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Samuel Wainer

Minha Razão de Viver

Autobiografia

Organização e edição de textos – Augusto Nunes

Revisão geral Sergio Flaksman

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Samuel Wainer

Minha Razão de Viver

Memórias de um Repórter

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Ao Samuca

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APRESENTAÇÃOINTRODUÇÃOO BRASILEIRO SAMUEL WAINER1ª ParteCAPÍTULO 1CAPÍTULO 2CAPÍTULO 3CAPÍTULO 4CAPÍTULO 5CAPÍTULO 6CAPÍTULO 7CAPÍTULO 8CAPÍTULO 9CAPÍTULO 10CAPÍTULO 11CAPÍTULO 12CAPÍTULO 13CAPÍTULO 14CAPÍTULO 15CAPÍTULO 16CAPÍTULO 172a ParteCAPÍTULO 18CAPÍTULO 19CAPÍTULO 20CAPÍTULO 21CAPÍTULO 22CAPÍTULO 23CAPÍTULO 24CAPÍTULO 25CAPÍTULO 26CAPÍTULO 27CAPÍTULO 28CAPÍTULO 29CAPÍTULO 30CAPÍTULO 31

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CAPÍTULO 32CAPÍTULO 33CAPÍTULO 34CAPÍTULO 35CAPÍTULO 36EPÍLOGO

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APRESENTAÇÃO

Pinky Wainer, 1987

As memórias de meu pai, Samuel Wainer foram ditadas em três etapas,num depoimento que soma 53 fitas gravadas. Na primeira fase, decorridaentre 25 de janeiro e 28 de fevereiro de 1980, sucessivas entrevistascoordenadas pelo jornalista Sérgio de Souza consumiram 35 fitas. Samuelparece frio, objetivo, percorre os assuntos como se os tivesse editado.Ressalva que não está empenhado em explicar-se ou justificar-se; deseja,apenas, contar a sua história. Também conta que já escolhera o título do livrocom suas memórias: “Minha Razão de Viver”. As entrevistas, ainda coordenadas por Sérgio de Souza, foram retomadas a25 de junho de 1980, e novamente interrompidas dois dias depois. Em quatrofitas gravadas, Samuel descreve em detalhes o lançamento do jornal ÚltimaHora. A terceira etapa, coordenada pela jornalista Marta Góes, é composta decatorze fitas. Começou em 6 de julho e foi concluída em meados de agosto de1980.

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Pinky Wainer, 2015 Samuel Wainer, morreu no dia 2 de setembro de 1980. Nem teve inventário.Deixou como herança apenas uma linha telefônica e 5 dezenas de fitas K7,contendo o seu grande tesouro: suas memórias, ditadas por ele mesmo.Trancrever, editar e publicar foi uma saga. Decidimos que o materialtranscrito deveria ser tratado profissionalmente, objetivamente e por essemotivo convidamos Augusto Nunes para fazer a edição e organização dostextos. Além de sua competência profissional, Augusto não conheceu SW eesse era um importante fator de isenção emocional para lidar com asturbulentas gravações. AN fez um trabalho impecável, uma edição precisa einteligente, difícil de ser superada. Quem teria autoridade para melhorar, acrescentar ou até censurar a palavragravada por Samuel? Todos os dados foram checados, alguns pequenos errosforam revistos em sucessivas edições mas o mais importante: lidando apenascom a memória, SW não inventou ou deturpou nada. A prova é que nuncahouve um processo sequer.O livro saiu praticamente clandestino, em 20 de dezembro de 1987. E em 2ou 3 dias estava armada a maior operação de divulgação espontânea que seviu. Todos os jornais, as capas de todas as revistas, todas as primeiraspáginas do Brasil falavam nas memórias de SW em letras garrafais. Foramsemanas, meses de debate. Como sempre, amor e ódio. E surpresa: comtiragem inicial de 2 mil exemplares, teve uma trajetória absurda de mais 200mil exemplares vendidos. Samuel Wainer soube viver, como espectador privilegiado, capítulosparticularmente intensos da História do Brasil. E revolucionou a imprensabrasileira criando a Ultima Hora, jornal das causas populares, de esquerda,nacionalista.Amou e protegeu seus filhos. Nunca falou de humilhações, antissemitismo, traições, medo. E do sentimento devastador de não pertencimento, que eu sóintui muito tempo depois. Apesar de brasileiro confirmado pelo STF - o que épara poucos – manteve entre seus assuntos e histórias de fim de noite,obsessivamente, até o último dia de vida, a questão da nacionalidade e de suadevoção ao Brasil. Nós, filhos e netos, brasileiros com RG e CPF, somostambém orgulhosos não pertencentes.A vida e a força de sua história, tão universal e particular, quis que ele não

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fosse esquecido. Ele ia gostar de saber que nada foi em vão.

INTRODUÇÃO Augusto Nunes, 2005 A reedição pela Editora Planeta, em 2005, de Minha Razão de Viver –Memórias de um Repórter acabou por transformar-se na edição completa – e,portanto, definitiva – da autobiografia de Samuel Wainer.Até agora, faltavam ao livro informações complementares (algumas muitopicantes) e, sobretudo, uma grande revelação. Embora não alterassem aessência da história, nem afetassem a relevância do conteúdo, tais lacunassempre incomodaram os guardiães do segredo: faltava alguma coisa,afligiam-se a cada edição. Como o tempo acaba de revogar o embargocompreensivelmente imposto por Samuel, agora não falta nada. As informações complementares invadem labirintos e porões do esquemade arrecadação de dinheiro destinado a financiar o contragolpe preventivorascunhado entre meados de 1963 e abril de 1964 por partidários dopresidente João Goulart. Wainer foi testemunha privilegiada e, comfrequência, protagonista, dos preparativos para a ação abortada por inimigosmais ágeis. O golpe militar chegou antes. Em 1980, pouco antes de morrer, ele pediu à filha Pinky que esses campos

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minados só fossem inteiramente escancarados 25 anos depois da partida. Ahora chegou. Também chegou a hora de desfazer o grande mistério queagitou o país nos 50, provocou a abertura de uma CPI no Congresso, seguiu-ocomo uma sombra por toda a vida – e sobreviveu à sua morte física: ondenasceu Samuel? Na antiga Bessarábia ou no Brasil? Nos depoimentosgravados, ele sempre desconversou sobre o assunto, ou limitou-se ainsinuações que induziam a deduções opostas. Mas a família sabia a verdade:ele nasceu na Bessarábia e desembarcou no Brasil com seis anos de idade. Esse brasileiríssimo bessarabiano explicou a Pinky que o sentimento degratidão o obrigava ao silêncio. Muitos amigos, para ajudá-lo a espantar orisco de prisão, haviam mentido com muita convicção em depoimentos à CPI.Alguns juraram ter presenciado, em São Paulo, o rito da circuncisão dohomem que ferozes adversários afirmavam ser estrangeiro – circunstânciaque lhe negaria o direito de controlar um jornal no Brasil. “Só poderia contara verdade se todos estivessem mortos”, ponderou. Todos morreram. O embargo terminou. A história está completa. A autobiografia de Samuel Wainer seria incorporada às listas de leiturasobrigatórias mesmo se o autor tivesse somado a esses dois embargos oscuidados e cautelas até então inseparáveis de obras do gênero. Ainda que orelato contornasse dezenas de episódios que mantinham intocado o altíssimoteor explosivo, ainda que evitasse escavações nas tumbas dos cadáveresinsepultos, ainda que procurasse abrandar o impacto de revelaçõesperturbadoras demais – ainda assim soaria irresistível o convite paraacompanhar a singularíssima trajetória de Samuel Wainer. Como recusar a viagem tão extraordinária, tão encantadora? Ele foi um dosmaiores jornalistas do século XX. Graças a uma espécie de mediunidade quecontempla repórteres uterinos, estava sempre no lugar certo na hora exata.Nenhum companheiro de profissão conseguiu tamanha intimidade com trêspresidentes da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e JoãoGoulart). Nenhum teve tantos poderes, nenhum soube exercê-lo com tantaeficácia. Com a Última Hora, criou a imprensa efetivamente popular noBrasil. Menino pobre criado no bairro paulistano do Bom Retiro (“um judeuzinhocomo tantos”, repetia), tornou-se um cosmopolita irretocável, umacelebridade internacional. Conheceu a glória e sofreu a queda até desfrutardas delícias discretas da planície. Acrescente-se a isso tudo episódios vividosnos mais luminosos salões europeus, em festas ou jantares decorados por

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belas silhuetas e rostos famosos – e se terá a receita irretocável para um livrode sucesso. Mas Samuel nunca foi homem de voos rasos, nunca se interessou porpercorrer caminhos já devassados. Ele pertencia à fina estirpe dosaventureiros genuínos. Eles amam o novo, a invenção, a acrobacia sem redeprotetora, a viagem ao desconhecido. E então Samuel resolveu que MinhaRazão de Viver seria mais que seu derradeiro tributo à informação. Seria umaobra transformadora. Outra. A última. Com espantosa sinceridade, com deslumbrante franqueza, contou cada casocomo o caso foi. Reunido em livro no final de 1987, o conjunto dedepoimentos fez de Samuel o fundador da moderna memorialística brasileira.Antes de Minha Razão de Viver, biógrafos e biografados mentiamdescaradamente. Depois, ficou pelo menos mais difícil. A saudável mudançaseria consolidada por escritores decididos a jamais brigar com fatos, a buscara verdade em vez de amontoar versões. Samuel descreve suas temporadas no céu e no inferno com tãodesconcertante naturalidade que reduz a velharias livros de memórias cujosautores confirmam o Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa. Todosforam só príncipes na vida. Samuel foi o primeiro a descrever sem rodeios,também, pequenas e grandes derrotas, pecados maiores ou menores. Semprecom pungente sinceridade. Pungente e engrandecedora. Ele poderia ter se limitado ao relato dos tantosêxitos, das muitas façanhas, dos momentos de intensa luminosidade. Masdecidiu que seus olhos revisitariam sem antolhos luzes e sombras do passado.Essa sinceridade contribui poderosamente para fazer das memórias deSamuel um depoimento indispensável à compreensão da história dojornalismo no Brasil e da própria saga republicana, sobretudo no período quevai de meados da década de 30 a 1970. Se ajuda a iluminar o país queconheceu, o depoimento escancara a alma do autor. E consolida a suspeita deque a vida do homem Samuel Wainer foi a melhor reportagem concebidapelo repórter Samuel Wainer.

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O BRASILEIRO SAMUEL WAINER Jorge Amado, 1987

Não sei se há grande coisa a acrescentar às palavras de Pinky Wainer e deAugusto Nunes, escritas umas e outras para este volume de memórias deSamuel Wainer. O curto texto de Pinky revela a essência do autor e da obra:“a completa ausência de censura”, característica fundamental do livro, e “umhomem que viveu com intensidade, lutou muito, experimentou o poder esoube perdê-lo”. “Terminou sua trajetória sem rancores, tolerante, otimista...e ganhando a vida com seu trabalho”. Pinky disse tudo em duas páginas queSamuel assinaria. Augusto Nunes acrescenta algumas informações precisas eúteis sobre os anos finais da vida do jornalista. Mas eu prometi a Samuel queescreveria o prefácio de seu livro, devo fazê-lo. Samuel me falou deste livro de memórias na última vez em que estivemosjuntos, nos começos de 1980, na Livraria Siciliano, a da rua Dom José deBarros, em São Paulo, em tarde de autógrafos de Zélia, minha mulher, cujolivro de estreia, Anarquistas, Graças a Deus, saíra pelo Natal. Num recanto dalivraria ficamos os dois, a sós, matando saudades em uma conversa compridae derramada de lembranças, entremeada de risos e lágrimas. Sobretudo delágrimas, choramos muito naquele fim de tarde: Samuel era chorão, eu buscome controlar, nem sempre consigo. Talvez tivéssemos o pressentimento deser aquela a última vez em que nos víamos, nossa última conversa. Um dia,jovens e audazes, havíamos querido mudar a face do mundo, transformar oBrasil e tornar a vida melhor; juntos, com alguns amigos, partimos para aguerra. Agora ali estávamos, encostados a um balcão de livros, dois senhoresidosos, mas não graves, mais de quarenta anos depois: “te lembrasquando...?”. Demo-nos conta de que, em realidade, nessa guerra santa e loucapassáramos nossa vida, obstinados, irredutíveis. Foi então que Samuel me contou e me programou: – Sabes? Estou escrevendo minhas memórias, escrevendo é uma maneirade falar, estou ditando, gravando em fitas, depois é só botar no papel. E tu

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vais escrever o prefácio, faço questão. Sabes de mim mais e melhor do queninguém. Um exagerado, Samuel. Assim era, sempre pronto a dar a mão aos demaispara ajudá-los, empurrá-los para a frente, tantas vezes esquecendo-se delepróprio. Neste livro ele afirma que de seus amigos recebeu mais do que lhesdeu, fazendo uma espécie de autocrítica, rematada tolice. Não sei de ninguémque tenha sido mais generoso na amizade, mais devoto de seus amigos, maispreocupado com eles. Deixava de lado qualquer problema seu, por maior quefosse, para tentar resolver dificuldades dos outros. Testemunhei, durante anosde convivência diária, essa capacidade de abnegação, essa dedicaçãointransigente, essa grandeza no amor. Conheci Samuel nos começos de 1938, nos primeiros meses da ditadura doEstado Novo. Eu chegara do México e dos Estados Unidos, via Amazonas,fora preso em Manaus, às vésperas do golpe de Estado, em companhia deNunes Pereira, acusados de agentes bolcheviques ali enviados com a missãode armar um levante de índios. Somente em janeiro recuperei a liberdade, noRio, e me encontrei desempregado. Meu romance Capitães da Areia, recém-publicado, fora apreendido, queimado em praça pública em São Paulo e naBahia. Samuel iniciava então sua carreira jornalística, acabara de fundar arevista Diretrizes, cujo primeiro número acabara de aparecer. Oficialmente,tratava-se de publicação mensal. De fato, saía quando Deus ou o Diabo davabom tempo – o dinheiro necessário para o papel e a gráfica – e oDepartamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, permitia. Fui levado por Rubem Braga ao pequeno apartamento onde Samuel viviacom Bluma, sua primeira mulher: ali funcionava a redação da recente eindômita Diretrizes, fundada para derrubar a ditadura no Brasil e impedir amarcha do nazismo, que ameaçava o mundo com a guerra. A guerra, aliás, jáhavia começado na Espanha. Um tempo confuso, dramático e difícil: não tínhamos dinheiro nemtrabalho certo, ao menos alguns de nós, vivíamos com os tiras em nossoscalcanhares, fregueses do DOPS, navegávamos em águas revoltas, maséramos jovens e fizemos misérias – nem acredito quando me lembro. Numdos meus romances, Farda, Fardão, Camisola de Dormir, cujo tema é a lutados intelectuais contra o Estado Novo, faço aparecer a figura de umjornalista, de nome Samuel, conto de seu interrogatório por um coronelpolicial, fascista e literato, recriando fato real, acontecido com SamuelWainer, do qual ele dá notícia nestas Memórias. Vivíamos ardentemente,

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mantínhamos o bom humor e a confiança em meio às ameaças e aos tropeços,não perdíamos a perspectiva, acreditávamos na força da democracia, navitória da liberdade: um tempo inesquecível. Colaboraram em Diretrizes, naquela primeira fase, os maiores nomes daliteratura brasileira, e a redação se compunha de jornalistas de grande talento.Com o correr do tempo e as inevitáveis discórdias, vários de afastaram,alguns se transformaram em adversários de Samuel; um deles, CarlosLacerda, um feroz inimigo. Um núcleo central, porém, permaneceu unidodesde então, solidário com a proposta da revista e com seu diretor. Essegrupo de amigos acompanhou Samuel até o fim, esteve a seu lado em todosos momentos, nos bons e nos maus, nos dias de poder e nos dias de tormenta,homens da qualidade de Otávio Malta, de Noel Nutels, de Moacir Werneckde Castro. Durante anos vivi a aventura de Samuel Wainer no dia a dia, hora a hora. Apartir de certo momento as injunções políticas nos conduziram por caminhosaparentemente diversos, se bem que continuássemos a guerrear a mesmaguerra com idênticos objetivos. Nem assim nossa fraterna amizade sofreu omenor abalo; persistiu e se reforçou: sabíamos um do outro, estávamos juntossempre que possível, tínhamos a certeza de que podíamos contar um com ooutro para o que desse e viesse, sem vacilações nem dúvidas, sem qualquerlimitação. “Eu teria a chance de ser, além de testemunha, um protagonista daHistória”, escreve Samuel ao fazer, nas páginas deste livro, o balanço do quefoi sua trajetória de jornalista e de homem. No decorrer de nossa vida denação, uns quantos jornalistas foram, além de testemunhas, protagonistas daHistória do Brasil. Entre eles os dois mais implacáveis inimigos de SamuelWainer: refiro-me a Assis Chateaubriand e a Carlos Lacerda. Mas Samuel,em determinada época, simbolizou tudo quanto neste país significaindependência política, progresso, povo. Levantou as bandeiras das grandescausas e por elas lutou, usando todos os recursos de uma inteligência lúcida ede uma imaginação criadora, de um patriotismo sem limites. Patriotismo, eisa palavra-chave, a que melhor explica a saga histórica de Samuel Wainer. Porisso mesmo, os representantes da reação, do atraso, do espírito colonial, doobscurantismo, tentaram por todos os meios destruí-lo, liquidá-lo. Paraacabar com ele, buscaram negar-lhe a condição de brasileiro numa ação tãocruel e vil quanto idiota. Não sei de nenhum outro jornalista, de nenhum outro cidadão que fosse um

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brasileiro tão completamente brasileiro na maneira de reagir, de sentir, deviver, de amar, de ser, quanto Samuel Wainer, menino do Bom Retiro, que sefez, à custa do próprio esforço, uma das maiores figuras intelectuais de nossaPátria, um mestre. Sua vida teve o fulgor de estrela a iluminar os caminhosdo Brasil. Nossa guerra continua, a memória de Samuel Wainer é uma armado povo.

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1ª Parte

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CAPÍTULO 1

Perto das dez horas da noite de 6 de outubro de 1950, eu estavareunido com dois homens num quarto do Castelinho, o chalé que o políticogaúcho Batista Luzardo, um dos heróis da Revolução de 1930, mandaraconstruir na fazenda estrategicamente situada no triângulo em que o Brasilfaz fronteira com a Argentina e o Uruguai. Sentado num canto, eu lia em vozalta o texto de uma entrevista com Getúlio Vargas que deveria ser publicadadois dias depois. Perto de mim, também sentado, João Goulart mantinhaestendida sobre uma pequena mesa a perna esquerda, afetada havia tempospor uma lesão que prejudicaria para sempre seus movimentos. O terceirohomem no quarto era o próprio Getúlio. Getúlio Dornelles Vargas reconquistara a Presidência da República três diasantes, pela vontade popular manifestada na eleição de 3 de outubro. Fora umavitória esmagadora, com números impressionantes. Candidato pelo PartidoTrabalhista Brasileiro, o PTB, Getúlio alcançaria quase 48% dos votos ao fimdas apurações, ainda em curso enquanto conversávamos no Castelinho.Naquela noite, já havia conseguido uma vantagem de 800 mil votos sobre asoma dos votos dos principais adversários – o brigadeiro Eduardo Gomes,lançado pela UDN, e Cristiano Machado, do PSD. Aos 67 anos, estava devolta ao poder o homem que governara o Brasil entre 1930 e 1945. Primeiro,como chefe da revolução vencedora. Depois, como presidente constitucional.Enfim, como ditador. Agora o Velho estava de volta. Eu não via Getúlio desde o comício ocorrido uma semana antes na cidadegaúcha de Erechim, já na etapa final da campanha. Ali, combinamos quevoltaríamos a encontrar-nos no Rio, às vésperas do dia da posse. Viajei deimediato para a capital federal. Logo constatei que, desde os primeiros sinaisde que o triunfo de Getúlio seria inevitável, haviam começado a esboçar-semanobras golpistas. Alzira Vargas, filha de Getúlio, e João Neves daFontoura, o grande tribuno da Revolução de 1930, estavam particularmenteintranquilos com os boatos, e pediram-me que partisse o quanto antes para afazenda de São Pedro, o quartel rural de Luzardo. Minha missão eraconseguir de Vargas um pronunciamento destinado a pacificar as ForçasArmadas e neutralizar intrigas ou conspirações ainda em gestação.

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Cheguei na tarde do dia 6, levando cartas de Alzira e João Neves. Getúlioleu ambas e convocou João Goulart para uma conversa a três. Fez-mealgumas perguntas, interessado em saber o que pensava das preocupações dafilha e do amigo. Depois, soltou uma das suas gostosas gargalhadas. E enfimmurmurou o comentário: – Acho que Alzirinha e João Neves estão assustados demais. Mas concordou com a sugestão: era o momento de divulgar declaraçõestranquilizadoras. – Bem, tu conheces o meu pensamento – disse-me. – Redige a entrevista,com perguntas e respostas. Depois do jantar, vamos revê-la em conjunto. Entreguei-me prontamente à tarefa. De posse de algumas cópias dediscursos pronunciados por Getúlio durante a campanha, datilografei cerca dedoze laudas. Conservei o estilo das diversas entrevistas que me concedera nosmeses anteriores, em forma de diálogo, com uma e outra gargalhada nopercurso, para conceder aos leitores pausas necessárias. Pouco antes das dezda noite, Getúlio mandou que chamassem a mim e ao Jango. Ele não queriaque gente menos íntima conhecesse as razões de minha visita. Perto da casa-grande, aglomerava-se uma pequena multidão formada porjornalistas e políticos, que haviam começado a marchar sobre a fazenda deLuzardo já no início das apurações. Simulando um passeio de rotina pelacampanha gaúcha, partimos os três em direção ao Castelinho, transformadoem escritório e quarto de dormir de Getúlio. Ele vestiu o pijama e pediu-meque lesse o texto. Na entrevista, Vargas afirmava que seu governo não seria sectário.Prometia recrutar, para a composição do ministério, políticos de partidosderrotados. Depois de reafirmar sua confiança irrestrita no espíritodemocrático e nas raízes populares das Forças Armadas, descartava quaisquerpossibilidades de resistências militares. Fazia acenos de paz aos EstadosUnidos e às classes produtoras. Todas as respostas, em resumo, tratavam deneutralizar as preocupações dos muitos setores inquietos com sua vitória. Enquanto eu lia, Getúlio andava de um lado para o outro, soltandobaforadas de charuto e sorvendo goles de uísque. Terminada a leitura, serviu-me pessoalmente uma xícara de café que o mordomo colocara sobre a mesa.E então o presidente eleito falou: – Profeta, gostei muito da entrevista. E gostei por duas razões. A primeira,porque tu incluíste nela tudo o que eu disse. A segunda, porque incluíste nelatudo o que eu não disse.

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Fiquei emocionado. Pela primeira vez, Vargas me chamara pelo apelidoque dali por diante ele e seus íntimos usariam: Profeta. Meu prenome talvez otenha influenciado – Samuel é um bom nome para profetas. Mas ele estavafazendo uma alusão ao fato de que eu fora o primeiro repórter a prever seuretorno, e anunciá-lo nas páginas de um jornal. Passava da meia-noite. Exausto, Getúlio deitou-se e chamou-me à beira dacama: – Quando segues para a Europa? – perguntou. Respondi que pretendia embarcar em dois ou três dias, logo depois depublicada a entrevista. – Vai, Profeta, tu mereces um bom repouso – disse. – Mas vem procurar-mequando voltares. Espero te recompensar pelos serviços que me prestaste. Comovido, dei-lhe a única resposta possível: – Presidente, se o senhor soubesse de onde saí, se conhecesse o caminho quepercorri até chegar à beira desta cama para participar de um momentohistórico na vida do país, saberia que não me deve nada. Sou eu que lhe devotudo. Não havia exagero em minha resposta, nem qualquer traço de pieguice. Aos38 anos, ouvia de um presidente da República que poderia ter o que quisesse.Quase 25 anos antes, incorporado à saga de uma família de imigrantesjudeus, eu era um dos muitos meninos do Bom Retiro, o velho bairro de SãoPaulo, e vivia confinado nas fronteiras de uma infância pobre. Muito tempodepois, quando tentaram negar-me a condição de brasileiro – num episódiode que adiante tratarei –, um delegado de polícia, em meio a uminterrogatório que pretendiam humilhante, fez-me a pergunta: – Senhor Wainer, qual é a primeira imagem física que o senhor guarda desua pátria? – A várzea do Bom Retiro – respondi-lhe em tom sereno. Minhas mais remotas lembranças de fato se confundiam com a humilde ruada Graça, uma rua de casas modestas, baixas, sem estabelecimentoscomerciais, que terminava na várzea. Na noite de 6 de outubro de 1950, aoouvir as palavras de Getúlio, também irromperia do fundo da memória avisão da várzea do Bom Retiro. Lembrei-me de que cumprira uma longa efascinante trajetória até que me visse, num começo de primavera, perto dacama de Vargas, numa descansada conversa noturna. Éramos amigos, unidospor laços que o destino começara a tecer em março de 1949, numa tarde emque voei ao encontro de Getúlio Dornelles Vargas.

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CAPÍTULO 2

Sobrevoávamos o pampa há cinco dias num Cessna bimotor. Eu fretara oavião em Porto Alegre, para uma reportagem sobre a cultura de trigo no RioGrande do Sul que me fora encomendada por Assis Chateaubriand, dono dosDiários Associados. Além do piloto Nelson, ex-oficial da FAB, que maistarde seria piloto particular do presidente João Goulart, viajaram comigo doisgaúchos, Tadeu Onar e Laudo Porto. Em fevereiro de 1949, um sábado decarnaval, estávamos na rota de Porto Alegre quando tive a atenção despertadapara a conversa entre Nelson e Tadeu. Falavam de Getúlio. – De vez em quando levo umas pessoas à estância do homem, depois voubuscá-las – contou Nelson. – Sou um pouco piloto da família. – Ele é meu amigo pessoal – gabou-se Tadeu. Intrigado, perguntei se Getúlio Vargas estava recebendo visitas. Nelsondisse que sim. Deduzi que o movimento “queremista”, cujo programa seresumia na frase “Queremos Getúlio”, estava efetivamente em marcha. Osvisitantes eram certamente políticos. Em 1947, convencido de que oCongresso decidira tentar desmoralizá-lo, o parlamentar Getúlio Vargas –eleito nas eleições gerais de 1945 senador por dois estados e deputado pornove – resolvera retirar-se para a cidade natal: São Borja, na fronteira com oUruguai. Desde então, fechara-se em silêncio, deixara de receber jornalistas.A conversa entre os pilotos me convenceu de que, naquele momento, Vargasestava envolvido em articulações políticas. Eu o vira de perto uma única vez. Em 1947, algum tempo depois de terpublicado uma série de reportagens sobre a questão do petróleo, fuiprocurado por Queirós Lima, assessor do ditador deposto. O emissário deVargas informou que seu chefe havia lido o que eu escrevera, gostara dasreportagens e estava interessado em obter cópias do texto. Pretendia usá-lopara sustentar um discurso no Congresso. Achei interessante ver Getúlio deperto – nunca tinha visto um ditador à minha frente – e fui ao gabinete noSenado, no centro do Rio de Janeiro. Getúlio abriu a porta da sala e perguntou: – Quem é o Wainer? Achei-o muito simpático, mas o encontro foi rapidíssimo. Ele elogiou as

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reportagens, eu lhe entreguei os recortes. Foi só. Quase dois anos depois, aoouvir seu nome nos céus do Rio Grande, a ideia me ocorreu de imediato: porque não entrevistar Getúlio Vargas? Estávamos nas imediações de Bagé, eperguntei ao piloto quanto tempo levaríamos para chegar a São Borja. Duashoras, calculou Nelson. Eram duas da tarde. Então, murmurei, chegaremos àsquatro. O piloto pareceu espantado: – O senhor pretende ir lá? Respondi afirmativamente. – Não faça isso, porque ele não recebe – disse Nelson. Compreendi que tanto o piloto quanto Tadeu Onar haviam sugerido umaintimidade com Vargas que na verdade não tinham. Mas eu decidira quetentaria a entrevista. – Nelson, o avião é meu e nós vamos para lá – avisei. – Se ele me receber,farei uma bela reportagem. Caso contrário, farei uma reportagem dizendo queele não recebe ninguém. Como a casa da mitológica Fazenda do Itu estava em reformas, Getúliodeixara o local onde vivera a maior parte do exílio voluntário para recolher-seà fazenda Santos Reis, pertencente a um de seus irmãos, Protásio Vargas.Combinamos que, se tivéssemos acesso a Getúlio, o piloto alegaria que oavião estava em pane e não poderíamos decolar de volta naquela noite.Pousamos em meio a um descampado infinito, logo se aproximou um peão acavalo. – Ele é jornalista e quer ver o doutor Getúlio – resumiu Nelson. – O chefe não vai receber – preveniu o peão. – Mas vamos até lá. Outro empregado da fazenda, no volante de uma caminhonete, nos levouaté a casa, distante dois quilômetros do local do pouso. Nelson entrou emcasa com meu cartão, fiquei esperando num pátio. O cenário era bastanteromântico: roseiras, bancos de pedra, ao fundo a construção em estilocolonial, uma típica casa de fronteira. Dois empregados montavam guarda,armados de facões. Deduzi que o piloto, um fiel queremista, não tentariaenganar o chefe: ele certamente diria que a história da pane não eraverdadeira. Concluí, também, que Tadeu Onar jamais vira Getúliopessoalmente. De repente, a porta se abriu e vi Getúlio Vargas. Parecia um genuínoboneco gaúcho, semelhante àqueles que se vendem aos forasteiros comolembrança do Rio Grande do Sul. Baixinho, bombachas azuis, uma bonitacamisa xadrez, lenço no pescoço, chapéu, botas pretas, charuto na boca, ele

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sorria. Pareceu-me um homem no auge do vigor físico e na plenitude da pazinterior. Então repetiu a pergunta feita em 1947: – Quem é o Wainer? – Sou eu, senador. – E como vai o petróleo? – Pelo que vejo, não sou eu que tenho que lhe pedir uma entrevista –brinquei. – Eu é que vou ser entrevistado pelo senhor. Estou às suas ordenspara dizer como vai o petróleo. Vamos conversar. Sempre risonho, ele concordou e mandou que eu me sentasse. Virou-separa as poucas testemunhas do diálogo e comandou: – Os senhores podem partir para a casa do capataz. Quero ficar a sós com oWainer. Podia fotografá-lo?, perguntei. Ele atendeu ao pedido e fiz fotosesplêndidas, ele sempre com um sorriso enorme. Abri a conversa: – No momento, presidente, o petróleo... – Estou informado sobre o petróleo – cortou. – Eu vou dizer o que penso domomento político. Pressenti, naquele instante, que chegara na hora certa ao local certo e aohomem certo: Getúlio Vargas estava precisando falar. Quase noventa minutosdepois, eu tinha nas mãos uma entrevista que mudaria a história do país. Getúlio começou a conversa estimulando uma candidatura militar. Maistarde concluí que, dessa forma, ele procurava assegurar a realização daseleições presidenciais marcadas para 3 de outubro de 1950. Elogiou, porexemplo, o brigadeiro Eduardo Gomes, um adversário histórico. “É umhomem a quem apoiaria”, disse Vargas. “Trata-se de uma candidaturanatural, uma candidatura lógica.” Tais palavras virtualmente lançavam acandidatura do brigadeiro. Também elogiou Ademar de Barros, à épocagovernador de São Paulo. “Ninguém mais que Ademar tem o direito de sercandidato”, afirmou o ex-ditador. E foi adiante, lançando candidaturas. Comisso pretendia, acredito, que esses políticos o procurassem. – E se o senhor viesse a ser candidato? – perguntei. – Eu não sei... – começou Vargas. – Mas pode dizer uma coisa: eu voltarei. Tremi. Ele pronunciara duas palavras mágicas. Desde que Getúlio deixara opoder, pichações em muros de centenas de cidades do país repetiam umafrase: “Ele voltará.” Agora a frase era formulada na primeira pessoa. Emseguida, repetiu as palavras mágicas e acrescentou uma ressalva que cairiacomo uma bomba sobre o mundo político brasileiro:

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– Eu voltarei. Mas não como líder de partidos, e sim como líder de massas. Quando a entrevista terminou, eu estava trêmulo, a cabeça em tumulto.Embora um tanto afastado dos políticos, eu sabia que conseguira declaraçõesimportantíssimas. Getúlio olhou para o relógio e, sempre sorrindo, sugeriu-me que partisse: – O avião está bom, não houve pane – disse. – O senhor deve levantar vooagora, antes que o sol baixe. Explicou-me que, em cinco minutos, estaríamos pousando em São Borja.Recomendou-me que ali procurasse um jovem estancieiro conhecido peloapelido de Jango. Caminhamos juntos até o avião e, antes de subir a bordo,perguntei-lhe se me autorizava a publicar o que ouvira. Ele me deu sinalverde. – E quando terei a segunda entrevista? – quis saber. – Depende desta, depende da primeira – condicionou Vargas. Ao despedir-se, pediu que levasse um abraço a Assis Chateaubriand. Osdois eram inimigos, basicamente por dois motivos. O primeiro é queChateaubriand o traíra em 1945, aliando-se aos adversários do ditador. Osegundo é que, no passado, ambos haviam tido um romance com a mesmamulher. Em São Borja, corri para o hotel e anotei a lápis o que Getúlio dissera. Essaera a minha técnica. Nas entrevistas, não fazia anotações, e sempre conseguiadeixar o entrevistado inteiramente à vontade. Pouco depois, eu estava napraça principal de São Borja, em companhia do piloto Nelson, à procura deJoão Goulart. Jango tinha uma forte ligação sentimental com Getúlio,consolidada durante o retiro do ditador. O jovem estancieiro visitava quasediariamente o chefe político exilado em seu próprio país. Nelson avistouJango, então com pouco mais de trinta anos, numa mesa de bar colocada nacalçada, defronte à praça. Ao ouvir meu nome, Jango, que estava rodeado poramigos, fez um curto comentário: – Ah, o senhor esteve com o Chefe. Entre aqueles gaúchos, Getúlio Vargas era o “Chefe”. Atrás de Jango vi umnegro enorme. Era Gregório Fortunato. Risonho, simpático, o jovem estancieiro convidou-me a sentar: – Que tal o Chefe? – perguntou. Disse-lhe que conseguira declarações muito importantes e pedi autorizaçãopara atribuir-lhe algumas frases que, a meu ver, poderiam parecer demasiadoimpertinentes vindas da boca de Vargas. Jango concordou. Fui dormir pouco

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depois, porque pretendia viajar bastante cedo no dia seguinte. Decolamos deSão Borja às seis da manhã. Em Porto Alegre, excitado, corri para a redaçãodo Diário de Notícias, que pertencia à cadeia dos Diários Associados. Escrevia reportagem em três vias. Terminado o texto, apareceu o jornalista ErnestoCorreia, já informado de que eu estivera em São Borja. Comuniquei-lhe queconversara com Getúlio, e Correia duvidou. – Não pode ser, não pode ser... – repetia. Entreguei-lhe uma das cópias e disse que, se quisesse, poderia publicá-laem seu jornal. À saída da redação, encontrei Alberto Pasqualini, o ideólogo dotrabalhismo gaúcho, e mostrei-lhe o texto da entrevista. Terminada a leitura,ele pareceu surpreso: – O Getúlio realmente falou isso que está aí? Repliquei que não costumava inventar reportagens, nem modificardeclarações de entrevistados. Pasqualini indagou sobre o estado físico emental de Vargas. Informei-lhe que o velho ditador estava em pleno vigorfísico e, intelectualmente, em ponto de bala. Ele então se rendeu: – Wainer, tu tens uma bomba na mão. Trata de soltá-la logo. Fui para o aeroporto e voei para São Paulo. Na segunda-feira passei pelasede dos Diários Associados, na rua 7 de Abril, e deixei uma cópia dareportagem na mesa de Assis Chateaubriand, acompanhada de várias fotos.Segui para o Rio de Janeiro. Como não se imprimiam jornais durante ocarnaval, tampouco na Quarta-Feira de Cinzas, eu teria de esperar pelaquinta-feira para ver impresso o resultado da minha entrevista com Getúlio.Valeu a pena esperar: como previra Pasqualini, foi uma bomba que, detonadana fronteira gaúcha, espalharia estilhaços por todo o país. Na madrugada de 2 de março de 1949, Quarta-Feira de Cinzas, fuiacordado por um telefonema de Assis Chateaubriand, que ligara de SãoPaulo. Ele estava irritado: – Ó Wainer, então o senhor passou por aqui e não me deixou a reportagemsobre o trigo no Sul? Preciso dela amanhã – disse Chateaubriand. Expliquei-lhe que não tivera tempo de escrever a reportagem, ele ficoufurioso. – Mas o senhor ficou cinco dias – insistia. – Cinco dias para fazer umareportagem. O senhor vai me prejudicar. Sugeri-lhe que fosse até sua mesa – ele havia ligado da redação dos DiáriosAssociados –, examinasse o material que lhe deixara e voltasse a telefonar.

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Chateaubriand esboçou uma reação, tratei de interrompê-lo com voz calma: – Por favor, doutor Assis. Leia e me telefone. Ele, afinal, concordou. Às cinco da madrugada, o telefone tocounovamente. O tom de Chateaubriand era outro. – Ele falou isso mesmo? Confirmei. – O senhor garante? – insistiu. Lembrei-lhe que nunca tivera uma reportagem desmentida. – Então, senhor Wainer, vamos engordar esse porco até levar o pânico ànossa estúpida burguesia – encerrou Chateaubriand. Com essa imagem grosseira, ele resumia seu projeto político. ParaChateaubriand, convinha assustar os donos do poder com o fantasma da voltade Getúlio Vargas; interessava-lhe fortalecer Getúlio, dando ressonância àvoz do ex-ditador. Era isso o que pretendia dizer com a expressão “vamosengordar o porco”. Segundo a estratégia política do dono dos Associados, opânico gerado pelo crescimento do movimento queremista provocaria ocancelamento das eleições presidenciais de 1950 e a ascensão do entãoministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa. Era Canrobert o realcandidato de Assis Chateaubriand. Ainda na madrugada daquela quarta-feira, na mesma conversa telefônica,Chateaubriand começou a dar ordens: ele queria muito barulho. Mandou queeu acionasse as chefias de O Jornal e da Rádio Tupi. Queria que a entrevistafosse transformada em manchete de primeira página do seu jornal e na notíciaprincipal dos programas informativos de sua emissora de rádio. Na quarta-feira tudo foi preparado. Na quinta, a bomba explodiu. O melhor programa noticioso do país era O Grande Jornal Falado Tupi, quecomeçava às cinco da manhã e terminava às sete. Naquele dia, sucessivasvezes, repetiu-se uma gravação com a frase que se tornaria famosa: “Euvoltarei como líder de massas.” A gravação fora feita pelo locutor SilvinoNeto, pai do humorista Paulo Silvino, que imitava à perfeição a voz deGetúlio. O presidente Eurico Dutra, que costumava acordar bem cedo e ouviro Grande Jornal Falado Tupi, levou um susto enorme: ele pensou que a vozera do próprio Getúlio. Na mesma quinta-feira, o jornal soltou a manchete: “Eu voltarei como líderde massas.” No alto, aparecia um selo que se tornaria a marca registrada dasminhas entrevistas com Getúlio: “De Vargas para Wainer.” Meia hora depoisde chegar às bancas, a edição se esgotou. O Jornal vendia em média nove mil

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exemplares. Vendeu, naquela quinta-feira, 180 mil. Chateaubriandimediatamente mandou que a entrevista fosse publicada pelo Diário da Noite,que também viu esgotar-se uma edição de 180 mil exemplares. Durante ummês inteiro, o país não falaria de outro assunto. Já no dia seguinte, os jornaisda cadeia associada entrevistaram o líder integralista Plínio Salgado. Amanchete: “O ditador não voltará.” Outros políticos entraram no debate, e apolêmica permaneceu acesa. Chateaubriand estava felicíssimo: nunca venderatantos jornais, e o porco começava a engordar. Alguns jornalistas se enciumaram com o sucesso da entrevista, mas tivelargas compensações. Passei a ser permanentemente solicitado por políticosinteressados em saber como estava Getúlio; queriam detalhes, quaisquerdetalhes. Nas ruas, populares me abordavam também em busca deinformações. Todos queriam notícias de Getúlio. Colhi, assim, maisevidências de que eu encontrara um grande assunto. Mas só mais tardecompreendi que poderia explorar com exclusividade aquele imenso filãojornalístico. Comecei a suspeitar de que isso ocorreria alguns dias depois, num fim denoite na boate Vogue, no Rio de Janeiro. A certa altura, levantei-me para irao banheiro, e um homem sentado perto da mesa onde me encontravacaminhou em minha direção. – O senhor é o Wainer? – perguntou, antes de dizer quem era: coronelBenjamim Vargas, o irmão caçula de Getúlio. Dizia a lenda que Benjamimera um fronteiriço violento. O homem que conheci naquela noite pareceu-meextremamente suave. Disse-me que gostaria de conversar a sós, fomos paraum canto da boate. – Vou ler uma carta que recebi ontem de meu irmão – avisou Benjamim. Na carta, Getúlio recomendava ao irmão que me procurasse. Dizia quenenhum outro jornalista havia interpretado com tanta correção seupensamento e pedia a Benjamim que me transmitisse seus agradecimentos.Vargas estava exultante com a repercussão da entrevista. Contava que passaraa ser procurado por dezenas de políticos e que cartas do Brasil inteirochoviam sobre São Borja. “O povo me redescobriu”, alegrava-se Getúlio acerta altura. Terminada a leitura, eu estava entusiasmado. – Espero voltar a ver o presidente – disse a Benjamim. Ele lembrou que a data do aniversário de Getúlio, 19 de abril, estavapróxima. Seria sua primeira aparição pública depois da longa clausura. Aome separar de Benjamim Vargas, eu estava decidido a fazer uma segunda

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entrevista com o grande solitário. Compreendera, sobretudo, ter chegado ahora de me concentrar num assunto fascinante: Getúlio Vargas.

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CAPÍTULO 3 Na manhã de 19 de abril de 1949, dia do aniversário de Getúlio Vargas, voeipara o Rio Grande do Sul e para meu primeiro encontro com o ex-ditadordepois da publicação da histórica entrevista feita no carnaval. Às onze horas,cheguei à estância São Vicente, de propriedade da família Goulart, palco daconcentração convocada para homenagear o aniversariante. Deparei-me comum cenário tão grandioso quanto os descritos por John Reed em Dez Dias queAbalaram o Mundo, um painel perfeito para um filme de Serguei Eisenstein.Milhares de gaúchos marchavam sobre a fazenda numa gigantesca procissão.Chegavam a cavalo, chegavam a pé, vinham de longe, trajando ponchosvistosos. Era o povo marchando ao encontro de seu líder. Encostado a um canto, observei o espetáculo. Os gaúchos aproximavam-sedo líder, apertavam-lhe a mão e repetiam uma frase: “Doutor Getúlio, conteconosco.” Sentado na varanda da casa da fazenda, cercado por uma corteformada por chefes políticos, Getúlio estava feliz. Alternava baforadas emseu charuto com gargalhadas – ria muito, encantado com as demonstraçõesde carinho de sua gente. De repente ele me viu. Chamou-me, trocamos umforte abraço. – Olhe, Wainer, estava à tua espera para agradecer a honestidade daentrevista – disse. – Não é preciso agradecer, presidente: este é o meu papel – retruquei. –Limitei-me a reproduzir o que o senhor afirmou. Getúlio sorriu mais uma vez e observou: – Sim, mas na imprensa não é esta a regra. Em seguida, convidou-me a fazer-lhe companhia numa mesa onde sesentavam alguns de seus mais íntimos aliados. Aproveitei a chance: – Então, o senhor vai me dar outra entrevista? – Não, não é hora de falar – negaceou Getúlio. – Quem vai falar agora é oJango. Imediatamente João Goulart subiu a uma árvore enorme e, com sua voz demenino, fez um discurso em que lançava a candidatura de Getúlio Vargas àPresidência da República. Jango não era um bom orador – mais tarde eleaprenderia alguns truques de oratória –, mas falava com a comoventeespontaneidade dos jovens. Sob o completo silêncio da plateia imensa, aquela

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voz ecoava pelos pampas, anunciando a volta do ex-ditador. O fotógrafo queme acompanhava registrou cenas lindas: Jango discursando do alto da árvore,Getúlio gargalhando na varanda. Eu pressentia que estávamos documentandoum capítulo crucial da História do Brasil. Deixei a fazenda às quatro da tarde. Em Porto Alegre, escrevi a reportagemcujo título era “A Rebelião Queremista”. Dormi na capital gaúcha e no diaseguinte, às seis da manhã, segui para o Rio de Janeiro. Cheguei à redação àsonze horas, e pouco depois os jornais dos Diários Associados contavam o queeu acabara de testemunhar. Na reportagem eu afirmava que, se as regrasdemocráticas efetivamente vigorassem no Brasil, nada deteria a maréqueremista. Jango depois me contou que, quando exemplares dos jornaischegaram a São Borja, os getulistas liam e choravam. Em lágrimas,carregavam recortes. Os jornais de Chateaubriand começaram a vender maisde duzentos mil exemplares, os adversários de Getúlio entraram em pânico.Constataram que a rebelião queremista efetivamente estava em marcha. Nomeu primeiro encontro com Getúlio, em São Borja, eu agira com relativafrieza. Ali estava, claro, um grande entrevistado – mas nada mais que isso.No segundo encontro, minhas relações com Getúlio começaram a mudar.Passei a interessar-me também pelo homem Getúlio Vargas, e ele igualmentepassou a encarar-me como ser humano. Entendi que havia uma profundaafinidade entre nossas ideias. Enfim, eu começara a deixar de ser apenas umentrevistador de Getúlio para transformar-me, também, num amigo dohomem que poucos meses depois estaria de volta à Presidência da República. Essa situação, se me transformava num espectador privilegiadíssimo daHistória, também me criaria problemas. Velhos amigos que, como eu, haviamparticipado da resistência ao Estado Novo passaram a tratar-me como umoportunista interessado na vizinhança do poder. Além disso, aos olhos demuita gente, eu deixara de ser um repórter para tornar-me “o amigo doHomem”. Não cheguei a angustiar-me por isso, e continuei a aproximar-mede Vargas. Eu sabia que Getúlio me usava para transmitir seus pontos devista e, eventualmente, para favorecer suas jogadas políticas. Isso não meincomodava. Certa feita, por exemplo, ele me convocou para uma entrevistana qual afirmava que, em 1945, não fora derrubado pelo Exército, e sim,pelos americanos. Limitei-me a publicar a versão de Getúlio, sempre comenorme repercussão. No dia seguinte à publicação dessa reportagem, OGlobo publicou uma página inteira sob o título: “A Mentira do Ditador”. Transformei-me num repórter bajulado por políticos interessados em obter

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mais repercussão para suas declarações: se elas aparecessem numa entrevistaassinada por Samuel Wainer, certamente virariam notícia. Participei deocorrências extravagantes. Ainda em 1949, Ademar de Barros, governador deSão Paulo, propôs a Assis Chateaubriand que eu o entrevistasse a bordo deum avião. Ele achava que, a três mil metros de altitude e registradas por mim,suas declarações alcançariam enorme efeito. Esperto, Chateaubriandrespondeu-lhe que a entrevista seria feita desde que Ademar pagassetrezentos contos de réis – uma fortuna, na época. Ademar concordou.Chateaubriand chamou-me, revelou-me o acerto e informou que eu receberiauma comissão de 20%. Era tanto dinheiro que, com essa comissão, compreium apartamento para minha primeira mulher na avenida Nossa Senhora deCopacabana, no Rio. A reportagem foi publicada na revista O Cruzeiro.Chateaubriand, que detestava dar dinheiro a seus repórteres, fez-me umaprofecia: – O senhor vai ficar rico. Em março de 1950, Ademar de Barros seria um dos protagonistas de umepisódio histórico a que pude assistir graças às trapaças da sorte. Cheguei àestância em Itu para uma de minhas frequentes visitas a Getúlio e senti quehavia algo de novo no ar. Os empregados da fazenda, que sempre merecebiam com extrema cordialidade, pareceram ressabiados. Também Getúliopareceu-me demasiado reticente. A certa altura, ele próprio revelou-me asrazões daquela mudança de clima. – Wainer, tenho umas pessoas que hoje vêm me visitar e não gostaria que tuas encontrasses – disse Getúlio. – Mas, já que estás aqui, espero queconserves total discrição sobre este encontro. Pouco depois pousava na fazenda o DC-3 de Ademar de Barros, a famosa“boate voadora”, trazendo o governador paulista e alguns assessores diretos.Ademar viajara a São Borja para discutir os termos de um eventual acordoque lhe permitiria apoiar a candidatura de Vargas. Participaram do encontroDanton Coelho, que depois seria ministro do Trabalho de Getúlio, e o generalEstillac Leal, que mais tarde assumiria o Ministério da Guerra. Dessa longareunião na estância de Itu resultaria o Pacto da Frente Popular Brasileira. Poresse acordo, Getúlio seria o candidato às eleições de 1950 e apoiaria, em1955, a candidatura de Ademar de Barros à Presidência. Não presenciei as discussões, mas não me foi difícil descobrir o que ali sepassara. Eu fiz a viagem de volta no avião de Ademar. O governador paulistanem bem se acomodara numa poltrona, ajeitando com dificuldade a barriga

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imensa, e as queixas já começaram: – Teu amigo me corneou – disse Ademar com sua legendária sem-cerimônia. – É um filho da puta, mas não há alternativa: teremos que sairjuntos. Ademar contou-me, então, um detalhe da reunião que depois seincorporaria ao folclore das espertezas de Vargas. Ao longo das discussões,decidiu-se que o vice-presidente seria indicado pelo Partido SocialProgressista, o PSP, controlado por Ademar. O vice de Getúlio, Café Filho,efetivamente sairia dos quadros do PSP. Decidiu-se, também, que Getúlio eAdemar estariam juntos na campanha de 1955. Terminadas as conversas,manifestou-se o estilo de Vargas. Depois de assinar o documento quecontinha os termos do acordo, o governador de São Paulo passou a caneta aGetúlio. Então, Getúlio ponderou que, em função dos esforços quedesenvolvera para a consumação do acordo, Danton Coelho merecia assinar odocumento em nome do candidato. Ademar ficou atônito, mas Vargas tratoude passar a caneta a Danton. Depois, todos os presentes assinaram odocumento histórico. Entre os signatários, faltava um único nome: GetúlioVargas. Em janeiro de 1951, às vésperas da posse de Getúlio, marcada para o dia31, o presidente eleito e Ademar encontraram-se em Campos do Jordão, paradiscutir algumas nomeações destinadas a preencher cargos no primeiroescalão. Ademar estava especialmente exigente, e conseguiu mais fatias dobolo do que Getúlio imaginava ceder. Numa noite, depois de alguns dias deconversas, Getúlio chamou-me a seu quarto e fez-me um pedido: seriapossível publicar uma notícia nos jornais do dia seguinte? Perguntei-lhe doque se tratava. Ele pediu-me que divulgasse a informação de que, convidadoa descansar em Campos do Jordão pelo governador de São Paulo, opresidente eleito tivera a surpresa de ver o anfitrião apresentar-lhe a conta – epagara. Publiquei a notícia. Ademar ficou irritadíssimo. Ele compreendera orecado: por vias sinuosas, Getúlio estava avisando a Ademar que, com asconcessões feitas em Campos do Jordão, estavam quitadas as contas abertaspelo Pacto da Frente Popular Brasileira. Rompia-se, assim, a aliança quefacilitara a volta de Getúlio ao poder. Essa aliança fora celebrada naquele encontro no Itu que eu, fiel à promessafeita a Getúlio, não havia noticiado. Alheio ao que ali se passara, o paíspermaneceu atento a uma data decisiva: 2 de abril de 1950. Pelas leis emvigor, o governador Ademar de Barros teria de desincompatibilizar-se nesse

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dia, para ganhar condições de candidatar-se à Presidência da República. Adecisão de Ademar era de importância crucial para os rumos da sucessão. Obrigadeiro Eduardo Gomes já fora lançado pela UDN, e o mineiro CristianoMachado era o candidato do PSD. O PSD, contudo, planejava substituirCristiano Machado pelo ministro da Guerra, general Canrobert Pereira daCosta, e para isso montou uma complicada trama destinada a induzir ogovernador de São Paulo a apoiar a candidatura do ministro da Guerra. Para que a trama tivesse êxito, seria indispensável que Ademar deixasse ogoverno paulista a 2 de abril para lançar-se candidato. Nesse caso, seriasubstituído pelo vice-governador Novelli Júnior, genro do presidente EuricoGaspar Dutra. A Novelli caberia promover uma ampla devassa naadministração de Ademar e recolher evidências que permitissem ao governofederal apresentar ao candidato a seguinte opção: se mantivesse acandidatura, sofreria uma implacável campanha de desmoralização; sedesistisse do projeto e apoiasse Canrobert, seus deslizes seriam esquecidos.Habilidoso, certamente a par da trama que se montava às suas costas, Ademarmanteve o país em dúvida até a noite de 2 de abril. Nesta noite, informara,anunciaria sua decisão. No dia 2 de abril, dezenas de repórteres correram ao Palácio dos CamposElíseos, sede do governo paulista, para registrar a decisão de Ademar. Porconhecer os termos do acordo do Itu, decidi procurar o general Canrobert nacasa do ministro da Guerra, uma construção colonial localizada perto doMaracanã, no Rio de Janeiro. Cheguei por volta de sete e meia da noite.Informado pela guarda de que eu estava à sua procura, o general veio receber-me. Expliquei-lhe que gostaria de ouvir a seu lado o pronunciamento deAdemar. Era ele, afinal, o principal interessado na informação que ogovernador de São Paulo divulgaria pelo rádio. – Pois não, Wainer – concordou Canrobert, risonho. – Vamos, então, tomarum uísque. Às oito horas, encerrada a Hora do Brasil, Ademar começou a falar. Toda afamília do general já fora dormir. Sozinhos numa sala, ficamos à escuta davoz fanhosa de Ademar de Barros. Para Canrobert, o pronunciamento seria uma completa decepção. Ademarfez uma longa introdução para dizer que, “em defesa da autonomia do Estadoe da democracia”, resolvera permanecer no poder. Ao ouvir essa frase, oministro da Guerra – habitualmente um homem cordial, de boas maneiras –deu uma cusparada que atravessou a sala e disse três palavras:

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– Filho da puta! Depois de menear seguidamente a cabeça – pensava certamente em seussonhos presidenciais destruídos –, Canrobert fez um comentário que, no diaseguinte, todo o país estaria comentando: – Agora, quem for eleito toma posse – prometeu. – Eu serei o fiador. Dei-lhe um abraço e corri para a redação. Dali, liguei para a casa deChateaubriand. – Onde estava o senhor? – perguntou-me, em tom aborrecido. – Mandeiprocurá-lo por toda parte. Contei-lhe o que acontecera. Chateaubriand, que até aquele momento agiacomo um apaixonado cabo eleitoral de Canrobert, disse uma de suasinesquecíveis frases cínicas: – Então, senhor Wainer, dê tudo isso no alto da primeira página. Vamos darum enterro de primeira classe a essa viúva rica. No dia seguinte, O Jornal anunciava que quem ganhasse tomaria posse, eque o fiador dessa promessa era o próprio Exército brasileiro. Foi mais umfuro jornalístico, que obteria enorme repercussão em todo o país. Foi,também, mais um serviço prestado aos projetos presidenciais de GetúlioVargas. A partir daquela declaração, o ministro da Guerra certamente teriamenos desenvoltura para aliar-se a eventuais manobras golpistas.

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CAPÍTULO 4Outras reportagens e outros furos viriam nos meses seguintes, num ritmo quelogo me levaria ao auge da carreira de repórter. Respeitado, temido, bajulado,eu saboreava minha glória particular, sem tempo nem disposição para temereventuais armadilhas do destino. Uma delas me surpreenderia durante o mêsde setembro de 1949. Numa tarde de muito calor, eu caminhava pela avenidaRio Branco, no centro do Rio de Janeiro, quando senti que estava bastantefebril. Procurei o consultório de um médico amigo, Jaime Leite de Barros,perto dali. Ele imediatamente submeteu-me a alguns exames e constatou apresença de duas manchas num dos pulmões.– Você tem uma coisa no pulmão – informou, sem entrar em detalhes. – Vá aum especialista. Fiquei sobressaltado. “Alguma coisa no pulmão” era um modo eufemísticode se referir à tuberculose. E tuberculose, naquela época, era virtualmente amorte. Jaime Leite de Barros indicou-me um especialista; deixei o consultórioextremamente abatido. Sempre tive muito pudor em relação a doenças – nãogostava de confessar aos meus íntimos que não estava bem, preferia ocultarmeus males. Também naquela ocasião decidi que nada revelaria. Fui aoendereço recomendado. Era o consultório de um médico que já foratuberculoso e que agia como um autêntico açougueiro, de modo brutal. – Você tem dois furos no pulmão, está condenado – disse-me ele depois dealguns exames. – A solução é instalar-se em algum lugar e esperar, não hásaída. Saí dali desesperado, e então o destino colocou em meu caminho, no meioda rua, um perfeito gentleman chamado Otávio de Souza Dantas. Eucaminhava chorando, as lágrimas corriam soltas pelo rosto. Otávio, que hátempos era meu amigo, subitamente surgiu diante de mim. Perguntou-me oque se passava, contei-lhe. – Não há problema – comentou Otávio depois de ouvir o relato. – Vamostomar um uísque. Levou-me para um bar ali perto, ordenou-me que tomasse meio copo deuísque e contou que, muitos anos atrás, também tivera tuberculose. – Passei seis anos na Suíça, e tanto fiquei bom que fui fazer a guerra de1914 – disse. – Por isso, não se entregue; vá ver o doutor Aloísio de Paula. Aloísio de Paula era um homem de espírito extremamente sensível, muito

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ligado às artes, além de ser então considerado o maior tisiólogo da AméricaLatina. Examinou-me minuciosamente e deu seu veredicto: – Realmente, o caso é muito grave. Os dois pulmões estão afetados e você éum tabagista incorrigível. A saída é você passar alguns anos na Suíça; épossível que lá você se recupere. Reagi: para a Suíça eu não iria. Ponderei que estava no auge de minhacarreira e de modo algum pretendia interrompê-la. Ademais, não tinharecursos materiais para aquela temporada na Europa. Aloísio insistiu, seguirechaçando a ideia. Ele então cedeu, admitindo que poderíamos tentar a curano Brasil. O essencial era comer bastante, descansar, comer, descansar e, sepossível, conseguir alguns remédios que acabavam de ser lançados noexterior. Prontifiquei-me a obedecer a uma rigorosa dieta. Naquela época, euvivia gloriosamente meu apogeu. Bebia pouco, mas fumavadesesperadamente, tomava comprimidos para não dormir, saboreava meusucesso com as mulheres. Mas entendi que deveria abrir mão de tudo aquilopara salvar minha vida. Aloísio sugeriu que me transferisse de imediato para um sanatório emPalmira, uma cidadezinha no interior de Minas Gerais. Viajei no dia seguinte,de táxi, acompanhado pela minha irmã Berta. Despedimo-nos, e tive umacesso de choro. Mas logo atirei-me à luta pela sobrevivência. Comia dúziasde frutas, quilos de chocolate, bebia litros de leite. Lia muito, e reconciliei-mecom o sol: ficava horas estirado num sofá, até que escurecesse. Graças àcomovente movimentação de amigos, injeções de estreptomicina – à épocaum remédio moderníssimo – chegavam de todos os cantos do mundo.Quarenta dias depois, eu ganhara quinze quilos. Fiz então novos exames, edescobri que estava curado. O diretor do sanatório fez um comentáriopressago: – É inútil ir embora, porque você acabará voltando; todos voltam. Telefonei para Aloísio de Paula e informei que estava pronto para deixar osanatório. – Não venha, espere – recomendou. Mas eu já tomara minha decisão. – Está bem – admitiu afinal Aloísio. – Mas só concordo com uma condição:você vai ficar sem sair de casa pelo menos dois meses. Estávamos no final de outubro. Viajei para o Rio e iniciei meu período declausura. Eu tinha medo de caminhar pelas ruas, achava que poderiacontaminar as pessoas. Era, como hoje se sabe, um medo tolo. Duas semanas

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depois, fui a um almoço da Associação Brasileira de Imprensa, e meuscolegas me olharam com o olhar perplexo de quem vê um ressuscitado.Resolvi, então, pedir a Getúlio Vargas que me hospedasse por alguns dias naestância do Itu. Getúlio respondeu prontamente: eu deveria viajar o quanto antes. Durante omeu retiro no sanatório, ele dera poucas declarações. Entendi que lhe fizerafalta, já éramos amigos. Convivemos durante dez dias, ao longo dos quais nosaproximamos fortemente como seres humanos. Eu tomava muito leite, ele sedistraía com seus cavalos, conversávamos demoradamente. Assaltou-me,então, a inquietação típica dos tuberculosos recém-recuperados, e voltei aoRio. Era dezembro. Faltavam poucos dias para a chegada do ano que seriamarcado por uma campanha presidencial destinada a mudar os destinos doBrasil.A campanha do candidato Getúlio Vargas começou a 12 de agosto de 1950com um imenso comício da Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, eduraria 51 dias. Nesse período, o estado-maior getulista percorreria asprincipais cidades do país a bordo de dois aviões – a ‘boate voadora’ deAdemar de Barros e um outro cedido pela Cruzeiro do Sul. Encarregado decobrir a campanha para os Diários Associados, incorporei-me à comitiva. Econstatei, um tanto perplexo, que não havia outros jornalistas a bordo. Agrande imprensa parecia decidida a silenciar sobre os passos do ex-ditador.Um e outro repórteres apareceriam em determinados comícios, mas não haviajornalistas empenhados na cobertura integral. Eu era o único. Nessa condiçãoprivilegiadíssima, viveria uma das mais apaixonantes aventuras da minhavida. Depois do comício de abertura no Rio, voamos para Manaus – e já nacapital do Amazonas pude pressentir que espécie de espetáculo me caberiatestemunhar. No aeroporto, a polícia teve de dispersar o povo para permitirque o avião encontrasse espaço na pista de pouso. Depois, durante o comício,o palanque sacudia, abraçado pela multidão. Eram camponeses com pés dePortinari, brasileiros descalços, gente humilde, homens sem posses quevinham saudar o “Pai dos Pobres”. Emocionado com o que vira, comparei oespetáculo oferecido por aquela massa às cenas proporcionadas na Índia pelasmultidões que saudavam Gandhi. Numa reportagem publicada pelos Diários,afirmei que Getúlio era um Gandhi brasileiro. Essa comparação seriaassimilada pelo próprio Getúlio e por outros oradores da campanha. “Sinto-me como Gandhi”, disse-me Vargas dois dias depois da publicação da

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reportagem, sem contudo informar se a havia lido. Cruzamos o Norte para depois descermos pelo Nordeste, com o candidatoprotagonizando espetáculos cada vez mais impressionantes. As multidões nãoportavam cartazes, não bradavam palavras de ordem, não exibiamconsciência política. Eram apenas getulistas. Isso era tudo – e não era pouco.Não pediam terra, não pediam pão. Pediam Getúlio, e nisso resumiam todasas suas aspirações. “Getúlio!”, uivavam centenas de milhares de pessoas, emtodas as capitais, em todos os estados. Era um uivo, e pelo resto de minhavida eu me lembraria daquele som que vinha do fundo da alma do povo.Logo compreendi que a vitória era questão de tempo, mas haveria de recolhermais evidências de que estava contemplando a irresistível marcha para opoder do maior líder popular da História do Brasil. Nessa marcha, testemunhei episódios que me revelaram mais facetas dafascinante personalidade de Getúlio Vargas. Num deles, ocorrido emTeresina, mesclaram-se a tolerância e a esperteza. Por coincidência,chegamos à capital do Piauí no mesmo dia para o qual estava marcado umcomício do brigadeiro Eduardo Gomes. Entendi que ali surgira uma boachance para que os dois adversários dessem ao Brasil uma lição dedemocracia. Procurei o deputado federal José Cândido Ferraz, chefe dacampanha do Brigadeiro no Estado, e fiz-lhe uma proposta: que tal se,encerrados os comícios, Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se encontrassempara um aperto de mãos? O deputado José Cândido pareceu gostar da ideia.Fui a Getúlio, que concordou prontamente e sugeriu que fotografias da cenahistórica fossem enviadas o quanto antes a todo o país. Em seguida, visitei oBrigadeiro. Ao ouvir a proposta, o candidato da UDN ficou lívido: – Não darei a mão a esse homem enquanto for vivo – cortou. Esse era o clima que cercava a campanha eleitoral de 1950. Getúlioavaliava com precisão os riscos embutidos nesse clima de radicalização, masseguia imperturbável. Estava sempre bem barbeado, com boa aparência,cheirando a água de colônia. Mostrava-se permanentemente amável, risonho,conservando o equilíbrio mesmo quando se transformava no alvo da disputaaberta entre correntes rivais. Em Natal, por exemplo, dois grupos distintos,cujo único traço comum era o apoio a Getúlio, quase promoveram violentosdistúrbios de rua na tentativa de monopolizar o candidato. A temperaturaestava tão alta que às dez horas da noite chegou à redação dos Associados emNatal um telegrama de Assis Chateaubriand informando que circulavamboatos dando conta de que Vargas sofrera um atentado. Chateaubriand queria

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uma resposta imediata. Resolvi conferir, e fui à casa onde Getúlio estavahospedado. Esbarrei na figura imensa de Gregório Fortunato. – Quero falar com o homem – avisei. Gregório respondeu que Getúlio estava dormindo. Pressenti que não eraverdade, insisti, ele afinal cedeu. Ao subir, encontrei Getúlio lendo um jornal,já de pijamas, e fumando um charuto. Mostrei-lhe o telegrama deChateaubriand e o próprio candidato ditou a resposta: “Não houve atentadocontra Vargas. Mas, se atentado houvera, teria sido por excesso de amor.” Eleria muito ao reler o texto. Parecia adivinhar a reação de Chateaubriand,saboreá-la.As proezas do candidato se sucediam. No Recife, onde também se repetiu omilagre da união de facções rivais, uma chuva fortíssima começou a cair nomomento em que Getúlio se preparava para falar às trezentas mil pessoas quese aglomeravam na praça. O discurso não demoraria menos que quarentaminutos – tratava-se, afinal, do comício marcado para a cidade maisimportante do Nordeste. Vargas imediatamente colocou o texto num bolso dopaletó e limitou-se a pouquíssimas palavras: “Brasileiros, pernambucanos: oque aqui está escrito é o que está escrito no meu coração”, afirmou. “E todosvocês sabem o que está escrito no meu coração: meu amor pelo povo!” Amultidão delirou e começou a dispersar-se gritando o nome do candidato. Eu testemunhava tudo aquilo sozinho. Graças à miopia da imprensa, tornei-me o dono de uma espécie de marcha de Napoleão. Passava os dias ao ladode Getúlio, presenciava conversas e acordos decisivos, assistia a comíciosfantásticos – e relatava tudo em longos telegramas para a redação dosAssociados no Rio de Janeiro. Sempre espertíssimo, Chateaubriand entendeuque sua rede de jornais conseguira a virtual exclusividade na cobertura de umassunto que apaixonava o Brasil – e abriu-me todos os espaços. Nenhum outro jornalista descreveu, por exemplo, o espetáculo que foi ocomício em Salvador, na Bahia. Antes do comício, mais uma vez, eu viraGetúlio entretido na arte de tecer alianças teoricamente inviáveis. Nopalanque, cercado de políticos que até então se combatiam com ferocidade,Vargas falou para centenas de milhares de pessoas que ovacionavam cadafrase do discurso. Naquele momento, concluí que o destino da eleição estavaselado. De Salvador, passei um telegrama para Assis Chateaubriand com um textocurto e profético: “Iluda-se quem quiser: a vitória de Vargas está assegurada

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se funcionarem as regras democráticas das eleições. Samuel Wainer.” Remeticópias do telegrama para o general Góis Monteiro, que garantia sustentaçãomilitar ao candidato, e para o empresário Euvaldo Lodi, presidente daConfederação Nacional das Indústrias e um dos grandes financiadores dacampanha. Poucos dias depois, já em Vitória, no Espírito Santo, recebi umtelegrama com a resposta do dono dos Associados: “Para Wainer, encontre-seonde estiver: mandarei comprar um balde de água gelada para sua cabeçaquente. Chateaubriand.” Chateaubriand recusava-se a admitir as evidências de que a vitória deGetúlio era inevitável, o que colocava os jornais dos Diários Associadosnuma situação curiosa: só minhas reportagens eram simpáticas ao candidatodo PTB – tudo o mais eram editoriais, ameaças e intrigas sempre contraVargas. Poucos dias antes da eleição, Chateaubriand, afinal, se convenceu deque minhas previsões eram corretas. Então, seus jornais viveriam uma curtalua de mel com o “Pai dos Pobres”. A verdade é que a primeira vitória deGetúlio na campanha de 1950 foi contra a imprensa. Os jornais não lhedavam trégua, sequer o tratavam com isenção. Um dos editoriaisencomendados por Chateaubriand, por exemplo, dizia ser indispensável“evitar a posse desse monstro”. Mas esse esforço da imprensa se revelariainútil diante da maciça adesão popular ao candidato, manifestada até mesmonos supostos redutos dos seus adversários. Foi o caso de Minas Gerais, a terrade Cristiano Machado, o candidato do PSD. Ali, nem mesmo os getulistasesperavam grandes manifestações de apoio. Pois Belo Horizontepraticamente veio abaixo à passagem de Getúlio Vargas.Em Vitória, ouvi uma confidência de Getúlio: “Recebi uma notíciaprofundamente penosa para mim, uma notícia perigosa”, disse-me. Eleacabara de receber de Ademar de Barros um ultimato para apoiar claramentea candidatura à vice-presidência de João Café Filho, ex-deputado pelo RioGrande do Norte, que tivera uma vaga participação na Aliança NacionalLibertadora, a frente esquerdista liderada por Luís Carlos Prestes em 1935.Café Filho estivera exilado durante algum tempo em Buenos Aires e semprefora considerado um homem de esquerda. Ingressara no Partido SocialProgressista, o partido de Ademar, e acabou imposto a Vargas como seucompanheiro de chapa. Getúlio não confiava em Café, tinha-lhe horror físico. Ele desejava comovice o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, e até a fase final dacampanha alimentou a esperança de afastar Café. Essa animosidade gerou um

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clima de constrangimento. Getúlio evitava a companhia do vice, ignorava-oostensivamente. Mas naquele dia, em Vitória, Getúlio recebeu um secorecado de Ademar: ou aceitava Café ou perderia o apoio do governadorpaulista. O candidato, que ainda não visitara São Paulo, resolveu ceder e,pouco depois, iniciou um giro triunfal pelo grande estado. Em seguida,viajamos rumo ao Paraná. E no comício de Curitiba, pela primeira vez emtoda a campanha, ele chamou Café Filho a seu lado para apresentá-lo àmultidão: “Este é o meu candidato”, anunciou. Getúlio certamente sentira emCafé o cheiro do oportunismo, da mediocridade, da traição, numa intuiçãopremonitória que seria dramaticamente confirmada em agosto de 1954. Terminada a campanha, eu não tinha dúvida alguma quanto ao resultado daeleição. No Rio de Janeiro, às vésperas do pleito, propus a dois companheirosdos Associados – os jornalistas Murilo Marroquim, que cobrira a campanhade Cristiano Machado, e Wilson Aguiar, que acompanhara Eduardo Gomes –a publicação dos nossos prognósticos. Cada um diria quem seria, em suaopinião, o vitorioso. Foi a fórmula que encontramos para anunciar naprimeira página o iminente triunfo de Vargas. Murilo apostou em Cristiano,Wilson no brigadeiro e eu em Getúlio. Àquela altura, não era preciso serprofeta para adivinhar quem venceria. A campanha me revelara Vargas por inteiro. Compreendi, entre outrascoisas, que conhecera o primeiro líder burguês da História do Brasil aconseguir efetiva comunicação com o povo. As classes conservadoras nãosouberam captar tal fenômeno, e por isso o mataram. Quando o país perdeuGetúlio, o capitalismo brasileiro perdeu seu grande defensor. Se ele hojeestivesse vivo, ainda estaria fazendo composições, aparando arestas,conciliando. Porque era essa a natureza de Getúlio Vargas.

