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Samurais da feira livre: a história dos feirantes de Rolândia através da fotografia Paulo César Boni Doutor em Ciências da Comunicação Universidade Estadual de Londrina (PR) [email protected] Cássia Maria Popolin Mestranda em Comunicação Universidade Estadual de Londrina (PR) [email protected] GT – História da mídia visual Resumo: Este artigo trata da fotografia como representação e documento histórico e social. A imagem retida fornece o testemunho visual e material dos fatos aos espectadores ausentes à cena. Assim, resgata nos feirantes da cidade de Rolândia, traços dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil, sua trajetória, cultura e memória de seus descendentes. Aliando a técnica ao olhar fotográfico, “escreve” uma história visual, trazendo o registro cultural às presentes e futuras gerações, para que possam utilizá-la como vertente e apoio para novas pesquisas da cultura japonesa, num constante vaguear entre o passado e o presente. Como pontuou Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta: “o antes se torna depois e o depois se torna antes”. Para a elaboração deste trabalho, foram utilizados referenciais teóricos sobre uso e funções da fotografia e sobre a história da imigração japonesa no Paraná. Palavras-chave: fotografia; imigração japonesa; fotoetnografia; mídia visual Dezoito de junho de 1908, o navio Kasato-Maru atracou no porto de Santos trazendo os primeiros 793 imigrantes japoneses. Com 50 milhões de habitantes na virada do século, o Japão enfrentava problemas econômicos e havia excesso de mão-de- obra. O Brasil, sem escravos desde 1888, necessitava de trabalhadores, principalmente para as plantações de café. Segundo Igarashi (2005, p.37), o estado de São Paulo criou, em 1906, a Agência de Colonização e Trabalho, intermediária entre os imigrantes e os fazendeiros paulistas. Em janeiro de 1907, o estado aprovou uma nova lei de imigração e colonização, determinando, no artigo 20, a instituição de dispositivos especiais de incentivo à recepção e contratação de imigrantes japoneses.

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Page 1: Samurais da feira livre: a história dos feirantes - ufrgs.brrealidade suspensa no tempo, roubados da vida e devolvidos a ela com revelações ... em Londrina, para oferecer mais variedades

Samurais da feira livre: a história dos feirantes de Rolândia através da fotografia

Paulo César BoniDoutor em Ciências da Comunicação

Universidade Estadual de Londrina (PR)[email protected]

Cássia Maria PopolinMestranda em Comunicação

Universidade Estadual de Londrina (PR)[email protected]

GT – História da mídia visual

Resumo:

Este artigo trata da fotografia como representação e documento histórico e social. A imagem retida fornece o testemunho visual e material dos fatos aos espectadores ausentes à cena. Assim, resgata nos feirantes da cidade de Rolândia, traços dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil, sua trajetória, cultura e memória de seus descendentes. Aliando a técnica ao olhar fotográfico, “escreve” uma história visual, trazendo o registro cultural às presentes e futuras gerações, para que possam utilizá-la como vertente e apoio para novas pesquisas da cultura japonesa, num constante vaguear entre o passado e o presente. Como pontuou Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta: “o antes se torna depois e o depois se torna antes”. Para a elaboração deste trabalho, foram utilizados referenciais teóricos sobre uso e funções da fotografia e sobre a história da imigração japonesa no Paraná.

Palavras-chave: fotografia; imigração japonesa; fotoetnografia; mídia visual

Dezoito de junho de 1908, o navio Kasato-Maru atracou no porto de Santos

trazendo os primeiros 793 imigrantes japoneses. Com 50 milhões de habitantes na

virada do século, o Japão enfrentava problemas econômicos e havia excesso de mão-de-

obra. O Brasil, sem escravos desde 1888, necessitava de trabalhadores, principalmente

para as plantações de café.

Segundo Igarashi (2005, p.37), o estado de São Paulo criou, em 1906, a Agência

de Colonização e Trabalho, intermediária entre os imigrantes e os fazendeiros paulistas.

Em janeiro de 1907, o estado aprovou uma nova lei de imigração e colonização,

determinando, no artigo 20, a instituição de dispositivos especiais de incentivo à

recepção e contratação de imigrantes japoneses.

