santos, elizangela maria dos - a marginalidade na performática literatura contemporânea

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Texto de Elizangela Maria dos Santos sobre a marginalidade na literatura contemporânea.

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  • Anais do II Seminrio Nacional Literatura e CulturaVol. 2, So Cristvo: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128

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    A MARGINALIDADE NA PERFORMTICA LITERATURA CONTEMPORNEA

    Elizangela Maria dos Santos Mestranda PPGLDC/UEFS

    Os anos 90 marcam a ideia de ps-modernidade, uma vez que a modernidadeenquanto movimento que nega a si mesmo(ARANTES, 1992) no mais encontraressonncia no pas; dessa forma, a busca pelo eterno novo cede espao a umamultiplicidade cultural que encontra na literatura contempornea a possibilidade de trabalhara questo da divergncia, dos excludos, das diferenas. Assim, uma literatura no-cannicavai surgindo em meio literatura elitista, no apenas ampliando mas, sobretudo,modificando o conceito de cultura.

    Surge, pois, a denominada literatura marginal, que segundo Ponge (in FERREIRA,1981) aparece classe dominante como sendo outra, no lhe pertencendo, portanto. Noentanto, mais do que porta-voz dos excludos, o escritor marginal busca levar a cultura paraas classes subalternas; , segundo Williams, a era da cultura (in CEVASCO, 1990), emque passa a haver o predomnio dos meios de comunicao de massa e o desvio dequestes polticas e econmicas para a questo cultural.

    Uma vez modificado o conceito de cultura, admitindo-se, sobretudo, uma pluralidadecultural, os Estudos Culturais passam a analisar toda e qualquer manifestao cultural,considerando-as vlidas, independente de uma produo elitizada ou no. Exatamente porisso que os artistas contemporneos esto investindo a sua imaginao criadora em outrose novos campos, forando outros modos de ler uma manifestao cultural que no semanifesta na escrita. H, dessa maneira, uma disseminao massificada de simulacros querepresenta um universo a ser investigado.

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    O termo cultura vem sofrendo modificaes ao longo do tempo, acompanhando astransformaes sociais e histricas at ser desfeita a ideologia etnocntrica e imperialista dacultura. Segundo Chau (2007), a cultura hoje passa a ter uma abrangncia maior, sendocompreendida como:

    produo e criao da linguagem, da religio, da sexualidade, dosinstrumentos e das formas de trabalho, dos modos da habitao, dovesturio e da culinria, das expresses de lazer, da msica, da dana, dossistemas de relaes sociais, das relaes de poder, da guerra e da paz,da noo de vida e morte. (Chau, 2007, p. 24).

    Com essa abrangncia da cultura, houve uma espcie de diviso cultural que noapenas separa a chamada cultura de elite da cultura popular, como prope divises dentroda prpria concepo de cultura popular, configurando opes polticas bastantedeterminadas. Tem-se, dessa forma, a concepo romntica que universaliza a cultura pormeio do nacionalismo; a iluminista que prope o desaparecimento da cultura popular atravsda educao formal; e a populista que busca garantir o domnio do Estado sobre a cultura.Entretanto, essa diviso tende a ser ocultada e reforada por meio da cultura de massa ouda indstria cultural; cria-se, portanto, uma indstria do entretenimento camuflada de umacultura para o povo.

    Essa indstria separa os bens culturais pelo seu valor de mercado, alimentando ailuso de que todos tm acesso aos mesmos bens culturais, definindo a cultura comosimples lazer. Sendo assim, essas manifestaes culturais, ainda de acordo com Chau(2007, p. 32) no possuem a funo de chocar o indivduo, provoc-lo, faz-lo pensar,trazer-lhe informaes novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparncia,o que ele j sabe, j viu, j fez.