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CAPÍTULO 5

Minhas previsões dando conta da vitória de Getúlio seriam amplamenteconfirmadas no dia 3 de outubro de 1950. Logo compreendi que,transformado em amigo do presidente eleito, eu estava a um passo do poder.Então, minha memória passeou por tempos distantes, territórios remotos.Revi as diferentes casas em que havia vivido com meus pais e meus irmãos,recordei a infância de menino judeu do Bom Retiro. A família Wainer imigrara para o Brasil no começo do século, a chamadode um irmão de minha mãe, Salomão Lerner, que então prosperava comocomerciante de tecidos na rua Florêncio de Abreu, no velho centro de SãoPaulo. Os Wainer partiram da Bessarábia, então parte da Rússia, eembarcaram rumo à América do Sul pelo porto de Gênova, na Itália.Mudaram de país, de vida e de nome. Meu pai, Haim Hersh Wainer, tornou-se Jaime Antílope Wainer – Hersh, em hebraico, tanto pode ser Henriquecomo antílope. Minha mãe, Dvora – o nome bíblico da profetisa Débora –virou Dora. A dona Dora que, nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial,reinaria como uma das matriarcas da comunidade judaica do Bom Retiro. Dona Dora não tinha tempo para ficar triste. Mãe de nove filhos,comandava uma casa que funcionava como uma espécie de ponto de encontrode imigrantes. Judeus recém-chegados ao Brasil sabiam que na casa de donaDora, onde só se falava iídiche, sempre seria possível encontrar uma camavaga, além do esplêndido pão preto servido com queijo do Bom Retiro.Muitas vezes eu e meus irmãos fomos retirados de nossas camas para abrirespaços a imigrantes que acabavam de chegar. Dona Dora tinha umaacentuada vocação para a liderança, e fez das casas onde morou a famíliaWainer lugares alegres, movimentados, marcados pelo riso das crianças, pelamúsica, pela dança. Eram lugares também marcados pela melodia dosimigrantes conversando em iídiche, ou pelos lamentos dos judeus saudososda terra que ficara longe. Ainda assim, eram casas alegres. Fui estreitamente ligado à minha mãe, e tive a sorte de poder cuidar davelha Dora Wainer em sua velhice. Ela sofria de uma bronquite terrível, e euvivia à procura de sanatórios localizados em cidades cujo clima fossefavorável ao tratamento da doença. Levei-a para o Rio de Janeiro, para a VilaMariana, em São Paulo, para a Cantareira. Nos últimos meses de sua vida,minha mãe vivia num sanatório em Santos – a proximidade do mar parecia

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fazer-lhe bem. Morreu em meus braços, olhando-me com aqueles olhosprofundamente azuis. Isso não impediu que eu fosse trabalhar no diaseguinte. A morte jamais afetou a minha rotina.Meu pai morreu em julho de 1958. Eu estava no Rio de Janeiro e chegou-mepelo telefone a notícia de que o velho Jaime Wainer fora encontrado numarua em estado de coma. Passei instruções para que o levassem à BeneficênciaPortuguesa e corri ao encontro de meu pai. Minha mãe morrera seis anosantes. Meu pai morava em São Paulo, só de vez em quando viajava para ver afamília. Foi sempre um homem triste, introvertido. Nos últimos tempos,minhas irmãs se revezavam para acolher o pai; eu fazia questão de pagar asdespesas. Orgulhoso, fechado em suas reflexões, Jaime Wainer recusavadinheiro dos filhos. Eventualmente aceitava que eu o ajudasse, sempre comrelutância. Recém-chegado ao Brasil, ele trabalhou com meu tio Salomão Lerner.Nessa época, traía um claro ressentimento pelo fato de que, apesar de suasuperioridade intelectual, era apenas um empregado do cunhado. Issomagoava profundamente Jaime Wainer, um homem que gostava de tocarviolino, lia bastante, ouvia muita música, era extremamente sensível. Meu paicantava canções de sinagoga com uma voz parecida com a de Al Jolson (eusempre chorei ao ouvir Al Jolson). Depois, ao trabalhar por conta própria,seguiu perseguindo a independência financeira que jamais alcançaria.Durante a vida inteira ele acreditou que um dia enriqueceria, numa vingançafinal contra as humilhações que sempre o incomodaram. Não enriqueceu,mas soube manter a dignidade que ajuda a explicar a virtual inexistência demendigos judeus. Jamais conheci mendigos judeus. Taciturno, deslocado no ambiente em que vivia, desgostoso com a vida demascate, Jaime Wainer sempre esteve distante dos filhos. Dormia às oito danoite e acordava às quatro da madrugada. No quarto, ficava fazendo suascontas de comerciante sem sucesso, murmurando coisas em iídiche.Comprava e vendia mercadorias, mas certamente teria preferido, se lhecoubesse a escolha, outro destino. Andava horas a fio pela cidade, fazendonegócios e cobranças – lembro-me de que o velho Wainer tinha muitosfregueses entre os soldados da Força Pública. De vez em quando, parava emalgum botequim para tomar pratos imensos de minestrone e beber copos devinho Telefone, um vinho gaúcho barato, fortíssimo. Um dia, ele já no fim da vida, encontrei-o no centro de São Paulo.Abraçamo-nos carinhosamente, convidei-o a tomar café, ele aceitou. Logo

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começou a fazer perguntas sobre a situação política. Olhei seu rosto, suaroupa, seus sapatos. Ele estava sem capa num dia de chuva, os sapatosestavam reduzidos a quase nada. E meu pai mantinha a expressão tristonhaque eu conhecera desde menino. Propus-lhe que comprássemos um par de sapatos. Ele ponderou que ossapatos que usava durariam mais dois anos. Sugeri-lhe, então, que fizéssemosuma troca, ele concordou. A transação foi consumada sob a mesa do bar ondetomávamos café. Passei-lhe um par de mocassins italianos, calcei os sapatosde meu pai. Depois, fiz com que ele aceitasse a capa que eu vestia. Fomos atéa esquina, beijamo-nos e nos despedimos. Parado na rua, fiquei olhandoaquele homem que interrompia frequentemente a caminhada para examinaros mocassins que há pouco estavam nos pés do filho. Em seguida, entreinuma loja e comprei sapatos novos. Jaime Wainer era assim. Eu lhe dava roupas caras, ele vendia. Em 1951,dei-lhe uma caminhonete Dodge do ano, que ele passou a abarrotar demercadorias até reduzi-la a sucata. Alto, magro, feio, meu pai queria viversua vida e morrer sozinho, de preferência numa rua qualquer de São Paulo.Eu disse a meus irmãos que não tínhamos o direito de perturbar esse destino.Jaime Wainer morreu da forma que escolhera: na rua, trabalhando, sentiu quea morte se avizinhava. Ainda pude vê-lo com vida num hospital, e abraçá-lopela última vez. No dia seguinte, eu estava de volta à redação do jornal.

Enquanto meu pai caminhava por São Paulo carregando suas mercadorias esua tristeza, minha mãe mobilizava suas enormes energias para que a famíliasobrevivesse às dificuldades. Tivemos fases de aguda pobreza. Havia dias emque faltava comida em casa, mas dona Dora sempre dava um jeito.Entrávamos e saíamos de colégios, sempre ao sabor das oscilaçõesfinanceiras. Ninguém na minha família teve bons dentes, nossa saúde semprefoi um tanto precária; faltava dinheiro para esses luxos. E sofremos, comotodos, as humilhações reservadas aos meninos de origem judaica. Naquelaépoca, anterior a Hitler, nós éramos os “assassinos de Cristo”. Nos sábadosde Aleluia, o dia da “malhação do Judas”, ficávamos à beira do pânico. Naminha infância, praticamente todos os meus amigos eram judeus, e tambémas crianças do Bom Retiro falavam iídiche. Só na adolescência eu iriaconhecer melhor o mundo exterior. Menino, eu não mostrava nenhuma vocação especial para escrever, mas já

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era apaixonado por livros. Lia o que me vinha às mãos, frequentava sebos,fazia esforços desesperados para alimentar essa paixão. Isso me valeu umepisódio traumático aos doze anos de idade. Num dos sebos que ficavam nascercanias da praça da Sé, resolvi roubar um livro de Júlio Verne. A técnicaera simples: comprava-se um volume, colocava-se outro por baixo e setentava sair. Não percebi que estava sendo observado desde que entrara. Aobuscar a saída, um grandalhão agarrou-me, deu-me um tapa e tomou o livro.Trêmulo, ouvi o aviso: da próxima vez, iria parar na cadeia. Fiquei sem lerJúlio Verne, não havia dinheiro para livros. Essas dificuldades empurraram-me cedo para fora de casa. Aos doze anos,fui para o Rio de Janeiro morar com um irmão, Artur. Meses depois, umavéspera de Ano Novo judeu, voltei a São Paulo. Aos dezesseis anos,empreendi a segunda viagem rumo ao Rio. Viajei de trem. Nos primeirosdias, hospedei-me numa pensão, no Flamengo, onde já estavam dois de meusirmãos. Mais tarde, dividi o aluguel de um apartamento na rua SenadorDantas com outros estudantes da comunidade judaica. Dessa vez, eu chegarapara ficar.Chateau D’Oex é uma cidadezinha da Suíça que fica perto de Gstaad. Em1964, quando eu vivia o segundo exílio político, meus filhos Samuca e Brunoestudavam numa escola francesa, La Tournelle, localizada em ChateauD’Oex. Eu morava em Paris, mas viajava com frequência até a cidadezinhasuíça. Num dia de verão, eu lá estava com meus três filhos – Pinky, queestudava em Paris num colégio interno, também viajara para visitar osirmãos. De repente, Bruno, então com quatro anos, fez-me uma pergunta: – Você não vai à missa? Respondi que não, explicando que era judeu. E quanto a ele?, quis saberBruno. – Bem, você é meio judeu e meio católico – respondi. Ele saiu-se com uma dedução engraçada: – Então, não preciso ficar a missa inteira, só até a metade. Rindo, concordei, e minha filha Pinky entrou na conversa com outrapergunta: – Se nós somos metade judeus, de onde é que viemos? Fiquei intrigado: por que aquela curiosidade? – É que na escola só me perguntam isso – esclareceu Pinky. Entendi que precisava inventar uma história. Em consequência do exílio,meus filhos já estavam enfrentando uma crise de identidade – não se sentiam

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brasileiros, nem europeus. Agora, surgia a questão da ascendência judaica.Contei-lhes, então, uma história com cores bíblicas. Muitos séculos atrás,ocorrera no Egito uma revolta liderada por um príncipe chamado Moisés, quemontou num cavalo branco e saiu pelo deserto à frente de uma tribo dejudeus. Ao chegar ao mar, Moisés conseguiu secá-lo e o atravessou com suagente. Do outro lado do mar, os judeus se espalharam por várias localidades,cada uma era um principado. Um dos principados se chamava Bessarábia, e opríncipe era um Wainer. Mas havia problemas: além de assolada porfenômenos climáticos – secas, nevadas –, a Bessarábia sofria constantesataques de outras tribos, que culpavam os judeus por todos os males. Osatacantes chegavam à noite, roubavam, matavam e defloravam todas asmulheres. Numa dessas ocasiões, uma velhíssima avó Wainer foi estupradapor 24 inimigos, todos de raças diferentes. Dessa antepassada descendíamostodos nós. Éramos, assim, o produto de diferentes raças que se perdiam nopassado, mas éramos, sobretudo, brasileiros.

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CAPÍTULO 6 No Rio de Janeiro eu iria descobrir, definitivamente, que era jornalista. Naminha infância, mesmo no começo da adolescência, não cheguei a destacar-me por escrever bem. Mas era imaginoso, tinha ideias, gostava de escrever.Sobretudo sabia examinar assuntos e descrever situações com clareza.Aprendi a redigir um pouco melhor ajudando a fazer, no Rio, o jornal daAssociação de Estudantes Israelitas. Por volta de 1933, no início da expansãodo nazismo, tive a audácia de aceitar ser responsável por uma coluna, noDiário de Notícias, encarregada de divulgar pontos de vista da colôniaisraelita. Depois colaborei com Israel Dines, pai do jornalista Alberto Dines,na edição de um Almanaque Israelita que expunha a opinião dos judeus. Era preciso, contudo, sobreviver – e para tanto eu tinha de somar outrasatividades à minha iniciação jornalística. Um de meus irmãos promovialeilões populares nos pontos mais movimentados do Rio, e juntei-me a ele.Eu era praticamente um menino, não tinha desenvoltura alguma para falar empúblico, mas virei leiloeiro. Escondido por trás de enormes óculos escuros,subia numa mesinha e ficava apregoando as qualidades dos artigos leiloados– por exemplo, tapetes persas que de persas nada tinham. Nessa época, euestudava num colégio e me arrastava num curso de Farmácia que jamaisconcluiria. Às vezes, um professor me reconhecia em meio a um leilão, euficava constrangido. Mas não havia outra forma de ganhar dinheiro.Enquanto sobrevivia, colecionava esporádicas incursões pela imprensa eaguardava uma chance para dedicar-me integralmente ao jornalismo. Nessa época, a mão do destino – sempre ela – colocou em meu caminho umgrande jornalista, Antônio de Azevedo Amaral, que se tornara conhecido nosanos 30 graças a seus artigos num jornal chamado Gazeta de Notícias.Procurei Azevedo Amaral para pedir-lhe um artigo a ser publicado noAlmanaque Israelita. Esse primeiro encontro desencadearia um processo deaproximação que me colocaria lado a lado com Azevedo Amaral, em marçode 1938, numa revista chamada Diretrizes, destinada a configurar umcapítulo importante da história da imprensa brasileira. Antes disso, porém, eucomeçaria a entrar num mundo do qual depois me tornaria íntimo – o mundodas redações – pelas portas de duas publicações de vida efêmera; a Revista

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Brasileira e a Revista Contemporânea. A Revista Brasileira era uma espécie de livro editado mensalmente, commais de trezentas páginas. Tratava-se de uma ideia patrocinada por AntônioBatista Pereira, genro de Rui Barbosa, e também aí minha ascendênciajudaica teve seu papel. Depois de fazer uma conferência em que abordou,entre outros, o tema do antissemitismo, Batista Pereira conversou com WolfKlabin, então chefe de uma família que sempre teve influência junto àcolônia. Nessa conversa, já decidido a lançar a revista, Batista Pereira pediu aKlabin que indicasse um jovem jornalista judeu para o cargo de secretário daredação. Klabin indicou-me. Não era fácil fazer tal revista. Ela pretendiatransformar-se numa réplica de uma publicação francesa, Le Mois, umarevista em formato de livro que reunia alguns dos maiores jornalistas daEuropa. De novo pesou em minha decisão a audácia da raça: aceitei. Arevista não tinha data certa para sair. Além dos problemas inevitáveis quepublicações pobres costumam enfrentar para cumprir o calendário, havia acrônica social que Batista Pereira adorava fazer. Ele se demorava quinze,vinte dias na preparação de uma crônica sempre vazada num portuguêscastiço, puríssimo, ainda que se tratasse da descrição de uma festa sem maiorimportância em uma embaixada. Boa parte do material publicado consistia em traduções originais do LeMois, mas já era importante a participação de colaboradores brasileiros, entreos quais tinha peso especial um grupo de professores de esquerda daFaculdade de Direito liderado por Hermes Lima, Castro Rebelo e Leônidas deRezende. Estávamos em 1935, um ano marcado pela ascensão das esquerdasno Brasil, e eu simpatizava com suas bandeiras. Aos poucos, a RevistaBrasileira inclinou-se nessa direção. Mais que atividades de conteúdoideológico, entretanto, absorvia-me a aventura de fazer uma revista. Eu fazia praticamente tudo. Traduzia textos do Le Mois – mal, mastraduzia. Como os exemplares eram impressos nas oficinas de um jornalchamado A Nação, aprendi da forma mais primitiva a marcar a tipologia,diagramar uma página, acertar um texto. Esse aprendizado teve de serinterrompido no dia em que Rui Batista Pereira, filho do dono, trouxe parapublicação um artigo do professor Miguel Reale, um dos ideólogos domovimento integralista, que à época representava uma espécie de sucursalbrasileira do fascismo italiano. A revista costumava abrir-se, na áreainternacional, às mais distintas correntes do pensamento político. No planonacional, contudo, só publicávamos textos de autores com posições

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esquerdistas, ou pelo menos nitidamente democráticas. Opus-me à publicaçãodo artigo de Miguel Reale, convencido de que, caso concordasse, estariadando o sinal verde para que a publicação se convertesse em porta-voz domovimento integralista. Preferi deixá-la. Pouco tempo depois, a RevistaBrasileira, que chegara a uma tiragem de 1.500 exemplares, saiu decirculação. Decidi procurar Caio Prado Júnior, dono de uma editora que mais tarde setransformaria na atual Brasiliense, e que conhecera como colaborador daRevista Brasileira. Propus-lhe o lançamento de uma revista nos mesmosmoldes. Caio Prado Júnior gostou da ideia e se comprometeu a comprar asedições de dois mil exemplares e distribuí-las. Nessa época, eu sobreviviatrabalhando como vendedor de óleos lubrificantes; era ainda impossíveldedicar-me ao jornalismo em tempo integral. Mas encontrei tempo parareunir, em poucos dias, o grupo que lançaria, em meados de 1935, a RevistaContemporânea, uma publicação que duraria apenas alguns meses. O Brasil vivia um clima tipicamente pré-revolucionário. As forçasesquerdistas aglutinavam-se na Aliança Nacional Libertadora, liderada porLuís Carlos Prestes, que retornara da União Soviética para articular o queentraria para a História com o nome de Intentona Comunista, desencadeadaem novembro de 1935. As forças direitistas tinham como ponta de lança aAção Integralista Brasileira, movimento chefiado por Plínio Salgado. Era oconfronto entre as forças antifascistas e o fascismo. No meio estava ogoverno de Getúlio Vargas, esperando a ocasião ideal para dar o golpe. Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimiladopelo Partido Comunista e tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia.De qualquer forma, meu coração pendia para a Aliança Nacional Libertadora,uma espécie de conglomerado das forças democráticas da época. Omovimento integralista – apesar dos desfiles aparatosos que promovia, dapesada simbologia condensada no sigma e nas camisas verdes exibidas porseus militantes – nunca teve penetração popular, jamais foi aceito pelobrasileiro médio. Getúlio estava atento aos pontos fracos desses dois polos, esoube esperar o momento para golpeá-los mortalmente. O fracasso da Intentona, em novembro, permitiu que Getúlio fechasse aAliança Nacional Libertadora e desencadeasse uma dura repressão aoscomunistas. Os integralistas permaneceriam em ação até 1937, quandochegaria sua vez de sentir o peso da mão do governo. Enquanto durou,naqueles agitados idos de 1935, a Revista Contemporânea alinhou-se à

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esquerda e foi agressivamente antifascista. Também ali eu cuidavapraticamente de tudo, intensificando o aprendizado que iniciara na RevistaBrasileira. Um mês depois de minha saída, a Revista Contemporânea deixoude circular. Em sua curta existência, a Revista Contemporânea teve como traçocaracterístico também o combate ao antissemitismo, um fenômeno que já semanifestava de modo inquietante no Brasil, sempre estimulado pelosintegralistas. Esse fenômeno me ameaçava diretamente, mas não o combatiapenas por ser judeu – àquela altura, eu já me tornara essencialmente umdemocrata, e compreendia os valores que estavam em jogo naquele delicadomomento político. Nessa época, por sinal, os condicionamentos da formaçãojudaica já não exerciam efeitos tão agudos sobre mim, embora não tenha sidofácil livrar-me de certos laços. Isso só ocorreu em 1950, no meu segundocasamento, com Isa de Sá Reis. Então, telefonei para minha mãe e informeique decidira casar de novo. A velha Dora gostou da notícia. – Que bom, meu filho! – alegrou-se. – E com quem? Disse-lhe que a minha futura mulher era goy, e dona Dora encerrou aconversa: – Você não tem uma notícia melhor para me dar? Com o tempo, essas resistências cessariam, até porque minha família nãotardou a dar-se conta de que eu deixara de ser um menino judeu do BomRetiro. Era um jornalista brasileiro, já empenhado em transformar-me emcidadão do mundo. Minha primeira mulher, Bluma, pertencia a um universo semelhante ao queeu conhecera na minha infância no Bom Retiro. Nascera na Bahia, numafamília de judeus, e crescera em meio a um mundo parecido com o meu. Nósnos casamos em 1933, eu tinha 23 anos. Éramos muito jovens. Nós nosseparamos quinze anos depois, e ela morreu em 1951. Eu a conheci quandomorei na pensão de sua mãe, no bairro do Catete, no Rio. Era uma jovembastante nervosa, nossa incompatibilidade de gênios era total. Mas sempreguardei de Bluma uma doce lembrança. Era uma mulher linda, extremamentegenerosa, de ótimo caráter, que dividiria comigo, durante um bom tempo,uma das experiências mais estimulantes de minha vida – o dia a dia daredação da revista Diretrizes. Ali, Bluma, uma mulher muito organizada, emuito querida dos amigos que trabalhavam comigo, seria uma espécie desecretária-geral. Seria, assim, uma testemunha privilegiada do período emque amadureci como jornalista.

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Ao sair da Revista Contemporânea, tratei de manter ligações com omundo da imprensa, e um desses vínculos seria Azevedo Amaral, que já

estava cego. Ele passou a ditar-me artigos que escrevia para algumaspublicações, que eu depois copidescava. Em novembro de 1937, Getúlio

Vargas decretou o Estado Novo, fechando o Congresso e todas asorganizações políticas existentes no país, inclusive o movimento

integralista. Nessa época, Azevedo Amaral convidou-me para trabalharcom ele no lançamento de uma nova revista. Ao ouvir a proposta, reagi

como se a ideia de uma revista mensal fosse algo em gestação já há longotempo num canto qualquer de minha cabeça. Várias ideias estavam

elaboradas. A ideia essencial era fazer uma revista determinada a registrar a vidapolítica nacional daquele momento. Parecia absurda. Afinal, não haviaCongresso, nem partidos, a censura afiava suas garras. Mas o mundoestava às vésperas da guerra, o Brasil estivera em franco processo de

politização nos anos anteriores, e havia leitores à espera de quemestivesse disposto a dizer, ou pelo menos tentar dizer, a verdade. Enfim,tínhamos assunto. Azevedo Amaral achou a ideia interessante. Ele tinharelações com a Light, e conseguiu da empresa uma subvenção mensal novalor de dois contos de réis, um bom dinheiro para a época. A revista foi

lançada em maio de 1938, no mesmo mês em que os integralistascometeram seu grande erro: o ataque ao Palácio Guanabara, onde

Getúlio morava com a família. Surpreendidos pelo Estado Novo, quepusera fim a seus desfiles enormes, arrogantes e triunfalistas, os

partidários de Plínio Salgado reagiram com o fracassado ataque aoPalácio. Era a chance que Getúlio aguardava para assestar-lhes o golpefinal. O integralismo entrara no índex do Estado Novo, mas as forças

pró-fascismo eram ainda consideráveis no Brasil, e contavam com váriasautoridades do governo. Diretrizes tinha um poderoso inimigo a

combater. Para fazer a capa do primeiro número, convidei o pintor Santa Rosa,um artista de esquerda que frequentava o grupo de Cândido Portinari.Santa Rosa fez uma capa que mostrava um olho solto no espaço, algo

surrealista, inteiramente fora dos padrões da época. Foi um sucesso. Jáàquela altura, eu reunira um grupo de alto nível, que incluía nomes mais

tarde transformados em frequentadores obrigatórios de qualquerantologia literária. Estávamos reunidos em torno de uma ideia

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extremamente romântica. Os salários eram baixos, a subvenção da Lightera insuficiente para garantir uma folha de pagamentos atraente. O

restante viria do dinheiro obtido com a venda dos exemplares. A redaçãode Diretrizes funcionava numa saleta do apartamento de Azevedo

Amaral, e utilizávamos uma pequena oficina para a impressão. O pontode encontro do pessoal de Diretrizes era o Amarelinho, um bar na

Cinelândia, que ainda hoje resiste à passagem do tempo, com suas mesasna calçada. Enfim, Diretrizes nasceu com todos os ingredientes para

durar pouco. Mas durou bastante. Pelo menos, o suficiente para fazerhistória.

No começo, eu me limitava a escrever notas curtas, tímidas. Não meconsiderava um bom redator, não conhecia a fundo o idioma, e me

retraía diante dos grandes nomes que haviam aderido à ideia. Um delesfoi Rubem Braga, meu grande amigo naquela época, que escrevia

magnificamente. Rubem criou uma seção com o título “O Homem daRua”, que abrigaria crônicas maravilhosas. Também juntou-se a nós

Osório Borba, um talentoso polemista pernambucano, liberal, amargo,feroz. No primeiro número, Borba escreveu um artigo sobre a ditadura

militar do Peru. Para assegurar o equilíbrio editorial, nessa mesmaedição Azevedo Amaral assinou um artigo que elogiava o Estado Novo.

Foi só Diretrizes chegar às bancas para que a esquerda, sobretudo aesquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro, descobrisse que ali

havia um filão a explorar. Já no segundo número, Diretrizes setransformara no polo para onde convergiam os sobreviventes da

resistência à ditadura de Getúlio Vargas.

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CAPÍTULO 7

O segundo número, fortemente influenciado pelos ventos da guerra quesopravam na Europa, combatia abertamente o nazismo – uma batalha queassumiria contornos mais agudos nos meses seguintes. Diretrizes erasubmetida à censura prévia do Departamento de Imprensa e Propaganda, oDIP, encarregado de forjar e preservar uma imagem positiva do Estado Novo.Tratei de adotar certas cautelas. A composição do conselho diretor da revista,montado depois da constatação de que a existência de Diretrizes não seriaefêmera, é uma prova desses cuidados. Nele, figuravam nomes comoAstrogildo Pereira, um dos fundadores do PCB, e Graciliano Ramos, umopositor histórico do Estado Novo. Mas ali também estava, por exemplo, apoetisa Adalgisa Nery, casada com Lourival Fontes, o todo-poderoso chefedo DIP. Adalgisa, uma linda mulher, escrevia textos muito interessantes, nãoera preciso ser indulgente para publicá-los. Mas o fato de ser casada comLourival Fontes, naturalmente, valorizava sua presença na redação deDiretrizes e oferecia à revista algum tipo de segurança. O sucesso de Diretrizes tornou-se evidente na segunda edição, que seesgotou nas bancas. Então, juntou-se ao grupo Jorge Amado, àquela épocaum romancista principiante. Pouco depois, a redação da revista já se tornaraponto de convergência de escritores brilhantes. Além de Jorge Amado, aliestavam, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel deQueiroz e Aníbal Machado. A meu convite, aliás, os cinco escreveram a dezmãos uma novela com o título Brandão Entre o Mar e o Amor, publicada emforma de folhetim e depois editada pela Editora Martins. Também emDiretrizes, sempre em forma de folhetim, Jorge Amado escreveu O ABC deCastro Alves. Mas essa é outra história, que vale mencionar para ilustrar acriatividade de Diretrizes. Mais importante, contudo, é examinar aimportância da revista na história do jornalismo no Brasil. Nesse aspecto,foram muitas e relevantes as contribuições de Diretrizes. Num dos primeiros números, por exemplo, tive a ideia de envolverAzevedo Amaral numa manobra destinada a quebrar o silêncio imposto pelacensura do DIP a notícias e comentários sobre a guerra civil espanhola,iniciada em 1936 e encerrada em 1939. Azevedo Amaral era considerado o

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maior comentarista internacional da imprensa brasileira, e conseguiconvencê-lo a escrever uma reportagem intitulada “A verdade sobre a guerrada Espanha”. Até então, a censura promovida pelo DIP procurava transmitir aversão de que, desde o início da conflagração, não houvera a menorresistência popular ao avanço das tropas do general Francisco Franco.Evidentemente, isso era falso. A falsidade dessa versão ficava transparente nareportagem de Azevedo Amaral, que só foi publicada porque o autor tinhaestreitas ligações com o DIP. A edição que trazia a reportagem também seesgotou, mas aí começariam a aguçar-se nossos problemas com a censura. ODIP desconfiou, com razão, de que ali havia o dedo da esquerda. TambémAzevedo Amaral notou que aquele grupo de jovens jornalistas merecia maisvigilância. De seu lado, a esquerda percebeu que era o momento de influir demodo mais decisivo nos rumos de Diretrizes. Publicada a reportagem sobre a guerra civil espanhola, chegou dePernambuco, decidido a agregar-se à redação, o jornalista Octávio Malta,uma figura já lendária na imprensa brasileira. Em 1932, ele chefiara umagreve de jornalistas. Em 1935, trabalhara no jornal A Manhã, influente porta-voz da esquerda, como secretário de redação. Malta, um grande editorialista,passou a cuidar dos textos que traduziam a opinião da revista. Depois de tersido redator-chefe na primeira etapa de Diretrizes, eu já era diretor deredação, mas deixei por conta do Malta o controle do conteúdo dos editoriais.Eu cuidava, sobretudo, do aspecto formal da revista. Incansável leitor depublicações estrangeiras, procurava absorver inovações gráficas, fazia títulosousados, modificava com arrojo a diagramação das páginas. Evidentemente,também interferia no conteúdo das reportagens publicadas por Diretrizes.Mas não compreendia, ou não queria compreender, que a linha editorial darevista estava atendendo a outros interesses. Só vinte anos mais tarde OctávioMalta me faria uma revelação da maior importância: ele fora enviado para oRio com a incumbência de assegurar para o PCB o controle de Diretrizes. Essa miopia política, que me ofuscava a visão de coisas óbvias como apresença do PCB no cotidiano de Diretrizes, tem causas facilmenteidentificáveis. Eu estava deslumbrado com a constatação de que tivera acessoao clube dos intelectuais de esquerda. Subitamente, surpreendera-me amigode intelectuais como Jorge Amado, Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz,José Américo de Almeida, Érico Veríssimo. Participava de rodas animadaspelas músicas de Dorival Caymmi, que chegara ao grupo pelas mãos de seuamigo Jorge Amado. Sentia-me honradíssimo por tantos privilégios. Ter a

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companhia de Octávio Malta, assim, era um motivo de orgulhosuficientemente poderoso para fechar-me a vista a certas evidências. Maltaera uma figura extraordinária, sempre seríamos amigos. Nessa época, revi Carlos Lacerda. Eu o conhecera em 1935, quando oBrasil vivia uma fase de intensa efervescência política, e Lacerda – um jovemmagro, de aparência ascética e oratória brilhante – era um dos heróis daesquerda. A ele coubera a honra de ler o manifesto de Luís Carlos Prestes nacerimônia de lançamento da Aliança Nacional Libertadora. Numa noite, euestava jantando no restaurante Reis, apelidado de “Meia Porção” por seusfrequentadores, que ficava perto da esquina da avenida Rio Branco com a ruaAlmirante Barroso. De repente, Carlos Lacerda aparece e senta-se à nossamesa. Fiquei comovido. Eu já fizera a Revista Brasileira e a RevistaContemporânea, mas sentia-me um ilustre desconhecido comparado àscelebridades que começava a conhecer. E Lacerda era um dos meus grandesídolos. Ele sentou-se, olhou-me e perguntou quem eu era. A pergunta veio numtom arrogante. Apresentei-me. Então, ele se lembrou de algumas reportagensque eu fizera e elogiou-me: “Você fez um belo trabalho”, disse. “Fiqueconosco, você vai longe”. Estremeci de emoção. Pouco tempo depois, houveo episódio da Intentona, e perdi Carlos Lacerda de vista. Ele se escondeu naBahia e esperou pelo momento do regresso. Em 1938, de volta ao Rio deJaneiro, juntou-se ao grupo de Diretrizes. Costumávamos visitá-lo num sítioem que vivia semiclandestino, ouvíamos com certa contrição o que ele dizia.Cuidávamos de sua sobrevivência levando-lhe dinheiro, mantimentos. Fuimuitas vezes ao sítio em companhia do jornalista Moacir Werneck de Castro,primo de Lacerda e uma das figuras mais importantes da história deDiretrizes. Depois, Carlos Lacerda começou a fazer palestras e conferências.Continuamos a ajudá-lo: lembro-me de muitas noites em que saí à suaprocura para levar-lhe algum dinheiro. A ruptura entre nós só se daria maistarde – e seria violenta. A publicação da reportagem sobre a guerra civil espanhola alertou AzevedoAmaral para os riscos contidos na convivência com a redação de Diretrizes.Ele me chamou para comunicar sua insatisfação e informar que deixaria arevista. Fizemos um acordo. Ele ficaria com os dois contos da Light, eu como título. Numa tentativa de rescisão civilizada, acertamos que ele continuariaa assinar a principal reportagem internacional da revista. A busca de umdesquite amigável resultaria inútil. Quinze dias depois, naturalmente valendo-

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se da verba da Light, Azevedo Amaral lançou uma revista chamada NovasDiretrizes, abertamente patrocinada pelo DIP. E em franca oposição à nossa.Em contrapartida, estávamos livres para fazer a revista que imaginávamosadequada ao Brasil daquele momento. Tal liberdade era relativa, na medida em que sofríamos, como já ressalvei, ainfluência do Partido Comunista, cujos líderes exerciam um forte fascíniosobre o jovem que eu era. Certa vez, ainda em 1938, fui levado ao encontrode Osvaldo Costa, um dos mitos do PCB. Emocionei-me ao encontrá-lo numquarto escuro de um prédio no Largo do Machado, no bairro do Catete. Elefolheou a revista, fez alguns elogios e recomendou-me que mantivesse amesma linha que vinha seguindo. Diretrizes, segundo Osvaldo Costa, nãodeveria tornar-se porta-voz do PCB; o correto era defender a formação deuma frente política que unisse as forças democráticas. A formação de taisfrentes, por sinal, era defendida naquela época por comunistas do mundointeiro. Esses vínculos com os comunistas, que tinham como corolário uma francasimpatia pela União Soviética, exerceriam um efeito paralisante sobreDiretrizes em agosto de 1939, quando Hitler e Stálin assinaram o célebrepacto de não agressão entre alemães e russos. Para a redação, aquilorepresentou um desastre moral. Até então, adotávamos uma linhaabertamente antinazista e antifascista. Com a assinatura do pacto, ficamosperplexos. Como sair daquele impasse? Reunimo-nos para debater a questão,mas não havia solução possível. Os comunistas, sempre disciplinados, tinhamde apoiar o que Stálin decidira. Como eu era controlado pelos comunistas daredação, acabei concordando. Foi a fase mais difícil vivida por Diretrizes.Seis meses antes da ruptura do pacto pelos alemães, em junho de 1941, deimeu grito de independência, ao mandar fazer uma série de reportagens sobreas possibilidades de a guerra envolver a Inglaterra, retomando a antiga linhafrancamente antinazista. Os comunistas tentaram pressionar-me, continuavampresos aos termos do pacto de não agressão. As pressões só cessariam quandoa Alemanha invadiu a União Soviética. Descontada essa fase, Diretrizes foi sempre coerente no combate aosnazistas e seus aliados. Para evitar problemas, agíamos como se o EstadoNovo não existisse – nossos inimigos estavam todos no exterior. A táticafuncionou, até que o governo brasileiro começou a inclinar-se pelaAlemanha. Em fins de 1938, decidi fazer uma edição inteiramente dedicada àamizade entre os Estados Unidos e o Brasil, com Franklin Roosevelt e

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Getúlio juntos, na capa. A revista estava pronta quando fui chamado aoMinistério da Guerra. Assustei-me. O Ministério da Guerra era o terror dosjornalistas de oposição: muitos dos que eram convocados àquele prédio, noCampo de Santana, dali seguiam direto para alguma cadeia. Fui recebido pelo major Afonso de Carvalho, chefe de gabinete do ministroEurico Dutra. Esse major era uma sinistra figura, ostensivamente fascista. Foimeu primeiro contato direto com agentes da repressão política. Até então, eume limitava a levar textos ao DIP, onde esperava humildemente, às vezesdurante horas, que algum censor me atendesse. Agora, eu estava frente afrente com um dos mais temidos servidores da ditadura. Em tom de vozhistérico, o major Afonso de Carvalho apontou para um exemplar deDiretrizes colocado sobre sua mesa e informou que a edição não poderiacircular. “Ela contraria a política externa brasileira”, disse o major.Argumentei que a foto de capa era uma prova de que o Brasil e os EstadosUnidos eram amigos. Ele colocou um dedo sobre a figura do Roosevelt ecomunicou-me: – Tira esse que a revista sai. Fui para a redação e troquei imediatamente a capa, tendo o cuidado deguardar alguns exemplares para a história. Os textos não foram modificados,mas Roosevelt teve de ser banido. Voltei ao gabinete do major Afonso de Carvalho em novembro de 1939,quando preparava o lançamento de uma edição especial sobre ocinquentenário da Proclamação da República. A capa, desta vez, trazia afigura de Benjamin Constant, um dos líderes do movimento que derrubou amonarquia. Tratava-se de um truque para driblar a vigilância do governo.Naquela época, o Exército brasileiro estava dividido em dois grupos,“constantistas” e “deodoristas”. Os constantistas, fiéis às teses de BenjaminConstant, eram pacíficos, democratas e simpáticos aos Aliados. Osdeodoristas, que cultivavam a imagem do marechal Deodoro da Fonseca, o“Marechal da Espada”, eram marciais, agressivos e, àquela altura, haviamaderido às teses fascistas. No Ministério da Guerra, o major Afonso deCarvalho deu um recado curto e grosso: – Esse número não vai sair porque vocês são traidores da pátria. Simulei perplexidade, e o major voltou ao ataque. Informou-me queBenjamin Constant inoculara o germe pacifista no organismo do Exército, eque isso era imperdoável. – Um exército não pode ser pacifista – exaltou-se Afonso de Carvalho.

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Então, novamente, apontou-me a saída: a revista só circularia se trouxessena capa a figura do marechal Deodoro da Fonseca. Agradeci-lhe asinformações históricas, afirmei que tudo não passara de um mal-entendido ecorri de volta à redação. A edição do cinquentenário da Proclamação daRepública saiu com o marechal Deodoro na capa, junto a Benjamin Constant.

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CAPÍTULO 8

O nazismo e o fascismo encontraram defensores nas Forças Armadas e nogoverno brasileiro, mas jamais se fixaram junto à população. Tampoucoconquistaram muitos adeptos entre as classes dirigentes, até porque a culturagermânica nunca teve, no processo da formação cultural brasileira, ainfluência da cultura inglesa ou francesa. Além do mais, o Brasil foi durantemuito tempo, na prática, uma colônia britânica. Graças a esses fatores, a linhaantifascista e antinazista de Diretrizes era vista com simpatia. O brasileiromédio não nos considerava comunistas; para ele, a revista defendia causasjustas, democráticas. A situação se agravou em junho de 1940, quando Getúlio Vargas, a bordodo couraçado Minas Gerais, fez o histórico discurso com o qual praticamenteformalizava a adesão do Brasil ao bloco liderado pela Alemanha. O discursocontinha a frase que ficaria famosa: “Novas forças se erguem no mundoocidental.” O texto era elíptico, mas deixou evidente de que lado seencontrava o ditador. A França fora invadida, a União Soviética pareciaacuada, a Inglaterra estava na iminência de ser invadida. Nós nos sentíamosperdidos, mas não perdemos a disposição de reagir. Nessa época, fizemosuma edição dedicada à França. Era uma forma de resistência. Até o discurso no Minas Gerais, havia simpatizantes dos Aliados em altospostos do governo, e o grupo de militares antifascistas era numeroso. A partirdali, o Exército passou a ser inteiramente controlado por germanófilos, e osdissidentes do governo silenciaram. A redação de Diretrizes saiu à procura deassuntos que, sem criar problemas graves com o Estado Novo, deixassemclaro que continuávamos a seguir a mesma linha de sempre, favorável aosAliados. Descobrimos, então, o filão do nacionalismo, que se tornaria umcapítulo de extrema relevância na história de Diretrizes. Desencadeamos a campanha da nacionalização do sul do Brasil, abrigo dalendária Quinta Coluna. A Quinta Coluna seria um agrupamento deimigrantes alemães e brasileiros traidores, dedicados a trabalhos deespionagem e sabotagem. O sul do Brasil, naquela época, estava virtualmenteocupado pela colônia alemã. As cidades tinham nomes alemães, não se falavaportuguês nas ruas, as crianças aprendiam na escola a falar exclusivamente o

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idioma alemão. A campanha tinha o apoio do general Cordeiro de Farias,então interventor do Rio Grande do Sul, mas o ministro da Justiça, FranciscoCampos, tentou proibi-la. Foi uma tentativa inútil. As teses nacionalistasdefendidas por Diretrizes já haviam sido encampadas pelo Exército e porhomens do governo. Mais tarde, quando o Brasil já se engajara na causa dosAliados, Getúlio Vargas adotaria providências drásticas para devolver àcultura brasileira o sul do país. No final de 1940, Diretrizes já se transformara numa revista moderna e,apesar de suas dimensões modestas, bastante influente. Embora a tiragemoscilasse entre quatro e cinco mil exemplares, a repercussão das reportagensque publicávamos era grande. Textos políticos eram o prato de resistência darevista, mas também tratávamos com competência de assuntos de outrasáreas. Haviam sido criadas seções de humor, publicávamos charges, questõesliterárias importantes eram debatidas nas páginas de Diretrizes. O grupo decolaboradores aumentara, outros nomes de prestígio haviam se juntado a nós.O problema da falta de recursos, porém, continuava presente. Conseguimosampliar o volume de anúncios, mas ainda faltava dinheiro. Achei que chegaraa hora de procurar algum capitalista que nos ajudasse. Depois de examinarmos vários nomes, eu e Rubem Braga nos fixamos numpaulista chamado Maurício Goulart, que participara de todos os grandeseventos políticos importantes desde a Revolução de 1930. Goulart era umhomem extremamente simpático, muito ligado ao grupo que, em 1945, criariaa União Democrática Nacional. Marcamos um encontro num bar da Lapa.Rubem e eu expusemos nossos problemas e planos a Maurício Goulart. Elelogo se entusiasmou com a ideia e aceitou investir cem contos de réis – umafortuna – em Diretrizes. Com esse dinheiro, resolvemos transformá-la emrevista semanal. O sucesso foi imediato. A tiragem logo alcançaria a marca de vinte milexemplares, bastante alta para os padrões da época. Os ventos gerados pelosconflitos na Europa começaram, afinal, a soprar a nosso favor. Homens dogoverno pressentiram que os Aliados poderiam ganhar a guerra e passaram apressionar Getúlio Vargas. O serviço de propaganda montado pelos inglesesabastecia-nos com informações, artigos e reportagens. Emissários americanosintensificaram suas visitas ao Brasil, decididos a conquistar nosso país para acausa aliada. Diretrizes se tornaria um dos polos aglutinadores desse esforçoantinazista, e essa seria uma das razões do sucesso alcançado pela revista.Houve outras. Entre elas, uma das mais importantes foi o fato de Diretrizes já

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ter consolidado, àquela altura, sua imagem de revista veiculadora de grandesreportagens. Uma dessas reportagens, um dos marcos da luta de Diretrizes contra onazifascismo e suas ramificações, chegou-me num envelope remetido do RioGrande do Sul. O autor, numa linguagem típica de jornalista de província,pedia-me cerimoniosamente que me desse o trabalho de ler o que escrevera.Esse texto hoje figura em qualquer antologia das grandes reportagens jápublicadas no Brasil. O título – “Como era verde o meu Brasil” – indicava,com fina ironia, o assunto abordado. Inspirado no título de um romancefamoso – Como Era Verde o Meu Vale, de Richard Llewellyn –, o repórteraludia ao verde das camisas dos integralistas. Essa reportagem, uma vigorosadenúncia de infiltração de agentes e simpatizantes do nazismo no sul do país,revelaria o talento de um jornalista que logo ficaria conhecido nacionalmente:Justino Martins. Justino, que mais tarde se tornaria diretor da revista Manchete, cargo queocupou durante muitos anos, trabalhava na Livraria do Globo, em PortoAlegre. Ele tivera acesso a um relatório do chefe de polícia do Rio Grande doSul sobre as atividades da Quinta Coluna e nele baseara sua reportagem. Oassunto não figurava no índex do DIP, e Justino pôde explorá-lo em outrasreportagens, sempre com títulos fortes: “A infiltração integralista noprofessorado”, “Dancei um Tango com a Gestapo”. Como os jornais secomportavam com timidez diante do assunto, as denúncias de Diretrizestiveram enorme repercussão. Outra reportagem antológica teve o título de “Grã-finos em São Paulo” e,como autor, Joel Silveira. Joel, um dos grandes nomes da história dareportagem no Brasil, começou a projetar-se com esse texto. A ideia nasceranuma noite em que o pintor Di Cavalcanti, também ligado ao grupo deDiretrizes, contou-me numerosos casos e incidentes envolvendo personagensda alta sociedade paulista. Di Cavalcanti frequentava esse meio, era umobservador sagaz e um ótimo contador de histórias. Pensei comigo: isso dáuma ótima reportagem, e o homem para fazê-la é Joel Silveira. Joel escreviamuito bem, sabia descrever situações com deliciosa ironia. Ele viajou paraSão Paulo acompanhado de Di Cavalcanti. Ao voltar, trazia uma reportagemque faria furor. Foi a primeira vez na história do jornalismo brasileiro queuma publicação teve de tirar três edições sucessivas. Estimulado pela onda nacionalista, o governo decidiu criar, em 1941, aCompanhia Siderúrgica Nacional, que construiria a usina de Volta Redonda.

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O DIP organizou uma barulhenta campanha publicitária, convidando o povoa comprar ações. Elas se esgotaram rapidamente, e os aproveitadores desempre compreenderam que ali havia uma ótima fonte de lucros ilegais. Oesquema era simples. Primeiro, procurava-se um nome para uma empresafantasma – Companhia Siderúrgica Brasileira, Brasilminas, coisa do gênero.Depois, botava-se na presidência um general ou almirante reformado. Emseguida, um vendedor de ações, sempre acompanhado de algum policial,dirigia-se à casa de alguma família de imigrantes originários da Alemanha oude países ligados aos germânicos – japoneses, alemães, austríacos. Àquelaaltura, esses imigrantes viviam em pânico. O vendedor argumentava quequem se recusasse a comprar ações poderia ser preso como “inimigo danacionalidade”. Era um golpe infalível. E, além dessa freguesia indefesadiante de golpes desse tipo, os donos dessas siderúrgicas inexistentes tinhama seu alcance brasileiros convencidos de que não poderia haver investimentomelhor para suas economias. Colhi as primeiras evidências desse escândalo numa conversa com meuirmão Marcos, um homem muito simples, quase ingênuo. Ele me disse queestava ganhando muito dinheiro com a venda de ações de uma empresachamada Companhia Indústria Pesada. Pedi-lhe uma cópia dos estatutos daempresa e logo constatei a fraude: os autores do golpe se apresentavam comoproprietários de uma mina de aço. Não se tratava de minério, já haviamchegado ao estágio do aço. Recomendei a meu irmão que se afastasseimediatamente daquele negócio, e comecei a apurar. Fui a uma dessasempresas fantasmas e, poucos minutos depois, tornara-me acionista da futuraUsina Siderúrgica de Montes Claros. Havia filas de compradores, todosalheios ao fato de que a indústria siderúrgica era monopólio do Estado. Empoucos dias, colhi elementos para uma grande reportagem. Tive a cautela deprovidenciar uma cópia de texto e então encaminhá-la ao coronel EdmundoMacedo Soares, que à época chefiava o grupo encarregado das obras de VoltaRedonda. Macedo Soares respondeu-me com uma carta cheia de elogios aoque considerava um trabalho patriótico. Então, publiquei a reportagem com otítulo “Gângsters siderúrgicos invadem o Brasil”. Poucas horas depois, a revista estava esgotada nas bancas. Soltamos umasegunda edição. Em todas as cidades do país onde havia escritórios dasempresas denunciadas, registrou-se uma maciça corrida de compradores deações em busca de seu dinheiro. Houve quebra-quebras, multidõesenfurecidas caçavam responsáveis pela fraude. Fui prontamente chamado à

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polícia e convidado a explicar de que modo obtivera elementos para areportagem. Mostrei ao delegado que me intimara os estatutos de uma dasempresas: as provas estavam ali. Ele me recomendou que fosse para casa eaguardasse instruções. Fui para um hotel na Cinelândia, protegido por líderesestudantis. Naquele mesmo dia, o DIP baixou uma ordem proibindo que aimprensa tratasse da questão das falsas empresas siderúrgicas. Mas já eratarde para abafar o escândalo. Graças a Diretrizes, o país fora informado dosmecanismos da fraude e soubera que havia generais e almirantes envolvidosno golpe. As empresas fraudulentas foram fechadas, ocorreram muitasprisões. E a ditadura do Estado Novo, que fora no mínimo conivente comaquilo tudo, teve sua credibilidade fortemente abalada. Lembro-me de que, nessa época, tive um ligeiro incidente com CarlosLacerda. Eu caminhava pela calçada defronte ao Amarelinho, na Cinelândia,quando alguém me abraça por trás, põe-me as mãos sobre os olhos e solta afrase: – Você vai ser o nosso Assis Chateaubriand. Eu já reunira informações suficientes para concluir que Chateaubriand eraum gângster da imprensa. – Chateaubriand é a puta que o pariu! – irritei-me. Só então voltei-me para trás e me deparei com Carlos Lacerda. Ele pareciadesconcertado. – O que é isso? – espantou-se. – Eu não te insultei. Ponderei que a frase fora insultuosa. – Isso não faz sentido – disse Lacerda. – Ser um Chateaubriand é umagrande coisa.Insisti em que ser comparado ao homem dos Diários Associados era umadegradação. Separamo-nos minutos depois, num clima de evidente mal-estar.Às vezes me pergunto até que ponto incidentes desse gênero contribuírampara forjar e alimentar o ódio que mais tarde Carlos Lacerda descarregariacontra mim. Mas esta é outra história, que examinaremos mais tarde. A disposição para a denúncia e a linha nacionalista adotada por Diretrizesconjugaram-se para fazer da revista uma pioneira também na abordagem daquestão do petróleo. Participamos ativamente da luta pela nacionalização queresultaria na Lei 395, destinada a assegurar ao Estado a posse de toda equalquer jazida encontrada no subsolo. Em junho de 1939, por exemplo, fizuma entrevista com o general Horta Barbosa, presidente do ConselhoNacional do Petróleo. Eu me aproximara de militares que integravam o CNP,

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e frequentava a casa do coronel Ibá Meireles, genro e chefe de gabinete deHorta Barbosa. Nessa entrevista, matéria de capa de Diretrizes, o presidentedo CNP reafirmava que havia petróleo no Brasil e que o governo estavadecidido a garantir a exclusividade do Estado na exploração das jazidas.Horta Barbosa, habitualmente um homem tímido, retraído, mostrou-sebastante loquaz e afirmativo em suas respostas. Ali começariam a germinar assementes da futura Petrobrás. Ali, também, começaria a aprofundar-se meuinteresse pela questão do petróleo, que me acompanharia por toda a vida. No início de 1940, passou pelo Brasil um geólogo americano chamadoGlenn Rugby, ligado a empresas de prospecção. Fui entrevistá-lo. Rugby, queficaria famoso por ter descoberto a presença de jazidas de óleo no Alasca,estava a caminho do Chile, convidado pelo governo daquele país paracomandar algumas prospecções. Ele me contou que, algum tempo antes,estivera na Bahia, e fez declarações que tiveram muita ressonância. Afirmou,em tom categórico, que o Brasil era um país petrolífero. Mais: sustentou quehavia, na Bahia, mais petróleo que no Texas. O DIP apressou-se em proibir apublicação de novas declarações de Glenn Rugby. Interessado em prosseguirna abordagem do assunto, fiquei à espera de alguma chance para driblar acensura. Pouco tempo depois, consegui junto ao CNP uma autorização para visitar aárea de prospecções na Bahia. Os técnicos americanos que dirigiam ostrabalhos foram extremamente solícitos. Deram-me todas as informaçõesnecessárias, levaram-me a ver os poços. Fiz fotos do petróleo jorrando, evoltei para o Rio com um material excelente. “Eu vi o petróleo brasileiro”, foio título da reportagem. O DIP voltou à carga e proibiu que a revistacontinuasse a tocar no assunto. A proibição seria parcialmente neutralizadapor um grupo de estudantes já engajados na campanha pela nacionalização dopetróleo. Eles imprimiram milhares de folhetos que reproduziam textos dasreportagens publicadas em Diretrizes e os distribuíram pelo país. Os repórteres de Diretrizes viviam à caça de grandes assuntos, mas pelomenos uma vez um grande assunto enveredou redação adentro pelas própriaspernas. Certo dia, surgiu em minha sala um general fardado, de ótimaaparência, que fez um resumo dos motivos que o haviam levado ali: “Sou ogeneral Dilermando de Assis, e quero que seja reparada essa injustiça que éfeita contra mim há quase quarenta anos. Quero que todos saibam daverdade.” Levei um choque. Dilermando de Assis era o assassino do escritorEuclides da Cunha, uma das glórias da literatura brasileira. Com o tempo,

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consolidara-se a versão de que Euclides fora vítima de um atentado político.O Partido Comunista, que virtualmente se apossara de Euclides da Cunha,sempre contribuíra para propagar tal versão. Contestá-la seria, na visão doscomunistas, uma heresia imperdoável. Mas compreendi que tinha à minhafrente um grande assunto. Encaminhei Dilermando a Francisco de Assis Barbosa, um de meusmelhores entrevistadores. “Não tenho coragem”, disse Assis Barbosa, jáimaginando o impacto das declarações do assassino de Euclides. Eu o instruía fazer a entrevista, depois convocaríamos uma reunião para decidir comoagir. Assim, o general Dilermando de Assis pôde, finalmente, apresentar suaversão da história – aliás, a verdadeira, como ficaria comprovado. O crimeocorreu quando ele era um cadete de dezessete anos e vivia um romance coma mulher de Euclides, que morava no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro.Os vizinhos sabiam, o próprio Euclides sabia. Num dia qualquer, espicaçadopelo ciúme, o escritor procurou Dilermando, na casa do rival, para um acertode contas. Euclides atirou duas vezes; errou em ambas. Dilermando, ótimoatirador, deu-lhe um único tiro na testa. No julgamento, o assassino foiabsolvido, entenderam que ele agira em legítima defesa. Alguns anos depois,o filho de Euclides tentou vingar o pai e foi também fulminado com um tiropor Dilermando. Com a entrevista – uma bomba – nas mãos, convoquei uma reunião daredação para decidirmos sobre o seu destino. Surpreendentemente para mim,a maioria entendeu que a revista deveria publicá-la. Essa decisão fariadesabar sobre meus ombros a fúria do Partido Comunista – um de seusheróis, afinal, fora ultrajado. Diretrizes foi colocada sob suspeita de estar aserviço da ditadura, dirigentes do PCB acusaram-me de fascista, traidor. Os dissabores provocados pela entrevista não foram poucos. Mas a ediçãoalcançou enorme sucesso de público, e as acusações formuladas peloscomunistas não afetaram sua boa imagem. Estava claro que a revista chegaraà maioridade.

