

Descrição das diferentes modalidades

Conforme análise de documentos e do orçamento de 2006, tem-se os seguintes programas:

Sangue e hemoderivados: compra federal e distribuição de fator viii, fator ix, gamaglobulinas, e outros hemoderivados distribuídos aos porta-dores de hemofilia. Esta área é uma das mais atrasadas no país, pois pro-duz uma grande quantidade de plasma de boa qualidade e não tem uma planta de processamento, em grande medida por conta de uma visão xenofóbica em relação ao setor privado e de uma crassa incompetência do Estado. Em 2006 o país importou R$78,1 milhões destes produtos. Faz parte do grupo de medicamentos estratégicos.

Vacinas: a maioria destes gastos se deu com compras das plantas de produção públicas – Instituto Butantã, Biomanguinhos, Funed, Institu-to Ataulfo de Paiva (privado filantrópico e fornecedor de bcg) e Tecpar. Na realidade, o programa de auto-suficiência em vacinas é um dos gran-des êxitos do estado brasileiro. Contudo, tem tido sucesso, em grande medida, graças aos órgãos privados de apoio aos dois maiores produtores. Sem a Fundação Butantã e a fiotec, o sistema não teria agilidade para estar nesse patamar. A questão é que este fato tem sido solenemente ignorado, o que coloca um excelente projeto em risco permanente. Ou-tra questão é a necessidade de rever o papel de cada agente e, no lugar de competição (que existe hoje), colocar colaboração e construção de sinergias. Os gastos em 2006 foram de R$764,4 milhões. Faz parte do grupo de medicamentos chamados estratégicos.

Medicamentos Excepcionais: estes são os medicamentos comprados em parte pelo governo federal, em parte pelos estados (com recursos

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próprios e transferências). São voltados para patologias complexas e de alto custo de tratamento. Aqui estão os medicamentos presentes na tabe-la de procedimentos ambulatoriais do sia/sus - grupo 36. Em 2006, essa lista compreendia 104 medicamentos em 242 apresentações. Este é um dos grupos de medicamentos mais complexos e que, continuamente, sofre pressões da indústria para introduzir novos produtos. Este jogo em parte pode ser realizado utilizando-se associações de pacientes, advo-gados especializados, financiados de diversas maneiras, e o judiciário. Em algumas áreas da medicina, onde são mais tranqüilas as construções de consensos, a racionalidade da introdução e discussão do uso é mais evidente. Tome-se o caso da aids. São raras as ações judiciais nessa área, pois os consensos chegam primeiro e o Estado tem, então, fortes argu-mentos para apresentar ao judiciário. Mais a frente voltar-se-á a discutir a judicializacão da assistência farmacêutica. Na esfera federal, os gastos em 2006 foram de R$1308,3 milhões.

Farmácia Básica: esta modalidade visa financiar os medicamentos des-tinados à atenção primaria à saúde, sendo formado por dois tipos de repasses federais, condicionados a investimentos estaduais e municipais como contrapartida:

parte fixa – federal: R$1,65/hab/anoestadual: R$1,00/hab/anomunicipal: R$1,00/hab/anoparte variável – federal: R$1,15/hab/ano para hipertensão e diabetesfederal: R$0,95/hab/ano para asma e rinites

A parte variável deverá receber o incremento de outras patologias no futuro. Os gastos federais em 2006 foram de R$296,5 milhões. É mui-to difícil dizer o quanto estados e municípios colocaram, mas se pode deduzir que colocaram cerca de R$360,0 milhões neste item. A grande questão da farmácia básica é realmente quem se beneficia dela. A recla-mação sobre a falta de medicamentos é uma constante na rede básica. Alguns municípios declaram que chegam a gastar até R$8,00 reais per capita/ano na farmácia básica e mesmo assim têm problemas com recla-mações. Aqui também são freqüentes os problemas logísticos, perda de

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prazos de validade de produtos, etc. Assistência farmacêutica da atenção básica através dos esquemas públicos exige uma eficiência inexistente, além de recursos financeiros.

Medicamentos Estratégicos: Juntamente com os hemoderivados e as vacinas, estes medicamentos são os voltados para enfrentar as endemias: tuberculose, hanseníase, leishmaniose, malária, chagas, dst/aids. Uma parte dos problemas deste grupo é semelhante aos dos excepcionais. Os gastos com este grupo, sem incluir os já citados, foram de R$1801,3 milhões (especificamente a aids levou R$959,9 milhões). Uma parte destes gastos foi realizada comprando medicamentos produzidos por la-boratórios estatais, que mais adiante serão comentados.

Farmácia Popular: este item será contemplado apenas porque existe, uma vez que muito pouco tem contribuído para a solução da assistência farmacêutica. Na verdade, trouxe uma turbulência a mais e demonstrou a erraticidade das ações na área (distribuição de medicamentos pelo cor-reio, rede de farmácias estatais, fracionamento compulsório, etc). Em 2006, estavam implantadas 146 farmácias populares. Se elas derem certo, tudo o mais estará errado. Recentemente, o governo federal criou um novo programa de subsídio à compra de medicamentos na rede privada de farmácias, que no momento engloba diabetes e hipertensão – aqui é um acerto que ainda precisa ser demonstrado, mas certamente é um acer-to. Em 2006, o governo federal gastou com a farmobrás R$76,2 milhões.

Conseqüências

O gasto federal com medicamentos foi, em 2006, da ordem de R$4.324,8 milhões ou 10,6% do gasto federal. Dados da ocde, em seu Health Re-port 2000, indicam gastos com medicamentos na Comunidade Euro-péia em torno de 15 a 25% do gasto público total em diferentes países. A comparação tem que ser em termos relativos, pois em termos de re-cursos alocados as diferenças são muito aberrantes. A indicação é buscar um gasto público com medicamentos pelo menos da ordem de 20% do gasto público total, para ter uma regra básica. Tomando-se essa regra, o

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gasto federal é a metade do que deveria ser, e os gastos das outras esferas de governo, quando conhecidos, devem ser equivalentes.

Na verdade, o Brasil tem criado muitos narizes de cera quando a dis-cussão é acesso a medicamentos, sem, no entanto, objetivar.

Fracionamento existe junto com acesso. Sem acesso é um retrocesso, pois estimula o consumo inadequado.

Controle de preços é medida angular para mercados imperfeitos, mas não muda o acesso, pois quem não tem dinheiro não compra remédio barato também.

Genéricos são ótimos e conseguiram começar a ordenar o mercado brasileiro de produtos-cópias, exclusivamente voltado para lucrar e sem ter sequer garantia de ação sanitária; de novo – é mais barato, mas não garante acesso.

Farmácia popular somente seria solução se universalizada, ou seja, se substituísse a rede privada.

Indústria pública tem demonstrado ser mais ineficiente (somente consegue colocar no mercado algumas commodities mais baratas, por-que escapa da escorchante carga tributária de 28% sobre os medicamen-tos) e, além disso, não consegue sequer produzir genéricos. Deve existir uma indústria pública estratégica, mas teria que ser no seio de uma polí-tica que analisasse a ociosidade, discutisse escalas e gerasse sinergias.

Alguns desafios urgentes, de curto prazo

Vigilância Sanitária – o desafio tem pelo menos três vertentes. Primeiro não permitir a politização da vigilância, seja em que nível de governo for, mas particularmente no federal. Segundo, não diminuir a pressão para conseguir ter um mercado de medicamentos desenvolvido e competen-te, com cópias corretas oriundas de um processo de registro exigente, rápido e, sobretudo, com uma inspeção farmacêutica moderna e eficaz. Terceiro, conseguir um grau de harmonia (regras conhecidas e utiliza-das de forma semelhante) no sistema nacional de vigilância sanitária.

Financiamento – regulamentar de maneira adequada a ec-29 e melho-rar as fontes de financiamento da saúde.

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Globalização – este desafio significa ter condições de usar as regras do jogo de maneira inteligente, como fazem os países centrais. Muitas vezes as regras são fixadas no Brasil e somente agem sobre a indústria nacional. Não se trata de cometer um desvio colonialista (algo como vender porcarias para o terceiro mundo), mas sim de utilizar todas as possibilidades que o jogo permite. É, por exemplo, o que a Anvisa vem fazendo ao negar a concessão das patentes de segundo uso que o inpi teima em conceder, quando o ordenamento jurídico não o exige. É o caso da produção local em plantas globalizadas de produtos que não serão comercializados no Brasil, mas que tem que ter registro aqui para poderem ser exportados – estas situações devem ser tratadas de maneira diferente e inteligentemente.

Pesquisa & inovação – aqui deve ser realizado um esforço de qualidade distinta. O Brasil ainda poderá se beneficiar de ser um país produtor e exportador de tecnologia. O país tem massa crítica, mas falta focar em investimentos estatais para gerar soluções. É necessário canalizar e in-centivar linhas de pesquisa e inovação específica, como por exemplo, a biotecnologia e a nanotecnologia. Esse é o papel do Estado moderno – ser indutor. Somente sendo um produtor de patentes, o país poderá con-duzir uma política de patentes que leve em conta a questão do acesso.

Judicialização – o judiciário interpreta a lei de maneira adequada, por-tanto tem-se de mudar a lei e, além de ter uma política de acesso, ser mais conseqüente na produção de consensos médicos, na sua divulga-ção e no seu uso. Como já vem acontecendo com a aids. Não dá é para ficar choramingando porque os juízes estão tomando decisões médicas. Pode até haver abusos, mas eles apenas estão garantindo direitos presen-tes na lei vigente.

Impostos – esse é outro desafio que tem que ser enfrentado. O medica-mento brasileiro é um dos mais taxados do mundo. E, além disso, ainda sofre as conseqüências de alíquotas de icms distintas entre os estados, condição que tem acarretado distorções com risco sanitário devido à possibilidade de, no afã de conseguir descontos, os distribuidores destru-írem as condições de rastreabilidade.

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Co-participação – dos desafios este talvez seja o mais complexo. Sua discussão já foi introduzida com o advento da dispensação de medica-mentos de hipertensão e diabetes através da rede privada de farmácias, uma vez que as receitas do sus somente são atendidas mediante um co-pagamento. Este co-pagamento não deve, no limite, ser um obstáculo ao acesso e, tampouco, deve ser confundido com co-financiamento. Na verdade, ele transforma o cidadão em sujeito da relação com o medica-mento e com o seu médico e tende a promover uma desmedicalização dessa relação.

Portanto a discussão é como dar concretude a uma política de acesso a medicamentos frente à política de assistência médica vigente. Somente isso poderia transformar essa colcha de retalhos existente hoje.

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Saúde: direito de todos, dever do Estado e parte de um novo modelo de desenvolvimentoCarlos Augusto Grabois Gadelha*

Existe uma matriz associada ao pensamento sanitarista brasileiro que percebe a questão da saúde associada às condições de vida no país, ou seja, a saúde deixa de ser caracterizada apenas pela ausência de doença, passando a ser um pressuposto para a qualidade de vida, para o direito à cidadania e mesmo para a democracia, em seu sentido substantivo. Do ponto de vista político, o principal desdobramento do pensamento sa-nitarista repousa na incorporação, em Constituição Brasileira, da saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, fruto de um con-junto de políticas econômicas e sociais, incorporando, deste modo, uma perspectiva da saúde relacionada com as condições gerais de vida.

É nesta conjuntura que emerge a relevância da proposta de criação do Sistema Único de Saúde (sus), uma vez que inscreve na Constitui-ção que, enquanto sistema de responsabilidade do Estado, este sistema deve garantir a saúde de modo universal, equânime e integral. Quando se propõe que a saúde tem de ser universal, isso implica afirmar que todo cidadão brasileiro tem de ter acesso total e pleno aos bens e serviços de saúde. Neste sentido, é crucial destacar que o sistema de saúde não pode se voltar apenas para alguns segmentos da população, mas precisa alcançar todos os extratos e regiões do país.

Outro ponto importante diz respeito à integralidade do acesso à saú-de. Segundo este princípio, toda a população deve ter acesso à saúde em todos os níveis de complexidade tecnológica, independentemente do custo e da densidade de conhecimento incorporado nos bens e serviços. Soma-se a isso um outro princípio, que também se encontra na Consti-

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tuição, e que remete para a questão da equidade. Sob essa perspectiva, não pode haver atendimento diferenciado, no tocante ao acesso e à qua-lidade da assistência, para grupos sociais ou regiões com piores condi-ções sociais e de renda. A busca de condições sociais adequadas e de um padrão de desenvolvimento dinâmico e equânime possui uma forte rela-ção com a política de saúde, uma vez que constitui a base para se alcan-çar os objetivos de universalidade, integralidade e equidade, marcando, pois, o desdobramento político e legal do pensamento sanitarista.

Não obstante, são diversas as barreiras que obstaculizam essa dinâmi-ca de progresso e desenvolvimento no setor da saúde, colocando grandes desafios para o Brasil. É interessante notar que nas três últimas décadas vem ocorrendo um brutal processo de transformação social, coincidin-do com a emergência do Movimento Sanitário. A onda de inovação que marca a 3ª Revolução Industrial passa a determinar os potenciais de desenvolvimento das pessoas, dos países e das regiões. O interessan-te é que, neste contexto, o setor de saúde se insere tanto na luta pelos direitos e por um novo desenvolvimento quanto como fonte dos para-digmas tecnológicos centrais dessa revolução em curso, sendo intensivo em biotecnologia, química fina, novos materiais e eletrônica. Todavia, o pensamento dominante em economia (o mainstream economics) não reconhece que existem setores de atividade que são mais importantes do que outros.

A área de saúde deveria ter um tratamento diferenciado e preferen-cial, já que nela se encontram os setores estratégicos para o futuro tanto do ponto de vista do dinamismo econômico quanto do desenvolvimento social.

Nesse cenário, surgem com muita força as discussões sobre proprie-dade intelectual como elemento estimulador ou inibidor da produção do conhecimento e, por conseguinte, das inovações tecnológicas (par-ticularmente na indústria farmacêutica). Na realidade a questão é mais pragmática. O direito de propriedade intelectual deve ser visto à luz do estágio de desenvolvimento econômico, político e social do Brasil. A propriedade intelectual, por definição, protege quem já tem capacida-de de inovação e de lançamento de produtos inovadores no mercado. Nessa perspectiva, o Brasil ainda está em um patamar intermediário, pensando a dinâmica de inovação em saúde.

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Dessa forma, não é verdade afirmar que hoje, na conjuntura brasilei-ra, o direito a propriedade intelectual (em si) iria estimular a inovação. Se não houver cuidado com o uso da propriedade intelectual, o direito poderá se conformar num empecilho para a inovação. Não é viável criar uma legislação de propriedade intelectual mais forte do que o patamar de proteção mínimo previsto no trips, como é o caso do patenteamento segundo o uso de produtos, permitindo, na prática, a extensão dos direi-tos para produtos que agregam pouco em termos de conhecimento e em termos de potencial de inovação. No fundo, se não utilizarmos de modo inteligente a legislação de propriedade intelectual, pode-se conformar um bloqueio à entrada de empresas que ainda não chegaram ao estágio de desenvolvimento dos países centrais.

Tendo em vista o contexto atual, o País precisa formular e implemen-tar uma estratégia para articular o fomento à inovação, o fortalecimento do setor empresarial e a indução de atividades de desenvolvimento e pesquisa a serem realizadas localmente. Não há país inovador no qual as atividades de pesquisa e desenvolvimento sejam efetuadas apenas no ex-terior. Assim, a visão sanitarista acerca desse debate repousa na idéia de que a legislação de propriedade intelectual deve fazer parte da estratégia de desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional.

A área de saúde é uma das áreas mais inovadoras do mundo. Estima-se que US$135 bilhões são investidos em pesquisa e desenvolvimento por ano na área de saúde. Os países de menor renda investem 3% deste valor. Estes indicadores apontam que hoje os inovadores na área de saú-de não são os países de renda baixa ou mesmo média, como o Brasil, mas os países mais desenvolvidos. É preciso investir numa política in-dustrial agressiva e ativa para o desenvolvimento farmacêutico no Brasil, ampliando os direitos de propriedade intelectual proporcionalmente ao desenvolvimento do País. O trips conforma o requisito mínimo a ser adotado para não bloquear o processo de inovação. Se houvesse espaço político, seria interessante flexibilizar as normas do trips para a área da saúde (estratégia difícil no âmbito da política exterior brasileira).

A questão da relação entre patentes e saúde também tem sido de-batida em âmbito internacional. Na reunião da Organização Mundial do Comércio (omc) de 2001, foi aprovada a “Declaração de Doha” que dispõe: o direito de propriedade não pode sobrepor-se aos direitos à saúde

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pública. Seguindo esta direção, o primeiro interesse de um país é ter a disponibilidade de medicamentos e fármacos para atender a saúde públi-ca. Somente considerando estas relações entre saúde e desenvolvimento será possível pensar uma articulação entre a propriedade intelectual e a saúde que seja favorável ao processo de inovação. Mais importante ain-da, o essencial é pensar um conjunto articulado de políticas e ações que contribua para o desenvolvimento da indústria nacional e estrangeira, in-vestimentos em pesquisa e desenvolvimento de inovações no Brasil. Estes fatores devem ser basilares no projeto de desenvolvimento nacional.

Este fundamento teórico é muito importante, porque para melhorar a saúde não basta um serviço que funcione melhor, tem de haver uma sociedade mais igualitária e inovadora. Assim, torna-se necessário agre-gar à agenda de saúde a composição de uma estratégia de transformações sociais. É preciso constar nessa agenda uma série de questões que não são tradicionalmente vistas como referentes à saúde, tais como: a bus-ca pela inclusão social, o desenvolvimento sustentável com equilíbrio ambiental, uma melhor distribuição de renda, a educação e as políticas para o desenvolvimento do país com ênfase na política industrial.

Com o intuito de atualizar o escopo das transformações necessárias, estão sendo elaboradas novas propostas para ampliação do próprio espa-ço da reforma sanitária. É preciso promover um conjunto de reformas no país para permitir que o sistema de saúde se torne equânime, uni-versal e integral de fato. Soma-se a isso a relevância de romper com a dificuldade de acesso aos conhecimentos e à inovação incorporados na produção de bens e serviços em saúde. Hoje, as questões da indústria, do desenvolvimento, da inovação e do acesso ao conhecimento devem ser incorporadas à estratégia para o sistema de saúde brasileiro.

No âmbito da assistência farmacêutica, duas questões adquirem cen-tralidade. A primeira diz respeito à conformação de uma base produtiva forte e sólida no país. Dessa forma, qualquer iniciativa pública ou priva-da, nacional ou estrangeira, com a intenção de aumentar a capacidade de produção e de inovação do país, colabora para a superação desse en-trave que advém da estrutura produtiva brasileira. A segunda é a barreira do acesso da população aos medicamentos, aos produtos profiláticos e de uso diagnóstico. É perceptível uma maior deficiência no acesso a medicamentos e produtos que têm mais relevância para as necessidades

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de saúde. Nesse sentido, é perceptível um desencontro entre o potencial produtivo e as necessidades de saúde da população. O sistema de saúde deve procurar romper essas barreiras de acesso, tanto com relação à ca-pacidade produtiva quanto à forma de organização do sistema no país.

É essencial que o Estado se comprometa em consolidar a infra-es-trutura de tecnologia necessária para viabilizar o processo de inovação, atuando tanto no fortalecimento empresarial quanto nas condições sis-têmicas de competitividade associadas à educação e à infra-estrutura de c&-t. O sistema de c&-t, em particular, tem de se modernizar. Foi lançada a Lei de Inovação, em 2004, que permitiu uma parceria muito maior entre o setor privado e acadêmico para o processo de inovação. Todavia, a cultura vigente, tanto na academia quanto no setor produti-vo, ainda é muito marcada por um período em que o capital financeiro dominou as estratégias nacionais em detrimento do investimento produ-tivo e da inovação. Para superar este bloqueio, o Estado e as Instituições de c&-t precisam contribuir para o processo de inovação, em parceria com o setor privado e órgãos de fomento, como o bndes e a finep, na direção de uma sociedade mais inovadora e desenvolvida.

Importante frisar ainda que a inovação pode ser uma pequena melhoria de qualidade ou um aumento na eficiência dos processos. Todo este con-junto de iniciativas é importante no estágio de desenvolvimento em que o Brasil está. Isto implica dizer que um leque amplo de pequenos passos ino-vadores pode reverberar como muita força em âmbito econômico e social, influenciando drasticamente a malha produtiva do país na área da saúde.

Nesta direção, o Estado pode entrar com a infra-estrutura tecnoló-gica, dando apoio ao aumento da qualidade e da produtividade da pro-dução do país e à internalização daqueles produtos de maior conteúdo tecnológico, como são os farmoquímicos ou os biofármacos. O Estado deveria, ainda, financiar e disponibilizar ao setor empresarial recursos para atenuar os riscos tecnológicos, como subvenções não reembolsá-veis e taxa de juros beneficiadas, além de garantir condições de com-petitividade para a produção no país frente às importações. Por fim, o Estado deve priorizar nas suas compras aqueles produtos inovadores que atendam as necessidades de saúde. A grande perspectiva é articular uma verdadeira parceria público-privada em prol da inovação e do desenvol-vimento em saúde na sua dimensão econômica e social.

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Com essa perspectiva retoma-se a idéia que marcou o movimento sanitarista, isto é, de que as principais questões do setor de saúde muitas vezes não estão dentro das ações específicas para a área. Desse modo, torna-se necessário frisar que não é plausível alcançar uma sociedade mais saudável enquanto esta não for dinâmica, do ponto de vista eco-nômico, e equânime do ponto de vista social. É preciso aliar um alto dinamismo empresarial na área de saúde, incorporando estratégias de inovação muito mais densas do que as verificadas no presente, com a busca de um país mais desenvolvido no sentido ensinado pelo mestre Celso Furtado, que, ao longo de toda sua vida, enfatizou que não há país desenvolvido com a maioria de seu povo excluído do sistema eco-nômico e social.

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Reforma Sanitária e a Perspectiva EconômicaFelipe Ohana*

Introdução A Reforma Sanitária é a denominação conferida à implantação, no Bra-sil, de um movimento intelectual iniciado nos anos 70, de matiz socia-lista, promovendo uma remodelação institucional para o setor saúde, culminada na atuação eficaz na Assembléia Constituinte de 1988 com o lema “Saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

Não seria exagerado afirmar que o movimento da Reforma Sanitária utilizou o setor saúde, por aquilo que nele há de concreto e de insatisfa-tório, para dar andamento a um projeto redistributivo de renda. O novo pensamento propõe capacitar o Estado para programar os direitos de cidadania, usando, para tanto, o argumento da saúde. A doença é vista como uma falha de um conjunto de vetores, a incluir elementos físicos, ambientais, psicológicos e, não menos importante, sociais. Portanto, a atenção ao cidadão deve ser universal, integral (preventiva e de promo-ção da saúde) e eqüitativa.

Deve-se notar que a origem intelectual deste pensamento não é nati-va. Duas circunstâncias delimitaram a formação do movimento da refor-ma: a supremacia do pensamento keynesiano e a reunificação política do planeta, envolvendo os países derrotados na segunda guerra mundial e dando origem à Organização das Nações Unidas – onu.

A criação da onu decorreu do propósito de se reorganizar o conjunto de países, com uma perspectiva alongada de paz. Uma espécie de gover-no mundial que diluísse – e por isto facilitava a operação dos projetos de

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reintegração e de desenvolvimento – a presença e o comando dos países aliados. Com a questão política à parte, desenhava-se uma instituição “amelhorista” voltada ao fomento do bem-estar internacional.

Na abertura da Constituição da onu, assinada em 26 de julho de 1946, o conceito de saúde é apresentado como “completo bem-estar físi-co, mental e social. Não apenas ausência de doença”1.

Nasce uma organização cuja atenção está no indivíduo, não nos sis-temas (como o de mercado) ou nos processos. “Vende” a idéia de que se possam operar as circunstâncias para entregar, “na porta de casa”, um pacote de felicidade. A onu seria capaz de manobras diplomáticas e alterações de preços (por meio de negociações e novos institutos como o de controle social, eventualmente) para que as dificuldades relativas e decorrentes das questões de mérito passassem a ser subordinadas ao conceito de carência. Algo do tipo: de agora para frente, as necessidades humanas, consideradas básicas, terão uma via expressa de atendimento, sem terem que passar pelas penúrias do mérito.

Uma organização que oferecesse este cenário, em meio à destruição e ao desalento imperantes em 1946, tinha tudo para o sucesso. Trinta anos depois, essa estratégia chega ao Brasil.

Contemporâneo àquela iniciativa, o final da guerra impunha o medo de que a redução da demanda viesse a provocar uma nova grande de-pressão. Considerando-se que as cicatrizes de 1929 estavam recentes, o pensamento liberal do século xix, baseado no livre comércio e na eco-nomia sem interferência, entrava em descrédito. A partir daí, prevalece-ram as teses keynesianas, e de economistas influentes, que enfatizavam as falhas de mercado e a necessidade da interferência estatal.

Governos nos países menos desenvolvidos na América Latina e Ásia foram induzidos a intervir fortemente nas economias domésticas. Im-plantavam-se o protecionismo comercial, os controles de preço, os subsí-dios à exportação e o aparato das empresas estatais. Estes eram os pontos da nova tese sobre o processo de desenvolvimento.

Com o afastamento do pensamento liberal, dois tipos de sistemas eco-nômicos foram adotados pelos países menos desenvolvidos: de economia centralizada (comunismo) e, alternativamente, de capitalismo “moder-no”, com base no planejamento econômico. Foram deste período as teo-rias ligadas ao desenvolvimento mediante a industrialização. Teses como

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a substituição de importações, big push e do crescimento desequilibrado subsidiaram efetivamente o pensamento e as políticas de governo.

Contudo, no início dos anos 80, dois eventos marcaram o mundo. A reforma agrária na China, quando terras mais férteis foram entregues às famílias por longo período, do que resultou um enorme sucesso com a produção agrícola praticamente dobrando em um ano. Por outro lado, a União Soviética implantou a descompressão econômica – Perestroika – que, apesar de não ter apresentado bons resultados, quebrou o conceito de Estado inabalável e controlador. Nas economias ocidentais, surgia um novo fenômeno macroeconômico, a estagnação com inflação.

A partir de então, as teses do liberalismo econômico, da economia orientada pelo mercado, foram sendo reintroduzidas e postas em prática com maior sucesso no leste da Ásia e no Chile, num primeiro momento.

No Brasil, um arcabouço destas idéias foi trazido pelo Governo Collor, em 1990, com baixa consecução. O Governo de Fernando Hen-rique Cardoso retirou o Estado da esfera produtiva, mas intensificou os serviços sociais. Essencialmente, o maior feito deste Governo foi orga-nizar a macroeconomia e dar início ao processo de liberação da micro-economia. De toda forma, as teses da Reforma Sanitária prosperaram aí também. Por exemplo, em 1999, o controle de preço sobre os me-dicamentos foi reinstituído, após terem sido liberados durante os anos de congelamento da taxa de câmbio (1997-1998). No governo seguinte, inaugurado em 2003, o movimento ganha força e os conceitos são mais claramente defendidos.

Estas, grosso modo, foram as circunstâncias que influenciaram a evo-lução do pensamento que marcou a Reforma Sanitária. Para lidar com o tema, o documento se organiza com uma alusão às alterações nos princí-pios da economia de mercado e o seu significado para o desenvolvimento. Em seguida, trata-se da questão econômica, com a abordagem positiva, na presença de exemplos quantificados. Por fim, comentários conclusivos.

Abordagem de acordo com a economia normativa

A economia normativa é a parte da disciplina que representa “o deve ser”, aquele estado de coisas que a população gostaria de obter. Uma

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ilustração seria: o governo “não deve” deixar a inflação aumentar, de forma a resguardar o poder de compra dos assalariados. Este cenário desejável é suficiente para pautar uma agenda política, mas não quer dizer que tal agenda venha a ser implementada e, tampouco, que tenha sucesso. O governo não deve deixar a inflação subir, mas ocorre que as inflações aumentam.

A Reforma Sanitária e, de forma geral, as políticas de redistribuição de renda são iniciativas que buscam um estado normativo para a socie-dade. Na tradição do cristianismo social, prevalece o ideal distributivo sem referência. Se a distribuição de riqueza, segundo não se sabe bem o quê, for considerada insatisfatória, a sociedade é injusta.

Movimentos desta natureza invertem a relação causal que vai da pro-dução para a distribuição. Teoricamente, a geração de bem-estar decor-re da produção, na forma de pagamento de fatores (salários, lucros, alu-guéis e juros). Os agentes se organizam para produzir a partir de algum tipo de informação. São as informações de mercado – preços de fatores, tributos, concorrência, tamanho da demanda, política macroeconômi-ca, etc. – que orientam a organização produtiva. O problema é que a ação redistributiva interfere nessas informações, reduzindo a confiança dos agentes econômicos para se organizarem e produzirem.

A abordagem normativa provoca circunstâncias que são avaliadas pelo regulador, nos custos e benefícios. A redistribuição não é uma pau-ta executiva, mas um princípio a ser seguido pelo Estado. Portanto, não é um projeto a ser avaliado em suas conseqüências, mas uma distorção permanente sobre a oferta, vale dizer, sobre os condicionantes que im-pulsionam o “espírito animal” do investidor.

Um dos principais argumentos para este tipo de intervenção refere-se às falhas de mercado. De fato, o sistema de mercado apresenta falhas. De um lado, por não conferir valor à questão ética. Por outro, por não levar em conta os custos que recaem sobre a sociedade, mas não ne-cessariamente sobre aquele mercado específico. Um exemplo deste se-gundo ponto seria a poluição decorrente da produção de um bem. Esta poluição afeta negativamente outros agentes econômicos, mas não lhes é oferecida qualquer compensação por quem seja o responsável.

As falhas de mercado que geram externalidades (como a poluição) explicam a ação intervencionista do Estado, de forma a restaurar o equi-

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líbrio e a concorrência. Sem a correção imposta pelo Estado (multa), o poluidor seguirá produzindo além do que se considera socialmente ótimo, ou seja, gerando poluição excessiva. Com a multa, os custos se elevam e o poluidor aumenta o preço do bem produzido, diminuindo a demanda do produto que provoca a poluição.

Os fundamentos da Reforma Sanitária não estão ligados a este tipo de falha, mas à questão ética (ou moral, como se queira). A literatura da his-tória econômica é repleta de eventos sem ética. Discursos como o que se segue são clássicos: “Podemos agora constatar parte da natureza verdadei-ramente catastrófica da Revolução Industrial e algumas das razões pelas quais a classe operária se formou nesses anos: a exploração econômica e a opressão política”2 . Há, ainda, os eventos de escravidão, trabalho infantil e outros que, em nossos tempos, se afiguram moralmente impensáveis.

O fundador da economia clássica, Adam Smith, era um pensador preocupado com a moral, ao contrário do que se alardeia sobre a sua defesa do homem econômico. A caricatura deste Homem, retratada pe-los ideólogos contrários, reflete o avarento sem escrúpulos. Este não é o quadro em Smith, que entende ser a moral um atributo individual e fundamentado na simpatia. É pela simpatia que o homem se solidariza com outro. Observa que, contudo, as pessoas se sentem mais atraídas pelo sucesso do que pela miséria humana. “A humanidade está mais disposta a se simpatizar com a nossa alegria do que com a nossa tristeza”. Segue em seu raciocínio: “O homem pobre vai e vem sem que ninguém o perceba e, no meio de uma multidão, sofre de obscuridade. Todavia, o homem de posição e distinção sempre chama a atenção de todos. O pobre é irrelevante, anônimo. Para ser relevante, buscará ser rico”.3

O homem econômico busca a riqueza por um sentimento moral, pelo sentimento da simpatia com o êxito. Ou seja, o homem econômico não é amoral. Smith mostra toda a sua preocupação com o pobre, pois é ele que carece ascender na escala social, tornar-se relevante. O rico já está lá. O pobre tem o direito de dar seqüência a este anseio e, ao fazê-lo, gera riqueza e êxito para outras pessoas (oportunidade de negócios, emprego, tributos, etc.). Este é o sentido do homem econômico.

O outro aspecto da questão moral relaciona-se aos cuidados com a coletividade. Neste ponto, discute-se a noção de justiça. Há essencial-mente dois tipos: distributiva e comutativa.

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No âmbito coletivo, a justiça que importa para os liberais é a comuta-tiva, aquela relativa às trocas. Se o intercâmbio for autêntico, vale dizer, eu lhe dou aquilo que você espera de mim, em troca daquilo que espero de você, houve justiça e não há necessidade de qualquer compensação extra, além daquela implícita na troca. Esta é a justiça comutativa.

John Locke, em Dois tratados sobre o governo civil, (1690), apresentou esta posição com maior contundência. Sustentava que a razão para que o Homem abdicasse da sua liberdade natural e aceitasse as restrições ineren-tes a um governo era para que, desta forma, com regras, se evitasse o crime e as práticas nocivas à produção e ao desenvolvimento. O Estado nascera para reprimir o mal, não para fazer o bem. O bem é gerado pelas relações morais e produtivas entre homens de boas intenções. Qualquer benefício concedido pelo Estado é um ato religioso. Não uma ação econômica.4

Robert Nozick, em Philosophical explanations (1981) defende que as iniciativas de redistribuição não fazem sentido frente ao objetivo de se promover a estabilidade da organização social. Para defender esta tese, argumenta que todo fruto de trabalho desonesto deve ser, seguindo a lei, confiscado e revertido para a sociedade, como forma de compensação. Ao mesmo tempo, todo trabalho autêntico deve ser louvado. O meu trabalho é autêntico, diz Nozick, e o seu fruto jamais me foi dado ou distribuído gratuitamente. Como, então, defender uma redistribuição sobre algo que não foi, para começar, distribuído?5

A preocupação com a estabilidade da organização social é muito forte nos liberais. Com o fim das monarquias, na Europa, a idéia de liberdade passava pela limitação do poder do Estado, segundo a Constituição. O objetivo era evitar o exercício arbitrário do poder. Defende-se o Estado sob o domínio da Lei que, por sua vez, só poderia exarar leis gerais que, sendo assim, afetariam igualmente a todos. Só uma coerção aplicada a todos poderia ser considerada no interesse geral.

Para o ideário socialista, o conceito de Estado que obedeça aos di-reitos civis, com base em princípios de longo prazo, é anacrônico. O primeiro passo foi estigmatizar a idéia de Estado, que passa a ser visto como um comitê de negócios da Burguesia.6 Não é mais o centro de controle contra o mal, em favor do desenvolvimento e de harmonização democrática (como dizia Locke). Torna-se, na visão socialista, um ins-trumento de consecução de um projeto (ou crença) política.

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A base do problema, para os socialistas, é que a geração de bem-estar é lenta. O Estado clássico e o mercado não geram justiça e igualdade. Por isto, a discriminação para atender aos menos afortunados não parece ser discriminação. Pessoas muito diferentes, sob diversas formas, mere-cem um tratamento desigual (a seu favor). Assim, para tratar os diferen-tes, se quebra o princípio de igualdade, de acordo com a lei geral. Com isso, se abrem as portas, inevitavelmente, para o arbítrio.

O arbítrio é um dos principais vícios políticos a afetar uma sociedade, constituindo-se a grande preocupação liberal. A Reforma Sanitária en-gendrou, essencialmente, a aceitação do arbítrio, sob a camuflagem de proteção aos hipossuficientes. Nesse sentido, lançou mão do termo jus-tiça social (ninguém sabe exatamente o que venha a ser), que serviu de condão mágico para quebrar todas as barreiras às medidas arbitrárias.

O conceito de arbítrio foi subvertido com a nova abordagem. É mui-to raro, se é que já existiu, um movimento de protesto, de algum grupo de pessoas menos favorecidas, contra as distorções tributárias (e outras) que dificultam (e encarecem) a contratação de mão-de-obra.

Por outro lado, defender a diminuição da carga tributária que inci-de sobre as operações de crédito é, certamente, interpretado como um arbítrio para subsidiar os banqueiros, ignorando que estes não ganham dinheiro com juros elevados, lucram com o diferencial (spread) entre a taxa que pagam para captar (das famílias) e aquela pela qual emprestam (assumem o risco) aos investidores. A redução da carga facilita a opera-ção de empréstimo. Isto irá atrair um maior número de emprestadores que acirrarão a concorrência, reduzindo o spread bancário.

Por que medidas voltadas para retirar recursos de uns para transferir a outros não são consideradas arbitrárias? Por que, por outro lado, iniciati-vas que promovam a concorrência e a geração de empregos são tratadas como concentradoras ou, na maioria das vezes, desconsideradas? As ex-plicações a estas questões formam as diferenças filosóficas e conceituais entre as escolas de pensamento aqui tratadas. Mais importante, as res-postas podem ensinar porque, no médio prazo, a escola intervencionista conduz a sociedade à estagnação. Assim foi com o falido bloco soviético e assim é com Cuba e Coréia do Norte. As soluções chinesas e do Vie-tnam partiram no rumo da filosofia que entende a importância de uma sociedade orientada pelo mercado.

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Além da parte intelectual, a Reforma cuidou do segmento opera-cional, cujo principal veículo é o Conselho de Saúde (os vários con-selhos). Esta nova instituição significa, teoricamente, conferir uma ca-racterística técnica ao Estado, exercendo o papel de filtro dos interesses de minorias.

Os conselhos examinam e acolhem demandas sociais, à luz do pacto do bem-estar comum, de forma a compatibilizar interesses e chancelar uma agenda setorial, dando os parâmetros para a ação do Estado.

O arbítrio vestiu-se de fraque e gravata. Nos conselhos de saúde, os cidadãos têm acesso a um fórum que processa demandas segundo o in-teresse público (interesse público, bem entendido, como interesse par-ticular daquele público específico). Tudo elaborado e construído nos marcos de um pacto sobre valores (acordados entre os socialistas) de igualdade e justiça distributiva.

Com este palavreado e esta ambientação, a questão relativa à refor-ma do Estado (Estado mínimo vs. Estado empreendedor) foi atropelada e se tornou anacrônica. O termo justiça social se afigura inquestionável. E, aparentemente, o é. Como questionar algo cuja definição é imprecisa e, segundo alegações, pretende o igualitarismo, que também não se sabe o que seja?

Distribuir recursos à custa de alguém, que não pode ser identificado, se tornou a maneira mais atrativa de se adquirir apoio da maioria. Com isso, O Governo fica rendido. O Parlamento acaba por se converter numa câmara de homologação da pauta gerada pelos conselhos de saúde, uma vez que tais conselhos discutem a “questão da cidadania” de maneira completa com todos os seus alcances, não só no campo da saúde.

O parlamento ou governo que se torna uma instituição de distribui-ção de benefícios se expõe à chantagem, numa seqüência de seleção e agraciamento de novos benefícios a novos beneficiários. Essa corrupção legalizada não é culpa dos políticos, mas um processo endógeno para adquirir apoio, na luta pela sobrevivência política em um ambiente sem princípios restritivos de longo prazo, como fariam as leis gerais.7

Quanto aos fatos, deve-se concordar que a promoção de bem-estar é um processo lento. Numa economia em que a taxa de crescimento do pib seja de 4% ao ano, o que no Brasil seria um patamar elevado, levaria 17 anos e 8 meses para dobrar a renda, inclusive dos mais pobres. O mo-

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vimento da Reforma diria então que os pobres têm pressa (elevada taxa de desconto) e, com esta justificativa, alteram a participação daquele segmento da população menos favorecido no pib. Fazem isto mediante uma carga tributária elevada e transferências de renda. A engenharia deste processo, naturalmente, é conhecida. Alega-se que as transferên-cias são para cobrir o estado emergencial dos mais carentes, permitindo que sobrevivam enquanto o Estado investe na saúde e na educação.

Essa estratégia encontra um problema em seu desenvolvimento. É o que, na literatura, se denomina de o Princípio da Correspondência. Basicamente, é trivial o argumento de como se sai de um ponto a e se chega a um ponto b. Como se parte de uma população desvalida e se chega numa circunstância auto-sustentada (após transferências e investimentos), onde não será mais necessária a interferência do Estado. Neste rumo da postura política, há algumas questões importantes para o entendimento. Qual é a trajetória para se transitar de a para b? Ela é convergente? Por exemplo, a implantação da cultura do arbítrio (inter-vencionista e transferidora) pode determinar o baixo crescimento eco-nômico em prazo mais longo? Sem regra de transição, ou término para as transferências de renda, qual o risco moral para o comportamento da população mais carente, em termos de disposição ao trabalho e à educa-ção? Durante o processo, o Brasil perderia a atratividade de capital e a capacidade na geração de conhecimento?8

Se o programa de redução da pobreza consiste em tributar o inves-timento e repassar os recursos à camada populacional de baixo nível de consumo, enquanto matura o projeto educacional, é de se estranhar porque a pobreza tem sido tão renitente no planeta.

A questão é que de arbítrio em arbítrio, de custo em custo, e não importam quão meritórios eles sejam, a economia reage com perda de dinamismo, que se reflete na formação de capital, no crescimento, na geração de nova riqueza.

Este processo de arbítrio tem uma roupagem operacional. A cultura da “justiça social” desenvolveu antagônicos para seu próprio fortaleci-mento. O mesmo processo desenvolvido contra o Estado, em que se alegava um “Comitê da Burguesia”, é aplicado a setores econômicos, como o farmacêutico. É preciso difamar para isolar. Uma vez isolado, o setor é uma presa fácil.9

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A postura normativa intervencionista transforma a realidade, mas com custos.

A grande conquista do movimento, na área farmacêutica, tem sido a prática do controle de preços, em clara contestação aos princípios da Constituição Federal. O tabelamento é estruturado com a indexação parcial dos preços e um fator de redução, por conta de uma produtivida-de imputada ao setor. O objetivo é diminuir a margem de rentabilidade dos laboratórios, como uma medida de fomento do bem-estar social.

Tecnicamente, esta medida procura aumentar o excedente do con-sumidor (equivalente à redução de preços). Naturalmente, sabe-se que este objetivo é permanente, em qualquer sociedade, e por isto se fomen-ta a concorrência e o aumento da produtividade dos fatores produtivos. No caso brasileiro, a elevação do bem-estar do consumidor é conseguida por norma imposta ao setor produtivo, em vez de uma evolução funda-mental pelo lado da produtividade.

As conseqüências indesejáveis não são cogitadas, como é típico de um movimento que não acredita na importância do mercado e dos fa-tores condicionantes da produção e do desenvolvimento. Desde 2000, o preço do medicamento no Brasil é 65% do preço médio internacional, o que só seria explicável se a oferta deste produto comercializável, no País, fosse composta por produtos menos eficientes, mais antigos, em relação ao conjunto dos demais países. Este não é o fato.

Como conseqüência, em 2004, os 20 maiores laboratórios do mundo lançaram, no México, 60 novos produtos, com um faturamento anual de US$ 139,1 milhões. No Brasil, foram lançados somente 34 produtos, com faturamento de US$ 3,7 milhões. Dos medicamentos aqui lança-dos, 21 haviam sido introduzidos no mercado mexicano anteriormente, com uma defasagem de tempo, em média, de 17 meses. Mesmo que temporário, o desabastecimento do mercado interno de produtos mo-dernos é um problema de saúde pública com séria repercussão no maior absenteísmo e no custo mais elevado de tratamento, inclusive nos hos-pitais públicos.10

As arbitrariedades são praticadas a partir de uma intuição econômica que se tem provado, na maioria das vezes, equivocada. O barateamento relativo do medicamento brasileiro, no mercado interno, especialmente

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entre 2000 e 2004, foi construído sob a suposição de que favoreceria o acesso aos mais pobres. A Febrafarma realizou uma pesquisa em que se demonstra que a reação do acesso não se dá pelo preço, mas pela renda.11

Mais grave, a intuição genérica não consegue perceber os custos que a sua imprecisão gera. Por exemplo, como produtos novos continuam sendo lançados no mercado brasileiro, os problemas inexistem. Ou seja, as empresas não estão deixando de lançar produtos novos e modernos no Brasil, logo a regulação que se diz prejudicial, não causaria problemas no abastecimento. A intuição se guia pelo que vê e desconhece o que não vê, vale dizer, a quantidade de lançamentos adiados e cancelados. Ainda assim, há uma segunda dimensão desta questão que se refere ao registro de medicamento novo, independentemente da sua fabricação. O registro pode, meramente, representar um objetivo de comércio, não de produção.

Quanto à atratividade para projetos de pesquisa, os efeitos negativos podem ser mais fortes. A inovação tecnológica é um processo com al-gumas características bem conhecidas. O que certamente não se com-patibiliza com o ânimo inovador é o ambiente de insegurança legal e política para o capital.

O movimento da Reforma aparentemente não aceita a lógica privada da inovação: maximizar o excedente do produtor, quer dizer, ampliar a margem de lucro. É uma atividade de capital intensivo e de elevada taxa de risco. Há o risco de insucesso e o de depreciação tecnológica da ino-vação recente. Portanto, inovar é essencialmente a decorrência de um projeto que passou pelo teste da análise de custo-benefício esperados. O pensamento normativo-social ignora os condicionantes de custo pri-vado, eventualmente por imaginar que o investidor não tem nada mais lucrativo a fazer do que se arriscar na empreitada de descobrir uma nova molécula, a um custo que beira os US$ 900 milhões.

O texto de Gadelha et alii, versando sobre as imperfeições de merca-do que cercam a indústria farmacêutica, é ilustrativo desta preocupação quanto ao tratamento dos condicionantes da inovação:

Tais fatores acarretam a necessidade de um forte papel regulatório por parte do

Estado, a fim de se preservar o interesse social inerente à produção e à inovação

de medicamentos. Assim sendo, há uma tensão entre o dinamismo empresarial

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na geração de inovações e a necessidade de assegurar um acesso eqüitativo aos

bens e serviços de saúde, de controle de qualidade e de atenuação dos problemas

de informação, de sorte que a lógica econômica da produção privada desses pro-

dutos não se sobreponha às necessidades sociais. (grifo nosso) 12

A perspectiva intervencionista teme que o inovador, com sua patente, exerça o poder de monopólio (elevada relação preço-custo) e impeça o acesso dos mais carentes. A literatura mostra que os eventos não são assim. Há uma intensa disputa mundial por fatias de mercado. A de-preciação tecnológica tem-se acelerado, como, por exemplo, no caso da substância inovadora contra a disfunção erétil. E a literatura mostra ainda que, mesmo em casos em que a concorrência de novos produtos é mais lenta, a conduta das empresas não tem sido a de maximizar os re-tornos das patentes. Um dos motivos é exatamente reduzir a atratividade sobre a concorrência. Com isso, pode-se dizer que a conduta das firmas mostra que o mercado farmacêutico mundial não retrata uma dinâmica com preços que maximizam permanentemente os lucros, embora, se o fizessem, as empresas estariam praticando o que delas se espera, vale di-zer, que sejam eficientes. E mais, as empresas inovadoras exercem uma vigorosa concorrência, sem qualquer vestígio de conluio.

A idéia de conluio entre as indústrias farmacêuticas é intuitivamente fácil de ser assimilada pela opinião pública e política, uma vez que “no-toriamente” os laboratórios formam um oligopólio.

Se a crítica dos intervencionistas da Reforma Sanitária, neste campo de estrutura de mercado, fosse fundamentada, caberia uma longa di-gressão técnica sobre a concorrência em mercados imperfeitos. Como a alegação tem um cunho político-ideológico, basta dizer que entre 1997 e 1998, quando os preços dos medicamentos estavam liberados, o cade julgou 35 casos do que se alegava ser abuso de preços praticado pelo setor farmacêutico. Todos foram considerados improcedentes.13

O argumento sobre o “conluio oligopolista” alcança o segmento de marketing dos laboratórios. Se os complôs contra os consumidores pre-valecem (pelo menos no ideário intervencionista, uma vez que o cade já deu seu parecer), não há concorrência de preços. Os organizadores do oligopólio acertam os preços de venda e a disputa por fatias do mer-cado passa a depender do marketing. Então, os intervencionistas fizeram

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a grande descoberta: é por isto que gastam mais em marketing do que em pesquisa. Passo seguinte, como uma “política anti-trust”, implanta-se uma campanha contra a publicidade dos medicamentos. Com isso, o círculo lógico se completa: não havendo mais propaganda, os laborató-rios, que até então faziam conluio, não teriam outro caminho que não fosse competir nos preços pelas fatias de mercado. Não é claro como se propõe regulamentar a relação entre os laboratórios e os médicos quando se trata de produtos novos. Mas, certamente, a população não terá mais o direito de saber, em relação aos medicamentos mais antigos, quais são para dor de cabeça e quais são para enjôo. Esta informação, certamente, será tratada na forma de boato, é o que infelizmente nos resta concluir.