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Ryu Mizuno, presidente da Companhia Imperial de Colonização, o embaixador

Utida e o secretário de Agricultura paulista, Carlos Botelho, assinaram o acordo de

imigração em 6 de novembro de 1907, que previa a entrada de três mil japoneses nos

próximos três anos.

Entre 1908 e 1914 vieram dez navios com imigrantes das regiões de Okinawa,

Kumamoto, Fukuoka, Hokkaido e Fukushima. A imensa maioria dos que vieram ou

trabalhava como camponês no Japão, ou tinha deixado recentemente a atividade

agrícola para trabalhar nos centros urbanos. Desses, 94% dedicaram-se às atividades

agrícolas no Brasil, inicialmente como colonos nas fazendas de café do estado de São

Paulo. Seus principais destinos eram as regiões de Ribeirão Preto, Campinas e Lins, na

linha Noroeste, e Ourinhos, na Sorocabana.

Os imigrantes encontraram um Brasil diferente do anunciado nas campanhas

publicitárias veiculadas no Japão. Aqui, enfrentaram más condições de vida nas

fazendas de café, trabalho árduo em áreas a serem desmatadas, jornada de trabalho do

clarear do dia ao anoitecer, casas de pau-a-pique e chão de terra batida, sem móveis e

sem banheiro. Alimentos básicos, mas desconhecidos de sua cultura, como feijão e

carne seca, eram comprados nas fazendas a preços elevados; não havia verduras nem

peixe, a base da alimentação oriental.

Muitos se deslocaram para o Norte do Paraná, também para trabalhar nas

lavouras de café. Oguido (1998, p.52) ressalta que o preço das terras, as facilidades de

pagamento e a idoneidade da empresa colonizadora – a Companhia de Terras Norte do

Paraná –, entre outros fatores, igualmente contribuíram para a entrada dos imigrantes no

estado.

Na década de 30, os imigrantes japoneses foram especialmente atraídos para

uma nova colônia que se abria no norte do Paraná: Rolândia, distante 27 km de

Londrina. Igarashi (2005, p.185) pontua que em 1935, a localidade tinha menos de dez

casas e Inashigue Ikeda, procedente de Londrina, foi o primeiro imigrante japonês a

marcar presença no novo núcleo de colonização, estabelecendo-se com loja de secos e

molhados. Oguido (1998), atualizando a história dos japoneses no estado, destaca que

eles também começaram a ocupar áreas na zona rural e dedicaram-se ao plantio de café,

principalmente nas partes mais elevadas dos lotes, enquanto nas baixadas cultivavam

hortaliças e frutas.

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Quando o sonho acabou, motivados por sucessivas e arrasadoras geadas, os japoneses do Paraná diversificaram suas propriedades e, além das lavouras que cultivavam de forma intercalada com o café, passaram a produzir também soja, trigo, rami, algodão, instalaram criações de bicho da seda, avicultura, pecuária, suinocultura e outras atividades agropecuárias. O segundo maior contingente de imigrantes japoneses e seus descendentes está no Paraná (OGUIDO, 1998, p.52).

De Norte a Sul, de Leste a Oeste, hoje estão perfeitamente integrados às

tradições, usos e costumes da terra que adotaram como pátria. São brasileiros do Japão;

são japoneses do Brasil (OGUIDO, 1998, p.7).

Histórias e retratos

Kossoy (2001, p.147) diz que a história, assim como a verdade, tem múltiplas

facetas e infinitas imagens. Imagens que remetem ao passado numa fração de segundo.

Carnicel (1998, p.179-183), destaca que toda fotografia constitui-se numa fonte

histórica que reúne um inventário de informações que desperta curiosidade e suscita a

busca de resposta, [...] extrapolando o quadrilátero da imagem.

Resgatar imagens dos feirantes da cidade de Rolândia e realizar uma nova leitura

imagética é registrar o exemplo de trabalho, perseverança e coragem com que esses

verdadeiros “samurais” da agricultura enfrentaram as dificuldades, buscaram novas

alternativas, se consolidaram no cenário econômico e escreveram um importante

capítulo na história da colonização do norte do Paraná.