    Santiago em O cosmopolitismo do pobre (2004) discute essa questo da cultura demassa, propondo a distino entre espetculo e simulacro. Enquanto o primeiro seria amanifestao legtima da cultura, sua forma autntica, aquela que leva reflexo; a

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    segunda representa exatamente esse entretenimento da indstria cultural; seria, assim, umarremedo bastardo produzido apenas para o lazer, sem funo de permitir reflexo eoferecer informaes. Para Cndido (in SANTIAGO, 2004), essa disputa cultural no Brasilcomea e passa pelo consumo do livro como restrito produto literrio; restrio que cria umacondio negativa prvia para a fruio de obras literrias e, sobretudo, para o acesso dasclasses subalternas ao produto.

    Como forma de fazer a literatura contempornea existir em meio s fraturas culturais,promovendo o confronto com a ideologia dominante que tenta produzir a ideia da unio e dahomogeneidade cultural, surge a denominada literatura marginal. Com origem no populismodos anos 60, o termo marginal, nos ltimos anos, associou-se produo artstica,principalmente literria, ultrapassando o significado pejorativo; passa a designar a literaturavoltada para os marginalizados. Gonzaga (in FERREIRA, 1981) discute trs tendncias paraessa literatura; a primeira diz respeito aos marginais da editorao, os criadores de obrasque fogem aos padres normais de editar, distribuir e fazer circular; a segunda se refere aosmarginais da linguagem, a recusa de uma linguagem institucionalizada, proveniente dopoder dominante; e a ltima so os marginais que apresentam a fala daqueles setoresexcludos dos benefcios do sistema.

    Tendncias reunidas na contemporaneidade, a literatura marginal abarca, no sculoXXI, as atividades artsticas que falam do povo e para este, elaborada por artistas, em suamaioria, tambm vtimas de processos de excluso; promove, pois, uma espcie de corpo acorpo com a vida, preocupando-se com a releitura do cotidiano dos setores oprimidos;passa-se, assim, do convencionalismo fabricao de uma forma revolucionria de fazerliteratura. Dentre vrios nomes que fazem emergir os marginais sem disfarces e sem a ticapositiva de uma cultura dominante, est o escritor Marcelino Freire.

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    Pernambucano que vive em So Paulo, Marcelino Freire um dos escritores daPS:SP revista de prosa lanada em 2003, um dos contistas em destaque nas antologiasGerao 90 (2001) e Os Transgressores (2003), publicadas pela Boitempo Editorial. Em2002, idealizou e editou a coleo 5 Minutos, inaugurando com ela o selo eraOditoeditora; recebeu o prmio Jabuti de Literatura em 2006 na categoria contos, pela obraContos Negreiros (contos, 2005). Autor de mais de cinco livros de contos, Freire foge declichs quando faz, atravs da literatura, uma defesa da misria, inaugurando uma novaforma de ver e mostrar o mundo.

    Escrevo porque escuto um olhar para o humano, para o outro. Escrevo sobviolncia, personagens desajustados, desvalidos, sofridos. Confessando seu engajamentoe comprometido em produzir a literatura de e para os marginalizados, o autor funde em seustextos elementos trgicos, dramticos, cmicos e melodramticos; alterna ainda a prosa e apoesia numa busca incessante de encontrar uma nova escritura. Freire pode perfeitamenteser entendido como a definio de escritor feita por Carvalhal (in FERREIRA, 1981, p. 80),pois um homem que absorve o porqu do mundo no como escrever, e a literatura seconstitui numa pergunta ao mundo, nunca, em definitivo, em uma resposta.

    O crtico Joo Alexandre Barbosa, no prefcio do livro Angu de Sangue (FREIRE,2005), comenta a respeito da escrita singular de Freire:

    as vozes narrativas desses contos so, quase em sua totalidade, vozes depersonagens que so restos (no sentido literal e no figurado) da experinciarural, estilhaados pela forada adaptao ao universo, tambm ele,estilhaado e violento da existncia urbana. (...) E como no existedistanciamento na mistura, a voz que narra a mesma que experimenta, esofre o narrado e, por isso, a escrita da oralidade parece ser adequada parao registro da liga que resultou da experincia. (FREIRE, 2005,p. 12-3).