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CAPÍTULO 9

Maurício Goulart, nosso providencial capitalista, que durante os primeirosmeses de sua convivência com Diretrizes se mantivera à distância dasdecisões sobre o conteúdo das reportagens, resolveu interferir maisdiretamente – e esse seria seu grande erro. Prudentemente, evitávamosdesafios frontais ao governo de Getúlio Vargas. Goulart, que nessa épocaflertava com o núcleo oposicionista que mais tarde estaria aglutinado naUDN, entendeu que deveríamos dar algum tipo de ajuda a um grupo deconspiradores mineiros. Todos os anos, esse grupo mandava celebrar umamissa no dia do aniversário de Pedro Aleixo, que fora constituinte em 1934 eperdera o mandato com o advento do Estado Novo. Aleixo era um dos líderesdos conspiradores de Minas Gerais. No final de 1942, Maurício Goulartcompareceu à missa em Belo Horizonte e, de volta ao Rio de Janeiro, trouxeum material para ser publicado em Diretrizes. Ponderei que, aos olhos do DIP, aquilo configuraria um desafio intolerável.Maurício Goulart insistiu. Levei a revista ao DIP com um pedido deautorização para a publicação da nota. O veto, previsível, veio acompanhadode uma ordem emitida por Lourival Fontes: ou Maurício Goulart deixava arevista, ou Diretrizes deixava de circular. Fui a Goulart e lhe transmiti oultimato: era ele ou a revista. Sempre elegante, Maurício Goulart resolveuafastar-se de Diretrizes, e escreveu seu artigo de despedida. A partir daquele número, o controle acionário da revista passouinteiramente às minhas mãos. Diretrizes sobrevivia com as dificuldadesfinanceiras de sempre. Politicamente, a situação melhorou bastante quando oBrasil entrou na guerra ao lado dos Aliados. Ampliada a margem de manobraque o DIP nos concedia, a linha editorial de Diretrizes pôde acentuar suavocação democrática. Planejei uma série de reportagens sob o título geral de“Memorialismo libertário”, para lembrar ao país o que já se fizera na luta pelaliberdade. A primeira delas tratava da figura de Pedro Ernesto, prefeito doRio de Janeiro em 1935, que morrera depois de ter sido preso sob a acusaçãode inclinações comunistas. Em seguida, vieram a história da Coluna Prestes,outros episódios históricos, os perfis de tenentes como Siqueira Campos ou

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Juarez Távora. O DIP acordou, mas já se tornara difícil estancar a torrente –até porque seria difícil justificar o veto à publicação dos perfis de homenscomo os tenentes, que se haviam incorporado à própria história da Revoluçãode 1930. A essa altura, praticamente todos os jornais haviam embarcado nacausa dos Aliados. Já não estávamos sozinhos. As coisas andaram bem até que tive a ideia de entrevistar FernandoLacerda, tio de Carlos Lacerda, um lendário dirigente comunista. Fernandofugira para a União Soviética alguns anos antes, e fora o único brasileiro aingressar no Komintern, uma espécie de cérebro da revolução mundial. Ali secongregavam líderes comunistas do mundo inteiro para planejar atransformação da Terra num planeta vermelho. No começo dos anos 40, paradar uma demonstração de boa vontade ao Ocidente, Stálin dissolveu oKomintern. E Fernando Lacerda, que não participara da chamada Intentonade 1935 por já estar vivendo na União Soviética, resolveu regressar ao Brasil.Foi então que decidi entrevistá-lo. Vários companheiros de redação tentaramdissuadir-me. “Dá cadeia”, repetiam. Mandei a Fernando Lacerda um questionário com as perguntas. Alguns diasdepois, vieram as respostas por escrito. Pela primeira vez, um dirigentecomunista falaria a uma publicação da chamada imprensa burguesa brasileira.Resolvi que aquele texto não seria submetido à censura do DIP. Para evitarque algum funcionário das oficinas denunciasse ao DIP o que estávamospreparando, montamos uma edição falsa. Quando o expediente da gráfica seencerrou e só ficaram dois funcionários de confiança, trocamos a capa,substituímos páginas ocupadas por outros textos pelas declarações deFernando Lacerda e concluímos a edição. Ao contemplar a revista pronta,com um dirigente comunista na capa, compreendi que a profecia de meusamigos seria cumprida. – Vai dar cadeia – comentei. Deu. Na noite do dia em que o número 152, com a entrevista de FernandoLacerda, chegou às bancas, fui para o apartamento onde morava, emCopacabana, e dois policias já me aguardavam. A revista estava esgotada.Conduzido à Central de Polícia, ali encontrei Fernando Lacerda. Entramos nacela por volta de cinco horas da madrugada, ouvindo gritos de presospolíticos submetidos a torturas em salas próximas. A população da cela quenos coube era bastante heterogênea. Nela, conviviam um alemão acusado depertencer à Quinta Coluna, dois negões que haviam roubado fusíveis do

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couraçado Minas Gerais e um investigador envolvido com o jogo do bicho. Aluz se acendeu, e o velho Fernando Lacerda ensaiou uma apresentaçãosolene: – Peço aos companheiros que durmam. Eu sou Fernando Lacerda, preso porser patriota. Aqui, ao meu lado, o jornalista Samuel Wainer, preso pelomesmo motivo. Um dos negões cortou o discurso: – Cala a boca, queremos dormir! Atendemos ao apelo, mas ninguém conseguiria dormir. À exceção dopróprio Fernando: ele roncava como um leão velho. De manhã, o negão, quenaquele dia estava encarregado da faxina, começou a limpar a cela sempreolhando para Fernando. – Como é o nome desse velho? – perguntou. Respondi. Ele continuou seutrabalho repetindo um lamento que se transformaria no refrão oficial de nossatemporada na cadeia: – Seu Lacerda, que merda, seu Lacerda... Sugeri a Fernando que dormisse durante o dia para permitir nosso direito aosono à noite. A ideia revelou-se desastrada: ele passou a dormir durante o diae também à noite. Fiquei preso 28 dias. Só alguns anos mais tarde eu ficaria sabendo, pelopróprio Getúlio Vargas, que fora libertado graças ao chefe de polícia AlcidesEtchegoyen, já meu amigo naquela época. Getúlio chamou Etchegoyen parasaber o que ocorrera com um “tal Wainer”, e contou-lhe que o ministro doTrabalho, Marcondes Filho, recomendara a transferência do meu caso aotemido Tribunal de Segurança. Etchegoyen sabia que, se isso ocorresse, euseria condenado a, no mínimo, dois anos de cadeia. Ponderou a Getúlio,então, que tal providência não era necessária, recorrendo a uma expressãogaúcha: disse que já me pusera “o freio nos dentes”. Vargas ordenou que eufosse libertado. Reassumi a direção efetiva da revista imediatamente.Fernando Lacerda foi libertado alguns dias depois. Previsivelmente, arepercussão do episódio ampliou a notoriedade de Diretrizes. Entre abril de 1939 e julho de 1944, Diretrizes sustentou contra o DIP umaluta sem tréguas, apoiada pelo entusiasmo ideológico e pela capacidadeintelectual de cada um de seus componentes. Essas virtudes compunham seucapital. Em 1944, a revista estava profissionalizada, mas devia suasobrevivência à visão romântica que tínhamos do jornalismo. Faltavamanunciantes, faltava capital, a venda em bancas não bastava para assegurar

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salários justos para os homens que faziam a revista, e a dívida com a gráficaaumentava. Ainda assim, prosseguíamos. Também o eterno combate de gatoe rato travado com o DIP começava a nos cansar. Certa vez, José Américo deAlmeida atribuiu a relativa longevidade de Diretrizes à “flexibilidadeintelectual do judeu que a dirige”. Eu tinha, de fato, evidente capacidade paraadaptar os rumos da revista às circunstâncias. No primeiro semestre de 1944,contudo, a luta contra toda espécie de adversidade se mostrava demasiadoexaustiva. Hoje tenho consciência de que, nessa época, comecei a provocar ofechamento de Diretrizes, pautando ou fazendo pessoalmente reportagenssobre temas considerados tabus. A gota d’água foi uma reportagem sobre o general Miguel Costa, quedividira com Luís Carlos Prestes o comando da célebre Coluna – seu nomeoriginal, aliás, foi Coluna Miguel Costa-Prestes. Miguel Costa, um argentinonaturalizado brasileiro, fizera sua carreira na Força Pública de São Paulo. Porisso, o Exército o menosprezava. A chamada de capa era “Miguel Costa, oGeneral do Povo”, e o texto saudava seus feitos. No dia 4 de julho de 1944,mandei o material para o DIP. Poucas horas depois, recebi um aviso quesignificava uma sentença de morte para Diretrizes: por ordem do diretor doDIP, a revista perdera o direito à cota de papel que garantia sua impressão. O comunicado trazia a assinatura do capitão Amílcar Dutra de Menezes,um facínora que costumava tratar-me aos berros quando eu ia à sua sala.“Você está nos enganando!”, gritava o capitão depois de ler algum textosuspeito. Eu lhe explicava que aquele assunto não fora proibido. – Qualquer dia eu te pego! – berrava o capitão.Ele afinal encontrara o pretexto para cumprir a ameaça. Decidi escreveruma carta ao diretor do DIP, denunciando a violência que sofrera. Entregueiuma cópia da carta a Paulo Silveira, vice-presidente da União Nacional dosEstudantes, que saíra há pouco da clandestinidade. Comuniquei ao pessoalda redação, por telefone ou pessoalmente, o que acabara de ocorrer, erecomendei a todos que se dispersassem. Tomadas essas providências, tomeium táxi e me refugiei na embaixada do México. Informei ao embaixador oque se passara e pedi-lhe asilo. Ele me explicou que, como não havia atéaquele momento uma ordem de prisão contra mim, não se tratava de um casode asilo. De qualquer modo, aconselhou-me a ficar por ali até que as coisasse aclarassem. A imprensa não publicou uma única linha sobre o fechamento deDiretrizes, mas a UNE distribuiu por todo o país milhares de cópias de

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minha carta ao diretor do DIP. O governo começou a temer que o casoassumisse dimensões de escândalo. Assim, quando o embaixador do Méxicocomunicou ao Itamaraty que eu pedira asilo, emissários do governoesclareceram que aquilo era desnecessário – eu obteria um visto de saídasem maiores complicações. Permaneci na embaixada três dias, ao fim dosquais, acompanhado por vários amigos e militares democratas, fui para aCentral do Brasil no carro de Orlando Leite Ribeiro. Embarquei num trempara São Paulo na companhia do general Estillac Leal, que viajava para osul do país, onde deveria assumir um cargo de comando. Em São Paulo,Estillac me entregou à proteção do general Horta Barbosa, que euconhecera como presidente do Conselho Nacional de Petróleo, e naquelaépoca era comandante de região. Ambos eram militares francamentefavoráveis aos Aliados. À espera do trem para o Rio Grande do Sul, que sairia às seis horas damadrugada, fiquei num quartel localizado na rua Conselheiro Crispiniano,no centro de São Paulo. Resolvi rever meu pai, que morava na casa de uma de minhas irmãs, narua Aurora. Acordei-o às quatro horas da madrugada, com batidas najanela. Expliquei-lhe que teria de deixar o Brasil. Ele quis saber por quê.Contei que estava sofrendo uma perseguição política e pretendia viajar paraos Estados Unidos. Meu pai perguntou-me se sabia falar inglês, esclarecique falava o suficiente para sobreviver no exterior. Com ar de surpresa, elequis saber onde eu aprendera a falar inglês. Depois contou-me que, quandocriança, tentara fugir da aldeia onde nascera, mas foi impedido pelo pai. Erecomendou-me que partisse: eu já era um adulto. Segui para a estação, reencontrei o general Estillac Leal e seguimos paraPorto Alegre, numa viagem de vinte horas. Na capital gaúcha, fiquei trêsdias num hotel e aproveitei a chance para rever os muitos amigos que fizerana cidade. Enfim, segui para a minha primeira temporada no exílio,convencido de que não seria difícil manter-me nos Estados Unidos. Tambémali eu tinha bons amigos, entre os quais Nelson Rockefeller, que tempos antesvisitara o Rio de Janeiro e convivera amistosamente com o pessoal deDiretrizes. E, antes de deixar o Rio, eu recebera do jornal O Globo umacredencial para trabalhar como correspondente nos Estados Unidos. Atravésde amigos comuns, o jornalista Roberto Marinho propôs enviar-me duzentosdólares por mês. Eu não poderia assinar minhas reportagens – SamuelWainer era agora um nome inscrito no livro negro do DIP. Mas eu

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carregava a certeza de que a ditadura não duraria muito. Muito mais tempoduraria minha trajetória na imprensa brasileira.

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CAPÍTULO 10

Quando parti para o exílio, meu destino já se havia cruzado com o de doishomens que teriam presença decisiva em minha vida: Getúlio Vargas eCarlos Lacerda. Ainda não conhecia Vargas pessoalmente, mas era ele, ameus olhos de jovem jornalista, a encarnação do mal, o grande adversário acombater. Mais tarde, nós nos tornaríamos amigos íntimos. O contrárioocorreu em relação à trajetória de Carlos Lacerda. Hoje, muitos brasileirosrecordam o ódio animal que ele dedicou a mim, suas tentativas desesperadasde destruir-me por todos os meios, a guerra de morte que travamos. Poucos selembram de que fomos muito amigos nos verdes anos de Diretrizes. A amizade estreitou-se no período em que ele viveu escondido no sítio emVassouras. Éramos cinco amigos solidamente unidos. Carlos Lacerda tinha aliderança política do grupo. Jorge Amado, a liderança literária. MoacirWerneck de Castro, primo-irmão de Carlos e intelectual de alto nível,também integrava esse círculo completado por Rubem Braga e por mim.Nessa época, Carlos casou-se com uma professora que morava em Valença,Letícia, e começou a publicar artigos em Diretrizes. Pouco depois, com orelativo abrandamento da perseguição aos envolvidos no episódio daIntentona Comunista, ele se transferiu para um apartamento em Copacabana. Carlos Lacerda não demorou muito tempo em Diretrizes. Talentoso, redatorbrilhante e já fascinado pelo poder, aceitou um convite para trabalhar numarevista chamada Observador Econômico e Financeiro, à época uma espéciede Fortune brasileira, que pertencia a Valentim Bouças, representante no paísde uma empresa que seria o embrião da atual IBM. A revista era dirigida porOlímpio Guilherme, um grande economista que seria um dos inspiradores doDIP. Com salário bem mais compensador que o que poderíamos oferecer-lheem Diretrizes, Carlos mostrou-se, no começo, um bom repórter – fez um bomlevantamento, por exemplo, sobre a questão da infiltração germânica no suldo Brasil. Mas uma dessas reportagens exerceria dramáticos efeitos sobre asua vida. A revista de Valentim Bouças encomendou-lhe uma reportagem contando ahistória do Partido Comunista Brasileiro, ao qual Lacerda ainda era filiado.

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Carlos aproveitou-se dos laços que mantinha com comunistas militantes paralevantar informações necessárias. Ele era frequentador, por exemplo, da casado escritor gaúcho Álvaro Moreyra, uma maravilhosa figura de comunista,cuja mulher, Eugênia, era igualmente fascinante. Eugênia, uma intelectualligada aos meios teatrais, tinha uma aparência máscula, fumava charutos,seria uma das pioneiras do feminismo. E era, naquela época, comunista até amedula. Na casa de Álvaro e Eugênia Moreyra, Carlos Lacerda era tratadocomo um filho querido, venerado como um revolucionário romântico. Carlostinha na adolescência um charme enorme. Era o jovem tribuno, o líder dosmoços comunistas, filho de Maurício de Lacerda, um orador lendário daRepública Velha, sobrinho de dirigentes comunistas respeitados, como Pauloe Fernando Lacerda. Pois bem: valendo-se dessa mística e dos laços deamizade, Carlos conseguiu de Eugênia revelações minuciosas sobre ainfraestrutura do PCB. Lacerda também obteve informações junto a Astrogildo Pereira, um dosfundadores do partido, além de vários militantes, e reuniu um ótimo material.A reportagem, muito bem escrita, descia a detalhes inteiramentedesconhecidos até então, e descrevia com competência a trajetória do PCB.Mas seus efeitos foram desastrosos. Mais tarde, Lacerda diria, em sua defesa,que qualquer reportagem escrita por algum anticomunista seria muito maisprejudicial ao partido. O fato é que, em consequência das revelações quefizera, ocorreram prisões, várias células foram desbaratadas, a perseguiçãoaos militantes recrudesceu e registrou-se o assassinato de alguns comunistas. Numa tarde de 1940, eu caminhava pela Cinelândia em companhia deMoacir Werneck de Castro quando começaram a voar papéis que atraíramnossa atenção. Apanhei um deles, li o que estava escrito e fiquei pasmo:tratava-se de um panfleto que anunciava a expulsão de Carlos Lacerda peladireção do PCB. No texto, ele era apresentado como traidor e acusado deresponsável, graças às delações da reportagem, pela morte de váriosmilitantes. Em seu livro de memórias, Lacerda conta que a notícia dadistribuição de panfletos dando conta de sua expulsão do partido lhe foilevada por Moacir Werneck de Castro. Ele se esqueceu, ou fingiu esquecer,de que Moacir e eu fomos juntos à sua casa, naquela mesma noite, paramostrar-lhe o panfleto. Estávamos penalizados. Ao ler o texto, Carlos ficoupálido, prostrado. Negou, em termos veementes, como faria até o fim de suavida, que tivesse tido qualquer intenção de prejudicar o partido e, no começo,procurou fazer acreditar que o texto fosse apócrifo. Mas logo sentiria o peso

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da reação dos antigos companheiros. Velhos amigos passaram a repeli-lo,outros o marginalizaram ostensivamente, seu isolamento tornou-se completo.Ainda naquela noite em que lhe mostrei o panfleto, convidei-o a voltar aescrever em Diretrizes – ali, ponderei, era o seu lugar. Foi uma forma demostrar minha solidariedade a um amigo duramente golpeado. Carlos aceitoufazer críticas literárias para a revista. Os comunistas da redação – e erammuitos – reagiram com indignação, mas mantive minha posição. MesmoMoacir Werneck de Castro, que naquela fase era formalmente o diretor darevista, discordou da minha decisão, embora depois acabasse por aceitá-la,até porque era primo-irmão de Lacerda. Carlos sofreu bastante com esse repúdio generalizado, do qual lhe ficaramferidas que jamais cicatrizariam. Pude testemunhar alguns penosos efeitossobre seu comportamento provocados por esse trauma. Numa noite em queeu estava com Bluma no apartamento onde morávamos, nas imediações daCinelândia, por exemplo, ouvi gritos e o som de murros e pontapés. – Abra! Abra! – berrava uma voz que a princípio não reconheci. Assustei-me, já passava de meia-noite, poderia ser algum policial. Abri aporta e vi diante de mim, completamente bêbado, Carlos Lacerda. Lacerda literalmente desabou no chão. Eu e Bluma o arrastamos para umacama. Ele não parava de chorar e gemer, balbuciando sempre a mesma frase: – Mataram minha mãe, fiquei órfão. A mãe, no caso, era o Partido Comunista Brasileiro. Nós o consolamos atéque dormisse. Convidá-lo a voltar a escrever em Diretrizes não se revelaria uma boa ideia.No primeiro artigo, Carlos Lacerda praticamente arrasou com o poeta Jorgede Lima, atacando com incrível violência sua obra e sua figura. Jorge deLima, além de grande poeta, era um homem extremamente bondoso. Médico,costumava tratar gratuitamente dos comunistas. As reações foram imediatas:“Veja no que deu você trazer esse crápula aqui para dentro”, disse-me JorgeAmado. Moacir Werneck de Castro ameaçou abandonar a revista. Resisti. Osegundo artigo, tão violento e ressentido quanto o primeiro, teve como alvo opintor Cândido Portinari. Moacir pediu demissão. Com o terceiro artigo,chegou a vez de Mário de Andrade. Constatei, então, que Carlos Lacerda nãose emendara. Eu havia imaginado que, com o episódio da expulsão do PCB,ele se tornaria mais tolerante, humilde, compreensivo. Nada disso acontecera,e tive de ceder às evidências: comuniquei-lhe que não havia mais clima paraque ele continuasse a escrever em Diretrizes.

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Esse incidente com certeza contribuiu para antecipar a ruptura que ocorreriamais tarde – era mais uma semente do ódio que ele depois manifestaria emrelação a mim. Outro incidente seria registrado em 1943, quando começarama voltar ao Brasil vários brasileiros que se haviam exilado no momento maisagudo da repressão política. Voltavam para juntar-se à luta contra o inimigocomum, o nazifascismo que, em 1944, tropas brasileiras ajudariam a derrotarnos campos de batalha da Europa. Nessa época, o Partido ComunistaBrasileiro estava dividido em dois grupos. Um deles, liderado por Luís CarlosPrestes, aglutinava-se em torno de uma palavra de ordem: uniãoincondicional com Vargas contra o Eixo. O termo incondicional tornavapossível até mesmo a presença de integralistas. O outro grupo, reunido emtorno de Agildo Barata, defendia a formação de uma frente política, a UniãoDemocrática Brasileira, menos abrangente. Diretrizes apoiava a tese da UDB. Nessa época, Carlos fez uma tentativa de reaproximar-se dos comunistas,usando como ponte seu tio Fernando Lacerda. Ele queria voltar a qualquerpreço ao antigo convívio, e Prestes fez-lhe uma exigência: a publicação deuma carta em que Carlos apoiaria integralmente a linha da uniãoincondicional em torno de Vargas. Ele foi à minha procura num fim de tarde,com a carta nas mãos.– Samuel, preciso publicar essa carta – disse-me Carlos na redação deDiretrizes. – Para mim, é uma questão de sobrevivência. Respondi que tinha o maior prazer em atender a seus pedidos e comecei aler. Já nas primeiras linhas, compreendi que toda a argumentação ali contidase chocava frontalmente com a orientação seguida por Diretrizes. Sugeri-lheque deixasse a carta comigo. Imediatamente, passei-a ao grupo de comunistasda redação. – Isso é com vocês; resolvam – avisei. Nos dias seguintes, enquanto eles deliberavam, fui obrigado a tergiversarcom Carlos Lacerda. Dizia que a carta sairia num determinado número,depois que a publicação fora adiada para a próxima edição, estavapraticamente composta na gráfica. Até que um dia resolvi contar-lhe averdade. – Carlos, eu não posso publicar tua carta – informei. – Ela foi repelida portoda a equipe. Ele arrancou-me a carta das mãos e dirigiu-me um olhar que jamaisesqueci. Era um olhar de frustração e ódio. Virou-me as costas e saiu. Sómuitos anos depois eu voltaria a encontrá-lo. A carta acabou sendo divulgada

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por uma publicação semiclandestina, chamada Revista Acadêmica. Tevepouca repercussão. Quando parti para o exílio, Carlos estava escrevendo no Diário Carioca.Continuava preso à ideologia comunista, mas não fora aceito de volta aopartido. Responsável pelo veto: Luís Carlos Prestes. Eu praticamente meesquecera dos incidentes com Lacerda quando deixei o Brasil pela fronteirado Rio Grande do Sul.

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CAPÍTULO 11

Deixei Porto Alegre de trem, fiquei dois dias em território uruguaio e afinalcheguei à Argentina. Estávamos em setembro de 1944 quando desembarqueiem Buenos Aires. Saí imediatamente à procura de um querido amigo: ojornalista americano Allan Hayden, correspondente do Chicago Daily News,que eu conhecera na redação de Diretrizes, escala obrigatória de todos osprofissionais da imprensa estrangeira de passagem pelo Brasil. Fuicarinhosamente recebido por ele e por vários outros correspondentes quetambém me haviam conhecido em Diretrizes e agora estavam em BuenosAires. Enquanto esses amigos se mobilizavam a fim de conseguir-me odinheiro necessário para seguir viagem, pus-me em campo para saber o queestava acontecendo na capital argentina. Soube que Armando de Salles Oliveira, candidato à Presidência daRepública nas eleições programadas para 1937 e frustradas pela decretaçãodo Estado Novo, estava lá. Muito doente, Salles Oliveira chegara do México,decidido a morrer em seu país. Procurei-o em Buenos Aires para contar-lheque surgira no Brasil um movimento clandestino, já com força ponderável,cuja bandeira era a imediata restauração da democracia. Em resumo,conspirava-se, e muito, para a derrubada da ditadura. Salles Oliveira nãosabia disso, embora muitos conspiradores tivessem sido seus aliados em1937. Tampouco sabia disso o correspondente da revista Time em BuenosAires, que se mostrou bastante interessado nessas informações, quando lherelatei o teor da minha conversa com Salles Oliveira. Encomendou-me umareportagem sobre o assunto. Recebi setecentos dólares pelo texto, o primeiropublicado na imprensa internacional sobre a conspiração em curso no Brasil. Allan Hayden também me encomendou seis artigos sobre a situaçãopolítica brasileira para o Chicago Daily News, pagando seiscentos dólarespela série. Com esse dinheiro, eu já podia viajar para os Estados Unidos,conforme meus planos originais. Mas resolvi ficar mais algum tempo emBuenos Aires, à procura de reportagens para o jornal O Globo. Achei que umbom assunto estava na postura do governo argentino em relação à guerra. Damesma forma que o Brasil, a Argentina se mostrara simpática ao Eixoenquanto Hitler parecia perto da vitória. Em setembro de 1944, os governos

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dos dois países, ambos autoritários, procuravam alguma fórmula que lhespermitisse conservar o poder mesmo com a vitória das forças democráticas.Era um bom tema para reportagens. Consegui, então, marcar uma entrevistacom o general Peluffo, ministro das Relações Exteriores da Argentina. Sómais tarde pude constatar que fora uma má ideia. Na véspera do dia da entrevista, eu enviara a Chicago o texto de umareportagem que denunciava a presença, em Buenos Aires, de uma QuintaColuna fascista, integrada também por brasileiros. Um deles, citadonominalmente no despacho, era o correspondente dos Diários Associados,Caio Júlio César Vieira, uma espécie de agente da ditadura brasileira junto àditadura argentina. Já com a atenção concentrada na reportagem para OGlobo, fui ao encontro do general Peluffo. Ao entrar na sala do ministro, visobre sua mesa um cartão de apresentação que eu lhe mandara horas antes. Ogeneral começou a despejar os conhecidos lugares-comuns sobre a amizadeentre o Brasil e a Argentina, os vínculos históricos que unem os dois países –aquela retórica me era muito familiar. De repente, ergueu o tom de voz paraqueixar-se da existência de um tipo inimigo disposto a arruinar essa amizade:o correspondente estrangeiro. – Vou dar-lhe um exemplo – disse. Em seguida, chamou um major quetrabalhava no gabinete. – Traga aquele despacho de que falamos hoje –ordenou. Quando o major voltou, fiquei em pânico: ele trazia uma cópia dareportagem que eu enviara na véspera. Pedi licença para examinar o despacho, o general recusou: ele mesmo fariaa leitura. Compreendi, imensamente aliviado, que o ministro não haviaassociado meu nome ao do autor da reportagem. A cada pausa na leitura, eleespumava de ódio. – Miserável! Bandido! Vamos destruí-lo! – exclamava. Ao terminar, enrolou a cópia, devolveu-a ao major e me fez uma exortaçãofinal: – Volte a seu país e conte o que ouviu aqui. Mostre que é preciso impedir dequalquer forma que esses inimigos, traidores, sabotadores, perturbem a nossatradição de amizade! Tentando aparentar tranquilidade, apanhei o cartão sobre a mesa, agradeci-lhe a entrevista e saí. Entendi que era hora de sair de Buenos Aires – àquelaaltura, Caio Júlio César Vieira com certeza já se movimentava para atirarcontra mim a polícia argentina. Mas ainda haveria uma outra coincidência.

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Horas depois, quando eu jantava em companhia de Allan Hayden, chegou ohomem que meu amigo convidara a juntar-se a nós: era o mesmo major quetrouxera o despacho naquela manhã, a pedido do general Peluffo. – Creio que já vi o senhor hoje – disse o major. Respondi que sim. – Então vou dar-lhe um conselho – avisou o oficial. – Vá para a estação etome o trem que parte à noite para o Chile. Amanhã pode ser tarde. Caio Júlio fora ao Ministério naquela tarde, fazendo um barulho enorme,exigindo que eu fosse localizado. Só então o general e o major se deramconta do episódio ridículo da leitura da reportagem para o seu próprio autor.Allan Hayden divertiu-se muito com o incidente, que mais tarde relatou numade suas reportagens para o jornal de Chicago. Também o major, um homemsensível, bem-humorado, achou tudo aquilo extremamente cômico, masprecisava conter o riso diante do chefe. O major acompanhou-me até a estação, junto com Hayden.– Não volte mais – recomendou-me. Fiquei 22 dias no Chile, à espera de que me fosse concedido o visto deentrada nos Estados Unidos. Eu tinha muitos e bons amigos também no Chile– era bastante ligado a políticos, como os futuros presidentes GonzálezVidela, Eduardo Frei e Salvador Allende, e poetas como Pablo Neruda eGabriela Mistral. Fiquei hospedado na casa de Allende, e passei a frequentarcom assiduidade o círculo de González Videla. Desde então eu teria parasempre, no Chile, uma espécie de segunda pátria. Depois de subir a costa do Pacífico, cheguei aos Estados Unidos a 12 deoutubro de 1944. Procurei Nelson Rockefeller, um bom amigo, que merecebeu fraternalmente. Nelson escalou, para me fazer companhia, ojornalista Dick Iperroiser, que trabalhava na revista Life, um beberrão comquase dois metros de altura, inteligentíssimo. Também não demorei a ligar-me aos comunistas. Eu chegara a Nova York com a recomendação, dada poramigos da redação de Diretrizes, de procurar a primeira mulher de FernandoLacerda, que militava no Partido Comunista Americano. Ela ajudou-me aencontrar um apartamento, que aluguei por cerca de trinta dólares. Maistarde, eu saberia que a ditadura de Getúlio Vargas instruíra alguns agentespara manter-me sob vigilância. Também o governo dos Estados Unidos,desconfiado de meu currículo, tratou de seguir meus passos enquantopermaneci no país. Em companhia de Dick Iperroiser, passei a frequentar os lugares elegantes

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de Nova York. Naturalmente, ele pagava a conta. Numa noite, em meio auma dessas celebrações, Dick, que bebera tonéis, teve um acesso demelancolia etílica e caiu no choro. Confessou-me, então, que NelsonRockefeller lhe dava dinheiro para distrair-me. – Eu não sou teu amigo – lamuriava-se Dick. – Estou te traindo. Poucos dias depois, Nelson Rockefeller chamou-me para dizer que haviaum emprego para mim na Biblioteca do Congresso, em Washington. Euficaria encarregado de fazer pesquisas sobre bibliografia brasileira. Eu achavaWashington detestável e pressentia que me sentiria deslocado no emprego:havia lido meia dúzia de livros, como poderia fazer esse tipo de pesquisa?Mas não resisti à tentação de aceitar um emprego que me renderia 450dólares por mês. Depois de algumas semanas em Washington, fui convidado a escrever umartigo para uma revista muito importante chamada Atlantic Monthly. Título:“I am a South American Refugee” (eu sou um refugiado sul-americano).Ofereceram-me mil dólares pelo trabalho, e suspeitei de que também ali haviao dedo de Rockefeller. Fui à redação e recebi a péssima notícia. Haviamestourado conflitos na Grécia e, como aquele país era, para os norte-americanos, bem mais importante que a América do Sul, o espaço que seriaocupado pela minha reportagem fora reservado ao material do correspondenteem Atenas. Mas havia uma boa notícia: eu deveria procurar um homemchamado Harold Pitt, bastante conhecido em Nova York; ele tinha umemprego para mim. A conversa com Pitt foi decididamente incomum. Nas paredes de suaantessala havia inúmeros retratos de gente famosa – George Bernard Shaw,Greta Garbo – com amáveis dedicatórias a meu anfitrião. Estava claro que eleera um homem com amizades interessantes. Subitamente, abre-se a porta dasala e me vejo diante de um homem diminuto, cerca de um metro e meio,com nítidos traços judaicos. – Você tem o físico para o papel – comentou Pitt. – Que papel? – perguntei, começando a ficar intrigado. Ele explicou-me que, durante o inverno, organizava grupos deconferencistas para percorrer os clubes do país, fazendo todo tipo de palestra.No meu caso, eu deveria substituir um argentino que abandonara o grupo e seengajara no Exército americano. Expliquei-lhe que era jornalista, não conferencista. Ele ponderou quebastaria contar uma história, uma só, durante cinco anos, o tempo de duração

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do contrato. Como eu jamais faria duas vezes uma palestra num mesmoclube, não haveria problemas. Além do mais, eu receberia quinhentos dólaresa cada apresentação. Informei que mal sabia falar inglês. Pitt retrucou que euteria seis meses para aprender, ressalvando que os americanos gostavam deoradores com sotaque estrangeiro. Perplexo, pedi tempo para pensar e fuipara casa. Então caí em mim. Se eu ficasse mais de seis meses nos EstadosUnidos trabalhando regularmente, eu poderia ser legalmente incorporado aoExército americano. Fora precisamente isso que acontecera ao conferencistaargentino. Decidi livrar-me o quanto antes desse risco.

Fui salvo por um telegrama de Roberto Marinho, orientando-me paradeslocar-me até a Cidade do México e cobrir a Conferência de Paz a ser

realizada no Castelo de Chapultepec no começo de 1945. Fui até o serviçoburocrático encarregado de cuidar da papelada dos estrangeiros residentes

nos EUA e prometi que regressaria ao país depois de concluir meu trabalho. Só dois anos mais tarde eu saberia que nunca mais poderia circular com

desembaraço pelos Estados Unidos. Em 1947, quando eu já estavatrabalhando nos Diários Associados, Assis Chateaubriand encarregou-me de

fazer uma reportagem no país que eu conhecera no meu primeiro exílio.Mandei o passaporte para obter o visto, o documento voltou em branco.Assustei-me – aquilo poderia custar-me o emprego. Para minha sorte,

Chateaubriand sentiu-se insultado pela atitude da embaixada americana.Pediu explicações, que não vieram. Aos poucos, soube que eu fora

enquadrado em uma legislação que dificulta a entrada no país de pessoasconsideradas inimigas dos Estados Unidos. Para que tais restrições fossem

esquecidas, eu deveria escrever um número determinado de artigos favoráveisaos americanos e contrários à União Soviética. Achei que não tinha motivos

para prestar-me a isso. Desde então, só pude viajar aos Estados Unidos com a expressa autorização

do Ministério da Justiça, sempre por períodos curtos, e com númeroscabalísticos anotados no passaporte. Já no aeroporto, eu era afastado dos

demais passageiros e submetido ao rigoroso crivo da alfândega. Essesincômodos, que se repetiam ao longo de minha estada, naturalmente

embaraçavam minha movimentação; eu não me sentia à vontade. Nosprimeiros tempos, até procurei descobrir o que ocorrera. Havia evidências de

que algumas de minhas reportagens tinham desagradado as autoridadesamericanas, mas eu não sabia exatamente quais. Depois, desisti de buscar

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explicações detalhadas. É provável que o governo dos Estados Unidos tenhaconcluído, num dado momento, que eu era comunista.

Nunca me considerei inimigo dos Estados Unidos, e é evidente que sentimuita saudade daquele país. A sociedade americana sempre me fascinou,conviver com ela me ajudara a amadurecer. Eu ali vivera uma riquíssima

experiência profissional. A imprensa americana é a melhor do mundo, e eupassava horas, às vezes dias inteiros, examinando a forma e o conteúdo dos

jornais locais. Fascinava-me também a figura mítica do jornalista americano,cujo estereótipo é o herói que costuma aparecer nos filmes de Hollywood.

Aprendi a avaliar, em meus tempos de Estados Unidos, a força da imprensa.Foi uma pena ter perdido o direito de viajar quando quisesse à América do

Norte. A caminho do México, eu sequer imaginava que isso aconteceria doisanos depois.

Viajei para o México com o pressentimento de que de lá eu seguiria para oBrasil. Nessa temporada mexicana, tive a alegria de reencontrar, num

banquete oferecido pela embaixada da União Soviética, meu amigo OrsonWelles, que eu conhecera no Rio de Janeiro em 1942. Welles era uma figuraincrível, um homem extremamente engraçado, agitadíssimo. Naquela época,

ele resolvera ser jornalista e estava na Cidade do México comocorrespondente do New York Post. Nessa festa da embaixada soviética, ele

propôs que erguêssemos um brinde à saúde de cada um dos Estadosbrasileiros. Começamos pelo Rio Grande do Sul, homenageado com um copo

de vodca russa. Ao chegarmos a São Paulo, eu já estava completamentegrogue. Não consegui ir além de Minas Gerais: Orson Welles e Allan Hayden

me levaram para casa quase desmaiado. Na manhã seguinte, encontrei Welles num café próximo ao Castelo de

Chapultepec, onde se realizava a Conferência da Paz. Fomos para a galeriados jornalistas. Alguém propôs que fizéssemos um concurso entre nós para

ver quem acertava a primeira frase do discurso de um dos três primeirosoradores. Como a lista de oradores era organizada pela ordem alfabética dospaíses que representavam, percebi que o embaixador Pedro Calmon falaria

pelo Brasil em terceiro lugar. Apostei que um dos três primeiros mencionariaa águia asteca. Confiante, esperei pela frase de abertura de Calmon: “Debaixodas bênçãos da águia asteca...” Ganhei o concurso e a admiração de Welles,

que costumava repetir para amigos comuns a história do concurso no Castelode Chapultepec.

Ainda no México, recebi um intrigante telegrama de Roberto Marinho:

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“Procure localizar filha Luís Carlos Prestes. Faça reportagem”, dizia o texto.Compreendi que estavam ocorrendo mudanças profundas no cenário políticobrasileiro. A filha de Prestes era Anita Leocádia, que nascera num campo deconcentração na Alemanha depois de sua mãe, a judia Olga Benário Prestes,

ter sido entregue aos nazistas pela ditadura do Estado Novo. Até então,reportagens sobre qualquer integrante da família Prestes, sobretudo a filha,

que fora resgatada ao cabo de uma campanha que mobilizou a opiniãopública internacional, eram um tabu. Algo, portanto, mudara.

Localizei a menina na Cidade do México e fiz uma reportagem patética,telenovelesca. Obtive um dos cartõezinhos que Prestes costumava enviar à

filha da prisão, com versinhos, desenhos de pequenos animais – esses ardorespaternos que chefes comunistas não gostam de exibir. Mandei tudo para o

Brasil. O Globo, que era ainda um jornal de tiragem modesta mas jáimportante, abriu toda a primeira página para o grande furo: um jornalistafinalmente vira a filha do Cavaleiro da Esperança. Em março de 1945, ao

receber um exemplar do jornal na Cidade do México, tive a consciência dopeso da reportagem. Graças à proibição do DIP, ainda em vigor, meu nome

não constou da edição, mas todos sabiam quem era o autor do texto.Imediatamente, decidi regressar ao Brasil e reabrir Diretrizes.

Naquela época, uma viagem de avião entre o México e o Brasil demoravacerca de trinta horas. Meus amigos e muitos adversários do regime se

mobilizaram para propiciar-me uma recepção de herói nacional. Tão logodesembarquei desvinculei-me de O Globo e entreguei-me à tarefa de

concretizar meu grande sonho: transformar Diretrizes em jornal diário. Seriao meu maior fracasso jornalístico, e também a maior lição de toda a minha

carreira profissional.

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CAPÍTULO 12

Saí em busca de dinheiro para a materialização do meu projeto, e logo reunirecursos suficientes para transformar Diretrizes numa publicação diária –muita gente estava interessada em contribuir financeiramente com o jornalque prometia apressar o ocaso da ditadura. Convoquei integrantes da minhaantiga equipe, à frente Octávio Malta. Não convidei Carlos Lacerda, e éprovável que essa exclusão lhe tenha doído na alma. A eles se juntaramintelectuais do porte de Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima.Outros jornais cederam parte da cota de papel a que tinham direito para queDiretrizes pudesse voltar à luz. E fiz um contrato para imprimir o jornal nagráfica do Diário Carioca. Tudo estava pronto para a ressurreição. O lançamento do jornal foi acompanhado de uma ruidosa promoção: “Aprimeira grande eleição nacional depois da ditadura”, como avisava aprimeira página de Diretrizes. Selecionamos algumas dezenas de pessoasmuito conhecidas no Rio de Janeiro, fizemos cartazes com o rosto de cadauma, espalhamos os cartazes pela cidade e convidamos a população aescolher, entre elas, o seu deputado federal. A repercussão foi decepcionante.Pressenti que o povo se desabituara a participar de eleições, seria demoradoresgatar o interesse perdido. E já então comecei a suspeitar de que aquelaexperiência estava destinada ao fracasso. Se continuasse uma publicaçãosemanal, Diretrizes talvez encontrasse boas chances de sobreviver. Masfaltavam recursos para sustentar um diário e meios de competir com osgrandes jornais da época. Um mês depois do lançamento, estava claro para mim que o naufrágio eraiminente. Foi um período dramático. Eu praticamente não dormia nem comia,atormentado pela desconfiança de que arrastara toda uma equipe deprofissionais para o desemprego. Além disso, eu estava me separando deminha primeira mulher, Bluma, o que agravava meu estado de espírito.Diretrizes vendia dois, às vezes três mil exemplares por dia. E, paralelamentea tantos problemas, eu ainda enfrentava um obstáculo demasiado penoso: ahostilidade do Partido Comunista Brasileiro. Essa hostilidade foi pessoalmente estimulada por Luís Carlos Prestes, queficara indignado com a reportagem sobre sua filha Anita Leocádia. Essa

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indignação manifestou-se diante de meus próprios olhos, num episódioextremamente constrangedor, ocorrido pouco depois de minha volta doMéxico. Dois dos maiores amigos de Prestes, Trifino Correia e Orlando LeiteRibeiro, levaram-me a visitá-lo na prisão. Eles queriam que eu lhe contassede viva voz como estava sua filha. Prestes fora retirado da cela ondepermanecera isolado dez anos e gozava de relativa liberdade de movimentosna cadeia. Enquanto esperava pela minha vez, notei que ele repreendia umgrupo de comunistas – visitas de delegações comunistas ao Cavaleiro daEsperança ainda preso eram já frequentes naqueles dias. De repente, elepercebeu minha presença e, a alguns metros de distância, perguntou: – É você o Wainer? Identifiquei-me. – Então, venha cá – comandou. Caminhei até Prestes e lhe estendi a mão, mas ele quase não deixou tempopara cumprimentos.– Queria dizer a você que não aceitei o fato de você ter explorado osentimentalismo da pequena burguesia brasileira com a minha filha –censurou-me. Fiquei perplexo. Ele não perguntara pela cor dos olhos da filha, não quiserasaber da cor dos cabelos, não se interessava por qualquer detalhe da criança;fora direto ao problema político. Expliquei-lhe que não tivera qualquerintenção de explorar reações sentimentais. Ele insistiu nas suas queixas eacrescentou outra: – Além do mais, você voltou politicamente errado. Não havia clima para prosseguir o diálogo. Prestes estendeu-me a mão,virou-se e deixou-me ali plantado, ainda mais perplexo. Nunca fui comunista, mas desde a adolescência o Cavaleiro da Esperançaera um de meus heróis, e eu tinha como projeto, naquele momento, servi-lo.Senti-me decepcionado. Comecei a pensar seriamente em passar o controlede Diretrizes e partir para outra temporada no exterior. Esse plano tomariaforma poucos dias depois dessa visita a Prestes, quando o PCB, muitoinfluente junto aos gráficos, deu ordem para que os funcionários das oficinasdo Diário Carioca se recusassem a imprimir Diretrizes. Eu passara a ser vistocomo o inimigo a destruir, queriam condenar meu jornal à morte porestrangulamento. Então, passei a buscar uma saída honrosa. Decidi procurar um dos mitos do tenentismo – João Alberto – e oferecer-lhe o jornal. O tenente João Alberto participara da marcha da Coluna Prestes

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e fora um dos líderes militares da Revolução de 1930. Era protagonista devários episódios heroicos, um dos quais ocorrido quando conspirava contraWashington Luís, às vésperas da deflagração do movimento que levariaGetúlio Vargas ao poder. Ele viajava de avião entre Buenos Aires eMontevidéu, em companhia do tenente Siqueira Campos, e o aparelho caiuno mar perto da costa uruguaia. Siqueira Campos morreu afogado. JoãoAlberto, bom nadador, salvou-se. Mais tarde, ele seria interventor em SãoPaulo e ocuparia inúmeros postos de importância. Foi um de meus grandesamigos. Disse a João Alberto que gostaria de passar-lhe o jornal, sob uma únicacondição: a equipe da redação teria de ser preservada. Ele gostou da ideia.– Você aceita o Osvaldo Costa como diretor? – perguntou.– Acho que não há um nome melhor – ponderei. Osvaldo Costa, o velho dirigente comunista, era uma de minhas admiraçõesantigas. Ele fora também diretor do jornal A Gazeta, em São Paulo, e eu oconsiderava um bom profissional.– E você, quanto quer? – quis saber João Alberto. Respondi-lhe que queria deixar algum dinheiro com minha mãe e ter osuficiente para me sustentar na Europa durante dois anos. Ele propôs pagar-me trezentos contos de réis; concordei de imediato. Deixei cem contos comminha mãe e saí à procura de algum navio que me transportasse para fora dopaís. Os companheiros de redação ofereceram-me uma grande festa dedespedida. Expliquei-lhes que minha saída era indispensável para queDiretrizes vivesse, sem trair suas tradições. Convenci minha mulher aacompanhar-me na viagem e, numa noite de 1945, embarquei num navio detransporte chamado Mariposa, que em outros tempos fora um vaso de guerra. A entrada de João Alberto e Osvaldo Costa em Diretrizes deu-lhe novavida. João Alberto conseguiu uma oficina que passou a imprimir o jornal emcores. Osvaldo Costa, que não tinha os meus poderes, abriu Diretrizes para amassa. O jornal começou a cobrir escândalos, crimes, sempre carregando nastintas sensacionalistas. Mais tarde, Diretrizes perderia por completo suascaracterísticas originais e teria uma morte inglória. Antes disso, porém, pôdeconhecer tempos de prosperidade, com tiragens que oscilavam entre quarentae cinquenta mil exemplares. Segui para a Europa como correspondente de guerra de Diretrizes, mas nãolevava sequer credenciais. Confiava, como sempre, na minha boa sina e,

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sobretudo, em minhas amizades – e mais uma vez essa confiança não semostraria excessiva. Em Paris, encontrei o diplomata americano JeffersonCaffery, que fora embaixador no Brasil, e ele me prestou uma ajudaextraordinária. Entre outras preciosidades burocráticas, Caffery conseguiu-meuma credencial de correspondente de guerra junto ao Exército americano. Aguerra na Europa já terminara, mas o conflito no Pacífico só chegaria ao fimtrês meses depois, e as tropas continuavam mobilizadas. Graças a essacredencial, o dinheiro deixou de ser necessário: os americanos asseguravamaos correspondentes roupas, rações de comida e meios de transporte. Livre depreocupações materiais, saí em busca das reportagens para Diretrizes, e nosdois anos seguintes meu nome estaria vinculado a trabalhos de intensarepercussão. Ao sair do Brasil pela primeira vez, no final de 1944, eu tiverameu batismo de fogo como correspondente no exterior. Agora, eu viveriameu amadurecimento como jornalista internacional.

Atingi a maioridade como jornalista internacional ao longo dos julgamentosde Nuremberg, o histórico ajuste de contas entre a consciência jurídicamundial e os criminosos de guerra nazistas. Eu estava em Paris quandocomeçaram os preparativos para a instalação do Tribunal de Nuremberg, ecompreendi que não poderia perder tão fascinante oportunidade de ver aHistória sendo escrita. Obter uma credencial era uma tarefa complicadíssima.Os organizadores do julgamento haviam reservado 450 vagas aoscorrespondentes de guerra e, desse total, cerca de trezentas estavamdestinadas a jornalistas americanos. Centenas de repórteres ingleses,franceses, soviéticos – povos que haviam sofrido direta e duramente asconsequências do conflito – reivindicavam credenciais. Sobravam, portanto,poucas vagas para jornalistas de outros países, e as chances de repórteres sul-americanos estavam virtualmente reduzidas a zero. Mas quando o julgamentocomeçou, eu estava lá. Fui o único jornalista brasileiro a cobrir as sessões do Tribunal deNuremberg, graças a uma autorização que me foi concedida pela embaixadados Estados Unidos em Paris. Consegui convencer o embaixador de que oBrasil, por ter participado dos combates na Europa, merecia ter umrepresentante junto à imprensa credenciada para a cobertura. Em outubro de1945, viajando num avião militar das tropas aliadas, cheguei a Nuremberg.Fora perfeita a escolha da cidade que serviria de cenário para o julgamento.

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Nuremberg havia sido o palco das grandes concentrações nazistas, e agoraestava reduzida a escombros. Restavam pouquíssimas construções. Entre elasestava um velho castelo onde seria instalado o tribunal. Cheguei na véspera da sessão de abertura, e fui informado das regras queestariam em vigor dali em diante. Eu teria direito a um quarto de hotel,refeições, roupas e transporte, além das rações de cigarros, café, chocolate emanteiga. Deveria estar presente ao comitê de imprensa, montado no castelo,às nove horas da manhã, e só poderia sair às seis da tarde, ao final da sessão.Nessa hora, chegariam os ônibus blindados destinados ao transporte dospresos. O regulamento a que os correspondentes precisavam obedecer erarígido. Num determinado dia da semana, deveríamos encaminhar roupas àlavanderia. Bebidas correriam por nossa conta, para desolação dosamericanos, que corriam para o bar tão logo terminavam de jantar.Estabelecidas as regras, comecei a viver uma experiência profissional que memarcaria de modo inesquecível. Antes de viajar para Nuremberg, eu conversara por telefone com PaschoalCarlos Magno, cônsul do Brasil em Londres. Combinamos que eu mandariadespachos radiofônicos para o horário brasileiro das transmissões da BBC.Assim, além das reportagens que eu planejava enviar por avião para aredação de Diretrizes, trabalharia como correspondente da BBC de Londres.Instalei-me no reservado da imprensa já informado de que não poderiam serfeitas fotografias. O ambiente era incontrolavelmente passional. Oscorrespondentes ficavam a alguns metros dos réus, e muitos haviam perdidopais, mães, irmãos em campos de concentração. De repente, alguns seerguiam das cadeiras decididos a investir contra os nazistas, outros sofriamataques histéricos. Era uma tensão terrível, até porque muitos réus tambémpareciam descontrolados. Já no primeiro dia, mandei para a BBC um relato sereno, equilibrado, sobreo que vira. O chefe da seção brasileira da BBC, um jornalista inglês quehavia nascido em Vitória, no Espírito Santo, remeteu-me um telegramaelogiando a objetividade, a isenção e a honestidade de minha crônica. Fiqueientusiasmado. Era uma sexta-feira, e no dia seguinte o tribunal não sereuniria. Mesmo assim, decidi fazer uma segunda crônica. Imaginei comoseria o primeiro fim de semana de Hermann Goering, o legendário chefe daLuftwaffe, em sua cela no castelo, e cometi uma vasta subliteratura. Poucodepois chegou-me um recado por telegrama, remetido pelo chefe da seçãobrasileira da BBC: “Se você fizer outra crônica assim, será demitido. Seu

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papel não é fazer literatura, e sim jornalismo.” O julgamento se estenderia porquase dez meses, e nesse tempo, somadas todas as temporadas que ali passei,permaneci cerca de quatro meses em Nuremberg. Aproveitava os intervalospara fazer reportagens em outros países. Mas desisti definitivamente daliteratura. Ou, para ser mais preciso, da subliteratura. Eu havia aprendidomais uma lição. Uma das normas do regulamento estabelecia que os réus não poderiam serentrevistados. Resolvi buscar alguma fórmula que me livrasse dessa restrição.Tratei de aproximar-me de um advogado alemão que participava dostrabalhos em Nuremberg – era um dos encarregados da defesa, todosdesignados pela justiça alemã – e que tinha parentes em Santa Catarina.Convidava-o a tomar café, fazia-lhe pequenas gentilezas, até que chegou omomento da proposta: e se ele tentasse agir como intermediário dasentrevistas que me interessavam? Minha meta principal era conseguiralgumas declarações do almirante Karl Doenitz, que chegara ao fim da guerracomo o segundo homem do Terceiro Reich, logo abaixo de Hitler, e herdara aincumbência de assinar a rendição da Alemanha. Basicamente, eu tinha umapergunta a fazer ao almirante Doenitz: qual fora a importância das basesaliadas no Nordeste do Brasil para a derrota da Alemanha? Também pedia aoadvogado alemão que encaminhasse uma pergunta a Goering e outra aJoachim von Ribbentrop, o chanceler da Alemanha nazista. Ofereci a meuintermediário, em troca desse favor, meio quilo de café e meio quilo dechocolate. Ele ficou radiante. Na bolsa de valores da época, café e chocolatevaliam tanto quanto um automóvel. Poucos dias depois, chegou-me a resposta do almirante Doenitz, redigida depróprio punho, em alemão. Era uma preciosidade. Além de ter sido o númerodois do Terceiro Reich, Doenitz fora responsável por toda a estratégia daguerra submarina, com resultados extremamente satisfatórios para osalemães. Em sua resposta, ele escreveu que a instalação de bases aliadas noNordeste brasileiro permitira aos aviões americanos, que ali se reabasteciam,estreitar a vigilância sobre os submarinos do Eixo. A declaração de Doenitzera um atestado de que a contribuição do Brasil ao esforço de guerra foraefetivamente valiosa. Publiquei uma reportagem sobre o assunto emDiretrizes, e mandei o papel com a resposta do almirante ao presidente daAssociação Brasileira de Imprensa, Herbert Moses. Esse documentoencontra-se atualmente no Museu da Marinha do Brasil. Fui ganhando desenvoltura e aprendendo a movimentar-me com

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desembaraço entre as feras do jornalismo mundial presentes em Nuremberg.Ali estavam praticamente todos os grandes nomes da imprensa – porexemplo, o americano William Shirer, que se consagraria com o livroAscensão e Queda do Terceiro Reich. Enfim, eu ia aprendendo a jogar noprimeiro time, e a driblar os problemas que surgiam. O correspondente daagência Tass no Rio de Janeiro passou à imprensa de seu país a notícia de queeu entrevistara o almirante Doenitz, e os soviéticos se aborreceram. Osdirigentes russos estavam convencidos de que a divulgação de declaraçõesdos chefes nazistas configuraria uma propaganda favorável à Alemanhanazista. Eles haviam sido os inspiradores da norma que proibia entrevistas.Quando a informação sobre minha reportagem chegou a Nuremberg, umgeneral americano que fiscalizava o comportamento dos jornalistasinterpelou-me. Limitei-me a negar que fizera qualquer entrevista. A rigor, euestava dizendo a verdade. Tornei-me cada vez mais desinibido. Perdi, por exemplo, o receio de fazerperguntas nas entrevistas coletivas concedidas pelas autoridades do Tribunalde Nuremberg. Numa delas, com o procurador-geral do tribunal, perguntei-lhe por que não fora incluído entre as testemunhas convocadas ogeneralíssimo Francisco Franco, ditador da Espanha. Os juízes haviamintimado, afinal, todas as personalidades da era pré-fascista e dos tempos deesplendor do fascismo. Por que deixar Franco de fora? O procuradorsustentou, em tom ríspido, que eu não tinha o direito de fazer tal pergunta, eacusou-me de agente provocador. Não prolonguei o incidente, mas senti quegrandes repórteres presentes à entrevista passaram a olhar-me com respeito. Uma das frequentas viagem que eu faria nos intervalos das sessões levou-me a Londres, onde fui receber as libras esterlinas que ganhara empagamento pelas minhas crônicas para a BBC. Havia 111 libras à minhadisposição, mas constatei que não poderia gastá-las em outros países.Naqueles tempos de economia de guerra, só os ingleses aceitavam librasesterlinas. Não me aborreci. Aquantia representava um bom dinheiro, e decidigastá-lo em Londres. Vivi uma temporada animadíssima. Conheci mulheres,vi ótimas peças de teatro, circulei pela noite, diverti-me o tempo todo.Quando voltei a Nuremberg, não restava uma única libra. Mas eu estava feliz. No dia em que os juízes leram as sentenças aplicadas aos chefes nazistas,compreendi que ali se encerrava uma era. Até então, os oficiais acusados daprática de crimes de guerra podiam alegar, em sua defesa, que haviamcumprido ordens emanadas de seus superiores. Depois de Nuremberg, ficou

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estabelecido que havia um limite moral para tais ordens. A partir daquelemomento, chefes militares não mais puderam abdicar de suasresponsabilidades. Hoje, por exemplo – e isso vale também para o Brasil –,um torturador já não pode argumentar que infligiu tormentos físicos a umprisioneiro em obediência a ordens superiores. Nuremberg escreveu umcapítulo revolucionário na história do Direito, e eu pude vê-lo sendo escrito. Testemunhei cenas apaixonantes. Uma delas foi a reação de Goering ànotícia de que fora condenado à morte pela forca. Ele parecia um leão ferido.Arrancou os fones pelos quais ouvia a tradução simultânea, jogou-os ao chão,recusou-se a bater continência – os réus, militaristas fanáticos, julgavamimprescindível bater continência em momentos solenes. Goering foi arrastadopor dois guardas para fora da sala de sessões. Ele escaparia à execuçãoingerindo uma cápsula de cianureto que conseguira manter oculta. O suicídiode Goering, por sinal, provocaria uma das maiores gafes jornalísticas detodos os tempos. Depois da leitura das sentenças, os correspondentes estrangeiros foram parao bar. Ali ficamos à espera da consumação das penas de morte. Por sorteio,quatro jornalistas haviam sido escolhidos para assistir ao enforcamento dosnazistas. Eles ficaram encarregados de acompanhar os momentos finais doscondenados, registrar a reação de cada um, descrever o cenário e passar-nostodos esses dados, para que transmitíssemos ao mesmo tempo o noticiário tãoaguardado pelo resto do planeta. Um dos correspondentes do Daily Express,jornal inglês de enorme circulação naquela época, não resistiu à ansiedade eresolveu dar um furo mundial. Foi uma ideia extremamente infeliz, sobretudoporque esse repórter britânico abriu sua reportagem com a minuciosanarrativa da morte de Goering. Quando os quatro companheiros que haviamassistido às execuções chegaram com a informação de que Goering cometerasuicídio horas antes, o Daily Express já circulava pelas ruas de Londresdescrevendo a cena do enforcamento. O autor do desastrado furo dereportagem acabou banido para sempre da profissão.

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CAPÍTULO 13

Numa de minhas escapadas de Nuremberg, viajei até Paris, disposto achegar a Portugal. Eu estava interessado em fazer uma reportagem sobre asituação da ditadura de Antônio de Oliveira Salazar e as dimensões reais daoposição ao regime. Estava interessado também em encontrar uma mulherpor quem me apaixonara. Àquela altura, meu casamento com Bluma jáchegara ao fim. Em Paris, lembrei-me que a França e a Espanha haviamrompido relações diplomáticas e as fronteiras estavam fechadas. Como euteria de passar pela Espanha para alcançar Portugal, constatei que surgiraoutro problema a contornar. Embora confiasse na mística do passaporte azul de correspondente deguerra, que era às vezes confundido com um passaporte diplomático, acheiconveniente recorrer à embaixada do Brasil em Paris. Foi uma ótima ideia.Ao ouvir meu plano de viagem, o embaixador Souza Dantas abriu um sorriso:ele estava justamente à procura, naquele momento, de alguém que pudesseentrar na Espanha e voltar com um pequeno carregamento de frutas. Eupoderia atendê-lo? Hoje, um pedido desse gênero poderia parecer soarilógico. Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, era facilmentecompreensível. Na França daquela época, frutas frescas eram uma raridade.Desde que o conflito começara, a França deixara de receber frutas de suascolônias, as importações se tornaram virtualmente impossíveis. Depois,começou a faltar dinheiro para buscá-las em países vizinhos. Souza Dantas,assim, tinha vários amigos cujos filhos – crianças de nove, dez anos – jamaishaviam provado o sabor de certas frutas. Ele queria que eu trouxesse algumasda Espanha para distribuí-las entre famílias de suas relações. Um caixotebastaria, explicou o embaixador. Em troca, ele conseguiria que o embaixadorPimentel Brandão, representante do Brasil em Madri, me arranjassefacilidades para cruzar de volta a fronteira. Entre essas facilidades, euganharia credenciais de correio diplomático.Concordei de imediato. Fui para a Espanha num trem que saía de Frankfurt,na Alemanha, passava por Paris e seguia até San Sebastian, já na Espanha, apoucos quilômetros da fronteira francesa. Em San Sebastian, os passageiroseram transferidos para um trem espanhol, que seguia até Madri. Uma viagemextremamente romântica, um roteiro de cinema. Embarquei carregado decuriosidade. Sempre achei que é o mundo que está à espera de um jornalista,

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não o contrário. Embarquei, também, com o pressentimento de que meocorreriam coisas incomuns – um jornalista precisa viver na eternaexpectativa de que pode viver situações que não ocorrem em outrasprofissões. Sobretudo quando se é correspondente de guerra, convémentender que o imponderável viaja permanentemente em nossa companhia,pronto para alterar planos e destinos. Assim foi nessa viagem à Espanha. Eu pretendia fazer ali uma curta escala,viajar até Portugal, voltar para recolher as frutas encomendadas por SouzaDantas e regressar a Paris. Acabei ficando dez dias, absorvido por umaempolgante reportagem sobre a oposição que sobrevivera à Guerra Civil e,depois, à perseguição movida pela ditadura do generalíssimo Franco. Já noprimeiro táxi que tomei comecei a ouvir informações sobre a rede clandestinade resistência ao ditador. Logo percebi que a rede era extensa, e nos diasseguintes, em conversas que se encadeavam umas às outras, fui ampliando acoleta de dados. Naquele momento, as forças democráticas da Europa mobilizavam-se paraimpedir o fuzilamento de um guerrilheiro chamado José Gomez preso pelapolícia de Franco. Gomez estava em Barcelona, junto a um grupo decondenados à morte. Integrantes da resistência entregaram-me o manifestocom que o guerrilheiro se despedia dos companheiros e da vida. Era umdocumento de extraordinária importância histórica. Além do manifesto deGomez, eu tinha em meu poder outros documentos, revistas clandestinas,entrevistas com militantes oposicionistas. Tinha, enfim, o suficiente para umagrande reportagem. Bastava uma maneira de deixar o país sem esbarrar navigilância da polícia franquista.Assim, eu deveria ir a Portugal. Já não tinha tanta pressa, até porque areportagem sobre a oposição espanhola, embora fosse a mais importante, nãoera a única razão que me retinha em Madri. Na viagem de trem entre SanSebastian e a capital eu conhecera a outra razão: Helen, uma linda americanade pouco mais de trinta anos. Ao me ver fardado, perguntou-me se eu eraamericano. Expliquei-lhe que não. Continuamos a conversar e ali começouuma história extremamente romântica. Mais tarde eu saberia coisas que tornaram Helen ainda mais interessante ameus olhos. Apesar da nacionalidade americana, ela nascera em territóriofrancês e, durante a guerra, começara a fazer serviços de espionagem. Estavacasada com um conde, que a protegera de eventuais represálias do governocolaboracionista. Terminada a guerra, fora encarregada de ajudar na caça aos

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responsáveis por crimes econômicos ocorridos ao longo do conflito, e eracom esse objetivo que estava viajando a Madri. Alta, loira, muito inteligentee culta, tinha um agudo senso de humor. Vivemos juntos dez dias magníficos,até que julguei ter chegado a hora de embarcar para Lisboa. Ficamos algumtempo num bar chamado Don Quijote. Ali, Helen apresentou-me a um amigopolonês que acabara de chegar a Madri. Depois, ela me levou à estaçãoferroviária, chorou bastante, entregou-me um bilhete com palavrascomoventes e despediu-se. Prometi voltar logo, mas nunca mais a veria.Quando regressei a Madri, soube que ela partira para Paris. Ainda a procureipor algum tempo, até convencer-me de que nossos caminhos jamaisvoltariam a se cruzar. Dez anos depois, reencontrei em Paris o polonês que Helen me apresentarano bar Don Quijote, e pude conhecer alguns detalhes do epílogo de nossacurta história. – Ela me convidou para aquele drinque porque queria que eu o conhecesse –revelou-me o amigo polonês de Helen, provavelmente também engajado narede de espionagem –, e me contou que estava apaixonada por umcorrespondente estrangeiro. Depois de deixar-me na estação, Helen foi à procura do amigo, que aaconselhou a esquecer-me. Horas depois, ela deixou Madri. Nesse dia em quenos reencontramos, o polonês parecia tristonho. – Talvez eu tenha sido o culpado pela separação de vocês – disse-me. Confortei-o: essas histórias são inevitáveis na vida de um correspondentede guerra. Fiquei alguns dias em Portugal, encontrei-me com a mulher que procuravae reuni as informações necessárias à reportagem que planejara. Esse texto foipublicado em Diretrizes algumas semanas mais tarde. Voltei a Madri. Fui à procura do embaixador Pimentel Brandão, com quem já haviaconversado nos primeiros dias de minha passagem pela Espanha, e acertei oembarque das frutas solicitadas por Souza Dantas. Mas ampliei a encomenda:disse-lhe que gostaria de levar dois caixotes. Ele achou a ideia muito boa, eprovidenciou dúzias de frutas de diferentes qualidades. O embaixador doBrasil em Madri nunca soube que eu havia pedido mais frutas porquepretendia embrulhá-las, uma a uma, com os papéis que serviriam de base àreportagem sobre a oposição espanhola. Páginas de revistas, folhas decaderno e, naturalmente, o manifesto de José Gomez cruzaram a fronteiranaqueles dois caixotes. Ambos foram lacrados, e transformados em mala

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diplomática, transportados até minha cabine no trem para Paris por doisfuncionários da embaixada brasileira. A vigilância era intensa, mas a carga que eu levava era inviolável. Em cadaestação, dois guardas franquistas vigiavam cada cabine e me olhavam comódio quando percebiam que eu tinha imunidades diplomáticas. Certamenteimaginavam que eu levava armas ou ouro. Ao chegar a Paris, levei as frutas àembaixada. Fizeram-me uma festa imensa. Com os papéis que haviamservido de embalagem, escrevi seis reportagens que descreviam, em detalhes,o inferno franquista. Foram publicadas em Diretrizes, que sobrevivia comodiário, e também no vespertino do Partido Comunista Francês, Ce Soir. Depois de enviar a série de reportagens à redação de Diretrizes, eu haviacontado a comunistas franceses amigos meus o que vira na Espanha. Algunsdeles se entusiasmaram com o conteúdo, ponderando que era indispensáveldivulgar também na Europa aquelas informações. Fui encaminhado por essesamigos à redação de Ce Soir, dirigido pelo poeta Louis Aragon, que merecebeu pessoalmente. Ele me ofereceu quinze mil francos pela série dereportagens. Não era muito, mas eu teria meu nome impresso nas páginas deum grande jornal da França. Dois dias depois, saiu publicado o primeiro dosseis textos, com enorme destaque. Preparei-me para saborear a leitura do meunome como autor. Lá estava: “Correspondência especial de André de LaGuerre para Ce Soir.” Indignei-me – afinal, que estranho pseudônimo era aquele? – e fui àprocura de Aragon. Ele me recebeu de modo bastante efusivo,cumprimentando-me pela repercussão da reportagem. Retruquei que nãohavia entendido por que a autoria não fora atribuída a mim. Ele argumentouque se tratava de uma tradição da imprensa francesa não recorrer acorrespondentes estrangeiros – tudo deveria ser feito na própria redação. Fuiincisivo: ou publicavam meu nome ou interrompiam a série. Aragonponderou que, se confiasse nele, eu não me arrependeria. Em seguida, pediu-me que posasse para um fotógrafo do jornal. Não tive forças para resistir, eautorizei-o a seguir publicando a série. Como prometera Aragon, eu não mearrependeria. Na edição em que foi publicada a sexta e última reportagem, os editores deCe Soir incluíram minha foto e uma explicação extremamente simpática.Nesse texto, afirmavam que meu nome fora preservado para poupar-me orisco de eventuais tentativas de vingança por parte de agentes da Espanhafranquista. Agora, passado o perigo, eles afinal podiam anunciar o autor da

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reportagem que por vários dias atraíra a atenção de uma multidão de leitoresfranceses: “O jornalista brasileiro Samuel Wainer, que se encontra naEuropa.” Ao ler aquilo, quase desmaiei de emoção. Mas logo me refiz, cientede que deveria preparar-me para viver meus dias de triunfo entre osjornalistas baseados em Paris. Entre 1945 e 1947, em sucessivas andanças pela Europa, vivi fantásticasexperiências jornalísticas e humanas. Para um jovem profissional, nadapoderia haver de mais emocionando que ver a História acontecendo diantedos próprios olhos. Além de Nuremberg, testemunhei, por exemplo, odramático julgamento dos chefes do governo de Vichy, uma espécie desucursal francesa do regime nazista. Os grandes réus eram o marechalPhilippe Pétain – o velho herói da Primeira Grande Guerra, lendáriocomandante da batalha de Verdun, que concluíra de forma tão deprimente suabiografia ao aliar-se aos invasores alemães – e o ex-primeiro ministro PierreLaval. No tribunal instalado em Paris, Pétain passou todo o tempo sentado nobanco, silencioso, impassível. Laval preferiu lutar encarniçadamente pelasobrevivência. O júri fora montado de modo a não permitir qualquer chance desobrevivência aos réus: os juízes de Pétain e Laval eram quase todos irmãos,parentes ou viúvas de vítimas do governo de Vichy. Ainda assim Lavalprocurou defender-se. Condenado à morte, tentou suicidar-se. Na França,contudo, a condenação à morte é um ritual que precisa ser cumprido em todosos seus detalhes. Laval ingeriu veneno na véspera da data marcada para seufuzilamento, e os médicos franceses esforçaram-se durante a noite inteirapara reanimá-lo. Conseguiram ao menos evitar que morresse antes da hora daexecução. Então, o condenado foi conduzido, moribundo, ao local dofuzilamento, e ali amarrado a uma cadeira. Logo se ouviram tiros: o ritualfora obedecido. Circulei com olhos de jovem repórter por aquela Europa devastada pelaguerra. Em Milão visitei o lugar onde, semanas antes, o ditador BenitoMussolini e sua amante Clara Petacci haviam sido pendurados de cabeça parabaixo, os corpos massacrados pela fúria da multidão. De passagem por Triste,emocionei-me com as cenas de Roma, Cidade Aberta, o filme de RobertoRossellini que inaugurou o ciclo do neorrealismo italiano. Na Inglaterra,testemunhei o espírito de sacrifício de um povo que sempre soube preservarseu orgulho. Como, por exemplo, o couro se transformara numa preciosidade,

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os ingleses aboliram os cintos e, em seu lugar, passaram a usar velhasgravatas. Usavam-nas como se estivessem no rigor da moda. Como oscasacos se desgastavam nos cotovelos, os ingleses inventaram um pequenopedaço de couro como proteção, algo que ainda hoje se usa. Eram provas deque o povo se mantivera criativo em meio aos horrores da guerra.