Se a proibição da propaganda pode induzir uma competição mais acirrada nos preços, por qual razão não se aplica esta restrição a todos os demais oligopólios? Esta medida baniria a propaganda do setor indus-trial brasileiro.

A intervenção na área das farmácias não é menos arbitrária, como se observa no Projeto de Lei nº. 2127, de 2003. Esse projeto dispõe sobre os serviços farmacêuticos de distribuição, dispensação e manipulação de medicamentos, produtos para a saúde e outros.

O objetivo maior desta iniciativa é converter as farmácias em postos avançados de saúde. Pretende dar um uso social mais adequado (ade-quado desde a percepção intervencionista) ao capital privado alocado em comércio. O artigo 48 do pl estabelece que para exercer a atividade de comércio, manipulação, dispensação de medicamentos de forma fra-cionada ou não, representação ou distribuição, importação ou expor-tação de medicamentos, os estabelecimentos farmacêuticos estatais e privados devem obter concessão pública emitida pelo gestor do SUS nos estados ou municípios, além de autorização pelo órgão sanitário federal e de licenciamento pelos municípios, estados ou Distrito Federal.

Não fosse esta tentativa de controle uma afronta à lógica econômica, trata-se de um desrespeito à Constituição Federal. A outorga de conces-são pública somente acontece quando a União tem a titularidade da atividade, ou seja, quando ela é monopólio da União. Portanto, exigir concessão pública para os serviços de distribuição, dispensação e mani-pulação contradiz o parágrafo único do art. 170 da Carta Magna, que

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assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, in-dependentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Esta pequena amostra das iniciativas objetivas da Reforma Sanitária su-gere que o propósito das ações está fora de tempo, é anacrônico. Serve para relembrar o pensamento de Hayek sobre este tema, escrito ao final dos anos 80:

When I speak here of the necessity of democratic government being limited, or

more briefly of limited democracy, I do not, of course, mean that the part of go-

vernment conducted democratically should be limited, but that all government,

especially if democratic, should be limited. The reason is that democratic go-

vernment, if nominally omnipotent, becomes as a result exceedingly weak, the

playball of all the separate interests it has to satisfy to secure majority support.14

Hayek propõe, portanto, que os cidadãos devam estar protegidos contra os avanços do Estado, para se preservar a sua própria essência: indepen-dente e promotor de oportunidades. De certa forma, pode-se arriscar a dizer que Hayek também estaria superado, uma vez que, desde o final dos anos 80, o avanço da integração econômica foi expressivo, sendo que esta nova forma da organização produtiva mundial retira graus de liberdade dos Estados para praticarem políticas peculiares, sob risco de colocar o país fora da rota do crescimento. A integração econômica acirra a concorrência entre economias, colocando as menos eficientes à margem do processo de aprimoramento da produção e do conhecimen-to. Em essência, o risco é o Brasil seguir exportando somente produtos agrícolas e semimanufaturados, como já fazia há 30 anos atrás.15

Abordagem de acordo com a economia positiva

A economia positiva é o enfoque dado ao estudo da ciência econômica que lida com os fatos verificáveis, sem conotação de ética ou de filosofia, em geral. Por exemplo, quando o preço sobe, a quantidade procurada pelo consumidor diminui. Não há o que ponderar, os fatos são assim, quer se goste ou não.

3.

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Qualquer medida de política econômica ou qualquer programa po-dem ser analisados segundo o marco positivo. Apesar da objetividade, o debate sobre redistribuição de renda não é menos acirrado.

A base positiva para a redistribuição está nas falhas encontradas no mercado de fatores, especialmente em economias com excesso de mão-de-obra pouco qualificada. O argumento pode ser resumido da seguinte forma: a transposição de técnicas produtivas de outros países para cá, que empregam máquinas desenhadas para serem operadas em sociedades mais instruídas, bem como processos pouco intensivos em mão-de-obra, explicam a não adaptação da mão-de-obra local (com pouca instrução) e, portanto, a redundância da força de trabalho e a sua baixa participação no produto. Por fim, como os bens de capital são importados, a mão-de-obra presente na economia nacional acaba sendo a estrangeira.

Em tempos recentes, durante os anos 70 e 80, o debate convergiu para a explicação da desigualdade de renda pelo diferencial de educa-ção. A educação segue sendo um tópico relevante para a capacitação e promoção da produtividade, mas o avanço do conhecimento, no sentido do domínio e criação da tecnologia, passou a ter um papel importante neste debate.

Independente do argumento que se empregue para explicar a desi-gualdade de distribuição de renda, a concentração, no Brasil, ao final do século xx, tornou-se, de per se, um fato que não poderia mais esperar o diagnóstico. A circunstância política (viciada, no sentido de Hayek) instaurou a legitimidade do assistencialismo. A Constituição de 1988 veio nesta linha e o quadro político acelerou o processo, ao final dos anos 90.

Assim, utilizando o método da abordagem positiva, não importa sa-ber se o movimento redistributivo deveria ou não (conforme os liberais) ter seqüência. Este movimento é uma realidade. Resta, por meio da ar-gumentação, auxiliar o pensamento nacional no sentido de sugerir que o movimento se flexibilize, de forma a que a eficiência produtiva seja a base do combate à pobreza.

O debate pode ser mais bem caracterizado por meio de um suposto diálogo entre Renilson e Joe sobre os entendimentos entre as partes a respeito da redistribuição.

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O Diálogo 16

renilson: O Brasil tem uma das piores distribuições de renda do mundo. Precisa-mos acelerar o processo de transferência de renda.

joe:É, o Brasil também tem uma dificuldade enorme de aumentar o produ-to nacional. Sem crescimento, vamos distribuir o quê?

r: Essa estória de deixar o bolo crescer primeiro já foi contada na década de 70. A distribuição de renda aumenta o consumo e, logo, favorece o crescimento.

joe:Certo, até que o país esbarre no limite da utilização de capacidade.r:Mas qual é o problema?

joe:É que o programa de redistribuição de renda se baseia na tributação, inclusi-ve a tributação sobre os lucros retidos e os fundos previdenciários, desviando para o consumo aqueles recursos de financiamento da ampliação de capa-cidade (investimento). A distribuição tem um custo que pode ser medido. Trata-se do percentual de crescimento renunciado para se obter este quadro distributivo. Como ilustração e lançando mão de um exercício muito sim-ples, podemos estimar que, em 2006, os gastos com Assistência Ambulatorial e Hospitalar (R$ 19,9 bilhões) somados ao de Atenção Básica à Saúde (R$ 6,6 bilhões), no âmbito do Ministério da Saúde, representaram uma renún-cia de R$ 6,2 bilhões de produto interno bruto, cerca de 0,3% do pib. 17

r:Acontece que não redistribuir também tem um custo. Mesmo que não se queira lançar mão de valores humanitários, uma sociedade com este perfil de renda é violenta e cara de ser mantida.

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joe:Com o risco de uma conversa circular, encontro evidências de que o crescimento induz maior equidade na distribuição de renda. Veja este gráfico a partir de dados do Banco Mundial (gráfico 1). Observe que quanto maior a renda, melhor é a distribuição (menor é o Gini). Aparen-temente, a reta que ajustei explica cerca de 50% da variação do índice de Gini, entre países americanos.

r:Eu posso lhe apresentar um outro conjunto de países, escolhidos a esmo, do mesmo banco de dados (gráfico 2). Neste caso, não há qualquer rela-ção entre renda e distribuição.

joe:Naturalmente, há inúmeros fatores que explicam a distribuição. Não pre-tendo dizer que seja, exclusivamente, o nível de renda. Quando escolhi países americanos, tentei selecionar economias com os mesmos funda-mentos (base religiosa, influência norte-americana, economias originaria-mente primário-exportadoras, homogeneidade política, culturas latinas).

r:Mas a literatura não aponta esta associação entre nível de renda e dis-tribuição.

joe:Mas, a literatura não explica porque a renda, nos países mais avançados, é mais bem distribuída.

r:Talvez, pela razão de estes países protegerem seus respectivos mercados de mão-de-obra.

joe:Entendo, mas se não o fizessem, o mundo convergiria para uma distri-buição de renda única e pior do que aquelas que eles, lá, têm. Seria um prêmio à irresponsabilidade das demais nações.

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Gráfico 1

Gráfico 2

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r:Irresponsabilidade?

joe:Certamente. É uma contradição ter autodeterminação e, ao mesmo tempo, proteção. Nestes países mais pobres, por razões religiosas ou ou-tras, não existem programas de paternidade responsável. Qual o sentido, por exemplo, de o movimento da Reforma Sanitária defender maior tributação (porque defende maior gasto) para equilibrar a situação social de um grupo que pode crescer (desequilibradamente) ao bel prazer?

r:Uma questão de valores. Os humanos têm valores.joe:Mas estamos sendo positivos ou normativos? Ao ser positivo, posso dizer que nos países de renda mais elevada (Suécia, por exemplo), em que a carga tributária é alta, os recursos são tomados basicamente do mesmo grupo que recebe os benefícios, de modo que tudo se passaria como, digamos, numa caixinha mútua onde os contribuintes tiram vantagem do consumo em cooperativa, poupança em grupo, etc. No fundo não se estaria tirando renda de ninguém – a renda tributada volta para os mesmos. Com o projeto da Reforma Sanitária não é assim. Os recursos são subtraídos de quem poupa, de quem produz, diminui-se a taxa de retorno dos investimentos e se redistribui para quem consome. Tira de um grupo para dar a outro. E este “outro” é livre, sem compromissos. Isto não lhe parece irresponsabilidade?

r:Não vejo irresponsabilidade, vejo o socialmente inexorável. Podemos até concordar com o fato de que distribuir renda atrasa o desenvolvi-mento. Contudo, não distribuir em economias com grau elevado de desigualdade (índice de Gini acima de 0,5) requereria um regime de apartheid. Complicado, não?

joe:Bem complicado.

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O alcance da análise positiva com base no histórico recente

A economia positiva tem sido liminarmente rejeitada porque lida com elementos de análise que não são acreditados, como mercado, condicio-nantes de investimento e expectativas. Os economistas ortodoxos mos-tram que o bem-estar de longo prazo depende da eficiência, enquanto os intervencionistas sustentam que a defendida eficiência é um conceito que se aproxima daquele de mercado, uma instituição não confiável, a ser conduzida pelo Estado.

A análise positiva dos ortodoxos se presta a assessorar os que tomam as decisões. Qual a perda de riqueza, no presente e no futuro, causada pelo desvio de recursos da órbita do investimento para o consumo? Qual a parcela desta perda provocada pelo aumento da carga tributária, bem como a originada pela interferência nos sinais de mercado (e.g., as pro-teções trabalhistas que desempregam)?

Em todas as organizações “amelhoristas”, acredita-se que o desen-volvimento e o bem-estar são fenômenos fabricados mediante a inter-venção, em vez de conquistados com políticas consistentes ao longo do tempo. Esta foi, por exemplo, a situação de muitos países africanos, nas três últimas décadas do século passados, que experimentaram uma se-qüência de programas “diretos” de combate à pobreza, organizados por vários organismos multilaterais. Em muitos casos, tais programas subor-dinavam as políticas fiscal e monetária. O resultado africano é conheci-do e não se deve recomendar.

A conjuntura brasileira é, certamente, menos difícil do que a africana. Ainda assim, o quadro econômico em 1989, beirando a hiperinflação, tornou-se complexo, face às medidas e arranjos necessários, por um lado, e a descompressão democrática, por outro, atuando em sentidos opostos.

Pelas razões conhecidas, o Governo do Sr. Fernando Henrique Car-doso foi o primeiro, da nova era, a apresentar programas estruturados. Sua inauguração, subseqüente ao sucesso do Plano Real, foi carregada de credibilidade, empregada para sustentar as iniciativas de privatização e arranjos fiscais, principalmente no segundo mandato. 18

Por ter levado adiante o programa de privatização, bem como ex-posto ao debate nacional o tema da austeridade fiscal (principalmente a partir de 1999), o Governo Cardoso recebeu a chancela de liberal e

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não recuou deste título, oferecendo, em resposta, a convicção sobre os benefícios de longo prazo da austeridade fiscal.

Importante não perder de vista que, no início dos anos 90, o conceito de poupança pública primária pertencia ao grupo dos temas conside-rados uma “trama neoliberal”, em afronta às necessidades básicas do povo. Não era surpresa, para os intervencionistas, que este era um tópico importante na listagem de John Williamson, em 1989, na palestra que deu origem ao termo Consenso de Washington.

Pode-se discutir se o termo liberal empregado para definir um go-verno que privatizou os estoques, mas aumentou a estatização da renda (carga tributária), merece correções. Nada obstante, a opinião pública tem certeza de que, nos oito anos do Governo Cardoso, o país experi-mentou o cristalino liberalismo.

Sendo assim, as explicações não são ouvidas. Se houve três grandes crises internacionais, ou mesmo um impacto fiscal significativo decor-rente do desequilíbrio no setor bancário, não importa. O novo lema da propaganda passou a ser: o governo liberal fracassou em não reduzir a pobreza, nos oito anos de mandato.

Neste quadro “político-emocional”, as portas se abriram para os in-tervencionistas tomarem fôlego. O posicionamento dos ortodoxos e da linha positiva passou a representar uma espécie de velho pensamento.

Os temas que, até 2002, freqüentavam a agenda política do país desa-pareceram. O papel e o tamanho do Estado é um assunto riscado, assim como a reforma tributária e o aprofundamento das privatizações na área da infra-estrutura. Este mesmo destino teve a agenda de reforma micro-econômica, iniciada, no atual governo, com a nova Lei de Falências.

Fonte: StN/Contabilidade Governamental

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O governo inaugurado em 2003, mais do que o anterior, acredita na presença do Estado. Os indicadores de despesas gerais sustentam a tese de que uma administração com tal filosofia não crê em reforma fiscal e, mesmo, no desenvolvimento endógeno (sem produção estatal). O qua-dro abaixo mostra este ponto.

Depois de um esforço antiinflacionário, em 2003, as despesas públi-cas crescem em ritmo superior ao do pib nominal e muito acima do ritmo do ipca. É o avanço do Estado sobre a economia, que explica a necessidade de elevação da carga tributária.

É o Estado que gasta e tributa a ponto de afetar os condicionantes do crescimento e, para compensar, age com política industrial e outras específicas:

a. propõe a criação de um verdadeiro “shaebol” nacional, na fabri-cação de medicamentos,

b. imagina ser capaz de construir um laboratório farmacêutico esta-tal com a dinâmica do setor privado (para iniciar, supõe-se, irão flexibilizar a Lei de licitação – nº. 8666) e

c. crê ser eficiente transformar as farmácias privadas em extensão do serviço público de saúde.

Por todos estes motivos, a abordagem positiva encontra-se submetida ao elemento normativo. Seu alcance, portanto, é reduzido. O lado nor-mativo-intervencionista estabeleceu que a pobreza fosse erradicada me-diante a ação direta e discricionária do Estado. O crescimento da renda e a geração de oportunidades são do interesse nacional, mas subordina-dos à meta da política social de amparo e assistência.

O que se pode esperar

A aparente melhora da economia brasileira, a partir de 2004, encontra explicações em fatores de mercado. Primeiro, o grupo partidário eleito em 2002 representava a maior ameaça às instituições de mercado, antes das eleições. Com a sua ida para o governo, deixa de existir, no país, este fator ideológico contrário ao capital privado. O risco País, por esta razão,

4.

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cai sistematicamente para o patamar dos 200 pontos. Segundo, em 2003, para combater a inflação, o governo não hesitou em praticar políticas austeras, tanto fiscais quanto monetárias, o que aumentou sua credibi-lidade em relação à defesa do equilíbrio macroeconômico. Terceiro, a urbanização chinesa e a liquidez internacional alteraram a demanda mundial sobre as commodities, permitindo que o crescimento, a partir de 2004, se iniciasse pelas exportações.

O desempenho da economia brasileira, em 2007, ao tempo em que este texto era escrito, segue os condicionantes de mercado. Há um forte estímulo de demanda, responsável por sustentar o nível crescente de au-mento da atividade econômica. Mas o resultado comparado com alguns países de economias equivalentes mostra que há uma insuficiência tanto de crescimento, quanto de formação de capital fixo, na nossa economia.

Quadro 1

taxas de Crescimento do PIB e taxas de Formação de Capital2004 - 2006

Fonte: StN/Banco Mundial/Quick Query

O Brasil tem as menores médias trienais de crescimento e de formação de capital, sendo esta última muito baixa, em termos absolutos, para sustentar uma taxa de crescimento, ainda que de 4%. Neste sentido, é importante ressaltar que a taxa de investimento não evoluiu, apesar do crescimento da renda, que deveria produzir um efeito acelerador na for-mação de capital. O freio nos investimentos é uma resultante do padrão da política econômica.

O arcabouço da regulação na economia brasileira é ineficiente. O quadro das garantias jurídicas é desconfortável. A estrutura tributária é

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prejudicial aos negócios. O parque de infra-estrutura é antigo e o perso-nalismo do Poder Executivo é muito forte.

Muitas destas impropriedades derivam diretamente da importância exercida pela tese intervencionista na organização do Estado. A garan-tia jurídica é voltada para defender o Estado, enquanto instrumento de consecução dos objetivos socialistas. A estrutura tributária deve aten-der às necessidades da política social. Havendo escassez de recursos, os investimentos na “pessoa humana” devem anteceder aos dirigidos à produção e, finalmente, o personalismo é uma importante parte do cen-tralismo democrático que conduz e entrega o bem-estar social.

Por este extrato (simplificado) do ideário intervencionista entende-se porque algumas regulações econômicas, que são claramente prejudiciais ao objetivo de crescimento, seguem existindo, inabaláveis à crítica. Um exemplo que se tornou um clássico é a política de controle de preços dos produtos farmacêuticos. O gráfico abaixo ilustra a interferência da regulação no valor de mercado.

Gráfico 3

Os preços relativos são calculados a partir dos índices de preço para o Iipa-og, no Brasil, e do Consumer Price Index, nos Estados Unidos. As linhas do gráfico indicam como os preços dos medicamentos se compor-tam em relação aos respectivos preços gerais.

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É evidente que os resultados são diametralmente opostos. Nos eua, as forças de mercado, em 11 anos, levaram a uma valorização do medica-mento de 15%, relativamente à cesta geral de produtos oferecida naquela economia. Isto se explica pela maior intensidade de conhecimento e de capital embutidos nas novas substâncias, tornando os medicamen-tos mais eficientes (eficazes com menor custo de tratamento). Ou seja, a elevação do preço não implica o encarecimento do tratamento. No Brasil, nestes 11 anos, o controle de preços barateou o medicamento em 25%, em comparação aos preços por atacado.

Medicamento é uma commodity, um bem comercializável. O quadro acima, nada obstante, reflete produtos que, pela trajetória dos preços, pa-recem absolutamente distintos. No início do período, cada comprimido padrão compraria, por exemplo, um copo de água. Onze anos depois, o comprimido padrão norte-americano compra 1,2 copo, enquanto o nacional somente uma fração do copo (0,75). Para enfatizar: duas com-panhias, uma no Brasil e outra nos eua, investem o mesmo volume de recursos para implantar duas fábricas iguais, uma em cada país. Alguns anos depois, a norte-americana tem uma rentabilidade 60% maior do que a brasileira. Qual empresário fez o melhor negócio? Como os em-presários irão agir no futuro, quando pensarem em alocar capital?

Pode-se alegar que a inflação no Brasil foi superior à norte-americana e, por isso, a volatilidade do preço relativo nacional é maior. Com maior volatilidade, as chances de um preço (como o de medicamento) ser pre-judicado são superiores.

Este argumento seria, eventualmente, aplicável para observações em períodos curtos. Não é o que se passa. A queda do preço nacional é ininterrupta desde 1999, quando foi extinto o regime de preço livre, em razão da mudança no regime cambial.

Essa dinâmica implica que são bens (ou ativos) muito mais valorizados nos eua. Uma interferência substantiva que altera os estímulos de investi-mento contra o Brasil. Apesar disto, o país pode continuar a ser um mercado atrativo, sob o ponto de vista comercial. Mas, neste caso, o comportamento do ofertante nacional estará mais propenso a importar o medicamento.

Desde a perspectiva dos intervencionistas, a explicação só pode ser a de baratear o medicamento para benefício da população. O barateamento, de forma geral, é um objetivo permanente e legítimo da sociedade. O que

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não é legítimo é o barateamento por lei, que gera incerteza e atrasos. O barateamento legítimo é perseguido com incentivo à produtividade e ao aumento da oferta. Este é o caminho, nesta ou em qualquer outra área.

O barateamento por intervenção pode lograr a redução das margens de rentabilidade dos laboratórios e dos demais componentes da cadeia de comercialização. Com isso, subsidiam-se os consumidores, cuja com-posição social é majoritariamente formada por pessoas de poder aquisi-tivo médio ou superior (os demais não têm renda e dependem do sus). Então, pode-se deduzir que o barateamento forçado nada mais é do que uma vertente da política de renda para a classe média e superior, fi-nanciada, não por tributos, mas pela margem de comercialização do segmento farmacêutico. Um tributo específico para o setor.

A menor margem será, no longo prazo, responsável pelo menor rit-mo de modernização da oferta de medicamentos. Como medicamentos menos modernos são menos eficientes (menor eficácia, maior prazo de terapia e maior custo para o paciente), os beneficiários daquele subsídio devolverão o que receberam, através do medicamento menos moderno. O final deste roteiro converge para o quadro em que os consumidores devolvem o que ganharam e o setor farmacêutico só perde. Trata-se de uma estratégia, no mínimo, “neutra-perde” (neutra para os consumido-res, perda para a produção). É evidente, a regulação pode ser aprimora-da, permitindo que o segmento produtivo ganhe e ninguém perca.

Deve-se notar que os formadores de opinião da Reforma intervencionista investiram fortemente na desmoralização das instituições de mercado e do comportamento das empresas, para tornar mais adequado e menos questio-nável o próprio intervencionismo. Redesenharam um novo corpo de teoria econômica: questionamentos sobre as tradicionais hipóteses dos modelos de análise, definições de novas dinâmicas para os fatos econômicos, entre outras inovações. O arcabouço teórico não é bem construído, mas é vasto.

Deste fato, importa o afastamento entre os operadores da Reforma in-tervencionista e os economistas tradicionais. Os primeiros aprenderam que o setor produtivo pratica lobby e faz conluio contra os interesses do consumidor. Com isso, aprenderam a não confiar nas informações críti-cas oriundas dos setores afetados pelas medidas. O segundo grupo ficou sem discurso, sem interlocução, e foi levado para a estratégia de minimi-zar perdas, uma vez que as ineficiências da regulação são galhardas.

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Desta maneira, a crítica profissional dos economistas tradicionais se acanhou frente à desinformação imperante no grupo regulador e, certa-mente, perante a ideologia da justiça social. Nada obstante, a evolução dos fatos começa a constituir a massa de informações que serve ao inte-resse comum, inclusive dos reguladores, de fomentar o bem-estar. Por esta razão, o papel institucional dos segmentos produtivos e de todos os afetados pelas regulações deficientes é o de divulgar, tornar público, pro-mover debates a respeito das falhas de governo e as soluções cabíveis.

Na construção da crítica, a evolução dos fatos cria um problema de identificação, a respeito de causas e efeitos. A intervenção não elimina a pobreza. O crescimento econômico o faz. A conjuntura de melhora na distribuição da renda do brasileiro, após 2003, é uma decorrência da aceleração do crescimento internacional, do que o Brasil tem se aprovei-tado. Só que aproveitado mal.

Sob outra perspectiva, os intervencionistas podem sustentar que a perda de dinamismo no aumento da renda é compensada pelos ganhos sociais. Tecnicamente, podem alegar a existência de um preço sombra que justi-fique os contratempos econômicos. Uma unidade monetária, disponível para consumo atual da classe social menos favorecida, valeria socialmente mais do que se empregada em investimento. Esta postura seria compreen-sível, desde que se soubesse a que taxa se efetua a troca entre mais consu-mo hoje ou mais emprego amanhã. Caso esta taxa de troca intertemporal fosse conhecida, seria necessário calibrar o volume de recursos alocados em uma finalidade e em outra, de tal forma que os benefícios adicionais fossem equivalentes, independentemente de onde os recursos venham a ser alocados. Em suma, um projeto com preços sociais.

Mas a taxa de troca não é conhecida e a vida econômica é adminis-trada por intuição. Com isso, muito provavelmente, os intervencionistas desviarão mais recursos para o consumo atual (por exemplo, com ta-belamento de medicamentos) do que a regra de benefícios adicionais equivalentes recomendaria. O resultado é uma economia cuja produ-ção cresce com a demanda de consumo, até que se esgote a capacidade produtiva, uma vez que os investimentos são desestimulados (baixa am-pliação de capacidade). A partir daí, o produto cresce a uma taxa acima da taxa de crescimento do pib potencial. O resultado é a pressão sobre o balanço de pagamentos e/ou sobre a inflação, para gerar poupança for-

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çada. Por uma razão, ou outra, o produto deixa de crescer A economia passa a experimentar ciclos.

Na página ao lado, o comportamento da taxa de crescimento do pib brasileiro, desde 1988, retrata a volatilidade (gráfico 4):

O gráfico 4 mostra que o pib nacional não encontra sustentação. Aparentemente, há uma linha de resistência entre as taxas de cresci-mento de 4,5% e 5,5%. Quando estes patamares são alcançados, ocor-re um superaquecimento que leva à retração subseqüente. O gráfico 5 transforma estas taxas para a escala logarítmica, de tal forma a permitir a estimativa da tendência do crescimento. Como indicado, o crescimento tem sido de 2,28% ao ano, extremamente baixo, principalmente para o combate à pobreza.

Existe, naturalmente, uma série de variáveis que influenciam o com-portamento do pib de um país. Contudo, o comportamento dos ciclos depende mais fortemente dos investimentos e, naturalmente, dos avan-ços feitos na produtividade. Se o ciclo de expansão é acompanhado de investimentos e de modernizações, a produtividade se amplia e o ciclo adquire maior extensão. Os ciclos nacionais têm, em média, uma dura-ção de 3,5 anos. São curtos.

A atitude intervencionista, como a de penalizar os investimentos da indústria farmacêutica, não promove o ânimo do capitalista. A insufici-ência de investimentos e a baixa produtividade permanecem. Se assim continuar, seguiremos com a experiência dos ciclos curtos e um teto baixo para o crescimento.

Por outro lado, se as condições da economia mundial forem manti-das, como nos últimos três anos, isto é, taxa de inflação internacional baixa, avanços de produtividade mundial e crescimento da renda nos principais parceiros comerciais, o atraso fabricado pelas escolhas ana-crônicas deverá ser percebido como uma circunstância insustentável e prejudicial à inclusão social. Ou seja, o ambiente internacional de crescimento e estabilidade não é favorável às medidas intervencionistas porque leva o Brasil a contrastar com a realidade dos demais países, evidenciando a falta de sentido da maioria das regulações (incluindo medidas tributárias, tarifárias, comerciais, procedimentos burocráticos e outras). Em conseqüência, a intervenção terá que se enquadrar, ou melhor, ser reduzida.

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Gráfico 4

Gráfico 5

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Passados quase 20 anos da aventura a que a Constituição Federal foi submetida, pode-se esperar que o movimento da Reforma venha a perceber que o destino da pobreza brasileira depende da geração de empregos, num ambiente de estabilidade com baixa inflação e rápida promoção da produtividade. E, finalmente, entendam que para esse fim, o padrão da regulação econômica não pode destoar das práticas prevalecentes nos países que lideram a economia do planeta. Afinal, o mercado não é um covil da burguesia.

Conclusão

A Reforma Sanitária é um derivativo de um momento político-intelectual, seguinte à segunda grande guerra, que pretendia trazer sob controle o de-senrolar dos acontecimentos econômicos e sociais, uma vez que as regras impessoais do mercado, baseadas no Homem Econômico, haviam dado claras indicações de fracasso, especialmente a Grande Depressão de 1929.

As teses da Reforma têm uma natureza política, voltadas para a ques-tão da equidade e da ambientação dos indivíduos. Fazem isto adotando o setor saúde como uma aplicação de caso. O ponto não era exatamente a saúde, mas a circunstância social da população. Acontece que, como em qualquer país que tenha serviços de saúde pública, a realidade é sempre cara e insatisfatória. Por estas razões, o setor saúde serviu ao propósito político de tornar o Brasil “um pouco mais” socialista.

Por este termo, deve-se entender que há menos recursos para forma-ção de capital e mais para consumo, regulações voltadas para ampliar o excedente do consumidor, à custa do excedente do produtor, regras de curto prazo que geram insegurança ao investidor e uma ação estatal voluntariosa com o objetivo de promover a eficiência e reestruturar o parque produtivo (o Estado sabe mais do que o mercado). 19

A dificuldade para melhorar a circunstância econômica, quando a referência intelectual que mais influencia as decisões é de orientação socialista, está no fato de que as categorias analíticas empregadas são díspares do que se pode considerar mainstream economics. Com isto, não há entendimento sobre diagnósticos e, tampouco, sobre relações de causa e efeito. A prática tem revelado que, dada a ausência de um

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corpo teórico testável e testado, as decisões deste grupo de dirigentes são tomadas em função da veemência do problema.

Como exemplo, em 2007, representantes do Ministério da Saúde ma-nifestaram-se a favor do controle da natalidade, fato surpreendente à luz dos fundamentos religiosos da Reforma. Em outro momento, defendeu-se, também no âmbito do Ministério da Saúde, a criação das Fundações Esta-tais, com um regime trabalhista mais ágil e menos oneroso ao erário, o que é adequado à escassez de recursos, à escassez de postos de trabalho e à es-cassez de serviços de saúde. Este ponto, apesar de eficiente (ou talvez, por causa disto) foi rejeitado por grande parte do segmento intervencionista.

A principal conclusão deste texto é que os ditames da Reforma Sani-tária são vigorosos, independente de seus resultados. Ou seja, o discurso socialista se transformou num mantra, emanando a idéia de que a po-breza terá um fim pelas mãos do Estado, não tendo qualquer relação com as mãos do mercado.

Nossa Constituição Federal é, em muitos aspectos, influenciada por esta estrutura de pensamento em que o importante é o objeto, não o princípio. Em outros termos, vale mais desenhar regras que levem ao objetivo (sempre nobre e digno) do que a conseqüência sobre a estru-tura econômica da forma de se alcançar o que se pretende. Ao mesmo tempo, as relações de causa e efeito são desconsideradas, a ponto de se tabelar constitucionalmente a taxa de juros. Não surpreende, portanto, que nos 19 anos de vida, a Constituição tenha sido alterada 55 vezes. E, certamente, ainda não se viu o final deste processo. 20

Desta forma, o mais eficaz e produtivo para os interesses nacionais é assu-mir uma postura ativa, com um conjunto claro de propostas, de forma a ad-quirir massa crítica para as alterações, sem perder tempo argumentando as falhas e as inconveniências daquilo que o movimento da Reforma defende.

Desta maneira, pode-se sugerir o seguinte conjunto de proposições para contra-arrestar a firmeza das ineficientes regulações do movimento da Reforma Sanitária.

A listagem do Crescimento:

Revisão constitucional: a Constituição com uma filosofia de lei geral, suprimindo-se qualquer referência aos direitos específicos.

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Como conseqüência, a Saúde não mais será um direito de todos. Fora da Constituição, o Estado poderá organizar serviços públicos de saúde, com características que venham a ser politicamente ex-plicitadas. Por exemplo, serviços com co-pagamento, para benefi-ciários acima de uma determinada faixa-alvo de renda.

Função Preventiva do Estado: ao Estado cabe evitar o desenrolar de fenômenos que impeçam o progresso da sociedade. Estes fenô-menos estão ligados ao que se denominam bens públicos: justiça, meio-ambiente, segurança, estabilidade monetária e função legis-lativa. Estas são as funções básicas do Estado. 21

A Regulação Econômica Clássica: volta-se para o controle de ex-ternalidades e imperfeições de mercado. Por exemplo, o acesso da população a medicamentos implica capacidade de trabalho e menor custo para a saúde pública com a população de baixa renda. Estas são externalidades relevantes para o acesso a medica-mentos. A regulação é de responsabilidade do Poder Executivo, fiscalizado pelo Legislativo e controlada pelo Tribunal de Ajuste Econômico.

Tribunal de Ajuste Econômico: uma instituição, na esfera do Poder Legislativo, com a função de analisar e dar parecer, com poder suspensivo, a respeito das iniciativas na área econômica. O efeito suspensivo do parecer prevalece até que o Congresso aprecie o parecer. As análises do tae são conduzidas por eco-nomistas de renomado saber, apontados e aprovados pelo Poder Legislativo. A referência legal para o julgamento do mérito da medida econômica seria a Lei de Responsabilidade Econômica, uma ampliação, adequação e substituição da Lei de Responsabi-lidade Fiscal. 22

Função legislativa limitada: as leis são destinadas à promoção dos bens públicos, vale dizer, de cunho geral. O legislativo fica impe-dido de legislar para grupos específicos, na forma de discrimina-ção positiva.

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Estes cinco pontos constituem um molde para a reorientação da socie-dade brasileira. Os debates, pressões e contrapressões formariam um es-paço viável de solução para o grande problema nacional, que consiste em desamarrar a economia e permitir que o crescimento sustentado tor-ne possível, a qualquer cidadão, ter uma percepção menos incerta sobre os determinantes do sucesso e do bem-estar (disposição ao trabalho, edu-cação, integridade e, não menos importante, respeito às regras).

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Notas

Dallari, S.G. e Fortes, p.a.c..: Direito sanitário: Inovação teórica e novo campo de trabalho. Saúde e Democracia – a Luta do cebes. Sonia Fleury org. Lemos Editorial e Gráficos Ltda. São Paulo, SP. 1977. – A partir deste ponto quaisquer outras citações de texto contidas na publi-cação “A luta dos cebes” serão referidas como incluídas em Saúde e Democracia 1977. Thompson, E.P,: A formação da classe operária inglesa II – a maldição de Adão. Paz e Terra. rj, Rio de Janeiro. 1987.Citações de Smith em Grondona, M: Os pensadores da liberdade. Edi-tora Mandarim. São Paulo. sp. 2000.Locke, John: “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”. São paulo. Nova Cultural. 1978. E “Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo. Martins Fontes. 1998.Nozick, R.: “Philosophical Explanations”. Cambridge, Mass. Harvard U. Press. 1981. Carvalho, A.I.: Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Ci-dadania: a Reforma sanitária como Reforma do Estado. Em Saúde e Democracia 1977.Hayek, F.A.: Economic Freedom. Basil Blackwell ltd. Canbridge. Mass. eua. 1991Alfred Marshall: “Principles of Economics”. Macmillan. Londres. In-glaterra. 1920.Os bancos estão nesta mesma categoria, de setor difamado. No passado recente, as montadoras de automóveis chegaram a pertencer a este grupo, quando tinham seus preços tabelados. Mas os sindicatos dos metalúrgicos entenderam que a chance de elevação dos ganhos salariais aumentava se o setor deixasse de ser estigmatizado. No passado mais remoto, um dos vilões da “carestia” eram os atravessadores de mercadorias. Hoje, os super-mercados verticalizaram este segmento e são respeitáveis. Ohana, E. F.. Comparativo internacional de preços de produtos farma-cêuticos em 2004. Estudos Febrafarma. São Paulo: Febrafarma., 2005.Fridman, Silvia V. e Rocha, F. Análise econométrica em cross-section da demanda por medicamentos no Brasil. Estudos Febrafarma. São Paulo: Febrafarma, 2004.

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Gadelha, C. A. G.; Quental, Cristiane.; Fialho, Beatriz. de C. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cadernos de Saúde Pública, vol.19, no.1 Rio de Janeiro, Jan./Feb. 2003. (pp 8).O termo “preço abusivo” está inclusive registrado na Lei 8884/94, que trata da concorrência. Aparentemente, consiste numa conquista dos inter-vencionistas. Colocar em Lei um termo que nenhum economista é capaz de definir ou quantificar de forma isenta da ideologia é uma vitória.Hayek, F.A. (ibidem)Economistas não têm um modelo para o desenvolvimento. É um debate inacabado, inclusive com ampla aceitação de participação do Estado (investimentos, regulação de externalidades, segurança, saúde e outros). Nada obstante, alguns pontos são conhecidos por serem incompatíveis com o desenvolvimento, a exemplo da geração de incertezas pelo Es-tado, mediante interferências em princípios básicos da sociedade (e.g. conceito de propriedade) e nas regras de mercado (e.g. confiscos e ta-belamentos).Por alguns dos pontos, devo agradecer ao economista Carlos Eduardo de Freitas. Certamente, os equívocos são exclusivamente meus.Chega-se a este valor com a utilização do modelo simples de capital-produto aplicado para 2006. Os parâmetros são: Capital-produto de 4,3; pib de 2006 de R$ 2,1 trilhões.Em 1998, foi aprovada, no Congresso, a Emenda Constitucional nº. 20, que trata da Previdência Social. No primeiro mandato, o Governo Cardoso transferiu para o setor privado empresas no valor de R$ 45,6 bilhões, com o programa de privatização. Em contrapartida, a adminis-tração fiscal, neste tempo, produziu resultados insuficientes (inclusive com déficit primário em 1996).Por exemplo, Gadelha, c.a.g.. O complexo industrial da saúde e a ne-cessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e saúde Coletiva. 8(2). 2003. Deste autor destacamos o trecho que ilustra este ponto: “Um sistema econômico que se pauta pela busca, geração e apropriação de inovações, que geram rendimentos cumulativos para os agentes e para as economias nacionais [como já apontado desde Adam Smith, na análise da divisão do trabalho], sempre estará impregnado de assimetrias e de soluções ineficientes relativamente a outras soluções factíveis. Enfim, um sistema econômico sem externalidades, rendimen-

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tos crescentes, economias de escala, informação assimétrica, oligopó-lio, apropriação privada de rendas e – como uma síntese de todos esses elementos – inovações, não é capitalismo, uma vez que se abstraem os elementos essenciais de sua evolução. Muito mais do que atenuar falhas trata-se de construir um padrão de interação entre Estado e mercado que permita a constituição de um ambiente favorável para que o com-plexo da saúde se torne uma alavanca de inovação e desenvolvimento ao mesmo tempo em que esteja inserido no contexto dos objetivos da política nacional de saúde”. (pp 533).De se imaginar por que não consta da Constituição o lema “A Inflação Baixa é um Direito de Todos e um Dever do Estado”?Não somos tão liberais quanto Hayek, que defende a concorrência entre moedas, ou seja, não haveria moeda estatal, mas as emitidas pelo setor privado. Prevaleceria aquela moeda mais confiável, mediante um pro-cesso de concorrência livre.Este conceito visa a retirar graus de liberdade das iniciativas econômicas do Executivo e, mais propriamente, das agências reguladoras. A referên-cia do tae é o desenvolvimento econômico, com base no princípio da Lei de Responsabilidade Econômica. Uma comparação seria o Departa-mento de Orçamento dos eua, que não formula, mas julga a pertinência e adequação das iniciativas tomadas pelas agências reguladoras.

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Outras referências bibliográficas consultadas

stiglitz, J. E. Economics of the public sector. 2. Ed. Londres: WW Nor-ton & Co., 1988.

meier, G. M. Leading issues in economic development. 3. Ed. New York: Oxford U. Press, 1976

viscusi, w.k.; vernon, j. m.; harrington jr, j. e. Economics of regu-lation and antitrust. 3. Ed. Londres: The mit Press, 2000.

andima. Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto. Pla-no Real. Relatório Econômico. rj: 2000.

mckinnon, R. I. The order of economic liberalization. 2. Ed. Baltimore The John Hopkins U. Press, 1993.

hsieh, c. y.; abushaikha, a. a. e richards, a. A short introduction to modern growth theory. Washington, dc: University Press of America, 1978.

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Intelectuais, anticapitalismo e antiliberalismo: o caso da Reforma Sanitária no BrasilPaulo Kramer*

Introdução Recentemente, uma das maiores animadoras do movimento intelectual e político, dos anos 70 e 80, conhecido como Reforma Sanitária, que daria origem ao Sistema Único de Saúde (sus), esboçou a seguinte autocrítica referindo-se a si mesma e aos seus companheiros de militância:

[S]e nós conseguimos ser uma vanguarda na democratização para ter um siste-

ma público que garanta direitos, mas que não funciona, nós estamos contribuin-

do fortemente para a desmoralização da democracia e da coisa pública. E isso

é culpa nossa. Então, nós temos que fazer funcionar, essa devia ser a meta do

sistema como um todo. Tem que funcionar, se não funcionar, fecha; mas não

deixa uma coisa fingindo que está funcionando e deixando a população sofrer,

porque não tem capacidade de funcionar. Se for pra ter, que funcione bem.

E mais adiante:

[...] Só a participação no sistema não dá conta. Nós não avançamos nada na

democratização das unidades. Garantimos o direito, garantimos que o cidadão

pode participar, mas quando ele chega no hospital ele é tratado como um não-

cidadão, e onde é que ele pode reclamar? Não existem ali formas de participa-

ção, de reclamação para as garantias dos direitos na entrada do sistema e na sua

utilização 1.

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Prenunciado no art. 196 da Constituição Federal de 1988 com o grandiloqüente slogan “A saúde é direito de todos e dever do Estado”, o sus, seria institucionalizado, pouco tempo depois, pelas leis 8.080 (Lei Orgânica da Saúde) e 8.142, ambas de 1990. À época de sua criação, o sistema foi celebrado como o coroamento de uma longa mobilização dos intelectuais das áreas de ensino e pesquisa de saúde pública e dos seus aliados no movimento sindical médico, visceralmente antagônicos à presença de interesses empresariais privados no setor e, com a mesma intensidade, favoráveis à participação ampla dos trabalhadores e usuá-rios do sistema em sua gestão. Hoje, como deixa entrever o depoimento insuspeito de uma de suas veteranas mais entusiásticas, aquela utopia de vanguardas acadêmicas e sindicais virou um pesadelo de péssimo aten-dimento, sujeira infecciosa, precariedade material, filas intermináveis, greves idem e abandono generalizado, o que desmoraliza a imagem dos órgãos governamentais de assistência à saúde e inferniza a vida, quando não acelera a morte, de tantos brasileiros que, sem renda para contratar planos e seguros privados, acorrem aos postos e hospitais públicos, ou aos seus equivalentes filantrópicos, da rede do sus.

O presente ensaio procura lançar um pouco de luz na ideologia, nos atores e na estratégia que produziu esse desastre, numa contribuição para a análise política e a cobrança de responsabilidades, requisitos indispen-sáveis à correção dos rumos da política pública de saúde no Brasil.

Este trabalho se divide em duas partes principais. Na primeira, pro-ponho um marco teórico para possibilitar a compreensão da descon-fiança, do ressentimento e da hostilidade que costumam caracterizar as atitudes intelectuais em relação ao capitalismo – regime econômico em que as decisões sobre alocação de recursos se acham predominante-mente sob a responsabilidade de empresas privadas concorrentes entre si no mercado – e aos seus dois correlatos históricos: o liberalismo e o sistema democrático representativo. Na segunda parte, procuro aplicar essa perspectiva à reconstituição de alguns dos momentos mais marcan-tes do processo de formulação e implementação da agenda do segmento de intelectuais ativistas comprometidos com a Reforma Sanitária e seu desdobramento no Sistema Único de Saúde.

Concluo este ensaio com uma modesta proposta voltada a minorar o apagão da saúde pública no Brasil mediante uma nova parceria com

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o setor privado, sem, no entanto, desconsiderar as enormes resistências ideológicas, políticas, burocráticas que qualquer iniciativa nesse sentido fatalmente suscitará.

Intelectuais versus economia de mercado, sociedade liberal e sistema representativo

O papel dos intelectuais na deslegitimação ideológica e política do capi-talismo segundo Schumpeter e outros pensadores liberais

Além de suas imortais contribuições à ciência econômica (expressas em conceitos como o do “empreendedor”, pioneiro das inovações que dina-mizam a concorrência, ou o da “destruição criativa”, fruto dessa mesma concorrência incessante, graças à qual o capitalismo se transformou na maior “máquina” produtora de riqueza e conforto da história humana), o pensador austríaco Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) empreendeu fecunda incursão no terreno da sociologia política com a obra Capitalis-mo, socialismo e democracia (ou csd), cuja primeira edição, em inglês, data de 1942, quando o autor já se havia transferido para os Estados Uni-dos, lecionando em Harvard 2.

Nesse livro, em meio a uma série de insights valiosos – a exemplo da definição “realista” da democracia contemporânea como sistema político em que líderes de máquinas partidárias burocratizadas entram em com-petição eleitoral oligopólica pela aquiescência de massas despolitizadas –, Schumpeter aponta a fatal insuficiência do capitalismo para legitimar-se moralmente perante o mesmo público beneficiário da afluência que a economia de mercado produz. Os fatores componentes desse déficit de legitimidade são variados e complexos, e faltam-me tempo e espaço, nos limites do presente ensaio, para comentá-los pormenorizadamente. Por-tanto, satisfaço-me aqui – e faço votos de que o leitor insatisfeito se volte diretamente para a leitura da obra schumpeteriana – com o seguinte re-sumo do 13º capítulo (“Growing hostility”, pp. 143-155) de csd.

Historicamente, o desenvolvimento do capitalismo fomentou uma atitude experimental, racional e crítica que acabaria se voltando contra ele mesmo, depois de haver corroído a sacralidade de dogmas e insti-

1.

1.1.

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tuições muito mais antigos. Assim, “o burguês [empresário capitalista] descobre, para a sua surpresa, que a atitude racionalista não se detém nas credenciais de reis e papas, mas prossegue atacando a propriedade privada e todo o sistema de valores burguês” 3.

Schumpeter chama atenção para este aparente paradoxo: não importa que essa atitude crítica tenha sido gerada pelo racionalismo utilitário que o capitalismo tanto contribuiu para difundir, juntamente com a riqueza e o bem-estar, colocando-os ao alcance de um número inédito de traba-lhadores e inflando os contingentes da classe média; os ataques políticos à civilização do capitalismo liberal, por apresentarem um forte substrato emocional e, portanto, irracional, não podem ser refutados pela razão. Em suas palavras, “a racionalidade capitalista não acaba com os impulsos sub ou supra-racionais. Ela apenas os deixa fora de controle ao remover as restrições [impostas pela] tradição sagrada ou semi-sagrada” 4.

Depois, as “promessas” do capitalismo só podem ser plenamente cumpridas a longo prazo. Assim, é o próprio utilitarismo imediatista dos pobres e dos seus representantes políticos que os leva a se impacientar com a situação atual e a identificar os interesses do capitalismo exclusi-vamente com os da alta burguesia.

Ademais, como o capitalismo é “constitucionalmente incapaz” de gerar “adesão emocional” (grifo de Schumpeter) à ordem social que pro-duz, isso o torna alvo fácil das amarguras e contrariedades que se abatem sobre o cotidiano do comum dos indivíduos 5.

Some-se a isso o contraste perturbador entre as expectativas sempre crescentes das massas quanto ao seu padrão de vida sob o capitalismo, de um lado, e as instabilidades e incertezas inerentes ao processo de des-truição criativa, de outro, e se obterá um quadro convincente dos riscos políticos que rondam o regime concorrencial de propriedade privada.