    Marcelino Freire um representante fiel da literatura marginal, haja vista o uso quefaz da escrita literria como suporte de representao para promover reflexo a respeito das

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    relaes humanas na sociedade contempornea. Ciente de que a histria no pode serdiscurso de construo, mas de desconstruo, voltado para entender o fragmentrio quesomos (ALBUQUERQUE, 2007, p. 87), o autor trata de temas marginais empregando umdiscurso que leva o leitor ao mundo excludo e das diferenas:

    Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a moblia da casa, cadeira prapr uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sof, costurado, cama,colcho. At televiso. a vida da gente o lixo. E por que que agoraquerem tirar ele da gente? O que que eu vou dizer pras crianas? Queno tem mais brinquedo? Que acabou o calado? (FREIRE, 2005: Angu desangue: Muribeca, p. 23).

    exatamente por meio do recurso, sobretudo, do discurso direto que o autor d vozaos marginais, fazendo falar o prprio indivduo marginalizado; no h demagogiacamuflada em defesa dos miserveis, mas uma literatura comprometida em desmascarar asinjustias sociais. Freire corrobora com Ferreira (1981, p. 10), para quem a literatura, comonorteadora da educao poltica, cientfica ou tcnica de um pas, tem a obrigao departicipar vivamente do ardente processo humanista, (...), precisa armar-se em busca dalibertao do homem e da sociedade.

    Por meio de seus textos, o autor prope uma produo contra a cultura dominante;no concorda em reproduzir uma realidade fragmentada e escreve para denunciar aalienao e a dominao proposta pela cultura de massa discutida por Chau (2007). Assimcomo os demais representantes da literatura marginal, o escritor utiliza as produesartsticas como palco para a luta contra a cultura elitizada dominante. Freire quer realmentefazer da literatura, e mais amplamente das produes artsticas, veculo de crtica,constituindo-se como uma (ou nica) alternativa pouca ateno da poltica e do Estadocom a situao dos menores de rua, dos negros, mulheres prostitudas, homossexuais edemais excludos da ideologia da homogeneizao cultural dominante.

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    Contos Negreiros(2005), livro de contos com o qual o autor ganhou o prmioJabuti, por exemplo, rene narrativas em que os negros, direta ou indiretamente, sopersonagens das histrias que poderiam perfeitamente existir; parecem contos da vida real,daqueles que sentem o real preconceito camuflado pela hipocrisia reinante. No h umnarrador observando de longe e recheando ou filtrando as cenas de acordo com seu pontode vista; h os prprios discriminados vivendo situaes da vida real, como ratifica Xico Sno prefcio do livro em questo: Marcelino Freire escreve como quem pisa no massap,cho de barro negro, como a fala preta amassada entre os dentes, no terreiro da sintaxe dosdiminutivos dobrados nas voltas da lngua.(FREIRE, 2005, p. 11-2)

    O conto Totonha (Contos Negreiros, 2005), ilustra essa forma de escrever, pisandono barro negro de situaes extremas que chocam o leitor pela maneira como este conduzido vida dos marginalizados:

    Morrer j sei. Comer, tambm. De vez em quando, ir atrs de pre, caru.Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira s uma coceira, no umadoena. Tenha santa pacincia! Ser que preciso mesmo garranchearmeu nome? Desenhar s para a mocinha a ficar contente? Donaprofessora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me digahonestamente. Coisa mais sem vida um nome assim, sem gente. Quemest atrs do nome no conta? (FREIRE, 2005, p. 80)

    Essa literatura marginal obviamente no possui espao de representao garantidolegalmente pelo Estado, j que no considera a questo cultural com mero entretenimento,distrao ou repouso para o povo; trata-se de um trabalho artstico reflexivo, que procuralevar produes artsticas para um pblico que necessita se alimentar de cultura, aquientendida como trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e de arte (CHAU,2007). Precisa, portanto, se fazer existir especialmente para o pblico marginalizado de quetrata, o qual nem sempre tem acesso aos livros, nem s famosas exibies artsticas emfeiras elitizadas.