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CAPÍTULO 14

Conheci num bar, em Paris, uma jovem que, apesar do nome Natasha – edos traços mongólicos, era francesa. Sempre fui tímido para aproximar-me demulheres sozinhas em bares, mas o garçom tratou de estabelecer a ponte.Horas depois, estávamos no meu hotel, onde ouvi uma história que poucotinha de original. Com ar triste, ela me contou que a família morava numsubúrbio daquela capital empobrecida pela guerra. E falou-me com particularcompaixão de um irmão de vinte anos que participara dos combates e agoramal tinha o que comer. Era uma história como tantas outras, mas fiqueicomovido. No pós-guerra, a elegância dos franceses no trajar desaparecera.Quase todos se vestiam pessimamente, nivelados pela miséria. Natasha vestia roupas modestas, enquanto eu saboreava os privilégiosreservados a oficiais americanos: o tecido do uniforme era da melhorqualidade, tinha direito a cuecas de lã, pulôveres, calças, camisas. Alémdisso, havia as roupas que eu trouxera do Brasil. Ela viu sobre a mesa do meuapartamento um robe de chambre de seda. Pareceu deslumbrada: “Que coisamacia”, repetia. Disse-lhe que podia ficar com o robe de chambre. Elaexplicou, emocionada, que o daria a seu irmão. Resolvi presenteá-la tambémcom um par de meias de lã, uma camisa de tricoline, várias peças de roupa.Ela transpirava comoção. Assim foi ao longo de uma semana. Ela me visitava, falava do irmão, eu lhedava presentes. Acabei por desfazer-me de um finíssimo terno azul decasimira inglesa, incluindo a gravata. Eu fazia questão de que o irmão deminha jovem namorada andasse bem vestido. De repente, Natashadesapareceu. Reencontrei-a alguns dias depois, no mesmo bar em que aconhecera, que à noite se transformava em cabaré. Ela estava dançandoamorosamente com um homem que usava meu terno de casimira inglesa. Elanão tinha um irmão – tinha um gigolô. Eu apenas sorri: éramos todosprotagonistas de histórias do pós-guerra. Histórias assim enriquecem extraordinariamente um ser humano. Vividezenas delas, uma das quais no interior da Tchecoslováquia, outro paísdevastado pela guerra. Resolvi viajar até Praga e aluguei um carro. Perto de

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Bratislava, derrapei na neve que cobria a estrada e caí num buraco.Imediatamente, dezenas de pessoas apareceram para socorrer-me. Eu nãofalava tcheco, eles não entendiam inglês nem francês, mas de alguma formaestabelecemos uma comunicação. Usávamos a linguagem dos gestos, dossorrisos, dos olhares. Eles me levaram à casa de um mecânico. O carro foipara a oficina, fiquei hospedado na casa desse mecânico. Sua mulher serviu-me sopa, depois chocolate, conversamos muito, sempre recorrendo àlinguagem da mímica. Deram-me um pijama e fui dormir. Pela manhã, depoisdo café, tirei do bolso um punhado de coroas, a moeda local, e entreguei-as àmulher. Ela se recusou a aceitar a oferta. Virou-se para mim e disse umapalavra cujo significado, naquela época, qualquer ser humano entendia: dólar. Fiquei chocado – até aquele momento, eu pensava estar sendo contempladocom regras de hospitalidade capazes de sobreviver mesmo a uma guerra.Concluí que ela estava me cobrando, e na moeda determinada pelo anfitrião.Tirei do bolso quarenta dólares e passei-lhes as cédulas. Ela foi para o interiorda casa e voltou em segundos trazendo o equivalente em coroas a quarentadólares. Meus hospedeiros tchecos não queriam pagamento: queriam dólares,o ouro do pós-guerra. Com aquela moeda poderiam, por exemplo, comprar asmercadorias existentes nas lojas controladas pelas tropas americanas. Fiqueipenalizado, quis dar-lhe mais dólares. A mulher não aceitou. No pós-guerra, a regra era sobreviver, e milhões de pessoas estavamenvolvidas nessa luta para chegar ao dia seguinte. Algumas tinham deenfrentar problemas adicionais, e nessa categoria estavam enquadrados osdisplaced people – gente deslocada, em inglês. Os DP, no jargão do Exércitoamericano, eram pessoas que simplesmente não tinham para onde ir. Algunshaviam perdido todos os seus documentos e, com a burocracia desorganizadapela guerra, não encontravam meios de substituí-los. Outros haviamcolaborado com governos nazistas e, com a vitória dos Aliados, viram-setransformados em párias. Enfim, os DP eram apátridas. Durante o julgamentoem Nuremberg, soube que existia em Munique um campo onde estavamconcentrados milhares de DP. Resolvi visitá-lo: e se houvesse brasileiros ali? Havia. Cheguei a Munique num jipe que requisitei ao Exército americano.Os americanos também cuidavam da manutenção do campo de concentraçãodos DP, à espera de que alguém se interessasse pelo destino de seushabitantes. Levaram-me ao encontro do grupo de brasileiros. Eram alemãesde Santa Catarina que haviam resolvido voltar à Alemanha para colaborar noesforço de guerra. Muitos deles tinham filhos que, embora nascidos no Brasil,

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não sabiam uma única palavra de português. Ao entrar no dormitórioreservado ao grupo, vi na parede o desenho do Pão de Açúcar, em verde eamarelo. Eles começaram a cantar o Hino Nacional brasileiro com acentuadosotaque alemão. Não passaram da primeira estrofe: naturalmente, faltaratempo para ensaiar. Queriam a qualquer custo seduzir o correspondente econvencê-lo a ajudar o grupo a regressar ao Brasil. Contaram-me ali histórias rigorosamente inverossímeis. Uns diziam quehaviam viajado para a Alemanha às vésperas da guerra, em visita à família, eacabaram impedidos de voltar ao Brasil. Outros afirmavam que tinham sidoprisioneiros de Hitler. Logo pude constatar que os brasileiros do campo deMunique, da mesma forma que os integrantes de outros grupos étnicos queentrevistei naquela visita, não estavam desesperados. Dançavam à noite aosom de músicas típicas, sonhando com o embarque para a América. Decidivisitar outros campos de DP, e fui confrontado com pessoas que haviamsofrido terríveis tragédias familiares, dezenas das quais ocorridas em camposde concentração nazistas. Pois também nesses campos pude captar a força deum sonho comum: recomeçar a vida, a qualquer preço, em qualquer lugar. No começo de 1946, em Paris, revi Carlos Lacerda. Meses antes, quando eupassara o controle de Diretrizes a João Alberto e partira para a Europa,Lacerda havia escrito uma pequena nota no Diário Carioca usando, acopladoa meu nome, um adjetivo que ele repetiria com enorme frequência no futuro:“Seguiu para a Europa o aventureiro Samuel Wainer.” O recorte com a notachegou-me algum tempo depois. Nela, Lacerda fazia elogios a Prestes,criticava João Alberto e censurava minha decisão de vender o jornal. Não deimaior importância àquilo: a agressividade do meu amigo de adolescênciacomeçava a tornar-se famosa, e preferi atribuir o texto a uma pequenaexplosão. Assim, em 1946, quando o reencontrei em Paris, tratei-o com acordialidade de sempre. Ele fora encarregado pela revista Observador Econômico de fazer umareportagem sobre as cooperativas suecas e, a caminho de Estocolmo, fizerauma escala em Paris. Fomos almoçar no Café de la Paix em companhia deoutros amigos brasileiros: Danton Jobim, Arlindo Pasqualini e Barreto Leite.Foi um almoço alegre, cheio de histórias e piadas. No meio da conversa,contei que havia sido convidado para viajar à Iugoslávia, onde talvezconseguisse uma entrevista com Josip Broz Tito, o líder da resistênciaantinazista. Os iugoslavos, naquela época, disputavam com a Itália o controleda região de Trieste e estavam interessados em conseguir a solidariedade dos

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correspondentes estrangeiros baseados em Paris. Terminado o almoço,despedimo-nos como velhos amigos. Pouco depois, viajei para a Iugoslávia. Fui o primeiro brasileiro aentrevistar Tito, visitei a região de Trieste e acompanhei por alguns dias amagnífica aventura configurada pela construção da Ferrovia da Juventude,uma estrada de ferro que saía de Zagreb e se estendia por 120 quilômetros.Milhares de voluntários, na maioria jovens, passavam o dia inteiro colocandodormentes – era um esforço comovente. Escrevi várias reportagens sobre aIugoslávia, todas publicadas em Diretrizes. Semanas mais tarde, de volta aParis, recebi um recorte da coluna que Lacerda começara a publicar noCorreio da Manhã, com o título de “Tribuna da Imprensa”, e na qual sereferia a mim como “agente de Tito”. Quando voltei da Europa, em 1947, era um repórter famoso. Fui recebidono aeroporto por vários amigos de Diretrizes, entre os quais Osvaldo Costa,que imediatamente me arrastou para jantar num bordel.– Foi bom você ter voltado – disse-me Osvaldo, indo direto ao assunto que ointeressava. – Você é o homem que sabe arranjar dinheiro, e é disso que maisprecisamos. Fiquei chocado: não era exatamente aquele tipo de conversa que euesperava encontrar logo ao chegar. Osvaldo explicou que precisava de cemcontos. Era muito dinheiro. – Só você pode conseguir essa quantia – disse-me Osvaldo, sugerindo queeu fizesse uma reportagem de encomenda na Bahia com Otávio Mangabeira,governador do estado e líder da UDN. Seria uma matéria paga, mas publicadaem forma de reportagem. Reagi: – Não vou, isso não faz meu gênero. Osvaldo insistiu, sempre lembrando a importância do empréstimo para asobrevivência de Diretrizes. Definitivamente, o velho Osvaldo havia mudadomuito. – Vou dar a você uma prova de força – disse. – Arranjarei o dinheiro. Fui ao Banco do Distrito Federal, controlado pelo deputado DraultErnanny, e pedi cem contos em nome de Diretrizes. Um diretor explicou-meque Osvaldo Costa estava desmoralizado como devedor. Então, pedi umempréstimo pessoal. Consegui o dinheiro, mas tive de pagar um preçoadicional imposto por Drault Ernanny: ele queria que eu fizesse uma série dereportagens mostrando a importância das refinarias de petróleo, algumas dasquais controladas por empresários ligados ao Banco do Distrito Federal.

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Drault Ernanny era uma das fontes de sustentação financeira de AssisChateaubriand, e conseguiu espaço nos Diários Associados para a publicaçãodas reportagens. Chateaubriand jamais recusava algum pedido de seusbanqueiros, mesmo quando se tratava de algo contrário a seus interesses. Naquestão do petróleo, por exemplo, Chateaubriand era um entreguista radical.Mas não se opôs à publicação de reportagens que defendiam a nacionalizaçãodas jazidas e sua exclusiva exploração pelo governo brasileiro. Fui contratado como freelancer. Recebi uma razoável ajuda de custo ecomecei a viajar, para ver como agiam nesse campo outros países. Estive noUruguai, na Argentina, na Venezuela. Estudei a fundo a questão do petróleo.Esse, por sinal, era meu estilo: encarregado de escrever sobre umdeterminado assunto, eu me entregava inteiramente à tarefa de estudá-lo emprofundidade, fazia uma espécie de curso completo sobre a matéria. NoBrasil, apurei em detalhes a movimentação das várias correntes existentes nasForças Armadas, que estavam divididas quanto ao problema da exploraçãodas jazidas. Reunidas as informações, publiquei a série de reportagens. Comojá informei em capítulos anteriores, as informações que divulguei serviriamde base a um discurso pronunciado no Senado por Getúlio Vargas. Tambémdessa vez a repercussão das reportagens foi intensa. Consegui os cem contos que Osvaldo Costa me pedira, e pedi demissão deDiretrizes. Não demorei a encontrar um novo emprego: Chateaubriand, que jáme respeitava como repórter e gostara bastante do meu trabalho sobre aquestão do petróleo, convidou-me para trabalhar em seu grupo. Chegara ahora de viver minha aventura nos Diários Associados.

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CAPÍTULO 15

Assis Chateaubriand convidou-me a assumir a chefia de O Jornal. Pedi umsalário equivalente a vinte salários mínimos da época. Ele quase me expulsouda sala. – O senhor vai ganhar mais do que eu! – espantou-se. Era um exagero, evidentemente, mas o salário que eu pedira era realmentealtíssimo. Chateaubriand regateou durante algum tempo, acabouconcordando. Comecei, então, outra etapa decisiva da minha formaçãoprofissional. Eu nunca havia vivido o dia a dia de um jornal diário. E sabiaser indispensável conhecer por dentro o ventre desse monstro, compreenderos interesses que ali se cruzavam, absorver os detalhes técnicos de suaconfecção. O Jornal era a ponta de lança do império. Àquela altura, AssisChateaubriand era o dono de uma cadeia que incluía cerca de vinte jornais evárias emissoras de rádio. Poucos desses jornais alcançavam grandecirculação – O Jornal, por exemplo, tinha uma tiragem diária de nove milexemplares. Mas a força política dos Associados era enorme, eChateaubriand sabia como poucos usá-la em proveito próprio. Eu não tinha amenor simpatia por aquele paraibano baixinho, elétrico, que representavauma espécie de versão cabocla do “Cidadão Kane” retratado no famoso filmede Orson Welles. O futuro mostraria que Chateaubriand era pior do que euimaginava. Nunca fomos íntimos. Eu o chamava de dr. Assis, ele me tratava de sr.Wainer. Não tenho dúvida de que ele sempre me considerou um bomrepórter, da mesma forma que jamais deixei de reconhecer em AssisChateaubriand um homem com agudo faro jornalístico e talentoso em váriascoisas, entre as quais ser influente e ganhar dinheiro. Ficaríamos juntos até aposse de Getúlio Vargas e, ao longo desses anos, eu teria a chance deconhecer profundamente essa lenda do jornalismo brasileiro. Quandocomecei a trabalhar nos Associados, Diretrizes vivia os momentos finais desua melancólica agonia. Contratei alguns antigos companheiros e tratei demodernizar O Jornal. Implantei técnicas de diagramação que não eramutilizadas até então, lancei seções novas, reservei a última página paragrandes reportagens, passei a publicar fotos enormes na primeira página. A

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tiragem logo subiu para dezesseis mil exemplares. Aumentei os salários daredação, que eram aviltantes – o chefe da seção internacional, por exemplo,ganhava salário mínimo. Tentei, também, convencer Chateaubriand a tratarcom mais respeito seus funcionários. Entusiasmado com as inovações que fizera em O Jornal, lembrei-lhe que háquatro anos ele não visitava a redação. Seu escritório ficava no quarto andarde um prédio na rua Venezuela e a redação, no terceiro. Não lhe custarianada, observei, fazer um dia qualquer uma escala no terceiro andar, para queo pessoal sentisse seu interesse pela renovação que estávamos promovendo. – Não vou – reagiu Chateaubriand. – São todos uns analfabetos. Insisti, ele acabou aceitando. Dois dias depois dessa conversa, avisaram-meda portaria que Chateaubriand estava chegando. Esperei-o à porta doelevador, e entramos juntos na redação. Em cada mesa, ouvíamos umcumprimento: “Boa tarde, dr. Assis!”, “Como vai, dr. Assis?” Em surdina, elerespondia a cada cumprimento com comentários que só eu ouvia: “Filho daputa!”, “Cafajeste!”, “Estão roubando meu dinheiro!”, “Analfabeto!”.Quando chegamos à outra extremidade da sala, onde havia uma pequenaporta que dava para uma escada levando ao quarto andar, decidi voltar. Sesubisse a seu escritório, acabaríamos discutindo. Eu não podia admitir tantoódio de um dono de jornal por seus empregados. Assis Chateaubriand não era um homem rústico. Aos 23 anos, já eraprofessor de Direito Romano na Faculdade do Recife. Viajara muito, viverana Europa, estudara na Alemanha. Mas odiava suas redações com o rancor deum cangaceiro, e achava que todos os seus funcionários estavam interessadosem lesar seu patrimônio. Alguns meses depois do início de minhaexperiência, ele me chamou para informar que havia problemas. Disse-meque eu estava gastando muito dinheiro. – O senhor está fazendo um jornal para a academia de letras – afirmou. Era um jornal bonito, bem acabado, com muitas seções e muitoscolaboradores. O problema é que se tornara inflacionário. Entendi o recado, esugeri que eu voltasse à condição de repórter. Ele concordou. Foi, comodemonstraria o futuro, uma excelente ideia. A vida de repórter, afinal, melevaria alguns anos depois ao encontro de Getúlio Vargas. Longe da chefia da redação de O Jornal, minha convivência com AssisChateaubriand tornou-se mais fácil. Nos meses anteriores fora complicadoaceitar seus métodos. Ele costumava chegar ao prédio da rua Venezuela àsduas horas da madrugada; o jornal rodava às quatro. Sentava-se em sua mesa

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e jogava sobre ela o revólver do qual não se separava; gostava de preservarcertos hábitos de cangaceiro. Como dono de jornal, mantinha um estiloimperial. Mesmo sabendo que a edição estava praticamente pronta, mandavatrocar fotos, legendas, manchetes, jogava artigos fora. Era impiedosamentedesrespeitoso. Logo ao chegar, chamava-me para saber as últimas notícias.Depois, telefonava para ministros, governadores, empresários, banqueiros,trocando informações. Acordava qualquer pessoa no meio da noite. AssisChateaubriand jamais respeitou os horários alheios. Não havia horário predeterminado, por exemplo, para a chegada à gráficado artigo de Chateaubriand, publicado diariamente na quarta página de OJornal. O artigo, manuscrito, vinha em qualquer papel, cheio de garranchosininteligíveis – um único linotipista era capaz de decifrar a letra do patrão. Aquarta página ficava com um buraco, à espera do artigo. Numa noite, noteique o texto de Chateaubriand era maior do que o buraco. Eu estava naoficina, e acabara de assumir a chefia da redação. Então, vi o paginadorsubtraindo dois parágrafos de um artigo que seria publicado ao lado do textodo patrão. Protestei, observando que aquilo era um insulto a um profissionalque certamente consumira algumas horas de trabalho para escrever.Candidamente, o paginador informou que agia daquela forma há cinco anos.Ninguém jamais reclamara. Chateaubriand começou a construir seu império ao comprar O Jornal, nosanos 20, com um dinheiro que conseguira da Light. Cresceu ao apoiar aRevolução de 1930, viveu uma fase de ostracismo depois de ligar-se àRevolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo – quando teve de ir parao exílio –, e nesse momento viu que o melhor caminho era apoiar o governo,qualquer governo. Ele seria, durante muitos anos, um dos homens maispoderosos do Brasil. Graças à influência dos Diários Associados, elegeu-sesenador pelo Maranhão, estado que mal conhecia, e foi mais tardeembaixador do Brasil na Inglaterra. Um cangaceiro na Corte de SuaMajestade. Ele jamais teve qualquer estima pelo Brasil, convencido de que erahabitado por uma raça inferior. Preso a tais convicções, foi um entreguistainacreditavelmente desembaraçado. Escrevia artigos pregando a entrega dasriquezas naturais do país aos monopólios estrangeiros, argumentando quenunca seríamos capazes de desenvolver o Brasil por conta própria. Todas ascampanhas supostamente patrióticas patrocinadas por Chateaubriand visavamobter determinadas vantagens ou atender a seus interesses. Ele liderou, por

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exemplo, a campanha para a proliferação de campos de pouso no país, semrevelar que lucrava com a venda dos aviões Paulistinha, fabricados pelafamília Pignatari. Estimulou, também, a instalação de postos de puericultura,quando, no fundo, queria vender mais remédios e aumentar a receita doslaboratórios farmacêuticos nos quais tinha interesse. Todos os jornais da rede dos Associados eram deficitários, e nada podedegradar mais a imprensa que uma publicação com buracos no caixa. Umjornal deficitário geralmente sobrevive à custa de golpes financeiros, defavores oficiais. Por trás de cada jornal de Chateaubriand havia umbanqueiro. Por trás de cada campanha movida pelos Associados haviainteresses econômicos. Ele tinha uma enorme capacidade para levantarrecursos, conseguia créditos infinitos. Chateaubriand me disse, certa vez, quenada sustenta uma empresa com mais eficiência que uma boa dívida. Vivia detal forma endividado que o capital privado não podia cogitar a aquisição dosAssociados. O governo, banqueiros e empresários do círculo de relações deChateaubriand não tinham alternativa além de ajudá-lo a sobreviver. Ele adorava frequentar festas e ser cortejado pelas elites que em outrostempos haviam tentado discriminá-lo por suas origens modestas. Apesar dosobrenome imponente, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo,vinha de uma família empobrecida. Impunha-se mais pelo temor que pelotalento, que era enorme; mais pela agressão que pela cultura, que eravastíssima. Cultivava ódios irremediáveis. Depois da Revolução de 1932, umde seus jornais foi expropriado pelo governo federal em consequência degestões promovidas pelo tenente João Alberto. Ao voltar do exílio erecuperar a empresa, Chateaubriand tratou de marcá-lo para sempre: desdeentão, os jornais da cadeia só se referiam a João Alberto, que era um homemhonrado, como “o ladrão”. Outro desafeto histórico foi o conde FranciscoMatarazzo. Ele costumava ajudar Chateaubriand com empréstimos oucomprando anúncios. Numa ocasião, o conde recusou-se a atender-lhe umpedido qualquer, e foi incluído no índex dos Associados. Chateaubriand faziaprovocações incríveis. Certa feita, publicou em seus jornais a notícia de queas Indústrias Matarazzo distribuiriam metade de seus lucros aos pobres quecomparecessem à praça do Patriarca, em São Paulo, onde ficava a sede daempresa. Centenas de pessoas acreditaram nessa notícia falsa, houve umenorme tumulto, a polícia teve de intervir. A partir daí, o velho condeMatarazzo jamais voltaria a pronunciar o nome de Assis Chateaubriand: diziaapenas “o lazarento”.

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A corrupção nos Associados transformou-se numa instituição, praticada emtodos os níveis. Contínuos extorquiam gorjetas para permitir a entrada dealguém, redatores tomavam dinheiro de açougueiros para não denunciar oaumento no preço da carne, secretários de redação chantageavam empresaspara impedir a publicação de críticas a seus produtos. Os negócios em nívelmais alto, naturalmente, ficavam por conta do chefe. Quando vagava umcargo de direção no Banco do Brasil, por exemplo, Chateaubriandmovimentava-se para nomear algum preposto. Quando conseguia, instalavano Banco uma espécie de máquina de arranjar dinheiro. Cobrava quantiaspara apresentar alguém ao diretor que nomeara, associava-se a negócios,fixava porcentagens. E se fazia ainda mais temido. Poucos se arriscavam a recusar seus pedidos e convites – eram, na verdade,imposições. Gostava de acordar um banqueiro no meio da noite e convocá-lopara a inauguração de um posto de saúde num estado qualquer do Nordeste.Fez o Museu de Arte de São Paulo, o MASP, à custa de extorsões: ele ia até acasa de um milionário qualquer e simplesmente confiscava um quadro,frequentemente valiosíssimo. Quem ousasse dizer não entraria na lista negrados Associados. Com esses métodos de gângster, Assis Chateaubriandmarcou fortemente sua passagem por um trecho da História do Brasil, masseu legado acabaria por esfarelar-se rapidamente. O MASP, é verdade, ficou.Mas onde estão os postos de puericultura, os clubes de aeronáutica quefundou? Seus jornais morreram, os Associados se desfizeram. A revista OCruzeiro e a TV Tupi representaram, nos anos 50, verdadeiras minas de ouro.Hoje, os jovens brasileiros nem mesmo sabem que um dia existiram umarevista O Cruzeiro e uma TV Tupi. Assis Chateaubriand foi uma das últimasexpressões do Brasil colonial. Ele e seu império não poderiam sobreviver àmodernização do país. Em seu reinado, porém, soube viver como monarca. Mantinha autênticospalácios no Rio de Janeiro e em São Paulo. Tinha uma vida socialextremamente movimentada. Numa única noite, comparecia a quatro, cincorecepções. Escrevia seus artigos durante viagens aéreas e obrigava seussúditos a aguardar a palavra do rei. Não demorou a juntar uma fortunaenorme, transformando-se num industrial com interesses em numerososcampos de atividade. Creio que, numa determinada fase de sua vida, AssisChateaubriand pretendeu ser apenas jornalista, mas não tardou a serdeformado por sua imensa ambição. Alguns de seus parceiros na aventurados Associados costumam apresentá-lo como responsável por uma revolução

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na imprensa brasileira. De fato, Chateaubriand fez coisas relevantes –importou a primeira máquina de rotogravura utilizada no país, comandoupublicações que ajudaram a fazer história, implantou a primeira emissora detelevisão. Mas é um equívoco encará-lo como revolucionário: Chateaubriand,ao contrário, retardou em algumas décadas a evolução da imprensa nacional.Ele era o atraso. Definitivamente, Chateaubriand não gostava de seus jornais, detestava osfuncionários de suas redações. Mas tinha faro de repórter, sabia onde estavamos assuntos efetivamente importantes. Em 1948, por exemplo, compreendeuque acontecimentos históricos estavam prestes a ocorrer no Oriente Médio, eque valia a pena encarregar alguém de testemunhá-los. Graças a esse faro, eupude ver com meus próprios olhos o nascimento do Estado de Israel.

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CAPÍTULO 16

Por decisão das Nações Unidas, numa assembleia presidida pelo brasileiroOsvaldo Aranha, a criação oficial do Estado de Israel, resultado da chamadapartilha da Palestina, seria proclamada no dia 14 de maio de 1948. Tratava-sede uma velha reivindicação do crescente movimento sionista, surgido nocomeço do século. Depois da Primeira Guerra Mundial, os ingleses, quecontrolavam a Palestina, prometeram a líderes judeus um pedaço de terra paraa edificação de seu país. Com as atrocidades cometidas pelos nazistas naSegunda Guerra Mundial, a palavra de ordem “Um lar para os judeus”ganhou uma força quase irresistível. Chegara a hora de devolver à sua pátriaum povo disperso e perseguido há mais de dois mil anos. Naquela época, à exceção do Egito, os países árabes não tinham maior pesopolítico ou econômico – todos estavam enquadrados na categoria de paísesmedievais. Assis Chateaubriand, que tinha muitas ligações com judeus,decidiu fazer uma cobertura favorável à criação do Estado de Israel e, nocomeço de 1948, mandou à Palestina dois repórteres dos Associados. Ojornalista pernambucano Murilo Marroquim, um tarimbado profissional quecobrira a Segunda Guerra Mundial para a BBC de Londres, foi encarregadode acompanhar os fatos do lado judeu. Coube a David Nasser o lado árabe.Preparados para a luta inevitável, árabes e judeus haviam consolidadoposições e controlavam grandes porções da Palestina. Murilo Marroquiminstalou-se em Tel-Aviv, já então uma cidade moderna, de aspecto europeu, eDavid Nasser no Cairo. Em vez de verificar pessoalmente como andavam ascoisas na zona conflagrada, David Nasser começou a enviar reportagensbaseadas em material de propaganda árabe que lhe era entregue no hotel ondese alojava. Nesses textos, evidentemente, os judeus eram tratados comobárbaros assassinos. Chateaubriand, irritadíssimo, ordenou a David Nasserque voltasse imediatamente ao Brasil e escolheu-me para substituí-lo nacobertura da partilha da Palestina. Ficou decidido que eu permaneceria emTel-Aviv, deslocando-se Murilo Marroquim para o Cairo. Viajei no começo de abril. Em Roma, fiz uma conexão para Tel-Aviv, ondeMurilo me esperava. Apesar do nariz adunco, da aparência de judeu sefardi,ele pertencia a uma das mais tradicionais famílias de Pernambuco. Instalei-

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me no hotel onde meu companheiro estava hospedado. Tel-Aviv não figuravaentre as várias frentes de combate, mas não escapava ao clima de agudatensão que envolvia a Palestina. Em toda aquela região dilacerada pelo ódio,sucediam-se atentados terroristas de parte a parte, tiroteios, emboscadas,massacres. Sabia-se que os ingleses planejavam retirar suas tropas no dia dacriação oficial do Estado de Israel, deixando o território entregue às leis daviolência. Assim, judeus e árabes trocavam golpes enquanto se preparavampara a guerra total. Organizações terroristas judaicas, como a Haganah e o Irgun, espalhavam omedo pela Palestina. Militantes do Irgun foram responsáveis, por exemplo,pelo célebre atentado que reduziu a escombros o hotel King David, emJerusalém, onde estava alojado o estado-maior das tropas inglesas.Disfarçados de leiteiros, os terroristas entraram no hotel pela manhã.Colocaram galões de leite na cozinha do restaurante e se retiraram. Algunscontinham explosivos. Quando explodiram, o hotel voou pelos ares, matandotodos os integrantes do alto comando inglês. Eu estava em Tel-Aviv quandohouve o atentado. Nos primeiros dias, senti-me prisioneiro na cidade. Não conhecia ninguém,sentia os olhares desconfiados que me acompanhavam pelas ruas. Eu nãotinha aparência de judeu, e o pouco que aprendera de iídiche nos tempos demenino do Bom Retiro já se perdera na memória. Podia ser facilmenteconfundido com um espião. Mas não tardei a estabelecer contato comcorrespondentes que haviam participado da cobertura do Tribunal deNuremberg, e me senti mais seguro. Enquanto Murilo Marroquim buscavaalgum meio de passar para o lado árabe, eu procurava os caminhos que mepermitissem entrevistar militantes terroristas. Graças a insinuações feitas por um correspondente americano, deduzi que ocorrespondente da France Presse em Tel-Aviv, um judeu polonês que estavaparalítico, tinha ligações com o terrorismo. Ele me recebera como amigo, nãocustava tentar.E teimei o quanto pude, até ele se render ao meu assédio.Concordou em conseguir-me um contato com os terroristas, desde que areportagem lhes fosse simpática e mostrasse ao mundo que eles agiammovidos pelo patriotismo. Aceitei. Ele me informou que nas horas seguintesalguém me procuraria no hotel. No outro dia, recebi a visita de uma jovemloura, linda, muito elegante, que me convidou a um passeio por Tel-Aviv. Paramos defronte ao Café Brasil, uma espécie de sede do governo judeu naclandestinidade.

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– Sente-se naquela mesa. Daqui a alguns minutos, duas pessoas vão sentar-se ali também – instruiu a moça loura antes de desaparecer. Logo depois, dois jovens se aproximaram e ocuparam as cadeiras restantesem minha mesa. Comunicaram-me que militavam no Irgun e haviam sidodesignados para conceder-me uma entrevista. O Café Brasil – enorme, cheiode mesas – era movimentadíssimo. Em meio àquele burburinho, conversamoslongamente, interrompidos de vez em quando por judeus que se acercavamdos meus interlocutores, cochichavam alguma coisa e se afastavam. Os doisjovens descreveram em detalhes, num inglês impecável, o funcionamento dasua organização. Um deles participara do atentado ao hotel King David, quedescreveu minuciosamente. No fim da conversa, os dois me pediram queprocurasse apresentar o Irgun de forma simpática. Àquela altura, eu deixara de enviar pelo telex meus despachos para oBrasil. Era mais prudente fazer anotações manuscritas e guardá-las paraquando voltasse.

Mais familiarizado com a Palestina, comecei a deslocar-me pela região.Fiquei três dias visitando colônias de judeus no deserto do Neguev,deslumbrado com a aventura daquela gente que chegava de todos os cantosdo mundo. Depois, em companhia de Murilo Marroquim, que não conseguirapassar para o lado árabe, fui até Jerusalém. Encontramos a cidade em plenaexaltação histérica, traumatizada por um atentado praticado por terroristasárabes duas horas antes: um jipe carregado de dinamite explodira e mataraoitenta pessoas. Fomos, a princípio, confundidos com espiões, masconseguimos tranquilizar os inquietos militantes da Haganah quepatrulhavam a área. O som das balas de franco-atiradores era praticamenteininterrupto. Murilo tentou novamente atravessar para o outro lado, de novoem vão. Então, combinamos que ele regressaria a Tel-Aviv. Eu ficaria emJerusalém, acompanhando os desdobramentos do atentado. Entre os judeus orientais, grupo ao qual pertenciam as vítimas do atentado,a morte é um espetáculo particularmente impressionante. São choros e gritoslancinantes, mulheres com ar trágico e vestidas de preto, homens entregues alamentações profundas. Mas o episódio a que eu estava assistindo emJerusalém apresentava uma carga dramática adicional. Segundo milenarestradições judaicas, só corpos santificados podem ser enterrados dentro doslimites de Jerusalém. Os mortos nos atentados eram judeus comuns; teriam,portanto, de ser enterrados no cemitério que ficava fora da cidade. Ocorre

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que, para chegar a esse cemitério, o cortejo teria de atravessar uma áreacontrolada por árabes e, nesse caso, um novo massacre seria inevitável.Como solucionar o problema? A solução foi encontrada num conclave noturno entre os rabinos da cidade:eles decidiram santificar os corpos das vítimas, única forma de sepultá-los, nodia seguinte, em sua cidade santa. O cemitério de Jerusalém ficava no montedas Oliveiras. Eu não podia perder aquela cena. Consegui permissão paraacompanhar o cortejo, seria o único jornalista de todo o mundo a documentaro desfecho do drama. Com minha máquina fotográfica Leica em punho,entrei em ação, registrando cenas fantásticas. Para não despertar a atençãodos árabes, os próprios parentes das vítimas abriam as covas, em silêncio – osom de um choro poderia ser fatal. Perto dali, combatentes judeus comgranadas nas mãos protegiam o cemitério. O enterro foi marcado para a horado crepúsculo, de modo a dificultar a visibilidade dos inimigos. Fotografeitudo. Só quando o enterro ia chegando ao fim descobri que esquecera depuxar o visor da minha Leica. Salvaram-se apenas duas fotos, mais tardepublicadas na revista O Cruzeiro. Como repórter, eu me saíramagnificamente. Como fotógrafo, fora um fracasso. No começo de maio, às vésperas do nascimento oficial do Estado de Israel,chegou ao escritório da France Presse em Paris um recado da sede dosDiários Associados, pedindo que tentassem localizar-me em Tel-Aviv:Chateaubriand estava precisando dos meus serviços no Brasil. O aviso foiretransmitido ao escritório da France Presse em Tel-Aviv e seus funcionáriosidentificaram meu paradeiro. Eu já estava de volta à cidade; MuriloMarroquim, também a chamado de Chateaubriand, regressara alguns diasantes ao Brasil. Tratei de conseguir uma vaga num ônibus blindado que faziao percurso entre o hotel e o aeroporto de Tel-Aviv. A distância entre os doispontos era de apenas dois quilômetros, mas se tratava de uma terra deninguém. Invariavelmente, havia grupos terroristas no caminho, prontos paraemboscadas e atentados. Embarquei nesse ônibus na madrugada de 13 de maio de 1948,precisamente a véspera da criação formal de Israel. Eu não veria a guerra quejá se desenhava há tantos meses, mas o que eu testemunhara me bastava. Abordo do ônibus, surpreendi-me ao encontrar um dos militantes do Irgun comquem conversara no Café Brasil. Ele sussurrou-me um apelo em inglês:“Espero de você a generosidade de esquecer que nos conhecemos”. Então,sempre em voz baixa, perguntou-me para onde estava indo. Expliquei-lhe que

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viajava de volta ao Brasil, mas antes faria uma escala no Cairo. No meio do caminho, ouvimos um imenso estrondo e o veículo sacudiuviolentamente. Passáramos ao lado de uma mina que, embora tivesseexplodido, não atingira diretamente o ônibus. Em seguida, começamos aouvir tiros – eram combatentes árabes que disparavam contra nós. Deitado nochão, vi o terrorista do Irgun com um revólver na mão, atirando pela janela.Ele estava trêmulo, visivelmente amedrontado. O motorista acelerou,chegamos incólumes ao aeroporto. Ao descermos, o terrorista abordou-menovamente, informando que viajava em direção a Paris, onde deveria mantercontatos. Quando nos despedíamos, ele fez uma confidência. Havia notadomeu espanto por ter percebido que sentira medo durante o tiroteio. Não haviarazões para espanto, ponderou. – Todo homem treme na hora do medo da morte – disse-me. – Não se deveter vergonha disso. Guardei aquelas palavras para sempre. Embarquei para o Cairo num pequeno avião, e fui recebido peloembaixador Caio de Mello Franco. A pedido de Chateaubriand, ele tomaraprovidências para que eu viajasse no voo seguinte para o Brasil. Deveriaaguardar dois dias no Cairo, hospedado na embaixada, e nesse período nãopoderia de forma alguma atravessar o portão. Na mesma noite, porém, opróprio Caio de Mello Franco convidou-me a acompanhá-lo num jantar noclube mais elegante do Cairo, frequentado pela aristocracia egípcia. Maistarde eu soube que o convite fora provocado pela princesa Fátima, que estavaprestes a casar-se com dom João de Orleans e Bragança, da família realbrasileira. Ela estava interessada em saber se eu tivera acesso a algumsegredo militar da parte judaica. A princesa Fátima não conseguiu o quequeria, mas proporcionou-me um esplêndido jantar. De volta ao Brasil, publiquei várias reportagens sobre a Palestina, fuiconvidado para fazer inúmeras conferências sobre a questão de Israel.Chateaubriand se mostrava extremamente orgulhoso – eu fizera um bomtrabalho. Ele me tratava como grande repórter, encarregando-me desucessivos trabalhos. No começo de 1949, o dono dos Associados resolveuenviar-me ao Rio Grande do Sul para fazer uma reportagem sobre a questãodo trigo. Sem saber, ele estava me enviando ao encontro de Getúlio Vargas.

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CAPÍTULO 17

No começo de 1949, Assis Chateaubriand decidiu incumbir-me de umagrande reportagem sobre a questão do trigo. Naquela época, discutia-se se oBrasil tinha ou não condições de tornar-se autossuficiente na produção dessecereal, e o dono dos Diários Associados participava ativamente da polêmica,com a cautela de não esclarecer por inteiro os interesses que o moviam.Chateaubriand era contra a autossuficiência brasileira na produção de trigoporque não convinha aos trustes internacionais que detinham o monopólio docomércio. Mas alegava apenas que, se o Brasil parasse de importar trigo daArgentina, os argentinos deixariam de comprar o nosso mate. Assim, eracontra o plantio de trigo em terras brasileiras. Ao mandar-me para o RioGrande do Sul no começo de 1949, orientou-me no sentido de conduzir areportagem na direção que lhe interessava: eu devia demonstrar que o Brasiljamais conseguiria a emancipação nessa área da agricultura. Viajei extremamente aborrecido – aquilo, evidentemente, não era honesto.Resolvi, então, colher todas as informações disponíveis, para só depoisrefletir sobre a maneira de utilizá-las. Poucos dias depois, estava claro a meusolhos que o país tinha todas as condições para produzir toneladas e toneladasde trigo. Entrevistei produtores, visitei fazendas, conversei com técnicos econcluí que, definitivamente, a posição de Chateaubriand era insustentável.Eu me metera numa enrascada. Não podia afirmar que o trigo brasileiro erainviável e tampouco defender, nas páginas dos Diários, uma posturafrontalmente contrária à de seu dono. Salvou-me desse impasse a providencial ideia de tentar uma entrevista comGetúlio Vargas. A reportagem sobre a questão do trigo jamais seria escrita.Ao ler a entrevista com Vargas, Chateaubriand esqueceu completamente oassunto que me levara ao Rio Grande do Sul. Havia outro, muito maispalpitante, muito mais dramático, a explorar em seus jornais. A partir daquele momento, eu me tornei uma espécie de príncipe dosDiários Associados. Chateaubriand passou a levar-me aos lugares quefrequentava e a exibir-me como um ursinho, um animal de estimação.Admito que aquilo me envaidecia. Ele me aproximou da plutocracia, dos seus

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amigos aristocratas, dos donos do poder. Aos sábados, havia um almoço famoso na casa do superintendente daLight, John McCrimmon – o célebre major McCrimmon, um escocês gordo,enorme, que influiu fortemente na vida política brasileira durante anos a fio.Receber um convite para esse almoço dos sábados era um sinal de altíssimostatus: lá podia estar, refestelado numa cadeira, o presidente da República,cercado por ministros, senadores, industriais. Num determinado dia,Chateaubriand levou-me à casa do major McCrimmon para que eu contasseao presidente Eurico Gaspar Dutra, também convidado, como estava GetúlioVargas. Era impressionante o desembaraço com que Chateaubriand tratava opresidente. Em meio a meu relato sobre as conversas com Getúlio, ele davagargalhadas e, de vez em quando, tapinhas no traseiro de Dutra. – Temos que continuar essa ditadura – dizia Chateaubriand, rindo muito. –Aquele homem precisa ser liquidado. – Também McCrimmon pareciadivertir-se bastante. – Conta! Conta! – convidava o homem da Light, enquanto eu falava sobreGetúlio. – Conta mais! O clima era de puro deboche. As relações de Chateaubriand com o poder eram extremamente cínicas. Elemudava a direção quando lhe convinha, fiel apenas a seus próprios interesses.Esses interesses, por sinal, incluíam a vassalagem à Light, que sempre deudinheiro aos jornais de Chateaubriand. Fui testemunha, às vezes protagonista,de episódios que ilustram à perfeição a subserviência dos Associados àpoderosa empresa. Certa vez, Chateaubriand telefonou-me às onze horas danoite, na redação de O Jornal, ordenando que eu fosse imediatamente à casade McCrimmon para entrevistar o superintendente da Light. Naquele dia, oentão general Juarez Távora, um militar muito influente desde a Revoluçãode 30, fizera acusações à Light, denunciando ações de sabotagem contra asobras da Usina de Salto, e Chateaubriand não podia permitir que elasficassem 24 horas sem resposta. McCrimmon estava à minha espera para daro troco. Tentei ponderar que já era tarde, e que minha presença na redação naquelahora se tornava indispensável. – O senhor vá pessoalmente e se vire – cortou Chateaubriand. Fui à casa de McCrimmon acompanhado de Augusto Rodrigues. Encontreimeu anfitrião completamente bêbado, ao lado de um padre escocêsigualmente embriagado. Augusto Rodrigues logo bebeu três uísques e

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também ficou grogue. Fiz o possível para entrevistar o superintendente daLight, passando as declarações diretamente ao linotipista, pelo telefone. Eleme dizia frases temerárias. – Pode escrever que Juarez Távora não é um homem sério – declarouMcCrimmon a certa altura, com a voz engrolada. Ponderei que se tratava de uma acusação muito grave a um militar combastante prestígio nos quartéis. – Então, diga que ele é burro – sugeriu McCrimmon. Insisti nas minhas ressalvas, lembrando o passado de Juarez. De repente,McCrimmon mudou bruscamente de direção. – Pois então diga que Juarez Távora é um patriota – decidiu osuperintendente da Light. Saí de sua casa perplexo, mas não demorei a compreender que McCrimmone Chateaubriand tinham um forte traço comum: o cinismo. Era o cinismotípico dos poderosos. McCrimmon comandava uma empresa que distribuía propinas a todos osjornais da época. Mesmo o jornal do Partido Comunista, A Manhã, chegou areceber verbas. Os editorialistas mais influentes recebiam diretamente daempresa pagamentos destinados a torná-los dóceis diante das imoralidadesque a beneficiavam. As exceções eram raríssimas. Só no dia em que foremabertos os arquivos da Light se saberá até que ponto este país foi corrompidopelo famoso “polvo canadense”, um apelido muito pertinente. Afinal,estavam sob o controle da empresa, naquela época, a luz, o gás, a água, osbondes, os telefones. Tamanho era o seu poder que conseguiu até mesmo aaprovação de uma lei que lhe permitia mandar seus lucros para o exterior emouro. Chateaubriand agia com a mesma desfaçatez que marcava McCrimmon:chegava a cobrar quantias previamente fixadas de industriais em dificuldadespara abrir-lhes as portas do Banco do Brasil. Não havia dúvida de que aliestavam homens muito parecidos.Chateaubriand, convém insistir nesse aspecto, escrevia admiravelmente bem,era um enorme polemista. Escrevia bem e curto, seus artigos nunca tiveram oderramamento prolixo dos textos de Carlos Lacerda. Em 1949, ele não meconsiderava um jornalista completo. Eu era autodidata, ainda não aprendera aescrever com desembaraço. Meu texto tinha erros – vírgulas fora de lugar,preposições mal colocadas, escorregões desse gênero. Mas eu sabia contarhistórias com alguma fluência e já conseguia uma grande empatia com o

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leitor. Chateaubriand captara essas qualidades e me tratava com bastantesimpatia. Continuava a levar-me a toda parte, mas mantínhamos umadistância respeitosa. Jamais seríamos íntimos. Ele não era generoso. O homem do Nordeste, aliás, não costuma sergeneroso. É valente, é hospitaleiro, mas não é generoso, talvez porque se vejaforçado a lutar permanentemente pela sobrevivência. Chateaubriandprocurava destruir seus adversários, reduzi-los a uma posta de carne. Com ostrês filhos, nunca teve relações carinhosas. Teve amigos, mas jamais foihomem de grandes amizades. Isso era impossível para um homem que nãoconseguia viver sem humilhar os que lhe eram próximos. Certas humilhaçõeseram decididamente originais. Um bom exemplo foi a Ordem do Jagunço,criada por Chateaubriand. Teoricamente, tratava-se de uma homenagem. Masbastava ver a foto dos homenageados na primeira página dos jornais dosDiários Associados, envergando um ridículo chapéu de cangaceiro, paraconcluir que aquilo configurava uma humilhação. Chateaubriand conseguiucolocar o chapéu de cangaceiro até mesmo em Winston Churchill, o estadistainglês que salvara a civilização com sua resistência ao avanço da Alemanhanazista. Nesse caso, porém, vale registrar que Churchill não entendeuexatamente o que estava acontecendo. É provável que tenha experimentado amesma sensação dos chefes de Estado que, em visita à África, são abordadospor um nativo que lhes coloca um cocar na cabeça. Em abril de 1950, Chateaubriand convocou-me para informar que tiverauma ideia genial: decidira-me nomear “embaixador dos Diários Associadosjunto ao Principado de Itu”. Fiquei estarrecido. Sempre fui muito avesso aesse tipo de exibicionismo, e pressenti o que viria. Ele então chamou CarlosRizzini, um de seus assessores imediatos. – Traga o pergaminho do nosso embaixador – disse Chateaubriand aRizzini. Permaneci em silêncio, mas fervendo de indignação. Naquele momento,tive certeza de que poucos minutos mais tarde estaria desempregado. Rizzinivoltou com o pergaminho, em letras góticas, que me nomeava embaixadorplenipotenciário junto ao Principado de Itu, com o direito de mandarreportagens e outras especificações igualmente ridículas. O pergaminho,datado de 21 de abril de 1950, era assinado por Carlos Rizzini. – E tem mais, seu Wainer – disse Chateaubriand. – Já mandei fazer seufraque e sua cartola. Dava gargalhadas homéricas. Contou-me, também, que telefonara na

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véspera a Benedito Valadares, para revelar a brincadeira que havia planejado,e que o velho político mineiro gostara muito da boutade. Então, com vozbaixa, quase num murmúrio, soltei as palavras que, tinha certeza,representariam a perda do meu emprego: – Dr. Assis, lamento muito, mas não aceito essa função. Chateaubriand empalideceu.– Como? O senhor não aceita a missão? – espantou-se. Insisti:– Lamento, mas não aceito. Não é esse jornalismo que sei fazer, não souhomem para esse cargo. Ele se voltou para Rizzini:– O senhor Wainer recusa essa honraria! – exclamou, subindo o tom de voz. Chateaubriand já estava falando aos gritos, algo que até então jamais fizeracomigo. De repente, pareceu cair em si. – Está bem, vou pensar no que fazer – disse, abrandando a voz. – Pode seretirar. Saí da sala, logo fui alcançado por Rizzini. – Você fez a maior loucura, vai perder o emprego – disse Rizzini,desconcertado com a cena que testemunhara. Não fui demitido, certamente porque Chateaubriand me considerava útilnaquele momento. Ele nunca mais voltou a tocar no assunto. Muitos anosdepois, seu filho Gilberto Chateaubriand deu-me de presente o pergaminho,que encontrara nos arquivos do pai. Guardei-o como lembrança; málembrança. Quando Getúlio Vargas se elegeu presidente da República, Chateaubriandassustou-se. Em 1945, pouco depois da queda de Getúlio, Chateaubriand, quehavia prosperado enormemente durante o Estado Novo, escrevera um artigosobre o ditador destronado cujo título dizia tudo: “O monstro”. Com aressureição política de Getúlio, ele ficou à beira do pânico, certamenteesquecido de que o antigo ditador nunca teve amigos nem inimigos. Vargasera um animal político destituído de emotividade, não tinha reminiscências,não tinha idiossincrasias. Atribuíram-lhe, aliás, uma frase bastantereveladora: “Os Vargas não perdoam, mas esquecem...” Getúlio não teria,portanto, maiores problemas para entender-se com Chateaubriand, mas odono dos Diários aparentemente não sabia disso. Na noite de 24 de dezembro de 1950, fui buscar Chateaubriand em suacasa, na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, para irmos juntos a uma ceia de

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Natal na casa de Rosalina Larragoiti, dona da Companhia Sul América deSeguros. Enquanto ele se vestia, ponderei-lhe que era hora de reencontrar-secom Getúlio Vargas. – Ele não me recebe – disse Chateaubriand. Discordei, observando-lhe que eu me encarregaria pessoalmente deestabelecer o contato entre ambos. Getúlio estava no Rio, hospedado na casade Epitacinho Pessoa, cuidando da montagem do governo. No dia 6 dejaneiro, o presidente eleito ofereceria um almoço em homenagem a NelsonRockefeller. Ali estava uma boa ocasião para reaproximar Getúlio eChateaubriand. Ele ficou deslumbrado com a proposta.– Que coisa maravilhosa, nem acredito! – entusiasmou-se. – A propósito, seuWainer, o senhor tem automóvel? Surpreendi-me com a pergunta – falávamos, afinal, de outros assuntos.Expliquei-lhe que não tinha carro e que nem sequer sabia dirigir. – Mas um homem como o senhor tem que ter um automóvel – insistiu. Sugeri, em tom de brincadeira, que me aumentasse o salário. Com adiferença, eu compraria um carro. – Eu compro – replicou Chateaubriand, que sabidamente detestava aumentarsalários. Àquela altura, ele mal me ouvia, enlevado com a própria voz e, sobretudo,com os projetos que começava a fazer para tirar vantagens da reaproximaçãocom Vargas. – Logo que fizermos as pazes, tomaremos a Schering – continuouChateaubriand. – Faremos uma grande campanha para inundar o país depostos de puericultura e o senhor será diretor da Schering. A Schering fora desapropriada durante a guerra e agora pertencia aogoverno brasileiro. – Não quero, obrigado – retruquei. – Não quero ser outra coisa além dejornalista. Era inútil argumentar. – Eu lhe farei diretor da Schering – repetia Chateaubriand. Disse-lhe que conversaríamos sobre isso mais tarde, e saí para caminhar umpouco na avenida Atlântica. Eu me sentia humilhado. Considerava-me umgrande jornalista, um repórter que buscara um expatriado no fim do mundo evoltara com ele ao poder. Eu fizera uma campanha singularíssima naimprensa brasileira. Na hora de colher os frutos desse trabalho, eu não

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recebera um convite para ocupar um cargo de direção nos DiáriosAssociados, nem mesmo um aumento de salário. Em vez disso,Chateaubriand me oferecera um carro primeiro, e depois um cargo de diretorda Schering. Ele não me compreendia. Naquela noite, caminhei cerca de umahora pela avenida Atlântica. Terminado o passeio, eu concluíra queChateaubriand ignorava minha personalidade e desconhecia meu valor comojornalista. Só mais tarde eu saberia que, também naquela noite, a ÚltimaHora começou a nascer. Em algum canto da minha mente, desenhou-se acerteza de que eu deveria ter o meu próprio jornal.Fui a Getúlio e propus-lhe que recebesse Chateaubriand. Ele deu uma de suassonoras gargalhadas e concordou. “Pode trazer, não tem importância”,concedeu Getúlio. A 6 de janeiro de 1951, acompanhei Chateaubriand à casade Epitacinho Pessoa, um palácio no alto da Gávea. Gregório Fortunatoestava plantado na porta, sempre vigilante. Quando viu o homem quequalificara seu chefe de “monstro”, Gregório não se conteve: deu-lhe umempurrão. Chateaubriand ficou atônito por alguns segundos. Entramos.Getúlio estava numa sala, de terno preto e meias de seda, à espera doconvidado. Ao vê-lo, Chateaubriand parecia um cachorrinho prestes a sercastigado por uma má ação. Tirou o chapéu e aproximou-se timidamente dopresidente eleito, que prontamente tratou de amenizar o clima: – Doutor Assis, que prazer revê-lo! – saudou. Minutos depois, Chateaubriand estava inteiramente à vontade, dando tapasna bunda de Getúlio. – O senhor veio para não sair mais – dizia. – Vai ser de novo o nossoditador, vai me dar a Schering de presente. Os dois riam muito. Não houve cobranças, não se falou em brigas passadas.Getúlio era tudo que Chateaubriand abominava, Chateaubriand não merecia amenor confiança de Getúlio. Mas pareciam velhos amigos. Durante o almoço,Chateaubriand não parou de falar. Era um grande contador de causos, edivertiu a mesa com piadas e histórias sobre Eurico Dutra. Como Dutradeixara o poder, perdera a importância para o dono dos Diários. Depois do almoço na casa de Epitacinho, Vargas concedeu uma entrevistacoletiva. A certa altura, um repórter perguntou-lhe se eu teria algum cargo nogoverno. Getúlio deu uma gargalhada e respondeu que me nomeariaembaixador do Brasil em Israel. Aparteei a conversa para afirmar que preferiaser embaixador de Israel junto ao governo de Getúlio. Todos riram muito, obom humor era geral. Secretamente, porém, tornava-se cada vez mais nítido o

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projeto que surgira em minha mente na véspera de Natal. Poucas semanasdepois, eu começaria a viver a fantástica aventura da Última Hora.

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2a Parte

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CAPÍTULO 18

O Getúlio Vargas que no começo de 1951, conforme prometera ao longo dacampanha, subiria com o povo as escadarias do Catete, era um homemdiferente do chefe do Estado Novo. Ele se tornara um nacionalista muito maisconvicto, mais consistente. Além disso, suas ideias sobre justiça social sehaviam tornado mais nítidas. Enfim, ele se convencera da necessidade deconsolidar a burguesia nacional. Essas três linhas de ação, sobretudo a opçãonacionalista, marcariam sua trajetória até o dia do suicídio. A grande dúvida histórica, que só o próprio Vargas poderia desfazer, ésaber por que, exatamente, ele quis voltar ao poder. É possível que tenharesolvido voltar simplesmente porque quem passou pelo poder sempre desejaretomá-lo. Mas também é possível que se sentisse impelido pelo destino aconcluir uma obra cujos exatos contornos e dimensões só ele próprioconhecia. Logo no começo da campanha, pouco depois de aceitar acandidatura, Getúlio inclui no discurso uma expressão que ficaria célebre:“Levai-me convosco”, disse Vargas ao povo que o saudava. Nesse discurso,previu que caminhava para a tragédia, para a destruição. Parecia saber que asmudanças operadas em sua postura resultariam num desfecho dramático. Tais mudanças foram provavelmente maturadas nas longas noites de exílio,de silêncio, nos dias de expatriado vividos na fronteira gaúcha. Não creio quetenham sido fruto de conversas, diálogos – Vagas não cultivava o hábito dodebate intelectual. Gostava muito de conversar, era um adorável interlocutor,um bom ouvinte, mas não costumava extrair decisões de diálogos ouconsultas. Tampouco acredito que as mudanças tenham decorrido de leituras:ele era um homem de leituras esparsas e descosidas, não exibia admiraçãoespecial por algum autor. Getúlio preferia construir seu pensamento baseadoem linhas de raciocínio próprias, guiado por seu admirável instinto político. Sempre mostrou inclinações nacionalistas, até porque essa tendência énatural do homem da fronteira. Essas inclinações foram reforçadas pelo fatode que passou praticamente toda a vida sem viajar ao exterior. Com exceçãoda Argentina, que visitou quando presidente, ele não conheceu nenhum outropaís. Antes de 1950, contudo, o nacionalismo de Getúlio Vargas era umnacionalismo confuso, às vezes primário. Agora não: voltava ao poder

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decidido a percorrer um caminho traçado com clareza na solidão da fronteiragaúcha. Sabia, certamente, dos riscos que o aguardavam nesse caminho, masconfiava nas suas habilidades, principalmente no seu desconcertante talentopara captar as nuances da alma brasileira. Ele conhecia o homem brasileiro,suas virtudes, suas fraquezas, suas debilidades – e só graças a essasensibilidade pôde ficar tantos anos no poder. Impressionava-meespecialmente a competência com que manobrava os que o cercavam,antecipando-se a pressões que se desenhavam, jogando uns contra os outrossempre que necessário. Entre 1930 e 1954, Vargas conviveu com políticosbrilhantes como Osvaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Virgílio de MelloFranco, Lindolfo Collor, tantos outros. Mas foi sempre o primeiro entretodos, o mais hábil, o comandante. Como não tinha paixões personalistas,nada o impedia de desfazer e recompor amizades. Em 1937, por exemplo,matou com o Estado Novo a candidatura presidencial de José Américo deAlmeida, que ele mesmo lançara. Pois bem: nos anos 50, conseguiureaproximar-se de José Américo e o nomeou ministro. Também com OsvaldoAranha teve uma longa história de desencontros e reatamentos. Algumasbrigas entre ambos foram decididamente feias, mas era impossível resistir aocharme de Getúlio quando ele se dispunha a recompor-se com umcompanheiro de outros tempos. Por tudo isso, passou a encarnar, aos olhos dopovo, a imagem do brasileiro esperto, o malandro simpático que sempre saiganhando. O anedotário sobre as espertezas de Getúlio era imenso. Em todosos episódios, era invariavelmente ele quem passava a perna nos outros,criando armadilhas que desorientavam e derrotavam os adversários domomento. Mas essas habilidades seriam insuficientes para deter a trama quecontra ele se armou a partir de sua vitória nas eleições de 1950. Nada se podia alegar contra a honradez pessoal de Vargas, que tinhapadrões de vida modestos e mostrava o respeito pelo dinheiro típico dosfronteiriços. Há um episódio que revela com nitidez essa faceta de Getúlio.Nos tempos da ditadura, seus filhos faziam o percurso entre o PalácioGuanabara, onde moravam, e o centro da cidade nos ônibus da linha ClubeNaval-Laranjeiras. A passagem custava quatrocentos réis. Anos depois,quando o pai voltou ao poder, o filho Maneco pediu-lhe dinheiro para ir aocentro. Getúlio deu-lhe duas moedas de quatrocentos réis. Ele não sabia que opreço da passagem estava dez vezes maior. Esse episódio mostra, também,até que ponto era comedido nos gastos.