Nesse clima de opinião, sempre segundo Schumpeter, os intelectuais sobressaem como os catalisadores por excelência do descontentamento generalizado com a ordem capitalista. A esta altura, ele tenta, a meu ver sem grande sucesso, ser preciso no tocante à questão: quem pode/deve ser classificado como intelectual? Resposta: os intelectuais

não podem ser simplesmente definidos como o somatório das pessoas que re-

ceberam educação de nível superior; isso passaria por cima das mais importan-

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tes características do tipo. Porém, quem quer que a tenha recebido – e, com

exceção de casos excepcionais, ninguém que não tenha – é um intelectual

em potencial; e o fato de que suas mentes são todas similarmente equipadas

facilita a compreensão entre eles e constitui um vínculo. Tampouco serviria ao

nosso propósito identificar o conceito com a filiação às profissões liberais; mé-

dicos e advogados, por exemplo, não são intelectuais no sentido relevante [da

palavra] a menos que falem ou escrevam sobre assuntos fora de sua competên-

cia profissional, o que, sem dúvida, eles fazem freqüentemente – em especial

os advogados. Ainda assim, existe uma estreita conexão entre os intelectuais e

as profissões, pois algumas [grifo do autor] profissões – especialmente se inclu-

ímos o jornalismo – realmente se encaixam quase por inteiro no domínio do

tipo intelectual; e muitos intelectuais voltam-se para alguma profissão como

meio de vida 6.

E, logo em seguida, fixa-se Schumpeter no critério distintivo da mobili-zação de argumentos via palavra falada ou escrita sob uma perspectiva crítica, ou pior, criticista no limite da inconseqüência: “De fato, os inte-lectuais são pessoas que manipulam o poder da palavra falada e escrita, e um dos traços que os distinguem de outras pessoas que fazem o mesmo é a ausência de responsabilidade direta por assuntos práticos [...] Profissão de amadores? Diletantismo profissional? Gente que fala de tudo porque não entende de nada?” 7.

O rótulo de “forjadores de palavras” oferecido pelo filósofo liberal de Harvard Robert Nozick (1938-2002), cuja obra mais conhecida é Anar-quia, Estado e utopia, de 1974 8, parece-me útil para sair da obscurida-de deixada pela definição predominantemente negativa (e irônica) de Schumpeter. De saída, tal como ele, Nozick não entende

por intelectuais todas as pessoas inteligentes com certo grau de instrução, mas

aquelas que, por vocação, lidam com as idéias, se expressam em palavras, mol-

dando o fluxo de palavras que os outros recebem. Esses forjadores de palavras

incluem poetas, romancistas, críticos literários, [mais uma vez] jornalistas e

numerosos professores [...] Não incluem aqueles que primordialmente criam e

transmitem informação formulada de maneira quantitativa ou matemática (os

forjadores de números) ou os que trabalham com meios visuais, pintores, escul-

tores, câmeras [sic] 9.

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Mas Schumpeter está de volta com outra pergunta: será que os inte-lectuais constituem uma classe distinta das outras que compõem a socie-dade capitalista? Em termos: de uma parte, sim, em razão dos interesses e da linguagem que eles tendem a desenvolver e compartilhar; de outra, não, em face da sua tendência a atuar como “procuradores” 10 – ou van-guardas, enfim, como representantes quase sempre autodesignados – de outras classes e grupos sociais. (A esse respeito, lembro a famosa posição defendida pelo líder da Revolução Bolchevique de 1917, na Rússia, V. I. Lênin (1870-1924), em sua obra Que fazer?, de 1902, que confia a dire-ção do movimento revolucionário do proletariado a um partido marxis-ta comandado, basicamente, por quadros intelectuais radicalizados de origem pequeno-burguesa ou mesmo burguesa: Lênin desconfiava dos instintos conservadores dos sindicalistas de genuína extração operária, por considerá-los propensos ao acomodacionismo político em troca de concessões patronais, destinadas tão-somente a aliviar a situação mate-rial dos trabalhadores dentro do capitalismo...)

Schumpeter prossegue assinalando o contraste entre, de um lado, o rígido controle social e o isolamento político impostos aos intelec-tuais nas sociedades pré-capitalistas e, de outro, a ampla liberdade de que desfrutam sob a ordem capitalista liberal, que, “diferentemente de qualquer outro tipo de sociedade [...] inevitavelmente e em virtude da própria lógica da sua civilização, cria, educa e subsidia um interesse investido na inquietação social” 11. Sem dúvida, a invenção da imprensa e sua rápida difusão, associadas à expansão da riqueza e ao sucesso do combate aos entraves da tradição, criaram um mercado para a desenvol-ta atuação do intelectual, que, assim, pôde desembarcar de sua velha dependência exclusiva do mecenato proporcionado por um punhado de nobres e mercadores opulentos, para se transformar, a um só tempo, em ‘servidores’ e ‘orientadores’ da opinião pública nascente, seu novo “patrono coletivo” 12.

Tudo isso acarreta uma situação que, a seu ver, torna impossível su-primir a liberdade intelectual na sociedade burguesa sem destruir as demais liberdades, inclusive aquela que fundamenta o direito à proprie-dade privada, mesmo porque a grande imprensa – que, hoje em dia, pas-sados mais de 60 anos da primeira edição de csd, abrange não apenas a indústria de editoração de jornais, revistas e livros, mas também as redes

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de TV/rádio e os portais de informação e entretenimento na internet – figura entre os maiores interesses capitalistas 13.

Mas se a democratização da educação em todos os níveis, de uma parte, multiplicou a demanda pelo trabalho intelectual nos termos aqui definidos, de outra também provocou, muitas vezes, excessos de oferta. E ao olhar schumpeteriano não escapam as implicações políticas desse de-semprego (ou subemprego) estrutural, fonte de frustrações para quem um dia alimentou o sonho de ascender socioeconomicamente via diploma e credenciais educacionais. O mal-estar decorrente das imperfeições reais ou imaginárias da civilização capitalista fornece matéria-prima cultural rapidamente moldada, racionalizada e difundida pelo discurso das legiões de um baixo clero (a expressão é de Napoleão Bonaparte) formado em especial por professores e jornalistas que invadem os sindicatos e engros-sam os movimentos de trabalhadores, assumindo a tarefa de verbalização das reivindicações destes setores e adicionando-lhes um ‘molho’ radical. A conquista do poder do Estado para derrotar a burguesia, de preferência em substituição às camadas burocráticas tradicionais, mas, quando neces-sário, em aliança com elas, torna-se sua prioridade, objetivo estratégico, obsessão primeira e última. Imaginam, desse modo, haver descoberto a pedra filosofal da fusão entre os interesses históricos das classes exploradas e oprimidas e os do seu grupo de porta-vozes vocacionais 14.

Com a finalidade de enriquecer e atualizar a perspectiva crítica schumpeteriana, passo a comentar as observações de dois outros pen-sadores liberais, o já referido filósofo americano Robert Nozick e o sociólogo francês Raymond Boudon, que, em suas respectivas searas, revelam-se herdeiros à altura do virtuosismo do economista austríaco em desmascarar os desmascaradores.No artigo há pouco citado, Nozick sublinha a aparente “anomalia” es-tatística contida no fato de que, conforme pesquisas de opinião realiza-das nos países desenvolvidos (ou melhor, capitalistas), os intelectuais se situam em termos políticos e ideológicos, à esquerda de outros “grupos de status socioeconômico comparável, opondo-se ao capitalismo com uma freqüência e uma intensidade significativamente maiores que as reveladas por outros segmentos equivalentes”. Depois de mostrar que não são queixas racionalmente formuladas contra a mescla de baixeza e perversidade das intenções, do funcionamento e das conseqüências

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do sistema de mercado e propriedade privada que conduzem à ojeri-za dos intelectuais ao capitalismo, mas, ao contrário, que essa íntima aversão de fato racionaliza o fluxo interminável de tais queixas; e depois também de resenhar e refutar tentativas prévias de explicação do fe-nômeno, Nozick formula sua própria explicação nos seguintes termos (sem dúvida passíveis de questionamento, mas de qualquer modo mui-to engenhosos): ressentimento contra a recusa da vida e do mercado a corroborarem os critérios que escolas e professores utilizam para avaliar desempenhos, premiar méritos e punir fracassos. (Procurarei esclarecer que o movimento intelectual e político da Reforma Sanitária teve ori-gem acadêmica.) Nas suas próprias palavras, em

uma sociedade [onde] um sistema ou uma instituição extrafamiliar, a primeira

em que ingressam os jovens, distribui recompensas, os que têm melhor desem-

penho tenderão a internalizar as normas dessa instituição [a escola] e confiarão

que a sociedade em geral funcionará segundo essas normas; eles se considerarão

com direito a uma parte na distribuição de acordo com essas normas ou (no

mínimo) a uma posição relativa igual àquela que essas normas dão como resul-

tado. Além disso, os que constituem a classe superior dentro dessa instituição

extrafamiliar e que experimentam (ou prevêem experimentar) um deslocamen-

to para uma posição relativamente inferior na sociedade em geral, devido à sua

percepção do direito frustrado, tenderão a se opor ao sistema social mais amplo

e a sentir ojeriza em relação a suas normas 15.

No desdobramento do seu raciocínio, observa Nozick que não é toda mobilidade social descendente pós-escolar que fomenta essa ojeriza, mas aquela que suscita em suas “vítimas” comparações desfavoráveis com a situação de outros grupos. Isso acaba influenciando a atitude for-temente igualitária exibida por tantos intelectuais.

Poderíamos distinguir formas nas quais a classe alta [os melhores alunos] pode

deslocar-se para baixo: pode obter menos que outro grupo ou (quando nenhum

grupo se desloca para cima dela) pode empatar, sem conseguir mais que aqueles

previamente previstos como inferiores. É o primeiro tipo de deslocamento para

baixo o que mais indigna e humilha; o segundo tipo é bastante mais tolerá-

vel. Muitos intelectuais (dizem eles) estão a favor de uma igualdade, ao mesmo

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tempo em que só um número reduzido exige uma aristocracia de intelectuais.

Nossa hipótese se refere ao primeiro tipo de deslocamento, para baixo, como

especialmente gerador de ressentimento e ojeriza. [...] Afirmei antes que os in-

telectuais querem que a sociedade seja uma extensão das escolas. Agora vemos

como o ressentimento devido a um sentido de direito frustrado deriva do fato de

que as escolas (na qualidade de sistema social extrafamiliar) não constituem uma

condensação da sociedade 16.

Em apoio a seu argumento, Nozick enfatiza o ponto de que o mercado incorpora “critérios de recompensa que são diferentes” daqueles adota-dos pelas escolas 17, pois o “mercado, por sua própria natureza, é neutro com relação ao mérito intelectual” 18. Em uma sociedade capitalista, baseada em interesses e preferências os mais diversificados, as recom-pensas vão para quem produz bens e serviços que preencham alguma necessidade ou, por qualquer motivo, caiam no gosto dos consumido-res. Como admite Nozick, se “há mais gente disposta a pagar para ver Robert Redford do que para assistir às minhas conferências ou ler meus escritos, isso não implica uma imperfeição do mercado” 19. Por vezes até, reconhece Nozick, a preferência do grande público coincidirá com o julgamento dos críticos mais vigorosos consagrando popularmente ro-mances, quadros e outras obras de arte de alto e duradouro valor intelec-tual e estético e recompensando com muito dinheiro, além de prestígio, os seus autores.

Mas, de maneira geral, a nostalgia da superioridade acadêmica e as amarguras experimentadas pelo intelectual com a aparente aleatoriedade das recompensas do mercado são de molde a predispô-lo a se deixar sedu-zir pelo sistema distributivo centralizado das economias socialistas/comu-nistas, que se assemelha a um professor coletivo judicioso e infalível na premiação dos mais aplicados alunos da turma. Nozick, é claro, rechaça duramente essa ilusão: “Se os inteligentes têm direito a algo que o merca-do não lhes dá, é ao reconhecimento de que são inteligentes – nada mais. Não têm direito às maiores recompensas da sociedade em geral” 20.

Obviamente, Nozick não propõe uma ‘desescolarização’ da socie-dade capitalista para superar o problema que diagnostica. Afinal, o capitalismo é impulsionado, hoje mais do que nunca, pelos frutos do conhecimento científico e pelas tecnologias de informação, o que de-

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manda investimentos gigantescos na formação acadêmica e permanente atualização profissional dos seus quadros. Limita-se a apontar a fricção ideológica e política entre alguns segmentos destes quadros (basicamen-te os “forjadores de palavras”) e a lógica da distribuição de recompensas via mercado. A seu ver, essa fricção é amplamente compensada pelas vantagens trazidas pelo sistema para um sem-número de consumidores. Mas adverte que os intelectuais dificilmente deixarão de ter “a última palavra” nos debates da sociedade contemporânea, pois são eles que dão “forma a nossas idéias e imagens da sociedade” e “proporcionam as fra-ses com que nos expressamos [...], especialmente em uma sociedade [...] ‘pós-industrial’, que cada vez depende mais da formulação explícita da propagação da informação” 21.

O sociólogo Raymond Boudon, professor-emérito da Sorbonne, membro da Academia de Ciências Morais e Políticas da França e autor, entre várias obras de relevo, de Efeitos perversos e ordem social (ed. bras.: Zahar), corrobora o valor da tese nozickiana da recusa dos intelectuais ao liberalismo em conseqüência da sua frustração com um mercado que não lhes assegura as compensações de que se julgam merecedores, acrescentando que um estudo empírico já verificou que essa tese “con-tém [...] uma certa dose de verdade” 22. Mas propõe enriquecer o quadro analítico com outras dimensões.

Boudon defende o pressuposto filosófico liberal – pedra angular, por exemplo, da meditação moral e política do iluminista Immanuel Kant (1724-1804) – da autonomia e da dignidade do indivíduo racional que reivindica direito ao reconhecimento dessas mesmas autonomia e dignidade na medida em que se dispõe igualmente a reconhecê-las nos seus semelhantes. A adesão generalizada a esses princípios, nos Estados Unidos, na Europa Ocidental, na Ásia-Pacífico, possibilitou tanto o enri-quecimento material e cultural das sociedades fundadas em um regime de liberdade e responsabilidade pessoal quanto o vigor explicativo e pre-ditivo das teorias econômicas, políticas e sociológicas filiadas à tradição do “individualismo metodológico”, segundo a qual “qualquer fenômeno coletivo é [grifo do autor] o produto de ações, crenças ou comportamen-tos individuais” 23. Expressa em obras clássicas como as do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) e do alemão Max Weber (1864-1920), entre outros autores, essa perspectiva procura desvendar as lógicas de estru-

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turação, funcionamento e mudança das macroorganizações e suas res-pectivas regras institucionais (religiões, regimes políticos, sistemas eco-nômicos, burocracias e assim por diante) por meio da reconstituição dos significados que seus próprios participantes individuais lhes atribuem, examinando suas preferências e aversões. Afinal, se Weber sustenta que não é preciso ser Júlio César para compreendê-lo é porque os seres hu-manos de diferentes tempos e lugares compartilham um substrato de ra-cionalidade tal que ao historiador ou cientista social é possível colocar-se mentalmente na posição dos membros dos grupos, sociedades e épocas estudadas e interpretar correta e consistentemente suas atitudes.

Assim, para Boudon, a tradição liberal (filosófica, política, econômica)

se destaca pela sua atenção à complexidade dos fenômenos econômicos e so-

ciais, pela sua cultura da tolerância, pela sua insistência na importância das aná-

lises argumentadas, pela sua valorização do espírito crítico, pela sua crença na

possibilidade de construir um saber objetivamente válido e pela sua convicção

de que as ciências humanas não passarão de imposturas se não acreditarem nessa

possibilidade 24.

Ele reconhece, ao mesmo tempo, que a massificação do ensino uni-versitário, na maior parte do mundo desenvolvido desde a segunda me-tade do século XX, acaba embutindo uma séria ameaça a esses valores e padrões – algo, aliás, que, como visto acima, Schumpeter parece já haver intuído ao referir o excesso de oferta de intelectuais como fator de radicalização político-ideológica. Talvez com a exceção solitária da economia, onde o pleno estabelecimento de modelos matemáticos alta-mente formalizados fundamenta uma busca exigente dos vínculos entre macrofenômenos e seus microalicerces (expectativas dos agentes e os in-centivos ou desincentivos com que as regras institucionais balizam seu comportamento), as demais ciências humanas, lamenta-se Boudon, es-tão divorciadas do liberalismo. É o caso de grande parte do que hoje passa sob os rótulos disciplinares de sociologia, ciência política e antropologia.

Nesses institutos e departamentos universitários, desde os anos 60, os cientistas vocacionados para a pesquisa da verdade, por meio da “discus-são metódica” e da “seleção racional das idéias”, com vista ao avanço do saber, foram perdendo terreno para uma legião formada por aspirantes

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à categoria que o líder comunista Antonio Gramsci (1891-1937) classifica de intelectuais orgânicos, militantes de movimentos sociais e partidos políticos que instrumentalizam seus postos e credenciais acadêmicos a serviço da conquista do poder (ou, como é moda dizer hoje em dia, de uma agenda política qualquer). No processo, valem-se de idéias e teorias que, se não são “verdadeiras”, mostram-se “úteis” no preenchimento das demandas corporativas e psicológicas de multidões de semiletrados pro-duzidas aos borbotões pela universidade 25. Desaparecem de cena as aná-lises dos “fenômenos sociais, políticos e econômicos [...] que envolvem ferramentas intelectuais, sistemas argumentativos e uma atitude men-tal” dependente de “uma aprendizagem muitas vezes encarada como ingrata” 26. Em seu lugar, passam a reinar soberanas correntes direta ou indiretamente inspiradas no marxismo, na psicanálise, no estruturalis-mo nietzschiano de Michel Foucault (1926-1984) e no desconstrucionis-mo de Jacques Derrida (1930-2004).

Não mais importa que essas igrejinhas intelectuais afirmem como fa-tos opiniões e preconceitos, dispensando-os do entediante procedimento dos testes para comprovação/refutação de hipóteses, pois, como alerta Boudon,

A seleção de idéias e das teorias explicativas dos fenômenos políticos, econômi-

cos e sociais a partir dos critérios com base nos quais são normalmente julgadas

as teorias científicas cede o lugar a uma seleção pela utilidade [grifo do autor],

no sentido lato do termo. Uma teoria passa a ter acolhimento porque responde

a esta ou àquela procura, por parte deste ou daquele grupo, ou ainda porque

satisfaz uma procura tão antiga como o mundo: a procura de “novidades”. A

partir do momento em que as ciências humanas se consideram exoneradas das

obrigações a que estão sujeitas as ciências duras, tendem a transformar-se em

“ciências” entre aspas 27.

Tampouco importa que a falta de rigor científico e o desleixo conceitu-al instaurem o reinado do relativismo, do vale-tudo metodológico. Em um movimento de compensação perversa, o vácuo de objetividade é preenchido por um absolutismo moralista com fortes tons emocionais, em defesa de agendas politicamente corretas. Abro aspas, mais uma vez, para Boudon:

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O reconhecimento da capacidade de compreender [grifo do autor] pressupõe

uma concepção objetivista. O reconhecimento da capacidade de sentir [idem],

não. Acresce que, se um dado juízo moral vai ao encontro da sensibilidade de

um certo público, ou cumpre os dogmas que cimentam uma determinada rede

de influência, pode ser socialmente rentável.

A isto é preciso acrescentar, antecipando uma objeção possível, que o relativis-

mo cognitivo [...] não implica de maneira nenhuma o relativismo em matéria de

moral. Pelo contrário, [...] como uma convicção não pode, à luz do relativismo

cognitivo, ser objetivamente fundamentada, o fato de ser vivida [grifo do autor]

como justa é facilmente encarado como critério que permite validá-la. [...]

[...]

O intelectual cede facilmente à tentação de se apresentar como uma “boa alma”:

de defender os bons sentimentos. Sabe que tem poucas probabilidades de ser

desmentido. Os seus eventuais contraditores guardarão silêncio, porque é peri-

goso ferir os bons sentimentos. Por isso pode desenvolver em total tranqüilidade

as suas análises, mesmo que elas sejam mais úteis que verdadeiras [grifos do

autor]. São esses processos que explicam que se implantem – em alguns casos por

muito tempo – idéias falsas e contraproducentes, e que seja preciso esperar pelo

veredito da realidade para que elas feneçam (28). [Boudon tem em mente con-

forme episódio que comentou um pouco antes, o lobby para o rebaixamento das

exigências de ingresso na vida acadêmica em favor de certos grupos sociais sob a

justificativa de reparação das iniqüidades históricas de que teriam sido vítimas.]

Por último, mas não em último, importa menos ainda que o colapso do comunismo soviético, a lembrança dos horrores da Revolução Cultural chinesa e a escancarada mescla de precariedade econômica e opressão política do regime cubano tenham comprometido o prestígio político e intelectual do marxismo; ou que a sociologia e a ciência política pra-ticadas com a devida seriedade hajam demonstrado que a estrutura das sociedades avançadas (melhor dizendo: capitalistas) se compõe de uma rede hierarquizada e diversificada do que Boudon chama de estatutos (que outros sociólogos denominam grupos de status e outros, ainda, esta-mentos), cuja imagem sintética se traduz em “uma imensa classe média, uma população de ‘excluídos’ e uma fina camada de beneficiários de ‘gordos proventos’”. 29 Contra todas as evidências, aferram-se os intelec-tuais orgânicos ao encanto simplificador da visão de uma sociedade eter-

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namente dilacerada pela luta entre duas grandes classes: a dominante e a dominada. 30 Esse dualismo empobrecedor, ouso eu aduzir, lembra o guarda-roupa de uma decadente companhia de teatro, cujos adereços, basicamente fantasias de mocinho e vilão para lá de esfarrapadas, vestem sucessiva ou simultaneamente atores coletivos engalfinhados nas mais variadas disputas: militantes ecológicos e anti-globalização X Organi-zação Mundial do Comércio; Movimento Sem-Terra × latifundiários; índios X brancos; feministas X machistas – e por aí vai...

Tudo leva a crer, portanto, que há forças sociais que atuam no sentido de man-

ter a oposição entre uma classe dominante e uma classe dominada; tudo se passa

como se essas forças tivessem o poder de aniquilar as boas intenções dos políti-

cos. Assiste-se, então, ao aparecimento de um discurso do tipo: “A quem apro-

veita o crime? À classe dominante.” Indo mais longe, alguns intelectuais pre-

tendem demonstrar que os mecanismos pelos quais é assegurada a reprodução

da classe dominante são clandestinos. A escola valorizaria a cultura burguesa e

julgaria em última análise os indivíduos em função da sua familiaridade com a

cultura da classe dominante, sem que a generalidade dos atores envolvidos disso

se apercebesse. [grifos do autor]

Frisa Boudon que tal “explicação [...] foi generosamente divulgada pela comunicação social”. 31

Atente o leitor para a frase acima: “Sem que a generalidade dos au-tores envolvidos disso se apercebesse”. Repudiando e menosprezando, como dito há pouco, o enfoque da “psicologia clássica” ou “racional” (de amplas afinidades com a antropologia filosófica liberal), (32) em benefício do determinismo das estruturas opacas tão ao gosto dos cha-mados mestres da suspeita – Marx e a falsa consciência secretada pela ideologia dominante; Freud e o inconsciente; Nietzsche e a vontade irracional de poder, e seus inúmeros herdeiros nos séculos xx e xxi –, esses intelectuais se arvoram em guias oniscientes dos cidadãos e mes-mo (ou principalmente) dos governantes, multidão de ingênuas almas, prisioneiras das trevas do “senso comum”. 33

Intelectuais à brasileira: a herança da Contra-Reforma e do patrimonia-lismo versus capitalismo e liberalismo. Cooptação versus representação

1.2.

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Se essa é a situação no mundo desenvolvido das sociedades onde o ca-pitalismo e o regime liberal-democrático lograram realizar seu enorme potencial de criação de riqueza, distribuição de renda e convivência so-ciopolítica civilizada, o que dizer então destes tristes trópicos, marcados pela herança de ódio ao lucro do catolicismo contra-reformista, de um lado, e por constelações de interesses políticos e burocráticos que se apropriam do patrimônio do Estado, assim bloqueando o florescimento da ordem competitiva e o amadurecimento do sistema representativo, de outro? 34

A intelectualidade brasileira, de forma geral, odeia o capitalismo e o liberalismo sem que estes jamais hajam sido tentados a sério por aqui.

Há mais de dois anos, a revista Exame, no bojo de circunstanciada reportagem sobre o viés antilucro da cultura brasileira, 35 publicou os re-sultados de duas pesquisas de opinião que dão bem a medida do abismo entre as atitudes do empresariado e as do público em geral deste país acerca do mecanismo de produção de riqueza e da sua legitimidade so-cial. Assim, sondagem da Fundação Armando Álvares Penteado, de São Paulo, com 102 grandes empresários definiu que a principal missão das empresas consiste em “Dar lucro aos acionistas” (com 82% das respos-tas). Ao mesmo tempo, em estudo com uma amostra da população, esta resposta veio em sétimo lugar (empatada com “Derrotar a concorrência, sem ferir a ética”, atraindo apenas 10% das opções), depois de: “Ge-rar empregos” (93%); “Ajudar a desenvolver o país” (60%); “Desenvol-ver trabalhos comunitários” (42%); “Aliar crescimento à justiça social” (31%); e “Recolher os impostos devidos” (29%). 36

Mas, como observa Antônio Paim, a “recusa do capitalismo antes mesmo de vivenciá-lo não é fenômeno recente em nosso país [...]” 37.

A ascendência da Inquisição (Tribunal do Santo Ofício) sobre o po-der temporal em Portugal e nas suas colônias nos séculos xvi a xviii bloqueou as fontes do desenvolvimento capitalista e isolou o país das correntes de transformação econômica, política e científica que, sob o impacto do Renascimento, da Reforma protestante e do Iluminismo transformaram profundamente outras partes da Europa nesse período.

Particularmente, Paim documenta como sucessivas ondas de perse-guição aos mercadores e financistas judeus na Península Ibérica acaba-ram inviabilizando o mais pujante complexo produtivo pela primeira

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vez estabelecido em terras do Novo Mundo: a agromanufatura do açú-car. “Entre as últimas décadas do século xvi e meados do século xvii [...] o Brasil chegou a responder por cerca de 80% da oferta mundial de açúcar”, 38 produzido pelos engenhos do litoral nordestino que se con-centraram no Recôncavo Baiano e na zona da mata de Pernambuco.

Paim chama atenção para o fato de que o capital investido no negócio açucareiro provinha de empresários que haviam engrossado as grandes levas de judeus que abandonaram a Espanha e Portugal desde a virada dos séculos xv a xvi, quando a coroa espanhola impusera a sua con-versão ao catolicismo (1492). Fixaram-se em “outras partes da Europa, especialmente [n]os Países Baixos, mais tarde desmembrados para dar nascedouro à Holanda e à Bélgica. Ao longo do século xvi, conseguem refazer suas fortunas e situam-se entre os principais banqueiros euro-peus. Nessa altura, nos meios econômicos, português torna-se sinônimo de judeu”. 39 Forçados a aceitar a condição de cristãos-novos, os parentes desses financistas que permanecem em Portugal receberam seu apoio na organização da produção açucareira do Brasil.

Por algum tempo, nem mesmo a imigração e a conversão forçadas conseguiram suprimir o papel estratégico (e dinâmico) desempenhado pelos judeus na economia da época, pois exerciam uma atividade que, conquanto cada vez mais necessária à expansão e consolidação do im-pério lusitano, estava oficialmente proibida aos dois mais importantes grupos da elite, os nobres e os eclesiásticos: a intermediação financeira, estigmatizada pela usura (cobrança de juros), pecado que a Igreja Cató-lica duramente condenava. 40 Nas palavras de Paim, não obstante

a presença da Inquisição, os judeus decidiram-se pela implantação do empre-

endimento açucareiro no Brasil. Tudo leva a crer que a junção das Coroas

portuguesa e espanhola, em 1580, haja facilitado tais objetivos [...] O certo é

que daquela decisão se evidenciaram as grandes possibilidades de nosso país.

Nos meados do século XVII havia aqui uma sociedade próspera e rica, capaz de

afrontar e expulsar os holandeses, que se haviam transformado em uma potência

militar importante [...]

Enquanto o Brasil sobressaía com o empreendimento açucareiro e com as guer-

ras contra a Holanda, os Estados Unidos não deixavam entrever nenhuma indi-

cação de que chegariam a ser a maior potência mundial (41).

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Apesar desse início bem-sucedido, o recrudescimento das expropria-ções e condenações à fogueira – não mais somente de cristãos-novos acusados de se manterem fiéis à sua religião original, como no iní-cio, mas atingido muitos outros agentes econômicos –, movidas pela Inquisição, em Portugal e no Brasil, de meados do século xvii até o advento do despotismo modernizador do marquês de Pombal (Sebas-tião José de Carvalho e Melo, 1699-1782, no reinado de dom José I, de 1750 a 1777), acabou por desmantelar o empreendimento açucarei-ro fomentando uma diáspora de recursos humanos e financeiros nas Américas. Capitais migraram para o Caribe, cuja concorrência viria a suplantar a produção dos engenhos brasileiros, e empreendedores oriundos de Pernambuco ajudaram a fundar Nova Amsterdã, mais tar-de Nova York.

No contexto da Contra-Reforma, a repressão inquisitorial era com-plementada pela doutrinação eclesiástica hostil à riqueza e ao lucro. Nessa conexão, Paim destaca as obras dos chamados moralistas do sé-culo xviii Assim, por exemplo, enquanto o Compêndio narrativo do peregrino da América, verdadeiro bestseller (cinco edições de 1728 a 1765), de Nuno Marques Pereira (1625-1735), enaltece a “santa virtude da pobreza”, que constitui “um hábito da vontade humana alumiada do entendimento”, capaz de contentar “um homem com só aquilo que é necessário e lhe basta, desprezando o supérfluo e o desnecessário”, os Discursos políticos e morais, obra de 1758 de Feliciano de Sousa Nunes (1730-1808), antigo alto funcionário da administração do Rio de Janeiro, propõem o seguinte raciocínio: “As maiores riquezas que pode lograr o homem [são] a salvação, a liberdade e a vida. E, se com a riqueza excessiva a alma se arrisca, a liberdade se perde e a vida se estraga, como não virá o homem a ser tanto mais necessitado quanto for mais rico? Como não será a sua riqueza excessiva o mais certo prognóstico da sua maior necessidade e miséria?”. Adiante, a prédica de Sousa Nu-nes invoca a autoridade erudita de são Jerônimo (347-419), responsável pela vulgata, adotada pela Igreja como tradução oficial da Bíblia para o latim, segundo quem “todas as grandes riquezas são filhas ou netas da iniqüidade ou injustiça, porque um não pode achar o que o outro não tem perdido”; concluindo com aquela sentença de Aristóteles, que “o rico ou é injusto ou do injusto é herdeiro”. 42

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Paim repisa o contraste do clima de opinião fomentado por essas idéias com aquele predominante, à mesma época, nos países onde triun-fou a Reforma, como os Estados Unidos.

Essa aversão ao lucro e à riqueza deixou marcas profundas em nossa cultura

e trouxe algumas conseqüências de que não conseguimos até hoje nos livrar.

Entre estas sobressai a pouca valorização dos empresários (e da própria empresa

privada), que respondem pela oferta fundamental do emprego, mesmo numa

economia com os níveis de estatização alcançados pela brasileira [...]

Outra atitude que gravita em torno da aversão ao lucro é o entendimento do

trabalho como uma espécie de domínio adverso e não como o caminho da re-

alização pessoal [...] A aceitação do trabalho pela elite, na Época Moderna, é

certamente um resultado das religiões protestantes. Mas depois de constituída a

sociedade moderna esse valor dissociou-se de suas origens e tornou-se uma aqui-

sição consensual transmitida pela educação [...] A esse propósito cabe ter pre-

sente a advertência do grande Benjamim Franklin (1706-1790), um dos artífices

da Independência americana e de suas instituições republicanas [...] Dizia ele

que os americanos teriam de copiar a maioria das instituições de seus ancestrais

ingleses. Entre essas, entretanto, repudiava os procedimentos oficiais de assistên-

cia aos pobres, por lhe parecer que estimulavam a preguiça. Para construir uma

nação digna desse nome, neste lado do Atlântico, só restava aos ingleses que por

tal optaram lançar-se denodadamente ao trabalho, cumprindo combater com

decisão tudo que se lhe contrapusesse 43.

O momento pombalino marcou o temporário afastamento do poder do clero e dos seus aliados no seio da nobreza. (Em 1759, por exemplo, fo-ram expulsos os jesuítas de Portugal e do Brasil.) Pombal implementou uma agenda de reformas modernizadoras do sistema colonial e da com-balida economia portuguesa, o que significou, dentre outras medidas, a reforma do ensino universitário (Coimbra, 1772 ) destinada a abrir o país às inovações científicas e tecnológicas que já colocavam a Inglaterra no rumo firme da liderança na Revolução Industrial e da hegemonia mundial. Tratava-se, porém, de uma abertura seletiva, que, por objetivar estritamente o fortalecimento do Estado patrimonial, excluía o amplo debate das pioneiras propostas liberais para a construção de um regime político representativo, alicerçado nas garantias de direitos civis – como a

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livre manifestação de opiniões – e políticos – expressão parlamentar dos principais interesses da sociedade –, com vista à limitação do poder do governo mediante o consentimento dos governados. (Eis aí, a propósito, o significado fundamental das teorias contratualistas como a defendida pelo filósofo liberal inglês John Locke (1632-1704): a existência do poder soberano, que é simultaneamente comum e superior aos indivíduos, se estriba na proteção dos direitos destes por meios comumente pactuados de modo a afastar a ameaça de violência generalizada, caso cada um e todos pudessem somente fazer justiça com as próprias mãos a fim de de-fender esses mesmos direitos, a saber: sua vida, sua liberdade, seus entes queridos e sua propriedade – o que evoca a famosa imagem da “guerra de todos contra todos”, de outro importante pensador inglês, Thomas Hobbes (1588-1679)) 44.

Com o redesenho pombalino do Estado patrimonialista, o Brasil acompanhou a metrópole inglesa apenas pela metade na Era Moderna. E até hoje, insiste Paim, não o fez por inteiro, pois, no prolongamento dessa sólida tradição da segunda metade do século xviii ao xx, moder-nização significaria apenas “industrialização”, mas não “a incorporação das instituições do sistema representativo, que são o resultado mais sig-nificativo da Era Moderna”. A difícil tarefa de superação do patrimo-nialismo brasileiro se reveste, desde sempre, de uma incontornável di-mensão política, já que não passa de uma grande ilusão imaginar-se que possa ser considerada como um arremedo de Parlamento, constituído a partir do sistema proporcional, sem correntes de opinião que lhe sejam contrárias, plenamente estruturadas, sem partidos políticos respaldados naquelas correntes de opinião etc.” 44.a.

Um esclarecimento oportuno: o patrimonialismo é o regime tipifica-do na sociologia política de Weber com base na apropriação dos recur-sos da sociedade em proveito particular dos governantes e na minuciosa regulamentação burocrática dos grupos de interesses, das relações destes entre si e com o Estado. 45 Cumpre observar, também, que esse regime pode conhecer momentos modernizadores e racionalizadores, impli-cando invariavelmente o fortalecimento e a expansão do controle da burocracia estatal: foi assim em Portugal na segunda metade do século xviii sob o marquês de Pombal. Foi assim, também, no Brasil do século xx, em duas ocasiões. Na primeira metade da centúria, o processo se

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identificou com a ascensão de Getúlio Vargas (1883-1954) à Presidência da República, via Revolução de 1930, culminando na implantação da ditadura do Estado Novo (1937-1945) e prolongando-se, sob o regime democrático instaurado no marco constitucional de 1946, com a volta de Vargas em 1951, dessa feita como presidente eleito no ano anterior, até o seu suicídio em 1954.

Na segunda metade do século passado, a modernização patrimonia-lista foi assumida pelo movimento político-militar de 1964 que instaura-ria um regime autoritário mantido até 1985 46.

Tanto Vargas quanto os militares eram herdeiros do positivismo, cor-rente de duradouro prestígio nos círculos governantes brasileiro. 47 Aqui, a doutrina tecnocrática do filósofo francês Augusto Comte (1798-1857) se enxertou e floresceu no tronco do cientificismo pombalino, que havia modelado a Real Academia Militar, no Rio de Janeiro, no contexto da reforma universitária de 1772 há pouco referida.

No século xix, depois da Independência, a academia se desmembrou na Escola Militar e na Escola Central, depois Escola Politécnica, esta dedicada ao ensino da matemática, das ciências e da engenharia voltado tanto para militares quanto para civis. O tenente-coronel do Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), ex-aluno da pri-meira e professor na segunda, foi o maior propagador da doutrina posi-tivista no Exército e sonhava com uma ditadura científica republicana. Sua presença à frente dos ministérios da Guerra (1889) e da Instrução Pública (1890) assinalou a influência política e o prestígio intelectual do positivismo nos primeiros anos da República.

Vargas, por sua vez, era discípulo e continuador do chamado casti-lhismo, concepção positivista do monopólio do poder político por um grupo modernizador formulada por Júlio de Castilhos (1860-1903), líder republicano gaúcho e, com o advento da República, primeiro presiden-te (governador) do Rio Grande do Sul. A constituição estadual por ele concebida permitia a reeleição ininterrupta do chefe do Executivo. A situação castilhista se manteve no poder durante praticamente toda a República Velha (1889-1930). Com a sua morte, o governo passou a An-tônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), que presidiu o estado de 1898 a 1928, com uma única interrupção, no qüinqüênio 1908-1913, até passar o cargo ao próprio Getúlio. 48 De 1930 em diante, a vertente

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castilhista do patrimonialismo modernizador, estatizante e nacionalista erigiu-se em doutrina do governo nacional. No registro de Paim,

O grupo que Getúlio Vargas trouxe do Rio Grande do Sul – e que iria pro-

gressivamente conquistar a hegemonia do conjunto das forças que se uniram

para promover a Revolução de 30 – era francamente autoritário. Não atribuía

nenhum papel ao Parlamento nem este existia naquele estado durante a Repú-

blica Velha. As leis eram feitas pelo Executivo, que tinha o poder de intervir nos

municípios. Era de fato uma ditadura; embora tivesse desaparecido a retórica da

ditadura republicana, que fora o slogan [grifos do autor] preferido nos começos

da República [...] 49.

Desde os anos 20 e 30, sempre de acordo com Paim, o panorama in-telectual do patrimonialismo brasileiro incorporou uma dimensão de esquerda. Na academia, o professor da Faculdade de Direito do Rio Le-ônidas de Resende (1889-1950) contribuiu para a sobrevida da influên-cia comtiana sistematizando uma versão positivista do marxismo que alcançaria ampla divulgação nos meios intelectuais e políticos. (50) Na arena política, o modelo preconizado pelo Partido Comunista, de um Estado comandado por uma burocracia monopolizadora dos meios de produção e arregimentadora da sociedade mediante mecanismos de cooptação, revelou marcante afinidade com a moral contra-reformista antagônica ao lucro privado, profundamente enraizada no solo cultural brasileiro. Para Paim, isso confirma a tese do historiador e cientista polí-tico alemão Karl A. Wittfogel (1896-1988) acerca do socialismo comunis-ta como virtualidade do patrimonialismo. (51)

A propósito, cumpre lembrar que os regimes implantados na Rússia em 1917, na China em 1949 e nas nações subdesenvolvidas da América Latina (Cuba), África e Ásia depois da Segunda Guerra traduziram-se em gigantesca refutação da profecia de Marx, que havia atribuído aos países mais ricos e industrializados, como Grã-Bretanha, França e Ale-manha, o papel de locomotivas do processo revolucionário em escala mundial, por entender que neles o forte e acelerado desenvolvimento das forças produtivas acabaria por explodir os limites impostos pelas re-lações de produção de propriedade privada, contra o pano de fundo do conflito insolúvel entre uma burguesia capitalista cada vez mais rica e

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diminuta e um proletariado cada vez mais numeroso e miserável. Isso, simplesmente, não se verificou: na Economia Ocidental e no Japão do pós-guerra, assim como nos chamados tigres asiáticos, os avanços tecno-lógicos e gerenciais da economia de mercado promoveram a expansão de classes médias prósperas, ao mesmo tempo em que o sistema liberal-democrático representativo institucionalizou as regras da disputa pelo poder entre partidos políticos no marco de eleições periódicas.

Antes de finalizar a presente exploração sobre a evolução do híbrido ideológico formado por anticapitalismo contra-reformista e cientificis-mo positivista-marxista no marco do patrimonialismo brasileiro, apro-veito para encaixar aqui mais um breve e indispensável esclarecimento acerca do sistema cooptativo. Paim o caracteriza como aquele em que “a escolha da elite dirigente dá-se pela cooptação daqueles que se en-contram no poder”, (107) e, acrescento eu, não pelas regras que assegu-ram a competição político-eleitoral no sistema representativo (governo dos representantes da maioria limitado por conjunto de direitos civis e políticos, tais como liberdade de opinião e associação, propriedade privada, respeito aos contratos, devido processo legal para a solução de disputas dos cidadãos entre si ou entre eles e o Estado).

Regimes cooptativos se implantam quer mediante revoluções e golpes de Estado que consolidam sistemas de partido único ou de su-premacia esmagadora de um partido político (casos soviético; chinês; cubano; mexicano sob 70 anos de hegemonia ininterrupta do Partido Revolucionário Institucional (pri); ditaduras africanas que sucederam ao colonialismo europeu), quer mediante os mecanismos eleitorais da democracia representativa ou dos dispositivos de consulta popular direta por ela constitucionalmente autorizados – como plebiscitos e referen-dos – (nazismo alemão, fascismo italiano).

Presente no cotidiano político desses regimes, o sistema cooptativo po-voa, também, o imaginário de alguns movimentos sociais e dos partidos totalitários a que a democracia liberal representativa reconhece existência legal e plenas liberdades de organização e manifestação. Liberdades que esses movimentos e partidos desejam, de forma velada ou ostensiva, negar aos seus adversários liberais, conservadores ou social-democratas, uma vez conquistado o poder. Enquanto o Grande Dia não chega, empenham-se em denunciar e desacreditar a democracia representativa como jogo de

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cena da elite do poder ou da classe dominante, unicamente interessada em perpetuar seu mando com exclusão das massas populares ou da classe dominada, ao mesmo tempo em que promovem princípios como o da “democracia direta”, do poder popular do “processo participativo” (ple-biscitos, conselhos, assembléias corporativas) e do “controle social”.

A digressão acima me parece importante para os propósitos do pre-sente estudo, uma vez que o discurso da democracia participativa e do controle social é o eixo estruturador não só das propostas e intervenções do grupo de intelectuais de esquerda que articulam o movimento da Reforma Sanitária e em seguida o Sistema Único de Saúde (sus) como também da visão de mundo do Partido dos Trabalhadores em seu quarto de século de presença no cenário político brasileiro, além do que o pt, desde sua incepção, serviu como desaguadouro político, ou ao menos aliado firme, para a maioria dos militantes daquela reforma.

Com efeito, o pt constitui a síntese mais acabada das três principais expressões do anticapitalismo liberal na atualidade brasileira: o contra-reformismo hostil ao lucro da ala dita progressista da Igreja Católica, que desempenhou papel protagônico na formação e evolução do parti-do; o cientificismo marxista de forte talhe positivista, avesso ao sistema representativo – tanto quanto entusiasta do cooptativo –, dos intelectuais que dirigem as várias facções componentes do pt; e o patrimonialismo burocrático das corporações de funcionários do governo e das empresas estatais que pregam o fortalecimento do intervencionismo econômico e mesmo a reestatização de indústrias ou setores privatizados.

O fato de o líder máximo da história do partido, Luiz Inácio Lula da Silva, haver sido eleito (2002) e reeleito (2006) à Presidência da Repú-blica mantendo-se fiel a algumas poucas “cláusulas pétreas” da política econômica de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso – moeda es-tável/inflação baixa (metas inflacionárias), câmbio flutuante e responsa-bilidade fiscal (esta última, ao que parece, cada vez mais problemática diante da recente escalada dos gastos públicos correntes) – apenas con-tribui para ressaltar a ambigüidade entre os princípios programáticos e os condicionamentos pragmáticos da ação política do pt no atual am-biente da democracia brasileira.

Para reforçar esse ponto, Paim reconstitui os marcos mais salientes da tra-jetória da agremiação, à base de programas e outros documentos partidários,

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bem como manifestações de seus quadros mais expressivos, com ênfase na obstinada recusa de seus dirigentes e militantes em geral ao sistema repre-sentativo. Passo a destacar os principais pontos dessa reconstituição. (53)

Desde o começo, as preferências ideológicas do partido se voltavam para regimes assemelhados ao de Cuba ou ao da Nicarágua sandinista. Mesmo depois da sua participação em todas as eleições dos anos 80; do desenvolvimento de sua atuação na Assembléia Nacional Constituinte (embora seus representantes à mesma tenham-se recusado a assinar a Carta de 05 de outubro de 1988, amaldiçoando-a como fruto de um parlamento sob hegemonia burguesa inimiga do movimento popular, espaço destinado, portanto, ao mero exercício da agitação e propagan-da) e de o seu candidato (Lula) haver conquistado 17,2% da votação no primeiro turno do pleito presidencial de 1989 e 47% no segundo turno, “o pt não renunciou ao sistema cooptativo”, conforme assinala Paim ao analisar a documentação posterior àqueles eventos, a qual ainda falava em “criar uma ‘democracia popular’ – por sinal [,] o mesmo nome ado-tado pelos satélites da União Soviética”. (54)

Ele classifica o Plano de Ação Política e Organizativa do pt, aprova-do no 4º Encontro Nacional do partido (maio/junho de 1986) e conten-do a posição oficial do partido ante o governo Sarney (1985-1990), como um documento

tipicamente estalinista. Começa por postular o estágio de desenvolvimento do

capitalismo no Brasil com caracterização das classes sociais e da “conscienti-

zação e organização” [das mesmas]. Conclui pela inegável existência de uma

“situação de luta de classes”. E mais, a “superação definitiva da exploração e da

opressão sobre o povo brasileiro não se dará com simples reformas superficiais e

paliativas, mas com a ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de

uma sociedade sem classes”.

[...]

O texto trata, em seguida, das transformações na direção do socialismo, regime

que é, desde logo, identificado com a estatização da economia, embora sejam

ressalvadas “situações decorrentes da expansão diferenciada do capitalismo”, tor-

nando “necessário e possível, nos primeiros tempos de uma sociedade socialista

no Brasil, utilizar diversas e múltiplas formas de propriedade social dos meios de

produção [...]” (55).

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A experiência da eleição presidencial de 1989 (ganha por Fernando Collor) fez a maior parte da cúpula do pt vislumbrar a oportunidade de chegar ao poder pelo voto. “Mas não se renuncia à substituição progres-siva do sistema representativo pelo sistema cooptativo, apresentado eu-femisticamente como ‘democracia popular’”. (56) O programa de gover-no para o pleito presidencial seguinte (“Bases do Programa de Governo – 1994. Uma Revolução Democrática no Brasil”), foi reproduzido quase na íntegra para a eleição de 1998. Em ambos os pleitos, Lula perderia para fhc em primeiro turno.

O tom desse programa reflete uma sensibilidade da facção majo-ritária do partido, a Articulação (encabeçada pelo próprio Lula e pelo então deputado federal paulista José Dirceu), ao crescimento e à diver-sificação do eleitorado petista. Daí o esclarecimento preliminar de que “não se trata de implantar o socialismo, mas de introduzir reformas que são apresentadas como ‘uma revolução democrática’”. Mas, no plano político-institucional, o documento se aferra a eufemismos para acen-tuar sua tradicional posição anti-representação e pró-cooptação, como “socialização da política do poder’; ‘mecanismos de controle social’; ‘de-mocracia direta’ etc [...]”. E, quanto à política econômica, a posição se-gue sendo estatizante, “falando-se até mesmo em revisão e anulação das privatizações”, além de cortejar o fechamento ao mundo desenvolvido, uma vez que, “se eleito, o governo ‘democrático-popular’ suspenderá o pagamento da dívida externa.” (57) Isso para não falar da ridícula utopia de alterar a correlação de forças internacionais com o Brasil petista pre-enchendo o vácuo aberto pelo desmantelamento da urss e a implosão do seu império na Europa Oriental!... (58).

