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187 4 Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: marginalidade, estigmas, homens deslocados, culturas em movimento Representa o marinheiro brasileiro. O que é ele? Bêbado, sodomista e miserável. 1 emidgio josé barbosa, segundo cirurgião da Armada, 1853. Don’t talk to me about Navy tradition. It’s nothing but rum, sodomy and the lash. Frase atribuída a winston churchill Os marinheiros constituíam uma categoria marginalizada em todas as nações. No entanto, a galera era heterogênea. A primeira diferença era o local de nascimento e a língua falada, aspectos considerados para distingui-los entre nacionais e estran- geiros. Dentre os últimos, estudei especialmente os portugueses e os anglofalantes (britânicos e norte-americanos). Dentre os nacionais, a clivagem foi, sobretudo, re- gional, étnica ou por meio da “cor”, uma vez que havia caboclos, afro-descendentes, brancos naturalizados ou descendentes de portugueses e todas as variáveis mestiças. Mas como expliquei no Capítulo “Nacionais”, mesmo essa denominação era uma unidade artificial, pois a identidade dos recrutados era principalmente regional, da localidade ou da província de onde vieram. Os nacionais foram recrutados para a Armada Nacional e Imperial, mas conhece- ram um mundo marítimo que, especialmente, os portugueses e anglófonos criaram 1 an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde, Relatorio do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial, embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr. Joaquim Cândido Soares de Meireles, cirurgião-chefe do corpo da Armada.

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4 Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: marginalidade, estigmas, homens deslocados, culturas em movimento

Representa o marinheiro brasileiro. O que é ele?

Bêbado, sodomista e miserável.1

emidgio josé barbosa,

segundo cirurgião da Armada, 1853.

Don’t talk to me about Navy tradition. It’s nothing

but rum, sodomy and the lash.

Frase atribuída a winston churchill

Os marinheiros constituíam uma categoria marginalizada em todas as nações. No

entanto, a galera era heterogênea. A primeira diferença era o local de nascimento e

a língua falada, aspectos considerados para distingui-los entre nacionais e estran-

geiros. Dentre os últimos, estudei especialmente os portugueses e os anglofalantes

(britânicos e norte-americanos). Dentre os nacionais, a clivagem foi, sobretudo, re-

gional, étnica ou por meio da “cor”, uma vez que havia caboclos, afro-descendentes,

brancos naturalizados ou descendentes de portugueses e todas as variáveis mestiças.

Mas como expliquei no Capítulo “Nacionais”, mesmo essa denominação era uma

unidade artificial, pois a identidade dos recrutados era principalmente regional, da

localidade ou da província de onde vieram.

Os nacionais foram recrutados para a Armada Nacional e Imperial, mas conhece-

ram um mundo marítimo que, especialmente, os portugueses e anglófonos criaram

1 an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde, Relatorio do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião

do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial, embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr.

Joaquim Cândido Soares de Meireles, cirurgião-chefe do corpo da Armada.

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e dominaram econômica, cultural ou demograficamente. Assim a religiosidade, a

língua e os hábitos foram em parte assimilados, em parte reinventados.

Optei, neste capítulo, por tratar de temas que apareceram não somente no pe-

ríodo escolhido, como também em outros tempos e no tempo presente: “a história

é objeto de uma construção cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e

vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit).2 Tratarei de temas

como homossexualidade, alcoolismo e cultura marítima: tatuagens, roupas e rituais

cujas pistas se acham em diversas épocas. É possível entrever como os processos

culturais ocorridos na marginalidade da vida marítima, vivida entre a costa e o mar,

contribuíram para a cultura e o comportamento das grandes cidades. Este terceiro

capítulo é construído em forma de um mosaico.

4.1 Cosmopolitismo

Aqueles que trabalharam nos navios viveram a marginalização do lugar de origem,

o trabalho disciplinar da expansão capitalista, mas, simultaneamente, participaram

da criação de um imaginário sobre o mundo, em especial pela transmissão oral e,

em menor escala, escrita. O navio é nas palavras de Michel Foucault, “o maior ins-

trumento de desenvolvimento econômico desde o século xvi, (...) e a maior reserva

de imaginação”.3

Os navegantes tiveram “as primeiras visões do mundo que realmente poderiam

chamar-se cosmopolitas”.4 A chamada cultura marítima deixou vestígios nas capi-

tais e em outras cidades, onde os marujos aportavam: no vestuário, nas tatuagens,

nas gírias e expressões urbanas, por exemplo, “galera”, “chutar o balde”, “aviso aos

navegantes”, entre outras. Os marinheiros contrabandearam bens, inauguraram

comportamentos, contaram histórias e escreveram relatos. Aspectos que consti-

tuem um legado difuso na cultura urbana, mas que deixaram algumas pistas.

2 benjamin, Walter. Sobre o conceito de história, trad. de Jeanne-MarieGagnebin, e Marcos Lutz

Muller, mimeo.

3 foucault, Michel. “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/documents/ heteroTopia/

foucault.heteroTopia.fr.html. Acesso em: 31 abr. 2011.

4 perez-mallaína. Pablo E. Los hombres del océano: Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias.

Siglo xvi, p. 239.

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Se, por um lado, há uma questão de coletividades, por outro, a questão do indi-

víduo no mundo marítimo também é fundamental. Se eles nascem em lugares tão

diferentes, trabalham em períodos curtos e em navios de tantas bandeiras, é de se

convir que suas trajetórias não estão, necessariamente, ligadas a grupos perenes.

O itinerário narrado pelo marinheiro Leandro Gonçalves de Gouveia que partiu de

Paranaguá, sua cidade natal, aos 15 anos, por volta de 1847, e para lá voltou em 1861, é

bastante típico dos marujos de longo curso, sendo muito difícil que algum camarada

seu tenha vivido no mesmo tempo e espaço o que ele viveu:

Que havera quatorze anos mais ou menos que anda ausente desta cidade sempre

embarcado em diversos navios um dos quais de Nação Alemã, foi à Europa há cinco

anos mais ou menos, e depois desembarcou em Pernambuco onde esteve três anos

mais ou menos servindo de estivador de navios (...) em mil oitocentos e cinquenta e

dois, voluntariamente, serviu por seis meses no Hiate Itagipa na Bahia, e findo esse

tempo obteve sua guia de embarque, a qual ficou com a Capitania do Porto daquela

cidade, quando matriculou para bordo de um navio mercante Inglês para Buenos

Aires e de lá para Santos onde embarcou no navio Alemão que foi para a Europa.5

Paranaguara pobre, aos 29 anos conheceu diversas cidades do Império e da Europa

em navios de diferentes bandeiras. O que ele sofreu ou gozou não sabemos. Mas

certamente narrou muitas de suas histórias alhures para seus conterrâneos.

No epílogo do livro O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro

(c.1822 - c. 1853),os autores definiram o africano do título como: “poliglota, cosmo-

polita, personagem que circulou por diversas culturas num mundo unificado e ao

mesmo tempo dividido – em vários sentidos – pelo Atlântico”.6 Rufino José Maria,

cujo nome mulçumano era Abucare, nasceu no Reino de Oyo, atual Nigéria, onde

em 1822 ou 1823, foi capturado e trazido como escravo para o Império do Brasil.

Morou em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, onde comprou

sua alforria. Tornou-se cozinheiro de navio negreiro. A embarcação em que viajava

foi apresado pelos ingleses, ancorou dois dias na ilha de Santa Helena, e finalmente

5 Citado em leandro, José Augusto. Cultura marítima: marinheiros da baía de Paranaguá, Sul do

Brasil, século xix. Disponível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkcom&page

=article&op=viewFile&path%5B%5D=819&path%5B%5D=626. Acesso em: 31 jul. 2011.

6 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico

negro (c.1822 - c. 1853), p. 355.