Segundo o secretário de Finanças do município de Rolândia, José Lúcio de

Morais, a feira de domingo é tradicional na cidade e é realizada há mais de 50 anos. Até

o início da década de 70 era na avenida Expedicionários, principal artéria da cidade;

depois foi transferida para a avenida Castro Alves, onde é realizada até hoje.

Marlene Vicentini Santin, presidente da Associação dos Feirantes, conta que 50

feirantes expõem seus produtos nas feiras dominicais. Desses, 13 são de origem

japonesa. Na década de 70, quando a feira mudou de endereço, a maioria dos feirantes

era de origem japonesa. Alguns permanecem explorando a atividade até os dias atuais,

como a família Osanai.

Luiz Masayoshi Osanai conta que o pai veio do Japão, da região de Aomori-

Ken, em 1935, com oito anos de idade. Em 1956, morando em Arapongas (cidade

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vizinha de Rolândia), casou-se com Umeki Osanai, hoje com 76 anos. Anos mais tarde,

desfez a sociedade que mantinha com os irmãos, numa propriedade de café, e seguiu

com a família, a mulher, três filhos – Luiz, Alice e Rosa – e o sogro para Rolândia.

Em setembro de 1974 arrendaram um sítio onde a cultura predominante era o

café. Em dezembro de 1974 começaram a produzir cereais (feijão) e hortaliças (tomate,

repolho e verduras) para vender na feira livre, aos domingos. Luiz, com a esposa e

quatro filhos – Lidiane, Wellington, Joziane e Valdickson – sua irmã Rosa e sua mãe

moram nessa propriedade até hoje; seu pai faleceu há 12 anos.

A “geada negra” de 1975 dizimou o cafezal da propriedade e a feira livre passou

a ser a principal fonte de renda da família até que o café começasse a produzir

novamente, cerca de quatro anos depois. A família Osanai passou por outro desafio, no

início dos anos 90, quando “sacolões” e supermercados começaram a vender hortaliças,

legumes e frutas. Segundo Luiz, a partir desse período, o movimento das feiras caiu

muito e comprometeu drasticamente a atividade: “Vendíamos 40 caixas de tomate na

década de 80, hoje não chega a cinco. Paramos até com a produção. Temos uma renda

mensal com a feira em torno de R$ 700,00, para a família com oito pessoas”.

Mesmo assim, Luiz pretende continuar a explorar a atividade, pois a “ feira livre

pelo menos garante uma renda mensal”. Sonho? Luiz gostaria de ir trabalhar no Japão,

mas ter que cuidar da propriedade rural e da proprietária do sítio, atualmente com 86

anos e adoentada, o impede de realizá-lo, pelo menor por enquanto. Rosa, sua irmã

solteira e companheira de trabalho, quando perguntada sobre seu sonho, faz silêncio,

sorri e responde timidamente: “Nem sei se tenho.”

A figura 1 mostra a família Osanai, num domingo de 1975, enquanto trabalhava

na feira livre, já na avenida Castro Alves. Nesta época, as barracas não tinham cobertura

e feirantes e consumidores enfrentavam o sol forte, num dia em que o trabalho, para os

feirantes, havia começado às três horas da madrugada. A figura 2 mostra a família

Osanai em 2008.

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Figura 1 – Família Osanai, 1975.Foto: Autor desconhecido

Figura 2 – Família Osanai, 2008.Foto: Cássia Popolin

Borges (2005) citando Luiz Humberto, ressalta que “a imagem fotográfica é

mais que a retenção de um fragmento do real sobre um suporte. São trechos de uma

realidade suspensa no tempo, roubados da vida e devolvidos a ela com revelações

inesperadas”. São fragmentos de uma história contada no abrir e fechar da cortina do

obturador, reflexos de existência/ausência congelados pelo registro fotográfico.

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As fotografias constituem, como descreve Kossoy (2001, p.36) a essência do

visível fotográfico, o homem em si mesmo e suas inúmeras manifestações e atividades.