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    Uma vez surgindo como contraponto cultura de massa que deturpa o sentido daarte com o intuito de forjar uma preocupao com uma homognea transmisso cultural, -alm de promover um afastamento cada vez maior entre a classe dominante e a popular -,esse tipo de literatura se faz presente para representar a cultura de um povo excludo queprecisa ter acesso ao universo cultural. E a literatura marginal j comea a se firmar noBrasil, sobretudo por conta da tecnologia, que no apenas facilita o acesso s produes,como possibilita uma divulgao, de forma ampliada e instantnea, de informaes arespeito das manifestaes artsticas realizadas pelo grupo.

    Dessa forma, os escritores marginais propem, usando sua prpria condio deexcludos sociais ou literrios, uma insero dos excludos no apenas na sociedade, masespecialmente no campo cultural. Essa insero acontece a partir de quando a escritaliterria possibilita reflexes acerca das relaes humanas na contemporaneidade, funoproposta pelo movimento marginal. Destarte, a literatura marginal suscita tambm reflexoacerca das relaes de poder que envolvem a instituio literria na contemporaneidade;discute-se at que ponto importante que se d continuidade a uma hierarquizao literriaque elege cnones imortais, proposta pela cultura dominante autoritria e excludente.

    No entanto, pensar e compreender a literatura contempornea brasileira requer umareviso de conceitos tradicionais enraizados a respeito da linguagem, temtica e modelospr-estabelecidos que, a partir dos anos 90, no mais explicam o fazer literrio. Segundo oescritor Ferrz, o movimento prope uma literatura marginal com sentido e princpio, que dvoz a uma imensa parcela da populao que parece no existir para o pas, ou seja, aliteratura marginal se faz presente para representar a cultura de um povo, composto deminorias mas, em seu todo, uma minoria. (FERRZ, 2005).

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    Diferenciando-se da cultura erudita para uma classe elitista, os escritores marginaisinovam menos na abordagem temtica que na linguagem, no suporte e, principalmente, naforma de divulgao dos seus textos; so os escritores performticos e sem intermediriosna mediao de suas produes artsticas com o pblico. Dificuldade de divulgao denovos escritores, importncia da internet, o escasso pblico leitor de livros que no sejam deautoajuda ou bestseller, o difcil acesso da maioria aos eventos culturais feitos para umapequena parcela, so alguns dos elementos que movem o projeto Literatura Marginal.

    Preocupados em levar a arte para os marginalizados, ao mesmo tempo em queexpem sua situao, escritores como Marcelino Freire investem no apenas em umtrabalho irreverente e inovador, como tambm na divulgao de suas produes. So osartistas sem intermedirios, produzem e levam sua arte parcela da populao que no temacesso cultura com real significado; cultura que no apenas distrai, mas informa epossibilita a reflexo. Essa nova forma de fazer literatura demonstra uma preocupaoverdadeira dos escritores em incentivar e promover a leitura; ao passo que novos escritoresparticipam de festas literrias, bienais, bolsas e prmios de criao, novas histrias e livrosvo sendo aceitos pelo mercado, acarretando novos investimentos do cenrio editorial.

    Pode-se acreditar, com esse investimento, em uma abertura para as exigncias dasociedade, a qual no encontra (apenas) na literatura cannica uma forma de promovercultura. Os artistas contemporneos investem, portanto, na possibilidade de promover edivulgar seus textos como caminho para produzir cultura, ao mesmo tempo em quecombatem a indstria cultural que impera no mercado, distorcendo o sentido da obra dearte. Como um dos nomes principais desse grupo, Freire um verdadeiro divulgador deprodues artsticas, preocupando-se em difundir eventos literrios por meio,principalmente, da internet.