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Rufino desembarcou em Serra Leoa, onde estudou numa escola corânica por alguns

meses. Voltou ao Brasil onde escolheu Recife como morada, atuando ali na década

de 1850, como adivinho, curandeiro e mestre mulçumano. Marcus Carvalho, Flavio

Gomes e João José Reis contaram sua história: Rufino deixou rastros suficientes

para um livro.7

Há muitos desses Rufinos no mundo marítimo. Durante o ano de 1849, o Cônsul

do Império do Brasil em Liverpool, John Pascoe Grenfell, expediu catorze mari-

nheiros brasileiros, tripulantes de navios negreiros apresados pelos ingleses, como

recrutas para a Armada. Cinco eram naturais da Bahia; três do Maranhão; dois de

Pernambuco; um do Rio de Janeiro e outros três de Santa Catarina. Manoel Gonçal-

ves, um dos catarinenses, quando chegou ao Império, alegou ser português. Quatro

deles já haviam servido à Armada e um ao Exército, demonstrando como era comum

marinheiros atuarem na marinhas de guerra e mercante. Adelino Pereira “andou em-

barcado 14 anos sempre em navios brasileiros” e Manoel José “tem andado sempre

em embarcações brasileiras”.8

No intervalo de mais ou menos um ano, os marujos realizaram trajetos que co-

meçaram por cinco províncias do Brasil, passaram por três localidades da África

(Santa Helena, Serra Leoa e Angola), aportaram em Liverpool e retornaram para

três províncias do Império do Brasil. A este grupo foram adicionados dois marujos

brasileiros, que ficaram hospitalizados na Jamaica e em Baltimore, EUA, motivo

pelos quais foram deixados por seus respectivos navios mercantes. Quando curados

foram expedidos para o Consulado do Império do Brasil, em Liverpool, de onde

seriam enviados de volta ao Império, juntamente com os marinheiros do tráfico

como recrutas da Armada. Portanto, tornar-se recruta não era necessariamente um

castigo para homens que trabalharam em negreiros.

As identidades pátrias não eram apagadas entre os marinheiros, ainda que

certamente ficassem abaladas. Identidades pátrias, pensadas aqui em relação

ao local de nascimento, seja uma aldeia, uma colônia, uma Nação. O marinheiro

deixava suas pátrias para estar em um espaço intermediário. Esse outro lugar que

o marinheiro ocupou e ocupa, pode ser identificado com o que Michel Foucault

denominou heterotopia: “espaços diferentes, outros lugares, uma espécie de

7 reis, João J; gomes, Flávio; carvalho, Marcus. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico

negro (c.1822 - c. 1853).

8 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.

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contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço que vivemos”.9 Cemitérios,

prisões, hospitais psiquiátricos, bordéis, entre outros lugares o são, mas “o navio

é a heterotopia por excelência”.10

Arthur Bispo do Rosário, um dos artistas brasileiros mais importantes do século

xx, viveu grande parte de sua vida em heterotopias. Aos quinze anos ingressou na

Escola de Aprendizes Marinheiros, serviu na Marinha entre 1925 e 1933, como sina-

leiro, da onde saiu para lutar boxe por um curto período, além de trabalhar como em-

pregado doméstico. A partir de 1939, considerado louco, viveu os últimos cinquenta

anos de sua vida numa instituição psiquiátrica, com exceção de breves saídas.11 Boa

parte do imaginário da sua obra, composta em sua maioria de bordados, diz respeito

à vida marítima: bandeiras, sinais, embarcações e espaços da Marinha, por exemplo,

a Escola de Aprendizes por onde passou. Bordar este imaginário marítimo, como ve-

remos mais adiante, é uma das artes dos marinheiros, desde pelo menos o século xix.

9 foucault, Michel, “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/documents/ heteroTopia/ fou-

cault.heteroTopia.fr.html. Acesso em: 31 abr. 2011.

10 Ibidem.

11 Estas informações biográficas foram extraídas de: hidalgo, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: O senhor

do labirinto.

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santa catarina

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bahiapernambuco

maranhão

jamaica

baltimore

liverpool

serra leoa

santa helena

angola

Os dois marujos que fizeram escala na Jamaica e em Baltimore não eram tripulantes de negreiros, mas foram igualmente enviados como recrutas. Ao lado as trajetórias estão detalhadas.

Fonte: an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.

Trajetórias de marinheiros nacionais de navios negreiros apreendidos pelos ingleses

e enviados pelo consulado brasileiro de Liverpool como recrutas para a Armada

Nacional e Imperial do Brasil

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4.2 “ Eu não sou daqui, eu não tenho amor?” Solidariedades e intolerâncias

O marinheiro George Edward Clark empregou a expressão “motley crowd para

descrever a tripulação de um dos navios que viajou: “havia uma galera heterogênea

(motley crowd) a bordo; homens de todas as nações, de povos que vão para o mar

(sea-going people) holandeses, irlandeses, ingleses, kanakas,12 portugueses, escoceses

e yankees”.13 Como vimos, os portugueses, ingleses e norte-americanos, constitu-

íam uma fração significativa das tripulações da Armada nas primeiras décadas do

Império. A fluída definição sea-going-people é precisa no sentido de identificar os

grupos majoritários no mar. Os brasileiros não eram internacionalmente reconhe-

cidos como tal, mas havia uma minoria de marinheiros nascidos no Império que

circularam por marinhas de diversas nacionalidades.

Conforme visto na Introdução, Peter Linenbaugh e Markus Rediker retomaram

as expressões motley crew (tripulação heterogênea ou horda heterogênea de tra-

balhadores) e motley crowd (horda heterogênea) para referir-se ao seu objeto de

estudo: a “classe multiétnica essencial ao surgimento do capitalismo e da moderna

economia global”.14 Estes autores privilegiaram os traços rebeldes e a cooperação

interna dessa “horda heterogênea, desses “párias de todas as nações”, dessa hidra

de muitas cabeças.15 Concordo que houve conexões e cooperações entre a galera

heterogênea, mas as diferenças geraram igualmente conflitos e hierarquias internas.

Isaac Land ressalta que nas Marinhas britânica e norte-americana:

Motley crews (tripulações heterogêneas) não resultavam automaticamente em

tolerância, e poderiam facilmente resultar no contrário. Na era do nacionalismo,

marinheiros sedentos de aceitação, poderiam apresentar-se como patriotas ver-

dadeiros considerando marítimos estrangeiros como depositários dos estigmas

e suspeitas que recaíam sobre o grupo como um todo.16

12 Kanakas são os marinheiros recrutados nas ilhas do Pacífico.

13 clark, George Edward. Seven years of a sailor’s life, p. 136. Tradução minha.

14 linenbaugh, Peter e rediker, Marcus. A hidra de muitas cabeças, p.15.

15 Idem, p. 38.

16 land, Isaac, The many tongued-hydra: Sea talk, maritime culture, and atlantic identities, 1700-1850, p. 416.

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Um perfil da tripulações estudadas mostra algumas diferenças fundamentais en-

tre alguns grupos e uma decorrente hierarquia interna. Os estrangeiros anglófonos

eram ao mesmo tempo brancos e mais especializados. Os portugueses, também

brancos, ocuparam todas as graduações de marinheiro, mas nas memórias de ma-

rujos anglófonos eram, de modo frequente, vistos como inferiores. A maior parte

dos nacionais não era branca e apesar de ocuparem todas as graduações, a maioria

pode ser encontrada nas mais baixas.

O marujo norte-americano Jacob Hazen, por exemplo, descreveu o ambiente

de um navio de guerra brasileiro como um lugar onde tudo tinha uma aparência

desagradável: “os homens eram pretos e sombrios (...) e mesmo o comandante, com

sua face preta e peluda (...) parecia um orangotango”.17

Em “Os tugas”, um pequeno ensaio ficcional sobre os cabo-verdianos embarca-

dos nos baleeiros norte-americanos, Herman Melville afirma: “De todos os homens,

os marinheiros são os mais preconceituosos, especialmente no que se refere à raça.

São intolerantes. Mas quando uma criatura de raça inferior, um marinheiro inferior,

vive entre eles, parece não haver limites para o seu desdém”.18 O autor, no entanto,

avisa que é preciso ouvir com cuidado essa concepção de seus colegas. A zombaria

dos yankees acontece, porque os “tugas se vendem abaixo do preço, trabalham por

biscoitos, enquanto os marinheiros querem dólares”.19 Segundo Ravi Ahuja, entre

meados do século xix e a década de 1980, os lascares, marinheiros indianos, ganha-

vam cerca de um quarto do soldo dos marujos ingleses na Marinha mercante ingle-

sa.20 É frequente o uso do componente racial/nacional para criar hierarquias entre

homens que fazem o mesmo trabalho, a desigualdade interna é um dos instrumentos

para ganhar um salário melhor, ou criar uma reserva de mercado.

O escocês John Nicol julgava os portugueses os piores marinheiros que exis-

tiam e não suportava suas superstições (expressão que usava para se referir ao

catolicismo).21 Outros marujos memorialistas escreveram frases como: “John An-

tonia era um homem muito civilizado para um português”;22 “Os portugueses são

17 hazen, Jacob, Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war, p. 153.