[...] Toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do tempo e, portanto

da vida. Tem atrás de si uma história, um resíduo do passado.

Tanto na família Osanai quanto na família Toshimitsu (Figuras 3 e 4), as

fotografias reconstituem trajetórias de vida. A cada página novos personagens

aparecem, enquanto outros desaparecem do álbum e da vida da família que, dificilmente

desliga-se emocionalmente dessas imagens. Cada fotografia testemunha a ação

implacável do tempo. Sontag (2004, p.28) lembra que cada fotografia “é um momento

privilegiado, convertido em um objeto, que as pessoas podem guardar e olhar outras

vezes”. A fotografia se destaca como meio de reflexão, de construção e reconstrução do

olhar, recorta e reordena as imagens sob outro prisma, costurando na linha do tempo

uma nova história.

Figura 3 – Makico Yone Toshimitsu (à direita) com os pais Maria e Kunimori Toshimitsu, na feira livre de Rolândia, no início da década de 70.Foto: Autor desconhecido

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Figura 4 – Makico Yone Toshimitsu com o marido Jorge Hiuki Kawagoe, na feira livre de Rolândia, em janeiro de 2008.Foto: Cássia Popolin

Figura 5 – Às seis da manhã de sábado, Yone já está finalizando as compras no Mercado do Povo para a venda na feira de domingoFoto: Cássia Popolin

Makico Yone Toshimitsu Kawagoe, 50 anos, 35 dos quais como feirante. Ela

conta que os avós vieram do Japão no início da década de 30. Apesar da família residir

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em Rolândia, seu pai era sócio com os irmãos numa fazenda em Ivailândia (PR), onde

cultivavam cereais. Ivailândia fica distante cerca de 200 km de Rolândia e, à época, a

ligação entre as duas cidades era via estrada de terra. Em razão da distância e da

precariedade do transporte, o pai chegava a ficar meses sem visitar a família. Quando os

filhos atingiram idade escolar, seu pai decidiu vender sua parte na sociedade e comprar

um sítio em Astorga (distante pouco mais de 20 km de Rolândia), para ficar mais

próximo da família.

“Minha mãe era costureira e, por conseqüência do diabetes, ficou com as mãos

trêmulas e teve que se afastar da costura. Para não ficar parada resolveu começar a fazer

a feira aos domingos. Foi nessa época, há uns 35 anos, que meu pai começou a investir

em granja de ovos e hortaliças. Toda semana ele vinha para casa e trazia as mercadorias,

que eu e minha mãe vendíamos na feira.”

Com 15 anos, Yone já dirigia e acompanhava a mãe na compra de mercadorias

em Londrina, para oferecer mais variedades de produtos aos clientes. O pai vendeu o

sítio em Astorga e comprou uma chácara em Rolândia, onde continuou produzindo

ovos. Há 13 anos pararam com a granja. Hoje, Yone vai duas vezes por semana ao

Mercado do Povo, em Londrina, para buscar mercadorias para a feira de domingo e

abastecer a Frutaliça, pequeno comércio de frutas e hortaliças que montou na cidade há

16 anos. Além da venda no balcão, semanalmente ela entrega verduras e legumes para o

cardápio da Casa de Saúde de Rolândia. Casada há 25 anos, tem três filhos. Em suas

atividades, conta com o apoio do marido e de um casal de filhos; o terceiro filho está no

Japão. Seu pai faleceu há 14 anos; a mãe há quatro.

Expressão visual

A fotografia recupera, em seus signos, traços de objetos e civilizações,

fornecendo dados importantes à compreensão de uma sociedade e suas transformações.

Como afirma Kossoy (1989, p.22), a importância da fotografia é que ela informa sobre

assuntos registrados e são “esses assuntos que, uma vez preservados, conservam a

memória de um país”, de uma cidade, de uma família, de uma cultura.

Ler a história de uma cultura por meio de imagens é entender o homem comum,

suas aspirações, seus medos, suas alegrias, seu cotidiano. Interagir com os indivíduos de

uma comunidade é ganhar sua confiança; aprender sobre eles e com eles; identificar e

registrar seus gestos, momentos, histórias. Viver em seus lares é testemunhar seu

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cotidiano, gravar em imagens momentos únicos que contam, constroem e moldam a

história de um povo. Interagir e fotografar é descobrir as tradições em cada pequeno

gesto e observar as transformações ocorridas ao longo do tempo.