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    Alm de propagar momentos culturais e anunciar amostras de arte, lanamentos delivros e outras manifestaes artsticas, Marcelino Freire organiza o Balada Literria, umevento surgido em 2006, que rene anualmente centenas de escritores nacionais einternacionais em So Paulo. Eventos como esse evidenciam a preocupao dessa geraoem atingir o pblico da periferia, levando a discusso de problemas sociais para fora doscentros, com a finalidade de incluir os marginalizados nos debates e reflexes, por meio daliteratura.

    Para tanto, essa literatura no pode ser estruturada e organizada nos moldescannicos; ela precisa e elaborada com nova roupagem, o que de jeito algum significaceder espetacularizao da cultura. Pelo contrrio, a chamada literatura marginal alicerada exatamente na busca pela transmisso da cultura no como simples espetculode lazer, pois entende que a obra de arte mais complexa e duradoura, ratificando oconceito discutido por Chau (2007), quando aborda a cultura num sentido mais restrito,como sendo:

    um campo especfico de criao criao da imaginao, da sensibilidadee da inteligncia que se exprime em obras de arte e em obras depensamento, quando buscam ultrapassar criticamente o estabelecido. Essecampo cultural especfico no pode ser definido pelo prisma do mercado,no s porque este opera com o consumo, a moda e a consagrao doconsagrado, mas tambm porque reduz essa forma de cultura a condiode entretenimento e passatempo, avesso ao significado criador e crtico dasobras culturais. (CHAU, 2007, p. 41)

    Corroborando com a definio de Chau, os escritores marginais e semintermedirios entendem cultura como processo de criao; e exatamente esse trabalhoque produzem para levar ao povo. A nova literatura pode ser definida como um trabalho dainteligncia, da imaginao, da reflexo, da experincia e do debate (Chau, p. 41); quando,portanto, levam aos mundos perifricos essa cultura, os artistas buscam, alm de inovar aarte, expor a realidade social na qual vivem os excludos, forando uma reflexo, ao mesmo

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    tempo em que promovem debates acerca dos problemas que enfrentam, como pode serpercebido no conto Da paz (Rasif, 2008):

    Eu no sou da paz. No sou mesmo no. No sou. Paz coisa de rico. Novisto camiseta nenhuma no, senhor. No solto pomba nenhuma no,senhor. No venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz umadesgraa. (...) A paz no resolve nada. A paz marcha. Para onde marcha! Apaz fica bonita na televiso. Viu aquela atriz! No trio eltrico, aquele ator!(FREIRE, 2008, p. 25)

    Freire busca, por meio da linguagem, convidar o leitor, com agudeza, a perceber acomplexidade do mundo contemporneo, quando aborda temas que desnudam o mundomoderno. O autor pretende, incessantemente, desmascarar a vida no que ela tem de maisperverso e cruel, atravs de narrativas recheadas de discursos, aparentemente banais, mascom uma viso crua da vida, que choca pelo modo como nos descortinada. Dessa forma,se no chocam os temas tratados, como os sequestros, estupros, a misria urbana, enfim, adegradao humana, choca a forma como o escritor transforma em linguagem toda essabarbrie, fazendo de cada detalhe um ndice do extremo desamparo e da extremacrueldade que rege os destinos do homem sem nome na cidade moderna (BOSI, 1997).

    Marcelino Freire, dessa forma, ao lado de escritores como Marcelo Mirisola, LuizRufatto, Adriana Lisboa, Santiago Nazarian, Clara Averbuck, entre outros, utiliza uminstrumento institucionalizado como a literatura para expor experincias cotidianas deviolncia e excluso. Esses escritores adotam uma linguagem tambm marginal,apoderando-se de elementos lingusticos dos menos favorecidos, os quais tornam aindamais reais as narrativas sobre violncia. Para tanto, a oralidade predomina nas narrativascomo seu veio ancestral; o autor d voz s personagens atravs do discurso direto que evitaa demagogia da denncia.