18 melville, Herman, Os tugas. Revista CELL, n.00, Ouro Preto, 1° sem. de 2010, p. 147.

19 Idem, p. 150.

20 ahuja, Ravi. Mobility and Containment: The Voyages of South Asian Seamen, c.1900–1960. IRSH 51

(2006), Supplement, p. 112.

21 nicol, John. The life and adventures o f John Nicol., p. 150-1.

22 hazen, Jacob, Five years before the mast , p. 63.

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sujos”.23 Nas imediações do Equador há uma proverbial calmaria e um animal aquá-

tico, a “caravela portuguesa”, cujo aspecto lembra de fato esse tipo de embarcação,

é comumente visto ali. O marítimo Joseph Bates explicou que os marinheiros lhe

deram esse apelido, porque quando o mar está calmo, se exibem ao lado do navio

“mostrando aos marítimos que elas também são embarcações”. Mas quando o tem-

po muda e o vento bate, “a coragem falha (...) elas afundam e esperam uma nova

calmaria”.24 Os portugueses eram, no ponto de vista dos muitos anglófonos, idóla-

tras, covardes, inferiores.

Na intimidade certamente houve amizade entre diferentes: no baleeiro em que

o norte-americano Jacob Hazen viajou, o seu melhor amigo era o “hercúleo negro”

Sam Malony. Nos primeiros dias de navegação, por exemplo, ajudou-o quando es-

tava doente, levando-o para sua rede e no momento em que Jacob resolveu deser-

tar, despediram-se na esperança de um dia reencontrarem-se.25 Uma das passagens

mais bonitas de Moby Dick é aquela em que a personagem principal, Ishmael, tem a

oportunidade de conhecer melhor o “canibal” Queequeg, em uma estalagem. Que-

equeg, natural de uma ilha do Pacífico, era tatuado dos pés a cabeça e vendia cabeças

humanas empalhadas. Em uma noite fria, antes de embarcar, teve de aceitar a única

vaga para dormir na estalagem, justamente o quarto e a cama desse estranho com-

panheiro. Ishmael, apesar de apavorado, foi aceitando aos poucos a dura condição.

Após fumarem juntos um “estranho cachimbo”, o “selvagem” tornou-se seu “amigo

íntimo”. Acordaram abraçados, e Ishmael finalmente refletiu: “o sujeito é um ser

humano assim como eu: tem tanto motivo para me temer quanto eu tinha para ter

medo dele. Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um Cristão bêbado”.26

As canções eram uma das linguagens francas dos marujos. Em um dia de lazer

do navio em que o marujo norte-americano George Edward Clark viajava, sob o

som de guitarras, violinos e uma profusão de banjos, onde todo tipo de música foi

cantada, “as canções dos yankees, irlandeses, ingleses e portugueses eram agradá-

veis de escutar, quando cantadas com sentimento e energia nativos verdadeiros”.27

Esse sentimento e essa energia diziam respeito ao que todos tinham em comum: a

saudade dos lugares de origem e a energia adquirida ao longo da dureza da vida ma-

23 ames, Nathaniel, A mariner’s sketches, p. 86.

24 bates, Joseph. Autobiography of elder Joseph Bates, embrancing a long life on shipboard, p. 146-7.

25 Ibidem.

26 melville, Herman, Moby Dick, p. 47.

27 clark, George Edward. Seven years of a sailor’s life, p. 214. Tradução minha.

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rítima. Todos os povos marinheiros criaram um cancioneiro. Nos países de língua

inglesa são chamados sea shanties. Talvez, no caso português, mais do que um simples

cancioneiro, foi constituída uma poética marítima inaugurada por Camões, ininter-

rupta ao longo dos séculos e que voltou a ter seu ápice com Fernando Pessoa e, mais

recentemente, com o fado. No romance de Machado de Assis, Brás Cubas emprega

“a locução de um velho marujo familiar da casa de Cotrim” para reforçar um conse-

lho ao leitor: “se guardares as cartas da juventude, acharás ocasião de ‘cantar uma

saudade’. Parece que os nossos marujos dão este nome às cantigas de terra, entoadas

em alto-mar. Como expressão poética, é o que se pode exigir mais triste”.28

No Brasil, além dos folguedos do litoral e das canções do mar, existem os pontos

de Umbanda das giras de marujo. Um deles ficou popular na voz de Clementina de

Jesus: “Eu não sou daqui, eu não tenho amor/ Eu sou da Bahia, de São Salvador”.

28 assis, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas., p. 216.

Imagem de marujo comprada nas barracas de produtos religiosos da feira de São Joaquim. Salvador, 2008. A maior parte das imagens é de homens brancos, mas há também de negros. Foto: José Gabriel Lindoso.

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4.3 “�Cortando�a�linha”�entre�oficiais�e�marujos:�os�corações�batem do mesmo modo?

Rituais de cruzamento da linha do Equador são registrados desde o século xvi em

navios europeus e, mais tarde, em outras marinhas, inclusive em viagens contem-

porâneas. Segundo Margareth Creighton, Netuno, o Deus do mar, de acordo com a

mitologia grega, tornou-se o mestre de cerimônias ao longo do século xviii.29

Uma versão brasileira desse ritual foi descrita pelo tenente Sabino Eloy, tripu-

lante em uma viagem à Europa da corveta Imperial Marinheiro, em 1857. Nas pro-

ximidades do Equador, às oito horas da noite, “uma voz horrenda em alto brando

interpela a corveta” soltando “uma longa e estrepitosa gargalhada”. Os marujos,

reconhecendo a chegada da autoridade máxima do mar, exclamam: “É o rei Turno”,

um marinheiro fantasiado de Netuno. Segundo Sabino, o “nosso marinheiro tem

certo chiste para estropiar os nomes das divindades da fábula. Nefretite tornava-se

Artrite; Euterpe, Estrepes; Eolo, Jolo; e Netuno, Rei Turno”.30

No episódio narrado, os oficiais entram na brincadeira e pedem consentimento

para atravessar a linha. O Rei Turno permite desde que um pedágio seja pago. A ce-

rimônia acontece no dia seguinte pela manhã, com todos os oficiais presentes. Nas

palavras de Sabino, “Qualquer que seja o rigor da disciplina a bordo, na passagem

da linha sofre ela impedimentos, por tácito consenso do comandante”.

Rei Turno chega vestido com uma “miscelânea de trajes” e montado em um corcel

humano. Tem por ministro das finanças, ou coletor de pedágios, o diabo, que carrega

uma sacola, além de ajudantes, como meirinhos e beleguins. Um de seus sequazes

toma o leme. Rei Turno pergunta pela “proa”, designação para o pedágio. O diabo-

-assistente entra em diversos camarotes recolhendo os donativos. Os grumetes, tam-

bém conhecidos como “peões do mar”, que nunca atravessaram a linha, são lavados,

barbeados e empoados. Para os marítimos de longo curso esse é um ritual de passa-

gem importante, uma espécie de batismo das águas profundas. Depois de uma hora

de brincadeira, semelhante ao entrudo, no entender do tenente, o comandante “vol-

tando ao sério, com um mágico aceno apeou Netuno e a todos os seus das imaginárias

29 creighton, Margareth. Fraternity in the American Forecastle, 1830-1870, The New England Quarterly,

V. 63, n. 4 (Dez. 1990), p. 534.

30 pessoa, Sabino E. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do

Mediterrâneo e do Atlântico, p. 4.

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grandezas, alistando-os de novo entre os bravos marinheiros da sua corveta”.31 Tudo

volta à ordem e “cada qual se contenta com sua verdadeira categoria a bordo”. 32

A suspensão da hierarquia a bordo é narrada como um processo inteiramente

controlado. Para Sabino todas as marinhas permitem diversão a bordo para “su-

avizar” o duro trabalho no mar; em suas palavras “disciplina não é tirania”. O Al-

mirante Nelson construiu teatrinhos nos navios de sua esquadra, recomendando

aos comandantes que conservassem “as guarnições contentes, que as deixassem

rir, folgar, dançar, porque no dia do perigo seriam homens inteligentes a baterem-se

como leões, e não servos envilecidos tangidos pelo terror”.33

Maria Graham interpretou o ritual como uma comunhão momentânea. Ela o

presenciou em 1821, quando atravessou a linha em direção ao Chile acompanhando

seu marido oficial, em um navio inglês:

Gosto deste festival; põe o coração à larga para a gente se divertir. A monotonia de

ver sempre uma classe que detém a inteligência; outra que entra com os braços, a

trabalhar todos os dias em direções, senão opostas, ao menos diversas, é quebrada.