Burke (2004, p.101) argumenta que “as imagens não devem ser consideradas

simples reflexões de suas épocas e lugares, mas sim extensões dos contextos sociais em

que elas foram produzidas. Nossa posição face a face com a imagem nos coloca face a

face com a história.”

Existe uma espécie de magia quando pessoas são “imortalizadas” nas

fotografias. Elas são como provas de sua existência, de sua identidade, de sua história.

Andrade (2002, p.53) afirma que além da memória e ilustração a fotografia tornou-se

uma parceira de trabalho, um recurso imprescindível para qualquer pesquisa. Criar uma

imagem documental consiste em retirar do objeto todas as dimensões, uma a uma: peso,

relevo, perfume, profundidade, o tempo, a continuidade e, é claro, o sentido.

A câmera tornou-se uma extensão dos olhos e um instrumento relevante da

percepção. A imagem se transforma em texto visual e chega até o leitor, como uma

importante ferramenta do conhecimento.

Contar a história da família Masuda é reconstruir uma trajetória que começou

com um sonho: o do seu Shoishi, de emigrar do Japão. Aos 81 anos e ainda trabalhando

na lavoura, ele conta que queria ir para a Bolívia, mas a convite de um amigo que

morava em Apucarana (PR), resolveu vir, em 1959, com a mulher, dona Fujie, e três

filhos trabalhar com o amigo no Brasil. Outros quatro filhos nasceram em terras

paranaenses.

Assim que chegou a Apucarana, foi trabalhar numa leiteria, com o amigo.

Permaneceu no emprego por um ano e sete meses, depois saiu e foi trabalhar como

porcenteiro numa lavoura de café, numa localidade chamada Bandeirantes, um dos

bairros de Rolândia. Em 1970 começou a produzir hortaliças e vendê-las na feira. Em

1975 comprou uma propriedade de seis alqueires. É dessa propriedade que saí toda a

produção (alface, repolho, cebolinha, beterraba, brócolis e quiabo) vendida nas feiras

livres de quarta-feira e domingo, em Rolândia, e de quinta-feira na vizinha cidade de

Cambé. Além de hortaliças, a família produz soja e trigo.

O filho Antônio é seu grande companheiro de trabalho. É ele quem ajuda na

produção e é o responsável pelas vendas nas feiras livres.

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Figura 6 – Shoishi Masuda com o filho AntônioFoto: Cássia Popolin

Figura 7 – Samurai da feira livre, Antônio Masuda faz feira desde 1976Foto: Cássia Popolin

Figura 8 – Essa rotina se repete três vezes na semana, quarta e domingo em Rolândia e quinta, em CambéFoto: Cássia Popolin

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Toshiyoshi Kuriki, 67 anos e sua esposa, Tamie Kuriki, 62 anos, também

vendem produtos na feira de domingo, desde 1975. Kuriki morava em Uraí (PR) e tinha

sociedade com o irmão em uma mercearia. Com o rompimento da sociedade, resolveu

mudar-se para Rolândia e trabalhar com o sogro, que era feirante e tinha uma granja de

ovos. Como a feira estava indo bem, investiu na plantação de hortaliças. O sogro se

aposentou em 1982. O casal Kuriki continuou com a atividade de feirante, mas aos

poucos foi deixando a lavoura. Hoje, para alimentar sua barraca, recorre ao Ceasa de

Londrina.

Eles participam das duas feiras, a de quarta-feira e a de domingo, mas asseguram

que a de domingo “é bem melhor”. Também apontam os supermercados e os “sacolões”

como os vilões para a brusca queda de vendas nas feiras livres. Pensaram até em entrar

para o ramo dos “sacolões”, mas desistiram e nem pensam em abandonar a atividade

tradicional: “Na feira temos menos capital investido e o giro é mais rápido”, justificam.

