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244 Hortic. bras., v. 26, n. 2, abr.-jun. 2008 D urante milênios o homem aprofundou seus conhecimentos empiricamente a fim de melhorar sua alimentação e tratar de suas enfermida- des, criando uma inter-relação entre o uso das plantas e sua evolução (Miguel & Miguel, 2000). Provavelmente a uti- lização das plantas como medicamento seja tão antiga quanto o próprio homem. Numerosas etapas marcaram a evolução da arte de curar, contudo torna-se difí- cil delimitá-las com exatidão, já que a medicina esteve por muito tempo asso- ciada a práticas mágicas, místicas e ritualísticas (Martins et al., 1995). Atual- mente, a Organização Mundial de Saú- de considera fundamental que se reali- SANTOS MRA; LIMA MR; FERREIRA MGR. 2008. Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia. Horticultura Brasileira 26: 244-250. Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia Maurício Reginaldo A dos Santos; Maria Railda de Lima; Maria das Graças R Ferreira Embrapa Rondônia, C. Postal 406, 78900-970 Porto Velho-RO; [email protected] zem investigações experimentais acer- ca das plantas utilizadas para fins medi- cinais e de seus princípios ativos, para garantir sua eficácia e segurança tera- pêutica (Santos, 2004). Paralelamente, se faz necessário o levantamento das espécies medicinais de cada região fitogeográfica do Brasil, como primei- ro passo para a adoção das plantas me- dicinais nos programas de atenção pri- mária à saúde, o que pode resultar em diminuição de custos e ampliação do número de beneficiados (Matos, 1997). Tradicionalmente, etnobotânicos de todo o mundo têm registrado plantas, seus usos por populações humanas e formas terapêuticas (no caso de plantas medici- nais). Esse tipo de procedimento propor- ciona o progresso dos estudos básicos e aplicados, fitoquímicos e farmacológicos, uma vez que fornece a matéria-prima aos pesquisadores de áreas afins e o conjunto de dados necessários para as análises pre- tendidas. Nesta perspectiva, reconhecer a importância das relações entre o homem e a natureza significa um avanço cognitivo, onde a ciência é utilizada para proteger o patrimônio cultural e a biodiversidade (Albuquerque, 2002). Na área da etnobotânica têm sido realizadas pesquisas com comunidades residentes nas regiões de florestas tro- picais, com o objetivo de avaliar os re- cursos vegetais utilizados por estas co- RESUMO A utilização de plantas medicinais reflete a realidade de parte da população brasileira, cujo limitado acesso aos programas de saúde pública levou ao desenvolvimento e conservação de um conheci- mento etnobotânico rico de informações. Porém, a sabedoria popu- lar carece de sistematização, para que possa ser devidamente utili- zada. O objetivo deste trabalho foi relatar o uso de plantas medici- nais no município de Ariquemes, em Rondônia, bem como avaliar os padrões sócio-econômicos dos entrevistados em relação à utili- zação da fitoterapia no seu cotidiano. Para coleta das informações etnobotânicas e etnossociais, foram aplicados questionários estruturados a 44 indivíduos escolhidos por possuírem prestígio junto à comunidade em relação ao conhecimento e uso de plantas medici- nais, identificando-se a finalidade, os órgãos e o modo de uso da planta medicinal. Além disso, foi identificada a espécie de cada planta utilizada. Procurou-se ainda correlacionar o conhecimento etnobotânico (inferido a partir do número de citações por indiví- duo), com a forma de aquisição dos conhecimentos, aspectos religio- sos, educacionais, região de origem, tempo de residência no local e gênero dos entrevistados. Identificaram-se 63 espécies de plantas medicinais em uso pela população, distribuídas em 38 famílias, com maior representatividade para a família Lamiaceae. A parte mais utilizada das plantas foram as folhas e o decocto foi o modo de pre- paro mais usual. Os estudos etnossociais permitiram inferir que os conhecimentos etnobotânicos da população estudada foram adqui- ridos principalmente por meio de livros e concentraram-se entre pes- soas do gênero masculino, de religiões evangélicas, com nível de escolaridade Fundamental, da 1ª à 4ª série, provenientes da região Sudeste; e do gênero masculino. O tempo de residência no municí- pio não afetou significativamente o conhecimento etnobotânico na população estudada. Palavras-chave: etnobotânica, fitoterapia, Amazônia. ABSTRACT Use of medicinal plants by the population of Ariquemes, in Rondônia State, Brazil The use of medicinal plants shows the reality of part of the Brazilian population whose limited access to the health public programs leads to the development and conservation of a rich ethnobotanic knowledge. However, the popular knowledge needs systematization for adequate utilization. The aim of this work was to study the use of medicinal plants in Ariquemes, Rondônia State, Brazil, and to evaluate the social and economic patterns in relation to the use of phytotherapy. To have access to ethnobotanic and ethnosocial data structured interviews were applied to 44 persons chosen for their prestige in the community in relation to the knowledge and use of medicinal plants, identifying therapeutic purpose, part of the plant used and methods of preparation. Moreover, the species of each used plant was identified. The ethnobotanic knowledge (estimated by the number of citations per informer) was correlated to the knowledge source, religious and educational aspects, region of origin, residence period in Ariquemes and sex of the informers. Sixty-three species of medicinal plants being used by the population were identified, distributed in thirty-eight families, the Lamiaceae being the most representative. The most used part and method of preparation were the leaf and decoction. Ethnosocial studies allowed to infer that the books were the major source of ethnobotanic knowledge; which concentrates in the masculine individuals; and evangelic people; with basic level (1 st to 4 th series); from the Southeast of Brazil. Residence period in Ariquemes did not affect the ethnobotanic knowledge. Keywords: ethnobotany, phytotherapy, Amazon. (Recebido para publicação em 9 de outubro de 2006; aceito em 3 de abril de 2008)