Nesse meio tempo, verificou-se uma mudança, prenhe de significa-do político, na composição social dos quadros petistas: o partido da aris-tocracia sindical brasileira, nascido das greves de operários de macacão na região do abc paulista, então (final dos anos 70 e início dos 80) o pólo mais dinâmico do capitalismo brasileiro graças à forte concentra-ção de indústrias metalúrgicas e automobilísticas, quem diria, foi cap-turado por quadros de colarinho branco da burocracia governamental e da tecnocracia das empresas estatais, cuja sindicalização passa a ser permitida sob a Carta de 88. O mesmo se passou com a Central Única dos Trabalhadores, braço sindical do pt. Tratava-se de um sério reforço

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das posições anticapitalistas, estatizantes corporativistas e nacionalistas do partido, que daí em diante consolidou sua posição como principal foco de resistência aos projetos de abertura da economia, flexibilização de monopólios e reforma gerencial do Estado, em especial na área da saúde (59).

Cabem ainda algumas palavras sobre as facções petistas. Algum tempo antes da chegada ao poder, com a vitória de Lula em 2002, um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo de 14/11/1999, analisado por Paim, indica que um terço do partido era controlado por tendên-cias abertamente totalitárias (trotskistas, leninistas) e, por conseguinte, adeptas do sistema cooptativo. Cerca de metade do PT estava nas mãos de facções consideradas moderadas como a majoritária Articulação (nú-cleo, mais tarde, do Campo Majoritário, vetor estratégico da eleição de 2002 e que sofreria um sério abalo com o envolvimento no chamado es-cândalo do Mensalão de seus quadros mais expressivos, como José Dir-ceu, cujo mandato seria cassado pela Câmara dos Deputados no final de 2005) e a Democracia Radical, do deputado federal José Genoíno (sp), igualmente reabsorvida pelo Campo Majoritário e também enfraqueci-da pela participação do seu líder no mesmo escândalo.

Tal correlação de forças internas ainda faz da ambigüidade entre a intenção e o gesto, entre o discurso e o ato, a “nota dominante do pt”. (60) De fato, a chegada de Lula ao Palácio do Planalto, como dito há pouco, tornou essa ambigüidade mais evidente e aguda.

No final de 2001, um encontro nacional do partido realizado em Olinda produziu documento com vistas ao pleito presidencial do ano seguinte, sugestivamente intitulado “A ruptura necessária” . (61) Em meados de 2002, a perspectiva de vitória sobre o candidato do psdb e ex-ministro da Saúde, José Serra, transitava rapidamente do terreno das possibilidades para o das probabilidades concretas. Com isso, agrava-ram-se as preocupações de setores empresariais, das classes médias e de outros segmentos relevantes ao processo de formação da opinião públi-ca acerca da efetiva “vontade política” do candidato líder nas pesquisas para efetivar a ruptura, uma vez eleito. Em meio à agitação do mercado financeiro daqueles dias, a escalada do dólar era o indicador mais elo-qüente dessa tensão pré-eleitoral, alimentada pela incerteza dos agentes econômicos domésticos e externos quanto ao futuro da infra-estrutura

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contratual da economia brasileira. Nesse momento, o futuro ministro da Fazenda, Antônio Palocci (médico sanitarista, antigo prefeito de Ri-beirão Preto e deputado federal pelo pt/sp), coordenou uma resposta de emergência do comando da campanha lulista, destinada a inverter aquelas expectativas e acalmar o mercado: a “Carta ao Povo Brasileiro”. Na sua essência, ela traduziu o compromisso de um futuro governo Lula para com os contratos e as obrigações internacionais do país.

No segundo turno, dois em cada três eleitores sufragaram o nome de Lula. Na seqüência, enquanto se multiplicavam as reuniões de tra-balho entre as equipes de transição do velho governo e do novo, Lula se dirigia aos setores ainda descrentes e alarmados a fim de dissipar-lhes os temores usando uma de suas típicas metáforas: “Não se pode dar cavalo-de-pau na economia”.

O restante da história do primeiro mandato do presidente Lula é bem conhecido: Palocci na Fazenda; o ex-presidente do BankBoston e candi-dato a deputado federal por Goiás mais votado (sob a legenda do psdb) em 2002, Henrique Meirelles, na presidência do Banco Central; equipe econômica do governo anterior mantida em sua quase totalidade; e seu austero receituário para as políticas monetárias e fiscal não só retido, mas aprofundado, via elevadas taxas de juros reais e congelamento dos gastos públicos em obediência às metas inflacionárias e de superávit primário.

Porém, se os cavalos-de-pau são fortemente desaconselháveis na operação de uma economia complexa, eles se afiguram simplesmente impossíveis quando se trata de quebrar inércias ideológicas cultivadas durante décadas de propagação doutrinária e entrincheiramento buro-crático. Por isso, em aparente paradoxo, quanto maior o sucesso do eixo Palocci/Meirelles na consecução do seu programa de estabilidade mo-netária e rigor fiscal, mais estridentes se elevavam os protestos da direção petista, dos seus militantes e movimentos de base contra o “continuísmo neoliberal”. Em sua esmagadora maioria, esses setores ainda continuam aferrados à única agenda que conhecem e que lutaram para impor ao Brasil ao longo do último quarto de século: em poucas palavras, estati-zação econômica e cooptação política.

Aí está, em breves traços, a raiz da “ambigüidade estrutural [...] que se implantou na agremiação desde o segundo turno das eleições presi-denciais de 1989”, (61.a) uma vez que a aceitação das regras do jogo elei-

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toral no ambiente pluralista da democracia representativa torna remota a concretização de um projeto de sociedade e de Estado talhado para a via insurrecional.

Essa ambigüidade assume contornos violentos nas ações de movi-mentos como o dos trabalhadores sem-terra (mst), velho companheiro de viagem do pt.

Menos explosiva, mas suficientemente grave para bloquear a reflexão desapaixonada e o encaminhamento de soluções de fato inovadoras, tal am-bigüidade também se faz presente no seio da intelectualidade (acadêmicos, gestores e políticos) que pensou e implantou a chamada Reforma Sanitária – matriz do sus e dos presentes impasses da política nacional de saúde.

Espero que fique claro do que segue – e também à luz da discussão contida na primeira parte – que a análise crítica desses elementos tem uma relevância política que transcende o debate sobre os rumos da saú-de. Isso porque os intelectuais orgânicos do setor tendem a enaltecer o intricado – e muitas vezes paralisante – cipoal de mecanismos colegia-dos de controle social e gestão participativa hoje vigente na área como paradigma para a reforma “democrática” do Estado e, mais ainda, como completa alternativa político-institucional à ultrapassada democracia representativa “burguesa”. A meu ver, tais propostas mal escondem a ambição de se implantar no Brasil um regime cooptativo, a serviço da perpetuação do Estado patrimonial burocrático (62).

Intelectuais militantes do coletivismo na saúde: concepção e opera-cionalização da Reforma Sanitária

Formatação da Agenda

A Constituição Federal de 1988, na seção referente à saúde (Seção ii – “Da Saúde” – do Capítulo Segundo – “Da Seguridade Social, Título viii” – “Da Ordem Social”) estabelece o seguinte:

“Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido me-diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco

2.

2.1.

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de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

“Art. 197 – São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

“Art. 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, or-ganizado de acordo com as seguintes diretrizes:i – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;ii – atendimento integral, com prioridade para as atividades pre-ventivas sem prejuízo dos serviços assistenciais;iii – participação da comunidade”.Tais palavras – à exceção, obviamente, da referência ao setor pri-vado – coroam décadas de persistente atuação intelectual, corpo-rativa e política de uma aliança entre médicos e cientistas sociais responsável pelo movimento conhecido como Reforma Sanitária.

Antes de prosseguir, quero esclarecer que o termo Reforma Sanitária foi importado da Itália e se generalizou no Brasil na virada dos anos 70 aos 80. Em 1978, por iniciativa de pesquisadores de saúde pública, reunidos em torno do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – cuja importância para a formatação e a difusão da agenda da Reforma Sanitária procurarei esclarecer abaixo –, visitou o país, para uma série de conferências no Rio, em São Paulo e na Bahia, o médico sanitarista, professor das Universidades de Sassari, na Sardenha, e La Sapienza, em Roma, e deputado – depois senador – pelo Partido Comunista Italiano, Giovanni Berlinguer, irmão do então secretário-geral do partido, Enrico Berlinguer.

Encarando a saúde como uma conquista do povo, Berlinguer relatou a expe-

riência italiana da década de 60, quando “movimentos operários urbanos, de

trabalhadores rurais, partidos e médicos progressistas elaboraram o projeto do

Serviço Sanitário Nacional que levou a luta pela saúde para as ruas, sindicatos,

bairros sem esgoto, áreas sem verde e tribunas do parlamento” [...] (63)

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O movimento sanitário italiano atingiu grande unidade, abrangência e intensidade

de ação no final da década de 70 e foi um modelo para o movimento brasileiro (64).

A segunda parte do presente ensaio recapitulará e analisará momentos decisivos da trajetória da Reforma Sanitária no Brasil. Para facilitar a exposição, acontecimentos muitas vezes simultâneos, quando não para-lelos ou superpostos, sempre interligados, são aqui separados, em uma divisão artificial, mas – espero – ainda assim justificável, entre a “Forma-tação da agenda” (título e objeto da presente seção ii.1), a consolidação político institucional da prática de “Ocupação de espaços” (seção ii.2) e, na etapa seguinte à Assembléia Nacional Constituinte e à instituciona-lização do sus, a campanha permanente pelo controle social/processo participativo (“Participação ou cooptação?”, seção ii.3).

Para comprimir em poucas páginas as grandes linhas de um processo intelectual e político de três décadas e torná-lo compreensível ao leitor, sou obrigado a assumir acentuações unilaterais de fatos e outras simpli-ficações. Por isso, desde já, recomendo aos leitores porventura interes-sados em saber mais sobre os fatos e o significado da Reforma Sanitária, suas origens e conseqüências, três obras de observadores-participantes do movimento em que me baseei amplamente para elaborar o que segue, a saber: Saúde e democracia: a luta do Cebes, de Sonia Fleury (org.); Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário, de Sarah Escorel; e o grande conjunto de depoimentos concedidos a Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos em A construção do SUS: histórias da Re-forma Sanitária e do processo participativo, de Vicente de Paula Faleiros et alii (65).

Tomo como referência intelectual pioneira para a Reforma Sanitá-ria no Brasil a tese de doutoramento do médico Sérgio Arouca (1941-2003), “O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e a crítica da medicina preventiva”, defendida em 1975 no Departamento de Medicina Preventiva (dmp) da Faculdade de Medicina da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp). (66) Nela, o futuro presidente da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), secretário de Saúde do estado e do município do Rio de Janeiro, presidente da viii Conferência Nacional de Saúde, patrocinador da emenda de iniciativa popular que entronizou a saúde como “direito de todos e dever do Estado” na Cons-

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tituição Federal, deputado federal pelo Rio de Janeiro e secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, (67) critica os paradigmas então dominantes nos âmbitos de pensamento e de operacionalização de políticas públicas voltadas para a Saúde e prenuncia uma inflexão intelectual rumo a uma “teoria social da medicina”, (68) que viria se difundir por centros universitários de todo o país a partir de pólos como os dmps da própria Unicamp, da Universidade de São Paulo (usp), da Escola Paulista de Medicina; e, no Rio, a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz e o Instituto de Medicina Social da Universi-dade do Estado do Rio de Janeiro (ims/Uerj) (69).

Em que consistia essa nova teoria? Na verdade, em pouco mais que marxismo requentado: as doenças são socialmente determinadas pela luta de classes, e, portanto, a luta pela saúde deve estar inserida no con-texto mais amplo de combate intelectual e político ao sistema socioe-conômico capitalista. (Tal formulação poderia induzir seus adeptos ao raciocínio de que a estatização dos meios de produção tende a acabar com as doenças e – avançando um pouco mais no delírio ideológico – instaurar a imortalidade humana sobre a Terra! Não foi bem isso o que o mundo testemunhou ao suspender a cortina de ferro sobre a finada União Soviética e seus antigos satélites (69.a).

No novo enfoque sobre a saúde, criticavam-se tanto o modelo tradicional de

formação dos médicos em geral, restrito às áreas biológicas, quanto o modelo

clássico de formação de sanitaristas, que já incorporara as ciências sociais, porém

com orientação funcionalista. De natureza histórico-estrutural, ele seria cons-

truído a partir da abordagem marxista, do materialismo histórico e dialético e da

abordagem das condições e dos problemas de saúde da população brasileira sob

uma perspectiva marxista.

[...]

Desse modo, começa a construção de novos marcos teóricos e metodológicos

utilizados tanto nas pesquisas quanto nos projetos de reformulação das práticas

médicas. Assim, delimitou-se teoricamente o campo da saúde coletiva, em que

se tomava por objeto não mais o indivíduo ou seu somatório, mas a sociedade,

o coletivo como social – classes e frações de classes – e a distribuição da saúde e

da doença. [...] Postulou-se uma nova concepção da ciência: não mais a ciência

neutra; uma teoria que sustentasse, dentro do setor, uma luta política em que a

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realidade sanitária fosse objeto de estudo e intervenção política. [...] Nesse proces-

so de revisão crítica, caiu por terra o modelo da ‘história natural da doença’ e da

multicausalidade, construiu-se o conceito da determinação social [...] No campo

teórico, então, iniciou-se a construção de um pensamento contra-hegemônico ali-

cerçado fundamentalmente na visão histórico-estrutural da sociedade. (70).

Em um contraponto com a repressão movida pelo regime autoritário da época aos militantes armados ou mesmo desarmados de movimen-tos e partidos clandestinos de esquerda, essa revolução paradigmática nos meios acadêmicos foi generosamente apoiada por organismos in-ternacionais, especialmente a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), por intermédio de Juan César García, seu executivo sediado em Washington, responsável por programas e projetos de cooperação para formação e aperfeiçoamento de recursos humanos em numerosos países da América Latina. (70.a) No Brasil, por exemplo, em parceria com as fundações americanas Kellogg e Ford, colaborou na criação do primeiro programa de pós-graduação do Rio de Janeiro na área, o ims/ueg (Uni-versidade do Estado da Guanabara, depois Uerj), em 1973.(71) Iniciati-vas do gênero são fruto, por sua vez, de contatos anteriores com o meio acadêmico brasileiro desde o final dos anos 60: seminários de metodolo-gia de Investigação de Ciências Sociais em Saúde (Ribeirão Preto, 1969; e Campinas, 1970). Outro passo inicial relevante nesse processo de in-tercâmbio, difusão bibliográfica e redefinição de marcos teóricos é o sis-tema de seminários para a formação de assessores de recursos humanos na área de saúde, promovidos por García em Washington, em 1971 (72). Desse esforço sistemático para injetar a concepção marxista das ciências sociais no ensino e na pesquisa de saúde pública nasceram teses como a do próprio Arouca e de sua colega de Unicamp no doutorado do dmp Cecília Donnangelo, “Medicina e sociedade”, defendida e publicada no mesmo ano de 1975 (73).

Com o início da gradual liberalização política gerenciada pelo pró-prio regime militar (governo do general Ernesto Geisel, 1974-1979), Arouca e seus companheiros fundiram militância intelectual e ação política em um think-tank, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (o Cebes), fundado em 1975, e a revista Saúde em Debate, criada no ano seguinte, com o objetivo de escoar a produção acadêmica de seus

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membros e ao mesmo tempo formar um público para seus modelos e propostas no seio do movimento estudantil dos alunos de medicina e ciências sociais, nos sindicatos e outras entidades representativas da ca-tegoria médica, nas escolas médicas dentro e fora do eixo Rio/São Paulo e nos serviços públicos de saúde em todo o país (74).

Alguns anos antes do surgimento do pt (1979/80), a principal força de esquerda na oposição à ditadura era o clandestino Partido Comunis-ta Brasileiro (pcb), ao qual Arouca, por exemplo, permaneceu ligado desde o movimento secundarista durante sua juventude em Ribeirão Preto, onde também completaria seu curso de medicina. Essa circuns-tância ajuda a compreender por que o Cebes se inspirou no modelo do Instituto Gramsci, do pci. A referida visita de Berlinguer, que o Cebes patrocinou em 1978, fez parte desse contexto. “O Cebes seria no âmbito da saúde o centro de estudos que, sob a hegemonia do pcb, mas aberto a todas as correntes de esquerda, seria capaz de construir uma proposta alternativa de política de saúde” (75).

Como aponta a cientista social da Fundação Getúlio Vargas/Rio So-nia Fleury, citada logo no primeiro parágrafo da Introdução ao presente ensaio, o aparecimento do pt, fortemente ligado à ação comunitária da Igreja Católica, evidenciava uma diferenciação no seio do Cebes de fato já existente desde os primeiros anos do centro.

No editorial da Revista Saúde em Debate nº. 3, de 1977, encontramos uma divi-

são [...] entre uma orientação mais “institucional” e outra, orientada de forma

mais “movimentista”. Existem duas concepções da atuação do cebes, não exclu-

dentes, que polarizam os interesses de grande número de associados. A primeira

afirma o CEBES como aglutinador das tendências renovadoras do setor de saú-

de, em nível profissional, com o objetivo de coordenar esforços para desenvolver

políticas de saúde mais adequadas à realidade brasileira [...] A segunda concep-

ção, sem subestimar o trabalho realizado nas entidades de profissionais de saúde,

quer desenvolver atividades voltadas mais diretamente à comunidade, através de

suas várias organizações (Sociedades Amigos de Bairros, Sindicatos, Clubes de

Mães, entidades estudantis etc.)

[...]

Uma perspectiva política de orientação mais “movimentista” se associa ao pró-

prio surgimento e crescimento do Partido dos Trabalhadores e das Comunidades

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Eclesiais de Base, orientada por uma perspectiva de mobilização de comunidade

e socialização política, vivendo, no entanto, a contradição crescente entre tomar

o Estado como alvo de suas críticas e de suas demandas, ao mesmo tempo em

que se pretendia que sua luta pelo poder se circunscrevesse ao âmbito societário.

Não por acaso, esta contradição se desenvolve, algumas décadas depois, com

a forte presença dos governos municipais do Partido dos Trabalhadores sendo

[estes] os principais implementadores das reformas institucionais democratiza-

doras, tanto na saúde como em outras áreas da gestão pública (76).

O foco do presente estudo privilegia a primeira dessas duas tendências a fim de esboçar com a clareza possível o essencial da marcha dos intelec-tuais militantes da Reforma Sanitária através das organizações estatais em paralelo ao longo desdobramento da transição democrática.

Antes, porém, de passar à próxima seção, quero deixar bem explícito aquele que me parece o duplo eixo conformador da agenda do movi-mento, que, formulada nos anos 70, em plena ditadura, passaria a ser implementada ao longo da primeira década da chamada Nova Repúbli-ca. Permito-me lançar luz sobre esse referencial utilizando a metáfora médica de diagnóstico/profilaxia e preenchendo-a com as conceituações de um par de intelectuais sanitaristas entre os mais proeminentes – a já referida Sonia Fleury e o médico Jairnilson Paim, professor e pesquisa-dor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.

Diagnóstico: de acordo com “uma leitura socializante da [...] cri-se da medicina mercantilizada”, a prevalência da lógica lucrativa consistiria na raiz da “ineficiência” que condena a grande maioria da população à doença, em conseqüência de suas péssimas con-dições de vida e trabalho. (76.a)

Profilaxia: a superação desse estado de coisas seria possibilitada pela aplicação, por um lado, dos princípios desenvolvidos à luz das ciências sociais tais como “direito à saúde, à cidadania, à uni-versalização, à eqüidade, à democracia” e, por outro, dos concei-tos originários do “paradigma [...] preventivista e da saúde comu-nitária”, a saber: “sistema único de saúde, [...] rede regionalizada de serviços de saúde, [...] atendimento integral, [...] participação

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da comunidade, [...] ações de promoção, proteção e recuperação da saúde” (76.b).

Ocupação de espaços

A posse de uma agenda teórica, formatada nos limites estreitos do espaço acadêmico consentido durante o período mais duro do regime militar, permitiria aos intelectuais implementá-la gradativamente no decorrer da distensão/abertura política que se seguiu.

Na interpretação de Escorel, o primeiro decênio do regime (1964-1974) – sobretudo desde a promulgação do Ato Institucional nº. 5 (ai-5), em dezembro de 1968 – se caracterizou pela repressão do movimento sindical a serviço da superexploração dos trabalhadores, ao passo que no período inaugurado pela presidência de Geisel, marcado pelo relaxa-mento da censura aos principais jornais, pela abertura de diálogo com a oposição congressual (Movimento Democrático Brasileiro/mdb) e lide-ranças da sociedade civil e pela realização de eleições parlamentares nas quais essa oposição se mostraria cada vez mais competitiva, buscou-se articular algumas políticas sociais voltadas à atenuação das graves condi-ções sociais – inclusive de saúde – legadas por aquela primeira fase.

Assim, no marco do ii Plano Nacional de Desenvolvimento (ii pnd), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), subordinada à Secreta-ria de Planejamento da Presidência da República, passou a subsidiar, em 1975, um grande Programa de Estudos e Pesquisas Populacionais e Epidemiológicas (Peppe) e, dentro deste, o Programa de Estudos Socio-econômicos em Saúde (Peses). Ambos funcionavam na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, no Rio, mas com razoável grau de autonomia em relação a esta. A fundação, à mesma época, era presidida por Vinícius da Fonseca, homem de confiança do então poderoso minis-tro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso. (77)

O Peses trouxe para a Ensp/Fiocruz uma parte significativa de pro-fissionais antes ligados ao dmp da Unicamp – Arouca incluído –, que se fragmentou em conseqüência de conflito de poder com a reitoria, em 1975, a propósito de um projeto de saúde comunitário desenvolvido por docentes e estudantes no município industrial de Paulínia, próximo a

2.2

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Campinas. O entrevero é recordado por Escorel com base em depoi-mento de Arouca. “O dmp da Unicamp recebia um grande financia-mento da Fundação Kellogg, que enviou seus assessores internacionais para avaliar tanto o Projeto Paulínia quanto o Laboratório de Educação Médica: ‘Um dos assessores faz uma denúncia ao [então relator da Uni-camp] Zeferino Vaz dizendo que o projeto não era um projeto técnico, era um projeto político; que estava se desviando do seu sentido e que isso iria acabar levando a confrontos com a própria Fundação Kellogg”’. Vaz ‘“[g]anhou a briga e demitiu o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Fausto Castilho [...] e exonerou Aristodemo Pinotti da direção da Faculdade de Medicina’” (78)

As áreas de pesquisa em torno das quais o Peses se estruturou permi-tiram, mais que a produção de conhecimento científico, a reprodução ampliada de intelectuais orgânicos caudatários da já comentada abor-dagem marxista das relações entre saúde e sociedade habilitando-os a propagá-lo por uma vasta rede organizacional Brasil afora. No mesmo depoimento a Escorel, Arouca lançou luz sobre aspectos importantes dessa estratégia: “O Peses não foi um modelo de pesquisa acadêmica pura; foi montado para a intervenção política. Além da incorporação das ciências sociais, retomava o projeto político de Paulínia com [...] áreas de prática política e [...] ensino nos departamentos de medicina pre-ventiva – uma estratégia para que nós influenciássemos os departa-mentos para a abordagem social em nível nacional [...] [C]omeçamos a estabelecer uma rede com pessoas que tinham um projeto político no trabalho comunitário [...]” (79).

Desde 1975, no âmbito do Peses, e depois de 1977, quando da absor-ção do programa pela Ensp, essa “produção de reprodutores” da teoria social da medicina daria um salto quantitativo, com Cursos Básicos de Saúde Pública, “a primeira etapa do processo de formação de sanita-rista, sendo ministrados pela escola da Fiocruz em diferentes cidades brasileiras. Basta comparar os números: se, de 1969 a 1974, diplomam-se no país 281 sanitaristas, a quantidade de egressos para o período 1975/80 é de 1.643, profissionais” (80).

As mudanças da política governamental de saúde no mesmo período permitiram absorver essa oferta de quadros graças às pressões de uma demanda também crescente.

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Para enfrentá-la, a Lei nº. 6.229/75 criou o Sistema Nacional de Saú-de, fixando o Ministério da Previdência e Assistência Social (mpas) como protagonista central da política nacional de assistência à saúde, por inter-médio do seu Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Isso marcou o início, ainda que a princípio tímido, do crescimento da participação estatal no setor: estados, prefeituras e hospitais universitários (pelo convênio global Mmec/mpas), ao lado dos então pre-dominantes convênios com clínicas, casas de saúde e hospitais privados.

Na presidência do general João Figueiredo (1979-1985), a estatização da assistência avançou, abrindo ainda mais espaços para os profissionais da saúde formados na nova tradição marxista da medicina social siste-matizada em organizações de pesquisa e ensino com a Ensp e o ims e divulgada nacionalmente pela revista Saúde em Debate, do Cebes, bem como pelos seminários promovidos por este e por outras entida-des. O impulso nessa direção, naquele momento, se originava da crise financeira da Previdência Social, o que obrigou à busca de alternativas às despesas com convênios entre o Inamps e o setor privado de saúde. Com base no chamado Plano do Conasp (Conselho Consultivo de Ad-ministração de Saúde Previdenciária), publicado em 1981, o Programa de Ações Integradas de Saúde (Pais) promoveu, a partir do segundo se-mestre de 1983, “a assinatura de convênios trilaterais, entre o ms, o mpas e os governos estaduais, de forma a racionalizar os recursos utilizando a capacidade pública ociosa” (81).

O mais importante fato político do setor no primeiro ano daquele último governo do ciclo militar inaugurado em 1964 foi, sem dúvida, a realização, na Câmara dos Deputados, do I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, promovido pela Comissão de Saúde, com inten-sa participação de indivíduos e organizações que muito em breve virão a conferir visibilidade nacional ao movimento pela Reforma Sanitária. Pode-se dizer que no documento trazido à discussão pelo Cebes e ado-tado como espinha dorsal das conclusões e recomendações do simpósio já se encontravam as linhas básicas do sus.

Esse simpósio, organizado com assessoria direta do cebes, mas realizado com

uma ampla representação institucional que lhe conferia legitimidade, teve suas

discussões e conclusões centradas em torno do documento produzido pela Di-

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retoria Nacional do 9 pt – “A Questão Democrática na Saúde” – e trazido como

colaboração para o Simpósio [...] Esse documento, além de fazer uma ampla

análise da conjuntura nacional e das políticas de saúde, assumia um caráter pro-

positivo, ao apresentar o projeto de reorientação do sistema de saúde brasileiro,

com base na descentralização, na integração institucional, na regionalização e

hierarquização da rede assistencial, e na participação popular, com ênfase nas

ações básicas de saúde [grifos do autor]. A doutrina contida nesse documento

representava a convergência das discussões havidas nos anos anteriores sobre a

questão, pelos setores de oposição ao regime, mas tinha uma caracterização ino-

vadora para a época, entre os movimentos sociais de oposição, que era o caráter

propositivo, transcendente à denúncia.

E foi isso que conferiu à proposta o poder de influenciar, ou no mínimo infor-

mar, a maioria das propostas de reforma setorial que foram, a partir de então,

engendradas oficialmente ou como contra-políticas (82).

O tempo da redemocratização se acelerava. E, às vésperas da eleição indi-reta de Tancredo Neves e José Sarney pelo Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985, pondo fim a duas décadas do regime autoritário, o grupo de inte-lectuais militantes aqui estudado, se aproximou cada vez mais do núcleo decisório da política governamental de saúde. Suas regras continuam sen-do ditadas pela Previdência Social, que concentrava uma massa de recursos financeiros e possuía um raio de abrangência significativamente maiores que os do Ministério da Saúde, com seu foco limitado a atividades de pre-venção, como campanhas de vacinação, entre outras. O destaque, agora, ficava por conta da multiplicação e capitalização das ais (Ações Integradas de Saúde), embrionariamente embutidas no há pouco referido Pais.

A transformação do Pais em ais [...] – isto é, a transformação da ação programá-

tica institucional em estratégia de reorientação setorial – [...] privilegiava o setor

público e visava à integração interinstitucional, à descentralização e à democra-

tização. Até mesmo pela degeneração das instituições no final do regime militar,

essa estratégia conseguiu atravessar o cerco hegemônico privatista e instalar-se na

política de saúde, ainda que inicialmente em uma posição marginal [...] A partir

de maio de 1984, a estratégia das ais [...] passou a ser implementada com base nos

seguintes princípios gerais: responsabilidade do poder público; integração inte-

rinstitucional tendo como eixo o setor público; definição de propostas a partir do

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perfil epidemiológico; regionalização e hierarquização de todos os serviços públi-

cos e privados; valorização das atividades básicas e garantia de referência; utiliza-

ção prioritária e plena da capacidade potencial da rede pública; descentralização

do processo de planejamento e administração; [...] e o reconhecimento da legiti-

midade da participação dos vários segmentos sociais em todo o processo (83).

Quanto àquele segmento desses intelectuais militantes da medicina social, já agora encastelados na burocracia governamental em escalões intermediários, que atuava no Ministério da Saúde, o primo pobre do Sistema Nacional de Saúde, suas energias e esperanças se concentra-vam em experiências e programas de saúde comunitária preventiva, fu-turos insumos para o fortalecimento do discurso sanitarista em prol do controle social participativo. É o caso do Projeto Montes Claros (mg), inicialmente bancado pela Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), oportunidade-piloto em nível local para “a apli-cação dos princípios da regionalização, hierarquização, administração democrática [...], integralidade da assistência à saúde, atendimento por auxiliares de saúde e participação popular” (84). As lições dessa expe-riência foram incorporadas com ambições multiplicadoras e dissemi-nadoras a outro projeto do ms, o Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (Piass), o que, segundo Escorel, permitiu aos técnicos envolvidos tecer uma rede de alianças de âmbito nacional com organizações governamentais, entidades e movimentos da sociedade ci-vil em nível municipal e estadual, para anos mais tarde mobilizá-los em prol da legitimação da Reforma Sanitária e suas propostas em momen-tos decisivos como o da Assembléia Nacional Constituinte. Iniciado em 1976, o Piass incorpora o Projeto Montes Claros dois anos depois (85).

No final de 1984, com a certeza da vitória de Tancredo na eleição presidencial indireta, aquele movimento político-intelectual nascido em Departamentos de Medicina Preventiva; sistematizado nos seminários no Cebes; divulgado pelos artigos de Saúde em Debate; reproduzido em centros de pesquisa e pós-graduação com apoio da Opas, de fundações americanas e até mesmo da tecnocracia do regime militar; e já traqueja-do na arte da negociação parlamentar, finalmente se institucionalizava como principal interlocutor do futuro governo no planejamento da nova política de saúde. A prova disso é que seu projeto de estimação, “a uni-

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ficação do Sistema de Saúde”, é adotado pela direção do pmdb (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), maior partido de oposição, pres-tes a se transformar no carro-chefe da nova base parlamentar governista. Nesse mesmo sentido, “o movimento sanitário conseguiu que” estas e outras propostas suas “fossem incorporadas pela Comissão do Plano de Ação Governamental (Copag)”, da candidatura Tancredo Neves (86).

A lição do já mencionado Gramsci, referencial marxista preferido pela quase totalidade dos intelectuais orgânicos brasileiros desde a etapa final de transição democrática, entre fins dos anos 70 e meados dos 80, se achava devidamente assimilada: a proposta dissidente e revolucioná-ria do passado se transformava no novo consenso (87).

A importância fundamental da viii Conferência Nacional de Saúde (cns), realizada em Brasília em março de 1986, residia no seu caráter de ensaio geral da luta definitiva a ser travada um ano depois, por esses mili-tantes, na Assembléia Nacional Constituinte com a finalidade de crista-lizar o novo consenso, ungindo-o com o poder legítimo da Lei Maior.

Sob a presidência de Arouca, que à época presidia também a Fio-cruz, a conferência funcionou como estuário para os movimentos e cor-porações atuantes no setor estatal de saúde: “além dos profissionais e dos prestadores de serviços de saúde e dos quadros técnicos e burocráticos do setor, incluíram-se os ‘usuários”, (88) com a finalidade de subsidiar e orientar o debate constituinte rumo à “reformulação do Sistema Nacio-nal de Saúde” (89).

A viii cns foi o exemplo máximo de utilização do espaço ocupado no aparelho

do Estado para possibilitar a discussão democrática das diretrizes políticas se-

toriais. Durante o plenário, reuniram-se aproximadamente cinco mil pessoas,

entre as quais mil delegados, discutiu-se e aprovou-se a unificação do Sistema

de Saúde. Ainda mais: aprovaram-se definições e propostas relativas ao conceito

ampliado de saúde, ao direito de cidadania e dever do Estado e às bases finan-

ceiras do Sistema (90).

Um pequeno “detalhe” não parece perturbar esta avaliação laudatória: “Dotada de grande representatividade social, mesmo na ausência dos prestadores privados [grifos meus], esta cns passou a significar, através de seu relatório final, a consolidação das propostas do movimento sani-

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tário [...]” (91) De fato, o setor privado – representado pelos proprietários de hospitais (Federação Brasileira de Hospitais/fbh), muitos dos quais conveniados com a Previdência; pelos profissionais liberais da medici-na (Associação Médica Brasileira/amb); e por um emergente privado segmento de seguros, planos de saúde e cooperativas médicas (filiado à Associação Brasileira de Medicina de Grupo/Abrangesse) se recusasse a participação dos trabalhos, se defrontaria com a militância sanitarista em um conflito de lobbies na Constituinte. Lá, se veria em desvanta-gem, mesmo entre os segmentos parlamentares mais conservadores, em razão do diligente trabalho do adversário na divulgação de sua agenda para a conquista de ações e mentes (91.a).

A fim de garantir, no acompanhamento dos trabalhos constituintes, a integridade de suas propostas diante do inevitável surgimento de grupos ou coalizões de veto e da igualmente inevitável necessidade de alian-ças táticas e negociações com aliados ou mesmo adversários, a viii cns aprovou a instalação de uma Plenária Nacional de Entidades de Saúde, sediada em Brasília, com esse propósito (92).

Um dos entrevistados para a obra A construção do sus... lembra que a plenária “chegou a congregar 270 entidades”. (93) outra que, além de entidades bastante estabelecidas e conhecidas como o Cebes, a cut e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco, fundada em 1979), participavam também atores coletivos novos surgidos naquela oportunidade, a exemplo do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), “que foi criado durante a conferên-cia, na escadaria do Centro de Convenções”; (94) uma terceira que os coordenadores da plenária “tinha[m] auxílio e financiamento do cfm [Conselho Federal de Medicina]” (95).

Em um plano mais, digamos, formal, a plenária se desdobrou tam-bém na Comissão Nacional de Reforma Sanitária (cnrs). Esta era um colegiado “de composição paritária governo-sociedade civil”, finalmen-te com a presença de representantes do setor privado. (96) Em para-lelo ao trabalho da plenária (mobilização e organização das bases do movimento sanitário para exercício da pressão no corpo-a-corpo com os constituintes), a comissão desenvolveu um canal de interlocução com a cúpula do Poder Executivo e os líderes da Constituinte em busca de um consenso amplo e de alto nível em apoio às proposições da viii cns.

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Nesse quadro, coube à

[...] cnrs [...] dar encaminhamento ao relatório final da conferência [...] porque

um relatório final, por melhor que fosse poderia se tornar um documento a mais,

guardado. Então a 8ª cnrs teve a sabedoria política muito grande de conseguir o

compromisso das autoridades políticas da época, do próprio presidente da República

e dos ministros envolvidos na nomeação da cnrs [Educação, Previdência e Assistên-

cia Social, Saúde], que daria [sic] um tratamento ao relatório da 8ª cnrs, no sentido

de criar governabilidade para aqueles pleitos. Felizmente foi o que ocorreu, poten-

cializado pela Assembléia Nacional Constituinte, a quem [sic] a cnrs entregou seu

relatório final no início de 1988, após ter trabalhado todo o ano de 1987 [...] (97).

Quanto às diferenças e à articulação entre essas duas instâncias, outro insider observa o seguinte:

A cnrs participava da Plenária, por meio de alguns de seus membros, [...] mas

não era uma representação formal, porque o espaço da Plenária não era um es-

paço de representação formal. Agora, o que se discutia na Plenária tinha eco na

cnrs, que era um espaço formal e político de deliberações. E o que sei da cnrs

é, praticamente, o que está hoje na Constituição Federal. A proposta de Emenda

Popular veio cobrindo o que a cnrs propunha. O que hoje está na Constituição

deve-se muito à comissão, mas havia uma fertilização, pois o pensamento con-

solidado do conjunto das entidades, concentrado na Plenária, evidentemente

chegava na Comissão Nacional (98).

Antes de reconstituir, em rápida anotação, esse momento de clímax da participação do movimento sanitarista na Constituinte, traduzido na apresentação e incorporação da emenda popular, importa lançar um rápido olhar sobre o Poder Executivo. No momento mesmo em que o lobby sanitarista ‘vendia’ suas propostas aos parlamentares, o governo Sarney tomou uma decisão que, em importante medida, antecipava a si-tuação que a nova Carta viria a consagrar. Tratava-se de decreto de julho de 1987 que criou os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (Suds). Na definição de seu idealizador, o médico e então presidente do Inamps Hésio Cordeiro, ele configura “uma estratégia transitória para a chegada ao Sistema Único de Saúde”, mediante “um processo de

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unificação a partir dos estados”. Cordeiro recorda o conflito burocrático que cercou a adoção do Suds; na sua visão defrontavam-se, de um lado, o Ministério da Saúde, que, conforme a posição da maioria dos líderes da reforma sanitária, deveria absorver o Inamps e substituir o Ministério da Previdência e Assistência Social como vértice do novo sistema de saúde, e, de outro, a parcela de sanitaristas naquele momento à frente do próprio Inamps (além do presidente Cordeiro, o seu secretário de Planejamento e hoje ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e o então secretário de Medicina Social do mesmo órgão, José Carvalho de Noronha, entre outros), que concordavam com o objetivo estratégico da absorção, mas, taticamente, discordavam da aceleração do seu timing, em razão de deficiências estruturais do MS, relegado por muitos anos de orçamentos minguados e sucateamento gerencial ao segundo plano da política de saúde (99). Mais uma vez, na visão de Cordeiro,

Então, havia uma espécie de corrente da unificação pelo alto, em que o Inamps

se transferiria para a saúde, e outra da unificação pela base do sistema, em que a

gente desenvolveria toda uma estratégia de descentralização, de fortalecimento

dos municípios e dos estados e, a partir daí, iria sendo consolidada a idéia do

SUS [,] e no momento estratégico definido, que seria após a Constituinte, se

promoveria a unificação e a passagem do Inamps para o Ministério da Saúde. E

não o inverso, porque se corria o risco de que a lentidão burocrática e a máquina

pesada do Ministério da Saúde criassem uma dificuldade muito grande ao pró-

prio desenvolvimento significativo do acesso à saúde pela população (100).

Temporão complementa afirmando que “o Inamps defendia a unifica-ção por baixo, ou seja, avançando na [...] descentralização. Aí surge a idéia do Suds, em que a gente delegava radicalmente aos secretários estaduais o processo local de fusão [...]” (101) Por fim, no desfecho dessa rivalidade intragovernamental, Cordeiro e sua equipe acabam ‘caindo’ em março de 1988 (102). O já referido ensaio de Eleutério Rodrigues Neto fornece uma interpretação desse choque burocrático na perspecti-va do Ministério da Saúde.

Enquanto isso, no plenário da Constituinte, a 28 de agosto de 1987, é apresentada por Arouca, então secretário estadual de Saúde do Rio, pos-to que acumula com o de presidente da Fiocruz, a proposta de emenda

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popular que incorporava as diretrizes da viii cns, assinada por 54.133 eleitores, representando 168 entidades (entidades científicas; partidos de esquerda; centrais e federações sindicais e sindicatos; associações de tra-balhadores do setor de saúde; conselhos e outros movimentos populares, sob a égide da Plenária Nacional de Saúde. O discurso de apresenta-ção esclareceu que o processo de discussão e legitimação da emenda compreendera a extensão do debate das conclusões da viii cns a uma dúzia de encontros setoriais de saúde de âmbito nacional (trabalhado-res, mulheres etc.). E enfatizou “a necessidade de acompanhamento e fiscalização da prestação dos serviços próximos ao usuário, a partir de um efetivo controle social” (103).

No momento em que escrevo, passados 19 anos da consagração cons-titucional dos dogmas da Reforma Sanitária e 17 anos de promulgação das duas leis que regulamentam o sus (a 8.080/90, ou Lei Orgânica da Saúde, e a 8.142/90), (104) a questão do controle social/processo partici-pativo segue sendo a grande bandeira que mantém o movimento vivo e ativo, mais do que qualquer outro problema substantivo de política de saúde enfrentado pela regulamentação infraconstitucional.

Participação ou cooptação?

Com efeito, se participação e controle pela base fossem sinônimo de reuniões sem fim, envolvendo representantes da burocracia pública, das corporações profissionais e dos movimentos sociais, e se estas garantis-sem o foco no usuário preconizado por Arouca, então, provavelmente o sus já estaria próximo de padrões escandinavos de atenção à saúde.

Mais uma vez sob o guarda-chuva da Plenária Nacional de Saúde, o lobby sanitarista no Legislativo e no Executivo possibilitou o Decreto 99.438/90, que instituiu o Conselho Nacional de Saúde (cns) (105). É significativo lembrar que, na difícil negociação entre os líderes da plená-ria e o ministro da Saúde do governo Fernando Collor, Alceni Guerra, acerca da composição do conselho, este insistiria inicialmente em limi-tar o colegiado a sete membros, mas acabou cedendo aos seus interlo-cutores, de modo que na reunião realizada em abril de 1991, o cns já exibia composição paritária de 32 membros! (105.a). Instruções normati-

2.2

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vas subseqüentes completaram o organograma do SUS condicionando a transferência de recursos de custeio aos governos estaduais e municipais à criação de conselhos nesses níveis federados.

A ix Conferência Nacional de Saúde, cujo regimento interno foi aprovado pelo cns em 1991, se reuniria em Brasília em agosto do ano seguinte, sob o lema “A municipalização é o caminho” (106). Em meio à mobilização pelo impeachment do presidente da República que levaria ao seu afastamento temporário e finalmente à sua renúncia no apagar das luzes de 1992, o relatório da conferência assumiu o slogan “Fora Collor” e reivindicou repasses automáticos de recursos do governo fede-ral para a área de saúde dos estados e municípios (107). No mesmo pe-ríodo, multiplicaram-se encontros de secretários de Saúde, promovidos pelos conselhos estaduais e municipais.

Não quero enfadar o leitor reproduzindo o grandiloqüente relato dos autores de A construção do sus... acerca das etapas seguintes de consoli-dação dos mecanismos participativos de controle social do sistema. Para efeito ilustrativo, basta citar que, em 1996, “já havia 2.323 municípios habilitados para a municipalização” (108).

No período, o cns decidiu que as Conferências Nacionais de Saúde reunir-se-iam a cada dois anos, enquanto as entidades reunidas sob a égide da Plenária Nacional de Saúde mobilizavam-se para denunciar as manobras do governo neoliberal de fhc para deixar o sus à míngua de financiamento (109).

Em meados dos anos 90, a Plenária Nacional de Saúde daria lugar às Plenárias Nacionais de Conselhos de Saúde que se reuniriam, não raro mais de uma vez por ano, desde 1997, com apoio do cns. Uma líder experiente dá detalhes interessantes sobre a organização desses eventos.

Teve alguns anos em que ocorreram várias plenárias nacionais, três ou quatro.

E elas eram organizadas também como plenárias nos estados e regiões. Nos

últimos anos tentamos fazer a plenária por região. As plenárias sempre foram

organizadas a partir do cns, que contribuiu para a organização e o formato.

Os conselhos estaduais e municipais garantem as despesas dos conselheiros e

o deslocamento. Para dar conta de uma plenária que tem a intenção de reunir

o maior número de conselhos do Brasil, onde temos mais de 5 mil municípios

com conselhos, estabelecemos junto ao cns a estrutura de inscrições, com os

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conselhos tendo direito a inscrever 4 conselheiros, sendo 2 usuários e 2 dos de-

mais – um trabalhador e um gestor prestador, em função da paridade. Essa foi a

divisão para a participação na Plenária Nacional. Na organização, os conselhos

tinham um momento em que reuniam as delegações dos estados e depois da

região, onde se decidia quem seriam os seus representantes (110).

Ao longo dos anos 90, toda essa movimentação passa a contar com o apoio de um firme aliado: o Ministério Público (Federal e dos estados). Em 1993, o MPF instalou pioneiro inquérito civil público sobre o cumprimento dos preceitos constitucionais pelo sus e, assim, passou “a ocupar um lugar estra-tégico sobre a democracia participativa e o controle social do sistema” (111).

Em suma, a parafernália burocrática da colegialidade, inflada em nome do controle social participativo, está, ao que tudo indica, voltada prioritariamente para a manutenção e, sempre que possível, ampliação dos seus espaços de poder dentro do aparelho de Estado. Assim tem sido ao longo das últimas três décadas, desde os primórdios do movimento pela Reforma Sanitária.

Naquele tempo, seu inspirador maior e líder inconteste, Sérgio Arouca, admitiu que o maior desafio político com que ele e seus com-panheiros se defrontavam era o do “fantasma da classe ausente” (112). Em poucas palavras, falavam pelas “classes populares” (113), que todavia permaneciam a sofrer caladas os efeitos das distorções e omissões da po-lítica de saúde da ditadura militar. (Como visto no início deste ensaio, Schumpeter discute a tendência irresistível do intelectual a se arvorar em porta-voz de outras classes.)

Os intelectuais orgânicos da teoria social da saúde – ligados em sua maioria, num primeiro momento, ao Partido Comunista Brasileiro e, em seguida, esmagadoramente ao Partido dos Trabalhadores – buscaram nas experiências de regimes como os de Cuba e da Nicarágua sandinista o antídoto para essa apatia, via o modelo conselhos populares voltados para a fiscalização e o controle dos serviços públicos de saúde. (Arouca, por exemplo, atuou como consultor da Opas em Cuba, no início de sua carreira, e do governo nicaragüense, em 1981, antes de retornar ao Brasil como funcionário concursado da Fiocruz, no ano seguinte) (114).

Ignoravam ou desconsideravam que tais estruturas, alternativas ao regi-me liberal-democrático de representação de interesses, servem na verdade

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ao propósito de legitimar e eternizar o poder do partido único mediante sistema de cooptação, enquadrado por rituais burocráticos de participação, simulacros de transparência, fantasias de responsabilização. Em suma, não são os conselhos ditos populares que fiscalizam e controlam o Estado; é este que os instrumentaliza para dirigir e “colonizar” a sociedade.

Esse equívoco, enaltecido pela incessante pregação dos sanitaristas, acabou afinal sendo diligentemente injetado na arquitetura do sus.

Resultado: quando não se valem de uma incerta representatividade (afinal, quem os elegeu, com quantos votos, em que tipo de eleição?) para deliberar sobre a aplicação de recursos do contribuinte, essa nova classe de conselheiros de chapa-branca renuncia docemente à sua mis-são fiscalizadora em troca de vantagens oferecidas por prefeitos, secretá-rios de saúde, vereadores, deputados, burocratas de Brasília...

Enquanto a massa doente mais pobre, já em pleno Brasil democrá-tico, paga seus pecados nas unidades da rede sus, a velha pergunta per-manece no ar, desafiadora: quem controla esses controladores?