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Os próprios adversários reconheciam sua honradez pessoal, e mesmo noauge da campanha que o levaria à morte ninguém ousou molestá-lo nesseaspecto. É preciso destacar essa particularidade, porque nenhum outrohomem público foi tão duramente combatido na História do Brasil. Asclasses dirigentes sabiam que era preciso destruir Getúlio, e nisso tinham asimpatia dos Estados Unidos. Os americanos jamais gostaram de presidentescom ideias nacionalistas, e essa rejeição era agravada naquela época pelosventos da Guerra Fria. A hostilidade das classes dirigentes brasileiras serefletia com inteira clareza na imprensa. À exceção dos jornais deChateaubriand, que reatara seu namoro com Vargas, toda a imprensadevotava ao novo governo uma animosidade total e incontornável. Aimprensa atacou diuturnamente Getúlio ao longo da campanha, endureceu ascríticas depois de sua vitória nas urnas e deixou claro, já no dia da posse, quenão haveria tréguas na guerra de extermínio. Getúlio tomou posse em 31 de janeiro de 1951, em meio a imensascelebrações populares. A esmagadora maioria da imprensa reagiu com frieza,com reportagens que de modo algum refletiam o que efetivamente ocorrera.Contrariando as previsões, o presidente Dutra compareceu à cerimônia detransmissão do cargo. Getúlio entrou no Catete carregado pelo povo, foi umespetáculo magnífico. Eu sabia que contribuíra decisivamente para que aquiloocorresse, sentia-me vaidoso. Assisti à festa no meio do povo, sozinho comminha vaidade. Foram cenas rigorosamente inesquecíveis, mas a imprensaprocurou ignorá-las. No dia seguinte, fiel às tradições da época, Getúlio subiu a serra rumo aPetrópolis, onde passaria as férias de verão instalado no Palácio Rio Negro. A2 de fevereiro, seria realizada a primeira reunião do novo ministério. Viajeipara Petrópolis, encarregado de fazer a cobertura para os Diários Associados.Tratava-se, evidentemente, de uma reunião importantíssima, ao fim da qualseriam anunciadas algumas diretrizes do governo Vargas. Ao chegar aoPalácio, constatei, espantado, que além de mim só um repórter da AgênciaNacional subira a serra. Percebi que a imprensa decidira fechar o cerco aGetúlio Vargas através da conspiração do silêncio. Terminada a reunião, fui convidado a ficar e jantar com a famíliapresidencial. Depois, Getúlio chamou-me a acompanhá-lo à sua sala dedespachos, um enorme salão que ele usava para conversas reservadas, entrebaforadas de charuto e curtas caminhadas de um lado para outro. – Tu te lembras de uma frase que me disseste no dia em que começamos a

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campanha? – perguntou-me de saída o presidente. Não me lembrava. – Era uma frase sobre o jornalismo – disse Vargas. Só então recordei a frase que dissera a Getúlio no dia em que me sentei aseu lado para voarmos do Rio de Janeiro ao Amazonas: “A imprensa podenão ajudar a ganhar, mas ajuda a perder”. Naquele dia, eu lhe chamara a atenção para o fato de que era o únicojornalista destacado para cobrir sua campanha, enquanto a do brigadeiroEduardo Gomes mobilizava pequenas multidões de repórteres e fotógrafos.Eu o advertira de que ele teria toda a grande imprensa contra a suacandidatura. Getúlio retrucara que não precisaria da grande imprensa paraganhar. Ele provavelmente pensava no exemplo famoso de FranklinRoosevelt, que sempre venceu eleições apesar da oposição que lhe moviamos jornais americanos. Em resposta, eu ponderara que, ao contrário do queocorria em países como os Estados Unidos, no Brasil a imprensa tinha umfortíssimo poder de manipulação sobre a opinião pública, e que não era fácilenfrentá-la. Então, disse-lhe a frase que meses depois seria por ele lembradana sala de despachos do Palácio Rio Negro. – Tu reparaste que hoje não veio ninguém cobrir a reunião? – perguntouGetúlio. Respondi que sim, e observei que fora desencadeada a conspiração dosilêncio. – O senhor só vai aparecer nos jornais quando houver algo negativo anoticiar – preveni. – Essa é uma tática normal de oposição, e a maisdevastadora. Ele andava de um lado para o outro. De repente, parou e me disse setepalavras que seriam a senha para abrir-me as portas da grande aventura: – Por que tu não fazes um jornal? Alguns anos mais tarde, durante uma sessão da comissão parlamentar deinquérito que tentava promover a devassa da Última Hora – e que produziu amais cruel e intensa investigação da trajetória pessoal e profissional de umjornalista brasileiro em todos os tempos –, fui submetido a centenas deperguntas. A maioria tentava levar-me à confissão de que algum dia Getúliome pedira para fazer um jornal. Meus inquisidores perseguirampermanentemente uma resposta que confirmasse essa versão. Nãoconseguiram. Revelo-a só agora. Na pergunta formulada por Getúlio naquelanoite em Petrópolis havia, evidentemente, um pedido:

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– Por que tu não fazes um jornal? Respondi que aquele era o sonho de um repórter com o meu passado.Ponderei que não seria difícil articular a montagem de uma publicação quedefendesse o pensamento de um presidente que, como era o seu caso, tinha operfil de um autêntico líder popular. – Então, faça – determinou Getúlio. Perguntei-lhe se queria saber como faria. – Não – cortou. – Troque ideias com a Alzira e faça rápido. Reagi com o otimismo de sempre: – Em 45 dias dou um jornal ao senhor.– Então, boa noite, Profeta – encerrou Getúlio.– Boa noite, presidente. A Última Hora começava a nascer, e eu a encontrar a minha razão deviver. Alzira Vargas já mantinha comigo, àquela altura, uma relação de amizadetotal, absoluta. Tratava-se de uma pessoa excepcional. Alzirinha foi a maisextraordinária mulher do Brasil moderno, sobretudo pela influência queexerceu sobre Getúlio, sempre em favor de posições nacionais e populares.Não seria difícil entender-me com ela em torno da ideia de criar um jornalpró-Getúlio. Antes de conversarmos, porém, decidi fazer algumas sondagens.Eu precisava de algumas informações sobre o mundo cujas fronteiras iríamosatravessar. Poucos dias depois de iniciar minhas sondagens, encontrei-me casualmentena avenida Rio Branco, numa manhã de março de 1951, com o diplomataJosé Jobim. Éramos amigos. Ele convidou-me para almoçar no Jockey Club,e durante a conversa contei-lhe que estava à procura de uma oficina paraimprimir meu jornal.– Caiu a sopa no mel – comentou Jobim. Informou-me, então, que não achava difícil fechar um acordo com o DiárioCarioca, um jornal que, embora tivesse bastante prestígio junto ao restante daimprensa, atravessava uma fase de fortes dificuldades financeiras. Jobim eramuito ligado ao grupo que fazia o Diário Carioca – o redator-chefe, porsinal, era seu irmão, o jornalista Danton Jobim. O dono era José EduardoMacedo Soares, que pertencia a uma família de perfil aristocrático e recebia otratamento de “senador” entre o pessoal da redação. Escrevia bem, assinavaeditorias demolidores na primeira página. Abaixo de José Eduardo, nahierarquia do Diário Carioca, estava Horácio de Carvalho, um jovem de uma

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antiga família fluminense, que mais tarde se tornaria riquíssimo. A equipe deredação era comandada por Pompeu de Souza e Danton Jobim, e dela faziamparte jornalistas importantes, como Prudente de Moraes, neto. O grupo do Diário Carioca, de muito bom nível intelectual e social, haviarompido com Getúlio no fim da ditadura, em consequência de disputas pelocontrole do governo do Estado do Rio. Contrariando os interesses do grupo,Getúlio nomeara interventor do Estado do Rio de Janeiro seu genro,almirante Ernâni do Amaral Peixoto, marido de Alzirinha. O jornal brigoucom o ditador e apelidou Amaral Peixoto de “Alzirão”. A briga ficou feia;numa noite, por razões obscuras, José Eduardo Macedo Soares foi agredidona Cinelândia por dois integrantes da Polícia Especial. A partir daí, o DiárioCarioca transformou-se num dos símbolos do antigetulismo, e soubecapitalizar politicamente esse trunfo quando Vargas caiu. Embora vivesse em situação pré-falimentar, o Diário Carioca conseguirarecursos, durante o governo do presidente Eurico Dutra, para construir umprédio próprio com quatro andares, na avenida Presidente Vargas. Paracomandar a construção do prédio, Macedo Soares contratou o arquiteto Redigde Campos. A sede do Diário Carioca tinha requintes surpreendentes. Acozinha, por exemplo, era a mais luxuosa jamais encontrada em qualquerjornal do mundo, em alumínio brilhante. Havia salões com colunas demadeiras exóticas, um jardim de inverno no quarto andar. A sala de JoséEduardo abrigava um busto do próprio dono e, entre outras extravagâncias,uma mesa negra em S, de ônix, feita especialmente para o “senador”. Emcontrapartida, o equipamento era extremamente precário, pois os homens doDiário Carioca nunca haviam se preocupado em investir nessa área. Nãohavia no prédio nenhum vestígio de laboratório fotográfico. As impressorasestavam desgastadas e eram insuficientes para imprimir sem sobressaltos umjornal moderno. Essas deficiências eram compensadas pelo brilho dosredatores, que escreviam com malícia e ironia, características que fizeram doDiário Carioca um dos grandes renovadores da linguagem da imprensabrasileira. Apesar disso, estava com a saúde financeira abalada, conforme revelou-meJosé Jobim naquele almoço no Jockey. A empresa devia bastante dinheiro aoBanco do Brasil, as máquinas estavam hipotecadas à Caixa EconômicaFederal. E Horácio de Carvalho, que àquela época dirigia de fato a empresa,mostrava-se decidido a vendê-la. Decidi procurá-lo. Ele me informou quequeria passar adiante a parte gráfica, mas não o jornal. Sem o jornal, sabia

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Horácio, a importância social do grupo seria nenhuma. Expliquei-lhe que oque me interessava era justamente a gráfica. Ele me propôs que assumisse asdívidas do jornal com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Eram quantiasconsideráveis, mas aceitei. Além disso, teria de pagar-lhe outra quantia emdinheiro e comprometer-me a imprimir o Diário Carioca, gratuitamente,durante dois anos. De imediato, eu deveria conseguir trinta mil cruzeiros para assumir ocontrole da empresa que controlava a gráfica. O nome da empresa, Érica,ficaria famosos nos anos seguintes, durante a campanha com a qual meusadversários tentaram destruir-me. Só então fui ao encontro de Alzira, para relatar-lhe meus planos comrelação ao jornal e também o teor da conversa que tivera com Horácio deCarvalho. A filha de Getúlio aprovou inteiramente a ideia de criar um jornal,mas deixou claro que eu deveria encontrar os recursos sozinho.

– Se você conseguir, pode fazer – resumiu. Saí em busca de três pessoas que me emprestassem dez mil cruzeiros cada

uma, subscrevendo cotas de ações da Érica. Não tardei a encontrarfinanciadores. O primeiro deles foi Walter Moreira Salles, então um jovem

banqueiro em franca ascensão, que mais tarde construiria o impériofinanceiro liderado pelo Unibanco. Ele emprestara bastante dinheiro ao

Diário Carioca e tinha interesse na recuperação da empresa. Depois, entendi-me com Euvaldo Lodi, um poderoso empresário paulista sempre ligado à

cúpula da Federação das Indústrias, que ambicionava candidatar-se àsucessão de Getúlio. O terceiro foi Ricardo Jafet, então presidente do Banco

do Brasil. Lodi e Moreira Salles, cautelosos, subscreveram as ações, mas logo as

repassaram a terceiros, para evitar complicações futuras. Jafet também adotoutais cuidados, mas cometeu um escorregão que mais tarde criaria graves

problemas tanto para mim como para ele próprio. Em vez de entregar-mediretamente os dez mil cruzeiros, Jafet mandou que o Banco Cruzeiro do Sul,

pertencente à sua família, me emprestasse o dinheiro. Em seguida,redescontou esse título no Banco do Brasil e devolveu a quantia ao Cruzeirodo Sul. O futuro mostraria que se tratara de uma manobra irremediavelmente

infeliz. Obtidos os trinta mil cruzeiros, fechei o negócio com o Diário Carioca. Eu

já tinha uma oficina, mas ainda me faltavam recursos para fazer um jornal. Sóagora, nestas memórias, faço uma revelação que mantive em segredo durante

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toda a minha vida. Obtive a maior parte desses recursos junto a um homemque começava a crescer na cena política brasileira: Juscelino Kubitschek.

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CAPÍTULO 19

Procurei Juscelino a conselho do jornalista Carlos Medeiros Lima, umantigo integrante do Partido Comunista que mais tarde se tornaria biógrafo deTristão de Athayde. Medeiros Lima era muito bem relacionado em MinasGerais, e me acompanhou no encontro com JK em Belo Horizonte. Euconhecia Juscelino desde a década de 40, quando prefeito de Belo Horizonte,mas ainda não tínhamos a intimidade que se consolidaria nos anos seguintes.Ele acabara de assumir o cargo de governador, e algumas semanas antes eulhe havia conseguido uma audiência com Getúlio. JK recebeu-me com asimpatia de sempre. Expliquei-lhe meus projetos e a necessidade deconseguir recursos, ressalvando que qualquer ajuda que ele me prestassedeveria permanecer sob completo sigilo. – Caso contrário, toda a imprensa ficará contra você – preveni. Juscelino sabia dos riscos, mas não pareceu preocupado. – Tenho interesse em ajudá-lo – disse. – De quanto você precisa? Respondi que precisava de três mil contos, como poderia ter mencionadooutra cifra qualquer: eu não havia feito cálculos precisos para saberexatamente quanto teria de gastar na primeira etapa do jornal. Ele informouque determinaria a três bancos ligados ao governo que me dessem, cada um,mil contos. Os empréstimos sairiam em meu nome, com o aval de MedeirosLima. Eram evidentemente transações de caráter político, já que nem eu nemMedeiros Lima tínhamos condições financeiras de obter tanto dinheirodaquela forma. O pagamento seria feito em publicidade. Acabei demorandoquase vinte anos para saldar a dívida. Mineiros sabem esperar com paciência. Rapidamente, consegui na cervejaria Antártica um contrato de publicidade,acertei outro com o Serviço Social da Indústria, o SESI, onde Euvaldo Lodiera bastante influente. Descontei os dois contratos no Banco do Brasil,reunindo mais de oito mil contos. Somados ao que Juscelino me arranjara, erao suficiente, calculei, para que o jornal sobrevivesse por pelo menos quatromeses. Antes de viajar para Belo Horizonte, ainda em março de 1951, tratei dedesligar-me dos Diários Associados. O desligamento se deu numa penosa

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conversa com Assis Chateaubriand. Combinamos um almoço no ClubeInternacional, que ficava no 24o andar de um prédio na avenida Rio Branco, edividimos a mesa com vários potentados amigos do meu patrão. Terminado oalmoço, pedi-lhe que me acompanhasse até uma janela de onde se avistavatoda a avenida Presidente Vargas, ainda em construção. Perguntei-lhe seestava vendo um prédio de quatro andares no fim da avenida. – Sei, aquela caixa de fósforos – comentou Chateaubriand. Não entendi a comparação. – É que a rotativa deles só dá doze mil exemplares por hora – explicouChateaubriand. – Eles são loucos. Contei-lhe que acabara de comprar a caixa de fósforos, e que iria fazer umjornal para Getúlio. Ele me olhou com ar de espanto. – Na minha idade, o senhor não recusaria essa chance – emendei. – Desejo-lhe muitas felicidades – disse Chateaubriand. – Mas por que osenhor não compra os Diários Associados? O tom de voz e o olhar já traíam o ódio que ele começava a sentir por mim. – Compraria se o senhor viesse junto – retruquei. – Com o senhor junto,pago qualquer preço.– Não tem preço – cortou Chateaubriand. Subitamente, pareceu apaziguar-se. – Quero escrever um artigo despedindo-me do senhor – disse-me. – O títuloserá “O Repórter”. Vou lhe telefonar de madrugada, preciso de alguns dados. Chateaubriand fez-me então vários elogios, afirmando que via em mim orepórter que sempre quisera ser. Combinamos que, ao lado do seu artigo, euescreveria outro, despedindo-me do jornal. Às quatro horas da madrugada,conforme prometera, Chateaubriand telefonou, pedindo-me informaçõespessoais e dizendo que pretendia escrever seu artigo naquele momento. Nodia seguinte, só saiu publicado o artigo com minha assinatura, repleto deelogios aos Associados. Quanto ao texto prometido por Chateaubriand, nada.Ele jamais seria publicado. O primeiro artigo de Chateaubriand a meurespeito só sairia alguns meses depois, com um título que dá a medida exatado seu conteúdo: “O Ladrão ”. Mais tarde, ele alegaria que eu fora um ingrato, já que me custeara ainternação num sanatório para tuberculosos, continuara pagando meussalários e recebera, em troca, uma traição. São argumentos ridículos. Averdade é que, ao final de nossa conversa no Clube Internacional, ele vira emmim uma ameaça a seu império. Eu me havia transformado, portanto, num

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inimigo a destruir. Eu sabia que fundar um jornal fora dos grupos oligárquicos quecontrolavam a imprensa significava desafiar um poder desumano, aético,monopolizador, absolutista. Fui a Getúlio para, mais uma vez, preveni-losobre os perigos que nos aguardavam. Ponderei ao presidente que, como areação dos senhores da imprensa seria imediata e brutal, valeria a penaformar em torno do jornal uma espécie de cinturão social integrado pornomes da aristocracia brasileira. Todos seriam vice-presidentes da UH S.A.,denominação comercial da empresa, e poderiam neutralizar parcialmente ahostilidade das altas rodas sociais. Getúlio concordou, e comecei a convidá-los. Um dos vice-presidentes seria o jovem engenheiro Luís FernandoBocayuva Cunha, o futuro deputado Baby Bocayuva. Menino amado doCountry Club, Baby era genro do ministro Simões Filho e neto de QuintinoBocayuva, o célebre abolicionista e republicano. O segundo nome convidadofoi Carlos Holanda Moreira, neto de Plácido de Castro, o conquistador doAcre. O terceiro, Armando Daudt de Oliveira, pertencia a umatradicionalíssima família gaúcha. Finalmente, decidi incluir nesse meucinturão um padre, Antônio Dutra, ativo militante da política mineira. Tratei de precaver-me na parte administrativa contratando os serviços deuma administradora de empresas, uma novidade na época. Isso medesobrigaria de tarefas com as quais não tinha intimidade. Era umprofissional ousado, tinha audácia, mas me faltava experiênciaadministrativa. Livre dessas preocupações, concentrei-me no problema doequipamento e da montagem da equipe de redação. A rotativa, marca Duplex,não tinha capacidade de ir além de um caderno de doze páginas por vez e dosvinte mil exemplares de tiragem. Um equipamento off-set comprado porMacedo Soares nos Estados Unidos estava virtualmente reduzido a sucata.Mas eu confiava no meu instinto para superar tais dificuldades. E confiavatambém no meu talento para formar uma excelente equipe. Não tinha dúvidaalguma de que faria um grande jornal. Em fins de março, reuni o núcleo da equipe. Meu braço direito,naturalmente, era Octávio Malta, meu velho companheiro, a quem vinhafazendo sucessivas consultas desde a conversa com Getúlio em Petrópolis.Outro combatente de primeira hora era João Etcheverry. Também recrutaraAugusto Rodrigues, que considero o melhor chargista da história da imprensabrasileira, e mandara buscar em Buenos Aires um diagramador absolutamenteexcepcional chamado Andrés Guevara. Guevara, um paraguaio com feições

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de índio, era uma figura singularíssima. Usava só camisas de palha de seda,chapéu, fumava piteira – tinha o jeito típico dos boêmios que frequentavam obairro de La Boca, em Buenos Aires. Ele fizera uma revolução na imprensaargentina, modificando profundamente a fisionomia dos jornais daquele país.Guevara trouxe outros dois diagramadores argentinos, e começamos atrabalhar, ainda discretamente, no meu apartamento. Àquela altura, tínhamos o nome do jornal. Alguns anos antes, eu ouvira otítulo “Última Hora” do jornalista Carlos Eiras, secretário de redação doDiário da Noite. Eiras me contara que, entre 1917 e 1920, circulava no Riode Janeiro um jornal com aquele título, editado pelo diplomata PauloHasslocher. Com o fim do jornal, o título passara de mão em mão e acabarasendo registrado por outro diplomata, o embaixador Abelardo Rojas. Sósoube disso quando decidi utilizar o título. Depois de uma rápida pesquisa,descobri que já tinha dono. Combinamos um estratagema para adquiri-lo porum preço baixo: Baby Bocayuva, com seus traços de garoto, iria à procura doembaixador apresentando-se como estudante e pediria a cessão do título.Rojas concordou em passá-lo por uma quantia quase simbólica. Mais tarde,ao saber que o título se tornara meu, o embaixador tentou anularjudicialmente a transação. Não conseguiu. Na primeira noite em que se sentou conosco, Guevara desenhou em algunsminutos o logotipo. Depois, voltou-se para mim e decidiu: “Vou dar-lhe a cordos seus olhos.” As letras seriam azuis. Eu nem sabia que a velhaimpressora do Diário Carioca podia rodar um jornal em quatro cores. Àquelaépoca, só usavam cores dois jornais brasileiros: A Vanguarda, no Rio, e AGazeta, em São Paulo, ambos utilizando o vermelho. A criatividade eraintensa. João Etcheverry sugeriu um slogan que se tornaria célebre: “Umjornal vibrante, uma arma do povo”. Ofereci um prêmio em dinheiro a quemsugerisse o melhor título de seção. O vencedor foi Augusto Rodrigues, quepropôs “Na Hora H”; Guevara acrescentou ao título dois olhos imensos, umaideia genial. Sucederam-se noitadas inesquecíveis, ao longo das quais o jornal iatomando forma. Guevara desenhou um jornal com dezesseis páginas. Estava evidente queÚltima Hora seria um jornal marcadamente político e favorável a Getúlio,embora sempre pronto a criticar membros do governo. Decidi que teríamosmuitos colunistas e abordaríamos assuntos habitualmente desprezados pelaimprensa – esporte e polícia, por exemplo. Mas não havia uma receita

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definida com clareza. Teríamos de descobrir com o tempo – pouco tempo –qual era o caminho do sucesso. Em meados de junho, a equipe estava completa. Recrutei em São Paulo umrespeitado secretário de redação, Nabor Caíres de Brito, outro comunistahistórico. Paulo Silveira, irmão de Joel Silveira, seria uma espécie de chefede reportagem. Contratei toda a família de Mário Rodrigues, pai de NelsonRodrigues. Paralelamente à montagem da equipe, procurei deixar claros osvínculos entre o jornal e Getúlio. Na relação dos acionistas da empresa, porexemplo, figuravam vários parentes de Vargas. E o presidente da Érica era oembaixador em Washington, Carlos Martins Pereira de Souza. Composta a redação, começamos a tratar do lançamento. A Última Horaainda não circulava, mas eu já colhera inúmeros sinais de que a luta seriaduríssima. Os outros jornais acompanhavam nossa movimentação com olhoshostis, prontos para o cerco. Eu era um estranho naquele mundo aristocrático,e eles fariam rigorosamente tudo para expelir-me. No Brasil dos anos 40 – e assim seria também na década seguinte –, o clubeda imprensa era extremamente restrito, franqueado a umas poucas famíliaseleitas. No Rio Grande do Sul, reinava o Correio do Povo, comandado pelojovem Breno Caldas. No Paraná e em Santa Catarina, como em quase todosos outros Estados, não havia jornais importantes. Em São Paulo, o “Estadão”,da família Mesquita, já era hegemônico, embora também tivessem influênciaA Gazeta, do velho Cásper Líbero, e o tradicional Correio Paulistano, quefora o porta-voz do Partido Democrático, controlado pelo grupo de FranciscoMorato. No Nordeste e no Norte, só tinham algum peso A Tarde, da Bahia,pertencente à família Simões, o Jornal do Commercio, de Pernambuco,controlado pelos Pessoa de Queiroz, e O Liberal, do Pará. Mas os grandesjornais brasileiros, os que realmente contavam, eram editados no Rio deJaneiro. O maior deles era o Correio da Manhã, o poderoso feudo de PauloBittencourt, seguido pelo Diário de Notícias, da família Dantas. O Globoainda alcançava repercussão reduzida, e o Jornal do Brasil não passava deum catálogo de classificados. Havia vários outros jornais, e alguns delestinham boa penetração, mas não se podia compará-los de modo algum com oque representavam os grandes, sobretudo o Correio da Manhã. Nos anosseguintes, o Brasil assistiria à escalada dos Diários Associados, liderados porAssis Chateaubriand, que conseguiu ingressar no fechado clube dos donos daimprensa e tornar-se um de seus mentores. Havia veementes indicadores de

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que meu ingresso nesse grupo de privilegiados seria muito mais difícil. Minha chegada ao clube, afinal, representava a queda de vários tabus – acomeçar pela minha origem de menino pobre do Bom Retiro. Outro tabu eraque, no Brasil, ao contrário do que ocorre em países civilizados, o jornal era avoz do seu dono. Sempre foi assim, é assim ainda. O “Estadão”, por exemplo,reflete os humores, idiossincrasias, valores e preconceitos dos Mesquita. AFolha de São Paulo é a família Frias, O Globo é Roberto Marinho, o Jornaldo Brasil é a família Nascimento Brito. No começo dos anos 50, essadistorção era ainda mais acentuada. Trata-se de uma distorção que ocorrecom mais frequência e nitidez nos países sem tradição de partidos fortes. NosEstados Unidos, por exemplo, um leitor do New York Times sabe que ojornal em geral se alinha com as teses do Partido Democrata, da mesmaforma que um leitor inglês tem consciência de que determinadas publicaçõesrefletem os pontos de vista do Partido Trabalhista ou do Partido Conservador.Nesses países, os leitores não são ludibriados. No Brasil é diferente. Por trásda aparente independência que ostentam, já que não são ligados a partidos, osjornais são o que seus donos desejam que sejam. A Última Hora representariauma exceção a essa regra, na medida em que pretendia transformar-se naexpressão do getulismo. Evidentemente, eu influiria na linha do jornal, masele não obedeceria exclusivamente a meus interesses, impulsos, ódios eamores, como acontecia, por exemplo, com o Correio da Manhã. Paulo Bittencourt tinha um poder equivalente ao dos barões feudais daIdade Média, até porque o Brasil daqueles tempos abrigava uma sociedadecolonial, desprotegida, indefesa. Para a massa popular, repleta de analfabetos,a imprensa era algo inacessível, misterioso, poderosíssimo. “Saiu no jornal”,dizia-se, num tom de quem afirma uma verdade incontestável, irremovível.Era natural que, na sociedade dirigente, o dono do jornal tivesse status demarajá. A imprensa era tratada como uma parcela do Olimpo, fenômeno quealiás se manifesta ainda hoje e abrange também repórteres. Quando umjornalista leva uma surra, o mundo vem abaixo. Mas a indignação éinfinitamente menor se quem apanha é, por exemplo, um líder operário. Nosanos 50, essa postura imperial da imprensa era muito mais aguda, e não háninguém melhor que Paulo Bittencourt para ilustrá-la. Ele era um aristocrata, educado em Oxford, refinadíssimo, extremamentecosmopolita. Tinha uma cultura culinária de fazer inveja a qualquer gourmet,era um homem que lia muito. Herdara o jornal de seu pai, EdmundoBittencourt, que lhe legara também uma corte formada por velhos políticos e

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jornalistas, liderada pelo senador Costa Rego, redator-chefe do Correio daManhã por quase quarenta anos. A certa altura da vida, Paulo apaixonou-sepor Niomar Muniz Sodré, que abandonou o marido, pertencente a uma velhafamília baiana, para viver com o dono do Correio da Manhã. Como não haviadivórcio, eles não podiam se casar. Mas Niomar, mulher caprichosa, nãoqueria que os dois se hospedassem nos grandes hotéis internacionaisapresentando passaportes com sobrenomes diferentes. Pois Paulo Bittencourtconseguiu que o Itamaraty dispensasse sua mulher da apresentação daindispensável certidão de casamento e lhe desse um passaporte novo emnome de Niomar Muniz Sodré Bittencourt. Não parou aí. Em seguida, PauloBittencourt resolveu que o filho do primeiro casamento de Niomar deveriaser entregue à mãe, embora ela tivesse abandonado o lar e perdido, portanto,esse direito. Estávamos em plena ditadura do Estado Novo e Paulo divergiade Getúlio, mas se entendia bem com Benjamim Vargas. O dono do Correioda Manhã pediu ajuda ao irmão do ditador, e Benjamim resolveu a questão àsua moda: mandou a polícia sequestrar o ex-marido de Niomar e aplicar-lheuma surra inesquecível. O pai achou prudente entregar rapidamente a criança. Quando ainda era repórter dos Diários Associados, eu frequentava a casa dePaulo Bittencourt. Em março de 1951, estávamos em sua casa quando elesoube que eu pretendia fundar o jornal. Lembro-me de que, nessa conversa,Paulo foi sarcástico, irônico, mas ainda assim tive a impressão de que ele nãome hostilizava. Enganei-me. Quando se fechou o cerco à Última Hora, PauloBittencourt estava entre os que exigiam a exclusão do intruso. Alguns anos depois, quando lancei a Última Hora no Rio Grande do Sul,tive um incidente bastante revelador. Meus adversários sustentavam a tese deque eu só conseguira fundar um jornal por ter recebido ajuda do Banco doBrasil. Na cerimônia de lançamento da Última Hora gaúcha, embrião da atualZero Hora, o jornalista encarregado de me saudar encampou indiretamenteessa tese. No discurso, ele afirmou que eu tinha revolucionado a imprensabrasileira, mas fez uma ressalva pouco elegante: “... é verdade que com aajuda do governo federal”. Fiquei aborrecido e resolvi retrucar em meudiscurso de agradecimento. Nunca fui orador, ficava trêmulo quando forçadoa falar em público. Mas eu precisava devolver aquela farpa. Expliquei que oauxílio a que aludira o jornalista gaúcho fora muito menor do que seimaginava, lembrei que tivera de utilizar máquinas velhas, historiei asdificuldades que cercaram o lançamento de Última Hora. Mas observei, emtom irônico, que não dizia aquilo para me explicar – nada disso. O que eu

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queria era aconselhar a todos que me ouviam que se tornassem donos dejornal. “Não há nada melhor no Brasil”, afirmei, e passei a oferecer exemplosferinos, sem mencionar nomes. Não era necessário: todos sabiam de quem eufalava. “Um dono de jornal pode ser alcoólatra e será tratado pela sociedadecomo homem sóbrio”, exemplifiquei. Era Paulo Bittencourt. Pode ser umassassino, e será recebido como cidadão respeitável. Era Tenório Cavalcanti,dono da Luta Democrática. Pode ser um gângster, e será encarado comoexemplo de austeridade. Era Assis Chateaubriand. Enfim, pintei o dono dejornal como uma pessoa acima do bem ou do mal, fora do alcance da lei. Eranesse clube que eu tentaria entrar em 1951, sem saber com precisão o que meaguardava. Desse clube já fazia parte Carlos Lacerda. Ele fundara a Tribuna daImprensa em dezembro de 1949 e se juntara ao círculo dos donos de jornaissem grandes problemas, basicamente por duas razões. Primeiro, porqueestava evidente desde o início que a Tribuna da Imprensa jamais seria umagrande publicação. Depois, porque Lacerda há muitos anos defendia, econtinuaria a defender, os interesses e pontos de vista dos barões daimprensa. Estava longe, portanto, de ser um estranho naquele meio. Lacerda sabia polemizar, tinha uma riqueza verbal avassaladora, mas nãoera um grande jornalista, na medida em que desconhecia setores vitais daatividade profissional. Gostava de passar horas sentado diante da máquina deescrever, datilografando furiosamente, mas nunca se interessou, por exemplo,em conhecer por dentro uma oficina. Tampouco sabia cuidar de uma primeirapágina, escolher a melhor foto, retocar uma diagramação. De qualquer forma,ele conseguiu forjar uma imagem de grande jornalista. Tanto assim que, nosanos 40, foi convidado por Assis Chateaubriand para dirigir a Meridional, aagência de notícias dos Diários Associados. Chateaubriand pretendia, numaetapa seguinte, passar-lhe a tarefa de reformar os jornais da cadeia. MasLacerda não se deu bem na Meridional e o plano foi esquecido porChateaubriand. Ele fixou essa imagem de grande jornalista sobretudo quando passou aintegrar a equipe de articulistas do Correio da Manhã. Era uma equipefamosa, em que brilhavam com especial fulgor os articulistas que escreviamna segunda página e os responsáveis pelos editoriais da quarta página.Lembro-me de que, certa vez, Getúlio me disse que não conseguia ficar sem aleitura da quarta página do Correio da Manhã – a geração de políticos a que

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ele pertencia fora estreitamente influenciada pelos artigos do jornal de PauloBittencourt. Lacerda escrevia uma coluna na segunda página cujo título era“Tribuna da Imprensa”. Em 1949, em consequência de um desentendimentocom Paulo Bittencourt, deixou o Correio da Manhã, mas levou o título daseção. Imediatamente, seus amigos da direita brasileira se mobilizaram paraque Carlos Lacerda tivesse o seu próprio jornal. Tristão de Athayde, por exemplo, publicou no Correio da Manhã um artigocom o título “Um jornal para Carlos”. O tom era de quem pedia um exércitopara Napoleão. Carlos já se tornara a menina dos olhos da direita brasileira,era adorado por dom Hélder Câmara, venerado por Tristão de Athayde.Ambos haviam tido passagens pelo integralismo, mas seu entendimento comPlínio Salgado nunca fora completo. Plínio Salgado era a extrema direita, ochefe da sucursal do nazifascismo, algo já superado. Lacerda era diferente.Ele encarnava a direita consciente, ideológica, mais civilizada, de colarinhobranco e inclinações religiosas. Nesse artigo, Tristão de Athayde sustentou a tese de que o Brasil nãopoderia dar-se o luxo de permitir que Lacerda ficasse sem um jornal, eanunciou o lançamento de uma campanha de arrecadação de fundos. Assubscrições foram feitas nas portas das igrejas, e o dinheiro começou a surgir.Naturalmente, havia acionistas mais poderosos, políticos ligados à UDN,empresários vinculados aos interesses americanos. Mas o fato é que aTribuna da Imprensa nasceu pelas mãos da direita católica. Do conselhodiretor faziam parte, por exemplo, nomes como os de Tristão de Athayde,Sobral Pinto e Dario de Almeida Magalhães. Antes de fundar seu jornal, quando escrevia no Correio da Manhã, Carlosnão perdia chances para me atacar. Já era notório que não gostava de mim –aliás, parecia não gostar da humanidade em geral –, e estava evidente que oslaços da amizade que mantivemos na adolescência jamais seriam reatados.Com a Tribuna da Imprensa, a intensidade e a frequência dos ataquesaumentaram. Eu procurava ignorá-los, por considerar seu autor um policial,um delator, a expressão mais nefanda da direita brasileira. Quando a ÚltimaHora nasceu, o ódio de Lacerda por mim exacerbou-se dramaticamente. Vejo aí algumas razões de claro fundo psicológico. Em seu livro dememórias, Carlos, embora reconhecendo que eu era um homem muitointeligente, muito charmoso, insiste na tese de que eu possuía uma ignorânciamonumental. Para ele, não saber de cor trechos de Leon Tolstoi era ser umignorante irremediável. Eu era autodidata, e Carlos não podia aceitar que

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alguém com a minha biografia fizesse sucesso. Essa frustração foi agravadapela medíocre trajetória da Tribuna da Imprensa, cuja tiragem sempreoscilaria em torno de quatro, cinco mil exemplares. O jornal de Lacerda foisempre um desastre. Sua circulação só subia um pouco nos momentos decrise, ou quando o dono era preso. A Tribuna é conhecida, na imprensabrasileira, como um jornal que jamais chegou a existir efetivamente. Desde ocomeço, mostrou um desprezo invencível por tudo quanto fosse popular –futebol, por exemplo. Teve, enfim, um mau começo e um mau destino. Quando a Última Hora nasceu, Carlos Lacerda foi assaltado por um ódioferocíssimo, permanente. Era preciso destruir meu jornal, sob o pretexto deque a Última Hora representava uma ameaça à imprensa brasileira. Na linhade raciocínio de Lacerda, era preciso provar que a Última Hora receberairregularmente dinheiro do governo, para liquidar o jornal e, em seguida,destruir Getúlio Vargas. Ele não me faria mal algum, entretanto, se contasseexclusivamente com seu próprio jornal – a Tribuna da Imprensa nãoencontrava ressonância, era uma ficção jornalística. O problema é queLacerda logo seria auxiliado por Assis Chateaubriand, que lhe franquearia oacesso à TV Tupi, e por Roberto Marinho, que pôs a Rádio Globo à suadisposição. No seu livro de memórias, por sinal, Lacerda afirma que, aoreceber esse tipo de ajuda, sentiu-se invencível. Eu devo a minha projeção histórica, basicamente, a três fatos. O primeirofoi ter resgatado na fronteira gaúcha um homem que chegaria à Presidênciada República nos braços do povo. O segundo foi ter encontrado um inimigocomo Carlos Lacerda. O terceiro, que só mais tarde eu compreenderia emsuas reais e enormes dimensões, foi ter criado um jornal tão revolucionárioque sobreviveria a campanhas de extermínio e crises de todos os tipos. Eunão vislumbrei a brilhante trajetória que a Última Hora teria no dia dolançamento do jornal. O lançamento foi planejado para fazer de Última Horauma esplêndida novidade. Mas o dia em que o jornal saiu às ruas pelaprimeira vez – 12 de junho de 1951 – marcaria um dos mais retumbantesfracassos de minha vida.

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CAPÍTULO 20

A campanha de divulgação que precedeu o lançamento do jornal foiorganizada por João Etcheverry, superintendente da Última Hora. Umaesplêndida figura. Em 1935, ainda como bancário, ele participara da rebeliãocomunista. Depois, trabalhou como jornalista em algumas publicaçõesradicais. Etcheverry foi um dos responsáveis diretos pela explosão da ÚltimaHora no mundo da imprensa brasileira, graças sobretudo à sua vibraçãopermanente. Era, essencialmente, um homem vibrante. E, apesar do seurefinamento, tinha uma notável percepção da alma popular. Meio francês,meio basco, era dono de um temperamento extremamente romântico. Essasvirtudes contribuiriam para que nos tornássemos muito amigos. Minhaligação com Etcheverry seria de completa intimidade. Ele às vezes mepassava pitos incríveis, censurava-me certas atitudes como só os grandesamigos podem fazer. Embora fosse um pouco prolixo, Etcheverry escrevia maravilhosamente.Mas era muito mais que um jornalista – na verdade, ele foi uma das almas dojornal, e a mais vibrante entre todas, conforme demonstrou na campanha delançamento. Fez coisas inesquecíveis. No topo de um dos mais altos prédiosna praia do Flamengo, por exemplo, Etcheverry colocou uma enorme faixacom duas palavras: Última Hora. Depois, conseguiu que cada teatro do Riode Janeiro reservasse um minuto do espetáculo para anunciar o iminentesurgimento da Última Hora, “o jornal do povo que iria nascer”. Ele tinha uminacreditável poder de mobilização. Organizou desfiles de misses, fez umbarulho terrível. Assim, à medida que se aproximava o dia do lançamento,crescia a ansiedade nacional pela aparição da Última Hora. Decidimos que os exemplares do jornal seriam entregues diretamente àsbancas dos jornaleiros, uma novidade revolucionária para a época, ecompramos oito caminhonetes. Para dar a impressão de que a frota era muitomaior, pintamos números altos na lataria – 36, 42 e assim por diante. A 12 dejunho de 1951, quando a primeira edição da Última Hora finalmente chegariaàs ruas, Etcheverry teve outra ideia: fez as caminhonetes desfilarem pelaavenida Rio Branco e pela avenida Atlântica, num cortejo que deixou aindamais inquietos nossos concorrentes.

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A edição deveria estar impressa às onze e meia da manhã. A redaçãofervilhava desde cedo, todos envoltos numa tensa expectativa. Então,constatamos que a rotativa claudicava. A certa altura, ainda pela manhã, amáquina funcionou e rodou o primeiro exemplar da Última Hora. Muitoemocionado, tive um acesso de choro. A rotativa pifou novamente, parafuncionar aos arrancos algum tempo depois. Foi assim durante praticamente odia inteiro, e só às oito da noite a edição ficou pronta. Um completo desastre.Àquela hora, o que fazer com a tiragem de oitenta mil exemplares? Era umacifra impressionante para a época, já que os grandes jornais oscilavam emtorno dos sessenta ou setenta mil. Como havia um jogo noturno no Maracanã,decidimos distribuir a edição à saída do estádio, e mergulhar na edição do diaseguinte. O jornal tivera um parto sobressaltado, mas tive a intuição de que ocorreraum lançamento histórico. Em vez do previsível editorial de apresentação, aprimeira página trazia uma carta de Getúlio Vargas para Samuel Wainer. Eupedira a Getúlio que escrevesse a carta, decidido a vincular o jornal desde oberço ao presidente eleito pelo povo. “Meu caro amigo Samuel Wainer”,começava a carta, que depois se estendia em considerações sobre o conceito ea importância de uma imprensa popular. Jamais, em qualquer país do mundo,um jornal fora apresentado aos leitores por um presidente da República.Descobri mais tarde que, lamentavelmente, parte da carta fora escrita porLourival Fontes, então chefe da Casa Civil. De qualquer forma, Vargas aassinara como se a tivesse escrito por inteiro, e o texto resumia o que deveriaser um jornal moderno. No outro dia, tiramos quarenta mil exemplares e vendemos pouco mais deoito mil. Seria assim também nas edições seguintes. Fiquei assustado, atéporque senti que o jornal não estava bem, embora tivesse coisas boas, quelogo alcançariam enorme sucesso. Uma delas era a grande foto na primeirapágina, que se tornaria uma das marcas registradas da Última Hora. Outra eraa seção “O Dia do Presidente”. Eu resolvera colocar ao lado de Getúlio,durante o dia inteiro, o jornalista Luís Costa, um dos meus mais importantesredatores. Os leitores imediatamente compreenderam que aquela era a únicajanela disponível para a contemplação do cotidiano de Getúlio, já que todosos outros jornais haviam aderido à conspiração do silêncio. Graças a “O Diado Presidente”, aliás, o cerco foi rompido: fustigada pelos sucessivos furosobtidos pela Última Hora no Palácio do Catete, a grande imprensa teve derender-se à evidência de que não lhe seria possível seguir ignorando a figura

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de Getúlio Vargas. Havia, portanto, coisas boas em meu jornal, mas eu aindanão encontrara a receita do sucesso. Foram dias de enorme aflição. Eu passava dias e noites na redação, dormialá, almoçava lá, jantava lá. Tinha medo de perder o apoio de Getúlio – afinal,o instrumento que eu lhe prometera não estava funcionando com a desejadaeficácia. Ele continuava a tratar-me com muito carinho, mas eu sabia que jácomeçavam a tentar intrigar-me com o presidente. Sabia que alguns de seusauxiliares apressavam-se em transmitir-lhe informações sobre a situaçãodifícil da Última Hora. Mais tarde, eu aprenderia que os grandes jornaissempre têm uma infância difícil, complicada. Naquele momento, porém, eususpeitava de que caminhávamos para o fracasso irremediável. A Última Hora foi salva pela conjugação de vários fatores – muitotrabalho, enorme dedicação, bastante talento –, mas nenhum deles pesou tãodecisivamente quanto a criatividade. Começamos a lançar seções novas,colocamos notícias esportivas e policiais na primeira página, ousamospermanentemente. Dessa forma, lentamente, fomos descobrindo os caminhosque levam aos leitores, e iniciamos uma lenta ascensão, cujo potencial nossosconcorrentes não souberam avaliar a tempo. Nesse período, os outros jornaisnão me atacavam. Preferiam zombar do judeuzinho que tivera a pretensão deocupar seu próprio espaço na imprensa brasileira. Hoje, ao fazer um balanço daqueles primeiros tempos, constato que escapeia uma notável sucessão de perigos. Apesar das debilidades da naturezahumana, consegui inventar um jornal que resistiu a tudo quanto o poder incitae estimula – a corrupção pessoal, a corrupção intelectual, a corrupção social.Mas esta é outra história, de que trataremos adiante. Em meados de 1951, eutinha de descobrir que espécie de jornal, afinal, o Brasil desejava. Os ingredientes da receita do sucesso se foram juntando aos poucos, equase todos resultaram do instinto jornalístico que a equipe da Última Horaindiscutivelmente possuía. A criação da seção “O Dia do Presidente” porexemplo, foi considerada genial mesmo por meus adversários. Essa seçãomudou para sempre os critérios que orientavam a cobertura do que ocorria nasede do governo. Desde os tempos do Departamento de Imprensa ePropaganda, o DIP, que remetia aos jornais as notícias que interessavam aogoverno e proibia a divulgação de tudo quanto considerasse inconveniente,desaparecera o hábito da busca de informações no próprio palácio. Além domais, como já frisei nestas memórias, os jornais pretendiam manter-se decostas para Getúlio, ignorando-o e a seu governo. Pressenti que havia no

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Catete um grande filão a explorar – e acertei. “O Dia do Presidente”, que criei inspirado em colunas que vira na imprensaamericana, era publicado na página 3. A seção invariavelmente traziainformações precisas, historietas humanas, acontecimentos engraçados,eventualmente furos. O responsável por ela, Luís Costa, um talentosojornalista piauiense que morreria muito moço, entrava no Palácio do Catete àsoito da manhã e só voltava à redação quando o jornal estava no limite dohorário para fechamento da edição. A seção foi publicada diariamente até odia do suicídio de Getúlio Vargas – naquele momento, decidimos extingui-la.Ao desaparecer, ela já se transformara numa “instituição nacional”, conformea chamara o Correio da Manhã num editorial publicado meses depois decriado “O Dia do Presidente”. Esse editorial oficializou a consagração de uma seção que àquela altura jáalcançava enorme sucesso. Os leitores compravam o jornal e corriam àterceira página. Políticos ofereciam fortunas a Luís Costa para ter seu nomeali citado, ministros e parlamentares se confessavam admiradores da seção,ninguém duvidava de que ali estava um termômetro preciso do que sepassava no palácio. Em pouco tempo, os jornais se renderam às evidências epassaram a cobrir o Catete. Alguns chegaram a criar versões de “O Dia doPresidente”, e o cerco do silêncio afinal se rompeu. Encerrava-se aí aprimeira parte da minha tarefa: provocar a imprensa até obrigá-la a enxergar aexistência do governo Getúlio Vargas. Havia outras seções já adotadas sem restrições pelos leitores. Uma das maisbem-sucedidas era “Na Hora H”, com notas curtas e sempre quentes, assinadapor Jacinto de Thormes. Repórteres como Edmar Morel começaram a tornar-se figuras nacionais. Os editoriais, redigidos por Octávio Malta – eu aindanão me sentia suficientemente seguro para escrevê-los –, tinham pesocrescente. A cobertura internacional ganhou consistência, introduzimos umacoluna sindical que logo se tornou importante. Três meses depois dolançamento, podíamos respirar sem tantas dificuldades. A tiragem começou acrescer e, em poucas semanas, chegamos aos dezoito mil exemplares. Lembro-me perfeitamente do dia em que alcançamos essa marca. O chefeda oficina da Última Hora era o célebre Raimundo Português, uma figuralendária da imprensa. Tuberculoso crônico, anarco-sindicalista, RaimundoPortuguês assistira ao nascimento e, muitas vezes, à morte de dezenas dejornais. Era, decididamente, um homem do ramo e conhecia seu ofício comopoucos. Nesse dia, ele acercou-se de mim para uma observação que jamais

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esqueci: – Seu Samuel, o jornal está começando a ficar vitorioso. No Brasil, jornalque passa dos quinze mil exemplares virou macho. Senti-me extremamente aliviado ao constatar que saíra dos tempos desufoco. Mas não me bastava: eu queria um jornal de massa, prometera aGetúlio e a mim mesmo um jornal de massa. Isso, até aquele momento, aÚltima Hora não era. O sonho do jornal de massa começou a materializar-se graças a uma ideiamagnífica de João Etcheverry. Num dia qualquer, Etcheverry sugeriu-me que,em vez de um único caderno com doze páginas, como fazíamos até então,publicássemos dois cadernos com oito páginas cada um. O primeiro caderno,que seria rodado por volta das sete horas da manhã, conteria as seçõesconvencionais – política, economia, internacional, assuntos nacionais etc. Osegundo caderno, que rodaria antes, por volta das três da madrugada, seriareservado a assuntos mais amenos, como esportes e divertimentos. Poderiatambém abrigar, como sugeriu Etcheverry, reivindicações populares. Reivindicações populares seriam as palavras-chave do estrondoso sucessodo segundo caderno, graças a mais uma das providenciais coincidências quemarcaram a vida da Última Hora. Quando estávamos tratando de dar forma àfeliz sugestão de Etcheverry, apareceu na redação um tipo pitoresco,chamado Renato Correia de Castro, halterofilista e funcionário do Ministérioda Agricultura. Como tinha algum tempo de sobra, queria um emprego nojornal – trabalhar na imprensa, naquela época, era considerado um bico.Etcheverry decidiu providenciar uma mesinha para Renato e designá-lo paraatender a populares interessados em fazer alguma reivindicação ou algumaqueixa. Nosso novo funcionário adotou o pseudônimo de “Marijô”, emhomenagem a duas namoradas, Maria e Josefa. E começou a fazer suasanotações numa linguagem extravagante, utilizando de modo pouco ortodoxoa letra K. “Ke Koisa!”, escrevia Marijô ao registrar um fato qualquer.Etcheverry achou que deveríamos criar uma seção com o nome de “Fala oPovo” e usar no texto a peculiar linguagem de Marijô. Foi uma explosão. Iampara o céu, na seção, os benfeitores do povo, e para o inferno, seus inimigos.“Hoje vai pro inferno o diretor de tal repartição porque mandou cortar a luzde fulano”, decidia, por exemplo, Marijô. A comunicação com os leitores foiimediata e total. As inovações não paravam. Um dia, meu chefe de gravura, CarlosNicolaievsky, que fazia milagres com minha primeira rotativa, fez-me a

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sugestão: – Vamos publicar a foto do time do Fluminense em cores? O Fluminense acabara de conquistar o título de campeão carioca. Fiqueiperplexo com a sugestão. – É impossível – retruquei. Eu não sabia que nosso equipamento poderia imprimir uma foto em quatrocores. – É possível, sim – insistiu Carlinhos Nicolaievsky. Dei-lhe o sinal verde e, pela primeira vez na história da imprensa brasileira,a foto colorida de um time de futebol saiu na primeira página de um jornal. Aedição esgotou-se rapidamente e eu descobri a cor, que seria um dosingredientes mais picantes da receita de sucesso da Última Hora. A ousadia era uma característica da Última Hora tanto no plano da redaçãoquanto na parte técnica. Comecei a preocupar-me com a rotativa. Ela foraidealizada para rodar três mil exemplares por hora, mas estava rodando dozemil. Era um milagre, uma ajuda dos céus que a qualquer momento poderiafaltar-nos. Como a rotativa tinha duas bocas, tirávamos de uma o primeirocaderno e, da outra, o segundo. Era muita coisa para uma máquina só. Acheiconveniente arranjar-lhe companhia. Fui ao Banco do Brasil e consegui 22mil cruzeiros. Com o dinheiro, consegui uma nova rotativa, equipei a oficinacom mais linotipos e montei um requintado laboratório fotográfico. Olaboratório ficou sob o comando de Roberto Maia, um dos únicosprofissionais que eu trouxera dos Diários Associados – o outro fora AugustoRodrigues. Maia pode ser considerado o pai da moderna fotografia brasileira.Tinha um talento excepcional, e ajudou-me a valorizar o uso de fotosjornalísticas como nenhuma outra publicação fizera antes. O empréstimo que levantei no Banco do Brasil fora perfeitamente legal,embora deixasse margem a que me acusassem de favorecimento. Aindaestávamos em 1951, e os ataques à Última Hora, apesar de frequentes, nãohaviam adquirido o tom hidrófobo que assumiriam mais tarde. O dinheiroque eu obtivera no Banco do Brasil adensou as nuvens da tempestade. Meusconcorrentes começaram a suspeitar de que os cofres federais, sempregenerosos para com eles, poderiam restringir-se a beneficiar exclusivamente aÚltima Hora. Mais grave ainda, os donos dos outros jornais já haviam notadoque a Última Hora ganhava solidez e ameaçava o império. O tempo dasironias passara; agora, eles me temiam. Apesar das farpas que os concorrentes frequentemente soltavam contra

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mim, dos ataques infundados, das insinuações perversas, continuei a circularentre os donos de jornais ao longo de 1951. Eu me considerava, naqueleclube, um hóspede tolerado. Fazia parte do sindicato dos patrões, mas evitavafrequentá-lo; quando havia alguma reunião importante, a Última Horaenviava como representante o Baby Bocayuva. A distância que me separavade meus supostos parceiros, uma distância notável desde o começo, foi-seampliando à medida que ficava evidente a diferença entre nossos caminhos.Meu comportamento sempre irritou os sócios do clube. Resolvi, por exemplo,investir na redação, um pecado mortal para homens habituados a aplicar emoutras frentes e atividades os lucros que extraíam dos seus jornais. Quando a Última Hora foi lançada, meus concorrentes não gostaram desaber que havia nas paredes três painéis de Di Cavalcanti, especialmenteencomendados por mim. Também não gostaram de saber que eu mandarafazer mesas especiais para os redatores, móveis de muito bom gosto. Paraaumentar a aflição dos concorrentes, eu decidira inflacionar os salários dosjornalistas da Última Hora, pagando salários muito acima dos padrões daépoca. Mas nada foi mais irritante para os donos dos outros jornais que asolução que encontrei para resolver o problema do suprimento de papel. Durante algum tempo, tive de comprar papel no mercado negro. Naquelaépoca, a produção brasileira de papel era insignificante, e o país tinha noCanadá seu único fornecedor. Durante a Segunda Guerra, o Brasil deixara dereceber papel de suas fontes habituais, todas baseadas na Escandinávia, epassara a recorrer ao Canadá. Alguns anos depois, os donos dos jornaisbrasileiros descobriram que a Escandinávia poderia voltar a supri-los a preçosmais baratos, e resolveram romper os contratos assinados com os canadenses,a menos que estes concordassem em reduzir o que cobravam. O Canadálimitou-se a repassar para os Estados Unidos os excedentes gerados pelaatitude brasileira e a colocar o nosso país na lista negra dos maus devedores.Pouco depois que o Canadá deixou o mercado, os escandinavos elevaram opreço do papel. Como os brasileiros figuravam na lista negra dos canadenses,ficamos em má situação. Eu ainda comprava o produto no mercado negro, porque a quota a que teriadireito não fora oficializada, quando recebi um recado de meu amigo JoãoAlberto, que então cuidava dos interesses comerciais do Brasil junto aoCanadá. João Alberto contou-me que havia sido procurado por representantesde um grupo de judeus americanos que trazia uma proposta interessante. Essegrupo acabara de comprar uma fábrica de papel no Canadá e, como se julgava

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sem compromissos com os demais produtores, estava disposto a vender abrasileiros. Aquela notícia caíra do céu. Comuniquei a João Alberto que aproposta me interessava bastante. Dias depois, fui procurado por um gregocuja figura se encaixava à perfeição no perfil do especulador internacional.Ele informou que poderia fornecer-me papel a preços bastante inferiores aosdos escandinavos, mas o contrato deveria ter a duração de cinco anos. Seriamcinco milhões de dólares, um milhão por ano. Concordei. Havia outra exigência: seria necessário conseguir a garantia cambial doBanco do Brasil. Ou seja, eu depositaria a quantia correspondente emcruzeiros no banco, que faria a conversão em dólares e consumaria opagamento aos meus fornecedores. Fui a Getúlio explicar-lhe os detalhes donegócio, mostrando-lhe que aquela compra de papel canadense poderia forçara baixa geral de preços no mercado. Ele não entendeu bem do que se tratava,mas me autorizou a procurar o presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet.Jafet concordou com o negócio e comprei o papel canadense. Essa transaçãocom o banco me traria enormes problemas no futuro. Não houvera nenhumairregularidade na obtenção da garantia cambial, mas Carlos Lacerdaimediatamente começou a difundir a tese de que eu fora financiado peloBanco do Brasil. A tempestade em formação, de qualquer maneira, só desabaria sobre mimno início de 1952. Tive problemas em 1951, mas cheguei ao final dedezembro com a sensação de que vivera um ano extraordinariamentepositivo. (carta de Getúlio Vargas publicada no primeiro número de Última Hora: Rio de Janeiro, 1º de Junho de 1951. Prezado amigo Samuel Wainer Venho agradecer-lhe a carta que me enviou e na qual me comunica opróximo lançamento do seu jornal “A ÚLTIMA HORA”. Fazendo votos pelocompleto êxito desse empreendimento, que há de constituir, por certo, umnovo marco de progresso na imprensa brasileira, apraz-me dizer-lhe quemuito espero de um jornalista do seu valor, sereno, inteligente, objetivo,sempre capaz de bem escolher os assuntos, expô-los com clareza,simplicidade e elegância, sentindo o que diz e sabendo dizer o que sente. Na

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realidade, gosto de ser interpretado, combatido, discutido ou louvado porespíritos isentos e desinteressados – que sabem enaltecer, nos homenspúblicos, os atos merecedores de elogio, criticar, quando precisam seresclarecidos ou corrigidos, ou censurar quando são reprováveis ou errôneos. Quem quer que exerça uma parcela de atividade pública aprecia sempre acrítica de imprensa, quando esta se faz com lealdade e com o propósitosincero de esclarecer ou corrigir. O que nos fere é a desleal e mal-intencionada deturpação dos fatos, é o premeditado silêncio quando algoexiste que merece incitamento e louvor. Há os que confinam o exercício daprofissão à prática dum sacerdócio. Mas existem também, como exceçõesdeprimentes e irreconciliáveis com o nosso ambiente político, os que fazemda imprensa um instrumento suspeito de mercantilismo e de venalidade, osque se especializam na invectiva desabrida, os que se abastardam nalinguagem da intriga e da calúnia, os que deturpam os fatos ao sabor da suaimaginação pervertida e os que procuram confundir o bem geral com ofacciosismo dos seus pendores e a estreiteza dos seus interessespersonalistas. Mas entre esses e o público já se levantou uma espécie deincompatibilidade irremediável e de quarentena moral. Não têm ascendênciade opinião, e falhos de ética profissional, constituem elementos nocivos einfluências perniciosas que o próprio organismo social expele do seu seiopor um instinto natural de defesa profilática. Doutro lado, os governantesignoram fatos prejudiciais ao interesse público, que só a crítica justa ehonesta da imprensa pode denunciar numa verdadeira, útil e patrióticacolaboração. Nenhuma contradição existe – já o afirmei uma vez – entre o exercício dacrítica honesta e as atribuições do poder público. Ao contrário, muito podeesperar o Governo da atuação dos jornais que lhe analisam os atos – comisenção de ânimo e justeza de conceitos. A imprensa, respeitada peloequilíbrio dos seus comentários, com autoridade de opinião, pode influirproveitosamente no encaminhamento dos assuntos político-administrativos. Houve época em que a política absorveu por tal forma o jornalismo, queeste se tornou ora oficioso, defensor intransigente do Governo, orainsultuoso e ao arbítrio da paixão. Não havia alternativa além do apoio incondicional ou da oposiçãosistemática. O jornal não era uma tribuna de ensinamento, mas umpelourinho de reputações. Imprensa governista e imprensa de oposição sedividiam em dois campos adversários de feição intolerante e apaixonada,

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onde eram impossíveis a crítica serena e a visão superior dos problemas deEstado. Já vai bem longe esse tempo, e a distância que dele nos separa deveencher-nos de conforto e segurança. A maioria da imprensa, em suas linhas gerais e através dos seus órgãosmais representativos, sabe manter-se num nível superior de crítica objetiva,onde ressaltam a experiência, o equilíbrio e a penetração daqueles em cujaformação intelectual o amor à verdade e a dedicação à causa públicasuperam as paixões partidárias e as divergências pessoais. Assimcompreendido e assim exercido, o jornalismo desempenha uma grandemissão social, que é a de esclarecer e orientar a opinião pública, auxiliandoeficientemente o Governo na sua tarefa cotidiana de bem servir àsnecessidades e aspirações populares. Criadora, estimuladora, esclarecedora,deve ser sempre a função primacial da imprensa livre. E dessa imprensanecessita o Governo, hoje mais do que nunca. Os problemas sociais epolíticos são de tal modo complexos, que só um contato vivo, perene efecundo com a opinião pública de todo o país pode dar luzes e forças aoGoverno, para enfrentá-los e resolvê-los. Nesse sentido, é na imprensa quese cristaliza o espírito do povo, e é pelos seus órgãos mais representativosque se traduzem as exigências e os anseios coletivos. Como homem público, sempre busquei o contato com essa imprensaimparcial e construtiva, e encontrei na crítica serena e honesta acolaboração desinteressada e amiga, que esclarece, revela, corrige,completa e sugere soluções e diretivas. É por isso que recebo com satisfaçãoa notícia do aparecimento de um novo jornal, para cuja orientação elevada epatriótica o espírito do seu fundador constitui garantia eficiente e motivobastante de confiança e de contentamento. Que ele saiba exprimir comfidelidade e elevação as tendências da opinião pública e colaborar, atravésde uma crítica bem intencionada e construtiva, na solução dos nossosproblemas, são os meus votos mais sinceros.Cordialmente,Getúlio Vargas

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CAPÍTULO 21

Em agosto de 1951, o senador Epitácio Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,neto do presidente do mesmo nome e filho de João Pessoa – o ex-governadorda Paraíba cujo assassinato precipitara a Revolução de 1930 –, apareceumorto em sua casa no Rio de Janeiro. Epitacinho era bastante amigo deGetúlio Vargas, e o hospedara por alguns dias antes de assumir a Presidência.Começaram a circular pela cidade rumores de que Epitacinho foraenvenenado por sua mulher, por questões de herança. Eu tinha repugnânciapor fatos policiais e, até então, negava-me a dar-lhes destaque na ÚltimaHora. Mas aquela história caíra na boca do povo e começava a tomarproporções incontroláveis. O velho Malta procurou-me: – Precisamos dar alguma coisa sobre isso. Achei a ideia maluca. – Epitacinho era meu amigo, amigo de Getúlio Vargas – ponderei. – A cidade inteira só fala nesse caso, isso venderia muito – retrucou Malta. Resolvi conversar sobre o assunto com Getúlio Vargas e fui procurá-lo noCatete. Contei-lhe que estava surgindo uma fofoca nacional a respeito damorte de Epitacinho. Getúlio adorava fofocas, ficou curioso. Ele pareceusurpreso com o que ouviu. Informei, então, que os rumores incluíam a versãode que a Última Hora permanecia calada porque Epitacinho era amigo dopresidente da República. Perguntei a Vargas de que modo deveria agir. – Cumpra o seu dever de jornalista – disse-me. No dia seguinte, publiquei a primeira manchete policial da história daÚltima Hora: “Epitacinho teria morrido envenenado”. Foi uma bomba.Aumentamos a tiragem para 25 mil exemplares, que se esgotaram em poucashoras. Seguimos explorando o caso por alguns dias e incorporamos outrosmilhares de leitores. Eu costumava consultar Getúlio sempre que surgiam fatos e assuntosdiretamente ligados aos interesses do presidente. Ele também me faziasugestões e transmitia opiniões, regularmente, de viva voz ou através deintermediários. Às vezes, mandava bilhetes. Dezenas deles foram

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interceptados por Lourival Fontes, que mais tarde os entregou a David Nasserpara que fossem publicados na revista O Cruzeiro. “Diga ao Wainer que aposição do jornal em relação ao problema da carne está errada”,recomendava, por exemplo, um dos bilhetes. “Peça ao Wainer que dê maisdestaque aos júris populares de economia”, dizia outro. Em pouco tempo, eu me tornara mais importante junto a Getúlio do quequalquer ministro de Estado. Minha sintonia com Vargas era tão completaque nem precisávamos ser explícitos para nos entendermos a respeito decertos assuntos. Foi assim no episódio da queda do ministro do Trabalho,Danton Coelho. Era uma excelente figura, um homem de bem, mas ineficaz.Passava dias inteiros no Jockey Club, alheio ao que ocorria num ministérioque era seguramente o mais importante de todo o governo. Decidi derrubá-lo,interessado em preservar a imagem do governo e também convencido de queseria muito melhor para Vargas substituir Danton. Procurei o presidente paradizer-lhe que o governo estava perdendo popularidade em consequência domau desempenho do ministro do Trabalho. Getúlio apenas ouvia. Disse-lhetambém que meu jornal tinha compromissos com a figura do presidente, masnão com todos os seus ministros. Comuniquei, enfim, que pretendia atacarduramente Danton Coelho. – Faça o que achar melhor – resumiu Getúlio. No fundo, ele desejava livrar-se de Danton. No dia seguinte, publiquei umeditorial com o título “O Grande Irresponsável”, dizendo horrores do ministrodo Trabalho. Poucas horas depois, Danton Coelho demitiu-se do cargo. O jornal ia tomando forma, definindo progressivamente os contornos doseu rosto, ganhando traços mais nítidos. A primeira página do segundocaderno tratava exclusivamente de reivindicações populares. O jornal nãoparava de ampliar suas linhas diretas com o povo. Inventei o chamado “Murode Lamentações”: a cada fim de semana, uma viatura da Última Hora,levando um fotógrafo e um repórter com sua máquina de escrever, instalava-se numa das praças do Rio de Janeiro e recolhia as queixas da população.“Minha torneira não funciona”, “falta luz na minha rua”, coisas do gênero.Publicávamos aquilo com destaque, os leitores adoravam. Euvaldo Lodi mefez uma observação curiosa: – Você é mesmo um grande filho da puta – disse-me rindo. – É o únicojornalista capaz de fazer um jornal que é capitalista no primeiro caderno ecomunista no segundo. Para Lodi, típico industrial paulista daqueles tempos, reivindicações

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populares e comunismo eram praticamente a mesma coisa. A Última Hora era ecumênica por vocação. Estava vinculada àintelectualidade do Rio de Janeiro – escreviam no jornal nomes já respeitadosda literatura – e à alta sociedade, que lia com avidez nossos colunistas. Mastambém estreitava seus laços com o povo, recorrendo a fórmulas cujopioneirismo desconcertava os concorrentes. Àquela época, por exemplo, apalavra “promoção” era desconhecida da imprensa brasileira, embora fosse aexplicação para o sucesso de várias publicações americanas. Por sugestão deAdolfo Aizen, um dos responsáveis pela introdução das histórias emquadrinhos no Brasil, lancei uma promoção chamada “Prêmio para Toda aFamília”. Os leitores recortavam um cupom impresso numa página,preenchiam-no e o enviavam à redação, concorrendo a cinco prêmios –bicicletas, bolas de futebol, brinquedos. Foi um êxito fantástico, e havia diasem que filas imensas se estendiam à frente das bancas de jornais. Adolfo Aizen fez-me outra sugestão extremamente feliz: publicar nosegundo caderno um encarte com historietas em quadrinhos. As novidades semultiplicavam sem parar. A última página do segundo caderno passou apublicar exclusivamente notícias esportivas, com fotos coloridas. Na últimapágina do primeiro caderno saíam notícias policiais ou grandes reportagens.Tanto Jacinto de Thormes, responsável pela seção “Na Hora H”, quantoCarlos de Laet, nosso colunista social, publicavam notícias sobre o jet set.Alguns mitos da alta sociedade carioca surgiram ali: foi Jacinto, por exemplo,quem apelidou Didu e Teresa de Souza Campos de “Casal 20”. Mas um dosgrandes achados da Última Hora foi descobrir que a Zona Norte existia, eque também ali havia, embora menos brilhante que a da Zona Sul, vidasocial. Durante uma conversa com o vice-presidente da Light, Monteiro, ele mefez uma pergunta: – Você costuma ir aos subúrbios? Estranhei a pergunta: afinal, o que eu teria a fazer nos subúrbios? Disse-lheisso, e Monteiro, que nascera no Méier, sorriu e comentou:– Engraçado, vocês não conhecem o Brasil. Recomendou-me, então, que fosse a alguns bairros da Zona Norte. – Dê um pulo até Madureira – sugeriu. – Você vai ver uma cidade repleta delojas. Resolvi atender ao conselho e visitar os subúrbios, algo que não fazia hámuitos anos. Fiquei impressionadíssimo com o que vi. Decidi de imediato

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que a Última Hora teria de entrar na Zona Norte – e entrar com urgência. Naquele ano, por coincidência, uma jovem de Vila Isabel, Leda Rahl, foraeleita Miss Rio de Janeiro. Era a primeira vez que alguém da Zona Norteganhava o concurso. Leda e sua mãe foram visitar-me na redação da ÚltimaHora para agradecer o apoio que o jornal lhe dera. Ainda impressionado como que vira em Madureira, tive na hora a ideia de convidá-la para trabalharcomigo: se não fosse eleita Miss Brasil, propus, teria um lugar assegurado naredação. Ela aceitou, e procurou-me algum tempo depois. Decidi formar umadupla de colunistas e designei Carlos Renato para trabalhar ao lado de LedaRahl. Assim nasceu a coluna “Luzes da Cidade”, que logo se transformounuma das coqueluches da Última Hora. Leda e Carlos Renato frequentavamclubes de Ramos, do Méier, de Bonsucesso, apresentando festas e colhendonotas para a coluna. Em pouco tempo, os dois eram celebridades em todos osbairros da região.