Numa festa todos os corações batem do mesmo modo.34

Como no navio brasileiro, Netuno anunciou durante a noite que realizaria o ritual

pela manhã. O capitão Graham, marido de Maria, autorizou a festa e a farra aconte-

ceu na mais perfeita ordem na manhã seguinte. Os noviços foram barbeados ou paga-

ram taxas, enquanto o resto da tripulação, “oficial ou não”, entraram na brincadeira

batizando-se uns aos outros. Como no relato de Sabino o bom termo prevaleceu:

Parecia realmente que a loucura dominava, mas, no momento marcado, onze e

meia, tudo cessou. Ao meio dia todo o mundo estava a postos, os tombadilhos secos

e o navio restituído à boa ordem do costume. Todos os nossos oficiais de carreira

jantaram conosco e envaidecemo-nos de ter terminado o dia tão alegremente como

o havíamos começado.35

31 Idem, p. 5.

32 Ibidem.

33 Ibidem.

34 graham, Maria Dundas. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos

1821, 1822, 1823. p. 99 - 100.

35 Idem, p. 103.

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Na visão dos oficiais, prevalece a leitura de que esse momento de diversão e subver-

são não atrapalhava em nada a ordem do navio, pelo contrário, é uma ocasião para se

respirar e fazer com que a viagem prossiga. A mesma lógica funcionava em relação

à bebida alcoólica, como veremos adiante.

Segundo Margareth Creighton, a partir da leitura dos diários de tripulantes de

navios baleeiros norte-americanos:

(...) apesar de Netuno insistir que um certo nível de cooperação entre tripulação e

oficiais era necessário para a operação segura e eficiente do navio, sua mensagem

principal era apenas para os marujos (...), os veteranos orquestravam a visita e o

significado de sua mensagem era coletivizar os marujos em oposição aos oficiais:

o principio de governo da proa era a fraternidade e que as regras do navio não eram

apenas impostas pelos oficiais, mas também internamente construídas.36

O acordo tácito de uma pausa para as relações de poder servia aos dois extremos da

hierarquia. Oficiais ganhavam, “cedendo” espaço para os marujos, simulando “obe-

diência” ou tolerando sua farra por um curto período. Os marinheiros reuniam-se de

modo coletivo para organizar a festa, e aproveitavam para iniciar os mais inexperien-

tes na sua maritimidade, mas sempre delimitando as hierarquias internas. As “imagi-

nárias grandezas de Netuno e seu séquito marujo”, provavelmente se escoravam na

crença da grandeza do marinheiro experiente. O significado da expressão “estamos

todos no mesmo barco” refere-se à cooperação e à consciência de que a ordem tem

de ser mantida tanto entre oficiais e marujos quanto entre os próprios marujos.

Segundo depoimento de dois praças da Marinha do Brasil, o ritual ainda é pra-

ticado no cruzamento da linha do Equador. Os oficiais continuam aparentemente

controlando ou anuindo o processo. Os marujos são besuntados com graxa, têm

de engolir um punhado de sal e tomar banho em uma piscininha salgada. Alguns,

provavelmente novatos, são vestidos com roupas femininas e obrigados a agir como

“mulherzinha” de Netuno.37 Em suas memórias como homossexual na Marinha, o

ex-cabo Flávio Alves, referiu-se ao ritual como “selvagens festividades quando o

navio cruza a linha do Equador”,38 das quais não teria participado. O ritual portava

e porta muitos significados.

36 creighton, Margareth. “Fraternity in the forecastle.” The New England Quarterly, Vo. 63, n.0 4. p. 537.

37 Depoimento oral à autora de marujos que trabalham no Centro Cultural da Marinha no Rio de Janeiro.

38 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.

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4.4 Grog

A ingestão de bebidas alcoólicas não era uma prática apenas nas tavernas e estala-

gens dos portos, também fazia parte da ração diária distribuída por muitas Marinhas

de Guerra. No Brasil doses diárias eram previstas na Legislação. O seu consumo

causou confusões nos navios e, ao mesmo tempo, funcionou como instrumento de

controle, de disciplina, ou seja, um elemento de barganha e era .

O chamado grog foi criado na Royal Navy britânica no século xviii: era feito com

uma parte de bebida alcoólica diluída em três partes de água, misturada com açúcar

e, às vezes, limão, no entanto, também passou a designar bebidas alcoólicas puras.

Grog derivou a gíria grogue, que hoje em dia significa “atordoado, por ter (ou como

se tivesse) ingerido bebida alcoólica”.39 Em Cabo Verde é o nome da bebida nacional,

um aguardente de cana de açúcar. Na Armada do Brasil, a distribuição de aguarden-

te aparece pelo menos em dois decretos que contêm tabelas de alimentação para

39 Verbete grogue. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

“Crossing the line on board the flying squadron”. London Ilustrated news, suplemento, 12 de março de 1881. Colorizada a mão.

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oficiais e praças: o de 5 novembro de 1847 e o de 4 de maio de 1872.40 Assim como na

Marinha norte-americana e britânica, na brasileira a dose diária variava de 100 a 200

ml. No decreto de 1872 a dose extra é denominada grog: “nas ocasiões de grandes

fainas, de muita chuva ou de muito frio, [fornece-se] uma ração de café com açúcar

ou grog quente, sendo este feito na razão de uma medida de aguardente, três ditas

de água e uma libra de açúcar”.41 No decreto de 1847, abonava-se o marujo em dias

de grande faina com uma dose pura de aguardente.

O fumo também chegou a ser fornecido pela Marinha Imperial. No Livro de

socorros da fragata Imperatriz das décadas de 1820 e 1830, os marujos receberam

tabaco, devidamente descontado de seus soldos. Talvez, isso acontecesse apenas

em situação de guerra, como incentivo à permanência nos navios.

Hoje em dia, a bebida alcoólica não é distribuída oficialmente na instituição. Mas

alguns relatos dos pacientes do Centro de Dependência Química da Marinha do

Brasil indicam que beber durante o serviço, apesar de proibido, mantém-se uma

prática corriqueira , um “incentivo” em comemorações e momentos de trabalho

extra: “Foi na Marinha que eu aprendi a beber. Sexta-feira “rola” uma caipirinha com

dobradinha. Sempre tem um evento, uns aniversariantes do mês” ou “Às vezes, o

Comandante libera um ‘incentivo’ pra fazer as faxinas , uma ‘branquinha’ [aguar-

dente]; ele faz vista grossa, pra sair o serviço”.42

Segundo as autoras dessa pesquisa sobre o alcoolismo na Marinha, os relatos

de pacientes apontam para “uma mentalidade que é simpática e favorável ao con-

sumo do álcool”.43 Esses depoimentos vão ao encontro da fala do meu informante,

fuzileiro naval no fim da década de 1970: em alto-mar, em dias muitos frios, alguns

oficiais de baixa patente bebiam com os praças. Quando a cachaça escondida aca-

bava, misturava-se álcool roubado da cozinha com groselha.

Em White-Jacket, o personagem homônimo, alter ego de Herman Melville, des-

creve a importância do grog para os marinheiros de um navio da Marinha de Guerra

norte-americana oitocentista: “para muitos deles, a expectativa do trago (tot) di-

ário cria uma perspectiva perpétua de paisagens deslumbrantes indefinidamente

40 Decreto n. 541 de 5 de novembro de 1847, Coleção de leis do Império de 1847; decreto n. 4954 de 4 de

maio de 1872, Coleção de leis do Império de 1872.

41 Decreto de 4 de maio de 1872. Coleção de leis do Império de 1872.

42 halpern, Elizabeth; leite, Ligia M.C.. Lei seca no mar: desafios preventivos na Marinha do Brasil.

Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 62, n. 2, 2010, p. 103.