Acima do fator econômico, ressaltam que “na feira temos mais contato e amizade com

as pessoas, além de termos uma freguesia fiel, que compra conosco desde a época do

meu sogro”, explica o Sr. Kuriki. E afirma: “Tudo que tenho hoje saiu da feira.”

Figura 9: Toshiyoshi Kuriki, com a esposa Tamie e o neto HenriqueFoto: Cássia Popolin

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Figura 10 – Fregueses antigos, uma amizade que se consolidou ao longo de mais de 30 anos

Caminho inverso

No início do século passado, o Brasil simbolizava a esperança para muitos

japoneses; hoje ocorre o contrário e muitos nikkeis percorrem o caminho inverso.

Estes não chegaram à situação de miséria, mas as propriedades familiares foram se tornando pequenas proporcionalmente ao número de membros, a política econômica do país foi se mostrando pouco alentadora e surgiram as oportunidades de melhor remuneração no Japão (IGARASHI, 2005, p.58).

Foi esse caminho inverso que Motomu Okuda fez. Seus pais vieram da região de

Guifu-Ken, no Japão, em 1952, e se estabeleceram em Santa Cecília do Pavão (PR),

onde trabalharam na lavoura de algodão. Ele conta que, por doença na família, perderam

tudo o que haviam acumulado e tiveram que trabalhar como porcenteiros durante 20

anos. Com a economia dessas duas décadas de trabalho, compraram 30 alqueires de

terras em Foz do Iguaçu (PR). Questionado se possuía alguma imagem dessa época,

responde sorrindo: “nem Kodak não tinha”.

Okuda lembra que de Maringá (PR) até Foz do Iguaçu era estrada de terra.

Derrubaram a mata e plantaram milho e hortelã, que produziam para exportação. Depois

cultivaram soja, milho e girassol. Em 1985, o sonho de se tornarem fazendeiros, fez a

família vender as terras no Paraná e investir no Mato Grosso. Já casado com Maria,

Okuda narra a aventura da família em Jaciara (MT): “Foram os momentos mais difíceis

de nossas vidas. A 100 km da cidade, sem energia, sem água encanada, nem o rádio

sintonizava.”

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Perderam tudo e foram para Rondonópolis (MT). Em 1989 voltaram para

Rolândia e foram trabalhar como meeiros numa propriedade que criava frango de corte.

Fizeram as primeiras hortas e começaram a vender hortaliças na feira. Okuda foi três

vezes trabalhar no Japão. Em 1994 conseguiu comprar uma chácara de um alqueire,

onde vive hoje com a mulher. Seus dois filhos casaram e moram no Japão.

Figura 11 – Fregueses fiéis vêm à feira de domingo comprar as verduras produzidas por Maria e Motomu

Figura 12: Maria e Motomu Okuda na horta em sua propriedadeFoto: Cássia Popolin

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Figura 13 – Okuda é um guerreiro, desbravou a mata, plantou, colheu, superou os obstáculos, foi trabalhar no Japão e reconquistou seu pedaço de terraFoto: Cássia Popolin

A fotografia permite a reconstrução da história cultural de grupos sociais, bem

como um melhor entendimento de processos de mudança social, do impacto das frentes

econômicas e da dinâmica das relações inter-étnicas.

O uso da imagem legitima a veracidade dos fatos. As fotografias fixam o que

não temos tempo de ver. Realizar um trabalho com imagens é descobrir – e mostrar – o

quanto a narrativa da visualidade é rica em informação. Mais que isso: ela é parte

integrante do entendimento. Os recursos visuais não são apenas suporte da pesquisa,

mas imagens que agem como um meio de comunicação e expressão do comportamento

cultural.

De acordo com Kossoy (2007, p.156) “fotografia é memória e com ela se

confunde”. Continua o autor: “É uma fonte inesgotável de informação e emoção.

Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social.” Deixar a história

dos feirantes de Rolândia registrada em imagens é possibilitar o estudo comparativo

entre as fotografias que resgatam o passado com as de registros atualizados. Ambas

constituem vertentes para um futuro estudo da linguagem visual.

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Referências bibliográficas

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