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Durante milênios o homemaprofundou seus conhecimentos

empiricamente a fim de melhorar suaalimentação e tratar de suas enfermida-des, criando uma inter-relação entre ouso das plantas e sua evolução (Miguel& Miguel, 2000). Provavelmente a uti-lização das plantas como medicamentoseja tão antiga quanto o próprio homem.Numerosas etapas marcaram a evoluçãoda arte de curar, contudo torna-se difí-cil delimitá-las com exatidão, já que amedicina esteve por muito tempo asso-ciada a práticas mágicas, místicas eritualísticas (Martins et al., 1995). Atual-mente, a Organização Mundial de Saú-de considera fundamental que se reali-

SANTOS MRA; LIMA MR; FERREIRA MGR. 2008. Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia. Horticultura Brasileira 26: 244-250.

Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em RondôniaMaurício Reginaldo A dos Santos; Maria Railda de Lima; Maria das Graças R FerreiraEmbrapa Rondônia, C. Postal 406, 78900-970 Porto Velho-RO; [email protected]

zem investigações experimentais acer-ca das plantas utilizadas para fins medi-cinais e de seus princípios ativos, paragarantir sua eficácia e segurança tera-pêutica (Santos, 2004). Paralelamente,se faz necessário o levantamento dasespécies medicinais de cada regiãofitogeográfica do Brasil, como primei-ro passo para a adoção das plantas me-dicinais nos programas de atenção pri-mária à saúde, o que pode resultar emdiminuição de custos e ampliação donúmero de beneficiados (Matos, 1997).

Tradicionalmente, etnobotânicos detodo o mundo têm registrado plantas, seususos por populações humanas e formasterapêuticas (no caso de plantas medici-

nais). Esse tipo de procedimento propor-ciona o progresso dos estudos básicos eaplicados, fitoquímicos e farmacológicos,uma vez que fornece a matéria-prima aospesquisadores de áreas afins e o conjuntode dados necessários para as análises pre-tendidas. Nesta perspectiva, reconhecer aimportância das relações entre o homeme a natureza significa um avançocognitivo, onde a ciência é utilizada paraproteger o patrimônio cultural e abiodiversidade (Albuquerque, 2002).