Num domingo, recebi a notícia de que um casal que viajava em lua de melmorrera na queda de um avião. Achei que aquela história poderia render umaexcelente reportagem. Chamei Nelson Rodrigues, meu redator de esportes, eperguntei-lhe se aceitava escrever uma coluna diária baseada em fatospoliciais. Nelson recusou. Resolvi enganá-lo, e contei que André Gide jáfizera isso na imprensa francesa. Defendi também a tese de que, no fundo,Crime e Castigo, de Dostoievski, era uma grande reportagem policial. Euapenas queria que ele desse um tratamento mais colorido, menos burocrático,a um certo tipo de notícia. Nelson afinal cedeu. Sentou-se à máquina e, poucodepois, entregou-me o texto sobre o casal que morrera no desastre de avião.Era uma obra-prima, mas notei que alguns detalhes – nomes, situações –haviam sido modificados. Chamei Nelson e pedi-lhe que fizesse as correções. – Não, a realidade não é essa – respondeu-me. – A vida como ela é é outracoisa. Eu me rendi ao argumento e imediatamente mudei o título da seção.Deveria chamar-se “Atire a Primeira Pedra”, mas ficou com o título de “AVida Como Ela É”, que considero um dos melhores momentos do jornalismobrasileiro. Da mesma forma que Nelson Rodrigues renovou a linguagem dareportagem policial, outros colunistas da Última Hora deram outro curso àhistória da reportagem esportiva. Eu tinha uma vantagem sobre outros donos

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de jornal: passara minha infância brincando com bolas de meia, e eles jamaishaviam entrado num campo de futebol. Minha intimidade com o assunto era total. Muitos anos depois, em 1962, euestava numa recepção oferecida pelo Itamaraty quando começou umaconversa sobre o jogo que o Brasil teria no dia seguinte contra a Espanha, naCopa do Chile. A mesa esquentou, e passei alguns minutos dando opiniõesprofundas sobre o jogo. Só um dos presentes permanecia sempre calado,aparentemente alheio à conversa. Era o general Humberto de AlencarCastello Branco. Na hora do café, Castello Branco fez um comentáriosibilino: – Doutor Wainer, admira-me muito que um homem como o senhor conheçatanto de futebol. A mesa silenciou. Então, em tom amável, observei ao general que, se nãogostasse de futebol, jamais poderia ter fundado um jornal como a ÚltimaHora. Todos compreenderam o que eu queria dizer com aquilo. Passados os meses de aflição, senti que encontrava o caminho. Àquelaaltura, a redação demonstrava uma imensa confiança em minha capacidadeprofissional. Vencida a timidez inicial, passei a escrever editoriais deprimeira página e a interferir com mais desenvoltura nos textos que o jornalpublicava. Ficava boa parte do tempo em minha sala – ali eu recebia quasediariamente ministros, embaixadores, políticos, empresários. Mas sempreencontrava meios de escapar para a redação, onde mantinha minha mesa, aolado de Octávio Malta. Também visitava diariamente a oficina, empenhadoem estimular meus gráficos a aumentarem a velocidade do trabalho etentando compensar com meu entusiasmo a precariedade do equipamento.Frequentemente, ordenava modificações numa página ou a substituição deum título. Os operários da oficina não demoraram a entender que eu era doramo. Sempre acreditei que um dono de jornal deve manter vínculos estreitostanto com a redação quanto com a oficina. Na Última Hora, tais relaçõeseram bastante humanas. Ordenei, por exemplo, que se cumprisse a disposiçãolegal que mandava fornecer leite aos gráficos, exigência tradicionalmenteignorada pelos patrões. Inflacionei os salários dos jornalistas, para profundairritação de Assis Chateaubriand, que me acusou de elevar os salários acimados limites suportáveis pela imprensa brasileira. E procurei permanentementequebrar o isolamento entre chefe e subordinados. Em 1954, quando a ÚltimaHora se transferiu para outro prédio, instalei minha sala dentro da própria

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redação, numa inovação que ficaria famosa. Era uma sala envidraçada, cujoapelido – “aquário” – se tornaria famoso. Quando não queria ser visto,baixava as cortinas. Mas geralmente o pessoal da redação podia acompanharcom os olhos meus gestos, minhas reações, as conversas com repórteres.Aquele era o meu santuário. Eu vivia à noite. Em meio a uma roda-viva de jantares, festas, recepções ousimplesmente conversas, recolhia informações, boatos, rumores. É à noiteque se sabe das coisas. Dormia pouco: além da energia da mocidade, sempreque necessário eu recorria a comprimidos de Pervitin, à base de anfetamina.Às onze horas, acordava e ia para o jornal dar o visto na primeira página,examinar a edição que estava a caminho das bancas. Fazia questão derespeitar os horários fixados em nosso cronograma, outra novidade para aépoca – naqueles tempos, os jornais costumavam sair quando podiam. Ojornal era minha vida. Em 1951, eu estava casado com Isa Sá Reis, de quemme separaria em 1953. Mas a aventura da Última Hora me absorvia quaseintegralmente e, mesmo quando ficava em casa, minha mente viajava paraaquele mundo que eu começava a construir. Tive suficiente lucidez para evitar certos exageros, mesmo quando já mesobravam motivos para acreditar que eu caminhava para o sucesso. No dia 19de dezembro, data oficial de meu nascimento, fui procurado por umacomissão de funcionários, liderada por um tipo sabidamente bajulador, quedesejava minha permissão para homenagear-me. Eles me trouxeram umrelógio enorme, caríssimo, como presente pela vitória da Última Hora. Minhareação foi brutal. Disse-lhes que preferia recusar o presente, por doismotivos. Primeiro, porque achava aquele presente caro demais para o queeles ganhavam. Segundo, porque um jornal não deve festejar vitórias naredação; deve festejá-las nas ruas, vendendo mais. Despachei-os em seguida,recomendando-lhes que voltassem quando o jornal se tornasse efetivamentevitorioso. Na primeira oportunidade, demiti o responsável por aquele exagerobajulatório. Alguns meses mais tarde, descobri que outro grupo defuncionários encarregara um escultor argentino de fazer meu busto embronze. Achei ridículo, e interferi a tempo de impedir a homenagem. Oargentino só tivera tempo de esculpir o busto em gesso. Esse busto, quedescobri no arquivo da Última Hora, rolou pelo Rio de Janeiro até acabarnum antiquário. Os traços lembravam muito mais Coelho Neto que a mim.Nunca mais soube dele. Se evitei esses exageros, também é verdade que cometi alguns excessos

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sociais, inebriado pela condição de amigo íntimo do presidente e jornalistavitorioso. Eu saboreava meu triunfo: entrava sem bater nos gabinetes dospoderosos, era solicitado pela alta sociedade, cortejado por mulheres lindas.Fazia provocações que incomodavam os concorrentes – por exemplo,anunciar as tiragens do meu jornal numa época em que todos os outrosocultavam cuidadosamente seus números. Mas nenhum desses excessos dosprimeiros tempos se comparou ao coquetel que ofereci pelo primeiroaniversário de Última Hora, em junho de 1952. Eu poderia ter convidado algumas pessoas para um jantar em meuapartamento, ou organizado uma festa menos aparatosa num clube qualquer.Em vez disso, decidi fazer um coquetel na própria redação. Escolhi umhorário que não prejudicasse o trabalho de edição, desloquei as mesas e abriespaço para quase mil convidados. Uma guarda de honra formada porintegrantes da Polícia Especial postou-se à porta. Não deixava de ser umacinte. Getúlio Vargas não compareceu, mas foi representado por donaDarcy, Alzirinha e vários outros membros da família real. Mais tarde, ojornalista Justino Martins contou-me que a animosidade de Adolfo Bloch emrelação a mim nasceu de um incidente ocorrido naquele dia, do qual nemsequer me dei conta. Adolfo Bloch teria pedido que eu o apresentasse àprimeira-dama. Não me lembro de ter ouvido a solicitação. O fato é que não oapresentei. Segundo Justino, Adolfo Bloch jamais me perdoou por taldesfeita. Outros barões da imprensa tampouco engoliram a festa que reuniu oque havia de mais influente na corte. Fora uma audácia do judeu aventureiro. Àquela altura, a campanha contra a Última Hora já se intensificara, mas ojornal se tornava cada vez mais consistente em todos os sentidos. A situaçãofinanceira, por exemplo, mostrava-se crescentemente promissora graças aobom fluxo de anúncios. Eu tratava de atrair novos anunciantes utilizandobarganhas que não me incomodavam por não ferirem os critérios editoriais daÚltima Hora. Por exemplo: se duas empresas envolviam-se em determinadadisputa, eu escolhia a que fosse brasileira, ou a que melhor atendesse aosinteresses de Getúlio, e passava a defendê-la. Em seguida, reivindicava dessaempresa que ajudasse o jornal em forma de anúncios. Tal postura não meparecia antiética. Um caso típico foi a guerra entre a Varig e a Panair pelacompra dos primeiros aviões Caravelle. Como a Panair era subsidiária daPanam, uma empresa norte-americana, minhas simpatias apontavamnaturalmente na direção da Varig, uma companhia brasileira. O criador daVarig, Rubem Berta, procurou-me para pedir que eu o auxiliasse com o

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jornal. Concordei, mas em troca lhe pedi contratos de publicidade. Esseacerto seria inviável se quem me procurasse fosse alguém da Panam; eu nãoaceitaria. Meu jornal precisava de publicidade, e era natural que eu cobrassedo meu cliente nacionalista meios de assegurar a sobrevivência da ÚltimaHora. Todo dinheiro que entrava era aplicado no próprio jornal. Nunca alimenteia pretensão de conquistar uma fortuna para legá-la a alguém. Eu não tinhafilhos na época, e imaginava que jamais viria a tê-los. Portanto, habituei-me àideia de que a Última Hora morreria comigo, porque tampouco achava viávelpassá-la a outros parentes ou companheiros da redação. Mesmo quando meusfilhos nasceram, por sinal, não cogitei de transformá-los em herdeiros daÚltima Hora – jamais aprovei o costume tão brasileiro de passar jornais depais para filhos. O jornalismo, afinal, não é uma coisa hereditária. Mas,embora descartasse planos de enriquecimento pessoal, era importanteconsolidar o jornal financeiramente e fortalecer a empresa, preparando-mepara a luta que se aproximava. Nesse esforço de consolidação, decidi aindaem 1951 levar a empresa para fora das fronteiras do Rio de Janeiro. Foi então que nasceu a Última Hora de São Paulo.

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CAPÍTULO 22

No começo de 1952, eu conversava com Getúlio perto de uma das janelasdo Palácio do Catete quando ele me perguntou se eu não achava que SãoPaulo era a “boca do leão”. Aquela expressão me era familiar. O presidentecostumava empregá-la para simbolizar o que o grande Estado representavapara o seu governo. Ainda presos aos ódios gerados pela Revolução de 1932,muitos políticos paulistas seguiam conspirando, dispostos a patrocinar aqualquer custo o fim do getulismo. Vargas era popularíssimo em São Paulo,ali obtivera uma votação grandiosa nas eleições de 1950. Mas a elite paulistarecusava-se à reconciliação com o presidente. E toda a imprensa local,liderada pelo “Estadão”, mantinha-se em oposição ferrenha a Getúlio. Concordei: São Paulo era a boca do leão. Quis saber por que tal expressãolhe ocorrera naquele momento.– É que hoje esteve comigo o Ricardo Jafet, que está tendo muitos prejuízoscom o jornal dele em São Paulo – respondeu Getúlio. Percebi aonde ele pretendia chegar e fiquei à escuta. O presidente ponderou que Jafet, dono do Jornal de Notícias, não entendiade jornais e que, por ser um homem muito rico, ninguém lhe pagava o quedevia. Revelou-me, afinal, que o próprio Jafet lhe fizera a sugestão: por queSamuel Wainer não lançava um jornal em São Paulo? O comportamento deGetúlio durante a conversa à janela do Catete deixava claro que ele gostara daideia. Mas jamais admiti, ao longo dos muitos interrogatórios que sofreria emminha vida, que também a Última Hora paulista fora uma ideia de GetúlioVargas. Animei-me imediatamente com a proposta de criar um jornal na cidadeonde havia nascido. Seria a volta gloriosa ao meu Bom Retiro, a prova de queeu vencera. Pensei no que diria minha família – era o triunfo. Já com algumasideias tomando forma em minha cabeça, disse a Getúlio que achavaperfeitamente possível concretizar tal projeto. Poderíamos montar a primeirapublicação com fisionomia federal num estado cuja imprensa erahistoricamente marcada pelo provincianismo. As vantagens políticaspareciam igualmente evidentes. Num pedaço do país onde o PTB getulistaera anêmico, teríamos um instrumento do presidente da República com

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capacidade para fazer com que seu pensamento chegasse às massaspopulares. No fim da conversa, combinei com Vargas que procuraria RicardoJafet. Jafet ficou radiante ao saber que eu estava interessado em seu jornal, quepara ele se transformara numa fonte permanente de más notícias financeiras.Como se tratava de um empresário forte, não lhe convinha simplesmentefechar uma de suas empresas – isso poderia dar origem a rumores atribuindo-lhe dificuldades financeiras. Tampouco valia a pena manter o jornal emfuncionamento; os prejuízos se acumulavam a cada mês. A solução era passá-lo adiante, e um comprador finalmente lhe caíra do céu. Não foi difícil,assim, fechar o negócio por um preço meramente simbólico. Do jornal, queocupava um terreno no vale do Anhangabaú pertencente ao conde FranciscoMatarazzo, pouco se poderia aproveitar: o equipamento estava virtualmentereduzido a uma rotativa velhíssima, que fizera parte do parque gráfico daFolha da Manhã. De qualquer forma, ali eu poderia improvisar uma pistapara a decolagem da Última Hora paulista. Voltei a Getúlio com a confirmação de que a ideia era viável. Havia,contudo, o problema de sempre: faltava dinheiro para os gastos iniciais. AÚltima Hora do Rio ia bem, mas não gerava recursos suficientes para aimplantação de um projeto semelhante em São Paulo. Com um sorrisomoleque, Getúlio apontou-me a saída usando sua peculiar linguagem emcódigo: – Passou por aqui agora há pouco um “tubarão” que parece gostar muito dejornal. Se tu quiseres, procures o Benjamim. Ele te dirá onde encontrá-lo. “Tubarão” era a palavra usada na época para identificar os magnatas. Saí àprocura de Benjamim Vargas e logo o encontrei na boate Vogue. Relatei-lhea conversa que tivera com seu irmão, e o caçula dos Vargas recomendou-meque fosse ao Hotel Excelsior, na avenida Atlântica, que acabara de serinaugurado. Ali estava hospedado o tubarão de que Getúlio falara: o lendárioconde Francisco Matarazzo. O velho conde vira seu império crescer na era getulista, beneficiado porfavores fiscais e aduaneiros. Ele gostava muito do presidente da República,tratava-o com inteira intimidade. Era uma figura bastante simpática, masextremamente conservadora e dada a excentricidades. Ele não permitia, porexemplo, que alguém lhe virasse as costas ao deixar sua sala. As pessoas,mesmo as da própria família, tinham de sair em marcha à ré. O conde tinhainimizades invencíveis, e fora justamente uma delas que o levara a interessar-

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se por jornais: ele devotava um ódio mortal a Assis Chateaubriand, cujonome, repito, jamais mencionava: só se referia ao dono dos Associados como“o lazarento”. Os dois haviam brigado por questões de dinheiro, e Chateaubriand faziaprovocações terríveis ao velho Matarazzo. Numa ocasião em que saiupublicado o balanço das empresas do conde, por exemplo, Chateaubriandmandou anunciar que os lucros seriam distribuídos entre os pobres da cidade.Noutra ocasião, quando se casou uma filha de Matarazzo, os jornais deChateaubriand descreveram o requinte da festa com tal exagero queocorreram manifestações de revolta entre os paulistanos. Graças a essasdeclarações de guerra promovidas por Chateaubriand, Matarazzo resolveraencontrar um jornal que combatesse os Associados. Ele se ligara ao grupoFolha, mas não se deu bem. Assim, quando o encontrei, ele continuavareceptivo a um negócio que o vinculasse a algum órgão de imprensa. No Hotel Excelsior, onde me recebeu perto das onze da noite, o condetratou-me com extrema simpatia. Disse que já sabia dos meus planos paramontar um jornal em São Paulo e que me considerava um grande jornalista. – Sei também que o senhor fez um jornal que vende muito – emendou. Onde colhera a informação? – Todos os dias vou até a banca que fica aqui perto do hotel e pergunto aodono que jornal está sendo mais vendido – explicou-me. Ele também achava que São Paulo precisava de um jornal moderno, e sedispunha a colaborar no empreendimento. – Eu vou lhe ajudar – disse o velho Matarazzo. – De quanto o senhorprecisa? Novamente, eu não sabia com exatidão o montante dos recursos de quenecessitava. Mencionei uma quantia qualquer que me veio à mente, e o condeconsiderou-a razoável. Eu acabara de conseguir o dinheiro necessário para aaventura da Última Hora paulista. Antes de selarmos o acordo, o conde perguntou-me qual seria a postura dojornal em relação a greves. Ponderei que um jornal popular não poderia opor-se a movimentos do gênero, mas ressalvei que a Última Hora só apoiariagreves até a porta da fábrica, condenando qualquer violação dessa fronteira.Ele ficou muito feliz com a resposta – o que o afligia era a eventualidade degreves que ameaçassem seu patrimônio com quebra-quebras no interior dasfábricas. Depois, avisou-me que não poderíamos ser favoráveis à implantaçãodo divórcio no Brasil. O conde informou que costumava visitar o papa, e que

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não gostaria de ouvir uma frase que formulou com seu sotaque pitoresco:“Chiquinho, como é que você dá dinheiro para um jornal divorcista?” Aquestão do divórcio não tinha, a meu ver, qualquer importância. Aceiteiprontamente a pré-condição estabelecida por Matarazzo. O conde Francisco Matarazzo cometeu um grave equívoco – se foi umajogada intencional, jamais se saberá – ao me transferir, alguns dias depois,parte do financiamento que havíamos acertado. Ele fez com que o dinheiro,antes de chegar a mim, passasse pelas mãos de Lutero Vargas, filho deGetúlio – e esse trajeto dos recursos, que evidentemente deixou rastros, seriaespertamente explorado no futuro por meus inimigos. É possível que opróprio Lutero, visivelmente enciumado com a influência de Alzirinha sobrea Última Hora carioca, tenha pedido ao conde para participar da operação.Também é possível que Matarazzo tenha procurado envolver a família dopresidente no negócio. Só ele poderia esclarecer o que realmente o levou aagir assim. Poucos anos depois, quando foi chamado a depor numa comissãoparlamentar de inquérito, o Conde agiu com muita elegância em relação amim. Ele chegou ao Congresso em grande estilo, acompanhado de Júlio deMesquita Filho e do advogado Oscar Pedroso Horta. Interpelado pelosmembros da comissão, o velho milionário exibiu seu humor singular. Osparlamentares quiseram saber por que me dera dinheiro. – O dinheiro é meu e eu dou para quem eu quero – retrucou Matarazzo. Mas por que especificamente a Samuel Wainer?, insistiram os inquisidores.Porque vira meu jornal e entendera que faria um bom investimento,respondeu o Conde. Um integrante da comissão observou que eu era umhomem de origem humilde e poucos recursos, e que já tivera um títuloprotestado em cartório quando conhecera Matarazzo. Ele sustentou que taisdetalhes não tinham importância: conhecia vários industriais com títulosprotestados. Matarazzo acrescentou que me dera dinheiro por ter acreditadono homem, e tanto agira com acerto que o jornal se mostrara umempreendimento bem-sucedido. No fim do depoimento, quando osparlamentares já haviam desistido de enredá-lo na trama, FranciscoMatarazzo fulminou-os com uma pergunta que exibia sua lógica peninsular: – Os senhores por acaso conhecem algum dono de jornal que seja pobre? Antes desse depoimento, eu me recusara sistematicamente a admitir que osrecursos para a fundação da Última Hora paulista haviam saído dos cofres doimpério Matarazzo.

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A origem do dinheiro já era conhecida, mas ainda assim eu me recusava aendossar a versão veiculada com insistência pelo restante da imprensa. Opróprio Conde liberou-me desse voto de silêncio ao comparecer aoCongresso. Ele fez questão de anunciar de viva voz que patrocinara aaventura iniciada a 18 de março de 1952: nesse dia, o logotipo azul da ÚltimaHora de São Paulo apareceu pela primeira vez nas bancas da cidade. Nos dois meses anteriores, eu tratara de colocar o precário equipamentoexistente na oficina do jornal de Jafet, rudimentar e envelhecido, emcondições de rodar a Última Hora paulista. Consegui. Um de meus trunfoscomo jornalista, por sinal, foi saber criar na pobreza. Jamais dispus demáquinas novas, modernas. Sempre lidei com equipamentos que lembravama pré-história da imprensa, e era compelido a operar milagres para rodar meusjornais. Certa vez, Danuza Leão, que então estava casada comigo, foiconvidada a responder a uma enquete organizada por uma revista interessadaem saber que tipo de presente um grupo de mulheres da alta sociedadegostaria de oferecer ao marido. Danuza deu uma resposta bastante original:“Uma rotativa nova com quatro cores.” Seria um presente magnífico. Eu também transformara aquele pardieiro que abrigara o jornal de Jafetnum prédio esplêndido, com salões enormes, uma redação moderníssima, asparedes decoradas com painéis de Di Cavalcanti. No dia do lançamento,fretei um avião para trazer convidados do Rio de Janeiro, entre os quaisfiguravam muitos representantes da alta sociedade carioca e, naturalmente,vários integrantes da família Vargas. Fiz questão da presença da família real.A Última Hora de São Paulo alcançou sucesso imediato, basicamente porduas razões. Primeiro, tratava-se de um jornal federal num estado marcado,como já disse, por uma imprensa irremediavelmente provinciana. Segundo,porque meu jornal, embora federal, soube desde sempre ser paulista. Nos anos 50, a imprensa já não era tão dependente dos favores federaisquanto em outras épocas. Nos anos 30, um jornalista português, João Lage,dono de O País, editado no Rio de Janeiro, cunhara uma frase cujo cinismorefletia com absoluta clareza as relações entre imprensa e poder no Brasil.“Só preciso de 22 leitores: os 21 governadores e o presidente da República”,dizia João Lage. Quando fundei a Última Hora em São Paulo, já se tornarapossível montar empresas jornalísticas sólidas sem a mão generosa dogoverno. O Estado de São Paulo, por exemplo, era uma potência, da mesmaforma que A Gazeta, e nenhum deles fazia barganhas com os donos de poder.De qualquer forma, São Paulo se ressentia da falta de notícias federais com

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sua imprensa – os industriais paulistas, os homens do comércio, os donos daterra precisavam saber o que se passava no Palácio do Catete. E eles todossabiam que nenhum outro jornal tinha tão franco acesso ao centro do poderquanto a Última Hora. Este era um dos meus trunfos. Outro trunfo consistia na evidência de que meu jornal tinha estreitasvinculações com o povo. Do ponto de vista da elite paulista, eu invadira suafortaleza para combater sua sigla sagrada – a UDN – e defender um homem –Getúlio Vargas –, a quem devotavam ódio mortal. Mas o povo não pensavaassim: centenas de milhares de paulistas veneravam Vargas, e me receberamcom a simpatia reservada aos aliados. Além disso, imediatamente comecei amostrar nas páginas da Última Hora a cidade esquecida, abandonada, acidade desprotegida. Simultaneamente, descobri o interior – haviareportagens mostrando Santos, Ribeirão Preto, Campinas. Em pouco tempo, aÚltima Hora era o mais paulista dentre todos os jornais editados no estado. Creio ter conseguido inspirar, também em São Paulo, a mesma sínteseanárquica e criativa que fizera o sucesso da Última Hora carioca. Além deimportar colunistas que aparentemente pouco ou nada tinham a ver com SãoPaulo, mas que deram certo, como Nelson Rodrigues ou a atriz Odete Lara,lancei nomes tipicamente paulistas, como o humorista Arapuã, que setornaria uma celebridade local, ou Ricardo Amaral, que foi um ótimo repórtere mais tarde se transformaria num dos reis da noite brasileira. O noticiáriopolítico era da melhor qualidade: informávamos com competência o queocorria nos bastidores da guerra entre dois populistas, Jânio Quadros eAdemar de Barros, cobríamos de perto a Assembleia e a Câmara deVereadores. As promoções se repetiam também em São Paulo, e sabíamoscapitalizar em favor do jornal fatos que emocionavam o povo. Quandomorreu Francisco Alves, por exemplo, imediatamente intuímos as reaisdimensões da tragédia: Chico Alves era o grande ídolo popular naquelaépoca, e tivera seu corpo carbonizado num acidente automobilístico. Osbrasileiros sempre se impressionaram com a morte pelo fogo, e esse tipo deemoção se multiplica terrivelmente quando a vítima é alguém amado pelopovo. Tivemos então e ideia de realizar no viaduto do Chá um evento quebatizamos de “Noite dos Violões”. Durante horas seguidas, madrugadaadentro, centenas de violões homenagearam Chico Alves, diante de umamultidão que reunia dezenas de milhares de pessoas. Como ocorria no Rio, grandes reportagens tornaram-se uma das marcas dojornal. Houve uma reportagem que se tornou famosa: a rebelião do Presídio

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Anchieta, um célebre e temido depósito de presos então instalado numa dasilhas do litoral norte de São Paulo. Essa rebelião aconteceu em 1952 eresultou na fuga de cerca de 120 condenados, que fizeram a nado a travessiaaté as praias de Ubatuba. Informado do episódio, viajei imediatamente do Riopara São Paulo e mobilizei a redação para uma cobertura intensiva. Entrerepórteres e fotógrafos, desloquei para a região quase trinta profissionais.Demos uma inesquecível lição de jornalismo. A receita da Última Hora, que misturava ingredientes aparentementeinconciliáveis, incluía ousadias que os outros jornais locais jamais sepermitiriam. Instituí, por exemplo, a escolha do Homem do Ano, uma ideiaque depois seria retomada pela revista Visão. Só que o primeiro Homem doAno da Última Hora foi um dirigente sindical, Salvador Losacco, queostentava uma sólida fama de pelego. Não deixava de ser uma afronta àselites paulistas. Mas também cobríamos a alta sociedade local comreportagens ou notas nas colunas sociais. Graças a esses malabarismos,conseguimos a proeza de transformar um jornal financiado por um condemilionário e conservador numa publicação indiscutivelmente popular, composições nacionalistas de esquerda. Não tenho dúvida alguma de que a Última Hora exerceu desde o começouma forte influência sobre a mentalidade dos paulistas, sobretudo dospaulistanos que, nos anos 50, ainda habitavam uma cidade ilhada, distante doresto do Brasil. A Última Hora em São Paulo foi um polo de irradiação dopensamento nacionalista, de difusão das ideias que àquela altura eu já haviaincorporado definitivamente. Era o caso da nacionalização do petróleo, porexemplo, materializada com a criação da Petrobrás, em 1953, por inspiraçãode Getúlio Vargas. Muitos anos depois, quando a Petrobrás resolveu publicarum folheto comemorativo de seu vigésimo aniversário, os dirigentes daempresa concluíram que nada simbolizava melhor a importância desse eventoque a primeira página da edição em que meu jornal anunciou o fato histórico:FUNDADA A PETROBRÁS, informava a manchete em letras enormes.Abaixo da manchete, uma grande foto mostrava Getúlio com as mãosbanhadas de petróleo. A briga com Carlos Lacerda, que em 1952 ia ganhandointensidade, também me ajudou a consolidar a Última Hora em São Paulo.Lacerda era o ídolo da UDN paulista e mantinha fortes vínculos com afamília Mesquita, dona do “Estadão”. Era natural que o lançamento do meujornal em São Paulo abrisse uma nova frente de combate. Os antilacerdistascompravam a Última Hora por razões óbvias – eu me transformara em seu

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porta-voz. E os lacerdistas também compravam para saber que espécie deacusações eu fazia a seu mentor. Revolucionei os métodos de distribuição em vigor na cidade ao criar asedições com uma, duas ou três estrelas, que identificavam a primeira,segunda e terceira edições num único dia. Mudávamos algumas páginasincluindo notícias frescas, e o jornal estava sempre quente. O público gostou,e a Última Hora chegaria em pouco tempo à tiragem diária de 150 milexemplares, notável para uma cidade com cerca de dois milhões dehabitantes. Funcionários da redação contavam que ao entrarem num ônibusviam tudo azul – era o logotipo inconfundível do meu jornal. Para acentuar oazul, eu importava uma tinta mais forte. Tão logo constatou a imensapenetração da Última Hora, Assis Chateaubriand começou a recorrer a seuestoque de truques. O primeiro deles foi importar a mesma tinta que euutilizava e aplicá-la ao Diário da Noite, para confundir os leitores distraídos.Eu próprio, mais de uma vez, comprei o Diário da Noite pensando tratar-seda Última Hora. Outro truque foi ameaçar com represálias quem anunciasseem meu jornal. A situação financeira de minha empresa não era ruim, embora eu tivesse detomar mais algum dinheiro emprestado ao conde Matarazzo. Como o jornaldo Rio de Janeiro já parecia inteiramente consolidado, passei a deslocar-meaté São Paulo com mais frequência, vigiando o comportamento e a saúde docaçula da família. Os diretores da Última Hora paulista sempre puderam agircom independência no plano regional, consultando-me apenas em ocasiõesmais delicadas. Já as questões ligadas de alguma forma à área federal eramexclusivamente decididas por mim. Compreendi em pouco tempo que eudeveria circular em São Paulo, ser visto em São Paulo, para deixar ainda maistransparentes os vínculos do jornal com a cidade. Além disso, certos contatos– com banqueiros, empresários e políticos muito importantes, por exemplo –eu fazia questão de estabelecer pessoalmente. Por tudo isso, acheiconveniente ter um endereço fixo também em São Paulo, e aluguei uma casaluxuosíssima no bairro do Pacaembu. Nem sempre eu me servia dessa casa. Eventualmente, as viagens a SãoPaulo eram uma espécie de fuga. Em noites de muito cansaço, ou emmomentos de depressão, eu saía com meu carro pela via Dutra e dirigia aolongo da madrugada até chegar à capital paulista. Dormia na própria redação,estirado num sofá, e ao acordar entregava-me imediatamente ao trabalho. Acasa no Pacaembu ficava reservada às ocasiões mais solenes, festas,

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recepções. Essas celebrações nunca chegaram ao requinte das festas que eupromovia no Rio de Janeiro, mas exibiam minha força e meu prestígio junto àalta sociedade paulista. A seus olhos, afinal, ali estava um grande amigo dopresidente da República. Getúlio sabia que eu introduzira uma cunha do governo em território hostil,e acompanhava com atenção os desdobramentos da aventura. Raríssimasvezes divergimos. Uma dessas divergências teve como pivô a figura de JânioQuadros, um jovem vereador que se lançara candidato à prefeitura, e não foidifícil contorná-la. Vargas, a quem desagradava a emergência do populismojanista, pediu-me que combatesse sua candidatura. Preferi não contrariar opresidente, mas marquei um encontro secreto com Jânio Quadros no HotelComodoro. Ele chegou acompanhado pelo general Porfírio da Paz, que seriavice-governador por oito anos. Nessa reunião, combinamos que a ÚltimaHora não daria apoio ostensivo a Jânio. Em contrapartida, cedi-lhe umacoluna no jornal, batizada de “Canto do JQ”, e nesse espaço ele pôde exporlivremente suas opiniões. A coluna foi-lhe extremamente útil durante acampanha. A boa situação de meu jornal permitia que eu saboreasse as doçuras dopoder. Mulheres tiravam-me para dançar e sussurravam-me pedidos para queapresentasse seus maridos ao presidente. Às vezes, eu atendia. Jovem,esbelto, elegante, viajava constantemente, alternando aventuras e contatosprofissionais. Continuava decidido a brilhar socialmente e não resistia aosencantos da aristocracia e a seus convites para festas e jantares. Cortejado etemido no Rio, temido e cortejado em São Paulo, nunca estive, porém, cego àrealidade – e pude perceber que um cinturão de inveja ia se formando emtorno de mim. Só não pressenti, naquele momento, quais eram suas reaisdimensões.

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CAPÍTULO 23 Eu tinha o pressentimento de que não deveria ir além dos jornais do Rio e deSão Paulo. Eles bastavam para assegurar-me o prestígio político e a glóriaprofissional. Talvez fosse o caso, também, de criar um jornal dominical,semelhante em alguns aspectos a uma revista, que fosse a síntese das versõescarioca e paulista da Última Hora. Acabei de fato criando esse semanáriocom o título de Flan. Mas não parei aí. Embora tivesse a sensação de que nãoresistiria ao próprio peso do meu império, eu acabaria por tornar-me dono deoutros cinco jornais e de uma emissora de rádio. Disso falaremos mais tarde.Antes, vale a pena rememorar a história de Flan. Foi o primeiro grande semanário brasileiro depois de Diretrizes. O nomefoi inventado por mim e, por não significar nada, tinha um som cabalístico. Aprimeira edição chegou às bancas em abril de 1953, já em formato definitivo:era um tabloide composto de quatro cadernos com oito páginas cada, todoscom a primeira página em cores. Os colaboradores formavam a agradávelmistura de sempre. Havia ilustradores como os pintores Aldemir Martins eDarel Valença, grandes fotógrafos, colunistas como Dorival Caymmi ou domJoão de Orleans e Bragança, cronistas como Otto Lara Resende, chargistascomo Lan. Joel Silveira, que se reconciliara comigo depois de alguns anos derompimento, tornou-se o principal repórter do semanário. Justino Martins erao correspondente em Paris. Gente do primeiro time da imprensa. Um doscadernos tratava basicamente de esportes, outro de cultura, um terceiro depolítica nacional e internacional. O primeiro caderno ficava sempre reservadoa assuntos regionais. Assim, no Rio de Janeiro, por exemplo, editávamos umcaderno regional diferente do que chegava às bancas de São Paulo. Flan obteve sucesso imediato e logo alcançou a tiragem de 180 milexemplares, para espanto e inveja de muitos concorrentes. Um deles eraAdolfo Bloch, que ainda engatinhava com sua Manchete. Adolfo Bloch,convém esclarecer, é apenas um gráfico. Reconheço tratar-se de um gráficoexcepcional, que até contribuiu para o embelezamento das publicaçõesbrasileiras. Mas é só. Na história da imprensa em nosso país, Bloch é umacidente, um erro de revisão. Quando resolveu lançar Manchete, convidou a

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mim e a Jean Manzon para dirigi-la. Recusei, porque estava empenhado nacriação da Última Hora. Já aborrecido com minha recusa, ele se aborreceumais ao constatar o sucesso do meu jornal. Com o êxito de Flan, teria bonsmotivos para aborrecer-se mais ainda. Àquela altura, Assis Chateaubriand começou a desconfiar de que eurepresentava uma efetiva ameaça a seu império. Com meus jornais, eu nãoconfigurava um risco à sua cadeia de 22 publicações. Mas sentia-sedecididamente incomodado ao constatar que surgira em seu caminho umsemanário, vendido a preço baratíssimo, feito em papel de jornal, rodado emequipamento rudimentar, com uma imensa liberdade de ação e,principalmente, com uma grande tiragem. Chateaubriand assustou-se. Foinessa ocasião que o dono dos Associados chamou Carlos Lacerda para umaconversa e colocou sua TV Tupi à disposição do meu grande inimigo.Chegara o momento da luta de morte. Os jornais de Chateaubriand dobrarama intensidade dos ataques à minha pessoa, e Lacerda transformou a televisãonuma tribuna do alto da qual pretendia ver-me prostrado ao solo. Eu podia sentir o bafo da inveja perto do meu rosto. Certa ocasião, um demeus colaboradores mais próximos procurou-me para convencer-me de queeu deveria deixar de sair com uma atriz de teatro, minha namorada naquelaépoca. Uma mulher lindíssima. Ele ponderou que a classe média brasileiratem raiva de homens que saem com mulheres bonitas, e que esse meuromance poderia indispor-me com a opinião pública. Isso me seriainconveniente, sobretudo num momento em que se fechava o cerco contramim. Esse era o clima. Em certos círculos, minha presença incomodava,mesmo meu sorriso incomodava. Num determinado momento, eu era umhomem só, vivendo em função de minha paixão profissional. Eu meentregava à tarefa de fazer a Última Hora, de cuidar de Flan, e aquilo estavacustando minha juventude, minha família, meus amores. Mas meus inimigosqueriam mais: queriam meu fim. A pressão contra Flan começou a tornar-se violentíssima. Lacerdasustentava que eu investira naquele empreendimento milhões de cruzeiros – emilhões financiados pelo governo. Era uma evidente mentira; o semanáriofora lançado sem que eu pedisse um único tostão ao governo. Chateaubriandchantageava meus anunciantes, decidido a retirar-me a sustentação financeira.Depois de quatro, cinco meses, Flan começou a perder qualidade. Aoperceber que a intenção de meus adversários era sufocar-me, decidi reduzir ocampo de combate, para ampliar as chances de resistência. Passei a

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concentrar tudo de que dispunha – papel, dinheiro – na Última Hora,virtualmente abandonando o semanário a seu destino. Ainda assim, Flandurou mais de um ano, sempre perdendo qualidade. Um dia,melancolicamente, morreu, sem que seu desaparecimento provocassequalquer comoção. Hoje, compreendo que o lançamento de Flan, abstraídas as alegriasprofissionais que proporcionou – foi, afinal, um grande e belo semanário –,representou um erro político. Açulei os que me invejavam num momento emque não tinha força suficiente para resistir a seus ataques. Da mesma forma,errei politicamente ao assumir o controle da Rádio Clube, que pertencia aHugo Borghi, um conhecido aventureiro que participara ativamente dacampanha de Getúlio em 1950 – foi ele quem atribuiu ao brigadeiro EduardoGomes o uso da expressão “marmiteiros”, referindo-se aos pobres quevotavam em Getúlio. A emissora nascera com o nome de Rádio RoquetePinto, em homenagem ao pioneiro da radiofonia no Brasil. Mais tardepassaria a chamar-se Rádio Mundial, nome com o qual segue funcionando noRio de Janeiro. Quando me procurou para oferecer-me a emissora, Borghi estava emdificuldades financeiras. Isso era muito comum naquela época. Donos deemissoras de rádio, de jornais ou de editoras em má situação econômicacostumavam ver em mim a solução para todos os seus problemas. A seusolhos, eu era o aventureiro vitorioso, um gângster que dera certo. Borghiinvestira uma quantia milionária na importação de alguns equipamentos,entre os quais uma torre de transmissão bastante moderna, uma das maispotentes em todo o país. Impossibilitado de pagar a dívida, com os canais decrédito fechados e às voltas com uma emissora agonizante, Borghi propôsque eu assumisse o controle da Rádio Clube em troca dos débitos por elecontraídos. O credor era o Banco do Brasil. Achei que uma emissora de rádioseria importante como peça de apoio a meus jornais. Procurei Getúlio erelatei-lhe a proposta que ouvira. – Para um jornal, uma rádio é como janela para uma casa – disse Getúlio,que gostava de resumir seus pontos de vista em boas frases curtas. Esclareci ao presidente que o credor de Borghi era o Banco do Brasil.Getúlio retrucou que achava a compra da rádio um bom negócio, ressalvando,porém, que eu procurasse o general Anápio Gomes, encarregado do setor quecuidava das concessões de rádio. Dependendo do que o general dissessesobre a situação da Rádio Clube junto ao Banco do Brasil, o governo poderia

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autorizar-me a assumir seu controle. Fui à procura do Anápio Gomes, que memostrou um relatório dando conta da posição da emissora. Segundo esseparecer, a Rádio Clube tinha 2% de chances de sobrevivência. Resolviinsistir. Voltei a Getúlio e argumentei que era um dever do governo salvaruma emissora fundada pelo pai do rádio no Brasil, um patrimônio nacional.Vargas acabou concordando. Fizeram-se algumas manobras, determinadasnegociatas, e as ações passaram às minhas mãos. Para evitar problemas legaise driblar o cerco dos inimigos, coloquei-as em nome do escritor MarquesRebello, que trabalhava na Rádio Clube. Essa providência, como logoveremos, resultaria inútil. Como nada entendia de rádio, fiquei nas mãos de Marques Rebello e deSérgio Vasconcelos, um profissional que trabalharia por muitos anos naRádio Nacional. Marques Rebello adorava programas megalomaníacos, comomontar uma radiofonização de Ressurreição, de Leon Tolstoi, com elenco deduzentas pessoas. Sentia-me orgulhoso e envaidecido por ser dono de umaemissora de rádio. Na prática, contudo, ajudava pouco. Eu passava por ládiariamente, ali recebia alguns visitantes, cuidava dos anúncios. Mas era só. Sempre atentos a meus movimentos, Chateaubriand e Lacerda investiramfuriosamente contra a Rádio Clube, sustentando a tese de que eu a receberade graça do governo. Era inútil lembrar, como provava o primeiro balanço darádio sob minha gestão, que a situação econômica da empresa, emborapermanecesse no vermelho, melhorara muito. Meus dois adversáriosacusavam-me de ter assaltado o Banco do Brasil, e exigiam que as açõesfossem confiscadas. Havia muitos interessados no controle da emissora, e umdos mais vorazes era Emílio Carlos, um dos líderes do movimento janista,que depois se elegeria deputado federal e morreria ainda moço. A certa altura, Lacerda e Chateaubriand descobriram uma norma legalsegundo a qual nenhuma ação de empresa radiofônica poderia ser transferidaa quem quer que fosse sem a prévia autorização do Ministério da Viação, quenaquela época supervisionava esse setor. Como eu transferira minhas ações aMarques Rebello sem adotar essa cautela burocrática, meus adversáriosconseguiram ali o pretexto ansiado. Subitamente, Getúlio cedeu às pressões eautorizou que a concessão me fosse confiscada. Nunca soube precisamente oque levou Vargas a recuar; sei, apenas, que ele cedeu. Perdi o controle daRádio Clube, mas não me livrei da dívida junto ao Banco do Brasil. Foi umgolpe duríssimo. Hoje, vejo com clareza que deveria ter recusado a proposta de Hugo

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Borghi. Mas a verdade é que sempre fui um aventureiro, e um aventureiro é,por definição, um otimista. Nenhum pessimista pode transformar-se numaventureiro. Cristóvão Colombo, por exemplo, é possível imaginá-lopessimista? Se o fosse, jamais teria encontrado a América. Assim, passei todaa minha vida agindo como se tudo que fazia estivesse fadado a dar certo. Agidessa forma em relação à Rádio Clube. Em 1953, quando a concessão me foisubtraída e transferida para Emílio Carlos, compreendi que fizera um maunegócio. Meus adversários multiplicaram a intensidade da ofensiva. Em manchetes,os jornais de Chateaubriand anunciavam que eu estava falido. Financistas quenegociavam comigo retraíram-se, anunciantes amedrontaram-se,fornecedores passaram a exigir mais garantias. Ficou evidente, naqueleepisódio, que eu já não era o delfim de Getúlio, já não trafegava com tantodesembaraço pelos corredores palacianos; já não tinha, enfim, tanto poder. Atransferência de ações de empresas radiofônicas para terceiros era rotineira,uma prática generalizada no Brasil. No momento em que uma esquecidanorma legal foi acionada contra o amigo do presidente, tornou-se claro que aamizade já não era a mesma. Eu fora cassado, afinal, justamente pelo governoao qual dava sustentação política. Apesar da surpresa, apesar da decepção,compreendi o gesto de Getúlio. Na luta política, há o momento do avanço, omomento do recuo, o momento da negociação. Naquele instante, Vargasachara conveniente sacrificar a rádio. Compreendi seu gesto, mas continuoconvencido de que ele cometeu um grave erro político. Ficou transparenteque a estrutura política do governo estava gravemente enfraquecida. Até então, meus interlocutores me recebiam como se eu fosse um emissáriodo poder. Entrava na sala do presidente do Banco do Brasil sem pediraudiência e sem bater à porta. Ele sempre achava que, se fizesse cara feia,seria atacado no dia seguinte pela Última Hora e perderia o cargo. E quementrava sem se fazer anunciar no gabinete do Banco do Brasil, naturalmentenão tinha ido lá para conversar amenidades; sempre saía com os bolsoscheios de dinheiro. Quando me tiraram a Rádio Clube, meu prestígio foifundamente abalado. Compreendi então que, se fosse necessário, Getúlio nãohesitaria em sacrificar-me. Decidi que chegara a hora de fortalecer minhaempresa e prepará-la para a eventualidade de ter de sobreviver sem a mãoamiga de Vargas. Ali se rompera uma cadeia que explicava minha força. Eu era o amigo doHomem, que era o amigo do povo. Logo, eu era amigo do povo, que tinha,

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portanto, de comprar meus jornais. Da mesma forma, eu era amigo doHomem, que era o amigo dos industriais progressistas, que tinham, portanto,de anunciar em meus jornais. Essa cadeia foi desfeita no momento em quemeu amigo, o Homem, cedeu a quem intentava destruir-me. Tratei de ir à lutapela sobrevivência, e busquei fórmulas que ampliassem o espaço dapublicidade. A Última Hora tinha, por exemplo, bons anunciantes nocomércio. Mas eles não dispunham de condições econômicas para anunciardiariamente. Ofereci-lhes, então, descontos extremamente atraentes – meuscompetidores não eram capazes de igualá-los. Eu precisavadesesperadamente daquele dinheiro, e fazia todas as concessões possíveispara obtê-lo. Deu certo: em pouco tempo, a Última Hora garantiu um vastoespaço publicitário, que representava um importante fator de sobrevivência elhe permitia reduzir drasticamente seu grau de dependência do governo. Fizhorrores para conseguir anúncios, vendi minha alma ao diabo, corrompi-meaté a medula. Em certas ocasiões, cheguei a namorar filhas de comerciantespara fechar negócio. Mas sempre agi assim para que a Última Horapermanecesse viva, para que resistisse às provações que se aproximavam.

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CAPÍTULO 24 Enquanto durou, minha convivência com Getúlio Vargas foiinvariavelmente fraterna, solta, sem subterfúgios, sem malícia. Éramosamigos e, eventualmente, cúmplices. Ele às vezes me comovia compreocupações paternais – queria saber se minha saúde andava bem, ou faziacarinhosos reparos a algum exagero que eu cometera. Sabia que podia confiarem mim, e confiava-me pequenas intimidades, quase sempre em mensagenscifradas. Certa vez, por exemplo, interessou-se por um isqueiro Dupont queeu usava. – Tu deste um isqueiro como esse para o Jango? – perguntou. Contei-lhe que fizera uma troca com João Goulart. – Não tenho nada para trocar, mas gostaria de ter um isqueiro desses –sugeriu. Deduzi imediatamente que ele pretendia presentear alguma mulher; afinal,Vargas só fumava charutos, isqueiros lhe eram de pouca valia. Dei-lhe meuDupont. Dias depois, revi-o nas mãos de uma mulher da alta sociedadecarioca. Entre 1950 e meados de 1954, quando me afastei do Catete, eu e Getúliotrocamos numerosas demonstrações de real afeto. Sempre que julgavanecessário, eu agia como se pertencesse à família Vargas. Foi assim, porexemplo, quando tentei impedir que dona Darcy e Alzirinha comparecessema uma festa oferecida pelo costureiro Jacques Fath no Castelo de Corbeville,em Paris. O pretexto para a festa seria a apresentação de uma coleção deJacques Fath em tecidos Bangu. Mas eu conhecia os usos e costumes deParis, e sabia até onde poderia chegar um evento desse gênero. Eram festascom alto grau de permissividade, e pressenti que não seria recomendável apresença de parentes do presidente da República. Na véspera da festa, no verão de 1952, pedi a Getúlio que me recebesse emaudiência às nove horas da manhã seguinte. Eu estava muito preocupado. Elenão me respondeu. Conhecia os horários do presidente. Vargas costumavaacordar entre seis e meia e sete horas, fiel aos hábitos madrugadores deestancieiro gaúcho. Depois do banho e do café da manhã, despachava com

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seus oficiais de gabinete entre nove e onze e meia. Nesse horário, ninguémdevia interrompê-lo. Entre um e outro despacho, Getúlio ficava entregue àssuas reflexões, meditando sobre o que faria ao longo do dia. Só à tarde eleconcedia audiências, mesmo a seus ministros. Decidi ir ao Catete e conversarcom o presidente, com ou sem audiência marcada. No Catete, expliquei aLourival Fontes que precisava alertar Getúlio sobre a armadilha que contraele se preparava em Paris. Eu acabara de tomar conhecimento dessa armadilha, e ficara alarmado. Nafesta em Corbeville, Jacques Fath apresentaria à alta costura francesa ostecidos Bangu, utilizando jovens brasileiras para desfilar suas roupas. Umadessas jovens seria Danuza Leão, que eu mal conhecia àquela época. Até aí,nada demais. O problema é que a ideia partira de Assis Chateaubriand, ovelho inimigo de Vargas, que vislumbrava no evento uma ótima oportunidadepara ridicularizar o presidente da República. Jacques Fath chegou ao requinte,sempre em parceria com Chateaubriand, de articular a ida a Paris de um aviãoespecialmente fretado para a festa, que decolou do Rio de Janeiro lotado decolunáveis. Entre os convidados de honra figuravam a mulher e a filha deGetúlio, que já estavam na França. Fui informado de que Carlos Lacerdadestacara repórteres e fotógrafos para cobrir a noitada e transformá-la emescândalo. Getúlio precisava saber disso. No Catete, passei a Lourival Fontes essas informações e exortei-o a alertarGetúlio. – Não vou falar com ele sobre isso – retrucou Lourival. – Trata-se de umassunto privado. Disse-lhe que, nesse caso, eu falaria pessoalmente com Vargas. – Ele não vai te receber – advertiu Lourival. Subi até o segundo andar, onde ficava o gabinete presidencial, bati na porta,alheio aos apelos desesperados de um oficial da Marinha, e entrei. – Dá licença, presidente – anunciei-me a Getúlio, que estava em meio a umdespacho com seu assessor econômico, Rômulo de Almeida. – Que fazes aqui a esta hora, Profeta? – perguntou-me. – Tenho um assunto da maior importância para tratar com o senhor. Ele pediu-me que esperasse um pouco, mandaria chamar-me. Minutosdepois, o presidente convocou-me a seu gabinete, e pude revelar-lhe osdetalhes da trama. – Mas a Darcy vai a essa festa? – espantou-se. Expliquei-lhe que a primeiradama não só iria a Corbeville como também

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presidiria o evento. A mulher e a filha de Vargas estavam em Paris há ummês, e ele imaginava que se tratava de uma simples viagem de férias. Pediu-me detalhes do que se preparava em Corbeville. Contei-lhe o que costumavaocorrer nessas noitadas. Como se tratava de uma festa à fantasia,exemplifiquei, não era improvável que aparecessem nos jornais fotos daprimeira-dama do Brasil ao lado de Jacques Fath vestido de fauno. Seria umexcelente pretexto para Lacerda afirmar que, enquanto o país vivia às voltascom dificuldades econômicas graves, a família presidencial se divertia embacanais parisienses. Inquieto, irritado, Getúlio determinou que eu localizasse Alzirinha em Parise transmitisse suas ordens: ela e a mãe não deveriam ir à festa. Naquelaépoca, um telefonema para a França demorava quatro horas. Consegui ligarpara a embaixada brasileira em Paris e chamei Lourdes Lessa, secretáriaparticular de Getúlio. Lourdes já atendeu com comentários deslumbradossobre a noitada em Corbeville. Tive de quebrar-lhe o entusiasmo,transmitindo-lhe o estado de espírito do chefe. Constrangida, Lourdes passouo telefone a Alzirinha. Repeti o recado à filha de Getúlio, mas foi inútil. Aprincípio, Alzirinha respondeu que, diante das ordens do pai, desistiria decomparecer à festa em Corbeville, mas avisou que dificilmente alguémconvenceria dona Darcy a fazer o mesmo. Depois, ela decidiu que tambémiria, porque não pretendia deixar a mãe sozinha em Corbeville. Voltei aGetúlio e relatei-lhe a conversa que tivera com Alzirinha. Ele reagiu com umsonoro palavrão – não sei se endereçado à mulher e à filha, que haviamresolvido desobedecer, ou a Assis Chateaubriand, que decidira infernizar-lhea vida. Infelizmente, minhas previsões se confirmaram. Dois dias depois, quandochegaram as fotos de Paris, Lacerda publicou-as com enorme destaque,dedicou quatro páginas à festa de Jacques Fath e batizou-a de “A Bacanal deCorbeville”. Getúlio determinou a Dona Darcy e Alzirinha que ficassem maisalgumas semanas na Europa, até que a celeuma provocada por Lacerdaamainasse. Mas a família do presidente fora duramente atingida no planomoral. Minha intimidade com Getúlio transformou-me num intermediárioprivilegiado e, compreensivelmente, num alvo irresistível para interessadosno tráfico de influências. Mesmo figuras importantes procuravam minhaajuda, seduzidas pela soma de poderes que eu conquistara. Foi o caso deWalter Moreira Salles, então um banqueiro já bastante poderoso. No começo

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de 1952, Walter convidou-me para um almoço no Clube Internacional, umdos mais exclusivos do Rio de Janeiro. Durante a conversa, confidenciou-meque gostaria de voltar à vida pública. Eu quis saber exatamente o quedesejava, e ele me revelou que ambicionava ser nomeado embaixador emWashington. Naquele momento, a embaixada era chefiada por um adversáriode Getúlio, e sua substituição parecia inevitável. Havia pelo menos doiscandidatos: Euvaldo Lodi, o influente industrial paulista, e Walter Sarmanho,cunhado de Vargas. Achei que Walter Moreira Salles tinha boas chances deconseguir o posto, inclusive porque mantinha um ótimo círculo de amizadesnos Estados Unidos. Dispus-me a trabalhar por sua indicação, e Walter quis saber o que eudesejava em troca. Conversa muito franca, como se vê. Pedi-lhe que meconseguisse recursos para comprar uma rotativa, ele concordou prontamente.Fui a Getúlio, transmiti-lhe o pleito de Walter e esclareci que se a indicaçãose consumasse a Última Hora receberia um tipo de apoio muito importante.Getúlio ponderou que não seria fácil e forneceu-me indícios de que já seresolvera pela nomeação de Euvaldo Lodi. Insisti. No fim da conversa, eleme pediu que conversasse com Lodi e averiguasse seu real interesse peloposto em Washington. Conversei com Lodi pouco depois, e dele ouvi quenada o faria trocar a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo peloposto de embaixador nos Estados Unidos. Imediatamente, passei a Getúlio osresultados da sondagem, cada vez mais confiante na indicação de WalterMoreira Salles. No sábado de carnaval de 1952, o presidente convocou-me ao Palácio RioNegro, em Petrópolis, onde passava as férias de verão. No meio da conversa,informou-me que gostaria de encontrar-se o quanto antes com Walter MoreiraSalles para submetê-lo a uma sabatina. Compreendi que a indicação deWalter estava prestes a consumar-se, e que não poderíamos perder tempo.Alzirinha Vargas não era contra essa nomeação, mas fez algumasobservações. Jango continuava a defender o nome de Sarmanho e outrasfiguras do governo antagonizavam meu candidato. Eu precisava agir comrapidez. Mobilizei inúmeros amigos comuns para que localizassem Walter eo fizessem aparecer no Palácio Rio Negro o quanto antes. Consegui afinalencontrá-lo e, na noite daquele mesmo sábado, ele e Getúlio conversaramdepois do jantar. Eu estava presente ao gabinete de Getúlio quando Walter chegou. Fizmenção de retirar-me, mas o presidente determinou que ficasse, observando

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que eu era amigo do ambos. Assisti à sabatina e pude testemunhar ahabilidade do candidato a embaixador. Vargas fez-lhe perguntas sobre apolítica externa brasileira, sobre a possibilidade de captação de novosempréstimos no exterior e sobre outros detalhes da ação do Itamaraty. Waltersaiu-se muito bem, e Getúlio preveniu-o de que poderia nomeá-lo para umaembaixada. Pouco depois, ele foi efetivamente indicado para o posto emWashington, conforme ambicionava. O banco de Walter fez-me o empréstimo prometido. Assinei uma notapromissória, convencido de que jamais seria cobrada. Tratava-se, afinal, deum jogo político. Eu lhe dera um empurrão decisivo para a carreira dehomem público. Em troca, ele ajudara meu jornal. Mas eu teria uma enormedecepção com Walter Moreira Salles alguns anos depois, quando precisei deum novo empréstimo para impedir que a Última Hora fosse fechada.Procurei-o em seu palacete na Gávea para expor-lhe o problema e solicitar-lhe a quantia necessária. Não era muita coisa. Mas ele ponderou que, àquelaaltura, ligar-se a mim era arriscado, e que só poderia atender-me depois deconsultar seu advogado, San Thiago Dantas. Feita a consulta, o homem queeu ajudara a nomear embaixador em Washington negou-me o empréstimo.Mais tarde, Walter cobrou-me também a promissória que eu assinara emgarantia do primeiro empréstimo. Perplexo, paguei-a com publicidade. Eraassim o jogo do poder. Naqueles anos, confundi-me de tal forma com a imagem do poder que, acerta altura, até mesmo minha vida sentimental pareceu merecer seradministrada por critérios baseados em razões de Estado. Em junho de 1954,às vésperas do meu casamento com Danuza Leão, dona Darcy chamou-mepara oferecer um conselho: – Você não deve casar-se com essa menina – disse a primeira-dama. Danuzinha enfrentava aquela sociedade com a mesma desenvoltura de umaJane Fonda combatendo índios no cinema. Fazia horrores, indiferente aoscomentários em torno. Podia, por exemplo, pintar os cabelos de roxo e assobrancelhas de vermelho, caso sua cabeça lhe ditasse tais cores. Danuza agiasegundo bem entendesse, era uma figura desafiadora, e casar-me com elaconfigurava mais uma afronta a uma sociedade que me encarava comointruso. Primeiro, o judeuzinho do Bom Retiro ousara juntar-se ao clube daimprensa. Agora, casava-se com a musa do Country Club. Era demais. DonaDarcy não tinha, naturalmente, essa espécie de preconceito. Ela apenasdesconfiava de que a ousadia era excessiva.

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Quando me casei com Danuza, em junho de 1954, eu já não era muito bem-vindo ao Catete. Getúlio continuava a demonstrar-me muita estima, masestava claro que minha presença se tornara incômoda. Gestos, olhares,sussurros – toda a coreografia dos áulicos mostrava que todos ficariam muitofelizes se eu deixasse de aparecer no Catete. Nada disso me preocupava;interessava-me, como sempre, Getúlio Vargas. Num determinado momento,constatei que o presidente sairia ganhando com a minha ausência, e só entãodecidi procurá-lo para conversar sobre o meu destino. Àquela altura, acampanha contra a Última Hora atingira níveis decididamente perigosos,graças também a erros que eu cometera, alguns deles com a plena aprovaçãode Getúlio. Um desses erros foi estimular a instalação de uma comissãoparlamentar de inquérito para investigar a trajetória da Última Hora. A ideia da constituição de uma CPI surgiu durante uma viagem de carroentre São Paulo e o Rio de Janeiro, em companhia de Maurício Goulart.Estávamos no começo de 1953 e, embora estivessem em moda nos EstadosUnidos, graças ao macartismo, investigações promovidas pelo Congressoeram virtualmente inéditas no Brasil. Eu e Maurício conversávamos sobre acampanha de extermínio comandada por Carlos Lacerda quando me ocorreu aideia da CPI. Como o governo tinha maioria no Legislativo, raciocinei,poderíamos neutralizar as espertezas da oposição udenista. E, concluídas asinvestigações, que fatalmente penderiam pela absolvição da Última Hora,seria difícil a Lacerda insistir nas denúncias. Maurício achou que essa poderiaser uma boa solução. Foi meu grande erro. Primeiro: eu deveria ter percebido que a maioriagovernista no Congresso era fictícia – muitos deputados não hesitariam ematraiçoar o presidente. Segundo: mesmo parlamentares francamente getulistasnão tinham maior simpatia por mim; faltavam-lhes, portanto, motivos paradefender-me. Mais grave ainda, só depois constatei que, quando propus aformação da CPI, Lacerda estava perdendo fôlego. Talvez prosseguisse nacampanha, movido por seu ódio inesgotável, mas o certo é que começava afaltar-lhe combustível. Lacerda entendeu imediatamente que a CPI lheforneceria o palco ideal para o show de falso moralismo que sempre soubeencenar. Essa percepção faltou até mesmo a Getúlio Vargas: quando lheapresentei a ideia que tivera, o presidente aprovou-a de imediato. Nenhum denós anteviu que estávamos oferecendo ao inimigo justamente a arma de quenecessitava. A vaidade me induziu a outros erros, um dos quais foi enfrentar a primeira

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fase das investigações sem um advogado para orientar minha defesa. Opteipor uma linha demasiado romântica. Para rebater as acusações forjadas contramim organizei, com Otto Lara Resende, um documento que batizamos de “OLivro Branco da Imprensa Amarela”. Esse documento é hoje uma peçaindispensável à compreensão da história do jornalismo brasileiro, mas apenasexcitou, àquela altura, os interesses que se conjugavam para tentar um assaltofinal à Última Hora. A maioria dos integrantes da CPI fora pessoalmente indicada por Getúlio,mas logo ficou claro que poucos mereciam confiança. Quase todos passarama exigir vantagens – nomeações, favores – em troca do apoio a mim. À frentedos meus adversários, Lacerda recorreu aos serviços do escritório deadvocacia de José Nabuco e montou o cerco. Em vez de articularcuidadosamente minha defesa, preferi divertir-me redigindo com Otto LaraResende o “Livro Branco”. Rimos muito durante duas, três noites, ao longodas quais rebati todas as acusações que me eram feitas e distribuí bordoadasnas cabeças de todos os meus acusadores. Mas eu pagaria caro por tamanhaingenuidade. Os trabalhos da comissão se estenderam por meses a fio,dezenas de pessoas foram ouvidas, e as pressões contra mim e a Última Horase tornaram terrivelmente agudas. Apesar do farisaísmo das acusações, sofrium cerco tremendo. Se eu tivesse recorrido a tempo à ajuda de advogados,certamente escaparia a esses dissabores, sempre provocados por escorregõesdecorrentes do meu desconhecimento jurídico. Decididamente, eu enfrentava profissionais, capazes de aparar meus golpese, sempre que possível, até mesmo metamorfoseá-los em trunfos a seu favor.Num de meus depoimentos, por exemplo, comecei a descrever a situação daimprensa, classificando os jornais pela tiragem, e resolvi ironizar a péssimacirculação da Tribuna da Imprensa. Em primeiro lugar, frisei, aparecia aÚltima Hora. Discorri rapidamente sobre os outros jornais e cheguei àTribuna: “Como um lanterninha da imprensa, aí está esse jornal que recebiadinheiro dos católicos”, ironizei, usando o jargão do futebol. Aconselhadopor amigos, Lacerda escreveu prontamente um editorial em que prometiatransformar-se na lanterna de Diógenes, para sair às ruas não à procura de umhomem honesto, mas de ladrões. Em seguida, fundou o Clube da Lanterna,que reuniria lacerdistas fanáticos, as célebres mal-amadas e oficiais golpistas.Sem dúvida, Carlos Lacerda era um adversário perigoso.