Conclusão: por uma agenda alternativa (liberal e contra-hegemônica) para a saúde no Brasil

Como liberal, parece-me óbvio que a alternativa às distorções do sus passa por soluções que contemplem o máximo de liberdade de escolha para os usuários, melhor seria dizer vítimas, do sistema.

Minha proposta consiste simplesmente em incentivar um drástico aumento da participação do setor privado no atendimento aos cidadãos mediante redução de encargos previdenciários e trabalhistas sobre em-pregadores e empregados para que os primeiros matriculem os segundos em planos e/ou seguros de saúde, no marco de contratos transparentes e fiscalizáveis pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.

É verdade que essa medida quebraria o dogma isonomista do sus, impedido de cobrar mesmo de quem pode pagar por certos tipos de tra-tamentos de alta complexidade, muitas vezes “capturados” pela restrita parcela dos que dispõem de informações sobre a sua disponibilidade ou o modo de obtê-los da Justiça.

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De outra parte, porém, aliviaria o sus do atendimento daquela par-cela de quase metade da população que trabalha com carteira assinada. Em resumo, sobraria dinheiro para atender com dignidade e até confor-to a parcela indigente ou quase indigente da população.

Ninguém, contudo, deve alimentar ilusões sobre a factibilidade de uma solução cujos benefícios sociais parecem óbvios à primeira vista.

Os grupos de interesses que, ao longo de anos e anos de mobilização e organização sob a bandeira da Reforma Sanitária, se incrustaram na máquina-governamental, desfrutando hoje das inúmeras vantagens ma-teriais e simbólicas daí advindas, a isso resistirão respaldados no arsenal de recursos políticos a seu dispor. Como sempre, falarão em nome dos miseráveis, seu instrumento retórico preferido.

Até o presente momento, esses potentados do controle social parti-cipativo permanecem tão pouco autocríticos dos seus erros, tão surdos a qualquer reparo à sua narrativa encomiástica, quase hagiográfica, da epopéia do sus, que não admitem sequer interlocutores – muito menos adversários (115).

Para dar combate efetivo a esta como a tantas outras instâncias do iliberalismo brasileiro, os liberais precisam começar a enfrentá-los no mesmo terreno que serviu como ponto de partida de sua escalada he-gemônica: o terreno das idéias, criadoras dos símbolos, produtoras das palavras, enfim formatadoras das agendas que modelam as opiniões da massa e principalmente da elite que a governa, bem como redefinem os termos do debate público.

Um bom começo poderá ser a sistematização/difusão de informa-ções objetivas (quantificadas) sobre os resultados produzidos pelo SUS ante os recursos públicos que lhe são destinados em uma perspectiva comparada com o desempenho nessa área de países de peso econômico análogo ao do Brasil. Para retomar a expressão de Nozick, os intelectuais orgânicos da Reforma Sanitária são incorrigíveis “forjadores de palavras” e fracos em matéria de números. (Essas bases de dados deverão ser en-riquecidas com resultados de pesquisas de opinião pública sobre satisfa-ção dos usuários do sistema.)

Afinal, como alerta o indispensável Paim, “a derrocada do Estado Patrimonial não será alcançada como resultado secundário de ações que não visem diretamente aquele propósito” (116).

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Notas e referências

Depoimento da cientista política e professora da fgv/Rio Sonia Fleury Teixeira a Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos para faleiros, Vicente de Paula et alii. A construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do processo participativo. Brasília: Ministério da Saúde, 2006, p. 276.schumpeter, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy. 3rd edi-tion. New York: Harper & Brothers, 1950. (Ed. bras.: Zahar, 1982.) Uma monumental biografia recente é mccraw, Thomas K., Prophet of inno-vation: Joseph Schumpeter and creative destruction. Cambridge, Mass.: The Belknap Press, 2007.Id., ibid., p. 143.Id., ibid., p. 144Id., ibid., p. 145.Id., ibid., p. 146.Id., ibid., p. 147Ed. Bras.: Zahar, 1988.nozick, Robert. “Por que os intelectuais se opõem ao capitalismo?”. Banco de Idéias [revista trimestral do Instituto Liberal], IX, (34), mar./abr./mai. 2006: 17-27, traduzido de “Why do intellectuals oppose capi-talism?, em nozick, Socratic puzzles. Cambridge, Mass.: Harvard Uni-versity Press, 1997. Voltarei daqui a pouco ao argumento de Nozick, para desenvolvê-lo.schumpeter, op.cit, p. 147.Id., ibid., p. 146.Id., ibid., p. 151.Id., ibid., pp. 150-151.Cf. op.cit, pp. 154-155.nozick, Robert, “Por que os intelectuais…” (referência completa na nota 9, acima), p. 24.Id., ibid., p. 25. Id., ibid., pp.22-23.Id., ibid., p. 20.Id., ibid., p. 20.Id., ibid., p. 26. Cabe observar que o raciocínio de Nozick ecoa – e ele o reconhece devidamente no artigo aqui comentado, p. 20 – a visão

1.

2.

3.4.5.6.7.8.9.

10.11.12.13.14.15.

16.17.18.19.20.

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de mais um grande filósofo e economista liberal de origem austríaca, Friedrich Hayek (1899-1992), ganhador do prêmio Nobel de economia de 1974 e mais amplamente conhecido pela sua obra O caminho da servidão. Rio: Instituto Liberal, várias tiragens. “Para Hayek”, lembra Nozick, o projeto defendido pelo socialismo comunista de uma socie-dade minuciosamente planificada significa que esta se orientará por um “plano consciente, isto é uma idéia. As idéias são a matéria-prima dos forjadores de palavras, e desse modo uma sociedade planificada con-verte em primordial aquilo que constitui seu afazer profissional. É uma sociedade que encarna idéias. Como os intelectuais poderiam deixar de considerar uma tal sociedade como sedutora e valiosa?”.Id., ibid., pp. 27 e 18.boudon, Raymond. Os intelectuais e o liberalismo. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 9.Id., ibid., p. 89.Id., ibid., p. 88.Cf. boudon, op.cit., pp. 76 e seguintes.Id., ibid., pp. 83-84.Id., ibid., p. 80. A desfaçatez com que essa intelectualidade manipula dados estatísticos para moldar a sensibilidade da opinião pública e dos governantes de acordo com uma agenda ideológica é exemplificada por Boudon no seguinte trecho sobre a alegada determinação socioeconô-mica da delinqüência criminal: “[...] quando se pergunta a um soció-logo quais são as causas do crime, há fortes probabilidades de que ele responda: as estruturas sociais. Esta tese é confirmada por uma correla-ção que se observa por toda parte: tem mais probabilidades de cometer roubos, delitos ou crimes quem provém de um meio desfavorecido, de uma família desmembrada etc. A seguir passa-se facilmente da corre-lação à causalidade: a delinqüência é o produto do envolvente social. Finalmente, da causalidade presumida extraem-se princípios políticos: lutar contra a delinqüência é erradicar suas causas: [...] o desemprego; [...] as dificuldades das famílias etc. Este encadeamento deu como re-sultado que se tenham imposto recentemente, aqui e ali, políticas orien-tadas prioritariamente para a prevenção e ignorando não só a repressão, mas mesmo a mais simples ameaça de repressão: a dissuasão”. Ora, tal raciocínio em apoio à tese do criminoso ou do infrator como bom sel-

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vagem corrompido pela origem familiar e o meio social omite um sério ‘detalhe’: se alguém proveniente de “um meio ‘desfavorecido’ tem 10% de probabilidades de cometer um delito”, então “os mesmos números dizem-nos também que a maioria dos indivíduos [90%]” desse meio “não comete nenhum delito. Os dois dados representam dois aspectos essenciais de um mesmo fenômeno [todos os grifos são do autor]. Geral-mente menospreza-se o segundo.” boudonndo, op.cit., p. 68.Id., ibid., pp. 86-87.Id., ibid., p. 22.Cf. op.cit, por exemplo, p. 22.Id., ibid., p. 27.Id., ibid., p. 40.Id., ibid., por exemplo, p. 40.A seguinte análise sobre o impacto negativo da Contra-Reforma e do patrimonialismo sobre o desenvolvimento socioeconômico e político do Brasil se beneficia amplamente das contribuições de dois pensadores liberais pátrios contemporâneos: Antônio Paim, atualmente ligado ao Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Portugal (Lis-boa), e Ricardo Vélez Rodríguez, hoje professor da Universidade Fede-ral de Juiz de Fora (mg), autores ambos de fecunda e monumental obra filosófica, política e de história das idéias, da qual me permito destacar, de Paim, O liberalismo contemporâneo, 2ª edição. Rio: Tempo Brasilei-ro, 2000; e, de Vélez, Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio: dh (Documenta Histórica Editora), 2006. Para esta seção vali-me especialmente de paim, O socialismo brasileiro (1979-1999). Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 2000; e id., Momentos decisivos da história do Brasil. S. Paulo: Martins Fontes, 2000.gurovitz, Helio & blecher, Nelson. “O estigma do lucro”, Exame, xxxix, (6), 30 de março de 2005: 20-30.Ibid., p. 21.paim, Momentos decisivos..., op.cit., p. 282.Id., ibid., p. 49.Id., ibid., p. 49 (grifos do autor).Cf. op.cit., p. 50.Id., ibid., p. 51.Id., ibid., pp. 279-280.

28.29.30.31.32.33.34.

35.

36.37.38.39.40.41.42.

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Id., ibid., pp. 138-139.Cf. locke, John. “Segundo tratado sobre o governo civil”, volume Lo-cke da coleção Os pensadores; e hobbes, Thomas. Leviatã, volume Ho-bbes da mesma coleção. S. Paulo: Abril Cultural, 1978. (Há várias outras tiragens da mesma coleção).paim, O socialismo brasileiro (1979-1999), op.cit., p. 190.Cf., por exemplo, weber, Max. Economy and society. Berkeley: University of California Press, 1978 (segundo de dois volumes. Ed. bras.: UnB, 1991).Cf. paim, Momentos decisivos…, op.cit., pp. 265-276, para um útil ba-lanço crítico das contribuições de autores como Raymundo Faoro (Os donos do poder, 2ª ed. Porto Alegre: Globo, 1975, dois volumes) e Simon Schwartzman (São Paulo e o Estado nacional. S. Paulo: Difel, 1975; e Bases do autoritarismo brasileiro. 3ª ed., revista e ampliada. Rio: Cam-pus, 1988) e o já citado Ricardo Vélez Rodríguez (“Persistência do patri-monialismo modernizador na cultura brasileira”, em Pombal e a cultura brasileira, Paim [org.]. Rio: Tempo Brasileiro/Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982), entre outros, sobre a aplicação da categoria de patrimo-nialismo à realidade brasileira.Comte propõe uma filosofia trifásica da história. Segundo sua lei dos três estágios, a humanidade evoluiria através de etapas dominadas pela religião e pela metafísica até alcançar o plano científico ou positivo. A uma tecnocracia abnegada caberia a operação da síntese entre Ordem e Progresso (expressão que figura na bandeira republicana brasileira por inspiração dos “apóstolos” positivistas Miguel Lemos [1854-1917] e Tei-xeira Mendes [ - ]), superando assim a irracionalidade, a iniqüidade e os conflitos dos dois primeiros estágios. Cf. paim, Momentos decisivos..., op.cit., pp. 219-226; 296-302. A propósito da cristalização do positivismo em religião científica da humanidade, ele assinala que “a Igreja Positi-vista brasileira acabaria assumindo a direção do positivismo parisiense. Até hoje, a Casa de Augusto Comte, em Paris, é administrada por brasi-leiros” (p. 222, nota 5).Cf. vélez rodríguez, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da Repúbli-ca. Brasília: Senado Federal, 2000.paim, Momentos decisivos..., op.cit., pp. 242-243.Cf. id., ibid., pp. 300-301.Cf. wittfogel, Karl A. Oriental despotism. New Haven, Conn.: Yale

43.44.

44.a..45.

46.

47.

48.

49.50.51.

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University Press, 1959, citado por paim, Momentos decisivos…, op.cit., pp. 260-264.paim, O socialismo brasileiro (1979-1999), op.cit., p. 107.Cf. id., ibid., pp. 107-194Id., ibid., p. 108. Por exemplo, o documento que sintetiza a oposição tomada pelo PT diante da Nova República de Tancredo Neves e José Sarney, então recém-eleitos pelo Colégio Eleitoral (começo de 1985), intitula-se “Contra o continuísmo e o Pacto Social. Por uma alternativa democrática e popular”, ibid., p. 109. As referências à Constituinte fo-ram extraídas da p. 111.Id., ibid., p. 110.Id., ibid., p. 112.Id., ibid., p. 120.Cf. id., ibid., p. 120.Cf. id., ibid., p. 109.Id., ibid., p. 113.Este e outros documentos que pontuam as posições políticas do PT des-de sua fundação podem ser lidos no seu site oficial www.pt.org.br.paim, Antonio, O socialismo brasileiro..., op.cit., p. 190.Cf., por exemplo, fleury, Sonia, “Introdução”; id., “A questão demo-crática na saúde”; e carvalho, Antônio Ivo de, “Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado”, na coletânea Saúde e democracia: a luta do Cebes, Sonia Fleury (org.). São Paulo: Lemos Editorial, 1997, respectivamente, pp. 7-8; 25-41; e 93-112.Giovanni Berlinguer apud escorel, Sarah. Reviravolta na saúde: ori-gem e articulação do movimento sanitário. Rio: Fiocruz, 1998, p. 83.escorel, op.cit., p. 83.Referências completas nas notas (1), (62) e (63), acima.Cf. escorel, op.cit., p. 20.Informações colhidas na ‘linha do tempo’ biográfica de Arouca em www.bvsarouca.cict.fiocruz.br, consultada em 26/11/07.escorel, op.cit., p. 29.Cf. id., ibid., p. 110.paim observa que, nas décadas de 60 e 70, até mesmo na Hungria, país então considerado relativamente próspero no cotejo com seus congêne-

52.53.54.

55.56.57.58.59.60.61.

61.a.62.

63.

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68.69.

69.a.

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res do antigo bloco soviético, mercê da adoção de alguns mecanismos de mercado no quadro de uma economia majoritariamente planificada, estimava-se que “40% da população podiam ser arrolados como pobres” por não atingirem “o mínimo vital estabelecido pela Organização das Nações Unidas. A mortalidade infantil cresceu sob aquele regime [...] O alcoolismo é um problema tão sério como na antiga urss.” E, mais adiante: “Sob Gorbachov, o Comitê Estatal de Estatística da urss di-vulgou oficialmente que o país tinha 41 milhões de pessoas classificadas como pobres (dados de 1988), cuja renda mensal equivalia a 78 rublos [...] Assim, embora pelas estimativas ocidentais, relativas à renda per capita, a União Soviética não se pudesse classificar como país subde-senvolvido, [isso] parece tratar-se de uma superestimação, induzida por falsificação estatística. Os indicadores sociais que têm sido divulgados revelam um quadro nada favorável [...] [A] expectativa de vida reduziu-se ao longo da década de setenta, chegando a 56 anos em 1980, muito inferior à do Brasil e dos países de renda média [...]”. paim, Antônio, O liberalismo contemporâneo, op.cit., pp. 196-197.Id., ibid., pp. 25 e 26-27.Conforme assinala escorel, op.cit., pp. 27-8, nota 9, o envolvimento da Opas com o ensino e pesquisa de saúde pública na América Lati-na se inicia ainda nos anos 50, antes mesmo do advento da hegemonia marxista no enfoque teórico e metodológico. O marco da rejeição do “positivismo” é a Reunião de Cuenca, no Equador, com representantes de 11 países latino-americanos, que enfatizaram “a necessidade de no-vas metodologias e marcos teóricos que relacionassem os processos de saúde com a estrutura social. Só na primeira metade da década de 70, realizaram-se sete reuniões de trabalho e 17 seminários sobre ensino e pesquisas das [...] ciências sociais.” Fora da América Latina, no mesmo período, sob o impacto dos custos crescentes dos serviços de saúde e da demanda social crescente pelos mesmos e também sob a influência de novas experiências de intervenção simplificada em comunidades po-bres, como a dos médicos descalços na República Popular da China, a Organização Mundial da Saúde (oms) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) organizam em setembro de 1978, em Alma-Ata, no Cazaquistão, antiga União Soviética, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, sob o lema “Saúde para Todos no

70.70.a.

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2000”. escorel, op.cit., p. 23. Sobre a conferência de Alma-Ata, cf. fa-leiros et alii, op.cit., p. 106, nota 24.Cf. op. cit., pp. 28 e 120.Cf. op.cit. p. 111.donnangelo, Maria Cecília F. Medicina e sociedade. S. Paulo: Pioneira, 1975, seguido de id., Saúde e sociedade. S. Paulo: Duas Cidades, 1976.Cf. fleury, “A questão democrática na saúde”, em Saúde e democra-cia..., op.cit.; e escorel, Reviravolta..., op.cit., pp. 69-86. escorel, op.cit., p. 83.fleury, “A questão democrática…”, ibid., pp. 26-27. Trechos entre aspas de Fleury apud paim, Jairnilson Silva. “Bases con-ceituais da reforma sanitária brasileira”, em Saúde e democracia..., op.cit., Sonia Fleury, p. 14. Grifos de Paim.paim, Jairnilson, op.cit., p. 14.Cf. escorel, op.cit., pp. 112-116.Arouca apud escorel, op.cit., p. 113Arouca apud escorel, op.cit., p. 116 (grifos meus).escorel, op.cit., p. 125.Id., ibid., p. 184.rodrigues neto, Eleutério. “A via do Parlamento” em Saúde e demo-cracia..., op.cit., p. 66. A sagacidade política dos defensores da proposta no que respeita à ampliação de alianças com setores estranhos ao seu pa-radigma ideológico marxista pode ser aquilatada pelo seguinte comen-tário de Rodrigues Neto: “Na verdade, até mesmo na arena [Aliança Renovadora Nacional, agremiação de apoio ao regime militar criada em 1966, em seguida à extinção do pluripartidarismo, com instauração de um bipartidarismo compulsório, cabendo o papel de oposição consen-tida ao já referido mdb] foi possível encontrar parlamentar identificado com o movimento”. É provável que o autor tenha em mente, entre ou-tros, o médico e então deputado federal Luiz Carlos Borges da Silveira (Arena/pr), que presidiu aquele simpósio na Câmara, em 1979, e viria a ser um dos ministros da Saúde do governo do presidente José Sarney, em 1987. Eleutério Rodrigues Neto, médico e professor de saúde coletiva na Universidade de Brasília (UnB), é ex-presidente do Cebes e ex-secretá-rio-geral do Ministério da Saúde na gestão Carlos Sant’Anna. Este, já falecido, foi pediatra na Bahia, deputado estadual e secretário estadual

71.72.73.

74.

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76.a.

76.b.77.78.79.80.81.82.

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de educação, antes de tornar-se deputado federal (pmdb/ba) e líder do governo Sarney na Câmara durante a Constituinte, onde, apesar do seu perfil conservador, atuou como aliado dos sanitaristas na defesa da uni-ficação do sistema de saúde. Cf. faleiros, Vicente de Paula, et alii, A construção do sus...,op.cit., pp. 74-75. É significativo acrescentar que a mulher de Sant’Anna, Fabíola de Aguiar Nunes, ex-secretária de Progra-mas Especiais de Saúde, é uma pioneira do movimento pela Reforma Sanitária. Cf. salles, Simone, “Sanitaristas querem direito à saúde na Constituição”, Jornal do Brasil, 02/02/1987.(83) escorel, op.cit., p. 185. O “cerco hegemônico privatista” refere-se ao “inimigo de classe” preferido desses intelectuais militantes da medi-cina social, já agora instalados em escalões decisórios intermediários da máquina governamental: os donos de hospitais privados (representados pela Federação Brasileira de Hospitais/abh), o segmento de defensores da concepção e dos interesses da medicina como profissão liberal (As-sociação Medicina Brasileira/amb) e seus aliados no topo da carreira da burocracia previdenciária.escorel, op.cit,. p. 133.Cf. ibid., pp. 133 e 143.Id., ibid., p. 186.Cf., por exemplo, konder, Leandro. “Gramsci e a crítica da moderni-dade”, em Jornal do Brasil/Caderno Idéias/Livros, 02/06/2001: 8.escorel, op.cit., p. 187.Regimento da viii cns apud escorel, op.cit., p. 186.escorel, op.cit., p. 187.Id., ibid., p. 187.Um relato vívido e pormenorizado dos choques e negociações durante o processo constituinte, na perspectiva de um destacado líder da Reforma Sanitária, é já citado por rodrigues neto, Eleutério. “A via do parlamen-to”, em Saúde e democracia..., op.cit., Sonia Fleury (org.), pp. 63-91. Cf. id., ibid., p. 187.Depoimento do médico hematologista, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina (crm) e do Sindicato dos Médicos do Rio e ex-secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, Crescêncio Antunes da Silveira Neto, em faleiros Vicente de Paula, et alii. A construção do sus..., op.cit., p. 89.

84..85.86.87.

88.89.90.91.

91.a.

92.93.

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Depoimento da enfermeira sanitarista e ex-coordenadora da plenária (período 1987/97) Jacinta de Fátima Senna da Silva, em faleiros et alii, op.cit., p. 88.Depoimento da médica sanitarista e ex-coordenadora da plenária (perí-odo 1987/91) Samara Rachel Vieira Nitão, em id., ibid, pp. 89-90.escorel, op.cit., p. 187.Depoimento do médico sanitarista, professor da Unicamp, ex-secretário municipal de Saúde de Campinas (período 1983/88) e ex-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass, período 1989-1990), Nelson – Nelsão – Rodrigues dos Santos, em faleiros et alii, op.cit., pp. 85-86.Depoimento do sociólogo, sanitarista, chefe de gabinete da presidência da Fiocruz e ex-coordenador da cnrs (período 1986/87), Arlindo Fábio Gómez de Sousa, em faleiros et alii, op.cit, p. 86.Cf. faleiros et alii, op.cit., pp. 75-79. Trecho do depoimento do diretor do Curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá, ex-presidente do Inamps e ex-reitor da Uerj, Hesio Cordeiro, contido na p. 78.Depoimento de Hesio Cordeiro, em faleiros et alii, op.cit., p. 77. Depoimento do atual ministro da Saúde, pesquisador licenciado da Ensp/Fiocruz, ex-presidente do Cebes (período 1981/84) e ex-diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer José Gomes Temporão, em fa-leiros, et alii, op.cit., p. 78.Cf. escorel, op.cit., p. 188.faleiros et alii, op.cit., p. 53. Cf., também, id., ibid., p. 52. Em uma passagem autocrítica sobre a dificuldade dos intelectuais e tecnocratas da Reforma Sanitária para se aproximar do povo trabalhador com quem des-de sempre almejaram de identificar, Eleutério Rodrigues Neto recorda que “a [emenda popular] da Reforma Agrária obteve mais de rodrigues neto, Eleutério, “A via...”, em Saúde e democracia..., op.cit., p. 79.Cf. id., ibid., especialmente pp. 113-120.Cf. id., ibid., p. 133.Cf. id., ibid., p. 142.Cf. id., ibid., pp. 118-120.Cf. id., ibid., p. 120.Cf. id., ibid., p. 165.Cf. id., ibid., pp. 173-179, por exemplo.

94.

95.

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Depoimento da assistente social, assessora do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e ex-coordenadora da Plenária Nacional de Conselhos de Saúde eleita pela Região Sul (período 1999/2003), Adalgisa Balsemão Araújo, em faleiros et alii, op.cit., p. 199. Para uma análise dos temas discutidos nessas plenárias e uma avaliação da situa-ção e das perspectivas do “controle social”, cf. id., ibid., pp. 209-259. Cf. rodrigues neto, Eleutério, “A via...”, em Saúde e democracia..., So-nia Fleury (org.) op.cit., p. 86, acerca da funcionalidade da continuação das plenárias para a influência dos militantes do movimento sanitarista sobre a regulamentação infraconstitucional de questões como Previdên-cia Social; Assistência Social; sangue e hemoderivados; doação e trans-plante de órgãos, entre outras.Id., ibid., p. 184.Depoimento de Sarah Escorel, em faleiros et alii, op.cit., p. 64.escorel, Reviravolta..., op.cit., p. 190.Cf. linha do tempo biográfica na já referida Biblioteca Virtual Sérgio Arouca, www.bvsarouca.cict.fiocruz.br, consultada em 26/11/2007.Melhor exemplo não há que o da maioria dos depoimentos que inte-gram faleiros et alii, op.cit., passim.paim, O socialismo brasileiro..., p. 190.

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Programas de acesso aos medicamentos: ações diretas do governo e/ou mecanismos de mercado.Jacob Frenkel*

Observações Preliminares

A política de medicamentos de genéricos, o programa de medicamentos de alta complexidade (ou de alto custo, como é chamado por certos segmentos), a Farmácia Popular, são exemplos de mudança de ênfase na política, somente para ficarmos no nível federal. Nos níveis estadual e municipal, a existência de programas de medicamentos é generalizada no país, de forma complementar às iniciativas federais ou mesmo por iniciativas locais.

Por que esta mudança de ênfase? Que fatos ocorreram para que a ên-fase das políticas governamentais passasse a ser centrada na questão do acesso, superando-se, assim, objetivos que foram dominantes nas duas ou três décadas imediatamente anteriores?

O quadro 1 dá uma forte 1 indicação do porquê desta mudança. As uni-dades vendidas, utilizando-se a mesma fonte de informações, em 2006 estão abaixo em 7,84% das unidades vendidas em 1989, ou seja, passados 17 anos, e tendo a população brasileira aumentado em cerca de 20 milhões de pessoas, o número de unidades de medicamentos vendidas através do mer-cado regular não somente não aumentou, como na realidade diminuiu.

A percepção deste fato, isto é, a incapacidade do mercado regular de atender às necessidades de medicamentos por parte da sociedade brasi-leira, certamente influenciou a preocupação crescente do governo com a ampliação do acesso ao medicamento, e influenciou os principais ins-trumentos da ação governamental neste decênio.

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Uma análise crítica dos principais instrumentos criados no decênio poderia ajudar a compor o substrato analítico que induziu as principais ações, a entender a sua evolução e, talvez, compor um perfil das possí-veis tendências para um futuro próximo. 2

Características Institucionais

O Brasil apresenta uma situação peculiar com relação à superestrutura ligada à produção e ao consumo de medicamentos. Por um lado, adota política semelhante aos países europeus e ao Canadá, em que o Estado interfere diretamente nos condicionantes relacionados à oferta e deman-da de serviços médicos e, no caso dos medicamentos, regulamentando incisivamente a demanda, regulando o acesso e subsidiando-o de várias formas e níveis; sendo que a preocupação primeira visa a permitir, den-tro da visão da assistência social abrangente prevalecente nestes países, permitir o acesso de todas as classes sociais aos serviços médicos, incluin-do os medicamentos. Por outro lado, mantêm institucionalmente um mercado regular, em que a regulação básica é cada vez mais semelhan-te àquela existente no mercado americano, onde a agência reguladora preocupa-se mais com a segurança e a qualidade, tanto dos produtos novos quanto dos produtos já existentes; e quando o governo interfere com outras ações, ele o faz tentando melhor as condições estruturantes do processo de competição no mercado.

Essa dicotomia está presente na criação do programa de medica-mentos do governo e na criação do programa de genéricos. O primeiro obedeceria aos princípios semelhantes aos da assistência social européia e canadense, e o segundo aos que orientaram a implantação do progra-ma de genéricos nos Estados Unidos. O programa da Farmácia Popular começou com forte influência dos modelos europeus, e incorporaria progressivamente alguns mecanismos inéditos na política brasileira de medicamentos, como o co-pagamento e outros que o aproximariam das operações do mercado regular.

O programa de medicamentos genéricos é fortemente influenciado pelas características gerais da política americana para o segmento. A idéia básica que induziu a política é a seguinte: o governo, alterando

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o aparato regulatório, faria com que os mercados se comportassem de forma diferente e adequada, de forma a atingir um objetivo social pré-determinado, que no caso seria uma redução de preços dos medicamen-tos. Deste modo, a população ampliaria o acesso aos medicamentos. A lógica subjacente é, portanto, que cabe ao governo regular os mercados e estes, pelas forças endógenas do processo competitivo, atingirão o ob-jetivo social pretendido.

No caso específico, as mudanças regulatórias visaram principalmen-te a facilitar a entrada de novos concorrentes ao término da validade da patente do medicamento inovador. Como os novos produtores entra-riam com preços mais baixos, aumentaria rapidamente a intensidade do processo de competição em preços no mercado, resultando assim em preços menores, e, conseqüentemente, a demanda aumentaria, signifi-cando um acesso mais amplo e atingindo os objetivos sem a necessidade de outras interferências diretas do governo.

Genéricos

No caso brasileiro, o programa de medicamentos genéricos foi lançado com características e objetivos básicos semelhantes. Surgiu em 1999, durante o governo Fernando Henrique, o qual se caracterizou, quanto às políticas setoriais, pela criação de agências regulatórias e pela valo-rização dos instrumentos do mercado para atingir maior eficiência e eficácia das ações governamentais. Sendo o seu raciocínio idêntico ao americano, isto é, a redução dos preços pela intensificação do processo concorrencial através da rápida entrada de produtores de medicamentos genéricos, e uma conseqüente ampliação do acesso por parte de uma significativa parte da população.

Apesar de limitações e críticas que possam ser feitas à sua abrangên-cia e qualidade, o Quadro I é um forte indicador dos limites impostos pela realidade social e econômica do país aos objetivos e à eficácia da política de genéricos. Embora os preços dos genéricos sejam inferiores (pelas regras da anvisa, os preços dos genéricos têm de ser no seu lança-mento no mínimo 35% mais baratos que o medicamento de referência), e tenham contribuído para reduzir efetivamente os preços de outros

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produtos com os quais concorrem, não contribuíram para aumentar a demanda dos medicamentos no mercado regular.

Vários fatores influenciaram o sucesso parcial da política de genéri-cos quanto à influência sobre os preços e o relativo fracasso em relação ao aumento do acesso geral da população aos medicamentos.

Inicialmente analisaremos vários condicionantes estruturais, existen-tes no mercado, que amortizam o processo de competição em preço, e, posteriormente, analisaremos alguns condicionantes da demanda que limitaram o aumento do acesso.

É sobejamente conhecido que o processo de competição no mercado farmacêutico é complexo e peculiar, devido às características do medica-mento como objeto de consumo, dado o fato de ser um bem que, na maio-ria dos casos, não pode ter seu consumo adiado ou substituído por outro bem; e do papel do médico no processo decisório, em que a decisão do que comprar é independente de quem paga pelo produto. Adicionalmente, nos parágrafos seguintes, tentaremos mostrar, dentro dos limites do espaço e do objetivo deste trabalho, algumas características que tornam o processo de competição real no mercado farmacêutico muito mais complexo do que a visão deste processo embutida nos mecanismos regulatórios criados.

Ao fixar um patamar mínimo para o preço inicial do medicamento genérico, os novos entrantes, na sua grande maioria, adotaram-no como o preço de referência. Como ao preço anterior a margem do laboratório de referência era significativa, os novos entrantes, mesmo com a redu-ção inicial imposta pelo aparato regulatório, mantiveram altas margens. Estas altas margens permitiram aos novos entrantes ampliarem os seus departamentos de venda e conseqüentemente aumentarem significati-vamente as suas vendas. Para confirmar esa situação basta verificar o desempenho das vendas dos principais laboratórios nacionais que aden-traram na produção de genéricos.

Em vez de competirem em preço, as margens foram utilizadas para intensificar o processo tradicional de competição no setor, onde os mé-dicos, devido ao seu papel peculiar, interferem na escolha dos medica-mentos através do seu receituário e os laboratórios buscam influenciar esta decisão através de vários instrumentos de marketing. No caso dos genéricos, como não existem marcas para a identificação do produto, o esforço de persuasão sobre os médicos se dá através da identificação do

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Quadro 1

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laboratório produtor; a “marca” do genérico passa a ser o laboratório que o produz; e esta é que passa a ser o elemento prioritário na influência so-bre o receituário. O genérico passa a ser associado ao laboratório “x” ou “y” em detrimento do “z”, que não tem o mesmo poder de persuasão.

Adicionalmente, como já previsto, a importância relativa da farmácia no processo de escolha do medicamento se alterou. Como a substituição do genérico indicado na receita é legal, a farmácia na hora da compra do medicamento pelo paciente pode substituí-lo por outro medicamento genérico com o mesmo princípio ativo. Desta forma, a farmácia passa a ter um poder de influenciar na decisão de qual medicamento o paciente irá escolher. Essa decisão, então, irá depender do interesse econômico da far-mácia, que irá se basear na margem que ela obtém dos diferentes fabrican-tes do medicamento genérico. Desta forma, a farmácia oferecerá os produ-tos dos laboratórios em que ela tenha as melhores margens, que não serão necessariamente os de menor preço nem os de interesse do paciente.

O raciocínio acima é válido para a farmácia que compra diretamente do laboratório, procedimento realizado quando as quantidades de repo-sição dos estoques são relativamente grandes, o que acontece somente com as grandes redes de farmácias. A maioria das farmácias (pequenas redes ou farmácias independentes) não compra diretamente dos labora-tórios e sim de distribuidores. Adicionalmente, essas farmácias freqüen-temente têm falta de capital de giro, mantendo estoques limitados de medicamentos nas prateleiras e trabalhando assim, mais freqüentemen-te, com reposições dos distribuidores, dependendo deles para manter o fluxo de reposição dos medicamentos. Desta forma, as condições co-merciais do distribuidor passam a exercer uma forte influência sobre o que a farmácia compra, pois é ele que financia o giro da reposição dos medicamentos da farmácia.

Sendo assim, entra outro agente no processo decisório da comerciali-zação do genérico: o distribuidor. Como um grande comprador interme-diário, este passa a ter forte influência junto aos laboratórios produtores de genéricos, pois da sua decisão de compra dependerá o abastecimento dos estoques das farmácias e, conseqüentemente, a oferta dos medica-mentos genéricos disponíveis quando o paciente efetuar a sua compra.

Estes agentes econômicos, com suas peculiaridades e seus interesses econômicos, acabam interferindo no processo de competição que efeti-

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vamente se instala nos mercados de medicamentos genéricos e acabam prevalecendo, ou amortecendo e retardando o processo de competição em preços inicialmente visualizado quando da implantação da política de genéricos no país.

Por outro lado, a questão da não ampliação do acesso pelos mecanis-mos do mercado regular passa por outra dimensão estrutural da socieda-de brasileira: o seu nível de renda.

Toda discussão ou análise do mercado e da formação de seus preços pressupõe certas características dos agentes envolvidos na oferta e na demanda.

No caso da demanda, as variáveis principais a serem analisadas são as características dos produtos em consideração e a renda dos potenciais clientes. Em outro trabalho chamei a atenção para o fato de que uma polí-tica eficaz de acesso para o segmento farmacêutico deveria levar em conta uma segmentação da demanda de medicamentos de acordo com a elasti-cidade-preço e a renda. 3 Essa segmentação é reapresentada no Quadro ii.

Este quadro nos possibilita um entendimento de por que o acesso dos medicamentos, em termos quantitativos, não aumentou com o progra-ma de genéricos.

Os diferentes segmentos, de acordo com as diferentes rendas, têm di-ferentes elasticidades com relação a variações de preços. As famílias que compõem o segmento a têm baixa elasticidade-preço devido aos fatos de terem rendas altas, preferirem os medicamentos de última geração e as

Quadro 2

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participações relativas das despesas com eles serem relativamente baixas. Para este segmento, o programa de medicamentos genéricos teve pouca repercussão e efetividade.

O programa de genéricos teve grande repercussão sobre o segmento b, pois, apesar deste ter renda relativamente alta, porém mais baixa que o do segmento a, os medicamentos têm uma participação nas suas despesas re-lativamente maior, e, portanto, o preço menor provoca uma redução sen-sível nas despesas com medicamentos. Um bom exemplo desse segmento seriam os aposentados, mesmo nos extratos superiores de renda, que, por terem renda fixa, seriam mais sensíveis aos valores absolutos conseqüentes de uma redução dos preços ocasionada pelos medicamentos genéricos e, portanto, com um forte efeito-substituição por estes medicamentos.

O segmento c tem acesso ao mercado regular eventualmente, prin-cipalmente a medicamentos mais baratos, ou em situações emergen-ciais, e à oferta do sus em situações de cronicidade ou com preços mais elevados. Para este, o programa teve uma repercussão positiva menor do que no grupo anterior, pois é atendido parcialmente pelo mercado regular e já depende do sus para complementar a sua necessidades de medicamentos. Este segmento poderia ser mais atingido pela política de medicamentos genéricos se as quedas de preços fossem mais substan-ciais, pois a limitação básica ao acesso é o preço.

Quanto aos segmentos d e e, a repercussão dos genéricos foi baixa porque têm pouco acesso ao mercado regular e dependem essencial-mente do sus para conseguir os medicamentos necessários. Nestes seg-mentos, o aumento do acesso passa mais pela questão do nível de renda das famílias do que pelo preço dos medicamentos. Devido à baixa renda e à pouca interação com o mercado regular, o instrumento básico de acesso ao medicamento seria a distribuição gratuita através do sus. Re-duções substanciais de preço poderiam alterar essa situação estrutural para o segmento d. Quanto ao segmento e, o acesso teria de ser garanti-do através do medicamento gratuito.

Com essa segmentação, percebe-se por que o impacto do medica-mento genérico através do mercado regular foi parcial, restringindo-se a uma parcela relativamente pequena da população, e que, mesmo com a redução dos preços conseguida, o seu principal efeito foi substituir para essa parcela a demanda que já existia no mercado regular pelo medi-

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camento genérico, tendo pouco efeito sobre a ampliação do acesso aos medicamentos para a população total.

Portanto, para conseguir uma ampliação maior do acesso através do mercado regular, principalmente para os segmentos c e d, a política de medicamentos genéricos deveria conter alguns mecanismos adicionais que provocassem uma redução mais intensa nos preços.

Para alterar o processo de competição descrito nos parágrafos anterio-res, que amortizam o processo de redução de preços, um dos mecanismos seria a introdução, no processo, de grandes compradores institucionais, tais como os planos de saúde e o próprio governo nos seus diversos níveis.

Se os planos de saúde introduzissem o medicamento entre os seus benefícios, eles seriam levados a negociar diretamente os preços com os laboratórios, pois teriam o interesse de pagar o mínimo possível. Assim, o processo de competição passaria a ser essencialmente em preços, pro-vocando, deste modo, uma rápida queda, pelo menos nestas negocia-ções, atingindo a população coberta pelos planos de saúde.

Para a população não coberta pelos planos de saúde, o governo (nos seus diversos níveis) poderia licitar a participação dos preços dos medi-camentos que estariam disponíveis na Farmácia Popular, ou seja, partici-pariam da oferta no canal de distribuição Farmácia Popular os produtos/produtores que ganhassem a licitação. Certamente os preços atingiriam rapidamente níveis mais baixos do que os apresentados atualmente.

Cabe ressaltar neste momento que, ao tratarmos do acesso aos medi-camentos pelo mercado regular, o papel do governo é somente regula-tório, ou seja, a participação governamental se dá através de mudanças legislativas que regulem a oferta e a demanda. Quanto maior a popula-ção que possa ter acesso aos medicamentos através do mercado regular, menor será aquela que necessitará da ação direta do Estado como pro-dutor, distribuidor e financiador de recursos, tornando essa ação direta mais viável economicamente.

Farmácia Popular

Falando em Farmácia Popular, passaremos então a fazer uma análise do seu perfil institucional e operacional e de possíveis modificações e melhorias.

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Esse tipo de programa desperta, para a sua execução, três questões básicas: a escolha dos medicamentos, a capilaridade geográfica e os ní-veis de subsídio (que na realidade estão vinculados à disposição de re-cursos orçamentários). Ele foi inicialmente concebido como uma ação direta do governo na escolha, produção, distribuição e venda subsidiada de medicamentos.

A escolha recaiu sobre os medicamentos necessários para o tratamen-to de duas patologias: hipertensão e diabetes. Recentemente foi incluída também a classe de anticoncepcionais.

Os laboratórios estatais produziriam os medicamentos e os distribui-riam para as farmácias participantes, que seriam criadas pelo governo fe-deral (em convênios com os estados e municípios), e o valor de venda para a população seria subsidiado de forma ao preço atingir níveis muito baixos (em alguns casos chegando a R$1,00 ‘um real’, e até valores menores).

Do ponto de vista institucional, o programa da Farmácia Popular preenche algumas das falhas do programa de genéricos mencionadas acima, tentando atingir as populações dos segmentos c, d e e. No en-tanto, se esses segmentos da população já eram atendidos pelo sus, cabe a pergunta do porquê de um novo programa para atingir uma mesma parcela da população.

Primeiramente, cabe observar que o programa da farmácia popular introduz um novo instrumento de ação na política de medicamentos: o co-pagamento. O paciente recebe o medicamento com um subsídio governamental, mas ele também paga por ele. Até então a dicotomia nas políticas de acesso era absoluta. Ou o paciente se abastecia no mercado regular e pagava o preço vigente do medicamento ou se abastecia no sus e ele era gratuito.

O co-pagamento é um instrumento, a nosso ver, extremamente útil, pois permitirá maior flexibilidade na criação de instrumentos de aces-so, permitindo diferentes níveis de subsídios de acordo com as várias prioridades que o governo queira implementar, sejam por região, por patologia, por diferentes níveis de renda, por faixa etária, etc. Esses di-ferentes níveis de subsídio e, conseqüentemente, de preços, impõem uma racionalidade econômica tanto na elaboração das políticas e na oferta de medicamentos, nivelando-os de acordo com as necessidades e prioridades, como também na sua utilização e demanda, evitando des-

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perdícios e excessos; além de permitir que se alcance com os mesmo recursos orçamentários uma população maior, tornando o instrumento mais efetivo.

Outra modificação que a Farmácia Popular introduz é a preocupação com a capilaridade geográfica do atendimento. Um das questões mais importantes do acesso aos medicamentos dos sus era o acesso geográfi-co. Como os estoques de medicamentos estavam localizados em postos/hospitais específicos, o número de pontos de acesso era limitado. Essa questão era agravada nas grandes cidades, onde o deslocamento até os pontos de acesso implicava, em grande parte dos atendimentos, grandes distâncias, e com um custo de transporte que poderia ser significativo para a renda da população que pretendia atingir. Ao criar uma rede de farmácias própria, em princípio, pretendia-se atingir uma maior capi-laridade, facilitando assim o acesso geográfico. Embora se pretendes-se atingir 1000 farmácias ainda no primeiro mandato do atual governo, percebeu-se que a meta era inviável.

No final do primeiro mandato, em 2006, o governo federal modifi-cou duas características básicas do programa Farmácia Popular: abriu a possibilidade de credenciamento de farmácias privadas no programa, e criou um sistema de subsídios, que podem atingir até 90%, para uma lis-ta de medicamentos associados às patologias de hipertensão e diabetes.

Essas duas medidas ampliaram significativamente as possibilidades da eficácia do programa, tanto na questão da capilaridade do acesso ge-ográfico quanto das possibilidades de uso.

Quanto à capilaridade, a abertura para o cadastramento das farmá-cias privadas foi um sucesso. Após um pouco mais de um ano da mudan-ça da regra cerca de 3500 farmácias particulares já se cadastraram para operarem no programa, e espera-se atingir dez mil, enquanto o número de farmácias próprias está em torno de 350 após 3 anos de implantação do programa.

Quanto à operação, a opção pelo credenciamento também trouxe modificações estruturais: enquanto no modelo com farmácias próprias o programa opera com custos fixos e operacionais, além do subsídio implí-cito no preço, no novo modelo, através de credenciamento de farmácias privadas, estes custos inexistem, pois toda a operação se encaixa na ope-ração regular da farmácia, utilizando as suas instalações, o seu pessoal e

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os seus estoques. Os medicamentos do programa Farmácia Popular, na realidade, são somente alguns medicamentos adicionais entre os nor-malmente comercializados pela farmácia.

Ademais, a operação através dos procedimentos normais da farmácia elimina algumas das questões mais complexas e difíceis de organizar no modelo com farmácias próprias: a necessidade de uma previsão apurada da demanda, o conseqüente controle dos estoques e a logística da com-pra centralizada e distribuição descentralizada. Como essas questões já fazem parte da cultura operacional das farmácias, elas rapidamente percebem as mudanças na demanda, adaptam adequadamente os seus estoques a essas variações, evitando faltas, desperdícios por perda de validade dos medicamentos ou excessos nos seus estoques, e induzem as mudanças necessárias na operação logística, tornando assim, rapida-mente, o programa mais eficiente.

Esse novo modelo permite que os recursos orçamentários sejam alo-cados num item único do processo: os subsídios, induzindo uma maior eficiência, eficácia e efetividade, ou seja, uma oferta potencial maior em termos de unidades de medicamento disponíveis no programa, e poden-do, assim, atingir uma população maior com o mesmo orçamento.

Quanto à utilização do subsídio existente, cabem algumas obser-vações adicionais. Ao padronizar um único nível de subsídio, e conse-qüentemente de co-pagamento, corre-se o risco de fornecer subsídio para quem não precisa dele e, como os recursos são escassos, tornar a eficiência e a efetividade menores.

Se o objetivo do programa era subsidiar medicamentos principal-mente para os segmentos c e d, ao se fixar um nível único de subsídio, permitindo o acesso generalizado nas farmácias credenciadas, parcelas significativas do segmento b e eventualmente mesmo do segmento A, poderão se utilizar do mesmo. Acontecendo esse fenômeno, novamente estaríamos substituindo um mecanismo de atendimento por outro, do mercado regular e de genéricos para o “mercado subsidiado”, limitando a sua eficiência e efetividade.

A combinação dos procedimentos do co-pagamento e do subsídio com a segmentação do mercado sugerida acima permitiriam uma alo-cação eficiente de recursos e uma efetividade maior. Os diferentes ní-veis de subsídios permitiriam adaptar os objetivos aos diferentes níveis

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de renda; o co-pagamento complementaria esta ação induzindo uma racionalidade econômica tanto na alocação global dos recursos quanto na demanda individual. A adequação dos níveis de subsídio aos vários segmentos permitiria calibrar com maior precisão os preços efetivamen-te pagos por nível de renda, liberando recursos para aqueles com renda mais baixa; e os níveis de co-pagamento, aumentando no sentido inver-so, induziriam a racionalidade no uso, evitando desperdícios, excessos e desvios de comportamento.

As dificuldades na aplicação deste procedimento seriam a separação e o cadastramento das pessoas nos diferentes segmentos de acordo com a renda.

Poder-se-ia pensar várias maneiras de fazer esta separação sem incor-rer em processos burocráticos que entravem a funcionalidade do pro-grama. Sem entrar em grandes detalhes, os quais escapariam ao objeti-vo deste trabalho, poder-se-ia citar alguns critérios, de implementação relativamente fácil, e que poderiam servir de orientação para diferentes níveis de subsídios e co-pagamentos: aposentados e não aposentados, idade (idosos e crianças), diferentes patologias, por regiões ou bairros, etc. A existência generalizada de computadores nas farmácias e de siste-mas computacionais pré-programados com os condicionantes do subsí-dio, torna estas operações, hoje em dia, de fácil execução.

Considerando a hipótese específica de que o objetivo do programa deveria ser atender primordialmente os segmentos c e d, e como estes são fortes usuários do sus, o nível de subsídio deveria estar associado à origem da receita. Para as receitas oriundas do sistema sus, o sub-sídio deveria ser maior e para as receitas provenientes do sistema de atendimento médico privado o subsídio deveria ser menor. Essa medida diminuiria o desvio de comportamento pelo qual pessoas que não pre-cisam de subsídio maior, pois já estão comprando o medicamento nas condições atuais, passam a utilizar-se dele devido à facilidade de acesso geográfico criado pela profusão de farmácias credenciadas; conseqüen-temente, sobrariam mais recursos para ampliar o acesso dos segmentos sociais pretendidos.