Na área da etnobotânica têm sidorealizadas pesquisas com comunidadesresidentes nas regiões de florestas tro-picais, com o objetivo de avaliar os re-cursos vegetais utilizados por estas co-

RESUMOA utilização de plantas medicinais reflete a realidade de parte da

população brasileira, cujo limitado acesso aos programas de saúdepública levou ao desenvolvimento e conservação de um conheci-mento etnobotânico rico de informações. Porém, a sabedoria popu-lar carece de sistematização, para que possa ser devidamente utili-zada. O objetivo deste trabalho foi relatar o uso de plantas medici-nais no município de Ariquemes, em Rondônia, bem como avaliaros padrões sócio-econômicos dos entrevistados em relação à utili-zação da fitoterapia no seu cotidiano. Para coleta das informaçõesetnobotânicas e etnossociais, foram aplicados questionáriosestruturados a 44 indivíduos escolhidos por possuírem prestígio juntoà comunidade em relação ao conhecimento e uso de plantas medici-nais, identificando-se a finalidade, os órgãos e o modo de uso daplanta medicinal. Além disso, foi identificada a espécie de cada plantautilizada. Procurou-se ainda correlacionar o conhecimentoetnobotânico (inferido a partir do número de citações por indiví-duo), com a forma de aquisição dos conhecimentos, aspectos religio-sos, educacionais, região de origem, tempo de residência no local egênero dos entrevistados. Identificaram-se 63 espécies de plantasmedicinais em uso pela população, distribuídas em 38 famílias, commaior representatividade para a família Lamiaceae. A parte maisutilizada das plantas foram as folhas e o decocto foi o modo de pre-paro mais usual. Os estudos etnossociais permitiram inferir que osconhecimentos etnobotânicos da população estudada foram adqui-ridos principalmente por meio de livros e concentraram-se entre pes-soas do gênero masculino, de religiões evangélicas, com nível deescolaridade Fundamental, da 1ª à 4ª série, provenientes da regiãoSudeste; e do gênero masculino. O tempo de residência no municí-pio não afetou significativamente o conhecimento etnobotânico napopulação estudada.

Palavras-chave: etnobotânica, fitoterapia, Amazônia.

ABSTRACTUse of medicinal plants by the population of Ariquemes, in

Rondônia State, Brazil

The use of medicinal plants shows the reality of part of theBrazilian population whose limited access to the health publicprograms leads to the development and conservation of a richethnobotanic knowledge. However, the popular knowledge needssystematization for adequate utilization. The aim of this work wasto study the use of medicinal plants in Ariquemes, Rondônia State,Brazil, and to evaluate the social and economic patterns in relationto the use of phytotherapy. To have access to ethnobotanic andethnosocial data structured interviews were applied to 44 personschosen for their prestige in the community in relation to theknowledge and use of medicinal plants, identifying therapeuticpurpose, part of the plant used and methods of preparation. Moreover,the species of each used plant was identified. The ethnobotanicknowledge (estimated by the number of citations per informer) wascorrelated to the knowledge source, religious and educational aspects,region of origin, residence period in Ariquemes and sex of theinformers. Sixty-three species of medicinal plants being used by thepopulation were identified, distributed in thirty-eight families, theLamiaceae being the most representative. The most used part andmethod of preparation were the leaf and decoction. Ethnosocialstudies allowed to infer that the books were the major source ofethnobotanic knowledge; which concentrates in the masculineindividuals; and evangelic people; with basic level (1st to 4th series);from the Southeast of Brazil. Residence period in Ariquemes didnot affect the ethnobotanic knowledge.

Keywords: ethnobotany, phytotherapy, Amazon.

(Recebido para publicação em 9 de outubro de 2006; aceito em 3 de abril de 2008)

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munidades e apontar propostas para seuuso sustentado, como forma de preservare recuperar esses ecossistemas (Silva &Andrade, 2005). O conhecimento tradicio-nal sobre o uso das plantas é vasto e, emmuitos casos, é o único recurso para trata-mento da saúde que as populações ruraisde países em desenvolvimento têm ao seualcance. Alguns autores propõem-se a es-timar o valor de uso das plantas com afinalidade de apontar as espécies e famí-lias de preferência da população humanano universo vegetal (Phillips & Gentry,1993). No Brasil, considerando a ampladiversidade de espécies vegetais, bemcomo a riqueza étnico-cultural, o uso po-pular de plantas medicinais é muito rele-vante. Por isso, os estudos etnobotânicossão fundamentais, uma vez que possibili-tam o resgate e a preservação dos conhe-cimentos populares das comunidades en-volvidas (Garlet & Irgang, 2001). Confor-me ressalta Albuquerque (2002), os infor-mantes devem ser tratados como especia-listas, pois são dotados de conhecimentose fenômenos que nos são desconhecidose que buscamos compreender.