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CAPÍTULO 25 Era uma guerra sem quartel, sem tréguas, sem limites. O objetivo dos meusinimigos – destruir a Última Hora – não seria alcançado sem que eu fossedestruído, e precisamente por isso as agressões pessoais não conheciamfronteiras. Eu revidava também agressivamente, com dureza. Como o jornalera um sucesso, tinha ali uma fortaleza muito bem guarnecida.Entrincheirados na redação, eu e meus companheiros alternávamos virulentasofensivas contra Lacerda e períodos em que o ignorávamos por completo. Elesentia nosso desprezo por sua figura, e isso o feria profundamente. Afinal,tratava-se de um homem que acuava presidentes, derrubava ministros,intimidava generais, quebrava bancos. Não podia admitir que alguémsimplesmente o desprezasse. Creio que uma das razões de minha sobrevivência como homem e comoprofissional foi a dignidade que sempre mantive em relação a Lacerda, acoerência da minha postura durante a luta e depois dela. Jamais admiti apossibilidade de acordos, jamais cogitei qualquer espécie de acerto. Aceitei ocombate, e soube enfrentá-lo de peito aberto. Hoje, tenho consciência de queo grande papel da Última Hora, neste aspecto, foi desmistificar a imagem deCarlos Lacerda. Nós o mostramos ao país como ele realmente era, golpeamosduramente a imagem que Lacerda pretendia tornar oficial. Se algum jornaltivesse desempenhado papel semelhante no começo da ascensão de AdolfHitler, a história da Alemanha – e do mundo – poderia ter sido outra. Esse pensamento me ocorreu quando ouvi, no rádio do carro, a notícia damorte de Carlos Lacerda. Ele foi o responsável direto pela interrupção doprocesso de fortalecimento econômico da Última Hora, impedindo que seconsolidasse no Brasil a imprensa genuinamente popular. Em contrapartida,meu jornal impediu que ele se tornasse um ditador. Costumo dizer que a Última Hora tinha tudo para transformar-se numaVolta Redonda da imprensa brasileira. Para fechar o caminho a um jornalpopular, nacionalista, Carlos Lacerda usou métodos de terrorismo psicológicoaté então desconhecidos no país. Atento às técnicas macartistas em curso nosEstados Unidos, ele passou a amedrontar as pessoas que se aproximavam de

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mim mesmo em encontros casuais numa rua qualquer. A Tribuna daImprensa divulgava informações do tipo “Fulano foi visto conversando comSamuel Wainer na avenida Rio Branco. Trajava um terno azul e gravatalistrada. O que será que estavam conversando?”. Era um clima de completoterror, e mesmo velhos amigos meus começaram a mostrar-se assustados. Mas a Última Hora sabia revidar, sem dúvida. Escrevíamos artigos terríveiscontra Carlos Lacerda, vigiávamos estreitamente seus passos e,principalmente, não perdíamos chances de ridicularizá-lo. Às vezes algumatentativa nessa direção falhava, como ocorreu no episódio em que apontei aTribuna da Imprensa como “lanterninha” entre os jornais. Em outrasocasiões, contudo, atingíamos o alvo em cheio. Foi assim no incidente apartir do qual Lacerda seria nacionalmente conhecido como “Corvo”. Trabalhava comigo um repórter policial chamado Nestor Moreira. Era,como tantos outros, um repórter sem maior brilho, que percorria o submundodas delegacias e depois telefonava para a redação transmitindo as ocorrênciado dia. Num dia de 1954, Nestor Moreira teve um atrito com um policial,lotado numa delegacia de Copacabana, cujo apelido era “Coice de Mula”.Não sei exatamente o que ocorreu, mas o fato é que Nestor foi espancado emorreu. Jornalista, como sabemos, não pode sequer ser agredido, muitomenos morrer: para os demais jornalistas, trata-se de uma espécie de atentadoao patrimônio nacional. Nesses momentos, explode o conhecido sentimentode solidariedade existente na imprensa brasileira, que já fabricou tantosmártires. Nestor Moreira seria um deles. Tão logo começou a correr a notícia de sua morte, os inimigos de Getúliolançaram-se à tentativa de transformar o fato numa questão política quecomplicasse o governo. Nestor Moreira teve um enterro com o qual jamaissonhara. Seu corpo foi levado para a Câmara Municipal, o povo desfilou aolado do esquife. Os organizadores da cerimônia decidiram que o repórterdeveria ser enterrado no Cemitério de São João Batista. Sempre detesteicomparecer a enterros, e decidi que não iria ao de Nestor Moreira. O pessoalda redação começou a pressionar-me, com aqueles apelos de sempre: “MasSamuel, ele gostava tanto de você...” Acabei cedendo. No cemitério,encontrei-me com Octávio Malta e Moacir Werneck de Castro. Fiquei a umcanto, observando o espetáculo. Passavam por mim políticos com fisionomiacontrita, bandos de jornalistas, todos incorporados à encenação. De repente,vi Carlos Lacerda. Lacerda estava vestido de preto dos pés à cabeça, aspecto solene, rosto

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compungido, ar sofredor. Era o retrato da revolta humana frente à violênciacometida contra um humilde jornalista, vítima da arbitrariedade política.Quando vi a cena, senti-me enojado. – Vou-me embora – disse a Octávio Malta. – Não agüento ver a cara dessecorvo na minha frente. Sempre que ocorria alguma morte interessante, lá estava Carlos Lacerda.Era um corvo. Nesse momento, o repórter Edmar Morel aproximou-se demim em missão conciliatória. – Samuel, esta hora é para se esquecer divergências. Venha dar a mão aoCarlos – sugeriu. – Dar a mão à puta que pariu! – reagi. – Como é que você, Morel, que é meurepórter, meu amigo, tem coragem de propor uma coisa dessas? O Carlos nãoé jornalista, detesta reportagens de polícia e nunca viu o Nestor Moreira emsua vida. O que vou fazer é ir embora! Voltei para a redação cuspindo fogo. A meu lado estava Paulo Silveira. – Você viu o Carlos? – eu repetia, irritadíssimo. – Ele estava com cara decorvo! Na redação, convoquei à minha sala o caricaturista Lan e pedi-lhe quedesenhasse Lacerda como um corvo. Em seguida, propus a Paulo Silveira queescrevêssemos um editorial cujo título, naturalmente, foi “O Corvo”. O texto,longo e violento, descrevia a cena que vira no cemitério e desancava Lacerda.Nunca mais o apelido deixaria de acompanhá-lo. Mesmo os funcionários deseu jornal passaram a referir-se ao chefe como “A Ave”, um bom eufemismo.Nos comícios de que Lacerda participava, era comum ouvir-se uma vozberrando no meio da multidão: “Cala a boca, corvo!” Aquilo marcou Lacerdapara sempre, e naturalmente ampliou o ódio que sentia em relação a mim. Desde 1952, esse ódio agudo, visceral, vinha-se multiplicando, e podia sercaptado em todo o país. Na Tribuna da Imprensa e nos Diários Associados,reportagens, artigos e editoriais fustigavam-me diariamente. Graças à TVTupi, a figura de Lacerda tornara-se familiar a centenas de milhares deespectadores, que a cada noite ouviam mais acusações contra mim. E o cercose tornou incomparavelmente mais agressivo a partir de 12 de julho de 1953.Nesse dia, o Diário de São Paulo, um dos jornais da cadeia de AssisChateaubriand, publicou uma manchete que agitaria o país: WAINER NÃO NASCEU NO BRASIL

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Na véspera do dia em que essa manchete explodiu, um velho jornalista quetrabalhava no Diário de São Paulo telefonou para Octávio Malta, entãoredator-chefe da Última Hora, e passou-lhe a notícia: o jornal deChateaubriand estava preparando uma edição destinada a provar que eunascera numa aldeia chamada Yedenitz ou Yedintsy, na Bessarábia. Foi parteda Transilvânia, a terra do Drácula, região que hoje pertence à UniãoSoviética. Malta, meu amigo há mais de trinta anos, ficou perplexo. Não épossível, reagiu ele, ninguém é mais brasileiro que o Wainer. O informanteinsistiu: “O Samuel é bessarabiano, e acho que vocês devem tomarprovidências.” Malta veio imediatamente à minha procura com a informação. Eu lhe disseque a versão preparada pelo Diário de São Paulo era falsa, mas compreendide imediato que a manobra teria um impacto fortíssimo. Primeiro, porque eusempre estivera na vanguarda das campanhas nacionalistas – o nacionalismotalvez fosse a principal bandeira da Última Hora, e ficaria difícil sustentar talpostura na condição de estrangeiro. Depois, porque a denúncia a serpublicada pelo Diário de São Paulo suscitaria uma complicada questão legal,já que, segundo a Constituição, nem estrangeiros nem brasileirosnaturalizados podiam ser donos de jornal. Pressenti que a denúncia poderiasemear o pânico na redação: e se me tomassem a Última Hora?, certamentese perguntaria meu pessoal. Preparei-me para a luta, consciente de que, dessavez, eu estaria francamente na defensiva. No dia seguinte, li o jornal deChateaubriand. Ali se afirmava, em letras garrafais, que eu não era brasileiro.A suposta prova: um documento datado de 1927, extraído dos arquivos doColégio Pedro II, no Rio, onde eu estudara. Nesse documento, meu irmãomais velho, Artur, dizia que eu havia nascido na Bessarábia. O documento fora obtido graças à ação de Carlos Lacerda e AssisChateaubriand, que, auxiliados por Armando Falcão e David Nasser, haviamvasculhado os arquivos do Ministério da Educação. Segundo o documento,eu chegara ao Brasil com dois anos de idade. Desencadeada a controvérsia,meu irmão Artur sustentou que fora ele o único responsável pela afirmaçãode que eu não nascera no Brasil. Argumentou que assim agira porque asfamílias de imigrantes, traumatizadas com os horrores da guerra dos quaishaviam sido testemunhas, temiam que seus filhos fossem convocados peloExército do país onde tentavam refazer a vida. Ao declarar-me estrangeiro,portanto, Artur procurara exclusivamente poupar a família dos traumasassociados ao serviço militar, que nossos antepassados experimentaram de

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forma tão dramática. Meus inimigos, previsivelmente, não deram créditoalgum à versão de Artur. Era a palavra do irmão de um réu, nada mais. Como essa espécie de delito – falsidade ideológica – é, segundo alegislação, objeto de ação pública, vivi uma situação bastante estranha: fuiprocessado pelo governo de Getúlio Vargas, justamente o governo que setentava atingir com a denúncia. Getúlio, por sinal, costumava brincar com ocaso. “Então, o Profeta é bessarabiano...”, dizia, entre gargalhadas. Ao longodo processo, entendi que a palavra bessarabiano podia ser pronunciada comduas entonações diametralmente opostas. Os amigos, como Getúlio, sempre apronunciavam em tom afetuoso. Outros, com ódio. Lacerda e Chateaubriand pronunciavam-na com ódio. Em seus jornais,sucediam-se manchetes sempre agressivas. “CONFIRMADO: WAINERNASCEU NA BESSARÁBIA”; “AFINAL, POR QUE ELE QUER SERBRASILEIRO?”; “WAINER CHEGOU AO BRASIL COM DOIS ANOS.”Assis Chateaubriand, nessa campanha, não poupou esforços para destruir-me.A certa altura, enviou à Bessarábia o repórter David Nasser e o fotógrafo JeanManzon, incumbidos de localizar Yedenitz. Foi uma reportagem que nãohouve. Castigada por tantas guerras, é possível que Yedenitz nem existissemais; se existisse, não haveria nenhum Wainer por lá. Chateaubriand nãosabia disso. Tampouco sabia disso o repórter David Nasser. Quero aqui abrir um parêntese para falar de David Nasser. Nessa luta quesustentei contra Lacerda e Chateaubriand, David Nasser foi sempre umafigura menor, mas igualmente carregado de odiosidade contra mim. O abismoque me separava de Lacerda, ou de Chateaubriand, era perfeitamenteexplicável, houvera razões para tanto. Em relação a David, faltavam motivosrazoáveis. Ele fora meu repórter no início da carreira, e eu sempre o ajudara,sempre o apoiara, dera-lhe chances. Conheci-o ainda muito pobre,trabalhando em Diretrizes. Depois ele seria contratado pelos DiáriosAssociados, para ali iniciar uma carreira que o transformaria em milionário. Creio que David Nasser teve dois trunfos a seu favor. Primeiro, suacapacidade sem limites para a exploração de temas sensacionalistas.Segundo, a parceria com o fotógrafo francês Jean Manzon. Um grandefotógrafo, moderno, terrivelmente talentoso. Ao chegar ao Brasil nos anos 40,Manzon trazia na bagagem algumas proezas. Foi ele, por exemplo, o autor daúnica foto de Nijinsky louco, no manicômio, dançando para a objetiva. Osflagrantes de Jean Manzon eram geniais. Ele usava um equipamentoextremamente moderno para conseguir esplêndidos registros. Ao juntar-se a

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David Nasser, acabou ajudando de modo decisivo um repórter cujacompetência estava bastante abaixo da do seu parceiro. Juntos, David Nasser e Jean Manzon fizeram reportagens de granderepercussão, e logo se tornaram as estrelas da revista O Cruzeiro. Numaocasião, os dois utilizaram um truque muito comum no jornalismo parainduzir um deputado chamado Barreto Pinto a posar de cuecas para a suarevista. Manzon disse a Barreto Pinto que pretendia fotografá-lo de casaca.Como só apareceria o busto, garantiu o fotógrafo, não seria necessário vestircalças. Barreto Pinto, um pobre diabo, uma figura grotesca que Getúlioajudara a eleger também para ridicularizar o Congresso, caiu na armadilha eposou de casaca e cuecas. Manzon fotografou-o de corpo inteiro e, tão logo acena grotesca surgiu nas páginas de O Cruzeiro, sublinhada por um texto deDavid Nasser, o Congresso entendeu que o decoro parlamentar forairremediavelmente afetado. Barreto Pinto acabou cassado pelos própriosdeputados, e David Nasser pôde apresentar-se como um campeão damoralidade. David atirava-se com voracidade a todos os casos que cheirassem asensacionalismo, para abordá-los com seus artigos violentos, verborrágicos,audaciosos. Foi assim no famoso “Caso Aída Curi”, uma jovem cariocaestuprada e jogada do alto de um prédio em Copacabana. De todos osepisódios desse gênero, David Nasser tirava algum proveito financeiro – elejamais se colocava gratuitamente de algum lado. Aos poucos, foi-sevinculando aos setores mais direitistas, mais reacionários da políticabrasileira, até tornar-se seu porta-voz. Ali encontraria o caminho paraenriquecer. Por sempre ter sabido escolher o lado que mais lhe convinha, orepórter pobretão que eu conhecera chegou ao fim da vida promovido aempresário e grande pecuarista. Poucas figuras foram tão nefastas à profissão de jornalista quanto DavidNasser: ele é a prova acabada de que é possível enriquecer utilizando emproveito próprio os instrumentos oferecidos pela profissão. Eu fui dono deempresa e poderia perfeitamente ter-me tornado milionário. Pois jamaischeguei a ficar rico, embora os inimigos me acusassem de ladrão, bandido,gângster, corrupto. Já David Nasser, um mero repórter, além de autor demodestos sambinhas de carnaval, conseguiu juntar enormes quantias. Não épossível tê-lo feito honestamente. Igualmente intrigante, por sinal, é oprocesso de enriquecimento de Carlos Lacerda. Ainda no fim dos anos 40, eleera apenas um colunista de jornal. Depois de assumir o comando de um

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jornal permanentemente deficitário e de passar à militância política, deixouuma fortuna. Acho tudo isso muito estranho, até porque Lacerda sempre foium mau empresário, sem qualquer ousadia, que se atemorizava diante danecessidade de assinar alguma nota promissória. David Nasser, admito, era mais arrojado. Ele conseguiu destacar-se entre ogrupo de bajuladores que cercava Chateaubriand, o que não era fácil. Só sereferia a Chateaubriand como “meu velho capitão”. Cinicamente, simulavaem público discordar do chefe, apenas para depois sentir-se ainda mais livrepara bajulá-lo. Quando Chateaubriand indicou os 21 integrantes docondomínio acionário que iria sucedê-lo, David foi um dos escolhidos.Talvez fosse, dentre todos, o que mais se assemelhasse ao chefe. Ambos separeciam na odiosidade, no reacionarismo, na falta de generosidade, nomercenarismo. Ao ampliar sua influência nos Diários Associados, Davidpassou a usar as armas da pressão, da corrupção, eventualmente dachantagem, para fazer fortuna. A partir de 1964, tornou-se o principalintermediário entre os empreiteiros e o governo. Empreiteiros com algumasoma a receber procuravam David Nasser para que ele apressasse opagamento. Naturalmente, era um trabalho que lhe rendia enormescomissões. Eu raramente respondia aos ataques de David Nasser. Essa era uma dastécnicas que eu usava: concentrava-me nos alvos principais, como Lacerda eChateaubriand, e evitava perder tempo com figurantes. Ele seguia destilandoseu ódio, que não arrefecia nem mesmo quando eu parecia vencido. Em 1964,por exemplo, quando tive de exilar-me, David escreveu um artigo raivoso,detestável, cujo título era “Boa viagem, Samuca”. Movido por tamanha cargade ódio – uma decorrência, imagino, da frustração que sentia ao constatarminha superioridade profissional sobre ele, David Nasser participou comentusiasmo sádico da campanha destinada a destruir-me, e que chegou a seuauge quando se levantou a questão da minha nacionalidade. Nessa mesma ofensiva de que David Nasser participou, outros repórteresforam despachados para o bairro do Bom Retiro, em São Paulo, eencarregados de encontrar provas que confirmassem minha condição deestrangeiro. Nada conseguiram. Em seguida, Chateaubriand ordenou quevasculhassem a documentação relativa aos passageiros dos navios que, entre1905 e 1920, haviam deixado o porto de Gênova, na Itália, com destino aoBrasil. Ele sabia que os Wainer haviam embarcado em Gênova, cujo portoera o ponto de partida obrigatório para os imigrantes que vinham da

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Bessarábia. Também aí a busca revelou-se inútil. É preciso registrar que, em meio a essas manifestações de ódio, fui alvo decomovedoras demonstrações de afeto e solidariedade. Durante o processo,vários judeus do Bom Retiro, por exemplo, ofereceram-se para testemunharque haviam assistido à minha circuncisão, prova de que eu nascera aqui. Naimprensa, contudo, o clima era de completa hostilidade – só a redação daÚltima Hora combatia a meu lado. Quanto aos outros jornais, não encontreisequer quem me ajudasse pela via da omissão. Paulo Bittencourt, dono doCorreio da Manhã, dissera no início da ofensiva que nada faria paraprejudicar-me. Acreditei, sobretudo porque se tratava de um homem deorigens aristocráticas, um cavalheiro. Fui à casa de Paulo Bittencourt, certanoite, para pedir-lhe que continuasse fora da polêmica. Ele prometeu que nãotomaria partido. Poucos dias depois, o Correio da Manhã publicou umraivoso editorial contra “o bessarabiano”. Compreendi, àquela altura, que teria de guerrear sozinho contra todos.Convoquei meus auxiliares diretos na redação da Última Hora para dizer-lhesque estávamos numa luta de vida ou morte, e que nossos adversários teriamde ser enfrentados no campo de combate que haviam escolhido. A partir daí,nada nos escapava. Publicávamos fotos de Chateaubriand dormindo emsessões do Senado, apontávamos erros de edição em seus jornais, usávamosadjetivos duríssimos nas manchetes da Última Hora. O jornal mantinha aqualidade, mas já começava a sofrer as consequências da retração dosanunciantes; ao perceberem que o cerco se fechava, eles procuravam afastar-se do alvo da maldição. A certa altura, os salários passaram a ser pagos comatraso, ou através de expedientes um tanto extravagantes. No dia dopagamento, alguns de meus jornalistas recebiam, em vez de dinheiro,geladeiras, panelas de pressão, coisas desse tipo. Tais dificuldades, numprimeiro momento, envolveram a luta numa atmosfera romântica. Mas todossabíamos que não poderia ser sempre assim, e não demorei a constatar quepassara a hora de romantismos.

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CAPÍTULO 26 Nada teve de romântico o interrogatório a que fui submetido, no início de1953, num distrito policial do Mangue, a zona do meretrício do Rio deJaneiro. A escolha desse local obedecia a uma estratégia cujo objetivo erahumilhar-me. Eu poderia ter sido levado a uma delegacia de Copacabana, oudo Centro – em qualquer delas poderia ter sido instaurado o inquérito. Não:quiseram que eu fosse ao Mangue, e para ser colocado diante do únicodelegado negro do Rio de Janeiro. Ele se chamava dr. Lírio Branco do Brasil,e era titular do 14° Distrito. Foi ali que ouvi uma pergunta inesquecível: – Senhor Wainer, qual é a primeira imagem física que o senhor guarda dasua pátria? Ele certamente esperava que eu me referisse às estepes da Bessarábia.Respondi-lhe que a mais remota imagem guardada em minha memória era ada várzea do Bom Retiro, e descrevi em pinceladas ligeiras os jogos defutebol com os amigos, os passeios de barco no Tietê inundado. – Ah, que belas imagens! – exclamou o delegado. – Mas o senhor não temoutras? – insistiu. Ele continuava sonhando com as estepes bessarabianas. Disse-lhe quepoderia descrever outras imagens; bastaria repetir o que me contara minhaavó Raquel, nascida na Bessarábia, mulher com quem tive sempre enormeafinidade. O dr. Lírio Branco do Brasil pareceu novamente bemimpressionado. – Esse é um sinal de bom caráter – decidiu. – Eu também tinha uma ligaçãomuito forte com minha avó. O diálogo ia tomando rumos surrealistas. Aproveitei o clima e seguifalando de minha avó Raquel. Contei que, no carnaval, eu costumavacomprar-lhe frascos de lança-perfume, que ela adorava. A velha Raquelficava encantada com aquele perfumezinho, e retribuía o presente comhistórias ocorridas na aldeia onde meus antepassados haviam vivido porquase dois mil anos. A certa altura, o delegado resolveu cortar aquelas reminiscências. – Então, por que o senhor fez esse pedido de inscrição no Colégio Pedro II

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afirmando ter nascido na Bessarábia? – perguntou. Expliquei-lhe que fora uma decisão de meu irmão mais velho, eu era umacriança naquela ocasião. – Na minha família também era assim, o irmão mais velho comandava tudo– emendou o dr. Lírio Branco. O estranho diálogo foi testemunhado por jornalistas do Brasil inteiro evários correspondentes estrangeiros. É provável que a maioria deles tenhaficado simplesmente perplexa. Hoje, quando lembro o episódio do interrogatório, não resisto à vontade derir – tudo aquilo foi demasiado grotesco. Outros capítulos do drama que vivi,contudo, nada tiveram de divertido. Foram terríveis. Um deles, especialmenteamargo, envolveu um de meus irmãos, José. Em julho de 1953, decidido asocorrer-me, José entendeu que poderia encontrar no Ministério do Trabalhoalgum documento capaz de comprovar que nossa família chegara ao Brasilem 1905. Nesse caso, eu teria indiscutivelmente nascido neste país. Josécirculou alguns dias pelos corredores do Ministério. Encerrada essa incursãoburocrática, ele trazia uma declaração, subscrita por um funcionário doMinistério, segundo a qual uma família Wainer teria aportado no Brasil em1905. Depois de examinar o certificado, telefonei para meu advogado ecomuniquei-lhe o que tinha em mãos. O advogado ponderou que nãoconvinha divulgá-lo naquele instante: melhor guardá-lo para algum momentodecisivo, durante o julgamento. Ao saber da existência do documento, porém, o pessoal da redaçãoameaçou rebelar-se. Todos ali estavam convencidos de que era indispensáveltorná-lo público o quanto antes. Octávio Malta veio à minha procura com ainformação de que seria impossível controlar a redação se não publicássemoso documento. – A cidade está tomada pelo boato de que o jornal será fechado amanhãporque Samuel Wainer é estrangeiro – advertiu Malta. – Se nãoapresentarmos qualquer contraprova mostrando que você é brasileiro, todomundo vai desertar do jornal, porque não haverá como resistir. Então, concordei com a divulgação do documento. No dia 18 de julho de1953, a primeira página da Última Hora soltava a manchete: "CHEGA AOFIM A GRANDE CHANTAGEM". A prova era o certificado do Ministério do Trabalho. A princípio, Lacerda eChateaubriand ficaram desconcertados, mas souberam reagir com rapidez. Nodia seguinte, Lacerda, acompanhado por David Nasser e Armando Falcão,

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praticamente invadiu o Ministério do Trabalho, à caça do documento quehavia fundamentado a solicitação do certificado pelo meu irmão. Tratava-sede um rol de roupas pertencentes a uma família Wainer, descoberto por Joséno meio daquele mundo de papéis. Segundo a versão que seria depoismartelada por meus inimigos, meu irmão teria alterado a data: onde estava1920 ele escrevera 1905, para depois apresentar o documento a umfuncionário do Ministério e pedir o certificado. Um grafólogo contratado porLacerda examinou o papel e afirmou que ocorrera uma falsificação, por sinalexecutada com tinta fresca. Foi um escândalo. José acabou envolvido noprocesso, acusado de responsável pela fraude, e a intensidade da ofensivacontra mim tornou-se ainda mais aguda. Vistas à distância, essas coisas todas parecem inverossímeis. Admitamosque eu de fato tivesse chegado ao Brasil com dois anos de idade. Aindaassim, toda a minha história posterior era uma prova de que, além de ser umbrasileiro, sempre amei este país. Pois Lacerda e Chateaubriand enviavamrepórteres ao Bom Retiro à procura de velhos judeus dispostos a testemunharque só me tinham visto andando por aquelas ruas já com três anos de idade. Éridículo, mas foi exatamente assim. Eu conseguira obter uma certidão denascimento aos dezesseis anos, num cartório do Rio de Janeiro, atestando queeu era brasileiro nato, e do Bom Retiro. Claro que não agira dessa formaguiado pela premonição de que um dia seria dono de um jornal. É que asvelhas famílias de imigrantes chegavam ao Brasil quase sempre semdocumentos, despreocupadas com papéis – mais tarde, raciocinavam,tratariam de providenciá-los. Pois meus adversários tentaram apresentarminha certidão de nascimento obtida só aos dezesseis anos como prova deque eu tudo fizera premeditadamente. Ao longo do processo, passei por momentos bastante penosos. Meu pai, porexemplo, foi intimado a prestar depoimento, fato que levaria a um pontoterrivelmente baixo minhas relações com Getúlio. Depois, num de seusartigos hidrófobos, Lacerda insinuou que eu teria me casado com DanuzaLeão apenas para tornar-me pai de um filho brasileiro e, com isso, eliminar orisco de ser expulso do país. Tal perversidade me magoou profundamente –foi essa uma das razões pelas quais jamais pude perdoar Carlos Lacerda. Ainsinuação poderia ter plantado na cabeça de meus filhos uma dúvida cruel, ea própria Danuza poderia ter tido o direito de sentir-se vítima de um embuste.Felizmente, ela sempre soube que eu não via necessidade alguma de que noscasássemos num cartório.

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Vi Carlos Lacerda pela última vez no dia 13 de outubro de 1955, na fasefinal do processo sobre a questão da nacionalidade, durante uma audiênciaem que ele foi ouvido como testemunha de acusação. O juiz me encaravacom ostensiva antipatia, e pressenti que as coisas não acabariam bem.Lacerda ia tirando documentos de uma pasta. Ele estava lívido, em momentoalgum olhou-me nos olhos. Eu, ao contrário, fiquei a observá-lo o tempotodo, contemplando o perfil do homem que na mocidade fora meu amigo eagora tentava destruir-me. Poucos dias depois, num júri singular, o juizValporé Caiado de Castro emitiu a sentença. Fui condenado a um ano deprisão e meu irmão José a quatro. Com a ajuda de amigos, consegui que Josésaísse do país, para viver na Argentina até a prescrição da pena. Quanto amim, ocorreu-me apenas que seria muito difícil permanecer um ano na cadeiasem que a Última Hora sofresse danos irreparáveis, até porque a questão daminha nacionalidade não era a única ameaça brandida por meus adversários.No Congresso, seguiam as sessões da CPI encarregada de investigar a origemdos financiamentos que tornaram viável o surgimento da Última Hora. Osanunciantes do jornal sofriam pressões, e valia toda sorte de intimidações noesforço para liquidar o único espécime da imprensa popular brasileira. Durante a longa luta contei, como tenho frisado nestas memórias, com aajuda de bravos companheiros de redação, mas frequentemente tive deenfrentar, como também tenho aqui lembrado, o ceticismo dos meusparceiros de viagem. No começo de 1954, por exemplo, vários de meusamigos, assustados com as dimensões do escândalo assumidas pela questãoda nacionalidade, aconselharam-me a transferir as ações que eu possuía paraalguém da minha confiança, um artifício para evitar que fossem confiscadas.Acabei acatando tais conselhos, e passei as ações para Baby BocayuvaCunha, que integrava a direção do jornal. Parecia uma boa solução. Além depertencer à aristocracia do Rio, Baby Bocayuva era genro do velho SimõesFilho, um multimilionário expoente das oligarquias baianas que haviafundado em Salvador o jornal A Tarde, uma espécie de “Estadão” local. Serianatural que ambos se interessassem pelos destinos da Última Hora. Simões Filho, que foi ministro da Educação de Getúlio Vargas, era umafigura interessantíssima. Muito culto e muito reacionário, impressionavasobretudo pela bravura. Ali estava, sem dúvida alguma, um homem comincrível capacidade de luta, traço de personalidade acentuado por suaformação coronelesca. Baby Bocayuva me disse que gostaria de consultar osogro sobre o problema das ações. Sugeri que, nesse caso, o convidasse para

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aparecer como dono de parte das ações e assumir nominalmente a direção dojornal. Isso daria credibilidade ainda maior à transação que estávamosarquitetando. Político tarimbado, o velho Simões topou imediatamente. Essa manobra se revelaria desastrada. Concluído o acerto, Simões Filhoentrou na redação já perguntando onde ficava a sua sala. Era a minha,naturalmente. Indiquei-lhe a direção. Ele entrou, sentou-se na cadeira que atéentão era a minha, colocou o chapéu e a bengala sobre a mesa e perguntouqual era o meu contínuo preferido. Era o famoso Dudu. Simões Filho chamouo contínuo e começou a passar-lhe instruções: – Olha, seu Dudu, costumo tomar chá às cinco da tarde todos os dias. Depois, desceu aos detalhes: os biscoitos deveriam ser ingleses ecomprados em determinado estabelecimento, coisas do gênero. Em seguida,perguntou pelos editorialistas. Dei-lhe os nomes, Simões Filho mandouchamá-los e passou a dar ordens. Especificou o conteúdo dos editoriais quedesejava para aquele dia e despachou-os em seguida. Quinze dias mais tarde, a situação já se tornara insustentável. Eu me sentiadespojado do meu próprio jornal, minhas funções estavam inteiramenteesvaziadas. Baby Bocayuva parecia muito constrangido com o que ocorria.Um dia, chamei-o para comunicar que decidira procurar seu sogro e resolvera questão. Não poderia continuar dividindo minha autoridade sobre aredação. Ou a Última Hora era comandada por Samuel Wainer ou porSimões Filho. Ali não havia espaço suficiente para os dois. Fui à casa dosogro de Baby Bocayuva e lhe disse, com toda a franqueza, que um de nósestava sobrando na redação. Sustentei que o jornal, que até então vinhaseguindo uma linha editorial ditada pelas minhas convicções, começara arenegar suas tradições, enveredando por outros caminhos doutrinários. Eranatural que isso acontecesse, já que agora prevalecia a linha que eleconsiderava correta. Feita a exposição, reconheci que ele tinha todo o direitode tomar-me o jornal, pois as ações já não eram minhas. Mas alertei-o para osriscos dessa operação, argumentando que a Última Hora se transformara numpatrimônio popular. E o povo talvez não desejasse vê-la modificada. Simões Filho afirmou que não tencionava apossar-se do jornal –pareciarealmente impressionado com o que ouvira. – O senhor pode retomar a Última Hora, porque eu nunca mais voltarei abotar os pés naquela redação – disse-me. Sugeri, então, que as ações me fossem devolvidas, ele concordouprontamente, e assim se encerrou a desastrada tentativa de camuflar a real

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propriedade das ações de minha empresa. Na raiz do desencontro estava umproblema insuperável: eu poderia transferir teoricamente o comando daredação, mas a liderança era intransferível. Essa, definitivamente, era minha. O incidente com Simões Filho ilustra até que ponto eu admiti recorrer aartifícios para que a Última Hora sobrevivesse. E tive de costurar essasligações perigosas porque me negavam a condição de brasileiro. Hoje, depoisde tudo terminado, constato que meus inimigos não conseguiram o quedesejavam. Entre meus amigos, o termo bessarabiano acabou ganhando umaconotação carinhosa, e mesmo meus filhos passaram a brincar comigo. “Oi,papai, você é bessarabiano”, diziam entre sorrisos. A gente do povo que lia aÚltima Hora tinha consciência de que ninguém era mais brasileiro do que eu.E decidi que, enquanto fosse vivo, jamais diria onde realmente havia nascido.Preferi que essa questão, pela pouca importância que tem, ficasse parasempre na obscuridade. Eu não poderia comprometer pessoas que me viramnascer, nem devia satisfação alguma aos que julgavam importante um detalhetão secundário. Ao longo de minha vida, jamais duvidei de que eu, SamuelWainer, era um brasileiro. O problema é que meus inquisidores não pensavam assim. No começo de 1954, diante do incessante fogo cruzado disparado pela CPIe pelo processo em torno de minha nacionalidade, entendi que me tornara umfardo excessivamente pesado para Getúlio. Sabíamos que o alvo principal daofensiva era o próprio Getúlio, mas a verdade é que minha presença entre osíntimos do Catete aguçava a intensidade dos ataques. Fui à procura do meuamigo, e tivemos um encontro patético. Ele sofrera uma fratura num dosbraços, que estava enfaixado e numa tipoia. Recebeu-me sentado numapoltrona em seu quarto ao lado do genro, Ernani do Amaral Peixoto. Tambémestavam presentes dona Darcy e Alzirinha. Pareciam emocionadas, talvez porpressentirem que ouviriam uma conversa decisiva. Amaral Peixoto, que nãogostava de mim, mostrava-se ansioso. Eu disse a Getúlio que a batalha estava perdida. Valera a pena lutar,ressalvei, e parecia evidente que a Última Hora cumprira seu objetivo. Ojornal rompera o cerco de silêncio imposto ao presidente pela grandeimprensa, ajudara a difundir o pensamento de Vargas, defendera-o combravura e lançara as bases de uma imprensa popular. Eu me considerava umvitorioso. Chegara, porém, a hora de ensarilhar as armas. O fim da Última Hora, contudo, deveria ser negociado politicamente – e abom preço. Sugeri a Getúlio que chamasse para uma conversa reservada os

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donos dos jornais que nos atacavam e fizesse uma proposta: se passassem aapoiar o governo, meu jornal deixaria de existir. Getúlio ponderou que aquilonão iria dar certo. Eu disse que valia a pena tentar, já que a Última Horaestava sem condições econômicas para sobreviver. O jornal vendia muito, atiragem continuava excelente, mas faltavam anunciantes, faltava papel esobravam pressões. Já que eu fizera um quadro de Picasso, que ele fosse parao museu com dignidade. No fundo, eu talvez esperasse que Getúlio me exortasse a continuar aguerra, oferecendo-me condições para sustentá-la. Se ele reagisse dessaforma, a história poderia ter sido muito diferente. Mas Getúlio preferiusubtrair-se ao combate. Ao longo da conversa, pude notar que o presidentehesitava quanto à decisão a tomar. Sugeri-lhe, a certa altura, que ele poderiaestudar uma forma de executar a dívida da Última Hora junto ao Banco doBrasil. Feita a execução, o jornal não teria como saldar a dívida e seufechamento seria inevitável. Antes disso, porém, deveria haver a negociaçãocom nossos inimigos encastelados nos grandes jornais. – Vou pensar – respondeu Getúlio. – Então, o senhor resolva e mande me comunicar – encerrei. Os olhos deAmaral Peixoto brilhavam. Saí do palácio convencido de que viriam dias difíceis e pressentindo quenão voltaria a pisar no Catete até o final do governo de Getúlio. Eu estavacerto. Aquela foi a nossa última conversa, a última vez que o vi com vida.Nem haveria clima para que eu voltasse ao Catete nos meses seguintes: horasdepois do nosso encontro, Getúlio Vargas determinou que a dívida do meujornal fosse executada pelo Banco do Brasil.

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CAPÍTULO 27 Tratava-se de mais um fato inédito na história da imprensa brasileira –aliás, eu já me tornara um contumaz protagonista de situações inéditas. Nãohavia um único dono de jornal que não devesse ao Banco do Brasil; AssisChateaubriand, por exemplo, sempre deveu milhões. Pois o primeiro a ter adívida executada, e em 24 horas, era precisamente um amigo do presidente daRepública. Ao receber a notícia, tentei localizar Alzirinha. Não consegui. Saíà procura de Benjamim Vargas e o encontrei no Hotel Plaza. Pedi-lhe quetransmitisse a Getúlio o meu apelo: já que a execução da dívida da ÚltimaHora parecia irreversível, o governo poderia ao menos ampliar para oito diaso prazo fixado para o pagamento e, também, exigir que todos os donos dejornais em débito com o banco acertassem suas contas. Getúlio de fato determinou que o Banco do Brasil executasse em oito diastodos os seus devedores, mas a realidade seria diferente. Só a Última Horafoi efetivamente executada, o aperto sobre meus concorrentes jamais saiu dopapel. Forçado a arranjar às pressas o dinheiro, decidi montar uma armadilhapara meus inimigos, induzindo-os a acreditar que eu não conseguira saldar odébito. Juntei o dinheiro, cédula por cédula, e logo que se encerrou oexpediente bancário do último dia do prazo, entrei no gabinete do presidentedo Banco do Brasil, Marcos de Sousa Dantas, acompanhado pelo ministroSimões Filho. Se as normas fossem cumpridas à risca, o prazo já se expirara.Mas o presidente do banco não ousou fechar a porta a um ministro de Estado. Passavam alguns minutos de seis da tarde quando entramos. O presidentedo Banco do Brasil saudou Simões Filho efusivamente, mas recusou-se aapertar a mão que eu lhe estendera. Simões Filho tentou encontrar algumafórmula que permitisse a negociação da dívida. Por duas vezes, nossoanfitrião foi ao telefone fazer consultas ao ministro da Fazenda, OsvaldoAranha. Aranha reiterou que recebera do governo ordens terminantes paraencerrar o caso naquele dia. Compreendi, então, que houvera umaconspiração palaciana para afastar-me do convívio de Getúlio Vargas.Definitivamente, eu me tornara demasiado incômodo. Frustrada a derradeira tentativa de evitar aquele desfecho, chegou a hora de

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pagar. A situação tinha uma grande carga de dramaticidade, mas não deixavade ser ridícula: dois ou três funcionários foram convocados para contar, umaa uma, as cédulas que eu levara. Era um monte de dinheiro. Recebicomprovantes da quitação e voltei à redação. Resolvi que não faríamosbarulho em torno do que ocorrera. Eu sabia que Carlos Lacerda, informadopor Lourival Fontes de que a Última Hora não liquidara sua dívida e seria,portanto, imediatamente fechada, instruíra a Tribuna da Imprensa a anunciarestrondosamente o enterro do grande inimigo. Para desmoralizá-lo, antecipeio horário de chegada às bancas do meu jornal. Pouco depois chegaram osexemplares da Tribuna, trombeteando em manchete que a Última Hora nãoexistia mais. Para Carlos Lacerda, foi um completo desastre. Informado de que eu comparecera ao Banco do Brasil quando o prazo parao pagamento estava virtualmente esgotado, Lacerda decidiu eleger OsvaldoAranha como bode expiatório. No dia seguinte, publicou um artigoviolentíssimo contra o ministro da Fazenda, acusando-o de ter-me favorecidoe cobrindo-o de adjetivos terríveis. A resposta a esse artigo, testemunhada pormim, viria poucas horas depois. Eu estava no bar do Copacabana Palace, enotei que Lacerda dividia com o ministro da Agricultura, João Cleofas, umamesa do restaurante Bife de Ouro. De repente, entrou no restaurante EuclidesAranha, o “Quica”, filho de Osvaldo, um rapaz de rara beleza eextremamente forte. Quica avançou sobre a mesa de Lacerda e deu-lhe umabofetada. Gritava que nunca mais admitiria ler insultos ao pai. Lacerda tentoupuxar o revólver, alguém segurou sua mão, amigos de Quica levaram-no paraoutro canto, instalou-se uma imensa confusão. Em poucos minutos chegaramamigos de Lacerda e do jovem Aranha, que não parava de despejar palavrõessobre o desafeto. Eu observava o espetáculo à distância, um tanto divertido, confesso, com aenrascada em que Lacerda se metera. Então, aproximou-se de mim JoãoCleofas, com uma fisionomia hipocritamente compungida, jesuítica. – Veja o que você fez ao país – disse Cleofas, um legítimo representante dasoligarquias pernambucanas. – Lamento muito, mas não me sinto culpado por isso – respondi. Valia praticamente tudo naquele combate sem tréguas e sem limites. Umade minhas armas preferidas, como já mencionei nestas memórias, consistiaem expor meus adversários ao ridículo. Meus fotógrafos frequentementepilhavam Assis Chateaubriand comendo com modos animalescos, ouflagravam Lacerda em ângulos que acentuavam seus traços de corvo. Eles

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tentavam fazer o mesmo comigo, com maior dificuldade; aprendirapidamente a defender-me dos fotógrafos de jornais inimigos. Descobri, porexemplo, que ficava muito melhor de perfil. De frente, eu tinha umaexpressão tristonha, chorona, mas meu perfil era ótimo. Sempre que umfotógrafo me focalizava, eu encontrava um jeito de ficar de lado. Tentei evitar que aquele interminável tiroteio ricocheteasse nas nossasfamílias, mas não foi possível. Às vezes, eles atacavam diretamente alguémligado a mim – como quando chamaram de “concubina” uma mulher comquem me casara, ou quando insinuaram que eu tivera um filho com DanuzaLeão apenas para livrar-me do risco de ser expulso do país. Mas tambémparentes meus que não foram alvejados por ataques frontais sofreram muito.Foi esse o caso de minha mãe, a velha e generosa dona Dora. Num diaqualquer, ela estava com o televisor ligado quando apareceu no vídeo a figurade Carlos Lacerda, então empenhado em provar que eu não nascera no Brasil.Ele começou a desenhar a árvore genealógica dos Wainer e a despejarameaças com voz soturna. Dona Dora apavorou-se: emergiu-lhe do fundo damemória a lembrança terrível dos pogroms que testemunhara na Bessarábia.Com a sua inteligência camponesa, sua generosidade simples, minha mãeassustou-se com a ideia de que, a qualquer momento, patrulhas antissemitasestariam invadindo o Bom Retiro para massacrar crianças. Alguns dias depois, ao encontrá-la, ouvi a pergunta: – Meu filho, por que ele te odeia tanto? Ele vivia na nossa casa, era tãobonzinho. Ainda muito amedrontada, minha mãe chorava. Disse à velha Dora que osataques de Carlos não me causavam sofrimento. O Samuel que ele atacava,expliquei, era um Samuel fictício, construído pela sua própria imaginação.Disse à minha mãe que, no fundo, Carlos sabia que eu era um homem debem, que não merecia aqueles insultos. – O homem que ele está atacando não é o seu filho – expliquei. Não sei seela entendeu. Creio que um dos erros de Lacerda foi ter concentrado na guerra contra umjornal uma parte considerável da sua energia, do seu talento, do seu sarcasmo,do seu humor negro. Era uma causa menor para um homem com ambiçõestão grandes. A resistência que lhe foi oferecida pela Última Hora, igualmenteferoz, acabou contribuindo decisivamente para barrar sua caminhada rumo àPresidência da República. Faço questão de reafirmar que a Última Hora teve de travar uma luta

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solitária. Durante todo o tempo, o restante da imprensa apoiou meusadversários, fustigou o governo e colaborou na ofensiva contra mim. Nãohouve um único jornal que tenha publicado oito, dez linhas demonstrandocompaixão pela Última Hora ou pelo homem Samuel Wainer. Jornalistasadoram assinar manifestos, mas nenhum deles se arriscou a redigir algumdocumento que me apoiasse. Só os donos de jornais divulgaram ummanifesto, afirmando que, por representar uma ameaça à liberdade deimprensa, meu jornal deveria ser fechado. Sofri algumas decepções dolorosas, uma das quais envolvendo o jornalistae escritor Antônio Callado. Sempre considerei Callado uma figuramaravilhosa, um homem extremamente decente. Um dia, abro o Correio daManhã e encontro um artigo, assinado por ele, cujo título era “Opção”. Nesseartigo, Callado contava que se sentira obrigado a fazer uma opção entreCarlos Lacerda e Samuel Wainer. Ao refletir sobre as duas figuras, concluíraque, enquanto Carlos se sacrificava pelo Brasil, Wainer nada dera à suapátria. Sobretudo por isso, optara por Lacerda. Enfim, não me lembro de ter lido uma única linha de solidariedade a mim.Certa feita, quando o processo sobre a questão da minha nacionalidadeameaçava resultar na minha expulsão do país, Clodomir Leite, um excelenteprofissional de relações públicas que na época cuidava do setor depublicidade da Última Hora, resolveu fazer um abaixo-assinado pedindoclemência ao Supremo Tribunal Federal. Clemência é uma palavra forte, atépressupõe culpa, mas era exatamente assim. Pois o ingênuo Clodomirencontrou enormes dificuldades para convencer até mesmo amigos meus asubscreverem o texto. Paulo Mendes Campos, por exemplo, que naquelaépoca trabalhava na Última Hora, queixou-se a mim de que seu nome foraincluído sem consulta entre os signatários. Nelson Rodrigues, que tambémintegrava a redação, fez a mesma queixa. Pouco depois de ter tido minha dívida executada pelo Banco do Brasil,recebi a notícia de que meu pai fora incomodado pela polícia de São Paulo. Apretexto de ouvi-lo sobre o caso da minha nacionalidade, haviam levado ovelho a uma delegacia e repórteres da TV Tupi aproveitaram a chance paraentrevistá-lo. Fiquei transtornado. Meu primeiro impulso foi correr ao Catetee interpelar Getúlio, mas lembrei-me de que prometera a mim mesmo nuncamais pisar naquele lugar. Telefonei para Alzirinha e marcamos um encontrona casa dela. Ali, entreguei-lhe uma carta que Getúlio me mandara algunsanos antes e um livro que ele me dera com uma dedicatória que se referia ao

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“Profeta Samuel”. Pedi que Alzirinha devolvesse a carta e o livro aopresidente, com um recado: se meu pai voltasse a ser incomodado, eupassaria a lutar contra Getúlio. Poucos dias depois, Alzirinha procurou-mepara contar que conversara com o pai sobre o problema. Então, ela mostrou-me um bilhete que Getúlio lhe mandara horas depois da conversa. “Alzira,diga ao Profeta que no Brasil não há divórcio”, dizia o bilhete, que chegara àsmãos da minha amiga junto com o livro que eu havia tentado devolver. Depois que me afastei do Catete, passei a manter contatos com Getúlioatravés de intermediários, entre os quais o mais constante e eficaz eraAlzirinha. Eu sentia muita saudade do meu velho amigo. Sentia saudadeprincipalmente das conversas noturnas no palácio, quando lhe contava asfofocas do momento – quem fizera negociatas, que tipo de trama políticaestava em curso, quem estava comendo quem. Mas eu não podia voltar aoCatete. Os auxiliares mais próximos de Vargas perceberam que algo de graveocorrera, mas os leitores da Última Hora jamais souberam disso. O jornalcontinuou fiel à linha editorial que sempre o orientou. Quando necessário,criticávamos alguma área do governo. Mas a figura de Getúlio deveria serpoupada a qualquer preço. Também Getúlio passava-me recados através de Alzirinha ou de Benjamim,enviando críticas, sugestões ou pedidos. Assim atravessamos o primeirosemestre de 1954, a caminho do dramático epílogo que viria em agosto.Pressentíamos que o cerco se fechava progressivamente, mas não podíamosprever a extensão da tragédia. Embora o Congresso fosse hostil e oisolamento político do presidente da República ficasse mais e mais evidente,julgávamos que, com a antecipação do debate em torno da sucessãopresidencial, as atenções seriam desviadas para outros alvos e Getúliochegaria sem muitos sobressaltos ao fim do seu governo. Essa esperançacomeçou a morrer quando, na noite de 5 de agosto, um tiro ecoou numa ruade Copacabana.

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CAPÍTULO 28 A notícia de que tivera início o primeiro ato da grande tragédia de agosto de1954 alcançou-me em casa, pelo telefone, na noite do dia 5. Do outro lado dalinha, a voz de um dos repórteres do meu jornal passou a informação. – Samuel, mataram um oficial da Aeronáutica, o major Vaz, e feriramLacerda. Levei um choque: – Não mataram o Lacerda? – insisti. Meu informante reiterou que não. – Que bomba! – exclamei, já me preparando para correr de volta à redação,sob o pressentimento de que começara uma das maiores tempestades políticasda história do Brasil. De certa forma, a tormenta apanhou os getulistas desprevenidos. Emboraafastado há meses do Palácio do Catete, eu me considerava mais getulista doque nunca. Permanecia absolutamente fiel ao presidente, encampando suasideias e posições nas páginas da Última Hora. Depois de ver derrotada noCongresso a proposta de impeachment de Vargas, a UDN dava a impressãode cansaço. O antigetulismo parecia exaurido, sem argumentos, abatido pelaresistência de um homem que, apesar do assédio, continuava no poder.Governadores estaduais até então arredios já se reaproximavam de Getúlio,que parecia prestes a retomar o controle da situação política. Assim, eramconsideráveis as chances de se chegar ao final do mandato sem encontrar pelafrente obstáculos invencíveis, já que faltava apenas um ano e meio para atransmissão do cargo. Então, desabou sobre nossas cabeças o pesadeloconfigurado pelo atentado da rua Toneleros, em Copacabana. Ao chegar à redação, soube que Lacerda expulsara meu repórter do quartodo hospital para onde fora levado. – Eu não quero repórteres da Última Hora por aqui – dissera Lacerda. – Masdesde já declaro que Samuel Wainer nada deve ter a ver com este caso. Elenão é homem disso. Era uma frase de efeito e, mais do que isso, um truque: não lhe interessavameu envolvimento no crime. Como éramos inimigos de morte, a opinião

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pública concluiria que eu me exasperava a tal ponto com os ataques de Carlosque chegara àquela atitude extrema. Essa hipótese não lhe interessava: porqueLacerda desejava dar ao caso características de atentado político e,principalmente, envolver no crime a figura de Getúlio Vargas. Os detalhes da história sempre me intrigaram. O homem supostamentecontratado para eliminar Lacerda, Alcino João do Nascimento, errou o tiroapesar da curta distância em que se encontrava o alvo, falha muito estranhaem se tratando de um pistoleiro profissional. Soube mais tarde que esseAlcino cometera o mesmo erro em três ocasiões anteriores – era umespecialista em não atingir o alvo. Fiquei igualmente intrigado com a históriado ferimento no pé de Carlos Lacerda. Uma das muitas versões surgidas àépoca sustentava que Carlos não levara tiro algum, limitando-se a simular oferimento. Outra dizia que se ferira quando seu próprio revólver lhe caírasobre o pé. Havia uma terceira versão segundo a qual uma bala de fato oacertara, mas apenas de raspão. De qualquer modo, Lacerda soube utilizar-seteatralmente do episódio. Ressurgiu imediatamente com o pé engessado,transformou seu quarto no hospital em centro de conspirações e comandou odesdobramento da crise que levaria ao suicídio de Getúlio Vargas. Naquela mesma madrugada de 5 de agosto, telefonei para o Catete embusca de informações. Luís Costa, o repórter que fazia “O Dia doPresidente”, estivera, como sempre, todo o tempo ao lado de Vargas,testemunhando suas reações. Ele ouvira o comentário feito por Getúlio aosaber do atentado: “Esse tiro me atingiu pelas costas.” Foi uma madrugadaincrivelmente tensa. Todo o governo permaneceu acordado, atento àmovimentação dos políticos ligados a Lacerda e dos militares antigetulistas,especialmente os oficiais da Aeronáutica, arma a que pertencia o major Vaz.No dia seguinte, o caso da rua Toneleros ocupou toda a primeira página daÚltima Hora. Procurei apresentar o episódio sob um enfoque policial, emborasoubesse que suas componentes políticas não tardariam a monopolizar asatenções do país. Nos dias seguintes, o drama ampliou-se com enorme velocidade. Montou-se a “República do Galeão”, formada por oficiais da Força Aérea queinvestigavam o caso à margem da polícia e da Justiça, interrogando pessoas epromovendo ações policiais. No hospital e depois no Congresso, Lacerdaagitava, insultava, conspirava ostensivamente. Aos poucos, tornou-seevidente o envolvimento de integrantes da guarda pessoal de Getúlio nosincidentes da Toneleros. Durante todo o tempo, fiz o que pude para eximir de

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qualquer culpa a figura do presidente, sustentando a tese de que, ainda quehouvesse gente do Catete envolvida no episódio, Getúlio de nada sabia.Tratava-se de um brasileiro honrado, muito acima de torpezas desse gênero.Lastimavelmente, o esforço da Última Hora em defesa de Vargas resultariainútil. A honradez pessoal de Getúlio sempre fora um de seus grandes trunfosdiante da opinião pública. Ele era um homem decente, com uma posturamoral irretocável. Seria impossível, por exemplo, imaginá-lo nomeandoalgum filho para um cargo público, ou favorecendo amantes, práticas comunsnaquela época. Nos tempos do Estado Novo, quando seus poderes erampraticamente ilimitados, ele mandava os filhos de ônibus para a escola. Suasincursões pelo mundo dos negócios limitavam-se à compra de mais algunsalqueires no Rio Grande do Sul, algumas cabeças de gado, algumas ovelhas.A vida noturna jamais o fascinou, embora gostasse de frequentar teatros derevista, sobretudo quando os espetáculos incluíam canções ou anedotas a seurespeito. Se em matéria política o espertíssimo Getúlio não costumavarespeitar limites, era um homem cheio de escrúpulos no plano pessoal. Cioso do respeito à autoridade, fazia valer esse critério mesmo em relação aautoridades que não gozavam da sua estima. Ele sempre soube, por exemplo,que o vice-presidente Café Filho era um homem sem qualquer vestígio dedignidade. Mesmo assim, aborreceu-se profundamente numa Quarta-Feira deCinzas em que a Última Hora publicou uma foto de Café Filho, com umlança-perfume na mão, acompanhado por duas vedetes do teatro rebolado. “Ovice-presidente da República não pode ser denegrido por um jornal vinculadoa mim, já que representa a minha autoridade”, censurou-me Getúlio numbilhete enviado pouco depois de a edição ter chegado às bancas. Preso a pudores dessa ordem, Vargas mostrou-se compreensivelmentechocado quando, naquele agosto de 1954, respingos do “mar de lama” que,segundo a oposição, corria sob o Catete, começaram a alcançar sua família.Ficou terrivelmente decepcionado ao saber, por exemplo, que um de seusfilhos, Maneco, vendera uma fazenda a Gregório Fortunato, que consumara acompra depois de obter um empréstimo junto a Ricardo Jafet. Além doproblema ético – tratava-se de um negócio francamente suspeito –, havia aquestão do abismo social. O negro Gregório o acompanhava desde menino,era-lhe de uma fidelidade canina. Aos olhos de Getúlio, porém, ali estava umex-escravo, um mero guarda-costas sem altitude para fechar negócios comsenhores feudais como os Vargas. Informado do episódio, Getúlio chamou

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Maneco, que então viajava pela Europa, e repreendeu-o asperamente por ter-se envolvido naquela transação comercial. É provável que só então Getúlio tenha começado a desconfiar de Gregório,e a notar o imenso poder de que desfrutava o chefe de sua guarda pessoal.Instalado num chalé na entrada do Catete, Gregório vivia recebendohomenagens de figurões interessados em ver facilitado o acesso aopresidente. Homem primitivo, ele não soube compreender os reais motivosdaqueles afagos, e deixou-se seduzir pela maciez do poder. A certa altura,considerou-se inatingível e passou a circular com inteiro desembaraço,agindo à revelia do presidente. Esse equívoco irremediável contribui paraexplicar a tragédia da rua Toneleros. Certamente influenciado por pessoasque não eram amigas do presidente, Gregório concluiu que a melhor maneirade ajudar Getúlio era eliminar Carlos Lacerda. A mente primária do guarda-costas não poderia avaliar as consequências do plano arquitetado nas sombrasdo Catete. Evidenciado o envolvimento de Gregório, a situação de Getúlio tornou-seinsustentável. A Aeronáutica, já virtualmente rebelada, colocou-se em frontaloposição ao presidente, exigindo sua renúncia. A tese foi prontamenteencampada por oficiais da Marinha, arma tradicionalmente hostil a Vargas, etambém por generais do Exército, alguns dos quais formalizaram talexigência num manifesto. Na Última Hora, cujas edições retrataram o dramaem seus detalhes, pressentíamos a iminência do naufrágio, masprosseguíamos a luta, publicando sucessivas manchetes contra Lacerda, aquem acusávamos de agente provocador e golpista. A tiragem do jornalcrescia incessantemente, até porque só a Última Hora publicava declaraçõese argumentos vindos do lado getulista. Eu não tinha dúvida alguma de quetambém submergiria naquele naufrágio, mas estava decidido a afundaratirando. Na noite de 22 de agosto, recebi em minha casa a visita de Maneco Vargas,com um recado do pai. Cabisbaixo, abúlico, Maneco era a imagem do regimeagonizante. Getúlio queria saber se eu estava disposto a lançar o jornal àfrente de uma contraofensiva destinada a conter o golpe em marcha.Respondi a Maneco que resolvera ficar com o presidente até o fim, atéporque não me restava outra saída. Maneco então contou-me que naquelamanhã, durante uma reunião do Ministério, Getúlio fizera uma declaraçãopatética: “Só morto sairei do Catete.” O presidente queria saber se eu topavapublicar a frase em manchete na edição do dia 23. Seria a senha para a

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resistência a ser desencadeada no dia 24. Concordei de imediato, emboraponderasse que uma frase tão forte poderia detonar reações violentas tantoentre os militares golpistas quanto entre a massa fiel a Getúlio. Manecoesclareceu que o objetivo era precisamente esse: forçar o confronto. Fui para o jornal, mandei buscar no arquivo uma velha foto de Getúlio comas mãos sujas de petróleo – uma foto célebre – e redigi a manchete queexplodiria nas bancas no dia seguinte: GETÚLIO AO POVO: SÓ MORTO SAIREI DO CATETE A edição esgotou-se em poucos minutos. Rodamos outra, que também nãodemorou a esgotar-se, rodamos mais uma, e assim seria ao longo de todoaquele dramático 23 de agosto. À noite, Maneco Vargas procurou-menovamente, para transmitir os agradecimentos de Getúlio – ele gostara muitoda edição – e avisar que eu logo receberia elementos para outra mancheteigualmente forte. Fiquei entrincheirado na redação, à espera de instruções. Àsduas da manhã, comecei a preocupar-me: Maneco não dera qualquer sinal devida. Tratei de redigir manchetes que servissem como opções. Uma delas:GOLPE. Outra: RENÚNCIA. Outra: DEPOSIÇÃO. Eu precisava pensar emtodas as hipóteses. No meio da madrugada tentei entrar em contato com o Catete, nãoconsegui. As luzes do palácio estavam acesas, mas ninguém podia entrar enem sair. Chegaram-me rumores de que o presidente se reunira com oMinistério às quatro da madrugada. Não pude saber o que fora debatido nesseencontro. Informaram-me depois que Alzirinha voltara às pressas de Niterói,onde estava morando, para juntar-se ao pai. Vislumbrei nessa informação umindício de que a resistência estava prestes a começar, e continuei à espera dedados mais esclarecedores. Tomei um comprimido de Pervitin, convencidode que tão cedo não poderia dormir. Por volta de oito da manhã, o repórterLuís Costa afinal conseguiu um contato telefônico com a redação da ÚltimaHora e me informou que o presidente se preparava para uma nova reuniãoministerial, durante a qual formalizaria sua licença do cargo. Tratava-se, evidentemente, da aceitação de um golpe branco. O país inteirosabia que o vice Café Filho se acumpliciara a Carlos Lacerda e seus amigospara transformar a licença temporária numa destituição definitiva. Getúliocompreendia perfeitamente o que se tramava às suas costas. Ainda assim,talvez acabasse aceitando a fórmula, se naquela madrugada não tivessem

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ocorrido acidentes, só mais tarde revelados, que mostraram que o ódio aGetúlio não se esgotaria com a virtual renúncia – ao contrário, teriadesdobramentos que alcançariam o presidente e sua família. Só mais tarde sesoube, por exemplo, que, encerrada a reunião ministerial aberta às quatro damadrugada, Getúlio foi procurado em seu quarto por Benjamim Vargas, oirmão caçula, que lhe trazia uma informação agourenta: ele, Benjamim, foraintimado a depor na República do Galeão. O próximo intimado poderia ser opróprio Getúlio. Para um homem de 71 anos, tratava-se de uma humilhação insuportável.Depois de despedir-se de Benjamim, Getúlio, vestindo um pijama, caminhoupelo corredor do palácio até seu escritório. Alzirinha, sentada numa sala, viu-o passar com a mão no bolso – certamente acariciava o revólver. Às 8:25ouviu-se um estampido no Catete. Dois minutos depois, Luís Costa chamou-me ao telefone. Aos prantos, entre soluços, meu bravo repórter me informou: – O presidente acaba de dar um tiro no coração.