Os Programas de Medicamentos do Governo Federal

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O governo atual tem feito um grande esforço econômico na ampliação das possibilidades de acesso aos medicamentos através dos seus diferen-tes programas.

Alguns destes programas foram de uma efetividade excepcional, como é o caso do programa de combate a aids, reconhecido internacio-nalmente com um programa exemplar e que contribui para controlar a evolução da doença no país.

O quadro 3 nos traz um resumo dos valores dos principais programas. É facilmente perceptível o aumento significativo nos valores absolutos dos montantes alocados, que demonstram a forte prioridade que vem sendo dada ao aumento do acesso aos medicamentos. No total dos gastos com medicamentos, o governo federal aumentou os valores em 143,8%, entre 2003 e 2007.

Por outro lado, paralelamente, e como decorrência do primeiro, ou-tro fenômeno econômico que está ocorrendo ameaça essa tendência se novos critérios operacionais não forem incorporados na alocação desses recursos. O aumento das despesas com medicamentos tem crescido mais do que o orçamento total do ministério da saúde, aumentando, assim, a sua participação relativa e rapidamente atingindo níveis que ameaçarão os outros programas do ministério.4 A não ser que o orçamen-

Quadro 3

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to total aumente na mesma rapidez e/ou adote-se ações que tornem os programas de medicamentos mais eficientes.

Uma das dificuldades maiores que os programas vêm apresentando é a interferência do aparato judicial do país no “quê” e “quanto” de medi-camentos deve ser consumido.

Baseados numa interpretação ampla do artigo 196 da constituição, o poder judiciário tem emitido liminares que tem permitido a muitos pacientes portadores de diversas patologias, cujos medicamentos ou não são comercializados nas farmácias ou requerem procedimentos clínicos especiais, ou, ainda, são utilizados para certas patologias raras, sejam fornecidos gratuitamente para os pacientes requerentes.

Para esses produtos e esses pacientes, as condições regulares de fun-cionamento dos processos concorrenciais dos mercados são ineficientes e ineficazes.

Do lado da oferta, geralmente são produtos recém lançados no mer-cado, alguns ainda com registros pendentes no país, com um único pro-dutor; e por outro lado, quanto à demanda, trata-se de pacientes com patologias que requerem atendimento rápido, que desejam sempre as últimas inovações, ansiosos para recuperarem um estado de saúde razo-ável, ou melhorarem a expectativa de vida.

A resultante destes elementos estruturais faz com que o processo de competição regular dos mercados seja pouco eficiente, resultando em altos preços, tornando-os economicamente inacessíveis e sem alternati-vas para os pacientes. O único recurso restante é recorrer aos governos para a obtenção dos medicamentos. A interferência do poder judiciário torna ainda mais difícil a operação destes mercados, pois ao impor uma decisão judiciária para a concessão do medicamento, inclusive com pra-zo determinado, retira do governo possíveis instrumentos de negociação que poderiam ser de outra forma utilizados para baixar os preços.

Esses medicamentos representam o maior valor dentre os valores apresentados no Quadro 3, tendo um orçamento previsto para 2006 de R$1.355.000.000,00 (um bilhão e trezentos e cinqüenta e cinco milhões de reais). Somente para efeito de comparação, para se ter uma idéia relativa de dimensões, para o mesmo ano o orçamento previsto para o Programa de Farmácia Popular era de R$ 72.000.000,00 (Setenta e dois milhões de reais).

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Certamente, a disparidade de valores indica que algumas ações cor-retoras têm de ser consideradas. Inicialmente, para evitar a interferência ostensiva e interpretações diversas do poder judiciário, teria de se ela-borar uma lei que especificasse as obrigações do Estado com relação ao fornecimento de medicamentos.

Ademais, assim como no programa da Farmácia Popular, deveria haver a figura do co-pagamento e a caracterização das suas isenções. Para o caso de medicamentos de alto custo e monopolizados, a possi-bilidade dos licenciamentos compulsórios e das importações paralelas deveriam ser facilitadas. Enfim, para se continuar e ampliar o acesso aos programas estratégicos de medicamentos do governo federal, e mantê-los com orçamentos exeqüíveis, certamente o aparato legislativo tem de ser modificado, e conseqüentemente, os instrumentos governamentais alterados para que se tornem mais eficientes.

Ampliação do Acesso e Política Industrial e tecnológica

Desde a década de 70, os sucessivos governos do país consideraram, de alguma forma, o segmento farmacêutico como prioritário, seja em ter-mos de política industrial como também em termos científicos e tecno-lógicos.

Essa visão se deve a vários fatores, a saber: a importância da indústria farmacêutica para a política de saúde, a interação da indústria com as áreas científicas e de pesquisas, a dimensão econômica das suas ativida-des e, mais recentemente, as suas possibilidades de crescimento quando associadas uma política de ampliação do acesso.

O potencial de crescimento da indústria farmacêutica no país, dada a demanda reprimida de medicamentos e o tamanho absoluto da sua po-pulação é imenso. Desta forma, associar uma política de acesso amplo aos medicamentos a uma política industrial e tecnológica que fomente os investimentos e a produção local, em todos os seus estágios – pesquisa e desenvolvimento, produção de fármacos e de medicamentos – torna-se econômica e politicamente interessante e viável.

Ademais, dada a evolução financeira favorável dos laboratórios nos últimos anos, da melhoria da capacitação científica nas áreas inter-re-

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lacionadas com a pesquisa, e dos ganhos de eficiência obtidos na pro-dução de medicamentos (nos seus vários estágios), essas condições per-mitiriam que essa política fosse implantada com relativa rapidez e forte probabilidade de sucesso.

Uma amostra histórica dessas possibilidades e da capacidade de res-posta dos agentes envolvidos é o fenômeno do crescimento dos laborató-rios nacionais associados ao lançamento do programa de medicamentos genéricos, por um lado, e por outro, no campo vinculado às atividades de caráter mais científico, a difusão das atividades relacionadas com os testes de bioequivalência. Ambos os fenômenos demonstram que os substratos produtivos e científicos do país estão aptos para assumirem no-vos compromissos operacionais e implantá-los com rapidez e eficiência. Uma amostra adicional, conjugando as duas condições, são as patentes recentemente registradas por alguns laboratórios nacionais, fenômeno relativamente novo na história da indústria farmacêutica nacional.

Adicionalmente, levando-se em conta a dimensão do consumo de medi-camentos no país e possíveis repercussões econômicas, cabe relembrar que o déficit da balança comercial de medicamentos em 2006 foi de cerca de dois bilhões de dólares, ou seja, hoje, os medicamentos já compõem um dos segmentos industriais com maior déficit; ao pretender-se ampliar o acesso, e se não se acoplar uma política industrial adequada, o déficit aumentará.

Quanto maior seja a ampliação do acesso maior será o déficit. Con-siderando-se, como já foi dito acima, que do ponto de vista tecnológico, econômico e científico não há entraves a um aumento da produção na-cional, seja de especialidades farmacêuticas ou de fármacos, e como o segmento é prioritário em termos de alocação de recursos por parte dos vários níveis de governo, não há racionalidade econômica em expandir o acesso aos medicamentos à custa somente do aumento das importações, perdendo-se o forte potencial multiplicador de atividades de alta tecno-logia, de renda e de emprego associadas a esta expansão.

Conclusões

A questão do acesso aos medicamentos é um bom exemplo para se veri-ficar que o dilema entre as ações diretas do governo e os mecanismos de

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mercado é uma falsa questão. Ambas as soluções produzem um arsenal de instrumentos que são úteis no encaminhamento de políticas sociais e econômicas, buscando-se a eficiência, a eficácia e a efetividade das mesmas.

No programa de combate a Aids, a quase totalidade dos instrumentos e ações utilizadas foi realizada pela ação direta do governo, e o programa foi um sucesso, pelo menos em termos de eficácia e efetividade, e, quem sabe, talvez pudesse melhorar em eficiência.

O programa de genéricos, do ponto de vista de sua implantação nas empresas e expansão, também foi bem sucedido, utilizando-se princi-palmente dos mecanismos de mercado; entretanto, em termos de am-pliação do acesso total e de redução drástica de preços atingiu parcial-mente seus objetivos, necessitando de algumas ações diretas adicionais do governo para torná-lo mais eficaz e efetivo.

O programa Farmácia Popular, inicialmente concebido como ação direta do governo em todas as suas fases, já está incorporando mecanis-mos de mercado que o estão tornando mais eficiente, eficaz e, certa-mente, a nova combinação o tornará mais efetivo.

Portanto, as experiências mostram que não existe uma solução pré-determinada quanto à utilização dos instrumentos e ações das duas posi-ções; na realidade, a combinação adequada destes instrumentos é a arte de governar.

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4.

Notas

A fonte é o ims Health. Esta é a principal fonte de indicadores de deman-da utilizados pela Indústria Farmacêutica no país. Apesar de possíveis restrições à utilização desta informação como indicador da utilização to-tal de medicamentos no país, tais como: os dados referem-se às compras realizadas pelo varejo farmacêutico e não à demanda final efetiva; os dados não incluem a demanda hospitalar; o aumento das apresentações com posologias mais reduzidas; a não inclusão do segmento de mercado atendido pela oferta de medicamentos dos laboratórios oficiais, etc., esse indicador continua representando a principal parte do mercado total de medicamentos do país.No decorrer deste trabalho usar-se-á com freqüência alguns termos/con-ceitos que indicam resultados qualitativos da ação governamental e que às vezes, na linguagem coloquial, são utilizados como sinônimos. No nosso caso não o são e indicam diferentes aspectos qualitativos dessa ação. Esses termos são: eficiência, eficácia e efetividade. Eficiência significa atingir os objetivos fixados com os menores custos. Eficácia seria se aproximar o máximo das metas operacionais pré-fixadas. Efetividade seriam as conse-qüências positivas que se espera das metas a serem atingidas. No caso do programa de acesso a medicamentos, maior “eficiência” seria atingir uma meta, seja em termos de produção ou distribuição com custos menores; maior “eficácia” seria se aproximar mais, quantitativamente, do objetivo pré-fixado; e “efetividade” seria atingir quantitativa e qualitativamente o objetivo maior de um programa de acesso: que é o de restabelecer o estado de saúde normal da população alvo, atingindo um nível de bem-estar adequado, inclusive para o trabalho, acrescentando-se, ainda, uma dimensão nem sempre enfatizada mas igualmente importante em ter-mos de política de medicamentos: diminuir os custos dos outros serviços médicos (consultas adicionais, internações e análises clínicas).“Medicamentos: Políticas de Acesso, Segmentação da Demanda e Pro-gresso Técnico”, Projeto Inovação em Saúde, abril/2004.Em 2002, a participação dos “Gastos com Medicamentos” no total do orçamento do Ministério da Saúde era de 5,8%, em 2005 já era de 8,5%, e acima de 9% em 2006. Fonte: Ministério da Saúde, Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos.

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Patentes na indústria farmacêutica Samuel de Abreu Pessôa,Claudio Monteiro Considera eMário Ramos Ribeiro*

Introdução

Instituições nacionais e internacionais voltadas para a proteção da pro-priedade intelectual (pi) têm, nas duas últimas décadas, sido objeto de acirradas discussões técnicas e políticas. Recentemente, durante a ro-dada do Uruguai (1986-94), os membros do que hoje é a Organização Mundial do Comércio (omc) celebraram um acordo internacional so-bre propriedade intelectual conhecido como “trips” (Tradre-Related Aspects of Intellectual Property Rights), que fixou os padrões mínimos de proteção que deveriam ser seguidos pelos signatários.

No Brasil, o marco foi a Lei nº 9.279 de maio de 1996, que passou a regular os direitos e as obrigações relativas à propriedade industrial. Re-centemente, em 4 de maio de 2007, o governo brasileiro, pela primeira vez desde que aderiu ao trips, decretou o licenciamento compulsório de um medicamento. A maioria das manifestações públicas sobre este ato foi de apoio, ressaltando aspectos tais como o suposto barateamento do tratamento público, a “injustiça social” de se cobrar o direito de uso de idéias que salvam vidas, o “alto custo” dos medicamentos patenteados no Brasil, etc. Sente-se, nessa discussão, a falta de um exame da raciona-lidade econômica do instituto da patente, em que sejam considerados não apenas os motivos que levam o Estado a fazer uso dela para proteger invenções, mas também a escolha da indústria e as condições de sua implementação – tempo, extensão e limites. Este artigo tem o intuito de contribuir para preencher essa lacuna.

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A natureza do fenômeno do desenvolvimento econômico

Nos últimos 50 anos o produto per capita da economia americana cresceu em média acima de 2,0% ao ano. Retrocedendo-se ao final do século xix, obtêm-se taxas de crescimentos similares. O mesmo aplica-se aos países da oecd e a diversos países asiáticos de crescimento rápido. Mesmo as economias latinas americanas – que tiveram um momento muito difícil nos anos 80 – cresceram em média em torno de 1,5% ao ano nos últimos 50 anos e 1,1% considerando-se o período de 1970 até 2000. Em que pese uma grande diversidade nas experiências de crescimento, o fenômeno do crescimento, com algumas pequenas exceções, é universal.

No entanto, o crescimento do produto per capita não nos fornece uma boa medida do potencial de crescimento de longo prazo, pois o produto per capita pode crescer devido à elevação da fração da popula-ção que participa da população economicamente ativa. Quando esta se eleva, o produto per capita pode elevar-se sem que necessariamente haja elevação da produtividade do trabalho. Desta forma, concentrando-se no produto por trabalhador, nota-se que o processo de desenvolvimen-to está associado à sua contínua elevação. Para uma amostra de mais de cem países, a média aritmética das produtividades do trabalho cres-ceu, de 1970 até 2000, 1,2% ao ano, apresentando, para alguns grupos de economias como, por exemplo, as economias de crescimento rápido do leste asiático, o valor elevado de 3,5% ao ano enquanto que a China tem crescido a 6,5% ao ano, para o mesmo período. A elevação da produti-vidade do trabalho é o motor do crescimento de longo prazo. Conse-qüentemente, entender o crescimento de longo prazo das economias é equivalente a entender o crescimento da produtividade do trabalho.

A produtividade do trabalho pode crescer por quatro motivos. O primeiro é a elevação da relação capital-trabalho. Um trabalhador mais bem dotado de máquinas e capital em geral produzirá, por hora, uma maior quantidade de bens. Segundo, a produtividade do trabalho eleva-se quando a qualificação do trabalhador eleva-se. Inúmeros estudos têm demonstrado que cada ano a mais de escolaridade eleva a produtividade do trabalhador em aproximadamente 10%. Terceiro, a produtividade do trabalho média da economia elevar-se-á caso a eficiência alocativa da economia elevar-se. Apesar de parecer um pouco técnico, referimo-nos

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a toda a alteração institucional que estimula atividades produtivas e de-sestimule atividades improdutivas, tais como as atividades criminosas, a corrupção, a burocratização excessiva e desnecessária, etc. Nesses casos ocorre que uma atividade que do ponto de vista social não adiciona pro-duto, adiciona valor do ponto de vista privado à empresa em questão. O produto da economia não se elevou, bem como os fatores de produção que foram empregados na atividade em questão poderiam ter sido em-pregados em uma atividade que elevasse o produto da economia.

Todos os três fatores – elevação do grau de capitalização da economia, elevação da escolaridade da população de trabalhadores e a elevação da eficiência alocativa da economia – apresentam limites, isto é, eles não são capazes de sustentarem por si só um crescimento ilimitado da produtivi-dade do trabalho. Quanto à escolaridade, há claro limite à sua elevação (evidentemente que este não é o caso para um país como o Brasil em que há forte atraso educacional). Países como os Estados Unidos da América já apresentam níveis extremamente elevados de escolaridade média da população (13 anos) de sorte que não parecem ser ótimos ganhos adicio-nais muito elevados. O mesmo ocorre com relação à eficiência alocativa. A partir de certo nível, há pouco espaço para ganhos adicionais (eviden-temente, novamente, este não é o caso da economia brasileira).

Finalmente, e de certa forma surpreendente, o mesmo argumento do parágrafo anterior aplica-se ao fator de produção capital, o primeiro elemento importante na determinação da produtividade do trabalho. A contínua elevação da relação capital-trabalho não é capaz de sustentar o crescimento continuado da produtividade do trabalho. Tome-se, como exemplo, um fazendeiro que adquire unidades adicionais de tratores. Cada trator adicional eleva a produtividade do trabalhador e, no caso, de sua terra. A contínua aquisição fará com que os novos tratores apre-sentem produtividade muito baixa. Isto é, a contribuição para a elevação da produtividade dos trabalhadores da fazenda será cadente. Em jargão técnico, diz-se que a acumulação do capital apresenta retornos margi-nais decrescentes.

No entanto, o fato de que as economias crescem sem apresentarem limites aparentes ao crescimento é um sinal de que algo está contra-balançando esta tendência. Isto é, há sinais de que a relação capital-trabalho cresce também de forma ilimitada. Nos últimos 54 anos a rela-

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ção capital-trabalho nos Estados Unidos da América, que já era elevada, triplicou. Isto é, aquela economia que para qualquer padrão apresentava em 1950 níveis elevadíssimos de capitalização foi capaz de triplicar a quantidade de máquinas que cada trabalhador tinha à sua disposição para operar. Como foi possível? Por que a economia americana não se atolou no excesso de capital como foi o caso, por exemplo, da União Soviética a partir da década de 60?

Para responder a esta questão retorna-se à parábola da fazenda ante-riormente relatada. De fato, naquele exemplo, havia uma grave incor-reção. A evolução da produtividade da fazenda ocorre apenas quando, após os tratores, o fazendeiro adquire diversos implementos diferentes para diversas atividades (semeadura, colheita, manutenção da lavou-ra, combates de praga, etc.), informatiza a administração introduzindo mecanismos modernos de controle e de processamento de informação, utiliza mecanismos altamente sofisticados de mapeamento do solo e das diferenças de química de solos de cada hectare para elevar a eficiência da correção do solo e da adubação, adquire sementes, que foram de-senvolvidas quer pela Embrapa, ou por empresas do setor privado que elevam em muito a produtividade do solo e/ou reduzem a necessidade de defensivos agrícolas, etc.

Essa descrição evidencia que, para que o processo de acumulação de capital não se esgote em si mesmo (isto é, para que não haja crescimento soviético), é necessário que a acumulação de capital ocorra simultane-amente à melhoria tecnológica. A evolução tecnológica, com a criação de novos processos e novos produtos, é o grande antídoto à super acu-mulação de fatores de produção, capital e educação, que leva ao esgota-mento do crescimento econômico. Este não cessa se vier acompanhado de melhoria tecnológica. Essencialmente, há uma tendência ilimitada para crescimento da produtividade do trabalho, pois o conhecimento cresce. Este é o quarto fator que conjuntamente com o capital, a edu-cação e a melhoria alocativa, concorre para elevar a produtividade do trabalho. E, de todos estes quatro fatores, é o único que, aparentemente, ao menos, não registra sinais claros de limitação. O crescimento da pro-dutividade do trabalho é ilimitado, pois a capacidade da civilização criar conhecimento tem sido ilimitada. Não se conhece nenhuma análise discordante desta proposição.

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Conhecimento como bem econômico com características especiais

Na seção anterior foi visto que o crescimento de longo prazo das econo-mias é promovido pela evolução da tecnologia, que, por sua vez, segue da acumulação do conhecimento. O conhecimento é um bem que apre-senta características particulares. Antes de prosseguir, cabe analisar com um pouco mais de detalhes as características dos bens econômicos.

Os bens econômicos apresentam duas características importantes, nomeadamente a rivalidade (ou não-rivalidade) e a exclusividade (ou não-exclusividade). A rivalidade é uma característica física ou tecnoló-gica do bem enquanto que a exclusividade é determinada institucional-mente por um processo de escolha social. Diz-se que um bem econô-mico é rival se o uso daquele bem por um indivíduo impedir que outro indivíduo o utilize simultaneamente. Certamente isto é verdade para um alimento, mas também é verdade para um lugar num banco de uma praça. Se Maria estiver sentada naquele lugar Joana não poderá lá sentar-se. O bem econômico típico é rival.

Um bem é exclusivo se houver direitos de propriedade sobre o bem. Desta forma, um banco de uma praça pública é um bem rival não exclusi-vo dado que todo cidadão tem o direito de lá sentar-se. O mesmo não ocorre com um banco em uma residência. Somente as pessoas que são autorizadas pelo proprietário da residência têm o direito de lá sentar-se. O bem não-rival é aquele que o fato de um indivíduo utilizar-se dele não impede que outro também o faça. O exemplo típico de cursos de economia do setor público é a defesa nacional. Dado que a defesa nacional defende o territó-rio nacional, todos os habitantes do território usufruem deste bem. Os bens públicos típicos – tais como, defesa nacional, moeda estável, sistema jurí-dico, garantia da lei e da ordem – em diferentes graus, são bens não-rivais. Todos os habitantes de um mesmo país beneficiam-se simultaneamente da existência destes serviços. Por serem bens não-rivais, é muito difícil excluir pessoas de se utilizarem deles. A não rivalidade faz com que estes bens sejam não exclusivos ou parcialmente não exclusivos, isto é, exclusivos a custos muito elevados. A dificuldade na oferta de um bem não exclusivo é que os indivíduos não desejarão pagar por eles. A solução encontrada pelas sociedades é a oferta pública destes bens e serviços. Os Estados coletam impostos de todos e, com estes recursos, oferta os serviços públicos típicos.

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No parágrafo anterior mostrou-se como que a não rivalidade e a con-seqüente não exclusividade dos bens públicos resulta na oferta estatal direta. Outra situação que o Estado adquire papel central na oferta de serviços ocorre quando o serviço em questão apresenta elevadíssimos cus-tos fixos. Tome como exemplo uma estrada ligando duas cidades. Há o elevado custo de construção da mesma e o custo de operação. A situação ideal sugere que, uma vez construída a estrada, a sociedade se utilize ao máximo dela. Isto porque o custo de construção da estrada já foi pago pela sociedade. Desta forma o ideal é que o pedágio cubra somente os custos de operação. Se o valor do pedágio for maior do que o custo de operação a estrada será subtilizada, ficará ociosa, devido à redução da demanda pela estrada em conseqüência da elevação do preço do pedágio. Uma possível solução para bens e serviços que apresentem esta característica é que o Estado, por meio de impostos, patrocine a construção da estrada e, em seguida, faça uma concessão da exploração da mesma requerendo que o valor do pedágio somente cubra o custo de operação. Neste arranjo, a estrada será plenamente utilizada e a situação melhor do ponto de vista social será atingida. Os economistas chamam este arranjo de first best.

Retomando a análise da natureza do bem conhecimento, ressalte-se que ele é provavelmente o bem mais não rival de que se tem notícia. O fato de uma pessoa utilizar certo conhecimento não impede que outra pessoa o utilize simultaneamente. Nosso problema é pensar a forma de desenhar instituições de maneira a estimular a acumulação de conheci-mento. Até o momento, classificou-se o conhecimento quanto à proprie-dade de rivalidade e exclusividade. No entanto, o conhecimento pode ser classificado no que se refere à sua aplicabilidade. Há o conhecimento produzido pelas ciências desinteressadas cuja função primeira é satisfazer a curiosidade humana. Neste caso, não há uma aplicação direta do co-nhecimento. Para que serve exatamente a matemática? Para quase tudo. Não obstante, dificilmente as descobertas matemáticas apresentam uma aplicação simples ou direta que pode ser utilizada para financiar o esforço de pesquisa em matemática. Para as ciências puras não resta alternativa a não ser a oferta pública da pesquisa. A natureza pouco aplicada ou de aplicação difusa desse tipo de conhecimento impede que ele gere deman-da privada de sorte a remunerar o esforço de desenvolvimento. Se não houver financiamento público, o esforço de pesquisa será muito baixo.

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No entanto, há uma série de conhecimentos extremamente apli-cados. Por exemplo, o desenvolvimento de uma nova colheitadeira de cana-de-açúcar, que reduz muito o custo de produção de cada hectare plantado. Este novo produto, a colheitadeira, terá comprador certo. É perfeitamente possível uma empresa privada se interessar em investir recursos para desenvolver este novo produto. Seus custos de produção serão financiados por sua venda. É para este tipo de bem que o instituto da patente se aplica. Como o conhecimento que gerou a nova colheita-deira é um bem não exclusivo há o risco de uma empresa que não arcou com os riscos da inovação imitar a colheitadeira e ofertá-la no mercado cobrando o custo de produção da colheitadeira. Se isto ocorrer, o pro-dutor que produziu a nova tecnologia terá que cobrar pela colheitadeira também o seu custo de produção, de sorte que não sobrarão recursos para remunerar os técnicos e engenheiros que participaram do processo de desenvolvimento tecnológico. É a este problema que está dirigida a próxima seção. Defende-se que o conhecimento constitui um bem eco-nômico com as características da não rivalidade e da não exclusividade, mas que esta última pode ser parcial (isto é o conhecimento pode ser parcialmente exclusivo) se houver um sistema de proteção intelectual.

Funções e tipos de instituições de propriedade intelectual

Como visto na seção anterior, a tecnologia requer algum tipo de proteção para que seja desenvolvida pelo setor privado. Duas características espe-cíficas à tecnologia fazem com que instituições que garantam direitos de propriedade intelectual (doravante, pi) sejam estabelecidas. A primeira é o custo fixo no desenvolvimento do conhecimento, geralmente muito eleva-do, particularmente na indústria farmacêutica. A segunda característica é a não rivalidade: uma vez desenvolvida a tecnologia é possível fazer cópias a custos adicionais muito baixos, outra particularidade da indústria farmacêu-tica. Na ausência de instituições que garantam os direitos de propriedade intelectual, não haverá remuneração pela inovação, não haverá produção de conhecimento, impedindo o processo de crescimento econômico. A pi garante que o conhecimento seja parcialmente exclusivo, permitindo a remuneração da inovação e do crescimento econômico em longo prazo.

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Muitas tecnologias apresentam uma natureza genérica. A pesquisa básica, cujo resultado apresenta aplicações extremamente genéricas, não é possível de ser transformada em alguma mercadoria que seja ven-dida no mercado; logo, não é passível de ser protegida por instituições do direito de pi. Esse tipo de conhecimento é desenvolvido em universi-dades públicas ou privadas com fortes subsídios públicos. As instituições do direito de propriedade intelectual aplicam-se ao conhecimento que pode ser transformado em algum bem que comande valor no mercado. A instituição de propriedade intelectual mais popular é a patente. O inventor – que pode ser uma pessoa ou uma empresa –, após o desen-volvimento de um novo produto ou processo, ingressa com um processo junto ao órgão competente requerendo a patente. Sob as condições de que a inovação seja um objeto passível de ser patenteado, útil, novo e não óbvio, a patente será emitida, desde que o inventor descreva em de-talhes o produto e processo de forma passível de ser replicado por uma pessoa dotada dos conhecimentos técnicos da área. O ato de patentear um novo produto ou processo implica a revelação detalhada da nova tecnologia.

Durante o tempo que a patente vigorar (toda patente tem um prazo para terminar) o detentor da patente tem direito exclusivo de utilizar o conhecimento, podendo, evidentemente, licenciar o uso do conhe-cimento a terceiros, se assim o desejar. A posse da patente e a impos-sibilidade que algum outro a utilize permite que, durante o tempo de vigência da patente, o inovador tenha monopólio sobre o uso do conhe-cimento. Este poder de mercado faz com que o preço seja maior do que o custo variável de produção do produto. A diferença é empregada para remunerar o custo fixo da inovação. Uma vez havendo a revelação do conhecimento, a replicação deste requererá investimento (geralmente) muito menor.

A patente apresenta três grandes benefícios. Primeiro, os custos da inovação serão arcados pelos consumidores do produto protegido pela patente e não pelos contribuintes. Segundo, é um mecanismo descen-tralizado. A capacidade criativa encontra-se dispersa na sociedade. É muito difícil que um agente público consiga encontrar e estimulá-la. A patente, ao garantir possível rentabilidade de uma inovação (evidente-mente se ela for bem sucedida), permite o pleno aproveitamento dessa

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capacidade. Terceiro, a patente obriga que o produto ou processo seja revelado, de sorte que aspectos desse conhecimento que não sejam de aplicação comercial direta possam ser empregados. O grande problema da patente é que sua existência, apesar de garantir o desenvolvimento do conhecimento, não garante seu pleno uso. O monopólio eleva o pre-ço acima do custo variável de produção reduzindo o benefício para a sociedade do conhecimento. Uma vez que a sociedade já incorreu nos custos de desenvolvimento do conhecimento, o ótimo, do ponto de vista da sociedade, seria utilizar o conhecimento plenamente. É exatamente devido a esse problema que não é geralmente ótimo que a patente tenha duração infinita.

Nesse ponto fica claro o grande conflito que há na patente entre ganhos estáticos e ganhos dinâmicos. Uma vez que o conhecimento já foi produzido é ótimo que ele seja colocado em domínio público ime-diatamente. Essa é a melhor medida do ponto de vista da eficiência estática. Mas se houver a perspectiva de que isso aconteça ninguém irá arcar com os custos da inovação em um primeiro momento. A econo-mia apresentará ineficiência dinâmica. Para contornar esse problema várias medidas são possíveis. Essas, por sua vez, apresentam outros pro-blemas. Uma possibilidade é haver um prêmio. Por exemplo, o governo ou alguma fundação pode instituir um prêmio para o laboratório que desenvolver uma vacina contra a malária. Para que o prêmio funcione é necessário que: (i) exista um governo ou instituição interessada na inovação; (ii) que essa instituição conheça muito bem as características do produto que deseja desenvolver; (iii) que conheça o custo de desen-volvimento da inovação e, finalmente, (iv) consiga a baixo custo avaliar se o produto atendeu as metas do edital que estabeleceu o prêmio. Ge-ralmente (i)-(iv) são difíceis de serem verificadas na prática.

Algumas vezes o setor público pode oferecer um prêmio para uma invenção depois de essa ser desenvolvida ou, ainda, comprar os direitos de patente para em seguida colocar a inovação em domínio público. Oferecer o prêmio após a invenção apresenta a vantagem (em compa-ração a um concurso que previamente estipula a inovação) de ser um processo descentralizado. O inventor procede à sua pesquisa, escolhe o assunto e chegando a algum invento interessante recebe o prêmio. O grande problema é que se não existir um sistema de patentes não

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há a menor garantia de que o prêmio irá ser outorgado. Isto é, uma das vantagens de existirem instituições de propriedade intelectual é permitir o funcionamento do mecanismo do prêmio. Um segundo problema é que, mesmo havendo garantia de que o prêmio seja outorgado – pode-se imaginar que uma agência reguladora com independência seria respon-sável pela outorga do prêmio – é difícil estipular um valor para o prêmio bem como se pode imaginar um elevadíssimo nível de corrupção no funcionamento dessa agência.

Até o momento, a grande justificativa para o instituto da patente era o fato do conhecimento ser um bem não rival. No entanto, em muitos casos práticos, o segredo garante um poder de monopólio suficiente para remunerar o investimento. Nesse caso, não necessariamente o direito de patente eleva o estímulo à inovação. No entanto, há diversos outros argumentos favoráveis à patente mesmo no contexto em que a patente não seja necessária para estimular o investimento em pesquisa e desen-volvimento (p&d). Na ausência de direitos de patentes, as inovações seriam fortemente direcionadas para produtos e processos nos quais o segredo fosse mais fácil de ser guardado. Além disso, recursos seriam gastos para a manutenção do segredo. Adicionalmente, a existência de patente permite que um inventor venda a patente para uma empresa que tem vantagens comparativas na produção do bem. Isto é, a patente facilita uma especialização entre empresas que fazem p&d e empresas que produzem produtos, elevando a eficiência da economia.

O nível ótimo de proteção intelectual e a taxa social de retorno em pesquisa & desenvolvimento (P&D)

A grande dificuldade com a propriedade intelectual é que geralmente se está investigando diferentes arranjos institucionais a partir de situações nas quais há alguma falha de mercado, situações que os economistas chamam de segundo melhor. O objetivo deste artigo é apresentar qual seria a situação de “primeiro melhor,” as dificuldades de se atingi-lo, e como avaliar, nas diversas situações possíveis, sinais de mau funciona-mento da proteção intelectual (pi).

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A situação ideal ocorre quando o setor público conhece muito bem o problema, estabelece um prêmio e no momento em que o prêmio é instituído define qual empresa é a mais capacitada para efetuar o esforço de pesquisa. Outorga a essa única empresa o direito de perseguir a ino-vação e, na entrega do novo produto, paga-se o prêmio. Pergunta: qual deve ser o valor do prêmio? Se não houver nenhum custo econômico para a arrecadação de tributos para se pagar o prêmio, este deve ser igual ao benefício social da inovação. Em toda essa seqüência de ações, a importância do setor público conhecer a empresa melhor posicionada para o esforço de pesquisa e desenvolvimento (p&d) e a ela outorgar monopólio sobre a potencial inovação impede que haja duplicação de esforços, o que reduziria o benefício da sociedade com p&d. Havendo duplicação de esforços e considerando que há um custo econômico não trivial associado à tributação, o prêmio tem que ser maior do que o custo de p&d, mas menor do que o valor social da inovação. Trocando-se o prêmio pela patente, qual deve ser o retorno privado para o inovador? Nesse caso, troca-se a imperfeição associada à tributação pela imperfei-ção associada ao preço mais elevado que o monopolista praticará duran-te a vigência da patente. Novamente, o ganho ótimo (que é um segundo melhor) auferido pelo inovador é algo entre o custo de p&d e o ganho para a sociedade da patente.

Analisando a indústria de produtos farmacêuticos, a evidência em-pírica é que os produtores se apropriam de uma pequena parcela do ganho social dos remédios. Pesquisas indicam que o valor encontra-se ao redor de 10%, apesar de ainda não ser possível afirmar se esse nível de apropriação é elevado ou não. No entanto, é possível afirmar que a forma como o sistema de patentes funciona para a indústria de fármacos reduz, em muito, as perdas com duplicação de esforços. Isso porque o grosso dos esforços de p&d (tanto em recursos quanto em tempo) é in-corrido após a outorga da patente, visto que a patente é outorgada antes da etapa dos testes clínicos.

Em economia, a toda ação de um agente econômico – seja um con-sumidor, um produtor, um gestor público, etc. – corresponde um retor-no privado dessa ação. Esse é o ganho que o indivíduo coloca no bolso e leva para casa. Quando uma pessoa decide pegar seu carro e passear pela cidade usufrui um ganho líquido do custo do passeio (no caso a

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depreciação do carro, gastos com combustível, estacionamento etc.). Sempre que não houver falhas de mercado, o retorno privado da ação de um indivíduo será igual ao ganho dessa mesma ação para a sociedade (chamada de retorno social em contraposição a retorno privado). Neste exemplo, do uso do carro, há uma falha clara de mercado. O motorista não percebe (em linguagem técnica diz-se que não internaliza) diversos custos sociais. Não considera que ao se locomover com seu carro está contribuindo para congestionar as vias públicas, provocar a elevação da poluição sonora e atmosférica com gases nocivos à saúde e, mais re-centemente, com o custo adicional de jogar na atmosfera dióxido de carbono, que, apesar de não ser nocivo à saúde, contribui para o aqueci-mento global. Neste exemplo, do uso do automóvel, há um claro desa-linhamento entre o retorno privado e social, sendo que este é menor do que aquele. Conseqüentemente, as pessoas utilizariam (na ausência de regulação estatal) os veículos com mais intensidade do que é socialmen-te ótimo e essa constatação justifica, por exemplo, o imposto elevado na gasolina para incentivar as pessoas a utilizarem menos o transporte individual. Em jargão técnico, diz-se que o imposto promove o correto alinhamento entre incentivos privados e sociais e, conseqüentemente, corrige uma falha de mercado.

Mostrou-se no início dessa seção que a produção de conhecimento é sujeita ao mesmo problema do uso do carro. O retorno social da ativida-de de p&d é diferente do retorno privado. Neste caso, devido à natureza de bem público do conhecimento, o retorno privado é menor do que o retorno social. Pesquisadores americanos (Jones e Williams [1998]) ao fazerem uma revisão da literatura de taxa social de retorno em p&d, mostram que os estudos consultados colocam essa taxa na casa de 27% ao ano. No entanto, esses estudos, dizem eles, não levam em considera-ção alguns custos sociais da atividade de p&d que a moderna teoria do crescimento endógeno sugere que devam ser considerados. Eles então refazem os cálculos e concluem surpreendentemente que as medidas reportadas na literatura constituem uma sub-estimativa dos retornos so-ciais da inovação tecnológica. Em seus cálculos, chegam a um resultado surpreendente, pois a taxa real privada de retorno do investimento nos diversos setores encontra-se no intervalo de 7% à 12% ao ano, bem abaixo da taxa social de retorno do investimento em p&d. Assim, a evidência

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empírica é muito forte de que as economias devem elevar seus investi-mentos em p&d.

A Importância de Patentes na Indústria Farmacêutica

Na seção anterior mostrou-se que o segredo e/ou a vantagem da lideran-ça são dois mecanismos alternativos à patente para proteger o esforço de pesquisa e desenvolvimento (p&d). Eles serão eficientes desde que o cus-to de imitação e/ou a engenharia reversa (a decomposição do remédio) sejam muito elevados comparativamente ao custo de desenvolvimento. Quando o custo de imitação é baixo, não resta outra opção do que recor-rer à patente. Este é o caso da indústria farmacêutica. Pesquisa empírica por parte de economistas americanos (Mansfield et al. [1981]) comparou o custo e o tempo de imitação com o custo e o tempo de desenvolvi-mento. Concluíram eles que sem a proteção patentária, de maneira ge-ral, seria relativamente barato (e rápido) para um imitador determinar a composição de uma nova droga e começar imediatamente a produzi-la. Contudo, para muitas inovações mecânicas e eletrônicas, seria bastante difícil para os imitadores determinar como o novo produto é produzido e a existência de patentes não adicionariam um grande custo (ou tempo) de imitação. Demonstraram ainda esses autores que, de acordo com as firmas investigadas, cerca da metade das inovações patenteadas da amos-tra não teriam sido introduzidas sem a proteção patentária. A maior parte dessas inovações ocorreu na indústria farmacêutica. Excluindo-se as ino-vações de medicamentos, a falta da proteção patentária teria afetado não mais do que 25% das inovações patenteadas da amostra.

De certa forma, esses resultados para as empresas americanas são surpreendentes. Isso porque se trata de estudo anterior à promulgação da lei dos remédios de 1984 (the 1984 drug act). Essa lei simplificou em muito os procedimentos para a introdução de um remédio gené-rico após o término da patente. Antes de 1984, as empresas concorren-tes que desejassem introduzir um genérico não podiam se utilizar dos resultados dos estudos de segurança e eficácia efetuados pela empresa que desenvolvera a fórmula. Esses estudos tinham status de segredo co-mercial. Assim, uma parte significativa do custo de desenvolvimento era

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repassada aos imitadores. A lei de 1984 eliminou esse caráter de segredo comercial dos testes segurança e eficácia e obrigou que, em seu lugar, a empresa que desejasse introduzir um medicamento genérico teria so-mente que comprovar a bioequivalência das moléculas, reduzindo em muito o custo de imitação. Dessa forma, mesmo no período anterior a 1984, quando a imitação era muito mais cara – dado que as empresas dos genéricos tinham de refazer todos os testes clínicos – ainda assim imitar (na indústria farmacêutica) era muito mais barato e rápido do que desenvolver uma nova droga. Esses resultados sugerem que a indústria farmacêutica deve estar entre as indústrias que mais utilizam patentes para proteger seu esforço de p&d. Seguidos trabalhos empíricos com questionários junto a executivos de diversas indústrias (ver Mansfield [1986], Levin et al. [1987] e Cohen et al. [2000]), documentam a corre-ção dessa previsão.

Portanto, conforme várias pesquisas sugerem: a proteção patentária é importante apenas em algumas poucas indústrias, sendo a mais notável a farmacêutica; a ausência de proteção patentária teria tido pequeno ou nenhum impacto sobre os esforços de inovação para a maioria das em-presas na maior parte das indústrias, com clara exceção para a indústria farmacêutica.

Contudo, se patentes não são efetivas na proteção dos retornos de inovações na maior parte das indústrias, como as empresas auferem lu-cro de suas inovações? Pesquisas empíricas, realizadas na década de 80, baseadas em questionários, revelaram que os mecanismos adicionais ao das patentes que as firmas usariam para se apropriarem de retornos de suas inovações incluiriam: a exploração do período de liderança, moven-do-se rapidamente para baixo em sua curva de aprendizagem; o uso de suas capacidades de vender produtos e serviços complementares; e do segredo. Foram encontradas diferenças para todas as indústrias em seus mecanismos para efetivamente se apropriarem dos frutos das inovações tanto de processo como de produtos. E, também, com freqüência, mais de um desses mecanismos foram julgados eficientes. Na maior parte das indústrias, incluindo as mais intensivas em p&d (novamente excetuando os fármacos), as empresas não reportaram as patentes como uma das mais importantes formas pelas quais aufeririam lucros de suas inovações, ten-do reportado se basearem principalmente em outros mecanismos.

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Esses resultados foram confirmados por estudos mais recentes (Co-hen et al. [2000]), que notaram que houve na última década uma ele-vação do emprego de patentes em inovações de processos e do segredo em inovações de produto. Também mostraram que os diversos tipos de proteção à inovação que as empresas podem empregar podem ser resu-midos em três estratégias distintas: (i) vantagem da liderança e a explora-ção de capacidades complementares (complementary capabilities), tais como acessórios e assistência técnica; (ii) mecanismos legais, principal-mente patentes; (iii) e segredo. Para investigar com mais profundidade a especificidade do emprego de patentes entre as diversas indústrias, esses estudos mais recentes utilizam-se da distinção entre tecnologias “com-plexas” versus “discretas.” Segundo os autores, uma tecnologia comple-xa é aquela que um novo produto ou processo comercializável apresenta inúmeros elementos patenteados, enquanto nas tecnologias discretas os novos produtos e processos lançados no mercado correspondem a uma ou poucas patentes. No primeiro caso, tem-se a indústria de produtos eletrônicos, enquanto que no segundo caso a indústria de remédios.

Os autores concluem que os motivos do emprego da patente variam muito entre indústrias. Nas indústrias de tecnologia discreta, nas quais a patente é efetiva, como o caso de indústria de drogas, ela é utilizada pois permite o ganho de renda, quer pelo emprego do poder de monopólio transitório conferido ao detentor da patente, quer pelo licenciamento. Na maioria das indústrias de tecnologia discreta, nas quais a patente não é efetiva, para garantir a rentabilidade do produto, ela é empregada para bloquear o desenvolvimento de produtos concorrentes. Finalmente, nas indústrias complexas, a patente é empregada para permitir um maior poder de barganha em negociações de licenciamento cruzados.

Todos os estudos relatados, portanto, colocam a indústria farmacêuti-ca como o exemplo paradigmático de indústria que utiliza esse instituto para exatamente o que ele foi pensado: proteger e estimular a inovação por meio da garantia de rentabilidade ao inovador.

Patentes, Custos e Lucratividade na Indústria Farmacêutica

Nesta seção, com base em estudos recentes, argumenta-se e demonstra-

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se que o custo de desenvolvimento é particularmente elevado na indús-tria de fármacos e que, ao contrário do pensamento convencional, a existência de patentes não concede a essa indústria uma superior lucra-tividade em relação às demais indústrias.

Iniciando com os custos, chama-se a atenção para o recente e cui-dadoso estudo de DiMasi e outros [2003] que mostrou que o custo de desenvolvimento de uma nova molécula é da ordem de 802 milhões de dólares, distribuídos em 335 milhões na fase pré-clínica e 467 milhões na fase dos testes clínicos. Esses dados referem-se aos custos para a década de 90, medidos em dólares constantes de 2000. Documentou-se também que houve entre a década de 80 e a década de 90 um forte crescimento do custo de p&d na indústria de fármacos. Em dólares de 2000, esse custo era 467 milhões na década de 80 contra 802 na década seguinte. O custo que mais se elevou foi o custo de oportunidade do capital devido à elevação dos prazos dos testes clínicos que passaram a ter padrões muito mais estritos para prevenir efeitos colaterais que demorem a surgir.

O estudo de DiMiasi e outros foi questionado por outro estudo feito por meio da organização não-governamental Public Citizen, intitulado “America’s Other Drug Problem: A Briefing Book on The Rx DrugDe-bate,” que pode ser baixado da internet no endereço www.citizen.org/rxfacts. Alegam que há inúmeros problemas conceituais no estudo de DiMiasi e outros, de sorte que o custo correto para o desenvolvimento de uma nova droga seria da ordem de ¼ dos 800 milhões lá reportado. Em sua resposta, DiMiasi e outros [2004] mostraram que essa redução apreciável de custos deve-se essencialmente a dois motivos: ao fato de seus críticos terem omitido o custo de oportunidade do capital e terem dado um tratamento tributário errôneo quando consideraram os gastos de p&d. O primeiro motivo para a divergência constitui erro tão primá-rio que se evita discutir. O segundo necessita de esclarecimento. A lei americana permite que os gastos com p&d sejam considerados custo para efeitos tributários. Portanto, no momento que a empresa apura o lucro para efeitos de pagamento de imposto de renda da pessoa jurídica esses gastos são subtraídos do faturamento. O estudo da ONG Public Citizen alega que essa dedução não deveria ser feita. De fato, o mais correto é considerar que esses gastos constituem investimento e tratá-los tributariamente dessa forma. Neste caso, os gastos de p&d se adiciona-

7.

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riam ao capital da empresa que todo ano se deprecia. Do ponto de vista da apuração do lucro da empresa para efeitos de estimação do imposto de renda devido, a diferença é que: no primeiro caso os gastos de p&d do ano corrente são subtraídos integralmente no ano corrente; enquan-to que na segunda opção subtrai-se do faturamento do ano corrente a depreciação do capital do ano corrente, que corresponde à soma dos investimentos passados depreciados. Quantitativamente a diferença será mínima. O erro da ong foi não considerar que o investimento em p&d adiciona-se ao capital, e, conseqüentemente, produz no ano seguinte e durante toda a vida útil do investimento, uma depreciação desse capital. Tomando como ponto de comparação o tratamento contábil dos gastos em p&d na forma de investimento, o tratamento contábil na forma de gasto dedutível reduz o imposto devido se o investimento em p&d for crescente, e o eleva caso contrário.

Com respeito à lucratividade na indústria farmacêutica, as medidas tradicionais de lucratividade colocam-na em posição de liderança. Se-gundo a revista Fortune, em 1998 a indústria farmacêutica apresentou a maior taxa de rentabilidade, quer seja medida como retorno sobre o faturamento (em torno de 18%), quer seja medida como retorno sobre os ativos (em torno de 14%). Um dos motivos de elevado retorno está as-sociado ao problema que se acabou de discutir: a maneira como se trata contabilmente os investimentos em p&d. Apesar de economicamente esses investimentos representarem um gasto de capital, eles são tratados, para efeitos contábeis, como custos. Assim, os ativos totais das empresas que investem muito em p&d ficam subestimados e, conseqüentemen-te, superestimada a taxa de lucro. Os trabalhos feitos pela ocde, que corrigem esse efeito contábil, mostram que a diferença de lucratividade desse setor contra a média da indústria é da ordem de 3%. No entanto, mesmo essa diferença pode ser fruto do maior custo de capital do setor farmacêutico em conseqüência do maior risco inerente a essa atividade. O próprio estudo de DiMiasi e outros mostra um custo real de capital da ordem de 11% ao ano (um pouco mais baixo para a década de 80; com tendência a atingir 12% em 2000). Após controlar-se para esse cus-to maior de capital obtem-se taxas de rentabilidade equivalente às dos demais setores.