A utilização de plantas medicinaiscomo alternativa terapêutica vem atin-gindo um público cada vez maior. Estecrescimento requer dos pesquisadores eestudiosos um maior empenho, no sen-tido de fornecer informações relativasao sistema produtivo dessas plantas epreparo dos medicamentos, pois nemsempre as normas que garantem a qua-lidade dos fitoterápicos são cumpridas(Castro & Ferreira, 2000). A vasta gamade informações sobre o uso de centenasde plantas como remédios, em todos oslugares do mundo, leva à necessidadede se desenvolver métodos que facili-tem a enorme tarefa de avaliar cientifi-camente o valor terapêutico de espéciesvegetais (Elisabetsky, 2001).

O objetivo deste trabalho foi relataro uso de plantas medicinais no municí-pio de Ariquemes, em Rondônia, con-tribuindo assim para auxiliar no resgatedo conhecimento tradicional. Procurou-se também estabelecer uma correlaçãoentre os padrões sócio-econômicos dosentrevistados e a utilização da fitoterapiacomo prática em seu cotidiano.

MATERIAL E MÉTODOS

A pesquisa de campo foi realizadano município de Ariquemes, em

Rondônia, localizado, de acordo com oZoneamento Sócio-Econômico-Ecoló-gico do Estado de Rondônia (ZSEE), nazona 01 (áreas de usos agropecuários,agroflorestais e florestais) (Millikan,1998). Conta atualmente com aproxima-damente 84 mil habitantes (projeçãoIBGE, 2005) e com uma área de4.706,70 km², localizando-se 198 km aoSul da capital Porto Velho. A economiado município está voltada para o setorprimário: agricultura, pecuária,extrativismo vegetal e mineral.

Para o levantamento dos dados fo-ram realizadas entrevistas de abril a de-zembro de 2005. O entrevistador em-pregou diálogos para direcionar a con-versa, baseando-se em questionários jáestruturados. Buscou-se dar mais ênfa-se aos dados etnobotânicos, como indi-cação terapêutica, parte da planta utili-zada nas preparações e modo de prepa-ro. Os 44 informantes foram escolhidospor possuírem prestígio junto à comu-nidade em relação ao conhecimento euso de plantas medicinais e foram en-trevistados individualmente, em suasresidências, nos dias laborais e finais desemana.

Foram obtidas médias, dividindo-seo número de citações (somatório do nú-mero de todas as citações de utilizaçõesde plantas com alguma finalidade tera-pêutica mencionadas pelos entrevista-dos) pelo número de entrevistados, emrelação aos fatores: forma de aquisiçãodos conhecimentos (pessoas conhecidas,livros, parentes e pastorais), religião(adventista, católico, evangélico, outrose sem religião), região de origem (Cen-tro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste eSul), nível de escolaridade (analfabetos,alfabetizados, Ensino Fundamental da1ª à 4ª série, Ensino Fundamental da 5ªà 8ª série, Ensino Médio e Ensino Su-perior), tempo de residência no local (até3 anos; de 4 a 6 anos; de 7 a 9 anos; de10 a 12 anos; de 13 a 15 anos; de 16 a18 anos; de 19 a 21 anos; de 22 a 24anos; de 25 a 27 anos; e de 28 a 30 anos),e gênero dos entrevistados. A utilizaçãodeste procedimento teve por objetivo aidentificação de como está distribuídoo conhecimento sobre fitoterápicos nes-ta população, em relação aos fatoresmencionados. Por exemplo, dentro dofator “nível de escolaridade”, para se

inferir sobre o conhecimentoetnobotânico dentro do grupo “analfa-betos” da população, dividiu-se o nú-mero de citações (utilizações de plantascom finalidade terapêutica mencionadasem entrevistas com os analfabetos dapopulação) pelo número de indivíduosanalfabetos, obtendo-se a média de ci-tações por indivíduo. Da mesma forma,foram obtidas médias para os outros gru-pos populacionais, e estas foram com-paradas entre si, dentro de cada fator,utilizando-se o teste t de Student(p<0,05).