43 Ibidem.

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esvanecendo com a distância. É sua grande perspectiva na vida. Tire o grog deles e

a vida não possui mais nenhuma graça”.44 White-Jacket afirmou conhecer muitos

homens alcoólatras miseráveis em terra que se engajavam na Marinha, por ser uma

de suas poucas possibilidades de sobreviverem, transformando-a em uma espécie de

“asilo para os bêbados, que prolongava suas vidas pelos exercícios, disciplina, onde

duas vezes por dia aplacava-se com doses certas e moderadas”.45 A personagem

aconselhou um colega, dizendo que o álcool estava lhe destruindo. O mesmo lhe

respondeu: “Largar o grog? Por quê? Porque está me arruinando? Não, não; eu sou

um bom cristão, e o amor que tenho pelo meu inimigo não permite abandoná-lo”.46

Uma canção de marinheiro portuguesa oitocentista, atribui à bebida a condição para

o marujo não abandonar a vida no mar:

Arrenego de tal vida,

Que nos dá tanta canseira!

Sem a nossa bebedeira

Nós não passamos!47

Na Umbanda, a principal característica dos espíritos marinheiros que descem na

gira (ritual de possessão de espíritos) é justamente o seu estado de permanente

embriaguez, além do andar trôpego. Como diz um verso de um ponto:

Marujo bebe na boca do garrafão,

pisa de pé em pé pra não cair no chão.

Em “Martim Pescador”, o marinheiro assume o hábito da cachaça, altivamente:

Martim pescador que banda é a tua,

bebendo cachaça, caindo na rua?

Eu bebo minha cachaça,

eu bebo muito bem,

44 melville, Herman. White-Jacket, p. 403.

45 Ibidem.

46 Idem, p. 404.

47 “A vida do marujo” - canção. neves, Cesar A das & campos, Gualdino de. Cancioneiro de musicas popu-

lares, V. iii, p. 111. Segundo os autores, ela foi transcrita da peça Probidade de 1859, de César de Lacerda.

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Pago com meu dinheiro,

Não é da conta de ninguém.

Seja na tradição norte-americana, inglesa, portuguesa ou brasileira, os próprios ma-

rinheiros não dissociam a vida no mar da bebida alcoólica: o estigma é assumido

como uma condição da profissão.

4.5 Homossexualidade

Sodomia ou pederastia eram as palavras utilizadas para relações homossexuais no

século xix, sendo que, o último termo todavia é empregado. Em 1969, durante a

ditadura militar, foi criado um novo código penal militar que vige até hoje. O artigo

235, intitulado “Pederastia ou outro ato de libidinagem”, apresenta pena de deten-

ção de seis meses a um ano para o ato de “Praticar ou permitir o militar que com ele

se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração

militar”.48 Há um projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados, desde 2000,

que visa retirar do código os termos “pederastia” e “homossexual”, pois esse uso,

além de inconstitucional, categoriza discriminação contra os homossexuais.49 Nos

Estados Unidos a lei conhecida como “Don´t ask don´t tell” é mais recente. O sujeito

de orientação homossexual não pode declarar-se ou agir como tal. O castigo é a ex-

pulsão. Entre 1993 e 2010, 17 mil homens tiveram de abandonar as Forças Armadas.

Em 2010, Barak Obama assinou um primeiro compromisso para revogar a lei.50

Na década de 1990, o ex-cabo Flávio Alves, que transformou sua experiência

de homossexual na Marinha em um depoimento publicado em livro, explicou suas

48 Decreto-Lei n. 1001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar. Disponível em: http://www.

planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso em: 31 jul. 2011.

49 Projetos de lei: 2773/2000 e 6871/2006 (Altera a redação do art. 235 do Código Penal Militar, excluin-

do do nome jurídico o termo “pederastia” e do texto a expressão “homossexual ou não” e acres-

centando parágrafo único, para excepcionar a incidência. - Altera o Decreto-Lei nº 1.001, de 1969).

Disponíveis em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp. Acesso em: 31 jul. 2011.

50 stolberg, Sheryl G. Obama signs away ‘Don´t ask, don´t tell. New York Times, 22 de dezembro de

2010. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2010/12/23/us/politics/23military.html>. Acesso

em: 31 jul. 2011.

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motivações para ingressar na instituição. Ainda que a homossexualidade não tenha

determinado sua escolha, ele admite que possa ter influenciado outros:

Servir a Marinha do Brasil não foi uma decisão tomada pelo fato de, supostamente,

esta arma ser a mais tolerante com relação ao homossexualismo. Ou ainda, porque

a solidão em alto-mar seria uma reserva infindável de oportunidades sexuais. Isto

poderia ser considerado verdadeiro para muitos marinheiros, e, talvez, realmente

seja. Para Flavio, vestir uniforme era como estar a salvo e imune diante do tene-

broso futuro que a nossa sociedade reserva aos filhos de famílias pobres que vivem

em subúrbios de grandes capitais.51

Pelo menos até a década de 1990, quando ele serviu, a Rua Visconde de Inhaúma, pró-

xima ao Quartel do Primeiro Distrito Naval, na região central do Rio de Janeiro, era

um “ponto de pegação, onde fantasias sexuais com marinheiros estão disponíveis”.52

Homens não marítimos dirigiam-se ao local durante a madrugada para abordar ma-

rinheiros, a fim de ter relações sexuais, pagando ou não. Alves encontrou amantes

nesse local e discorreu sobre a atração que o uniforme militar provocava no mundo

homossexual civil.

Os ambientes de marinheiros e soldados nas grandes cidades continuam con-

tendo espaços para homossexuais, os quais não são restritos apenas a eles, mas tam-

bém aos não marinheiros que os procuram. Esses locais não constituem, necessa-

riamente, espaços de população homossexual significativa: não há uma tendência

homossexual entre os militares. Foi um estigma construído não apenas por práticas

internas, mas principalmente pelas atribuições, criadas por meio de preconceitos

e fantasias dos civis.

O sargento do Exército, Abílio Teixeira, escreveu um artigo para a revista Veja,

em 1995, sobre a proliferação da aids nas Forças Armadas. Ele atribuiu o fenômeno

à pobreza do recruta e às más condições de trabalho:

No quartel, a comida é ruim e o soldo é baixo. Com a distância dos parentes e dos

amigos, é grande a carência afetiva. Os recrutas acabam caindo nos braços de ho-

mossexuais, que os assediam nos portões dos quartéis e em pontos de prostituição

51 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.

52 Idem, p. 84.

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da cidade com seus carrões, promessas de diversão, um bom jantar, presentes e

dinheiro. Juntando carência afetiva, falta de dinheiro e desinformação, o soldado

não resiste e acaba nos braços do homossexual – sem usar camisinha.53

Apesar de pretender esclarecer uma situação alarmante causada por uma política de

silêncio, Teixeira admite apenas o fenômeno da homossexualidade fora dos quartéis,

em meninos pobres e inocentes, impelidos por homossexuais civis endinheirados.

Não falaria da homossexualidade dentro dos quartéis, por ferir a honra do Exército

e ser considerada uma prática ilegal, além de, e especialmente por isso, continuar

sendo um tabu depois de séculos.

O imaginário em torno dos civis que procuravam por praças, sobretudo da Mari-

nha, para manter relações sexuais, era, e continua sendo, recorrente. Em Recordações

do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto criou o personagem jornalista Raul Gusmão,

afeminado, inspirado no escritor João do Rio. Misturando seus desafetos pessoais

com o escritor, ele construiu um homossexual com características desagradáveis.

Para sugerir que o personagem era sexualmente ativo, em um diálogo de Isaías Cami-

nha com um amigo, este lhe diz que viu Raul Gusmão entrando em uma hospedaria

da Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, com um fuzileiro naval.

Um amigo de Mário de Andrade declarou ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade,

que uma vez perguntara ao escritor e musicólogo, qual seria o tipo de música que ele

mais gostava. Mário teria respondido: “Não existe música mais bonita do que o ruído

do cinto de um fuzileiro naval batendo na cadeira de um hotel da Praça Mauá”.54

Essa é mais uma das muitas histórias, não documentadas, sobre a homossexuali-

dade de Mário de Andrade envolvendo marítimos. Um professor universitário de

história, no cafezinho do Arquivo Nacional, me contou, em tom jocoso, que Mário

fazia suas pesquisas sobre cultura popular no porto de Santos, com vários relógios

no pulso, os quais oferecia aos marujos em troca de favores sexuais. Enfim, ser visto

com marítimos era praticamente uma metáfora para aludir à homossexualidade.

O pintor Paul Gauguin foi marinheiro da Marinha mercante francesa na década

de 1860. O romancista Mario Vargas Llosa, escreveu Paraíso na outra esquina, ba-

seado nas vidas do pintor e sua avó, a revolucionária Flora Tristan. No romance, é

narrada a viagem de Havre ao Rio de Janeiro, itinerário que o jovem Gauguin fez na

53 teixeira, Abílio. A aids ameaça o Exército. Veja, 1º de novembro de 1995, seção “Opinião”, p. 126.