Alternativamente, é possível medir a rentabilidade da indústria ava-

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liando a taxa interna de retorno (tir) do investimento em p&d e compa-rando com o custo real de capital da indústria – da ordem de 11% ao ano – como visto no parágrafo anterior. Em outros textos, onde se estudaram a tir considerando uma base de 118 novas moléculas, foram obtidos 11,5% ao ano para a tir, valor muito próximo do custo de capital. Não há evidência, portanto, de que essa indústria apresenta lucros econômicos excessivos. De fato, a evidência é contrária.

O valor social de uma patente e os baixos investimentos em P&D

Na seção anterior verificou-se que os custos de desenvolvimento de uma nova molécula são extremamente elevados. Adicionalmente, mostrou-se que, apesar do público em geral pensar que o lucro dessa indústria é ex-cessivo, de fato, ele está dentro da norma das demais indústrias, quando se considera que os gastos em p&d constituem investimento e que o custo de capital, devido ao elevadíssimo risco da atividade, é maior nes-sa indústria. Nesta seção, avalia-se o impacto da indústria farmacêutica sobre o bem-estar.

O maior impacto da indústria farmacêutica sobre o bem-estar é ele-var o tempo de vida e, em segundo lugar, elevar a qualidade de vida. Para avaliar o impacto dos medicamentos sobre o bem-estar é necessário avaliar e precificar o impacto dos novos medicamentos sobre a elevação do tempo de vida e sobre a melhora da saúde e qualidade de vida do indivíduo. Para avaliar o valor da elevação da expectativa de vida, a me-todologia padrão é utilizar o mercado de trabalho como laboratório. Em geral, trabalhadores com as mesmas características tenderão a perceber salários iguais. No entanto, haverá diferenciais de salários se o risco de perda de vida (ou de redução da expectativa de vida) for significativa-mente diferente entre diversas ocupações. A partir do estudo empírico dos diferenciais de salários, é possível estabelecer o preço de um ano a mais de vida para um trabalhador típico de uma economia. Com esses números em mãos é possível estimar o impacto sobre o bem-estar da ele-vação da expectativa de vida. Murphy e Topel [1998] se perguntam se os US$ 35,8 bilhões gastos em saúde, relacionados à pesquisa e desenvolvi-mento (p&d), em 1995, constituem um valor muito alto ou muito baixo,

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de um ponto de vista social? A despeito de que uma resposta precisa a essa pergunta esteja além do escopo deste trabalho, pode-se colocar essa questão em perspectiva. Primeiramente, o montante gasto em pesquisa médica é muito pequeno relativamente ao crescimento no valor total dos números relativos à vida. De fato, tomando-se o valor líquido anual de US$ 2,4 trilhões, do período de 1970 a 1990, como ponto de partida, e supondo que apenas 10% desse aumento seja devido ao aumento em conhecimento médico, isto revelaria um ganho de cerca de US$ 240 bilhões anuais. Compare-se isto com os quase 36 bilhões anuais de gas-tos em pesquisa médica para 1995, acima mencionados. As estimativas para o valor dos avanços contra a categoria de doenças específicas nos contam uma estória similar.

Essa conclusão, essencialmente, confirma a evidência, apontada em Philipson e Jena [2005], de que as empresas farmacêuticas se apropriam de apenas 10% do retorno social da inovação em fármacos. Adicional-mente, Lichtenber [2001] documenta que o emprego de novos remédios reduz o emprego de outros procedimentos médicos hospitalares que são mais onerosos (mesmo levando-se em conta os preços maiores dos re-médios sob proteção patentária). Em trabalhos posteriores, Lichtenber [2006] documentou que, tanto para os eua quanto para uma amostra de outros países, há ganhos de sobrevida associados à utilização de remé-dios mais modernos, isto é, há forte evidência de aumento de bem-estar associado ao progresso técnico embutido nos novos medicamentos.

Huges, Moore e Snyder [2002] apresentam uma formulação simples para calibrar o impacto sobre o bem-estar social da eliminação imediata dos direitos de patente dos remédios. A partir de estimativas conhecidas das demandas dos remédios, é possível estimar o ganho estático que os consumidores usufruirão devido à imediata redução de preço dos remé-dios. Supondo uma relação linear entre esforço em p&d, produção de novos remédios e desses para ganho do consumidor no futuro, é possí-vel avaliar quanto será a redução futura de bem-estar, fruto da redução do consumo de novos remédios patenteados, mas também da redução futura da introdução de novos genéricos (conseqüência da redução de esforço de p&d).

Para avaliar ganhos e perdas de bem-estar em diferentes pontos do tempo envolvendo diferentes pessoas, é necessário escolher uma taxa de

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desconto social. Não há regra bem estabelecida para essa taxa. Certa-mente, ela é menor do que a taxa de privada de desconto empregada em análise de projetos. Uma forma de resolver esse problema é supor que o setor público compensará aos atuais consumidores pela manutenção do status quo. Isto é, para que se mantenha a patente e se favoreça o consu-midor de amanhã eleva-se a dívida pública hoje e transferem-se recursos diretamente ao consumidor de hoje para compensá-lo pela manutenção do status quo. Esse argumento sugere que a taxa de juros relevante é a taxa real de juros que o setor público paga na sua dívida pública. Huges e colaboradores utilizam a taxa de 2% ao ano, que é o custo de capital para o setor público nos Estados Unidos. De qualquer forma, o exercício de calibração de Huges e outros mostra que para cada dólar que se ganha hoje se perde 3 dólares amanhã.

Boldrin e Levine [2007, capítulo 10], críticos radicais da proteção intelectual, discordam do emprego de taxa de desconto tão baixa. Ale-gam que a taxa correta é a taxa de retorno da indústria farmacêutica, que como se viu é da ordem de 11%, pois é a taxa que reflete os riscos da atividade. Não é possível se concordar com essa afirmativa. Essa maior remuneração reflete, como se viu, os maiores riscos privados da indús-tria farmacêutica. Do ponto de vista agregado, o risco é muito menor. Se o esforço agregado de p&d elevar-se, o número agregado de novas inovações será maior. O leitor pode perguntar-se: por que então, o setor público não subsidia todo o investimento em p&d, dado que seu custo de capital é tão baixo? A resposta é que o setor público não dispõe de mecanismo para implementar essa política. Como ele faria para esco-lher as empresas? Lançaria um concurso, faria uma licitação? Como o setor público faria para inibir a captura e a incidência de corrupção se algum esquema dessa natureza fosse adotado?

Uma evidência marcante do elevadíssimo valor social da pesquisa em fármacos é o baixíssimo esforço em p&dnas doenças tropicais, que estão entre as que mais anos de vida retiram da população mundial. O fato de o setor privado dedicar tão parcos recursos para p&d nessas doenças é uma indicação da necessidade de medidas que elevem o retorno priva-do desses investimentos e uma indicação a mais de que as empresas do setor farmacêutico, como, ademais, qualquer empresa, tomam suas de-cisões olhando o retorno privado. Kremer e Glennerter [2004, capítulos

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2 e 3] documentam os elevadíssimos índices de morbidade de diversas doenças tropicais e os baixíssimos investimentos nessas doenças. Grosso modo, apenas 10% do investimento agregado em p&d na área médica é alocado para doenças que acometem 90% da população.

A conclusão que se segue de toda essa análise é que há uma carência de esforços de p&d na área de fármacos. Essa conclusão é inescapável. Mesmo aquelas pessoas que avaliam haver inúmeros problemas nas ins-tituições de propriedade intelectual (pi), e gostariam de reformá-las, são forçadas a concordar que algo está reduzindo o incentivo à pesquisa e desenvolvimento nessa área. Qualquer que seja a política implemen-tada, essa política deve nortear-se pela elevação do esforço agregado de p&d na área de fármacos.

Aperfeiçoamento da PI e o acordo tRIPS

Apesar da evidência levantada nas seções anteriores, não se pensa que a forma como o direito patentário está instituído seja necessariamente a forma ideal. De fato, vários autores sugerem que é necessário reformar as instituições de pi na Europa e principalmente nos EUA. As suges-tões para reforma podem ser classificadas em dois grandes grupos. No primeiro grupo, encontram-se reformas que propõem que as regras de patente se adaptem às características de cada indústria. Como ampla-mente documentado nos artigos anteriores, em diversas indústrias a van-tagem da liderança e o segredo são mais do que suficientes para garantir a remuneração do investimento em p&d. Assim, é perfeitamente pos-sível imaginar que as regras de patente, incluindo o tempo de validade da patente, sejam ajustadas às especificidades da cada indústria. Evi-dentemente, esse conjunto de reformas provavelmente pouco afetaria a indústria farmacêutica por ser exatamente a indústria na qual a patente apresenta maior importância.

Um segundo grupo de propostas sugere reduzir o custo de transa-ção do processo de patentes. Argumenta-se que é muito difícil estimar a importância de cada patente. Mesmo em setores que não se utilizam muito desse instrumento, para algumas invenções ele pode ser muito importante. Assim, em vez de alterar as regras para cada indústria, suge-

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re que se altere o foco. Sugere que: (1) deve-se permitir que em casos de processo por violação de patente pode-se alegar que se trata de um caso de desenvolvimento tecnológico simultâneo; (2) deve-se aperfeiçoar o processo de reexame de patentes após elas serem emitidas.

Devido à especificidade da indústria farmacêutica, algumas propos-tas são direcionadas para esse setor. Hollis [2005] propõe que o setor público compre a patente de um novo medicamento baseado no seu “benefício terapêutico adicionado.” Essa proposta é próxima à de Kre-mer e Glennerster [2004] para estimular o desenvolvimento de remédios para doenças do terceiro mundo. Em ambas, o setor público adquire do laboratório a patente pagando um valor baseado no benefício aos usuários da inovação. Ambas as propostas são muito interessantes. O presente trabalho não é o lugar apropriado para uma avaliação criteriosa dessas propostas. No entanto, somente se gostaria de enfatizar que, para contornar a patente, ambos os autores sugerem caminhos que colocam um poder de decisão muito grande sobre uma agência reguladora esta-tal para, de forma discricionária, decidir o valor de uma invenção. Adi-cionalmente aos custos burocráticos e de captura, ambas as propostas elevam muito o risco de aumento da corrupção. Além disso, ambas as propostas transferem ao contribuinte o financiamento de p&d.

A conclusão que segue das diversas sugestões é que parece não ser possível avançar muito nos direitos de propriedade intelectual na área de fármacos sem, simultaneamente, elevar em muito os encargos do se-tor público e o risco de corrupção. A mesma característica de elevar em muito o papel de uma agência para decidir o valor da inovação e, portan-to, a possibilidade de captura e corrupção, encontra-se na interessante proposta de Boldrin e Levine [2007] (ver capítulo 10, páginas 15-17). Eles propõem que um laboratório de pesquisa, após desenvolver uma nova molécula, disponibilize-a para que seja testada por um hospital universi-tário com recursos públicos. Uma agência estatal decidirá qual das molé-culas faz jus a passar para a fase de testes clínicos e decidirá que hospitais universitários implementarão os testes. Após a aprovação do remédio, o laboratório tem quatro anos de patente, isto é, ¼ do que tem hoje, dado que esse procedimento reduzirá o custo para o laboratório em ¾.

Essas possibilidades parecem-nos bastante interessantes. Como se afir-mou anteriormente, elas: (i) elevam em muito o custo da inovação para

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o setor público, o que não é necessariamente ruim, principalmente se o setor público já arca com o custo de aquisição dos remédios para o siste-ma público de saúde; (ii) elevam em muito o custo de transação, abrindo espaços para captura e corrupção de toda ordem, requerendo, portanto, desenho muito cuidadoso. Note que essas propostas, no entanto, apre-sentam uma característica em comum: elas não reduzem a rentabilida-de para o setor farmacêutico da atividade de p&d. Implicitamente, seus formuladores reconhecem o sub-investimento que ocorre em fármacos. Com relação ao ponto (i) acima, uma questão muito complexa é qual a forma de compartilhar o custo de p&d em fármacos entre diferentes países. Todo argumento nessa seção supõe uma economia fechada (ou, o que significa o mesmo, que o mundo é constituído de um único país). Considerando que há inúmeros países, empregando-se alguma das me-didas sugeridas acima para substituir (ou diminuir) os direitos de patentes na área de fármacos, um problema adicional será a forma de distribuir esses custos entre os consumidores dos diferentes países. A esse problema está dirigida a seção seguinte. Antes, é mister abordar dois outros aspectos associados à indústria farmacêutica: a grande duplicação de esforços em p&d para o desenvolvimento de drogas parecidas (drogas conhecidas por “me-too drugs”) e o elevadíssimo gasto em publicidade.

Com relação às “me-too drugs”, é importante ressaltar que não ne-cessariamente a existência de inúmeras drogas diferentes para a mesma doença seja ruim. Nos eua, os testes clínicos para a validação da comer-cialização de uma nova molécula requerem que se demonstre que essa nova molécula seja mais eficiente do que um placebo. Recentemente, Angell argumenta que o fdi deveria aprovar um novo medicamento somente se fosse possível mostrar que ele fosse melhor do que os me-dicamentos existentes em alguma dimensão. Segundo a autora, essa medida reduziria em muito a duplicação de esforços de p&d e redire-cionaria esse esforço para descobertas realmente importantes. Parece-nos haver dois problemas com essa sugestão: 1) uma coisa não impede outra. Se a rentabilidade, do ponto de vista privado, do investimento em inovações “realmente importantes” fosse elevada, a indústria deslo-caria o investimento para essas inovações “realmente importantes.” O baixo investimento nessas inovações “realmente importantes” constitui evidência indireta de que o retorno privado dessas inovações é baixo.

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Não se conseguiu enxergar como impedir as empresas de investir nas me-too drugs eleva a rentabilidade do investimento nas inovações “re-almente importantes.” 2) A sugestão de Angell de somente aprovar o medicamento caso fosse melhor do que os existentes (em vez de manter a prática da fdi de compará-lo com o placebo) encareceria os testes clí-nicos. Qualquer usuário de remédios sabe que a eficácia de um remédio depende do remédio, mas também depende do indivíduo. A resposta à medicação, tanto no que se refere ao tratamento quando aos efeitos colaterais, varia muito entre indivíduos. Se fosse adotada a sugestão de Angell, parece-nos que os custos da fase de testes clínicos elevar-se-iam exponencialmente devido à elevação do número de pacientes testados para que se pudesse cobrir toda a variedade dos seres humanos. A gran-de preocupação de Angell parece-nos ser o elevado investimento em marketing. Parece-nos que mais correto seria atuar diretamente sobre o marketing, regulamentando melhor essa atividade em vez de impedir o investimento nas me-too drugs .

No entanto, não está claro que marketing nesse mercado seja necessa-riamente ruim. Num recente trabalho, Lakdawalla et al. [2006] argumen-tam diferentemente. Afirmam que em um mercado no qual a inovação é contínua, a busca de informação é muito custosa e que a atividade de marketing reduz o custo dessa busca de informação para consumidores e médicos. Assim, ao ponderarem-se os custos e benefícios da patente deve-se reduzir dos custos o investimento dos laboratórios em marketing. Quan-do o prazo da patente expira, o maior benefício que a sociedade tem é a oferta do medicamento a preços menores. Esse ganho deve ser calculado líquido da redução de benefício em conseqüência da redução do esforço de marketing. Segundo as estimativas dos autores, esse ganho estático, fruto da introdução dos genéricos, em seguida ao término do prazo da patente, deve ser reduzido em 15%, em conseqüência da redução pela empresa que até então era monopolista, do esforço de marketing.

Relações norte-sul e o acordo tRIPS

Analisando as instituições de pi, especialmente com referência aos pro-dutos farmacêuticos, uma questão importante e extremamente comple-

10.

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xa é estabelecer a divisão ótima entre o papel do setor privado e do setor público na divisão dos custos da inovação. Quando se volta para esse problema num contexto de economia aberta, um novo complicador é agregado. Como deve ser o compartilhamento dos custos de inovação entre os cidadãos de diferentes países? O trips fornece uma possível resposta à pergunta do final do parágrafo anterior. O compartilhamento adota dois princípios: 1) tratamento nacional ao inovador estrangeiro; 2) harmonização das instituições de proteção intelectual (pi) entre os paí-ses. O tratamento nacional garante ao inovador estrangeiro os mesmos direitos nos países signatários que o direito de um inovador doméstico. A harmonização estabelece um conjunto comum de regras com relação aos bens e processos passíveis de pi, de prazos de vigência da pi e outras características.

Note-se que apesar da harmonização uniformizar as regras, isso não significa que a contribuição dos consumidores de cada país para finan-ciar o esforço de inovação será a mesma. Em geral, o detentor da patente discrimina os diversos mercados, cobrando preço menor do mercado de menor renda, conforme pode ser visto em Ohana [2004, 2005 e 2006]. Conseqüentemente, mesmo a harmonização de prazos, requerida pelo trips, embute um mecanismo de mercado que distribui o custo de ino-vação entre os diferentes consumidores conforme a renda per capita de cada país. A grande vantagem desse mecanismo é que ele opera sem re-gulação estatal. O laboratório que desenvolveu o remédio tem um direi-to de monopólio sobre a pi do conhecimento gerado pela sua pesquisa e pratica, em cada mercado, o preço que maximiza seu lucro, preço que será menor nos países de menor renda per capita.

De fato, os dados do trabalho de Ohana com dados de renda per capi-ta mostram que a redução percentual no preço para uma dada redução percentual na renda per capita é de 0,5. Assim, em países com uma renda per capita 25% menor o preço será, em geral, 50% menor. Nada garante que essa regra seja ótima sob algum critério, mas ela constitui um avanço em direção a um mecanismo de compartilhamento do custo de inovação entre os consumidores que leve em conta a diferença de renda per capita entre economias.

Como já se afirmou, o trips é primordialmente um mecanismo para distribuir entre os consumidores dos diversos países os custos de p&d.

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Dado que o preço de monopólio é menor nos mercados de menor renda per capita, o acordo trips embute um mecanismo compensatório, no qual as economias mais ricas contribuem com parcela maior do custo de p&d. O trips constitui também um mecanismo de coordenação a partir de uma regra simples: harmonização dos procedimentos. Se não houver coordenação, a solução ótima para cada país será adotar um ní-vel menor de pi do que o ótimo do ponto de vista do mundo. Isto por-que, ao escolher suas instituições de pi de forma descoordenada, cada país não leva em consideração o benefício que o maior investimento em p&d (em conseqüência das instituições de pi) em seu território terá sobre o bem-estar dos habitantes das demais economias. Dessa forma, quando se parte de um equilíbrio sem coordenação para um equilíbrio coordenado, o nível total de pi cresce. De fato, esse foi o caso com o trips: a harmonização elevou a pi entre os signatários ao nível da pre-valecente nos eua. Claramente, houve elevação do nível de pi entre os signatários.

Evidentemente, o problema da descoordenação é muito menos dra-mático se houver um país que seja simultaneamente uma fração con-siderável da economia mundial e com forte vantagem comparativa em p&d. Neste caso, a regra ótima de economia fechada para essa econo-mia grande é muito próxima da regra ótima para o mundo. Esse era o caso da economia mundial até meados dos anos 70. A reconstrução da Europa e sua unificação fizeram com que, a partir dos anos 80, houves-se uma nova economia com mercado próximo à economia americana. Atualmente, o forte crescimento das economias asiáticas, associado ao aprofundamento do processo de globalização, fez com que o arranjo que prevalecia até meados dos anos 70 passasse a colocar um custo des-proporcional sobre os consumidores americanos do financiamento da p&d mundial, particularmente no caso da indústria farmacêutica. Este processo foi agravado com a elevação dos custos de p&d em fármacos que houve na década de 90 em função dos critérios mais estritos adota-dos para os testes clínicos.

Outra questão mais complexa é saber qual a forma ótima de redis-tribuir o custo do esforço de p&d entre países de renda diferente. Será que a redução do preço de monopólio que ocorre nos países mais pobres é suficiente para redistribuir o financiamento do esforço de p&d en-

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tre países que se encontram em diferentes estágios do desenvolvimento econômico? Evidentemente, esta questão complicar-se-á sobremaneira caso se decida por algum esquema alternativo de financiamento da p&d com maior presença estatal, como defendido por diversos autores. Nesse caso, em um mundo aberto, além dos mecanismos de pi para estimular p&d e distribuir entre os diversos países seus custos, por meio de meca-nismos de mercado, ter-se-ía de saber como seria a repartição (entre as diversas economias) desses gastos que serão custeados pelos governos.

Esse trabalho não é o lugar para responder questão tão sofisticada. Mas é importante reter a principal conclusão dessa seção. O problema básico levantado pelo acordo trips, a forma ótima de distribuir entre pa-íses em diferentes estágios de desenvolvimento os custos de p&d, ainda é uma questão em aberto. É perfeitamente possível que os participantes decidam reabrir negociações e repactuar o termo do atual acordo. O que não pode ocorrer é uma saída descoordenada, isto é, cada país decidir sua melhor política isoladamente, tomando como dadas as políticas dos demais países. O equilíbrio desse jogo é haver forte redução de parte a parte dos direitos patentários. Em particular, a pressão dos próprios con-sumidores americanos imporia forte redução da pi naquele país. Essa solução certamente reduziria em muito o esforço de p&d em fármacos, produzindo, como conseqüência, forte redução na produção de novos medicamentos.

Como afirmado nos parágrafos anteriores, o acordo trips tem a fun-ção de estabelecer regras para o compartilhamento entre as economias dos custos da inovação. No entanto, a participação de uma economia em desenvolvimento no acordo pode ter outros efeitos. Um deles refere-se ao momento de lançamento dos novos remédios. Como documentado anteriormente, há forte conteúdo tecnológico nos novos remédios. Eles (em comparação aos remédios mais antigos) apresentam um impacto maior sobre a sobrevida e economizam o emprego de outros procedi-mentos médicos que são mais caros. Assim, os doentes se beneficiam muito do uso de remédios mais novos. Será que a adoção do trips re-duziu a defasagem entre o lançamento mundial do novo medicamento e o lançamento no mercado doméstico para economias em desenvolvi-mento? A evidência é que a existência de controle de preços claramente atrasa o tempo de lançamento de novos medicamentos. Com relação

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aos direitos de pi, a evidência empírica é que a existência de patente de processo tem forte impacto em reduzir o tempo de lançamento, mas a existência de patente de produto não parecer ter impactos importantes.

Nossa interpretação é que esse resultado indica que a indústria do-méstica farmacêutica não tem capacidade de em um curto intervalo de tempo inventar um novo processo para produzir o produto. De sorte que somente a patente de processo é suficiente para proteger e, conse-qüentemente, estimular o detentor da patente a produzir no país em questão. Assim, estabelece-se claramente um compromisso entre preste-za do lançamento de novos medicamentos e desenvolvimento de uma indústria nacional que imita novos produtos. Direitos de propriedades menos estritos estimulam uma indústria que imita, mas atrasa o lança-mento dos novos medicamentos. Adicionalmente, resultados empíricos recentes apontam que países em desenvolvimento com direitos de pi bem estabelecidos tornam-se plataforma de exportação de novos remé-dios, de sorte que a elevação na atividade de produção das companhias multinacionais mais do que compensa a redução na atividade das com-panhias domésticas que imitam os novos medicamentos.

Conclusões

Ao longo das dez seções anteriores discutiu-se o papel do instituto das patentes no desempenho da indústria farmacêutica. Nesta última, pro-cura-se reunir estes argumentos através de dez perguntas e respostas cujos argumentos foram dissecados ao longo do artigo.

A inovação tecnológica é o motor do crescimento? Sim, como discutido na seção 2, crescimento sem mudança técnica se esgota, como ocorreu com o crescimento da União Soviética no final dos anos 60. A longo prazo, o único motor do crescimento é a mudança tecnológica;Direitos de propriedade intelectual são necessários para estimular a produção de conhecimento e, conseqüentemente, garantir o cresci-mento? Depende da indústria. Nas indústrias nas quais a vantagem da liderança e o segredo produzem suficiente proteção, a pi não é essen-cial para garantir o estímulo a p&d (apesar de estimular a revelação

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da tecnologia, o que sempre é positivo). Na indústria de fármacos, as instituições de pi são absolutamente essenciais como ficou amplamente documentado ao longo do texto. Essa indústria apresenta grandes custos de p&d e baixo custo de imitação, constituindo-se no caso paradigmáti-co no qual as instituições de pi são essenciais;A indústria farmacêutica apresenta lucratividade excessiva? Não. Como demonstrado, a aparente elevada rentabilidade da indústria é con-seqüência dos elevados custos de p&d e do risco maior da atividade que encarece o custo oportunidade de capital. Se esses fatores forem conside-rados, a rentabilidade da indústria revela-se igual à rentabilidade normal de longo prazo de qualquer atividade econômica. Ou seja, o lucro contá-bil não reflete a verdade contida no lucro econômico, pois considerando o risco da atividade, o custo de oportunidade da capital é elevado, o que reduz sensivelmente a verdadeira lucratividade da indústria;Há evidência de que o investimento total em p&d na área de fármacos é baixo? Sim. Todas as medidas de bem-estar mostram que o impacto de novos produtos farmacêuticos sobre a sobrevida e a melhora da qualidade de vida, bem como sobre a redução de outros custos médicos, mais do que compensam os custos do remédio (mesmo os que estão sob patente);Existe um conflito entre direitos de pi e defesa da concorrência na área de fármacos? Sim. Fala-se de uma “tensão” existente entre a proteção à propriedade intelectual e a economia antitruste. Quanto melhor for o funcionamento dos mecanismos de pi, maior será o incentivo a p&d e, conseqüentemente, maior será o volume de novas invenções. Quanto melhor e mais originais forem as invenções, melhor será a qualidade do novo medicamento, conferindo ao detentor forte poder de merca-do (uma inovação bem sucedida origina um produto sem substitutos próximos). O custo da proteção à propriedade intelectual seria a ocor-rência de um “peso morto” (deadweight loss) sobre a sociedade, o que, em tese, deveria atrair ações regulatórias em defesa da concorrência. A economia antitruste, por sua vez, ao buscar eliminar os custos sociais do monopólio, produziria um incentivo negativo à geração de inovações. Entretanto, este conflito é irrelevante, pois do ponto de vista teleológico a concorrência não é um valor em si mesma. A concorrência vale ape-nas enquanto mecanismo de mercado para garantir o bem-estar do con-sumidor, que é o bem econômico tutelado pela concorrência. Ora, se a

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livre concorrência gera resultados para o consumidor inferiores àqueles produzidos pelo monopólio – como é o caso na indústria farmacêutica – então qualquer ação que vise simplesmente defender a concorrência será um agir por agir, um apego a um formalismo estéril, e que termina-rá por reduzir o bem-estar do consumidor;Dado o conflito inerente aos mecanismos de pi, apontado no item anterior, qual é a melhor solução do ponto de vista do bem-estar? Apa-rentemente há um conflito entre o consumidor e o laboratório. Se esse fosse o caso, a defesa da concorrência deveria ter antecedência à pi. No entanto, como fartamente documentado ao longo do artigo, o impacto dos investimentos em p&d sobre o bem-estar é bem maior do que o seu custo, assim como há claros sinais de sub-investimento no setor, de sorte que o conflito que há é entre o consumidor de hoje e o consumidor de amanhã. Isto é, o conflito não é entre o laboratório e o doente hoje, mas entre o doente de hoje e o doente de amanhã. A teoria econômica sugere que a forma mais eficiente de solucionar o conflito entre ganhos estáticos e dinâmicos é empregar os mecanismos de PI associados a transferências diretas de recursos públicos aos doentes que não tenham condições financeiras de arcar com os custos dos remédios protegidos pela patente;O acordo trips eleva a eficiência econômica? Sim. Ele cria um meca-nismo de coordenação entre diversos países de forma a compartilhar os custos de p&d. Sem esse mecanismo de coordenação, a resposta ótima de cada país, isoladamente, é reduzir suas garantias de pi, produzindo-se, entre os países, seguidas rodadas de redução dos direitos patentários, com impactos ruins sobre o estímulo à inovação, especialmente na in-dústria farmacêutica;O acordo trips é neutro do ponto de vista da distribuição dos custos entre as economias? Em termos de eficiência estática, não. Os países que produzem menos tecnologia pagarão mais aos países que são os grandes produtores, principalmente os eua. Cálculos em McCalman [2001] sugerem que esses custos podem ser da ordem de 0,25% do pib para países de renda intermediária como Brasil, Grécia e México, ou ainda para países ricos que não são muito inovadores, como Canadá e Noruega. Em termos de eficiência dinâmica, sim, pois esses valores não consideram o efeito do trips sobre a elevação da velocidade de

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produção de novas tecnologias (que é particularmente importante nos produtos farmacêuticos) nem possíveis efeitos benéficos de elevação do investimento externo direto. Tecnicamente, os valores dos benefícios so-ciais da inovação devem ser considerados para se obter o resultado líqui-do (custo versus benefício) da distribuição entre as economias. Como o retorno social da inovação na indústria farmacêutica é maior do que o retorno privado poder-se-ia até mesmo dizer que a distribuição líquida dos custos do trips, no setor farmacêutico, pode favorecer os países que produzem menos tecnologia.O acordo trips é equânime do ponto de vista distributivo? Não é pos-sível saber. O detentor da patente, por ser um monopolista, discrimina preços, de sorte que os consumidores dos países mais pobres pagam me-nos pela unidade do medicamento. No entanto, essa redução de preço pode não ser suficiente para permitir o consumo pela sociedade. Este certamente é o caso dos países da África sub-saariana. Não há razões para supor que esse é o caso do Brasil, país de renda per capita média, cujo custo (da ordem de 0,25% do pib, sem considerar os efeitos benéfi-cos dinâmicos), pode perfeitamente ser arcado pela sociedade. Por outro lado, a inexistência do trips faria com que o financiamento de p&d fos-se preponderantemente custeado pelos consumidores norte-americanos enquanto que toda a população mundial se beneficiaria dos novos pro-dutos farmacêuticos, o que, também, não parece ser equânime do ponto de vista distributivo;Licenciamento compulsório constitui boa política pública? Não. Como argumentado, a principal função do trips é estabelecer um me-canismo que coordene as decisões dos diferentes atores. O licenciamento compulsório representa solução descentralizada: cada país isoladamente escolhe o nível ótimo de pi, desconsiderando a reação dos demais. Em um mundo globalizado, inexistindo um ator que claramente seja muito maior do que os demais (como era o caso dos eua até os anos 70), a solução descoordenada é ruim. O compartilhamento entre os diferentes países do financiamento dos custos da inovação deve ser matéria tratada pelas chancelarias dos diversos países.

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Notas

Este texto foi extraído do texto dos autores intitulado “O papel do insti-tuto da patente no desempenho da indústria farmacêutica” e está dis-ponível no site das Instituições a que os autores são filiados. Uma versão preliminar foi apresentada no iii Encontro Franco-Brasileiro sobre Pro-priedade Intelectual, 26/03/2007, Rio de Janeiro. Agradecemos a Fontes, Tarso Ribeiro, Advogados e à Sanofi-Aventis Farmacêutica Ltda. por par-te do suporte financeiro para a realização desta pesquisa.Marcia Angell [2004], The Truth About the Drug Companies: How They deceive Us and What to Do About It, publicado pela Randon House. Nós tivemos acesso à resenha escrita pela própria autora, publicada no The New York Review of Books, volume 51, # 12 de julho de 2004 (http://www.nybooks.com/articles/17244).

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A Reforma Sanitária, Assistência Farmacêutica e o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em SaúdeMoisés Goldbaum*

O sistema de saúde brasileiro experimentou no decorrer do século pas-sado transformações, adequações e adaptações progressivas visando a oferecer atenção à saúde de qualidade à sua população.

Nos anos 1980, o debate sobre a saúde, que vinha sendo desenvolvido em distintos setores sociais, especialmente no meio acadêmico, viu-se intensamente valorizado e reconhecido socialmente. Ganhou maior densidade com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, acompanhando o processo de redemocratização do país. As reso-luções estabelecidas nessa Conferência, voltadas principalmente para a organização de serviços de saúde serviram de elementos básicos e orien-tadores para inscrever um consistente e inédito capítulo sobre a saúde na Constituição Brasileira de 1988, que imprime as bases do sistema atual. Ao lado de prover as concepções da atual Lei Orgânica da Saúde 8080 de 1990 e todos os seus desdobramentos, gerou as condições para o estabelecimento do Sistema Único de Saúde (sus), que se constitui em uma das grandes conquistas da sociedade brasileira, seja da perspectiva da necessária e desejada inclusão social, seja da perspectiva de prover atenção de boa qualidade ao conjunto todo da população.

A implementação do sus, nestes seus quase vinte anos de existência, apesar de todos os obstáculos e dificuldades inerentes a um empreendi-mento dessa natureza e extensão, e da necessidade de seu contínuo apri-moramento, entre os quais o equacionamento de seu financiamento (cujas bases estão dadas na Emenda Constitucional 29, em tramitação no Con-gresso Brasileiro), revela-se uma realidade inquestionável. Deste modo, o

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sus surge como um exemplo a ser trabalhado e em constante renovação por todos interessados na questão da saúde e seus respectivos usuários.

Não obstante, alcançar o longo trajeto a ser percorrido para atender os princípios básicos sobre os quais se assentam o sus, significa enfrentar com determinação e convicção os desafios que se apresentam no cotidiano des-te empreendimento. Assim, a universalidade, que garante o acesso à saúde de todos os cidadãos indistintamente, a integralidade, que provê a atenção completa e resolutiva de qualidade aos problemas de saúde, e a eqüidade, que preceitua a inalienável justiça social no trato destas questões com a ga-rantia de atenção equitativamente distribuída e oferecida, são os princípios constantemente perseguidos para dar validade ao ditame constitucional de que “Saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

Nessa estrutura de atenção à saúde, impõe-se como uma das bases, entre outras tantas de interesse para a organização e prestação de servi-ços, para atender aos desafios postos – que não são pequenos e muito menos desprezíveis –, o desenvolvimento e a implementação de políti-cas de ciência, tecnologia e inovação (c,t&i) em saúde . É amplo e sufi-cientemente reconhecido que é impensável qualquer avanço e progres-so sociais que não estejam estruturalmente assentados nos pilares desse desenvolvimento do setor de c,t&i. A área da saúde, especialmente, não prescinde dessa situação, haja vista a sua significação enquanto matéria-prima para o desenvolvimento econômico ou mesmo na sua finalidade precípua de oferecimento de qualidade de vida e saúde . Isto se refor-ça e se evidencia quando se inscreve tanto na Constituição Federal de 1988 (em seu artigo 200) quanto na Lei Orgânica da Saúde de 1990 (em seu artigo 5o, inciso X), destacando-se que um dos objetivos do sus é “incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento científico e tecnológico”. A sua vinculação ao denominado “complexo industrial da saúde” é descrita e analisada em vários trabalhos, que mostram sua es-treita vinculação com a sustentabilidade dos programas e ações empre-gadas no sus, nos quais a assistência farmacêutica e, por conseqüência, a indústria farmacêutica, ao lado das vacinas, equipamentos médicos, hospitalares e odontológicos, reativos para diagnóstico e os hemoderiva-dos, são os seus constituintes.

A reprodução de observação feita por Guimarães, no artigo já citado , informa da situação promissora que se desenha atualmente no Brasil:

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Nos últimos anos, mudanças positivas surgiram com a criação dos Fundos Se-

toriais e com a elaboração da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio

Exterior, da Lei da Inovação e do decreto que a regulamenta, da criação do

Programa de Fomento à Indústria Farmacêutica (Pró-Farma) pelo Banco Na-

cional de Desenvolvimento Econômico e Social (bndes), da Lei n. 11.196 (Lei

“do bem”) e do projeto de lei que regulamenta o fndct. Esse conjunto de mu-

danças destaca três aspectos: 1) aumento da capacidade de indução, no sentido

de conciliar mérito científico e prioridades, definidas por atores internos e exter-

nos à comunidade científica; 2) ênfase ao componente tecnológico e busca da

inovação, deslocando o tradicional balanço observado na pesquisa realizada no

País, predominantemente científica; 3) reforço do componente empresarial, es-

timulando diretamente empresas ou contemplando sua associação com grupos

e instituições de pesquisa.

Esse conjunto de iniciativas governamentais, ao lado de outras recentes ações vinculadas ao Ministério da Saúde , como se depreende, e con-cordando com o autor, abre e reforça as perspectivas de programar e im-plementar políticas no campo da ciência, tecnologia e inovação (c,t&i) em saúde que contemple e articule de forma indissociável o mérito cien-tífico à relevância social (leia-se um dos elementos para a compreensão e incorporação de prioridades de investigação em saúde). Ressalte-se, ainda, na observação do autor, o reforço do componente empresarial, que remete à premissa de que ações nesse terreno implicam o princípio da inclusividade, qual seja a inserção dos produtores, financiadores e usuários da produção técnico-científica , aqui incluídas as inovações. Tal como expresso nesse documento de Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde – pnctis – (definida e redigida por ocasião da 2a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inova-ção em Saúde, em 2004) os eixos condutores para a pesquisa em saúde devem, igualmente, nortear esse campo de atuação. Entre eles, no caso aqui em análise, destacam-se: a extensividade, que implica contemplar, ao lado da produção de conhecimentos, todas as atividades referentes ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, esta última de incorporação e preocupação mais recentemente fortalecida na sociedade brasileira; a inclusividade, que, como foi dito acima, corresponde ao envolvimento de todos os atores participantes nestas ações – um excerto desse docu-

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mento informa: “A pnctis deve induzir, apoiar e promover a produção desenvolvida pelas instituições de ensino superior, institutos de pesqui-sa, serviços de saúde, empresas do setor produtivo, organizações não go-vernamentais e parcerias público e privadas, abertas ao controle social”; a seletividade, qual seja o apoio direcionado a prioridades identificadas de interesse nacional; a competitividade, que permite identificar os ni-chos de vantagens comparativas para buscar investimentos sustentáveis à luz das prioridades identificadas.

No caso da assistência farmacêutica, o papel desempenhado pela in-dústria, ao lado da reorganização da assistência propriamente dita, é sufi-cientemente ressaltado na medida de sua centralidade e naturalidade na provisão de fármacos e medicamentos para a efetiva resolução dos eventos e danos à saúde. Esse entendimento explica e justifica o fato de que um dos cinco eixos de trabalho da recente e pioneira Política Industrial, Tec-nológica e Comércio Exterior (pitce), estabelecida pelo Governo Brasi-leiro em 2005 e conduzida pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, seja o capítulo de Fármacos e Medicamentos. A pitce, no caso de Fármacos e Medicamentos, reforça-o na medida em que se conduz em harmonia com o Fórum de Competitividade da Cadeia Farmacêutica e o Fórum de Competitividade de Biotecnologia, situação na qual o Governo Brasileiro pode, por exemplo, desenhar e editar a Política Nacional de Desenvolvimento da Biotecnologia. Essa ambiência permite colocar em prática a necessidade de articulação entre os diferentes setores para a de-finição de sua melhor forma de condução: assim, é nessa situação que se colocam de modo integrado ao setor saúde, ao definir suas necessidades, o setor de ciência e tecnologia, ao estabelecer os parâmetros de fomento e indução, e o setor industrial, ao desenvolver e praticar a inovação.

A própria Lei de Inovação, ao propiciar programas de Subvenção Econômica, favorece e fortalece essa articulação intersetorial, na medi-da em que o setor Saúde (leia-se o Ministério da Saúde) participa ativa-mente na definição das linhas de inovação que atendam as necessidades de atenção à saúde, bem como à agenda de prioridades em pesquisa.

Essa ação no âmbito da saúde não vem a se constituir em novidade para o país, considerando-se algumas de suas experiências exitosas na área de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Como exemplo paradig-mático, pode-se apontar o Programa Nacional de Auto-suficiência em

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Imunobiológicos, lançado ao final da década de 80, início dos anos 90, desencadeado por conta da concreta ameaça de desabastecimento de soros. O Governo Brasileiro apoiou e fomentou decisivamente os seus institutos científicos e tecnológicos (destaca-se aqui, até hoje, os institu-tos: Biomanguinhos, Butantã e tecpar) em saúde para capacitarem-se na provisão de imunobiológicos, garantindo assim sua auto-suficiência em vacinas (especialmente aquelas componentes do programa nacional de imunizações). Com esse programa se viabilizou a consolidação de um excelente parque produtivo no Brasil, que responde às necessidades do país em relação às vacinas, ao desenvolvimento tecnológico nessa área bem como à geração e produção de conhecimento. Tal empre-endimento teve uma repercussão importante na proteção da saúde da população no que se refere às doenças imunizáveis, incontestavelmen-te uma alta prioridade em saúde, possibilitando ao país participar com sucesso nos programa de erradicação de doenças. Trata-se, portanto, de demonstração clara e objetiva do assentamento das políticas de c&t&i em saúde na busca dos princípios basilares do sus.

Diante desse panorama, emerge a importância de estreitar as relações entre as propostas da Reforma Sanitária e a Assistência Farmacêutica. Nes-te sentido, é necessário fomentar e aprimorar a utilização de instrumen-tos para que se torne possível alavancar a indústria farmacêutica nacional pública e privada, recuperando e criando condições para a autonomia na produção de fármacos e medicamentos. Essa ação atende, de um lado, a necessidade de atenuar a forte dependência de insumos importados, com significativo balanço comercial negativo para o país. De outro lado, busca considerar as prioridades sanitárias e estratégicas em saúde da população, com o objetivo de superar a visível vulnerabilidade social (termo cunhado por C. A. G. Gadelha, em texto inédito) que cerca os nossos sistemas.

As iniciativas e instrumentos disponíveis citados anteriormente estão em pleno processo de implementação e alguns de seus detalhes podem ser aqui sintetizados.

Em primeiro lugar, destaca-se o profarma, programa do bndes criado em 2004, cujos objetivos são:

Incentivar o aumento, de forma competitiva, da produção de medicamentos

para uso humano e seus insumos no país; apoiar os investimentos das empresas

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para adequação às exigências do órgão regulatório nacional, a Agência Nacio-

nal de Vigilância Sanitária (anvisa) [...]; contribuir para a redução do déficit

comercial da cadeia produtiva; estimular a realização de atividades de pesquisa,

desenvolvimento e inovação no país; fortalecer a posição da empresa nacional

nos aspectos econômicos, financeiros, comercial e tecnológico.

Como se vê, o programa atende aos eixos condutores estabelecidos e compreendidos pela pnctis, revelando a coerência e afinidade das po-líticas públicas do setor de c,t&i/s em andamento. Além disso, con-templa todos os elos da cadeia de produção e desenvolvimento (exten-sividade) com apoio à produção de fármacos e medicamentos e o seu necessário embasamento na pesquisa e desenvolvimento. Na medida de seus diferentes componentes como “fortalecimento das empresas nacio-nais”, “produção”, “pesquisa, desenvolvimento e inovação”, fica evidente a importância dessa iniciativa para a recuperação, fortalecimento, cres-cimento e aprimoramento do parque tecnológico farmacêutico visando à conquista de sua autonomia, ao lado do atendimento, uma vez bem articulado às políticas públicas de saúde, às prioridades e necessidades da população brasileira.

Em segundo plano e com a mesma importância, vale, de forma sinté-tica, detalhar dois empreendimentos lançados em 2006 e voltados, tam-bém, para o apoio ao desenvolvimento e produção de fármacos e me-dicamentos. Trata-se do programa de subvenção econômica, objeto da Lei de Inovação, já referido anteriormente, e o programa de fomento à ciência e tecnologia em saúde, implementado pelo Ministério da Saúde (ms) em cooperação técnica com o Ministério de Ciência e Tecnologia. O primeiro deles, a subvenção econômica, se constitui em

nova modalidade de apoio financeiro [compondo] um conjunto de mecanismos

das políticas de governo para promover a competitividade das empresas nacio-

nais. O objetivo maior da subvenção é compartilhar custos, diminuindo o risco

tecnológico da inovação e estimulando a ampliação das atividades de inovação

no universo empresarial brasileiro” .

As ações previstas na Portaria Interministerial mct/mdic, que devem atender as prioridades nela estabelecidas, constituíram significativa ex-

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periência, na medida do acolhimento das necessidades de saúde identifi-cadas pelo ms para a definição dos focos objetivados na área de fármacos e medicamentos, qual seja Aids e hepatites. Da perspectiva do fomento a c,t&i/s, salienta-se a iniciativa do Fundo Setorial de Saúde – ct-Saúde –, dentro de suas ações transversais, lançando o apoio à inovação em produtos terapêuticos e diagnósticos, por intermédio da carta-convite mct/ms/finep . Essa ação visa a apoiar empresas brasileiras, estimulando a parceria e a interação delas com Instituições Científicas e Tecnológicas – icts –,“para a realização de projetos que permitam a implementação da atividades destinadas ao desenvolvimento tecnológico e à inovação relacionadas com Fármacos e Medicamentos”. Chama-se a atenção de sua inserção nas prioridades da pitce, quer na suas ações horizontais de apoio ao desenvolvimento tecnológico em empresas em parceria com icts, quer na opção estratégica Fármacos e Medicamentos, que se cons-titui em um dos eixos da pitce, ao lado de semicondutores e software, bens de capital, nano e biotecnologia e energias alternativas, ou seja, opção altamente estratégica e prioritária do governo brasileiro. Embora os recursos financeiros alocados a este projeto longe estejam do volume requerido (pelas informações correntes, de quinhentos mil a oitocentos mil dólares) para o lançamento comercial de uma molécula, represen-tam um passo vigoroso para a recuperação da autonomia nacional neste campo, na medida de sua sustentação e continuidade.

Como pano de fundo desse cenário, encontra-se a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, definida que foi na Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica, que estabeleceu as dire-trizes dessa Política. Da Conferência, que norteou o Conselho Nacional de Saúde a elaborar a Resolução 330/2004, podem se retirar alguns pon-tos relevantes que reforçam as observações até aqui relatadas:

A Política Nacional de Assistência Farmacêutica é parte integrante da Política

Nacional de Saúde [à semelhança da assertiva “a Política Nacional de Ciên-

cia e Tecnologia em Saúde é um componente da Política Nacional de Saúde”,

cunhada em 1994, por ocasião da 1a Conferencia Nacional de Ciência e Tec-

nologia em Saúde] envolvendo um conjunto de ações voltadas à promoção,

proteção e recuperação da saúde e garantindo os princípios da universalidade,

integralidade e eqüidade;

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A Assistência Farmacêutica deve ser compreendida como política pública

norteadora para a formulação de políticas setoriais, entre as quais se destacam as

políticas de medicamentos, de ciência e tecnologia, de desenvolvimento indus-

trial e de formação de recursos humanos, dentre outras, garantindo a interseto-

rialidade inerente ao sistema de saúde do país (sus) e cuja implantação envolve

tanto o setor público como privado de atenção à saúde;

A Política Nacional de Assistência Farmacêutica deve englobar os seguintes

eixos estratégicos:

•  desenvolvimento, valorização, formação, fixação e capacitação de recursos hu-

manos; - modernização e ampliar a capacidade instalada e de produção dos

Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, visando o suprimento do sus e o cumpri-

mento de seu papel como referências de custo e qualidade da produção de me-

dicamentos, incluindo-se a produção de fitoterápicos;

•  implementação de forma intersetorial, e em particular com o Ministério da Ci-

ência e Tecnologia, de uma política pública de desenvolvimento científico e

tecnológico, envolvendo os centros de pesquisa e as universidades brasileiras,

com o objetivo do desenvolvimento de inovações tecnológicas que atendam os

interesses nacionais e as necessidades e prioridades do sus.

Ressaltando a necessidade de garantir o acesso da população aos me-dicamentos necessários, constata-se que o Estado assume essa responsa-bilidade de modo tal a que responde atualmente por 25% do mercado farmacêutico nacional. Apesar desta forte presença estatal, que repre-senta um ponderável e substancial poder de compra, este não tem sido adequadamente exercido no tocante ao direcionamento e à indução ao desenvolvimento científico e tecnológico demandado.