Não foi possível a identificaçãotaxonômica de todos os espécimes, de-vido à indisponibilidade de materialvegetal adequado para a classificação àépoca do levantamento. As plantas queapresentavam floração e frutificaçãoforam coletadas, posteriormenteherborizadas, seguindo o procedimentode prensagem entre jornais, papelão ecorrugado, em prensa de madeira, sen-do que cada espécime foi identificadacom número de coleta, data, local enome do coletor. Após esse processo, omaterial foi colocado em estufa elétricapara desidratação, por um período detrês dias. Depois de desidratado, o ma-terial vegetal foi descrito e identificadocom auxílio de lupa, literatura especia-lizada, ou por comparação com mate-rial já identificado e, posteriormente,incorporado ao acervo do herbário Dr.Ary Tupinambá Penna Pinheiro, perten-cente à Faculdade São Lucas (FSL),município de Porto Velho, Rondônia.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram coletados 77 espécimes, sen-do identificadas 63 espécies distribuí-das em 38 famílias botânicas (Tabela 1).As famílias mais representativas emnúmero de espécies foram Lamiaceae,com sete espécies, e Asteraceae,Leguminosae e Compositae, com qua-tro espécies cada, enquanto as demaistiveram apenas uma ou duas espéciesmencionadas. Foram constatadas oitoformas de preparo dos fitoterápicos, sen-do a mais utilizada o decocto, ou seja, ocozimento da parte vegetal em água e,em segundo lugar, o infuso, que consis-te na submersão da parte vegetal emágua, logo após a fervura desta. Isto tam-

Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia

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bém foi observado por Rodrigues (1998)durante levantamento florístico eetnobotânico de plantas medicinais doCerrado, na Região do Alto Rio Gran-de, em Minas Gerais. Destacou-se tam-bém nesse levantamento o uso combi-nado de plantas com outros ingredien-tes como: poejo (Mentha pulegium L.)com mel, babosa (Aloe vera (L.) Burn.F.) com mel e cachaça, pé-de-galinha(Eleusine indica (L.) Gaertn) com pe-daço de cupim e álcool. Outro fato cons-tatado foi o uso de várias ervas medici-nais com chimarrão, conforme já ante-riormente observado por Garlet &Irgang (2001), em Cruz Alta, no RioGrande do Sul.

As plantas mencionadas com maiorfreqüência foram crajiru (Arrabidaeachica (Bonpl.) B. Verl.), boldo(Plectranthus barbatus Andrews), hor-telã (Mentha sp.), erva-cidreira (Lippiaalba (Mill.) N. E. Br), erva-de-Santa-Maria (Chenopodium ambrosioides L.),poejo (Mentha pulegium L.), hortelã-grande (Plectranthus amboinicus (Lour)Spreng.), algodão (Gossypium hirsitumL.), babosa (Aloe vera (L.) Burn. F.) ealfavaca (Ocimum selloi Benth.). Tam-bém foram mencionadas com freqüên-cia a associação de mais de uma plantanas formulações, dentre elas romã(Punica granatum L.) e gengibre(Zingiber officinale Roscoe), chapéu-de-couro (Echinodorus grandiflorusMitch) e crajiru (Arrabidaea chica(Bonpl.) B. Verl.), cana-do-brejo(Costus spicatus (Jack) SW) e pata-de-vaca (Bauhinia forficata Link) e abacate(Persea americana Mill) e quebra-pe-dra (Phyllanthus niruri L.). Observaçõessemelhantes foram constatadas porMing & Amaral Júnior (2005) em estu-do realizado na reserva extrativista“Chico Mendes”.

Observou-se que não há uma padro-nização com referência à quantidade deplanta a ser empregada nas preparações,sendo indicado um punhadinho, umamão cheia, um maço, entre outras.Quanto à parte vegetal utilizada nas pre-parações, observou-se uma maior utili-zação das folhas. É interessante obser-var que as folhas, além de geralmenteconcentrarem grande parte dos princí-pios ativos da plantas, podem sercoletadas sem causar grandes danos às

plantas, garantindo sua preservação. Todainformação colhida foi transcrita literal-mente, procedimento também adotadopor Radomski & Wisniewski (2004),mantendo-se expressões como tiriça (ic-terícia), afinar o sangue (reduzir as con-centrações de ácidos graxos no sangue),pano branco (doença de pele causadapelo fungo Pityrosporum ovale) e chia-do no peito (asma), termos utilizadospelos entrevistados (Tabela 1).