    Em primeira pessoa ou terceira, falam diferentes narradores, como a catadora delixo, a irm invejosa, o velho ressentido, o amante assassino [...], com a inteno de

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    proporcionar, com o leitor, um dilogo cortante e pungente, em que exposta a dennciasocial. Empregando termos coloquiais- e de baixo calo-, um jogo sonoro-semntico eruptura da ordem sinttica, Freire fragmenta as narrativas, conseguindo um estilo singularao usar a literatura para falar das mazelas da sociedade no sculo XXI, em que predomina ocoloquialismo natural dos grupos sociais de que tratam suas narrativas, como o contoNao Zumbi (Contos Negreiros, 2005):

    E o rim no meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha atmarcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. E roda de sambapra gente rodar. (...) O esquema bacana. Os caras chegam aqui e levam agente pra Luanda ou Pretria. No maior conforto e na maior glria. Putaoportunidade s uma vez na vida, quando agora? (FREIRE, 2005, p. 53).

    Cedendo a voz narrativa para um representante real das camadas sociais herdeirasda tradio oral em seus textos, Marcelino Freire faz uso da oralidade de forma cortante ereal, ao mesmo tempo em que faz de sua personagem uma porta-voz do grupo que oradenuncia. Nesse conto, fica evidente a ironia fina do escritor ao defender o direito doindivduo de vender seus rgos, numa feroz crtica situao de extrema pobreza em quese encontra parte da populao, cuja possvel sada vender-se a si mesma. A linguagemoral empregada nos contos no funciona como modelo para destacar variao lingustica deuma regio, como aconteceu com a literatura regionalista decorrente do experimentalismoda gerao de 30. A oralidade do escritor funciona, portanto, como forma de registrar a vozdaquele que vive e experimenta angstias pessoais e sociais, fazendo com que o discursoparea concordar com a misria imposta pela sociedade, numa ironia constante eperturbadora.

    Segundo Dalcastagne (2002), esse tipo de literatura, que d voz classe subalterna,oportuniza uma democratizao da literatura, porque:

    esta preocupao com a diversidade de vozes no um eco de modismosacadmicos, mas algo com importncia poltica (...) ... a luta contra a

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    injustia inclui tanto a reivindicao pela redistribuio da riqueza como peloreconhecimento das mltiplas expresses culturais dos grupos subalternos:o reconhecimento do valor da experincia e da manifestao dessaexperincia por trabalhadores, mulheres, negros, ndios, gays, deficientes. Aliteratura um espao privilegiado para tal manifestao pela legitimidadesocial que ela ainda retm. (DALCASTAGNE, 2002, p. 71)

    Em que depender do escritor Marcelino Freire, essa democratizao continuarexistindo, haja vista a (preocup)ao do autor em falar dos subalternos do lugar onde elesesto, dando voz a um segmento que precisa se sentir como fazendo parte da sociedade.Freire, alm de participar de eventos culturais, muitas vezes promovendo-os, publica seustextos e divulga eventos em blogs, concede entrevistas pela internet, e tem seus textos lidospor ele em rdios da internet e no youtube, contribuindo para que a dificuldade ao acessoaos domnios de produo discursiva e cultural seja reduzida.

    Elitismos literrios parte, os textos produzidos pelo grupo marginal so maisapreciados pela crtica literria na contemporaneidade, em decorrncia da ampliao daabordagem dos textos pelos Estudos Culturais. Assim sendo, j h um esforo por parte depesquisadores e crticos literrios em reconhecer as singularidades dessa literatura,legitimando seu valor esttico, criatividade e funo social. A literatura marginal constitui-se,portanto, um novo estilo e novo olhar sobre o fazer artstico; so textos que traduzem outrasperspectivas sociais e literrias, mais condizentes com a necessidade de se repensar atransmisso cultural no pas. Esto em consonncia com a multiplicao da escrita de quetrata Barthes (s;d), ao afirmar que a escrita a moral da forma, escolha da rea social noseio da qual o escritor decide situar a natureza da sua linguagem (BARTHES, p. 18).