A todo esse processo associam-se as possibilidades que se abrem com o processo de transferência de tecnologia, viabilizando mecanismos rápi-dos e eficientes para o domínio da cadeia produtiva de fármacos e medi-camentos, prática esta que se deve beneficiar por intermédio do referido poder de compra governamental. Não se pode olvidar da necessidade de prover os imprescindíveis recursos humanos em pesquisa e desenvolvi-mento, que, no caso do Brasil, encontra suas necessidades satisfeitas ou com amplas possibilidades de satisfação por meio de seu bem sucedido programa de pós-graduação orientado pela capes/mec e conduzido de modo bastante eficiente pela estrutura universitária e icts brasileiras.

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Esse panorama existente no país gera condições para se elaborar (como se tem feito e é visualizado nesta exposição) planos e propostas visando à articulação das lógicas que presidem os diferentes componen-tes da sociedade e, no caso da assistência farmacêutica, especialmente os gestores do sus e os produtores públicos e privados de insumos, para responder de modo consistente às necessidades de acesso da população ao arsenal terapêutico representado pelos medicamentos. Esses atores sustentam a grande responsabilidade de orientar os caminhos para aten-der as prioridades e necessidades estratégicas neste particular do sistema de saúde. Para além de garantir a estrutura de sustentação de um parque produtivo competente e competitivo, carregam a responsabilidade de definir onde investir, lembrando, como exemplo, o recente movimento contemplando as “doenças negligenciadas” como um dos alvos a serem atingidos. Da observação e cumprimento desses passos seguros ficam delineados os caminhos que levam ao encontro das respostas para a bus-ca da autonomia nacional no setor de fármacos e medicamentos e das soluções para os problemas prioritários da sociedade brasileira.

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Notas

Guimarães, R. Bases para uma política nacional de ciência, tecnologia e inovação em saúde. Ciência & Saúde Coletiva 9(2):375-87, 2004.Guimarães, R. Pesquisa em saúde no Brasil: contexto e desafios. Revista de Saúde Pública 40(número especial):3-10, 2006.Gadelha, CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e Saúde Coletiva 8(2):521-535, 2003. Gadelha, C. A. G. Desenvolvimento, complexo industrial da saúde e políti-ca industrial. Revista de Saúde Pública 40 (número especial): 11-23, 2006.Gadelha, CAG. O complexo industrial da saúde: desafios para uma po-lítica industrial. In Buss, PM, Temporão, JG e Carvalheiro, JR. Vacinas, soros e imunizações no Brasil. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2005.Referência 2.Goldbaum, M e Serruya, SJ. O Ministério da Saúde na política de ciên-cia, tecnologia e inovação em saúde. Revista da USP 73:40-47, 2007.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insu-mos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Política Na-cional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Brasília. Ministé-rio da Saúde, 2a ed, 2006.Brasil. Ministério da Ciência e Tecnologia. FINEP. Chamada Públi-ca MCT/FINEP/SUBVENÇÃO ECONÔMICA À INOVAÇÃO – 01/2006.Brasil. MCT. MS. Carta convite – Inovação em produtos terapêuticos e diagnósticos 08/2006.

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A proteção à saúde na Constituição de 1988: a problemática do regime constitucional aplicável às políticas de saúde pública no BrasilRoger Stiefelmann Leal*

Nesse particular, a Constituição não se limita a enunciar a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196). Impõe como finalidades das políticas sociais e econômicas (a) a redução do risco de doença e de outros agravos, bem como assim (b) o acesso universal e igualitário das ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. Determina, de outra parte, que as ações e serviços públicos de saúde devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, conformando um sistema único (art. 198). Esse sistema único, a seu turno, deve orientar-se, ainda segundo a Constituição, por diretrizes específicas, como (a) a descentralização, com direção única em cada esfera de governo, (b) o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais, e (c) a participação da comunidade. O texto constitucional lista, também, algumas atribuições a serem exer-cidas pelo sistema único (art. 200). Assim, cabe-lhe, entre outras tarefas, ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde, incrementar em sua área o desenvolvimento científico e tecnológico, assim como fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano.

Ainda na área da saúde, a Constituição normatiza, além do emprego de agentes comunitários de saúde e de combate às endemias (§§ 4º a 6º do art. 198), a participação de instituições privadas na prestação do serviço (art. 199), conferindo-lhe caráter meramente complementar no âmbito do sistema único. Ademais, veda a participação direta e indireta de capital es-trangeiro na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei.

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Em suma, o regime constitucional que disciplina a proteção e a pro-moção da saúde revela-se claramente analítico e detalhado. Impõe di-versos parâmetros e limitações às políticas públicas na área de saúde, definindo, entre outras questões, sua atuação mediante sistema único, hierarquizado e regionalizado, bem como restrições à participação da iniciativa privada .

Essa específica sistemática, que, em linhas gerais, se reproduz em outros setores, encontra fundamento em determinadas categorias cons-titucionais. A influência de tais categorias ou modelos, por sua vez, im-plica determinados efeitos concretos, na medida em que a Constituição acaba por apontar as linhas mestras da política de saúde pública no país, de observância obrigatória a governantes e legisladores. O presente estu-do tem por objetivo identificar os modelos teórico-constitucionais que inspiraram o regime instituído pela Constituição de 1988, bem como avaliar seus reflexos práticos, notadamente em relação à sua adequação aos valores básicos da democracia e do pluralismo político.

Ampliação do “campo” constitucional e a Constituição de 1988

A Constituição de 1988 evidencia traços característicos que denotam sua filiação à tendência contemporânea do constitucionalismo, inaugurada após a 1ª Guerra Mundial, marcada pela redefinição do papel e do âm-bito material dos textos constitucionais. Nesse sentido, as Constituições ditas “modernas” deixaram de se restringir à disciplina do político, de modo a alcançar também o econômico e o social. Imprimiu-se signifi-cativo alargamento do espectro material da Constituição, que, em boa medida, encontra explicação na expressão e representatividade de novas correntes políticas nas esferas de poder, geradas a partir da introdução do sufrágio universal. É o que se denomina de ampliação do “campo” constitucional .

Essa tendência implica o abandono de um figurino constitucional voltado eminentemente à disciplina da organização política do Estado, que se limita a aceitar, sem interferência, o modelo econômico-social praticado no mundo real. Trata-se das chamadas Constituições estatu-tárias . O perfil contemporâneo teria como característica a inclusão no

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corpo da Constituição de comandos normativos que instaurem – a partir da definição de diretrizes, metas e programas – uma nova ordem econô-mica e social, transformadora do status quo mediante a imposição de um programa constitucional inovador e intervencionista .

Destaca-se, em face dessa tendência, a idéia ou modelo da Constitui-ção Dirigente. Teorizado por Gomes Canotilho , o dirigismo constitu-cional guarda estreita relação com o texto da Constituição portuguesa de 1976 e, certamente, exerceu forte influência sobre a elaboração e a inter-pretação da Constituição brasileira de 1988. Nesse sentido, muitos têm enfatizado o caráter dirigente do texto constitucional em vigor no país .

O dirigismo constitucional

A idéia de Constituição Dirigente, segundo Canotilho, tem como pres-suposto a consideração de que os problemas econômicos, sociais e cien-tíficos são, simultaneamente, problemas constitucionais suscetíveis de conformação e resolução através de decisões político-constitucionais vin-culativas das decisões tomadas pelo poder político . Assim, mediante a imposição de conjunto normativo definidor de metas, diretrizes, progra-mas e tarefas, teria o texto constitucional a missão de apontar soluções e linhas de ação política de modo a responder a demandas sociais e econô-micas (saúde, educação, lazer, trabalho, etc...), mobilizando governantes e legisladores a concretizar o programa ou plano constitucional.

O dirigismo constitucional, desse modo, caracteriza-se pela defini-ção, a nível constitucional, de tarefas econômicas e sociais do Estado, direcionando a atuação dos poderes políticos e a consecução de políticas públicas . Trata-se da instituição de um programa político-constitucional obrigatório que orienta a intervenção do Estado no domínio econômi-co e social. Cumpriria ao texto constitucional não apenas definir finali-dades e metas, mas também determinar os procedimentos e as formas de ação estatal. A regulamentação constitucional da planificação, no âmbito da competência e dos processos, tende, conforme Canotilho, a considerar-se indiscutida, sobretudo pelos problemas de repartição de competências entre órgãos constitucionais, e de participação das forças políticas e sociais necessariamente comprometidas com o plano .

3.

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Evidentemente, decorre do modelo dirigente a vinculação à pro-gramação constitucional do legislador e dos governantes eleitos demo-craticamente. O plano de governo passa a ser um programa dentro do programa constitucional e não atividade de forças políticas, livremente exercida num quadro constitucional . Ou seja, a implementação de po-líticas públicas que recorram a objetivos, procedimentos e tarefas que confrontem com o programa constitucional incorrerá fatalmente em vício de inconstitucionalidade. De outra parte, a inércia ou o silêncio do legislador ante as imposições constitucionais programáticas também não deixa, nesse cenário, de configurar violação à Constituição. Impor-ta, segundo o dirigismo constitucional, em típica omissão inconstitucio-nal por inobservância do “dever de legislar” . A função primordial da Constituição Dirigente consiste, assim, em fornecer um impulso direti-vo material permanente e consagrar uma “exigência” de atuação .

As noções do constitucionalismo dirigente guardam – como se disse – estreita relação com o texto constitucional português de 1976. Trata-se do cenário jurídico-político sobre o qual foram erigidas tais idéias e formulações com o objetivo de compreender suas funcionalidade e racionalidade. Cuidava-se, em sua versão original, de texto normativo claramente inspirado em ideais de raiz socialista.

Já em seu preâmbulo, registrava que “a Assembléia Constituinte afirma a decisão do povo português de (...) abrir caminho para uma sociedade socialista”. Em seu art. 1º, estabeleceu que “Portugal é uma República so-berana (...) empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” . Estatuiu como objetivo da República Portuguesa “assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício de-mocrático do poder pelas classes trabalhadoras” (art. 2º). Consagrou, ade-mais, que “o desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano econômico, a apropriação coletiva dos principais meios de produção” (art. 10º). Definiu, ainda, em seu art. 80º, que “a organização econômico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de pro-dução socialistas, mediante a apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do po-der democrático das classes trabalhadoras”. Há muitos outros comandos normativos deste jaez que poderiam ser mencionados. Seu caráter marca-damente ideológico e revolucionário permite vislumbrar a adequação do

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dirigismo constitucional à Constituição portuguesa de 1976. Cuidava-se, na verdade, de imprimir ao texto constitucional imposições de direciona-mento político no sentido de determinar a transição ao socialismo .

As Revisões Constitucionais de 1982 e 1989, porém, eliminaram as principais referências constitucionais à consecução de ideais socialistas-marxistas . Sob este prisma, o próprio Canotilho tem asseverado a morte da Constituição Dirigente .

Dirigismo constitucional e a Constituição de 1988

É inegável a influência exercida pelo constitucionalismo dirigente sobre a Constituição brasileira de 1988. Cumpre sublinhar que o texto consti-tucional pátrio não assumiu os pressupostos e condicionamentos ideoló-gicos subjacentes à Constituição de Portugal, em sua versão original. No entanto, contemplou amplo conjunto normativo programático de modo a impor objetivos, diretrizes e tarefas ao Estado e à sociedade, sobretudo nos Títulos referentes à Ordem Econômica e à Ordem Social .

Nesse sentido, a Constituição de 1988 direciona programas econô-micos e sociais, em vários setores, mediante a fixação de determinadas linhas de atuação, restringindo a liberdade de conformação do legisla-dor e do governo na formulação e concretização de políticas públicas. O eventual descumprimento de tais imposições, seja em virtude da adoção de formas alternativas de atuação, seja em face da inércia dos poderes políticos, importará em vício de inconstitucionalidade.

Aqui, é possível identificar outro ponto que revela a inspiração diri-gente da Constituição de 1988. O art. 103, § 2º, do texto constitucional – a exemplo do art. 283º da Constituição portuguesa – reservou disciplina ao controle abstrato de inconstitucionalidade por omissão para tornar efeti-va norma constitucional . Observou também o modelo português quanto aos efeitos das decisões a serem proferidas em tal modalidade de ação: ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias. E foi além. Instituiu, ainda, a figura do mandado de injunção (art. 5º, lxxi), mecanismo sui generis de controle subjetivo da omissão inconsti-tucional, cabível em caso de falta de norma regulamentadora que obste o exercício de determinados direitos e prerrogativas constitucionais.

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A Constituição de 1988, em determinadas áreas, incluiu outros dis-positivos no sentido de reforçar a programação político-constitucional. Com a finalidade de assegurar a consecução de finalidades e diretrizes constitucionais – que demandam notoriamente recursos físicos, huma-nos e financeiros –, foram reservadas receitas orçamentárias para uso específico em tais setores . Este é o caso do limite mínimo de recursos a serem aplicados, segundo o art. 212 da Constituição, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A mesma orientação “garantista” influen-ciou o constituinte derivado a introduzir, por meio da Emenda Consti-tucional nº 29/2000, o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 198 do texto consti-tucional, que determina a todas as unidades da federação a destinação de recursos mínimos a ações e serviços públicos de saúde, conforme os percentuais que prescreve. O propósito de tais imposições consiste justamente em responder à falta de recursos que justifica, em boa me-dida, a execução insatisfatória das metas e tarefas estabelecidas no texto constitucional.

Dirigismo constitucional e proteção à saúde

Do exame das disposições constitucionais voltadas à disciplina da pro-teção à saúde, particularmente dos arts. 196 a 200, é possível constatar clara influência do constitucionalismo dirigente. Como se viu, o texto da Constituição de 1988 não se restringe a enunciar a proteção à saúde como finalidade do Estado brasileiro – ainda que mediante a máxima “direito de todos e dever do Estado”. Exige que as ações e serviços públi-cos de saúde integrem uma rede regionalizada e integrada e constituam um sistema único (art. 198). Este sistema único deve observar algumas diretrizes básicas, como a descentralização, o atendimento integral e a participação da comunidade. De outra parte, estabelece limitações ao envolvimento da iniciativa privada no âmbito dos serviços de saúde (art. 199). Nesse ponto, (a) restringe a participação de empresas e capital es-trangeiro nos serviços de assistência à saúde, (b) determina o caráter complementar das instituições privadas de saúde no âmbito do sistema único, bem como (c) veda a destinação de recursos públicos a institui-ções particulares com fins lucrativos.

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Ou seja, o texto constitucional define as diretrizes básicas do modelo administrativo de prestação dos serviços públicos na área da saúde. Im-põe, além de objetivos, esquema de articulação dos setores público e pri-vado, bem como das diversas unidades da federação, mediante a integra-ção em sistema único, organizado de forma regionalizada e hierárquica.

Especificamente em relação ao direito à saúde, é visível a influência exercida pelo direito constitucional português, principalmente do texto que passou a vigorar a partir da Revisão de 1982 (contemporâneo ao perí-odo constituinte brasileiro). Nos termos do art. 64º, estabelecia a Consti-tuição lusitana que o direito à proteção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito. Atribuiu ao Estado, entre outras tarefas, (a) a garantia do acesso de todos os ci-dadãos, independentemente da sua condição econômica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, (b) a disciplina e o controle das formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, assim como (c) a disciplina e o con-trole da produção, da comercialização e do uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico. Determinou, ainda, que o serviço nacional de saúde tem gestão descen-tralizada e participada.

Não há como negar, neste caso, a nítida inspiração do sistema único requerido pelo art. 198 do texto constitucional brasileiro em face do siste-ma nacional de saúde referido pela Constituição portuguesa. Enquanto o sistema nacional português deve ter gestão descentralizada e participa-da (art. 64º, 4), o sistema único brasileiro deve observar as diretrizes de descentralização e participação da comunidade (art. 198, I e III). O texto constitucional luso, por sua vez, confere ao Estado a tarefa de garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados da medicina preventiva, cura-tiva e de reabilitação (art. 64º, 3, “a”), ao passo que a Constituição bra-sileira impõe, como diretriz do sistema único, o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (art. 198, ii).

Outro ponto comum – que revela a influência do texto constitucional português – encontra-se na definição da tarefa de controle da produção, comercialização e uso de produtos químicos, biológicos e farmacêuti-cos. A Constituição de Portugal confere tal encargo ao Estado (art. 64º,

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3, “e”), e a do Brasil reserva esta função ao sistema único de saúde (art. 200, i e vii), que, na prática, é administrado pelo próprio Estado .

Em relação à participação da iniciativa privada, o texto constitucio-nal português mostra-se mais tímido que o brasileiro. A Constituição lusitana limita-se a estabelecer a disciplina e o controle das formas em-presariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde como funções do Estado. Já a Constituição brasileira impõe ve-dações e restrições ao envolvimento do setor privado no âmbito da pro-teção à saúde, especialmente em relação à sua participação no sistema único, bem assim ao envolvimento de empresas e capital estrangeiro.

Limitações constitucionais à formulação e execução de políticas pú-blicas de proteção e promoção da saúde

A positivação no texto constitucional de tais imposições de caráter diri-gente – metas, diretrizes, tarefas e programações –, além de determinar a atuação dos poderes públicos no sentido do plano político-constitucional, resulta – por certo – na exclusão de propostas e programas alternativos de realização do direito à saúde. Ou seja, no caso da Constituição de 1988, as ações e serviços públicos de saúde devem necessariamente integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, compondo um sistema único. A substituição desse sistema único por novo regime político-administrativo de prestação de serviços de saúde que não configure rede regionalizada e hierarquizada, incorrerá em vício de inconstitucionalidade, mesmo que seja mais eficiente no atendimento das demandas da população.

Em julgado emblemático, o Tribunal Constitucional de Portugal, ainda em 1984, declarou a inconstitucionalidade de preceito legal que determinava a revogação da lei que instituía o sistema nacional de saú-de. Ficou assentado, na oportunidade, que o serviço nacional de saúde deve considerar-se como serviço público obrigatório de ativação neces-sária e de existência irreversível .

A imposição do sistema único também já determinou, na experiência constitucional brasileira, a inconstitucionalidade de diplomas legais que estatuíam políticas alternativas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Fe-

6.

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deral examinou, em sede de controle abstrato de normas, a constitucio-nalidade de lei complementar do Estado de Rondônia, que estabelecia repasse aos Municípios de 25% dos recursos mínimos próprios que, nos termos do art. 198, o Estado deve aplicar em ações e serviços públicos de saúde . Interpretando o art. 198, § 2º, I, do texto constitucional, con-siderou o Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo, inequívoco que a previsão constitucional é de uma única lei complementar que, por ser única e disciplinar a participação da União, dos Estados e dos Municípios no financiamento do sistema único de saúde, só pode ser de competência federal . Ou seja, o regime constitucional do sistema único determina necessariamente que a divisão, entre as unidades da fe-deração, dos recursos para o custeio de ações e serviços públicos na área deve ser disciplinada em lei complementar federal, ficando impedido o Estado-membro de estabelecer sua própria política, ainda que assessó-ria, de financiamento da saúde pública.

Cumpre, desse modo, perceber as limitações que se impõem aos go-vernos e, por conseguinte, aos programas político-partidários. Eventuais propostas que tenham por objetivo modificar o modelo de atuação pú-blica no âmbito da saúde encontrarão óbice no texto constitucional. Sig-nifica dizer que apenas mediante reforma do texto constitucional será possível empreender inovações na sistemática de prestação dos serviços de saúde pública. Ainda que a Constituição assegure alguma liberdade de conformação ao legislador, certamente descarta novas proposições e idéias que – fora do figurino do sistema único – possam transformar o setor de saúde pública, seja barateando custos, seja tornando seu atendi-mento mais eficiente e abrangente.

A vedação a outras fórmulas e modelos de prestação de serviços pú-blicos que decorre do dirigismo constitucional sugere, nessa linha, ex-pressivo tensionamento entre Constituição e pluralismo político. A esse propósito, tem Gomes Canotilho sublinhado esta contraposição:

Poucos hoje discutem – e isso, sim, coloca alguma tensão – a questão de saber se os esquemas sociais, os esquemas programáticos que deline-amos numa Constituição e em que acreditamos em certa altura devem ou não ser positivados numa Constituição.

Vamos dar exemplos concretos: consideramos ou não como um esque-ma razoável, progressista, um esquema indispensável a qualquer comu-

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nidade, a organização e estruturação de um serviço nacional de saúde? Isto está na Constituição. Despertam agora outras políticas que podem realizar o direito à saúde. Dir-se-á: com a criação de um serviço nacional de saúde, está-se a apontar apenas para uma política de saúde, limitando-se o legislador democrático. Seria preferível fazer de outro modo?

Na Constituição garante-se o acesso aos graus mais elevados de ensi-no, em termos tendencialmente gratuitos. Mas pode haver quem diga: hoje a vida é muito mais complicada e a gratuidade do ensino superior público acaba por ser injusta, porque favorece as classes mais privilegia-das. Não deveria deixar-se isto fora da Constituição e deixar o legislador democrático modelar, digamos assim, o acesso ao ensino superior?

Na Constituição prevê-se um esquema de segurança social unificado. Acreditávamos nesse esquema, mas hoje há outros esquemas, privados, que alguns consideram mais rentáveis e mais eficientes, que podem con-duzir aos mesmos objetivos de defesa de uma segurança social mais ou menos sólida. Por isso mesmo, pergunta-se: deveria ter-se cristalizado na Constituição essa política que se traduz apenas na existência de um ser-viço público de segurança social, limitando o legislador democrático?

Ora bem. O problema que efetivamente se coloca é o de saber se devemos cristalizar políticas na Constituição ou se devemos ter abertura para várias políticas possíveis. Hoje penso que o momento de maior ten-são é este. Tudo isso tem sido criticado em Portugal: diz-se que as políticas públicas devem ser abertas, porque as políticas públicas hoje são plurais, devem responder aos programas políticos dos vários governos possíveis .

Ainda que mantenha seu ponto de vista favorável às imposições subs-tantivas em matéria de políticas públicas na Constituição , Canotilho re-gistra a dessintonia entre ordem constitucional e pluralismo como um dos fatores determinantes da anunciada crise do constitucionalismo dirigente .

O ponto central do debate, tomando como base o regime constitucio-nal das políticas de proteção à saúde, é definir se a organização mediante sistema único, hierarquizado e regionalizado, deve ser objeto de decisão política por parte do legislador e dos governantes ou deve ser obrigatoria-mente observada por qualquer política de saúde pública? A participação meramente complementar da iniciativa privada no âmbito do sistema úni-co constitui imposição que não deve estar ao alcance dos poderes públicos ou temática que pode ser reprogramada na esfera da legislação ordinária?

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A opção pela constitucionalização de tais diretrizes implica necessa-riamente a sua observância por qualquer grupo ou partido que assuma o governo, excluindo, por conseguinte, políticas públicas contrastantes, ainda que menos onerosas e mais eficazes. A rigor, a adequação des-te conjunto normativo-programático constitui, em face do seu caráter constitucional, questão que refoge ao debate político ordinário. A dis-cussão sobre a mudança destas imposições somente é viável em face do custoso processo de reforma da Constituição .

A sujeição dos parâmetros normativos das políticas de saúde pública à decisão do legislador democrático, por outro lado, permite que grupos ou partidos possam submeter ao eleitorado propostas diferentes de atu-ação no setor. A sistemática de prestação de serviços públicos de saúde passa a ser tema do debate político ordinário, permitindo que o processo eleitoral possa sufragar o conjunto de propostas que o povo entenda mais adequado. E, caso tais propostas não provoquem os efeitos pretendidos, tem-se a oportunidade de corrigir seus rumos, ou mesmo, mudar de po-lítica. Pluralizam-se, assim, os instrumentos de realização dos chamados direitos sociais, como convém a um Estado prestacional .

Pluralismo político, Constituição e reformas constitucionais

É certo que a disciplina normativa de caráter dirigente não chega a res-tringir a atuação do Estado a apenas uma linha política. Como se dis-se, resta, em geral, alguma margem de liberdade de conformação ao legislador . No caso da saúde, a estruturação administrativa do sistema único e o seu funcionamento são definidos, em boa medida, pela legis-lação, constituindo objeto do debate político ordinário entre as diversas correntes partidárias. Contudo, deve o legislador observar as diretrizes, exigências e tarefas estabelecidas no âmbito da Constituição, tais como a descentralização, a participação da comunidade e a participação me-ramente complementar da iniciativa privada.

No entanto, o conjunto normativo-constitucional de direcionamento político logicamente exclui alternativas e proposições partidário-progra-máticas de consecução dos fins e objetivos do Estado . Ficam excluídos, no âmbito da saúde, modelos de saúde pública (a) que não se organi-

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zem em rede hierarquizada e regionalizada conformando um sistema único, (b) que determinem a preponderância da iniciativa privada, ou (c) que eliminem barreiras jurídicas à participação do capital externo. Tais opções não podem sequer ser ventiladas pelo legislador ordinário, ou cogitadas em planos de governo, pois o texto constitucional impõe como premissa do jogo político diretriz programática diversa. Ou seja, o embate partidário travado, seja em ambiente parlamentar, seja em face de processo eleitoral, enfrenta restrições ideológicas de estatura consti-tucional. Estreita-se, ao final, o debate sobre a melhor forma de atuação do Estado na promoção e proteção da saúde pública.

Sob esta perspectiva, não há como concordar com a idéia de que o programa constitucional não tolhe a liberdade de conformação do legis-lador ou a discricionariedade do governo, nem impede a renovação da direção política e a confrontação partidária . O dirigismo constitucional importa – e o exemplo da saúde na Constituição de 1988 é elucidati-vo nesse sentido – em descartar alternativas político-programáticas que, eleitas democraticamente, poderiam também responder – muitas vezes com vantagens – às demandas e aos objetivos sociais do Estado . Nesse sentido, elimina do debate político ordinário vários aspectos estruturan-tes da formulação e consecução de políticas públicas. Impõe-se a gover-nos liberais, social-democratas, marxistas e budistas estrutura de saúde pública em que a atuação do Estado deve ser obrigatoriamente exercida mediante sistema único, hierarquizado e regionalizado, em que a parti-cipação da iniciativa privada é apenas complementar e o capital externo é extremamente limitado.

A experiência portuguesa, assinala Cardoso da Costa, revela que a vertente ideológico-programática da Constituição, não correspondendo, no seu radicalismo, a um sentimento comunitário generalizado e não dispondo de suporte consistente na opinião pública, se traduzia num condicionamento bloqueador da plena abertura do processo político (à concorrência entre programas políticos e de governo diferenciados e al-ternativos, suscetíveis de serem adotados em função simplesmente da regra da maioria) . Muitas dessas diretrizes “bloqueadoras” foram objeto das Revisões Constitucionais que se sucederam, notadamente a de 1989. Nesta, as alterações de maior relevo justamente traduziram-se na elimi-nação de diretrizes ou impedimento constitucionais ou na abertura de

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novas opções de política econômica ao lado das originárias . Ou seja, teve como decorrência o abandono de alguns dos sinais originários, de-volvendo essas matérias para o campo das opções políticas e para o livre jogo das maiorias parlamentares . Essa abertura do texto constitucional português alcançou – como se sabe – as imposições constitucionais mar-cadamente socialistas, mas manteve muitas disposições programáticas de natureza intervencionista, a exemplo daquelas destinadas à disciplina do direito à saúde.

Por sua vez, a prática constitucional brasileira também evidencia o necessário uso de instrumentos de reforma da Constituição para elimi-nar ou abrandar imposições de cunho normativo-programático. O nú-mero e o conteúdo das Emendas Constitucionais editadas após 1988 denunciam essa orientação. Ampliaram-se as alternativas de políticas públicas no âmbito de vários setores, como a prestação de serviços de gás canalizado (Emenda nº 5/95), a exploração de recursos minerais e potenciais de energia hidráulica (Emenda nº 6/95), a navegação de ca-botagem e interior (Emenda nº 7/95), os serviços de telefonia e teleco-municação (Emenda nº 8/95), as atividades relacionadas ao petróleo e gás natural (Emenda nº 9/95), o ensino médio (Emenda nº 14/96), bem como o sistema financeiro nacional (Emenda nº 40/2003). Em outras oportunidades, porém, novas imposições dirigentes foram introduzidas à Constituição, redirecionando politicamente a atuação do Estado em outras áreas, notadamente a educação básica (Emenda nº 53), a saúde pública (Emendas nº 29/2000 e nº 51/2006) e o desenvolvimento cultural (Emenda nº 48/2005).

Ou seja, as limitações normativo-programáticas inspiradas no cons-titucionalismo dirigente resultaram, tanto em Portugal como no Brasil, em iniciativas reformistas no sentido de viabilizar plataformas políticas alternativas. No caso brasileiro, estas reformas assumiram, às vezes, perfil pluralista, ampliando as opções de formulação e consecução de políti-cas públicas. No entanto, em outras ocasiões, meramente substituiu-se o programa constitucional em vigor por outro, ou mesmo agregou-lhe no-vos elementos de direcionamento político. Significa dizer que os planos de governo dos grupos políticos que chegaram ao poder – no período pós 88 – acabaram por contemplar, em face do dirigismo constitucio-nal, proposições de mudança da Constituição como pressuposto para

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sua efetiva implementação. E, em muitas oportunidades, transitou-se de um governo das leis para um governo das Emendas Constitucionais , fazendo introduzir na Constituição novos conjuntos normativo-progra-máticos determinantes do ideário político do governo do dia.

Conclusão

O regime constitucional de proteção e promoção da saúde contempla – como se viu – imposições normativo-programáticas que direcionam a atuação do Estado, tornando obrigatória a adoção de determinado mo-delo – no caso, intervencionista – de política social para o setor. Tem como decorrência lógica a limitação das alternativas político-adminis-trativas a serem implementadas na área da saúde, reduzindo o debate político ordinário sobre o tema. Seu efeito negativo em face da idéia de pluralismo político é manifesto. Afinal, como ensina Peter Schneider, a qualidade de uma Constituição se mede em função da suficiência do espaço que deixa às forças políticas que configuram o futuro de um povo para que possam realizar seus objetivos .

Eventuais mudanças do perfil da política de saúde no país, a exemplo de inúmeros outros setores, acabam por exigir reformas constitucionais. Sua finalidade consiste basicamente em (a) abrandar a programação constitucional, admitindo novos modelos e esquemas de atuação na área da saúde pública, ou (b) redirecionar a atuação do Estado, me-diante novo conjunto normativo de caráter dirigente. Até o momento, as reformas constitucionais levadas a efeito no setor de saúde têm, em regra, estabelecido novos direcionamentos constitucionais, reduzindo ainda mais o debate sobre a formulação de políticas públicas especifica-mente voltadas para esta área. Enquadram-se neste figurino as Emendas Constitucionais nº 29/2000 e nº 51/2006, que acresceram ao texto consti-tucional diretrizes sobre (a) a aplicação de recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde e (b) a contratação de agentes comunitários de saúde e de agentes de combate a endemias.

A ampliação do debate e, por conseguinte, das alternativas em matéria de política de saúde pública enseja a maximização da atuação do Estado no setor, permitindo que se instaurem novos modelos e esquemas me-

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nos custosos e mais eficientes. As mudanças e transformações nas relações sociais, políticas e econômicas geram, nos dias de hoje, novas técnicas e instrumentos de atuação pública, bem como a renovação de outros tidos como ultrapassados. A Constituição, nesse sentido, deve ser aberta e elásti-ca, de modo a admitir a evolução e a legitimação das políticas públicas .

É imperativo redefinir o papel da Constituição na questão da saú-de pública. A atenuação do seu conteúdo normativo-programático de modo a admitir novas fórmulas de atuação do Estado, inclusive com a participação mais efetiva da iniciativa privada e do capital estrangeiro, qualificaria o debate político ordinário nesta área. Permitiria, ademais, que proposições inovadoras fossem submetidas ao crivo popular no in-tuito de dotar o Estado brasileiro de mecanismos mais eficazes de pro-teção e promoção da saúde. O processo democrático apontaria a satisfa-ção do eleitorado com o modelo de sistema único – mediante a eleição daqueles que o defendem – ou a sua opção por sistemática diversa – a ser sufragada com base em outros programas partidários.

Avilta a idéia de democracia pluralista a necessidade de reformar a Constituição simplesmente para implementar mecanismos de presta-ção de serviços públicos de saúde que destoam do modelo de sistema único com restrições à iniciativa privada e ao capital externo. Trata-se de temática que caberia ser disciplinada em sede de legislação ordinária, pois não exibe dignidade constitucional.

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Notas

Nessa linha, Adriana Zawada Melo qualifica o regime constitucional voltado à proteção da saúde como fortemente estatizante (cf. “Desafios da implementação do direito fundamental à saúde no Brasil”. Revista Mestrado em Direito. Osasco, ano 6, nº 2, 2006, p. 75)Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Estado de Direito e Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, , 1999, p. 86; sobre o tema ver, ainda, Roger Stiefelmann Leal. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 78; José Afonso da Silva. Curso de direito consti-tucional positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros., 2004, p. 43.Cf. Eros Roberto Grau – A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 8ª ed., 2003, p. 66.Eros Roberto Grau designa como diretivas ou programáticas tais Cons-tituições (cf. op. cit., p. 68).Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente e a vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 1994.Ver, entre outros, Eros Roberto Grau – op. cit., p. 153; Ingo Wolfgang Sarlet – A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 4ª ed., 2004, p. 76; Gilberto Bercovici – “A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, nº 142, 1999, p. 36; José Luiz Bolzan de Morais – “O Brasil pós-1988: dilemas do/para o Estado Constitucional”. Constitucionalizando direitos: 15 anos da constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 111.Cf. J. J. Gomes Canotilho – “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006, p. 151.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., pp. 169 e segs.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., p. 171. Em traba-lho mais recente, Canotilho volta a afirmar que a idéia de Constituição Dirigente desempenha uma função de compreensão incontornável re-lativamente às tarefas do Estado (“Estado Social”, “Estado ecológico”, “Estado de saber”). Mas não só. Recortam-se, igualmente, os instrumen-tos (e os métodos!) para a prossecução destas tarefas (políticas públicas

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de ensino, trabalho, saúde, segurança social) (cf. “Brancosos”..., p. 138).Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., p. 470.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., pp. 331 e segs.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., p. 464.José Manuel Cardoso da Costa afirma ser escatológica tal finalidade (cf. “A evolução constitucional no quadro da Constituição da República Portuguesa de 1976”. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXX, 1994, p. 16).Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Curso de Direito Constitucio-nal. São Paulo: Saraiva, 33ª ed., 2007, p. 15.Ver a propósito José Manuel Cardoso da Costa – “A evolução...”, pp. 13 e segs. Sobre as alterações constitucionais promovidas pelas Revisões Constitucionais de 1982 e 1989, Ney Prado observa que a iniciativa do constituinte brasileiro de copiar os portugueses, sem atentar para a sua própria evolução, levou-nos a um estranho paradoxo: pusemos na nossa Constituição tudo o que os portugueses tiraram da deles (cf. “Atitudes diante da Constituição de 1988”. Lições de direito constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 152.Cf. J. J. Gomes Canotilho – “Brancosos”..., p. 156.Cf. Ney Prado – “Atitudes...”, p. 152; também Andreas J. Krell – Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, pp. 67-68.Cf. Caio Tácito – Temas de Direito Público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1º volume, 1997, p. 443; também Manoel Gonçal-ves Ferreira Filho – Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992, volume 2, pp. 230-231; José Afonso da Silva – Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.Cf. José Afonso da Silva – Curso..., p. 464.Tais disposições constitucionais podem servir, inclusive, de base para a introdução de políticas restritivas na área farmacêutica, tais como con-trole de preços e limitações à propriedade intelectual. Todavia, a Cons-tituição contempla, ainda, outras diretrizes e preceitos que apontam em sentido contrário, notadamente o princípio da livre iniciativa (art. 170, parágrafo único). Em casos como esse, apenas a ponderação sistemática dos diversos dispositivos constitucionais permitirá um juízo mais apura-

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do sobre sua legitimidade jurídica.Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros – Constituição portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra Editora, Tomo I, 2005, p. 653; também J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa ano-tada. Coimbra: Coimbra Editora, vol. 1, 4ª edição, 2007, p. 826.Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição..., p. 826.Cf. ADIn MC nº 2.894-4/RO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, in DJU de 17.10.2003.Cf. voto proferido na ADIn MC nº 2.894-4/RO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, in DJU de 17.10.2003.Cf. J. J. Gomes Canotilho – Canotilho e a Constituição Dirigente (co-ord. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 19-20.Cf. J. J. Gomes Canotilho – Canotilho ..., p. 20.Cf. J. J. Gomes Canotilho – “Brancosos”..., pp. 124-125.Assevera Dieter Grimm, nesse sentido, que, em face de tal cenário cons-titucional, não há mais mudança política sem uma emenda constitucio-nal anterior e mesmo mudanças de detalhes necessitam do dispendioso procedimento reservado, por bons motivos, a alterações nos princípios (cf. Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 121).Cf. Peter Häberle – Pluralismo y Constitución: estúdios de Teoria Cons-titucional de la sociedad abierta. Madrid: Tecnos, 2002, pp. 174 e segs.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., p. 463; também Gilberto Bercovici – “A problemática da constituição...”, p. 40.Cf. J. J. Gomes Canotilho – A constituição dirigente..., pp. 470-471; tam-bém Gustavo Zagrebelsky – Manuale di diritto costituzionale. Torino: UTET, volume primo, 2000, p. 111. A esse propósito, Zagrebelsky asseve-ra que através das normas jurídicas, e particularmente aquelas de progra-ma, se reduz o espaço da controvérsia preliminar ao confronto político, estabelecendo-se um quadro de orientação colocada preliminarmente fora de discussão. Segundo o autor, as prescrições constitucionais pro-gramáticas, mesmo não diretamente aplicáveis, desenvolvem este papel de redução (cf. op. cit., p.111).Cf. Gilberto Bercovici – “A problemática da constituição...”, p. 40.Segundo a análise que faz Dieter Grimm sobre o tema, quanto mais a Constituição se distanciar do essencial e for preenchida com determina-

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ções detalhadas, mais a eleição perde em importância (cf. op. cit., p 122).Cf. José Manuel Cardoso da Costa – “A evolução...”, pp. 10-11.Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição..., p. 33.Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição..., p. 33.Adverte Hesse, nessa linha, que “amarrar a Constituição” em face de quaisquer interesses particulares ou conjunturais faz, pelo contrário, ine-vitáveis as modificações freqüentes da Constituição, com a conseguinte depreciação de sua força normativa (cf. Escritos de Derecho Constitu-cional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 67).Cf. Hans Peter Schneider – Democracia y Constitucion. Madrid: Cen-tro de Estúdios Constitucionales, 1991, p. 50.Cf. Peter Häberle – op. cit., pp. 185-186. Canotilho aponta tensão exis-tente entre as teorias da “constituição aberta” e da constituição dirigente. Para ele, a teoria da “constituição aberta” requer parcimônia da progra-mática ou até sua eliminação como condição necessária da democracia, do debate político, do pluralismo. Já o dirigismo constitucional implica a transparência programática de uma lei constitucional como condição necessária para evitar o “existencialismo político”, o “monarquismo constitucional” e o “Estado de Direito Formal” (cf. A constituição diri-gente..., p. 465).

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Retomada da Reforma Sanitária para a formulação de políticas públicasMarcos Bosi Ferraz*

O termo “Reforma Sanitária” foi usado pela primeira vez no país em função da reforma sanitária italiana. A expressão ficou esquecida por um tempo até ser recuperada nos debates prévios à viii Conferência Nacio-nal de Saúde, em 1986, quando foi usada para se referir ao conjunto de idéias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde.

Originário dos grupos de profissionais da saúde que conformavam uma oposição às propostas para o setor implementadas pelos governos militares, o chamado “movimento sanitário” cresceu e ganhou consis-tência, ao mesmo tempo em que avançou na produção de conhecimen-to na crítica ao modelo de política de saúde vigente e na denúncia da situação sanitária da população.

As propostas do “movimento sanitário” não abarcavam apenas o sis-tema, mas todo o setor saúde, introduzindo uma nova idéia, na qual o resultado final era entendido como a melhoria das condições de vida da população. Sua importância política, antes negada e combatida, é reconhecida, e suas bandeiras conquistam espaço de expressão com o processo de “abertura” democrática e com a flagrante falência do siste-ma e piora das condições de vida da população.

No Brasil, o Movimento da Reforma Sanitária propõe que a saúde seja um direito do cidadão, um dever do Estado e que seja universal o acesso a todos os bens e serviços que a promovam e recuperem. Isso quer dizer que o cidadão brasileiro é o seu foco central, e não o próprio sistema.

Desse pensamento, resultaram algumas das principais diretrizes do

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Sistema Único de Saúde (sus, criado com a Constituição de 1988), como a universalidade do acesso, integralidade das ações, igualdade de acesso, descentralização e outra questão muito importante que diz res-peito à gestão participativa.

Dentre esses princípios que orientam o pensamento sanitarista, a gestão participativa conforma-se como um aspecto de bastante impor-tância a ser exercitado, haja vista que as questões relativas ao acesso e a oferta de serviços e produtos em saúde ao sistema de saúde têm de ser expressos pela sociedade e seus representantes muito bem informados. No tocante à saúde, existe uma infinidade de conhecimento disponível, mas também há uma parcimônia de recursos financeiros, que, assim, entravam o alcance do sistema de saúde.

O desafio de países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, é utilizar da forma mais adequada possível o conhecimento disponível na orientação de decisões em saúde. Com o processo de globalização, e gra-ças à tecnologia de comunicação e de informação, todas novas descober-tas e conhecimentos tidos como válidos e aplicáveis ao sistema de saúde (e até aqueles de qualidade questionável), se constituem em tentações de consumo de forma quase que imediata. O dilema que enfrentamos é como fazer escolhas que mais atendam nossas expectativas, ou seja, sa-tisfazer as tentações de consumo deste novo século, sendo que, quando comparados a países desenvolvidos, temos um investimento em saúde que corresponde ao que estes países investiam (como percentual do pib) na década de 1980. Os dilemas e desafios se acentuam ao considerar que temos um sistema de saúde com indicadores de saúde que corres-pondem ao que estes países desenvolvidos tinham na década de 1960 e 1970. Esses indicadores, entre os quais podemos citar mortalidade infan-til, mortalidade materna, expectativa de vida ao nascer e expectativa de vida aos 60 anos, refletem, de certa forma, a estrutura, os problemas e carências não só do sistema de saúde, mas de nossa sociedade como um todo. Um agravante nessa análise é o fato de que, ao mesmo tempo que temos o interesse e o dever de aliviar o sofrimento daqueles que sofrem de novas doenças e condições recém descobertas (graças ao tão desejado avanço do conhecimento), tais como a doença de Alzheimer, doença de Lyme, pré-diabetes, entre outras, temos ainda inúmeros problemas de saúde não resolvidos, quando há conhecimento disponível e evidências

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suficientes para minimizá-los ao extremo, como, por exemplo, diarréia na infância, tuberculose, doença de Hansen, entre tantos outros 1.

Considerando-se esse cenário, e reconhecendo-se que talvez hoje não haja como satisfazer a todas as necessidades e tentações de consumo no sistema de saúde com o recurso disponível (intrínseco ao momento de desenvolvimento sócio-econômico do país), é absolutamente crítico que um processo de decisão responsável e orientado a satisfazer primei-ramente o cidadão e a sociedade, seja não só considerado, mas urgen-temente implementado. Nesse processo, escolhas precisarão ser feitas e a participação da sociedade através de seus representantes é decisiva. Ressalta-se novamente, considerando-se o nosso sistema de saúde, a im-portância dos conselhos de saúde nesse processo, uma vez que priorida-des a serem escolhidas estão e devem ser norteadas pelas necessidades e preferências dos cidadãos que utilizarão o sistema de saúde.

Neste sentido, já que os recursos ainda são escassos e continuarão a ser para os próximos anos, a gestão e correta utilização dos mesmos é imprescindível.

Desta forma, é preciso urgentemente sanar o problema da inadequa-da gestão administrativa do recurso público direcionado à área de saúde. Assim sendo, três aspectos são basilares: primeiro, focalizar em progra-mas de gestão de saúde que tenham uma expectativa de médio e longo prazo; segundo, é preciso que a gestão pública esteja atenta às diferenças regionais, uma vez que é fundamental compreendê-las para a definição de necessidades e prioridades no atendimento à população, no que tan-ge à saúde; e por fim, o investimento em educação básica de qualidade, para que a população assuma o papel de interventor nessa questão.

O Brasil possui, em seu território, realidades sociais distintas, e cada um de seus habitantes deve ser representado nos seus direitos e ter espa-ço para apresentar as suas necessidades, vontades e preferências. Uma via que possibilita essa participação popular é a difusão dos Conselhos Municipais de Saúde, para que sejam atuantes e minimamente infor-mados.

Os Conselhos podem ser importantes instrumentos para fazer valer os direitos inerentes ao cidadão, rompendo com as tradicionais formas de gestão, possibilitando a ampliação dos espaços de decisão e ação do poder público, incentivando a constituição de esferas públicas demo-

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cráticas e sendo potenciais capacitadores e multiplicadores de sujeitos sociais para processos participativos mais amplos e de interlocução ética e política com o Estado. Por outro lado, considerando-se nossa cultura e estrutura política, tal iniciativa implicará em perda de um poder políti-co ainda centralizador, motivo este que em parte justifica a falência do processo de decisão e atual gestão dos poucos recursos. Em um país com dimensão continental como o nosso e com um sistema concebido para ter boa parte das decisões descentralizadas, embora haja a necessidade de políticas públicas unificadas, mantê-lo refém de uma vontade políti-ca arcaica não contribui para a evolução do mesmo.

Neste sentido, os limites do Movimento de Reforma Sanitária ga-nham mais visibilidade no momento da implementação do SUS, via Conselhos, pois a não-socialização e a absorção desse projeto no âmbito da sociedade, e mesmo dentro do aparato burocrático governamental, têm dificultado a sua realização. Faz-se necessário retomar o conceito da Reforma Sanitária de seus idos, para a formulação de políticas públicas dentro do sistema, sem burocratizá-lo.

O grande desafio para a gestão da área da saúde é, imaginando o campo da oposição ao modelo assistencial muito em voga hoje, con-seguir estabelecer um governo que tenha projeto de longo prazo e que não seja simplesmente um somatório de ministérios. Uma das iniciativas que se consolida como uma experiência de sucesso se caracteriza pela parceria com o setor privado, que é menos ineficiente do que o setor público, no intento de potencializar mudanças em prol de melhorias patentes. Todavia, o Estado, nas esferas federal, estadual e municipal, deve impor-se e manter-se como controlador, fiscalizador e definidor de políticas públicas de saúde. A saúde não deve ser discutida como políti-ca de um governo específico ou de um partido político, mas como uma função permanente do Estado.

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Notas

Ferraz mb. Reconciling 21st century temptations with 20th century re-sources and problemas. bmj 332:861, 2006.

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Biografia dos autores:

Gonzalo Vecina Neto é professor assistente da Faculdade de Saúde Pú-blica da usp.

Carlos Augusto Grabois Gadelha é Vice-presidente de Produção e Ino-vação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz.

Felipe Ohana é economista e consultor

Paulo Kramer é professor titular do Instituto de Ciência Política da unb.

Jacob Frenkel é professor do ie-ufjr, Instituto de Economia da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro.

Claudio Monteiro Considera é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (uff). Mário Ramos Ribeiro é professor da Faculdade de Economia da Univer-sidade Federal do Pará (ufpa). Samuel de Abreu Pessoa é professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (epge/fgv) e pesquisador do instituto Brasileiro de Economia (Ibre/fgv).

Moisés Goldbaum é professor-doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da usp.

Roger Stiefelmann Leal é Doutor em Direito do Estado pela usp, Pro-fessor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e mestrado do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

Marcos Bosi Ferraz é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde.

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Tipografia: Papel:

Impressão:

Electra & Helvetica Newe CondensedOffset 90g/m2

Ferrari Gráfica e EditoraOutono, 2008

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