Foram registradas 237 citações, nasquais foi relatada a utilização de váriaspartes vegetais das 63 espécies, em oitoformas de preparo, com diferentes fina-lidades terapêuticas.

Com relação às diferentes religiõespraticadas por cada comunidade, pode-se inferir uma maior concentração deconhecimentos nos evangélicos e cató-licos, com médias de 7,4(a) e 6,7(a) ci-tações por entrevistado, respectivamen-te, seguidos pelos entrevistados sem re-ligião, com 5,6(b), e os adventistas, com4,3(c). Esses dados nos permitem cons-tatar que há uma interação entre os co-nhecimentos etnobotânicos e as reli-giões. É importante ressaltar que gran-de parte dos entrevistados que se decla-raram evangélicos, eram ex-católicos,convertidos recentemente. De acordocom Camargo (1998), as pesquisas naárea da medicina popular em todos ossegmentos da sociedade demonstramuma constante vinculação com crençasreligiosas.

Com relação à origem dos entrevis-tados, constatou-se que as pessoasadvindas do Sudeste do país detinhammais informações em relação às demaisregiões, com média de 8,5(a) citaçõespor entrevistado; em seguida, a regiãoNordeste apresentou média de 7,3(b); aregião Centro-Oeste 7,0(b); a regiãoNorte 5,6(c); e a região Sul 4,7(c). Nota-se que, embora a região Norte abrigueuma enorme biodiversidade, inclusiveno que diz respeito a plantas medicinais,os conhecimentos etnobotânicos não seconcentraram nos indivíduos origináriosdo Norte. Isto se deve provavelmenteao fato de que a maioria das plantas es-tudadas foram trazidas de outras re-giões. Das 63 espécies mencionadas,apenas sete são amazônicas: crajiru(Arrabidea chica (Bonpl.) B. Verl.),cana-do-brejo (Costus spicatus

(Jack)SW), terramicina (Althernantheradentata (Moench) Stuchlik), copaíba(Copaifera langsdorfii Desf.),coqueirinho (Elleutherine bulbosaMill.), cupuaçu (Theobroma grandifloraWilld.) e insulina (Cissus verticilata L.),o que sugere que a cultura etnobotânicasobre as plantas amazônicas está se per-dendo, sendo um dos motivos a carên-cia de estudos na região, tanto em rela-ção ao resgate cultural quanto à desco-berta de novas plantas como prováveisfontes de substâncias bioativas de inte-resse, devido à falta de incentivo porparte das instituições acadêmicas e depesquisa. Em um recente levantamentorealizado por Fernandes (2004) acercade trabalhos apresentados nos simpósiosde plantas medicinais, de 1972 a 1998,as regiões mais participativas, em ter-mos de número de trabalhos apresenta-dos, foram Sudeste, Sul e Nordeste, sen-do que as regiões Centro-Oeste e Norteapresentaram uma parcela pouco signi-ficativa.

Em relação ao nível de escolarida-de, o conhecimento e uso de plantasmedicinais predominou no nível de En-sino Fundamental da 1ª à 4ª série, nonível de Ensino Fundamental da 5ª à 8ªsérie e no Ensino Médio, com médiasde 7,3(a), 6,8(a) e 6,7(a) citações porentrevistado, respectivamente. Entre osanalfabetos, obteve-se 5,6(b) e no nívelde Ensino Superior foi observada a me-nor média, 3,0(c) citações por entrevis-tado. Assim, observa-se que o conheci-mento sobre plantas medicinais apresen-ta uma tendência a diminuir com o ní-vel de escolaridade. Está claro que onível de escolaridade está associado acondições econômicas. Assim, a relaçãoentre o baixo nível de escolaridade e amaior familiarização com o poder me-dicinal de espécies vegetais pode refle-tir a busca, devido ao baixo poder aqui-sitivo, de formas alternativas de trataras doenças, que não envolvam a com-pra de medicamentos caros. Talvez sejapossível inferir também que o nível cres-cente de escolaridade envolve uma cer-ta massificação dos costumes, principal-mente frente à globalização, o que le-varia a uma perda gradual dos hábitosancestrais relacionados à fitoterapia.

Os dados relacionados à aquisiçãodos conhecimentos sobre o uso das plan-

MRA Santos et al.