54 Citado em: trevisan, José Silvério. Devassos no paraíso, p. 259.

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vida real, em 1865. Haveria um ritual, ao qual todo marujo novato deveria submeter-

-se: uma relação homossexual passiva. Apesar de alguns veteranos, “carregados de

álcool”, jactarem-se de “haver passado por esse ritual de marinheiros”, o pintor

francês mostrou “a esses lobos-do-mar sublevados pela falta de mulher que quem

quisesse enrabar Eugène-Henri Paul Gauguin tinha de estar disposto a matar ou

morrer”. Já um companheiro aspirante:

(...) foi violado na casa de máquinas por três foguistas, que, depois, ajudaram-no

a secar as lágrimas garantindo-lhe que não devia se envergonhar, era uma prática

universal do mundo marinheiro, um batismo do qual ninguém se livrava, que por

isso mesmo, não ofendia, na verdade criava uma irmandade entre a população.55

Se esse ritual de passagem era uma prática universal do mundo marinheiro ou do

mundo ficcional, importa. Tradicionalmente, os temas homossexuais são transfor-

mados em mitos, lendas e piadas. Aqueles que violaram o companheiro de Gauguin,

foram os mesmos que o consolaram, fato que significava a superação de mais um

obstáculo da maioridade maruja, aproximando-o da “irmandade da tripulação”.

Essas histórias não aparecem apenas nos romances e nas anedotas. Em artigo

sobre as toalhas que o marinheiro João Cândido56 bordou enquanto esteve na ca-

deia, José Murilo de Carvalho atribui uma possível homossexualidade ao marinheiro

rebelde a partir de evidências e tipologias não convincentes. Em uma das toalhas,

Cândido bordou um coração sangrando. Carvalho pergunta: por quem sangrava

seu coração? O autor descreve Cândido como marinheiro “conegaço”, seguindo a

definição de Gilberto Freyre: “o conegaço era um protetor, um tutor, um pai, além

de amante, do jovem grumete”.57 Em Ordem e Progresso, Freyre interpreta a revolta

dos marinheiros de 1910 “como um triunfo alcançado pelos revoltosos por meio do

prestígio dos ‘cônegos’ entre seus noviços; e contra uma aristocracia de oficiais su-

periores desde o Império demasiadamente afastada da tropa”.58 Freyre entendia que

os cônegos, “protetores já veteranos e experimentados na vida militar e marítima,

se esmeravam em fazer de marinheiros ainda quase meninos, verdadeiros marujos

55 llosa, Mario Vargas. O paraíso na outra esquina, p. 80.

56 Um dos líderes da revolta dos marinheiros de 1910.

57 carvalho, José M.. Os bordados de João Cândido, p. 79.

58 freyre, Gilberto. Ordem e progresso, p. cxxvii.

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no garbo, no aspecto, e no comportamento militar, exigindo, porém, dos iniciandos

que fossem particularmente carinhosos com eles, mestres”.59

Amaro, o “bom-crioulo” do romance de Adolfo Caminha, era, sim, um conegaço.

O seu protegido e depois amante, o grumete Aleixo, de 15 anos, havia acabado de in-

gressar na Marinha. No primeiro encontro dos dois, Bom-crioulo lhe disse: “Quando

alguém o provocar, lhe fizer qualquer coisa, estou aqui, eu, para o defender, ouviu?”60

Nas palavras de Carvalho, “o típico amor de marinheiro, segundo se pode deduzir

de Bom-crioulo e de depoimentos da época, era o de um conegaço ou de um oficial

por um jovem grumete, em geral ‘um menino bonito’”.61 Ele deduz que João Cân-

dido poderia “facilmente enquadrar-se no modelo do Bom-crioulo”, além de que o

jovem amante de João Cândido poderia ser um “marinheiro jovem e bem apessoado”

59 Idem, p. cxxvi.

60 caminha, Adolfo. Bom-crioulo, p. 27.

61 carvalho, José M. Os bordados de João Candido. p. 79.

Antonio Ferreira de Andrade, “secretário de João Candido” ao lado de João Cândido. Este último lhe denominou, em uma lista do grupo publicada na Gazeta de Notícias, como “secretário da oficialidade dos revoltosos”. Revista Careta, n. 131, 03 de dezembro de 1910.

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anônimo, visto em fotos de jornais e revistas da época sempre ao lado de Cândido,

apresentado como seu imediato ou assistente. Para compor melhor o contraste em

relação ao “jovem bem apessoado”, Carvalho descreve Cândido como “um crioulão,

alto, forte e feio, boca enorme, maças salientes com 30 anos de idade”.62

Esse marinheiro jovem e bem apessoado foi identificado por Marco Morel como

Antonio Ferreira de Andrade, secretário da “oficialidade dos revoltosos”, listado por

João Cândido em suas memórias publicadas na Gazeta de Notícias, entre 1912 e 1913.63

Mesmo se não houvesse tal informação, o fato de supor que o imediato, assistente e

sempre ao lado de Cândido, era seu amante, o “seu Aleixo”, não é uma evidência em

si. Apesar de jovenzinho, ele fazia parte do alto comando da revolta, provavelmente

por saber ler e escrever.

Certamente deveria haver esse tipo de relacionamento entre os oficiais inferio-

res ou entre marujos experientes e os noviços. O problema na análise de Freyre e

Carvalho é a maneira como as relações pessoais tornam-se uma chave de interpre-

tação da revolta sem, no entanto, apresentar evidências, mas apoiando-se em um

tipo social, o que reforça os estigmas.

O tabu silencia, alude, supõe, nunca afirma, alguém disse, alguém viu. Torna-

-se tema de romance. Não importa o quanto é mito ou realidade: a relação entre o

sexo e os marítimos ou militares esteve e está atrelada no imaginário criado sobre

esses homens. Já há muito tempo, quartéis e navios seriam lugares de práticas ho-

mossexuais que atraiam públicos civis. Na Marinha, finalmente, essa prática não

significava ter nascido com uma orientação homossexual, por meio dela se poderia

atender um desejo circunstancial, viver um rito de passagem ou, simplesmente, levar

a fama sem praticá-la. Assim como há mitos, em torno dos marítimos, há segredos

internos difíceis de acessar.

A punição ao intercurso sexual entre dois homens não era prevista nos códigos

penais militares do século xviii e xix. Apenas estupro a indivíduo de qualquer sexo.

Mas existiam punições disciplinares e, eventualmente, processos quando havia al-

gum flagrante.64 Segundo Peter Beattie, a primeira aparição de palavras relacionadas

à homossexualidade nos códigos criminais militares foi no já mencionado de 1969.

62 Idem, p. 70.

63 morel, Marco. João Candido, a luta pelos direitos humanos, p. 58 e 61.

64 beattie, Peter M. Ser homem pobre, livre e honrado, p. 282-3.

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Se palavras relacionadas à homossexualidade não eram presentes na legislação,

relatos médicos enfatizavam esta prática nos ambientes militares. Em 1872, o médi-

co Francisco Ferraz de Macedo, em uma tese sobre a prostituição, atribuía à sodomia

nas Forças Armadas, às contingências da vida militar. “Na classe militar, ou seja, por

falta de tempo ou por falta de meios, a sodomia tem tomado tal desenvolvimento

que raros são aqueles que não façam uso”.65 Vinte anos antes, o segundo cirurgião

da Armada, Emidgio José Barbosa foi mais contundente. Ele entendia que devido

aos maus hábitos dos próprios oficiais a instituição não estava cumprindo seu pa-

pel civilizador para com a marujada. Em um longo relatório sobre a viagem que fez

na corveta Imperial Marinheiro, em 1852, o cirurgião afirmou que “cada navio de

guerra brasileiro é uma sodoma (...) Cada Imperial Marinheiro, um Nicomedes, um

Sardanapalo”. Atribuiu às práticas homossexuais na Marinha como sua causa mais

imediata, a fisiológica: “facilidade de gozo que causa muito depressa saciedade; esta

chama em seu socorro a novidade e variedade.” No entanto, a sua constatação de

que essa prática não seria apenas fruto da imoralidade dos pobres, mas também dos

oficiais, torna seu ponto de vista original. Barbosa denuncia que os oficiais fazem os

marinheiros “de sua mulher e vice-versa”, desconstruindo a ideia de ativo e passivo e,

apesar de “ter vergonha de contar”, acusa seus colegas cirurgiões “dentre os oficiais

os prosélitos mais fervorosos desta seita”.66 Os marinheiros seriam vítimas de maus

oficiais: “A eles nada se ensina; a eles se degrada, se avilta; a eles se irracionaliza”.67

O relatório de Barbosa comprometia seus colegas oficiais, provavelmente, porque

não fora escrito para publicação. Em Bom crioulo, os tripulantes do navio de Amaro,

o personagem principal, “diziam coisas” sobre o comandante. Por exemplo, que

“era cheio de indiferença pelo sexo feminino, e cujo ideal genésico ele ia rebuscar

na própria adolescência masculina, entre os de sua classe”.68 Este mesmo coman-

dante, antes de um castigo cruel que transformou Bom Crioulo em uma “grande

chaga aberta viva e cruenta”, bradou diante de todos: “Desobediência, embriaguez

e pederastia são crimes de primeira ordem! Não se iludam”!69

65 Citado em beattie, Peter M. Tributo de Sangue, p. 34.

66 Relatorio do Dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial,

embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr. Joaquim Candido Soares de Meireles, cirurgião-chefe

do corpo da Armada. an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde.