    Os escritores da literatura marginal, como Marcelino Freire, no esperampassivamente a consagrao pelo mercado ou pelas academias; eles esto cientes danecessidade de mostrar seu trabalho, o qual vai alm do mero reconhecimento. Utilizam suahabilidade performtica para fazer com que suas produes artsticas atinjam o pblico

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    desejado, lanando mo dos recursos tecnolgicos oferecidos pela contemporaneidade.Essa escrita literria conectada com a modernidade em absoluto cede s facilidades, pressae instantaneidade da tecnologia no que se refere qualidade, quando se dispe, porexemplo, a coletnea Gerao 90, manuscritos do computador, organizada por Nelson deOliveira.

    A fertilidade e agilidade de novas produes e novos escritores diz respeito, sim, auma necessidade e exigncia real do pas, que possibilita a liberdade de expresso eorganizao de movimentos artsticos como o Literatura Marginal; oportunidade depromover a incluso tambm nos processos de criao e difuso da cultura. Alm do mais,a rapidez na divulgao de trabalhos, possibilitada pela opo de no necessitar,exclusivamente, de intermedirios no universo da produo literria, oportuniza aosescritores, como Marcelino Freire, maior liberdade quanto escolha do seu estilo, estruturade suas obras, divulgao e repercusso das mesmas.

    Rosenfeld (in FERREIRA, 1981, p. 158) acerca da literatura marginal, afirma que sea comunidade o povo, literatura marginal ser a que focalizar este povo em suasaspiraes, sonhos, frustraes, sendo pensados em novos personagens, leitores elinguagens. E exatamente o que faz Freire em seus textos; deixa o povo excludo semostrar, falar de suas necessidades, experincias e lies, por meio de uma linguagemprpria, em que predomina a aproximao com a subalternidade. Assim, suas narrativaspossuem significado universal, medida em que representam problemas que dizem respeitoa seres humanos de qualquer regio, os quais so vtimas da excluso de todo o processodesenvolvimentista da sociedade que os oprime e marginaliza. Contudo, o sentimento dejustia e denncia no se faz ingenuamente; explcito o carter provocativo e denunciador

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    presente em seus textos, pois, como defende o prprio autor, [...] o escritor no pode estaralheio a isso (violncia), indiferente realidade.

    Aliando a escrita marginal com os novos recursos de produo e divulgao de suasatividades, Freire consegue se aproximar do pblico desejado, contribuindo com atransmisso de informaes, oportunizando discusses e reflexes, alm de promover oprazer esttico de uma maior parte da populao. Em outras palavras, esse escritorcontribui para a afirmao da cultura como um direito, alargando a concepo dedemocratizao cultural; amparado pela real liberdade de expresso artstica possibilitadapela modernidade.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Histria: a arte de inventar o passado. SoPaulo: EDUSC, 2007ARANTES, Otlia Beatriz Fiori. ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projetomoderno de Jurgen Habermas. So Paulo: Editora Brasiliense, 1992.BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Lisboa- Portugal: Edies 70.BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporneo. So Paulo: Cultrix, 1997.CHAU, Marilena. Cultura e democracia. Salvador, 2007.DALCASTAGN, Regina. Uma voz ao sol: representao e legitimidade na narrativabrasileira contempornea. In: Estudos de Literatura Brasileira contempornea. N.20.Braslia, julho/agosto, 2002. p.33-87.FERREIRA, Joo Francisco (coord.). Crtica literria em nossos dias e literaturamarginal. Porto Alegre: Editora da Universidade, UFRGS, 1981.FERRZ. Terrorismo Literrio. In: (org.) Literatura Marginal: talentos da escritaperifrica. Rio de Janeiro: Agir,2005.FREIRE, Marcelino. Angu de Sangue. So Paulo: Ateli Editorial, 2005.FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2008.FREIRE, Marcelino. Rasif, mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crtica literria e crtica cultural. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2004.