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Tabela 1. Nomes vulgares e científicos, famílias botânicas, indicações, partes utilizadas e modos de preparo de plantas medicinais utilizadaspela população de Ariquemes, em Rondônia (vulgar and scientific names, botanic families, indications, used parts of the plants and methodsof preparation of used medicinal plants for the population of Ariquemes, in Rondônia). Porto Velho, Embrapa Rondônia, 2005.

1As letras de referência indicam conexão entre os itens Indicação, Parte Utilizada e Modo de Preparo. (The reference letters indicateconnection between itens Indication, Used Part of the Plant and Method of Preparation); 2Asma (asthma); 3Melena (melena); 4Icterícia(jaundice); 5Reduzir as concentrações de ácidos graxos no sangue (to reduce the fatty acids concentrations of the blood); 6Doença de pelecausada pelo fungo Pityrosporum ovale (skin disease caused for the fungus Pityrosporum ovale).

Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia

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Tabela 1. (Continuação)

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tas medicinais revelaram que a maiorparte foi adquirida por meio de livros,com média de 11,3(a) citações por en-trevistado. As outras formas de obten-ção de informações registradas forammenos relevantes: a aquisição de conhe-cimentos de pessoas conhecidas resul-tou em média de 7,6(b), a partir de pa-rentes 6,0(b) e de pastorais 5,5(b). Em-bora as pastorais de saúde sejam atuan-tes nas comunidades, o interesse daspessoas pelas leituras referentes ao as-sunto é bastante significativo. Atual-mente, há uma grande profusão de li-vros abordando o uso de plantas medi-cinais, a maioria relativamente simplesem termos de elaboração, de fácil en-tendimento, e que podem ser adquiri-dos a baixo preço. A forma de aquisiçãodos conhecimentos etnobotânicos, nes-se estudo, difere bastante do levanta-mento etnobotânico realizado por Ming& Amaral Júnior (2005), na reservaextrativista “Chico Mendes”, no Acre,em que todos os entrevistados afirma-ram que o aprendizado foi repassadopelos pais.

No que se refere ao conhecimentodas plantas medicinais em relação aotempo de residência no local, a maiormédia aponta para a faixa entre 7 a 9anos, sendo de 12,3 citações por entre-

Tabela 1. (Continuação)

Uso de plantas medicinais pela população de Ariquemes, em Rondônia

vistado. Porém, não ocorreu diferençasignificativa entre as faixas estudadas,não se observando uma tendência nosresultados que permitisse inferênciasentre o tempo de residência dos entre-vistados no local e o seu conhecimentosobre as plantas medicinais utilizadas.Provavelmente, estas duas variáveis nãointeragiram devido ao fato de que amaioria das plantas utilizadas no muni-cípio estudado não são nativas. Se estefosse o caso, seria de se esperar que osmoradores com maior tempo de residên-cia detivessem maior conhecimento so-bre a utilização das plantas na medicinapopular do local.

O gênero masculino apresentou sig-nificativamente mais informações sobreas plantas medicinais no município es-tudado. Enquanto os homens entrevis-tados apresentaram uma média de16,4(a) citações por entrevistado, a mé-dia para as mulheres foi de 10,4(b). Notrabalho realizado por Ming & AmaralJúnior (2005), com seringueiros da re-serva extrativista “Chico Mendes”, foiconstatado que os homens, devido aomaior contato com a floresta, tendem ater maior conhecimento de plantas des-te ecossistema.

Observou-se que a maioria dos en-trevistados cultivava as plantas

consumidas, indicando que estas eramao menos parcialmente preservadas.

Como foi observado neste trabalho,o estudo do conhecimento etnobotânicode comunidades predominantementevoltadas para o setor primário em geralnos leva a duas vertentes: a primeira é aobservação das estratégias que o homemutiliza para lidar com a natureza, ten-tando melhorar de alguma forma suaqualidade de vida e; a segunda, é a ne-cessidade pungente de proteger o conhe-cimento ancestral, resgatando e regis-trando informações, de forma aperpetuá-las para as gerações futuras.Esta pesquisa fornecerá subsídio paraestudos fitoquímicos e farmacológicosnecessários para confirmar as proprie-dades terapêuticas da maioria das espé-cies estudadas e para verificar atoxicidade ou inocuidade das mesmaspara a saúde humana.

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