67 Idem.

68 caminha, Adolfo. Bom crioulo, p. 68.

69 Idem, p. 45.

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4.6 Dândis�do�mar:�homens�tatuados�de�camisa�riscada�e� roupas bordadas

A cultura da tatuagem também atravessou fronteiras de diferentes nações. Encontrei

dois grupos de registros de tatuagens: no Livro de socorros da fragata Imperatriz

de 1835, e em uma lista de marujos de 1850, majoritariamente norte-americanos,

engajados em Liverpool, para a Armada do Império do Brasil.

Há 55 descrições de tatuagens dos marujos da fragata Imperatriz: 24 eram estran-

geiros, e 31 nacionais. As tatuagens constituíram uma cultura marítima internacional

que já incluía angolanos, londrinos, norte-americanos, baianos, pernambucanos,

cariocas, catarinenses, uruguaios, brancos, caboclos, pardos, entre outros. A maior

parte tatuou iniciais (as suas próprias ou as de outrem), corações, crucifixos, ânco-

ras, estrelas ou signos de Salomão; anos (1821, 1830 etc.) e embarcações. Além de

Detalhe da gravura The saylor’s return. Inglaterra, 1847. A mão direita do marujo tem uma âncora e uma estrela, também descrita no século xix como signo de Salomão. Na gola, mais uma estrela bordada. Litografia colorida: Currier & Ives. Washington, eua, Library of Congress.

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“figuras” e “imagens”, cujos conteúdos não são descritos, mas que provavelmente

tratava-se de mulheres e familiares.70

As tatuagens de 1850 são basicamente de norte-americanos e repetem os mo-

tivos do conjunto anterior, com grande incidência de iniciais, âncoras e crucifixos.

Mas há uma novidade: das 71 tatuagens, 11 são de símbolos nacionais norte-ameri-

canos: brasões de armas, a águia, a bandeira da liberdade.71 Esse patriotismo norte-

-americano é declarado textualmente nos diários dos marujos, assim como nos

discursos de memória dos marujos yankees. Jacob Hazen, um rebelde declarado,

tornou-se patriota depois de servir à Marinha de seu país, não à toa termina suas

memórias marítimas glorificando-a:

Eu prefiro os navios do tio Sam, entre todos aqueles que navegam no oceano, pois

há uma alegria que perpassa os navios de guerra que supera no coração do marí-

timos os dólares e centavos. Há um orgulho no peito do Americano que arde com

nacionalidade e este sentimento é maior no marinheiro. Ele ama seu país e sua

bandeira. e se, as vezes, ele encontra um tratamento duro no serviço, ele se consola

com a reflexão que também já experimentou o que há de bom.72

Uma parte dos marinheiros norte-americanos ama seu país e sua bandeira. As ta-

tuagens patrióticas são literalmente uma marca indelével desse amor. No entanto,

mesmo tatuando os símbolos do seu país (e não do local de nascimento), devido às

intempéries do mar, esses homens engajaram-se na Armada do Império do Brasil

em Liverpool! Patriotas atlânticos...

70 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz, 1832-1835, .

71 an, Série Marinha, im 16, Engajamento de marinheiros ingleses.

72 hazen, Jacob, Five years before the mast, p. 443-444. Tradução minha.

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A tatuagem, ao que parece, foi um hábito cultivado pelos marujos europeus que

frequentaram o oceano Pacífico no século xviii ou mesmo antes. No século xix já

estava plenamente difundida no Atlântico entre a galera heterogênea. O repertório

de tatuagens era mais ou menos limitado e costumava ter significados relacionados

à vida no mar, ou à saudade da vida na terra. A cruz poderia salvar de um afogamento,

as embarcações representavam uma identificação com a profissão e os corações a

lembrança dos entes amados etc. A âncora significava a travessia do oceano Atlântico,

entre tantas outras atribuições que poderiam variar no tempo e no espaço.

A tatuagem era, enfim, mais uma atitude radical dos marinheiros. Sujeitos estig-

matizados e marginalizados pelas atribuições generalizadas de origem entre a gente

de baixo calão, de certa maneira essa cultura coroava sua identidade marginal. Se,

por um lado, ajudava a restringir o seu acesso ao mundo terrestre, por outro legiti-

mava sua entrada no universo marítimo. É importante ressaltar que a classe média

e alta da sociedade ocidental se rendeu à tatuagem apenas nas últimas décadas do

século xx, moda que os marujos lançaram e aderiram já no final do século xviii, e

Detalhes da lista de marinheiros engajados em Liverpool pelo cônsul brasileiro, com o lugar de nascimento, idade e tatuagens. Em 1850, originários de Nova York, Copenhague e Holanda entre outras localidades, se engajaram em Liverpool para servir na Armada Imperial e Nacional do Brasil. an, Série Marinha, im 16.

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outros grupos marginalizados, como presidiários, prostitutas, trabalhadores urba-

nos e artistas populares abraçaram ainda no xix.

Outra distinção estética adotada por uma parte dos marinheiros era o uso de

argolas na orelha. No entanto, nos livros de socorros que consultei, eles não foram

mencionados. Luiz Geraldo Silva encontrou pelo menos duas descrições de escravos

marinheiros fugidos em 1836 e 1846 que tinham orelhas furadas, um deles com argo-

las, “à moda dos flibusteiros do Caribe”.73 Essa certamente foi uma moda marítima

atlântica, adotada por africanos, flibusteiros, piratas ou marinheiros comuns. Há

nas pranchas de Debret escravos com argolas.

73 A faina, a festa e o rito: Gentes do mar e escravidão no Brasil (sécs xvii ao xix). São Paulo, 1996. Tese de

doutorado - fflch, Departamento de História, usp, p. 232.

Em Liverpool, um marinheiro negro com argola na orelha. National Maritime Museum.

Nos Estados Unidos um marinheiro branco também usa argolas. Daguerreótipo, coleção particular.

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O modo de andar marujo também era reconhecido nas cidades: um autor inglês

escreveu já no século xviii: “marinheiros balançam o corpo como um pêndulo e acre-

ditam que esta é posição mais equilibrada. Eles estão certos que andam firmemente

enquanto as outras criaturas tombam”.74 Os autores do fado “O marujo português”,

do século xx, descreveram o andar do marujo: “quando se jinga, faz tal jeito tem tal

proa, para que não se distinga se é corpo humano ou canoa”.75

Até o início do século xix os marujos, pelo menos na iconografia inglesa, eram

retratados como homens decadentes. Em meados desse século eles passam a figurar

como homens bonitos, bem vestidos, eu diria até como heróis. O interesse dos não

marítimos pela cultura dos marujos contribuiu para essa mudança. Seja pela apre-

ciação, pela roupa, pelas canções, pelos relatos publicados, um interesse cultural

menos discriminador, ou um fascínio, são aspectos que se juntam aos estigmas que

ainda os acompanham até hoje.

Versos de canções populares do século xx, como o fado “O marujo português” e

a canção brasileira “Marinheiro só”, trazem versos enaltecendo a graça do marujo.

Na primeira, ao chegar a Lisboa ele “põe com malícia a sua boina maruja” de onde cai

“uma madeixa de cabelo descomposta”.76 Em “Marinheiro só”, “ele vem faceiro, todo

de branco, com seu bonezinho”. Em meados do século xix, o marítimo e jornalista

Charles Nordhoff fez uma descrição estética da roupa do marinheiro valendo-se

da sua experiência e de seu talento narrativo:

Azul é a roupa de trabalho do marinheiro, branca é a roupa dos dias de folga. (...)

O verdadeiro marinheiro de guerra é muito particular nas suas vestimentas. Não

há alguém mais dandy que ele. Não há janota da Broadway que preste mais aten-

ção ao corte de seus indescritíveis ornamentos, o caimento de seu colarinho, no

nó de seu lenço, ou no lustre imaculado de seus sapatos (...) por muitas horas ele

faz pose diante de seu espelhinho redondo de bolso (...) para alcançar tal visual

original. (...) Olhe para seu colarinho azul disposto com graça sobre seus ombros

largos, em torno de seu pescoço bem torneado, seu chapéu inclinado com estilo

sobre a sobrancelha esquerda, uma mão colocada displicentemente no quadril e

ninguém precisará te dizer que você está diante de um marujo.77

74 Citado em rediker, Marcus. The devil and the deep blue sea, p. 11.

75 O marujo português, fado de Linhares Barbosa e Arthur Ribeiro.

76 Idem.

77 nordhoff, Charles, Nine years as a sailor, p. 130.

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Essa imagem estetizada e criada pelos próprios marinheiros passou a ser admirada

pelo imaginário dos não marítimos, inclusive, copiada. A graça que demonstravam

não era adorada apenas pelos frequentadores e frequentadoras das regiões portuá-

rias. As elites não deixaram esse movimento estético passar despercebido e, em 1846,

Albert Edward, filho da Rainha Vitória, foi retratado com roupas de marinheiro e,

provavelmente por isso, se tornou um ícone da moda quando se trata de vestir as

crianças para serem fotografadas.78 A roupa de marinheiro é uma fantasia frequente

nos carnavais há muitas décadas, no entanto, fora do carnaval, uma moda urbana

baseada em roupas de marinheiros, conhecida como navy, se espalhou pelo século

xx: as modelagens de calça, blusa e casacos são reproduzidas até hoje pelas confec-

ções do mundo todo. Em butiques da Europa, Estados Unidos e Brasil as chamadas

calças e blusas de marinheiros, são peças sempre lançadas e relançadas nas coleções,

cuja modelagem é muito semelhante a dos marujos do século xix.

Durante a cabanagem o comandante da frota da Armada, John Taylor, estava pre-

ocupado com a falta de pagamento de soldos, pois os marujos não tinham dinheiro

78 Ver a este respeito, land, Isaac. Sinful propensities piracy, sodomy and Empire in the rethoric of

Naval Reform, 1770-1870. In: rao, Anupama; pierce, Steven (Eds), Discipline and the Other Body: Hu-

manitarianism, Violence, and the Colonial Exception.

Franz Xaver Winterhalter. Albert Edward, 1846. O filho da Rainha Vitória e futuro Rei Eduardo vii. Óleo sobre tela. Londres, The Royal Collection, St. James Palace, Londres, Reino Unido.

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para comprar “roupas e sapatos”.79 Ora, é claro que roupas e sapatos, nesse caso, pode

se tratar de uma expressão simbólica para objetos de uso pessoal. Em geral, mesmo

tendo família, não havia muitos meios de enviar dinheiro ou poupar para compartilhar

com ela. Assim, a maior parte dos gastos dos marujos pode, de fato, ter sido destina-

da ao consumo próprio, como bebida, tabaco, roupas, sapatos, livros, mulheres etc.

Muitos marinheiros costuraram e bordaram suas roupas e acessórios. Uma de

suas habilidades, previstas ou adquiridas, deveria ser a costura, devido às velas e à

própria necessidade de cuidar de suas roupas. Na fragata Imperatriz há registros de

recebimentos de fardos de tecidos em vez de roupas.80

Os dois marinheiros brasileiros mais conhecidos do século xx, João Cândido e

Arthur Bispo do Rosário, tiveram seus bordados guardados em museus. Eles con-

tinuaram uma arte marítima frequente desde o século xix. Nos Estados Unidos há

bordados de marinheiros conservados em museus, como as roupas e a bolsa do ma-

rujo norte-americano Waren Opie, da década de 1840, reproduzidas abaixo.

Documentos manuscritos, iconográficos e objetos da arte maruja mostram que os

motivos bordados pelo marujo faziam parte do mesmo repertório de imagens repro-

duzidas em desenhos e tatuagens. Se as peles tatuadas dos marinheiros oitocentistas

há muito se desintegraram, há indícios dessa arte nos desenhos em dentes de baleia

e em reproduções de tatuagens do início do século xx, que coincidem com as des-

crições textuais das tatuagens do século xix. O jornalista Ernesto Senna reproduziu

em seu relato Através do Cárcere, de 1904, diversas tatuagens da Casa de Detenção do

Rio de Janeiro.81 Há duas delas com os mesmos símbolos dos bordados de Cândido:

coração sangrando e duas mãos se cumprimentando (na qual se lê “amizade”), além

de flores e pássaros. Na fragata Imperatriz também havia diversos corações flechados.

Os marinheiros europeus e norte-americanos, ao longo do século xix, já tatuavam

e bordavam símbolos nacionalistas e relacionados à Marinha. Em sua roupa e bolsa,

Waren Opie bordou a águia e a bandeira norte-americana. Em outra bolsa do marujo

norte-americano J. A. Fort, além da bandeira norte-americana, ele bordou a fragata

em que era tripulante na época, a Congress,82 que fez parte da Estação norte-ameri-

cana “Brasil” por alguns anos durante a década de 1850.

79 an, Série Marinha, xm 364, Força Naval do Pará.

80 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz.

81 senna, Ernesto. Através do cárcere, páginas sem numeração.

82 Esta bolsa está no Naval Historical Center, Washington DC.

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Roupa e bolsa do marinheiro norte-americano Warren Opie. Ele bordou os nomes de sua mãe, seu pai, sua cidade natal, além de símbolos marítimos e patrióticos. O navio em que viajou para o Japão, aportou no Rio de Janeiro em 1851. Os bordados são da década de 1840.* Winterhur Museum, Wilmington, eua.

* langley, Harold D. From the Collection: Warren Opie’s Sailor’s Uniform at Winterthur. Winterthur Portfolio

Vol. 38, N°. 2/3 (Summer/Autumn 2003).

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Estandarte e jaqueta do ex-marinheiro e interno da colônia Juliano Moreira Arthur Bispo do Rosário, meados do século xx. Museu Arthur Bispo do Rosário, Rio de Janeiro.

Toalhas bordadas por João Candido enquanto esteve preso, em 1911. Museu Municipal Thomé Portes d’El-Rey, São João del Rey, mg.

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A bandeira norte-americana também foi uma tatuagem usual já em meados do

século xix, como vimos acima. O fenômeno do nacionalismo militar nas baixas ca-

madas de nossa Marinha precisaria esperar por algumas décadas, quando suas tri-

pulações, além de estabelecidas profissionalmente, também estariam estabelecidas

enquanto tripulação nacional.

Assim, quando João Cândido alia a palavra “Ordem” a “Liberdade’ em um de seus

bordados, ele faz parte de uma tradição de marinheiros militarizados com traços

patriotas, rebeldes ou não. Nos Estados Unidos, os estudos sobre o tema denomi-

nam o fenômeno de patriotismo popular. A rebeldia não se opõe ao patriotismo. O

marinheiro mesmo resistindo à opressão incorporaria os símbolos da pátria, como

fez João Candido. Vivendo sob condições precárias nos navios aos quais serviu, ele

se tornou um dos líderes da revolta que, além de liberdade, não prescindiam da or-

dem e, especialmente, no caso dele, de um aparente amor à profissão e à instituição.

Em 1910 as guarnições dos navios da Marinha do Brasil eram mais homogêneas,

e praticamente nacionalizadas. Classe, patriotismo, profissionalismo eram uma

realidade, diferente do período estudado. Este estudo procurou demonstrar justa-

mente que nas primeiras décadas, a formação das guarnições da Armada Nacional e

Imperial do Brasil aconteceu num contexto atlântico no fim da era dos veleiros, no

início da era de nacionalização das tripulações do mundo atlântico como um todo, e

que a cultura destes homens, como não poderia deixar de ser, era ao mesmo tempo:

heterogênea e comum; nacional e internacional; regional e cosmopolita.

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