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CAPÍTULO 29 Um tiro no coração, informou Luís Costa em prantos. Desliguei o telefone ecorri para a oficina do jornal. As emissoras de rádio transmitiamincessantemente a notícia, e um clima de absoluta comoção se espraiava pelopaís. Na oficina, encontrei operários chorando, outros desmaiados. Lembrei-me, então, de que a página com a manchete publicada na véspera – "SÓMORTO SAIREI DO CATETE" – continuava composta em chumbo.Naquela época, tínhamos o hábito de guardar a composição de algumaspáginas numa estante, para a eventualidade de republicar certos textos,anúncios principalmente. Nos dias seguintes íamos utilizar os tipos dechumbo ali armazenados e a página era desfeita aos poucos. Aquela históricaprimeira página, contudo, permanecia intacta, e tive a ideia de republicá-laexatamente como saíra na véspera, mudando apenas alguns detalhes. Numalinha no alto da página escrevi:“Ele cumpriu a promessa.” Abaixo da fraseem que Getúlio prevenia que não o tirariam vivo do palácio, descrevi osuicídio do presidente da República. Ainda na oficina, redigi a mão cerca de dez linhas conclamando o povo amanter a ordem, evitando ceder ao desespero e cometer atos que só serviriamà reação – eu suspeitava que os militares antigetulistas estavam à espera dealgum pretexto para esmagar o povo. Mas foi impossível impedir que a massafiel a Vargas extravasasse seu ódio aos que haviam provocado a morte dolíder. Naquele 24 de agosto, multidões exasperadas atacaram praticamentetodos os grandes jornais, bloqueando sua saída às ruas. O único a circular foia Última Hora, que vendeu quase oitocentos mil exemplares. A oficina nãoparou de trabalhar, foram vinte horas rodando edições sucessivas. O povosequer esperava que os exemplares chegassem às bancas – arrancava-os doscaminhões distribuidores, ávido por notícias sobre a tragédia. A certa altura, percebi que chegara a minha vez de soltar-me. Subi até aredação, fui para um canto da minha sala e, então, chorei, chorei bastante. Aredação não podia me ver, mas alguns amigos mais próximos espalhavam oque ocorria e pediram que todos me deixassem em paz. Nesse momento,comecei a ouvir um rugido, feito de milhares de vozes, que vinham das

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bandas da Candelária. Olhei pela janela e vi uma multidão de manifestantesdescalços, subnutridos, feios. Gritavam Getúlio!, e reconheci o mesmo urromedonho, assustador, com o qual me familiarizara durante a campanhaeleitoral de 1950. A massa estacou diante do prédio da Última Hora e exigiuque eu lhe falasse. Nunca fui um orador, mas tive de vencer minha inibição e,de uma sacada do prédio, ainda chorando, pedi à multidão que mantivesse atranquilidade. Afirmei que o urro que ali ouvia me recordava a campanha quelevara Getúlio de volta ao poder, e que aquele mesmo rugido deveriacontinuar ecoando, agora para sustentar as bandeiras nacionalistas epopulares pelas quais Vargas sacrificara a própria vida. Naquele momento,compreendi que a Última Hora sobreviveria ao homem que havia inspiradosua criação. A massa continuou sua caminhada, quebrando os símbolos antigetulistasque encontrava pela frente, procurando Lacerda, que teve de esconder-se emais tarde refugiar-se por algum tempo no exterior. Voltei à minha salaconvencido de que teria por missão, a partir dali, defender a memória deGetúlio. Pouco depois, recebi a visita do coronel Ardovino Barbosa, umoficial do Exército ostensivamente ligado a Lacerda. Ele entrou em minhasala e informou que gostaria de conversar com o diretor do jornal.Identifiquei-me e estendi-lhe a mão. Ardovino recusou-me o cumprimento –isso no meu jornal, na minha própria casa. – Imagino que o senhor não queira falar comigo – disse-lhe. – Quero falar com alguém que represente o Exército brasileiro aqui dentro –retrucou Ardovino. Observei-lhe que um de meus diretores, Baby Bocayuva,era tenente da reserva – na verdade, Baby apenas fizera o CPOR. O coronelpareceu gostar da solução. Minutos mais tarde, Baby entrou na sala, os doishomens bateram continência e começaram a dialogar. Ardovino comunicou-nos que o Estado-Maior do Exército estavapreocupado com o estado de exaltação popular e chegara à conclusão de quea Última Hora tanto poderia excitar os ânimos quanto ajudar a contê-los.Assim, os militares pediam que publicássemos um editorial exortando àpacificação dos espíritos. Entrei na conversa e sugeri a Baby que mostrasseao coronel a edição daquele dia, com o editorial cujos termos atendiamprecisamente aos desejos do Exército. Ardovino apanhou um exemplar elevou-o ao Estado-Maior. Não cheguei a conhecer os desdobramentos desseepisódio, mas é provável que tenha contribuído para a sobrevivência daÚltima Hora. Os militares lacerdistas estavam prontos para dar o bote e

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fechar meu jornal tão logo surgisse alguma chance. Naqueles trágicos idos deagosto, porém, eles compreenderam que precisavam da minha ajuda paraevitar o pior. A Última Hora poderia ter precipitado o imponderável, casoutilizasse suas páginas para clamar por vingança, estimular saques edepredações, açular a revanche. Em vez disso, agimos com muita prudência. Enquanto o corpo de Getúlio era velado no Catete, centenas de pessoasabraçavam-se e pediam para posar a meu lado para fotos, muitas delasexibindo nas mãos exemplares da Última Hora. Cumprimentei os parentes dopresidente e procurei deixar o local, para não dar a impressão de que tambémprocurava tirar proveito político do drama. No dia seguinte, Alzirinha fezquestão de que eu fosse a São Borja para o enterro. Viajei no avião quelevava o corpo de Vargas, ao lado de alguns parentes e de Danton Coelho. Àbeira da sepultura, em discursos extremamente emocionados, OsvaldoAranha e João Goulart pediram vingança. Mas o país já começava a recobrara calma e a ordem seria mantida. Hoje não tenho qualquer dúvida de que, se não tivesse se suicidado, Getúlioseria de alguma forma eliminado; para seus inimigos, era indispensáveldestruí-lo fisicamente. Vivo, ainda que não conseguisse eleger seu sucessor,representaria uma força oposicionista demasiado poderosa, capaz dedesestabilizar qualquer governo. Se o vitorioso nas eleições presidenciaisseguintes fosse Carlos Lacerda, ele não conseguiria governar contra Getúlio.Ao contrário, se Juscelino Kubitschek tivesse sido eleito com o apoio deVargas, a UDN estaria politicamente liquidada. A história do Brasilcertamente teria tido rumos inteiramente diversos se Vargas vivesse parafazer seu sucessor. Nessa hipótese, seria igualmente diferente a história daÚltima Hora, que então reuniria todas as condições para transformar-se numapotência da imprensa brasileira, financeiramente sólida e politicamenteindestrutível. Já afirmei nestas memórias que Getúlio nunca foi, nem pretendeu ser, umlíder revolucionário. Prova disso foi o ato derradeiro do seu drama pessoal.Com o suicídio, conforme têm sustentado vários historiadores, Vargas adioupor dez anos o gesto afinal consumado em 1964, pelos mesmos militares quecontra ele haviam conspirado em agosto de 1954. Mas também impediu, como mesmo gesto, que o povo reagisse revolucionariamente. Milhões degetulistas certamente iriam à luta se o chefe assim o desejasse. Mas Getúlionão quis: preferiu o tiro no coração. Aos olhos de Carlos Lacerda, a morte de Getúlio significava a morte da

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Última Hora – afinal, o jornal nascera para defender as ideias e o governo deVargas. Ao constatar que a Última Hora decidira prosseguir na caminhada,agora desfraldando o legado de Getúlio, Lacerda entendeu que chegara a horade completar sua tarefa de destruição. Amainada a tempestade emocionalprovocada pelo suicídio do presidente, os lacerdistas se haviam instalado nopoder, com a cumplicidade de Café Filho. Ali estava uma ótima oportunidadepara liquidar de vez o teimoso bessarabiano, e Lacerda não iria desperdiçá-la.Mas não teve êxito em nenhuma de suas várias tentativas de um golpe demisericórdia.Uma delas seria mais tarde relatada em entrevista ao jornalista Joel Silveirapelo jurista Miguel Seabra Fagundes, e ocorreu numa das primeiras reuniõesdo ministério de Café Filho, inteiramente controlado pela UDN. SeabraFagundes, nomeado para ocupar o Ministério da Justiça, deixou o governo,por sinal, precisamente por não ter se curvado a Lacerda. Os dois entraramem rota de colisão quando, nessa reunião ministerial, Lacerda abriu a porta dasala em que se realizava o encontro e, apoiado num agente de segurança enuma bengala, ainda com o pé engessado, invocou seu direito de participardas discussões. Era um evidente absurdo, já que Lacerda não ocupavaministério algum. Mas ninguém ousou ordenar-lhe que se retirasse do local. Subserviente, Café Filho perguntou-lhe que motivo o trouxera ali. Lacerdaretrucou que cumpria uma missão importantíssima: vinha exigir ofechamento da Última Hora. Argumentou que o jornal representava tudoquanto haviam combatido, e que sua eliminação configurava o corolárioinevitável da queda de Getúlio. Por gestos e palavras ou pela omissão,praticamente todos os ministros aquiesceram. Então, ouviu-se a voz tranquilado ministro Seabra Fagundes, com seu forte sotaque nordestino. Seabraponderou que só poderia fechar a Última Hora caso o jornal tivesse violadoalguma norma legal, e não lhe constava que isso tivesse ocorrido. Mesmo quese suspeitasse de algum delito do gênero, seria indispensável cumprir osprocedimentos judiciais antes de qualquer providência prática. Em resumo, ofechamento sumário da Última Hora representaria uma espécie dearbitrariedade que o ministro da Justiça não estava disposto a endossar. Irritadíssimo com tais observações, Lacerda chamou Seabra Fagundes deprovinciano. O ministro, sempre tranquilo, disse que era um provincianoobediente às leis do país, que aparentemente não haviam sido feridas pelaÚltima Hora. Tratava-se de um atentado à liberdade de imprensa. Criado oimpasse, o general Juarez Távora, chefe do Gabinete Militar, um homem de

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inteligência limitada que adorava dar murros na mesa quando argumentava –os murros de Juarez ficaram famosos –, interveio em favor de Lacerda. – Não podemos contrariar nosso Carlos, que deu seu sangue pelo país –disse Juarez. Alguém lembrou que talvez fosse possível fechar a gráfica que imprimiameu jornal, alegando atrasos no pagamento de algumas dívidas. Lacerdaanimou-se com a ideia, e novamente Seabra Fagundes jogou-lhe um balde deágua fria. Seabra esclareceu que, fosse qual fosse a acusação a ser endereçadaà Última Hora, a liturgia da Justiça teria de ser respeitada – o acusado, porexemplo, teria de expor sua defesa. No final da reunião, diante das evidênciasde que alguma coisa seria feita contra a Última Hora, custasse o que custasse,Seabra Fagundes demitiu-se do Ministério da Justiça. A campanha de extermínio prosseguiria nos meses seguintes, agoradividindo as atenções do país com os lances da sucessão presidencial. Eulogo me vincularia mais estreitamente a Juscelino Kubitschek, candidato dosórfãos de Getúlio, mas esta é outra história, que contarei adiante.Paralelamente à minha movimentação política, tratava de defender-me dosataques contra mim, baseados sobretudo na questão da nacionalidade. Eusofreria um rude golpe em outubro de 1955: o Tribunal de Justiça do Rio deJaneiro decidiu condenar-me pelo crime de falsidade ideológica e aplicar-mea pena de um ano de prisão. Eu estava em São Paulo, e entendi que deveria regressar imediatamente aoRio de Janeiro, para não dar a impressão de que planejava viver comoforagido. Viajei de carro, acompanhado de quatro jornalistas da Última Hora.Cheguei ao Rio por volta de meia-noite, encontrei-me com meu advogado eseguimos para a casa do juiz encarregado do processo, que deveria indicar-me onde permaneceria detido, já que tinha direito a prisão especial. Haviadezenas de repórteres à minha espera. O juiz, incomodado com a confusão eo barulho – eram quase três horas da madrugada –, determinou que eu merecolhesse ao Regimento Caetano de Farias, na avenida Salvador de Sá.Neguei-me a conceder entrevistas, e não abri exceções nem mesmo pararepórteres do meu jornal. Só concordei em ser fotografado entre meuadvogado e o capitão que chefiava a guarda do presídio. Os chamados presos especiais ficavam numa espécie de estrebaria equipadacom vários leitos. Eram cinco os meus companheiros de cela no Caetano deFarias: dois advogados condenados como chantagistas, um químico industrialque assassinara a mulher adúltera, um médico mineiro de origem árabe que

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também matara a mulher por suspeitar de que ela pretendia prostituir a filha,e um tenente do Exército punido por estelionato. Eles sabiam quem eu era, elogo tentariam pôr-me à prova. O químico industrial quis saber se poderiafazer-me uma pergunta. Disse-lhe que sim, por que não? – O que o senhor acha de Carlos Lacerda? – perguntou-me. Eu já pudera perceber que todos ali eram admiradores de Lacerda, e ofereciuma resposta sob medida para desarmá-los. – Carlos é um gênio – comecei. – Trata-se de um homem de umainteligência extraordinária, muito capaz, extremamente combativo, tem umacultura excepcional. Meus interlocutores pareceram perplexos. Acrescentei que consideravaLacerda um reacionário, um fascista, mas entendia que valia a pena tê-locomo adversário – sempre vale a pena combater figuras com tantasqualificações intelectuais. Informei, enfim, que me sentia incapaz de odiarLacerda, até porque ele fora meu amigo de adolescência. Meus companheirosde cela acharam absurda essa ausência de ódio. Ponderei que não via lugarpara o ódio na luta política. Graças a essa conversa ocorrida em minhaprimeira madrugada na cadeia, pude conviver sem qualquer problema,enquanto estive preso, na companhia de lacerdistas que o destino colocara naminha vizinhança compulsória. Minha mulher, Danuza Leão, visitava-me diariamente. Ela soube enfrentarcom muita coragem e dignidade alguns momentos muito difíceisincorporados à nossa convivência, um dos quais foi a prisão em outubro de1955. Grávida de Samuca, ela me visitava todos os dias com sua barrigaimensa, linda, e me oferecia evidências sucessivas de que, apesar de tudo, avida valia a pena. Nós nos casáramos em junho de 1954, quando ela já estavagrávida de Pinky. Fiquei extremamente comovido, até porque eu meconvencera de que jamais teria filhos. Mas me preocupei com asespeculações que certamente viriam. Preocupavam-me sobretudo asrepresálias, já que aquilo representava, aos olhos do Rio elegante, mais umaafronta vinda do judeuzinho do Bom Retiro. Danuza era a musa do CountryClub, uma jovem cobiçada pelo jet-set, e aquele romance seria certamenteexplorado: era a princesa casando-se com um gângster. Por isso, e talveztambém por exibicionismo, optamos por um casamento secreto num cartórioem Petrópolis, cerimônia à qual só compareceriam parentes da noiva e meuamigo Baby Bocayuva. Na cadeia, eu recebia delegações de sindicatos, gente que vinha

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homenagear-me e prestar-me solidariedade. Também recebia amigos ecompanheiros da Última Hora, através dos quais passava instruções àredação, orientava editoriais, até mesmo contratava jornalistas. Nessa época,a revista Time publicou uma reportagem descrevendo as condições em que euvivia. Nessa reportagem, a cadeia onde eu estava era apelidada de “gaiola deouro”, e Lacerda imediatamente escreveu um artigo denunciando osprivilégios que me favoreciam. Como eu preferia a liberdade, apesar dosprivilégios, meu advogado recorreu ao Tribunal Federal de Recursos. Houveum empate entre os quatro juízes – dois votaram pela minha permanência naprisão, dois foram contrários – e o presidente do tribunal, valendo-se do votode Minerva, decidiu que eu deveria continuar na cadeia. O “caso Wainer” se confundia com o quadro político do país. Tão logo seprecipitara o processo sucessório, eu passara a apoiar abertamente JuscelinoKubitschek, colocando a Última Hora a serviço de sua candidatura.Consequentemente, ampliou-se o abismo que me separava dos udenistas nopoder, cujo candidato era Juarez Távora. Em outubro, JK foi eleito presidenteda República, e logo começaram a desenhar-se as manobras golpistascronicamente articuladas por militares ligados a Carlos Lacerda. Eu estava nacadeia, à espera de que o Supremo Tribunal Federal julgasse um recurso quemeus advogados haviam impetrado, quando se intensificaram os rumores dogolpe. Entendi que chegara a hora de transferir-me para um lugar maisseguro, precavendo-me contra um eventual sucesso dos golpistas. Consegui que autorizassem a ida à prisão, a pretexto de examinar minhascondições de saúde, do dr. Noel Nutels, um médico amigo que já era famosopor seu trabalho junto a tribos indígenas. Transmiti-lhe minhas inquietações epedi-lhe ajuda para que me transferissem para algum hospital militar, onde aschances de fuga são sempre maiores. Isso seria possível se, por exemplo, ummédico atestasse que eu estava com tuberculose, ou que pelo menos corria orisco de, permanecendo ali, voltar a contrair a doença que me surpreenderaalguns anos antes. Noel concordou com o plano, mas ponderou que ele sóteria êxito se o atestado fosse avalizado por um médico respeitado einsuspeito. Só a palavra do médico do presídio, julgava Noel, não bastariapara concretizar minha transferência. Decidimos pedir a ajuda do dr. Aloísio de Paula, um médicorespeitadíssimo, além de figura conhecida da elite carioca. Aloísio foi até aprisão, ouviu meu apelo, e prontamente se dispôs a entrar na operação. Omédico do presídio foi chamado, e, ao ouvir as palavras do colega famoso,

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não titubeou: assinou de imediato um atestado segundo o qual eu corria sériosriscos de ficar tuberculoso. Os dois sugeriram formalmente minhatransferência para o hospital da Polícia Militar, que ocupava uma velha casaem estilo colonial na rua Frei Caneca. Já no dia seguinte, eu estava instaladono único quarto para presos especiais do hospital. Danuza logo provocou uma radical transformação naquela paisagem fria:decorou as paredes com quadros, improvisou uma biblioteca, fez, enfim, comque aquilo deixasse de parecer uma prisão. Ela vinha todos os dias e passavatodo o tempo a meu lado. Sempre trazia Pinky, que já tinha um ano de idade,além da sua barriga esplêndida. Eu aproveitava as horas disponíveis paraescrever editoriais, que fazia chegar sem problemas à redação do jornal. Nãosentia propriamente medo, mas estava claro que a situação política iatomando rumos perigosos. Num dia, já no começo de novembro de 1955,meu velho amigo João Etcheverry levou-me um revólver. Quis recusá-lo,Etcheverry insistiu: eu poderia precisar daquilo. Escondi o revólver sobre umguarda-roupa. Felizmente, nunca foi necessário tirá-lo dali. No dia 11 de novembro de 1955, ouvi o som de sirenes e notei amovimentação de tanques nas imediações da rua Frei Caneca. Liguei umaparelho de rádio para saber o que ocorria, mas nenhuma emissora davaqualquer notícia; todas haviam substituído a programação normal por músicasuave. Então, João Etcheverry chegou com a notícia: o presidente interinoCarlos Luz fora deposto pelo general Henrique Teixeira Lott. Era o golpe,mas a nosso favor. O deputado Carlos Luz, presidente da Câmara, assumiraalguns dias antes a Presidência da República em virtude de uma enfermidadeque acometera Café Filho. Tão logo se viu na Presidência da República,Carlos Luz tratou de consolidar e ampliar a hegemonia dos lacerdistas,substituindo todos os auxiliares que se mostravam arredios ao ideário daUDN. O objetivo era criar condições para precipitar o golpe e impedir a possedo presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Preso a esse projeto, Carlos Luz,no dia 10 de novembro, exonerou o general Henrique Lott do Ministério daGuerra. Foi um erro fatal. No dia seguinte, Lott liderou o contragolpe quederrubou Carlos Luz, transformou a licença de Café Filho em afastamentodefinitivo e colocou na presidência o catarinense Nereu Ramos, presidente doSenado. Os golpistas fugiram a bordo do cruzador Tamandaré, que zarpourumo a Santos. Entre eles estava Carlos Lacerda, que depois iria para o exílioem Cuba. Naquela noite, pude dormir bem mais tranquilo. A 23 de novembro de 1955, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso

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impetrado em meu favor. Seria um dos dias mais emocionantes da minhavida. No hospital militar, ao lado de Danuza, grudei-me ao telefone, parareceber informações sobre o desenrolar do julgamento. O relator do processo,ministro Nelson Hungria, deu um parecer magnífico, denunciando a injustiçaque se tentava forjar contra mim. Os votos foram se sucedendo, todos a favor.Quando chegou a vez do quinto ministro, e constatei que fora absolvido, caíem prantos. Danuza também chorava muito. Sem esperar pelo resultado final,que proclamaria por unanimidade minha absolvição, saí correndo para fazer amala. Soube, depois, que o STF não julgara o mérito da questão. Os ministrosnão se interessaram por descobrir onde eu nascera; apenas entenderam quenão houvera dolo, que eu não tivera qualquer intenção de praticar algumcrime. Aos olhos do país, de qualquer forma, a decisão do STF tinha umsignificado claro: Samuel Wainer era brasileiro. Meia hora depois de terminado o julgamento, alguns amigos chegaram àprisão com o alvará de soltura. Informaram-me que haveria umamanifestação pública em minha homenagem defronte ao prédio da ÚltimaHora. Fiquei apavorado – sempre senti um terror genuíno diante desse tipo decelebração. Pedi aos amigos que seguissem na frente, eu iria logo depois. Nãofui. Em vez disso, entrei no carro com Danuza e Pinky e contornamos oCampo de Santana, em direção ao prédio do Ministério da Guerra. Ali, fizquestão de cumprimentar os soldados que estavam nos tanques – embora nãoparecesse haver risco de outra tentativa de golpe udenista, o Exércitocontinuava em regime de prontidão. Fomos em seguida para o nossoapartamento na avenida Rui Barbosa. Ali encontrei à minha espera opresidente da Associação Brasileira de Imprensa, Herbert Moses, e váriosdiretores da entidade. Queriam saudar-me e comemorar minha liberdade. Namanhã seguinte, reassumi meu lugar na redação da Última Hora. A situaçãomudara bastante: Lacerda estava no exílio e um de meus amigos, Juscelino,estava prestes a assumir a Presidência da República. Eu não tinha dúvidaalguma de que a campanha contra mim não cessaria, mas também ficaraevidente que a Última Hora reunira fôlego e trunfos para seguir resistindo aoassédio.

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CAPÍTULO 30 Juscelino Kubitschek e eu começamos a aproximar-nos quando ele aindagovernava Minas Gerais e, como outros políticos, ambicionava disputar asucessão de Getúlio. Eram muitos os pretendentes, entre os quais figurava,por exemplo, Euvaldo Lodi. Já no final dos anos 40, Lodi costumavasolicitar-me artigos ou reportagens favoráveis aos interesses dos industriaispaulistas, que o tinham como um de seus líderes mais legítimos. Eugeralmente o atendia, até porque as entidades em que Lodi militavadefendiam posições nacionalistas muito semelhantes às da Última Hora.Nessas ocasiões, ele retribuía com algum presente, ou quantias em dinheiro.Quando Getúlio voltou ao poder, Euvaldo Lodi compreendeu que eu podiafacilitar-lhe o acesso ao presidente, e tornou-se ainda mais solícito, aindamais generoso. Não era o único a cortejar-me: todos os candidatos compretensão ao apoio de Getúlio agiam assim. No começo dos anos 50, Juscelino e Euvaldo Lodi ensaiaram algum tipo deaproximação, e numa certa manhã eu os acompanhei ao Palácio do Catete,para uma audiência com Vargas. O espertíssimo presidente sabia que os doiscobiçavam o seu lugar, e aproveitou a chance para enviar uma das suasmensagens em código. No fim da audiência, Getúlio deixou o gabinete, foi aoutra sala e pouco depois voltou com dois livros. Ofereceu-os, comdedicatória, a Juscelino e a mim – Euvaldo Lodi não ganhou presente algum.Getúlio gostava de manifestar suas preferências através de gestosaparentemente casuais, e valeu-se da oportunidade para insinuar que, setivesse de fazer uma opção entre ambos, escolheria Juscelino. Não posso dizer que tenha sido amigo de JK – amigo é uma palavra quesempre valorizei muito, jamais a empreguei levianamente. Eu apreciavaJuscelino, e sei que ele tinha muita simpatia por mim. Fomos bonscompanheiros, nossas biografias frequentemente se confundiram, nossodestino foi muitas vezes comum. Mas não chegaram a existir, entre nós, oslaços que me uniram a Getúlio Vargas. De qualquer forma, tivemos umaconvivência bastante estreita, e pude testemunhar de perto a aventura dosanos JK. Mais uma vez, nesse período eu teria a chance de ser, além de

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testemunha, protagonista da História. Numa noite de junho de 1955, quando a campanha para as eleiçõespresidenciais já começara a mobilizar o país, Juscelino pediu-me que fosseaté seu apartamento em Copacabana. Combinamos um encontro na porta doprédio e tivemos uma conversa a dois na calçada. Ele me confirmou que seriacandidato pelo PSD, apesar da aberta hostilidade que lhe tributavam generaisudenistas. Observou que seria indispensável ter o meu apoio, já que eu metornara um símbolo do getulismo e, além disso, havia a penetração da ÚltimaHora, trunfo que candidato algum poderia desprezar. Meu jornal entrou nacampanha com enorme veemência; era preciso eleger JK, custasse o quecustasse. Paralelamente à luta eleitoral, empenhei-me nos combatesprovocados pela interminável campanha movida contra mim, e conseguiganhar as duas guerras. Meus inimigos não haviam conseguido destruir-me e,com a vitória de Juscelino, eu voltara ao centro do poder. Minha aliança com JK manteve-se ao longo do seu governo. A ÚltimaHora foi, por exemplo, o único jornal a apoiar sem restrições a criação deBrasília. Instalamos a sucursal em Brasília quando a cidade nem sequer forainaugurada, e o jornal sempre defendeu a tese de que JK pensava no futuro.Recebi um curioso prêmio por essa lealdade ao presidente. No dia em que anova capital foi inaugurada, passaram-me a incumbência de fazer a primeiraligação telefônica entre Brasília e o mundo exterior. Não era uma ligaçãoqualquer: eu deveria chamar, do outro lado da linha, o irascível pensadorcatólico Gustavo Corção, feroz inimigo da ideia de construir Brasília. Ligueipara a casa de Corção no Rio de Janeiro. Uma voz atendeu, perguntei peloprofessor Gustavo Corção. – Sou eu mesmo – informou a voz, que quis saber com quem falava. Disse-lhe meu nome, e percebi que a receptividade era nenhuma. – O que o senhor deseja? – perguntou, em tom seco. – Desejo mandar-lhe saudações de Brasília – provoquei. – Isso é uma mentira – enfureceu-se Corção. Convidei-o a fazer um teste: bastava chamar do Rio o número do aparelhoque eu estava usando e verificar se de fato eu me encontrava em Brasília. – Isso é um desrespeito, vocês têm que me respeitar – explodiu Corção, quese recusou a fazer o teste que eu lhe propusera. Episódios desse tipo, e não foram poucos, mostram que minha convivênciacom JK foi muito rica, muito sólida, muito cordial. Mas reafirmo que jamaischegamos a ser íntimos. Juscelino tinha outro grupo, outros amigos – não era

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a mesma entourage de Vargas; JK e Getúlio encarnavam estilos e ideáriosdiferentes. Juscelino não tinha, por exemplo, afinidade alguma com o PTB.Tratava-se de um burguês do PSD, um brasileiro originário da classe médiaque gostava da vida com certo fausto, que sabia usufruir os prazeres domundo. Mas JK era sobretudo um homem dotado de uma simpatia irradiante,um calor humano excepcional, extremamente bom, generoso, tolerante eliberal. Foi muito comovente conviver com Juscelino na saga da construção deBrasília. Lembro-me de uma noite, às vésperas da inauguração da capital, emque jantei no Palácio da Alvorada com JK e um escritor francês, GermainBazin, que pousara no Cerrado para ver de perto aquela singular aventurabrasileira. Terminado o jantar, saí com Bazin para caminhar pelos arredoresdo Alvorada, e notei que ele estava deslumbrado. Deslumbrado, perplexo ecético: de vez em quando o francês parava, encostava um dedo numa dascolunas inventadas por Oscar Niemeyer e sussurrava: “Isso é belo demais,mas não vai durar”. Nessa época, por sinal, Lacerda escrevia imensos artigosafirmando que Brasília estaria reduzida a ruínas no século XXI. Hoje estáclaro que a nova capital veio para ficar. Fiz questão de coordenar pessoalmente o trabalho dos jornalistas quecobriram a inauguração de Brasília para, depois, escrever o texto dareportagem. Contemplei cenas inesquecíveis, uma das quais o desfile doscaminhões que levavam nas carroçarias os candangos que haviam construídoaquele monumento urbano. Do palanque, Juscelino e as autoridades daRepública viram passar brasileiros com rostos tristes, introspectivos, enordestinos. Sob um sol fortíssimo, eles exibiam chapéus improvisados comjornais, protegendo fisionomias com os traços inconfundíveis dos paus dearara que só de vez em quando sorriem. Fora aquele o exército que construíraBrasília. Meu acesso à família de Juscelino era fácil, mas tais relações estavamdistantes das que mantivera com Vargas, sobretudo com Alzirinha. Sempreque necessário, eu era recebido pelo presidente, mas o clima dessasconversas, apesar de cordial, jamais reproduziria a calorosa cumplicidade queme ligara a Getúlio. De qualquer forma, JK e seus amigos me ajudariam aliquidar os débitos da Érica, a empresa que eu constituíra na gênese daÚltima Hora. No campo dos negócios, aliás, JK foi bem mais generosocomigo que o próprio Vargas. Hoje, entendo que Getúlio eventualmentedeixou de me fazer certos acenos até por saber que minha lealdade a ele era

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incondicional. Juscelino, um ótimo político, estava convencido de que eraindispensável fazer-me agrados para conservar o aliado. Aliado muito útil, por sinal. No começo do governo JK, o ministro daJustiça, Nereu Ramos, que ocupara a presidência interina depois da crise de11 de novembro, cometeu em relação ao general Henrique Lott, ministro daGuerra, uma indelicadeza imperdoável. O Centro Onze de Novembro,entidade formada por oficiais e civis favoráveis ao contragolpe que derrubaraCarlos Luz, resolvera entregar a Lott uma espada de ouro. Nereu Ramos, parademonstrar que sua postura ministerial era efetivamente equidistante dospartidos políticos, decidiu proibir a manifestação e dissolveu às pressas oCentro Onze de Novembro. Para JK, que tinha em Lott um dos suportes desua permanência na chefia do Estado, nada poderia haver de mais inoportuno,mas ele só soube da situação provocada por Nereu Ramos quando já nãohavia o que fazer. Percebi que as coisas estavam difíceis e fui à casa dogeneral Lott sondar seu estado de espírito. Não era bom. Lott recebeu-me às sete e meia da noite, enquanto jantava.(Generais brasileiros jantam às sete e meia.) Depois da sobremesa, saímospara um passeio numa praça perto da casa do ministro. – Senhor Wainer, foi bom ter-me visitado – disse Lott. – Meditei muito evou fazer-lhe uma confidência, que não pode ser publicada até amanhã àsonze horas. O general então me contou que, nessa hora, teria uma audiência com opresidente da República na qual solicitaria, em caráter irrevogável, seuafastamento do Ministério da Guerra. Ele se convencera de que a dissoluçãodo Centro era um insulto à sua figura, um agravo à honra de militar. Assim,não lhe restava alternativa além da renúncia ao cargo. Ponderei-lhe que aquela atitude poderia abalar de modo irremediável ogoverno de Juscelino. – Estou decidido, senhor Wainer – insistiu o general. – Fui insultado e nadame fará voltar ao ministério. Diante da iminência da crise, declarei a Lott que ele vestia o figurino deguardião da democracia e era, desde já, nosso candidato à sucessão de JK.Ele pareceu surpreso e compreensivelmente lisonjeado, mas reiterou quedeixaria o ministério. Encerrada a conversa, caminhei um pouco pelas ruas dobairro, pensando na melhor maneira de administrar aquele segredo. Para ojornalista, o caminho a seguir era tirar uma edição extra anunciando ademissão do general Lott. Para o brasileiro interessado no quadro político,

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restavam duas opções. Uma delas era transmitir a má notícia ao próprio JK. Aoutra era discutir o problema com o general Odílio Denys, que então ocupavaum cargo equivalente ao do atual comandante do I Exército. Denys era umvelho companheiro de Lott, que tivera participação decisiva no contragolpede novembro de 1955 e continuava a exercer forte influência nos quartéis. Cheguei à sua residência às nove da noite, hora em que os generaisbrasileiros já jantaram e se preparam para dormir. Um sentinela barrou meuspassos. Consegui que ao menos chamasse o ajudante de ordens. Convenci ooficial a passar a Denys a informação de que eu estava no portão. O generalmandou que eu entrasse, encontrei-o vestindo um pijama. – Que é que há, patriota? – perguntou Denys. (Ele gostava de chamarqualquer interlocutor de “patriota”.) Expliquei-lhe que dispunha de uma informação que me fazia balançar entreminha consciência profissional e meus deveres de cidadão. Denys afirmouque, nesse caso, deveria prevalecer minha consciência cívica. Contei-lhe oque acabara de ouvir do ministro da Guerra. – Esse filho da puta quer fazer de novo o que sempre fez desde o ColégioMilitar! – explicou Denys. – O Lott sempre tomou decisões sem avisar àgente. Precisamos impedir que ele faça essa besteira. Denys resolveu sair à procura de Lott, acompanhado de seu filho Rubem, eme incumbiu de localizar o advogado Sobral Pinto e informar-lhe sobre acrise que se desencadeava. Sobral tinha muita influência sobre o ministro daGuerra e poderia dissuadi-lo de deixar o cargo. Ponderei que estava rompidocom Sobral Pinto, mas Denys não se comoveu: – Problema seu: trate de localizá-lo – comandou. Preferi dirigir-me ao Palácio do Catete e tentar um encontro com opresidente Juscelino. A caminho do Catete, entrei em contato com a ÚltimaHora e ordenei que todos ficassem de plantão, à espera de notícias quentes eimportantíssimas, sem contudo revelar o que estava ocorrendo. Cheguei ao palácio perto das onze da noite. Informaram-me que JK estavadormindo, pedi que o acordassem com o aviso de que trazia um recadourgentíssimo do general Denys. O presidente recebeu-me minutos depois,vestindo um terno muito elegante e calçando sapatos de verniz – certamente spreparava para ir a algum baile, não para dormir. Quando lhe contei que Lottdecidira pedir demissão, ele ficou lívido. – Ele não pode fazer isso! – exclamou. Também JK pediu-me que localizasse Sobral Pinto. Mais uma vez,

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expliquei que não era amigo do velho advogado. O presidente convocou doisde seus assessores diretos, os juristas Victor Nunes Leal e Evandro Lins eSilva, e despachou-os para a casa de Lott. Voltei para a redação e encontreium recado do ministro da Guerra: ele me pedia que não publicasse nenhumanotícia sobre a conversa que tivéramos antes que me passasse novasinstruções. Liguei para Lott e comuniquei-lhe que ficaria ao lado do telefone. – Não vou dormir, nem comer, nem beber antes que o senhor me ligue –disse-lhe. Às duas da madrugada, recebi o chamado de Denys. – Senhor Wainer, não dê nenhuma notícia até segunda ordem – apelou ogeneral. – Estamos tentando abrir a cabeça desse filho da puta. Às três, Lott me ligou, pedindo-me um pouco mais de paciência. Continueide plantão. Às seis da manhã, enfim, Lott telefonou informando que desistirade demitir-se do cargo. Perguntei-lhe se poderia informar o que acontecera enoticiar sua permanência no posto. Ele negou-me tal autorização. Liguei paraDenys, que àquela altura estava no quartel-general do I Exército.Conversamos sobre o que se passara e, no final do diálogo, o general fez-meuma homenagem: – Você é um patriota a quem o Brasil passa a dever um grande serviçocívico – disse-me Denys. Episódios desse gênero, e repito que não foram poucos, faziam com que eutivesse um excelente trânsito junto ao poder, mesmo não figurando no círculodos amigos íntimos de JK. Juscelino era um homem de mente aberta, um político moderno, umaespécie de contrapartida brasileira para John Kennedy. Mas, legítimo filho daclasse média, não sentia fascínio algum pelo contato direto com a massatrabalhadora. Também por isso, desde o começo de seu governo entregou aseu vice João Goulart todas as peças da máquina burocrática do governo quetinham ligações com a área sindical. JK preferia dedicar-se aos grandesprojetos, à materialização dos sonhos como Brasília, à consolidação daindústria, ou então desfrutar do lado especialmente doce do poder – festas,mulheres bonitas, celebrações. Naturalmente, nunca foi insensível aosproblemas e reivindicações dos trabalhadores; apenas, preferia dialogar comeles através de intermediários. Numa noite, Juscelino chamou-me para uma conversa reservada no Rio deJaneiro. Encontrei-o extremamente inquieto com a informação de que líderes

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sindicais de São Paulo estavam preparando uma “marcha da fome” sobre acapital federal, reivindicando melhores condições salariais. Ao saber dessespreparativos, o general Odílio Denys avisou que a marcha não passaria dacidade de Resende: se preciso, a multidão de manifestantes seria rechaçada abala. – Já imaginou o que acontecerá se algum operário morrer? – perguntou-meo presidente. Aflito com a antevisão do enorme desgaste que um incidente desse tipocausaria ao seu governo, apelou-me para que viajasse a São Paulo e tentasseimpedir a “marcha da fome”. Naquele momento, minhas relações com oslíderes sindicais paulistas eram muito boas. Além disso, a Última Horaesbanjava saúde, solidamente enraizada em São Paulo. O jornal participavaativamente da política paulista e, de vez em quando, dava notáveisdemonstrações de força. Em 1958, por exemplo, depois da vitória da SeleçãoBrasileira na Copa da Suécia, a Última Hora elegeu Paulo Machado deCarvalho o “Homem do Ano”, e lhe ofereceu uma homenagem no Pacaembuque juntou cerca de cem mil pessoas. No plano político, o jornal se firmaracomo um símbolo do getulismo, o que assegurava sua influência na áreasindical. Não me pareceu complicado, portanto, atender ao pedido deJuscelino. Decidi debater a questão na sede da Última Hora paulista, e reuni numenorme salão todos os líderes sindicais de peso, entre os quais se destacavampelegos históricos como Salvador Losacco e Dante Pellacani, principaisorganizadores da marcha que inquietava JK. Expliquei-lhes que o presidenteestava preocupado com os riscos embutidos na manifestação, eles retrucaramque se tratava de uma decisão irrevogável. Eu os adverti de que poderiamestar estimulando uma crise que talvez resultasse na queda de Juscelino.Meus interlocutores bateram o pé: fariam a marcha custasse o que custasse.Passei à ofensiva e informei que a Última Hora denunciaria os sindicalistaspaulistas como agentes provocadores. Eles ficaram claramente perplexos –sempre viram no jornal um aliado. Num tom de voz ainda mais agressivo,preveni-os de que, se morresse alguém, eles seriam responsabilizados.Caracterizado o confronto, os sindicalistas se retiraram para discutir aquestão. Voltaram depois de algum tempo para comunicar-me que a “marchada fome” seria suspensa, e que eles buscariam outras formas de externar seudescontentamento com a política salarial do governo. Quando os sindicalistas se foram, Sérgio Lima e Silva, com quem eu

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convivia desde os tempos de Diretrizes e me ajudara a implantar a ÚltimaHora em São Paulo, no cargo de superintendente, mostrou-se espantado.Sérgio, que apesar da ascendência aristocrática tivera uma formaçãoesquerdista, assistira à reunião e se surpreendera com meu desempenho. – Puxa, como você ficou reacionário – censurou Sérgio. Perguntei-lhe por quê, e ele disse que eu usara na conversa com ossindicalistas um tom demasiado áspero, muito agressivo. Expliquei a Sérgioque, aos ouvidos daqueles trabalhadores, minha voz soara familiar. Nela eleshaviam reconhecido a voz de seus avós, de seus pais, deles próprios. Era avoz do menino pobre do Bom Retiro, a voz de alguém igual a eles. Mais de uma vez me vali desses vínculos com JK para percorrer caminhosque, sem o seu aval, poderiam estar obstruídos. Numa dessas ocasiões, acabeiprovocando uma séria crise política na Argentina e alguns abalos nas relaçõesentre os dois países. A confusão começou quando, em 1959, soube que opresidente argentino Arturo Frondizi estava sucumbindo a pressõesfavoráveis à quebra do monopólio estatal do petróleo. Se Frondizi cedesse,seu recuo poderia excitar pressões semelhantes no Brasil e eventualmenterevogar a vitória obtida pelos que haviam lutado sob o lema “o petróleo énosso”. Resolvi entrevistar Frondizi, mas logo constatei que ele não tinha omenor interesse em conversar com jornalistas brasileiros. Pedi a Juscelino que me enviasse a Buenos Aires como emissário dogoverno, designado para conhecer as reais intenções de Frondizi sobre aquestão do petróleo. Juscelino relutou, eu insisti até dobrar sua resistência.Alguns dias depois, desembarquei em Buenos Aires com um documento noqual o Itamaraty pedia ao presidente argentino que me recebesse. Apresentei-me a Frondizi como emissário de JK e comuniquei-lhe que o colegabrasileiro se solidarizava com sua determinação em resistir às pressõescontrárias ao monopólio. Frondizi não sabia que estava sendo entrevistado, efoi bastante enfático na defesa de teses que eram música para meus ouvidos.De volta ao Brasil, publiquei uma reportagem de página inteira com umamanchete fortíssima para o momento: “Frondizi: Não vou quebrar omonopólio do Estado.” Ilustrei a reportagem com uma grande foto em que euaparecia conversando com o presidente argentino. Foi uma confusão terrível. Frondizi teve de fazer inúmeras acrobacias paramanter-se no poder, e chegou a ameaçar romper relações diplomáticas com oBrasil, sob a alegação de que fora enganado por JK. Juscelino não gostou dobarulho, mas não brigou comigo. Aliás, nunca tivemos brigas sérias. Tivemos

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alguns desentendimentos, sobretudo no final de seu governo, quando ele jácaíra nas boas graças de parte da grande imprensa e a Última Hora deixara deser indispensável a seu esquema de poder. Mas nunca se consumou, entre nósdois, uma real ruptura. Creio que Juscelino cometeu alguns graves erros políticos no final de seugoverno. Um deles foi ter-se lançado ostensivamente como candidato àseleições presidenciais de 1965, quando nem sequer encerrara seu mandato.Isso fez com que tanto no PSD, o partido de JK, como fora dele, todos osinteressados em concorrer tratassem de colocá-lo na alça de mira. Juscelinoera um candidato natural, não precisava anunciar formalmente, e com tantaantecipação, seus planos de regresso ao poder. Outro erro foi ter contribuídopara que Carlos Lacerda se elegesse em 1960 governador do recém-criadoEstado da Guanabara, extinto anos depois. Ao longo do mandato, JK soubera neutralizar habilmente a agressividadede Lacerda. Aos poucos, o presidente capturara a simpatia de homens comoRoberto Marinho, Assis Chateaubriand e Paulo Bittencourt, príncipes dagrande imprensa que haviam combatido Getúlio com ferocidade e asseguradoespaços para Lacerda atacá-lo. Manobrando espertamente redes de influência,Juscelino virtualmente expulsara Lacerda da televisão – a AssisChateaubriand, dono da poderosa TV Tupi, por exemplo, já não interessavapatrocinar insultos ao presidente da República. Assim, em 1960, jáconvencido de que a UDN não teria forças suficientes para bloquear sua voltaao poder cinco anos depois, JK deixou de preocupar-se com o possívelfortalecimento de Lacerda. Pareceu-lhe mais proveitoso evitar queemergissem nos partidos que lhe davam sustentação parlamentar, o PSD e oPTB, novas lideranças com penetração popular. Foi movido por essa determinação que Juscelino ajudou a fulminar acandidatura do deputado petebista Sérgio Magalhães ao governo daGuanabara. Pouco simpático, nada comunicativo, Sérgio Magalhães jamaisrepresentaria uma ameaça a JK, embora despontasse como franco favorito aogoverno da Guanabara. Mas Juscelino não queria correr risco algum. Porisso, estimulou o lançamento da candidatura do general Mendes de Moraispelo PSD carioca e garantiu combustível para a entrada em cena de outrocandidato, o deputado Tenório Cavalcanti, cujo estilo populista certamentesubtrairia mais eleitores a Sérgio Magalhães. Lacerda pôde correr sozinhopela direita, galvanizando todo o eleitorado conservador, e ainda assimvenceu por ínfima diferença de votos. JK não compreendeu que, ao facilitar a

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vitória de Carlos Lacerda, estava franqueando o acesso de um adversáriomuito perigoso ao comando de um dos estados mais importantes daFederação. Naquele momento, começava a tomar forma o golpe afinalconsumado em 1964. Aparentemente, Juscelino jamais duvidou de que teria o apoio da grandeimprensa para voltar ao poder, até porque sempre soube produzir afagos efavores a donos de jornais. Eu próprio fui contemplado por algumas dessasprovidenciais gentilezas. Um desses acertos evitou, por exemplo, que euacabasse condenado num dos inumeráveis processos movidos contra mim.Por conhecer os juízes encarregados do caso, eu sabia que a situação estavaindefinida. Então, um dos juízes fez com que me chegasse a informação deque ficaria muito mais sensível a meus argumentos se fosse promovido acatedrático da faculdade de Direito onde era professor. Passei o recado a JK,que atendeu prontamente à reivindicação do juiz. Fui absolvido, graças aovoto do novo catedrático. Em outra ocasião, quando eu estava novamente às voltas com dívidas juntoao Banco do Brasil, um alto funcionário da instituição passou-me umainformação preciosa: havia um empresário estreitamente ligado ao presidente,empreiteiro de obras públicas, que costumava socorrer amigos comuns emapuros. Seu nome: Marcos Paulo Rabello, dono de uma empresa que seresponsabilizara por boa parte da construção de Brasília. Fui ao encontro deJuscelino, relatei-lhe os problemas financeiros que enfrentava e tirei minhacarta da manga: Rabello poderia resolver a questão. O presidente emudeceu,ensaiando a expressão de quem jamais ouvira aquele nome. Impassível,reiterei que seria uma boa ideia apresentar-me a Rabello como alguémrecomendado pelo presidente. JK ainda tentou negar qualquer ligação entreambos, mas afinal baixou a guarda: – Procure-o e diga que pergunto se ele pode te ajudar – concedeu JK. Fui ao encontro de Rabello, que a princípio tentou negar qualquer ligaçãocom Juscelino. Ao constatar a inutilidade da negativa, tornou-se bastantereceptivo e sugeriu que eu lhe vendesse 45% das ações da Érica, minhaempresa. As ações foram efetivamente transferidas para seu nome. Retribuícom material publicitário a ajuda que Rabello me prestou. Naquele episódio,pude conhecer uma figura essencial aos interessados em decifrar os segredosdo jogo do poder no Brasil: o empreiteiro. Marco Paulo Rabello era apenasum deles. Muitos outros haveriam de surgir no meu caminho.

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CAPÍTULO 31 Ainda nos anos 50, a imprensa brasileira tinha como anunciantes,basicamente, pequenos comerciantes – a indústria nacional não alcançara suamaioridade, e tampouco havia grupos financeiros de grande porte. Como osrecursos obtidos com as vendas em bancas e assinaturas eram insuficientes,os meios de comunicação precisavam valer-se de outras fontes de renda,utilizando como moeda de troca seu peso junto à opinião pública. Graças aesse trunfo, os barões da imprensa sempre mantiveram relações especiaiscom o governo, que tanto lhes prestava favores diretos como beneficiava seusamigos – amigos que sabiam retribuir a ajuda recebida. Para assegurar o apoio dos meios de comunicação, ou ao menos evitar quelhe fizessem oposição frontal, o governo contemplava jornais e revistas comisenções fiscais, dólar subsidiado, facilidades para a importação de papel,eventualmente anúncios. Poucos ministros ousavam rechaçar reivindicaçõesformuladas por homens como Assis Chateaubriand ou Paulo Bittencourt edestinadas a favorecer terceiros. Na Primeira República, muitos donos dejornais prosperaram como agentes dos interesses dos exportadores de café.Nos anos 50, os barões do café foram substituídos pelos grandesempreiteiros. Especialmente nos anos JK, quando começou a era das obrasportentosas, os empresários do ramo compreenderam que valia a pena contarcom jornais amigos. Com a cumplicidade da imprensa, seria sempre maisfácil, também, receber do governo – um mau pagador crônico – o dinheiro aque tinham direito pelas obras executadas. Feitas tais constatações, logo seforjaram sociedades semiclandestinas bastante rentáveis. Assis Chateaubriand, por exemplo, costumava procurar pessoalmenteministros de Estado, ou mesmo o presidente da República, para solicitar queum trecho de determinada obra – uma rodovia, uma hidrelétrica – fosseentregue a esta ou àquela construtora. Ficava claro que, se o pleito não fosseatendido, a ira do jornal desabaria sobre o autor da recusa. Era melhor,portanto, atender ao pedido. Feito o acerto, as empreiteiras premiadaspresenteavam o emissário com dez por cento do total da quantia orçada para aobra. Geralmente, essa porcentagem resultava em cifras milionárias. Gorjetas

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adicionais pagavam outros favores prestados pelos donos de jornais erevistas, um dos quais era impedir atrasos no pagamento. Ministros maisprestativos, dispostos a liberar com agilidade as verbas devidas, mereciamrasgados elogios em editoriais e reportagens. Já os que protelavampagamentos caíam em desgraça e recebiam ataques duríssimos. De quebra, osmeios de comunicação faziam vista grossa para a irresponsabilidade dasempreiteiras, que utilizavam material de segunda ordem, fraudavam cálculose montavam orçamentos fictícios. Esse tráfico de influência tornou-se particularmente intenso no governo deJuscelino Kubitschek, durante o qual se consolidaram fortunas imensas. Umdos principais beneficiários desse período foi Marco Paulo Rabello, de quemse dizia, sem provas concretas, que era sócio de JK. O presidente entregou atarefa de construir Brasília a Rabello, que pôde distribuir entre outrasempresas as obras de cuja execução não poderia encarregar-se – era muitacoisa para um único empreiteiro. Só a construção de Brasília já bastaria paraassegurar a alegria de dezenas de homens do ramo, mas houve mais. Arodovia Belém-Brasília, por exemplo. Também os governos estaduaisincharam os cofres de algumas empreiteiras, às quais devotavam franca esuspeita simpatia, com a encomenda de projetos de âmbito regional mastambém milionários. A presença dos empreiteiros na cena política brasileira é ainda fortíssima.Eles seguem interferindo na nomeação de ministros que agirão nas áreasincluídas em seu universo de interesses, financiando partidos e candidatos,elegendo deputados e senadores, influenciando a linha editorial de jornais erevistas. Negócios desse tipo não costumam deixar rastros, mas é fácildeduzir que nestes últimos anos foram captados dessa forma alguns bilhões,repartidos entre empreiteiras e seus sócios na imprensa. Sempre que algumnegócio me beneficiava, o dinheiro era integralmente aplicado na ÚltimaHora – nunca quis nada para mim. Meus colegas pensavam de mododiferente: colocavam nos próprios bolsos as verbas recebidas, jamaiscogitaram de aplicá-las nas empresas que dirigiam. Assim enriquecerammuitos barões da imprensa brasileira. Eu estava consciente de que seria desaconselhável sair do país nosmovimentados anos JK, já que a Última Hora, então transformada numagrande empresa jornalística, absorvia todo o meu tempo. Mas meu fascíniopor viagens, que me acompanharia pela vida afora, falaria mais alto em 1959,quando fui convidado a integrar uma delegação de brasileiros escolhidos para

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assistir aos festejos do décimo aniversário da Revolução Chinesa. Eram cercade quarenta pessoas. Aceitei o convite sob duas condições: levar Danuzacomigo e viajar em outro avião, separado do restante da delegação. Meusanfitriões concordaram, e acabei fazendo uma viagem rigorosamenteinesquecível. A primeira escala levou-nos à Tchecoslováquia, onde ficamos dois dias.Dali seguimos para Moscou. Essa cidade decididamente não me atraía, masacabou valendo a pena conhecê-la: vivi na capital soviética alguns momentosmuito interessantes, graças sobretudo ao temperamento e às preferênciasestéticas de Danuza. Numa noite, por exemplo, fomos a um cabaré paradançar. Danuza usava um vestido preto com um ousado decote nas costas, elogo ao entrar percebi que a jovem brasileira causara uma impressão muitoforte. A certa altura, um coronel do Exército Vermelho ergueu-se em suamesa, atravessou o salão, bateu continência diante de nós e pediu permissãopara dançar com Danuza. A orquestra tocava uma valsa. Cinco minutosdepois, minha mulher voltou à nossa mesa, mas mal teve tempo de sentar-se– outro russo queria dançar com ela. Depois veio outro, outro e outro. Então,tirei Danuza para dançar, determinado a socorrê-la da ofensiva do ExércitoVermelho. O que os soviéticos queriam, naturalmente, era tocar aquela suavee perfumada pele capitalista. Voamos num bimotor para a China, onde recebi o tratamento dispensado apersonalidades importantes e suspeitas. Escalaram, por exemplo, doisintérpretes para acompanhar-me; evidentemente, sua missão era vigiar meusmovimentos. Esses intérpretes escolhiam o que eu deveria ver, decidiamtodos os detalhes do meu programa de visitas. Cabia-lhes convencer-me deque a revolução chefiada por Mao Tsé-Tung fora um completo sucesso. Umdia, eles me levaram a uma exibição de acrobatas que faziam evoluçõesdesconcertantes, piruetas incríveis. Um dos intérpretes começou a discorrersobre as ligações entre o desempenho dos acrobatas e o sistema políticovigente na China. – Eles estão possuídos pelo espírito da revolução – repetia um dosintérpretes. Então, um dos acrobatas desabou das alturas, bateu na rede e despencou nosolo – nunca soube o que ocorreu, mas é provável que tenha morrido. Umapequena multidão de chineses rapidamente acercou-se do acidentado eretirou-o do local. Olhei para o intérprete, e percebi que ele contemplava acena com uma expressão de ódio. Certamente estava convencido de que o

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infeliz acrobata era um traidor da revolução maoísta. Para alívio dos meus acompanhantes, tudo correu muito bem nos doisprincipais eventos da programação oficial. Um foi o formidável banquete quereuniu todos os líderes comunistas do mundo, ao qual Danuza, por sinal,compareceu com um fantástico vestido vermelho. Outro, o desfile quecomemorou o décimo aniversário da revolução, um longo e belíssimoespetáculo que durou praticamente um dia inteiro. No palanque oficial, fuiapresentado a Mao Tsé-Tung. Informado de que eu era brasileiro, o líderchinês quis saber que imagem guardavam dele em meu país. Disse-lhe que osbrasileiros o consideravam um grande general, mas que as poucas pessoasque haviam tido acesso a seus livros de poesia achavam que, mais do que umchefe militar extremamente talentoso, ele era um esplêndido poeta. Notei queo rosto de Mao se iluminou com o que ouvira. Assisti ao desfile em companhia de Luís Carlos Prestes, com quem estavarompido desde o incidente ocorrido em 1945, quando o visitei na prisão, eque já relatei nestas memórias. Também presente ao palanque, RodolfoGhioldi, um líder comunista argentino fortemente vinculado ao Brasil, ondeviveu durante alguns anos, decidiu reaproximar-nos. Ghioldi, escritoradmirável e homem bastante simpático, ficou sinceramente espantado aosaber que eu não mantinha relações de amizade com Prestes. Então, simulouque de nada sabia e apresentou-me ao Cavaleiro da Esperança.Cumprimentamo-nos civilizadamente e ficamos lado a lado, contemplando oespetáculo. Diante dos nossos olhos desfilavam militares, artistas, estudantes– e cada bloco oferecia alguma surpresa agradável. Eu estava visivelmentedeslumbrado, mas Prestes a tudo assistia impassível e silencioso. – Que espetáculo maravilhoso – exclamei a certa altura. – É emocionantesaber que dificilmente voltaremos a ver alguma coisa parecida. Sempre com a fisionomia impassível, Prestes jogou-me um balde de águafria: – Não exagere, Wainer – comentou. – Nossas paradas de Sete de Setembronão ficam muito atrás. Os chineses permitiram que minha viagem de volta incluísse uma escala emHong Kong. Ao cruzar a fronteira, tive um incontrolável acesso de choro:assaltava-me a nítida sensação de que jamais voltaria àquele mundo, tratava-se de um adeus irrecorrível. Meu estado de ânimo melhorou muito nafervilhante Hong Kong, então um dos grandes centros da espionageminternacional. Pouco depois de minha chegada, procurou-me o cônsul dos

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Estados Unidos, interessadíssimo em notícias sobre a China. Desconversei etratei de despachá-lo. No dia seguinte, fui homenageado com um jantaroferecido pelos correspondentes estrangeiros baseados em Hong Kong,durante o qual falei com desembaraço sobre o que vira em Pequim. O jantarteve como cenário o prédio que abrigou o hospital no filme Love is a Many-Splendored Thing, cujo título em português foi Suplício de Uma Saudade.Todas as informações que forneci foram prontamente retransmitidas peloscorrespondentes às publicações para as quais trabalhavam e logo divulgadas.O mundo estava sedento de notícias sobre a revolução maoísta. Fiz uma última escala no Japão e voltei ao Brasil definitivamenteconvencido de que, seja qual for sua experiência profissional, seja qual for oposto que ocupe na redação, um jornalista não pode deixar de viajar. É preciso viajar incessantemente ao encontro do que está para acontecer, einsisto em que é possível viajar pelo nosso bairro, até mesmo pela nossa rua.Sempre circulei atento à aparição do imprevisto, e passei a minha vida àespera de que algo acontecesse – alguma coisa, qualquer coisa –,pressentindo que a notícia de que algo acontecera viria por carta. Tornaram-se folclóricos os telefonemas que eu dava para a redação, repetindo a mesmapergunta: chegou alguma carta? Sempre aguardei com ansiedade a chegadada correspondência, sempre que o telefone tocava eu corria a atender. Aindahoje, quando recebo algum envelope, não consigo esperar para abri-lo.Geralmente, são esses extratos banais enviados pelos bancos, mas nãodesisto: algum dia chegará a notícia de que algo aconteceu. Depois de atravessar sem grandes sobressaltos os anos JK, a Última Horaincorporou-se à frente política entregue ao projeto de tentar impedir achegada de Jânio Quadros à Presidência da República. Movi contra Jâniouma campanha extremamente agressiva, o tom dos ataques era feroz.Carregar a candidatura do marechal Henrique Lott, entretanto, configuravaum desafio dificílimo. Lott era um candidato desastrado, acumulava gafessobre gafes. Naturalmente, não se pode contestar a competência eleitoral deJânio, mas a verdade é que seu triunfo foi enormemente facilitado pelaincompetência do nosso candidato. Terminada a apuração das eleições de 1960, preparei-me para enfrentar opoder federal. Jânio se ligara estreitamente a Carlos Lacerda, que acabara deeleger-se governador do estado da Guanabara, e para mim estava claro queagora viriam, depois de alguns anos de bonança, períodos de turbulência.Lacerda não perderia aquela esplêndida chance de acuar-me. Minhas

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previsões, felizmente, estavam equivocadas: os agitados sete meses dogoverno de Jânio Quadros não me foram tão adversos. Hoje, estouconvencido de que Jânio sempre teve certo fascínio por mim, um sentimentoconsolidado nos tempos em que ele fora prefeito de São Paulo. Issocontribuiu para que convivêssemos sem maiores traumas. Certo dia, recebi um telefonema de José Aparecido de Oliveira, entãosecretário particular de Jânio, e fui informado de que o presidente gostaria deencontrar-me sigilosamente em Brasília. Segundo José Aparecido, o presidente desejava conversar comigo sobremedidas relacionadas com a questão cambial – ele decidira restringir aimportação de certos produtos, entre os quais papel de imprensa, e queriaconhecer meu ponto de vista. No dia seguinte ao nosso encontro, de fato,Jânio fez seu famoso pronunciamento pela TV durante o qual, para justificarsua tese de que o país estava desperdiçando montanhas de dólares comimportações, exibiu uma gorda edição dominical do jornal O Estado de SãoPaulo. Mas tive a impressão de que, no fundo, Jânio não estava interessadoem discutir especificamente assunto nenhum; queria, apenas, conversarcomigo. Uma negra limusine Lincoln, com um motorista do palácio, estava à minhaespera no aeroporto, para levar-me diretamente ao Planalto. Ali, umfuncionário da presidência conduziu-me até a biblioteca, onde vi sobre amesa uma garrafa de vinho do Porto. Entendi que se tratava de mais umtruque de Jânio: como eu conhecia sua predileção por uísque, queriaconvencer-me de que estava agora bebendo coisas mais leves. Minutosdepois, acompanhado por José Aparecido, Jânio entrou na biblioteca,trajando um de seus slacks. Beijou-me em ambas as faces e, risonho, saudou-me: – Que bom que tu vieste, Wainer. Estás fadado a apoiar-me. Depois de alguns comentários bem-humorados sobre meu apoio a Lott,Jânio transformou-me em plateia de mais um de seus shows de retórica ehistrionismo. – Vamos combater essa plutocracia! – repetia Jânio, em meio a goles devinho, que, por sinal, não me ofereceu, e acusações aos donos dos jornaisque, a seu ver, esbanjavam dólares em papel importado. Ele achava que meu apoio ao governo era essencial, tanto pela influência daÚltima Hora quanto pelo fato de que eu sempre lhe fizera oposição. Pondereique, se aderisse incondicionalmente ao governo, meu jornal perderia peso

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político. Parecia-me mais sensato permanecer na oposição e apoiar o governosempre que adotasse medidas corretas. Jânio gostou da ideia. De repente,bateu na testa e, com um olhar enlouquecido, disse que contava com trêsforças. – É a Santa Trindade! – bradou. – Conto com a Santa Trindade para meapoiar nesta luta pela salvação da Pátria! Não entendi rigorosamente nada, aquilo cheirava a coisa de doido. Tenteitrazer a conversa para o plano do real. – E com quantos generais o senhor conta? – perguntei. – Não conheço sequer o nome do chefe da Casa Militar – exagerou Jânio,tentando provar-me que seu prestígio popular o dispensava de fazer rapapés amilitares e, sobretudo, a políticos. – Se um prelado com mandato parlamentarentra aqui como prelado, ajoelho-me e beijo-lhe o anel. Mas se me vem comopolítico, eu o expulso porta afora. Foi um show inesquecível. Terminada a encenação, o presidente reafirmouque o apoio da Última Hora lhe era indispensável e prometeu convidar-mepara novos encontros. Mas eu não tornaria a vê-lo antes de agosto de 1961,quando o gesto da renúncia pôs fim a seu curto governo. Vendo a distância esse período da História, entendo que a Última Horacaminhou alguns meses sobre o fio da navalha, espreitada por inimigospoderosos. O presidente da República, se não me hostilizava, tampouco teriamotivos para vir em meu socorro se o cerco se fechasse. O governador daGuanabara era meu principal desafeto, a cúpula do Exército considerava aÚltima Hora adversária dos militares. Meus amigos estavam longe do poder,sem meios de amparar-me caso necessário. Tratava-se, enfim, de um quadroinquietante. Mas nada de grave aconteceu. E não aconteceu também porque aÚltima Hora se transformara numa instituição bastante forte, muito influente.Não seria tão fácil tentar liquidar-me. Eu criara a Última Hora carioca, como já revelei nestas memórias, com aintenção de parar por ali – decididamente, não me atraía a ideia de montarjornais em outros estados. Para ajudar o governo de Getúlio, concordei emlançar a UH paulista. Depois, a própria influência política dos meus jornaisacabou tornando inevitável o aumento da família, sempre estimulado porcandidatos interessados na existência de um meio de comunicação que osauxiliasse nas disputas regionais. Assim, transformei-me no primeirobrasileiro a montar uma cadeia jornalística nacional efetivamente homogênea.Ao contrário dos Diários Associados, por exemplo, meus jornais tinham

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todos o mesmo título. Além disso, creio ter imposto uma linha editorialidêntica às várias redações da Última Hora, embora não fosse fácil comandarsimultaneamente jornais que, no começo dos anos 60, estavam implantadosem sete cidades: Rio, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Niterói, BeloHorizonte e Recife. A Última Hora do Recife nasceu para sustentar a candidatura ao Senado,pelo PTB pernambucano, do empresário José Ermírio de Moraes, dono dogrupo Votorantim. O velho Ermírio deu-me o dinheiro necessário para olançamento e depois, como nos faltassem anúncios – a direita pernambucanafez o possível para esmagar-me –, garantia a sobrevivência do jornal comnovos empréstimos. O lançamento da Última Hora no Recife constituiu,aliás, um modelo de ostentação provinciana – e, também, de desinformaçãosobre minha vida pessoal. Ao chegar a um enorme banquete em minhahomenagem, por exemplo, notei que havia ao lado do meu prato duas letrasgarrafais, formadas com arranjos florais: um D e um S. Passei boa parte dojantar tentando decifrar o que significaria aquilo, até que me informaram: erao D de Danuza e o S de Samuel. Ela e eu já estávamos separados, masninguém ali sabia disso. A Última Hora pernambucana pôde prestar boa ajuda à campanha deMiguel Arraes, candidato ao governo do estado, cuja administraçãodefenderia até que o Golpe de 1964 decretasse tanto o fim do mandato dogovernador quanto o fim do jornal. Em quase todos os estados, a ÚltimaHora sempre manteve fortes vínculos com certos políticos. No estado do Rio,por exemplo, meu jornal teve participação decisiva na ascensão de RobertoSilveira, um extraordinário líder popular que um desastre aéreo matariaprematuramente. Muito jovem, franzino, ar de funcionário público, RobertoSilveira era um homem terrivelmente determinado. Ao procurar-me parapedir apoio, deixou claro que pretendia voar alto. – Quero ser governador do estado do Rio, depois governador da Guanabarae, em seguida, presidente da República – avisou. Ele convidou-me para ser candidato a senador em sua chapa, lançada peloPTB. Recusei a candidatura, mas concordei em apoiá-lo. A família Vargasnão gostou da minha atitude, que favorecia uma estrela com luz própria.Roberto Silveira ganhou a eleição e estava fazendo um grande governoquando morreu. Não tenho dúvida alguma de que, se vivesse mais algunsanos, teria chegado à Presidência da República. Eu permitia que os diretores regionais da empresa se movimentassem com

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desembaraço, costurando livremente alianças políticas – naturalmente, taisacordos não poderiam ferir os princípios da Última Hora –, ou fazendo osacertos que julgassem convenientes. No plano federal cabia a mim decidir oque nos convinha. Montei um sistema segundo o qual o coração e o cérebrodos meus jornais deveriam sempre funcionar no Rio de Janeiro. As redaçõesregionais tinham repórteres, fotógrafos, colunistas, diretores, mas todo omaterial era remetido para o Rio de Janeiro, onde montávamos as diferentesedições que seriam distribuídas pelo Brasil. Para isso, criamos um sistema arrojado, extremamente moderno – talvezmoderno demais para o Brasil daqueles tempos. Usávamos aviõesintensivamente, num país com linhas domésticas ainda incipientes eaeroportos precários. O material para a edição paulista, por exemplo, vinhaem dois aviões; um transportava as fotos, os textos voavam no outro. Era umaloucura. Quando um aeroporto fechava em horas estratégicas, recorríamos aotelefone, que também estava longe de funcionar com precisão britânica.Ainda assim, a Última Hora não só sobreviveu como se transformouefetivamente numa cadeia nacional de jornais. Com técnicas de paginação bastante inovadoras, consegui reservar três ouquatro páginas para o noticiário estritamente regional. Assim, bastavasubstituir páginas que continham reivindicações cariocas, ou reportagens quesó interessavam aos leitores do Rio de Janeiro, por assuntos exclusivamentepernambucanos, ou mineiros, ou gaúchos. Também trocávamos os anúncios,e fazíamos alguns retoques na primeira página, destacando na ediçãodestinada a Pernambuco, por exemplo, algum tema relevante para o Nordeste.Graças a esses truques, os leitores de cada Estado tinham a nítida sensação deque toda a edição fora feita visando ao seu universo de interesses – afinal, naspáginas da sua Última Hora apareciam até mesmo colunistas relatando festase fofocas da sociedade local. A edição paulista, naturalmente, implicavaproblemas adicionais – São Paulo, um estado grande, exigia mais espaçospara assuntos regionais. Montar as outras edições era mais fácil. De qualquerforma, constituía uma autêntica epopeia cuidar diariamente de sete jornaisdiferentes e, sobretudo, distribuí-los pelo país. Usávamos aviões,caminhonetes, kombis, trens, o que estivesse disponível. Faltavam campos depouso, as estradas eram precárias, o sistema de transportes ainda engatinhava.Mas a Última Hora sempre acabava chegando às mãos de milhares deleitores.

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CAPÍTULO 32 Consumada a renúncia de Jânio, preferi aguardar a evolução dosacontecimentos em São Paulo, onde me sentia bem mais seguro – no Rio deJaneiro, os desdobramentos da crise poderiam transformar-me em presa fácildo governador Carlos Lacerda. Entrincheirado na minha redação paulista,pus-me a defender com veemência a posse de João Goulart e a condenar asarticulações golpistas. Jango fazia sucessivas escalas em sua interminávelviagem de regresso, ao longo da qual tentava tomar pé da situação. Em plenacrise, recebi um telefonema noturno de Paris. Era Jango. – Tu achas que devo voltar? – perguntou. Uma de suas marcas registradas, por sinal, estava em fazer perguntas aosinterlocutores; em vez de debater, ele perguntava. – Não estou em condições de responder – disse. – Aliás, não sei sequer oque vai acontecer comigo. Jango pareceu surpreso. – Mas como? – retrucou. – Então, tu não achas que devo voltar? Insisti que me faltavam elementos para deliberar até sobre meu própriodestino. – Então, tu és contra a minha volta? – teimou Jango. – Não é nada disso – protestei. – Acho que devemos interromper estaconversa por aqui. Só que, antes, gostaria de lembrar que um líder decide porsi, às vezes contra seus próprios impulsos, muitas vezes contra seus aliados.Você é o líder. Portanto, decida. Se puder voltar, volte. E conte conosco, emqualquer circunstância, para viver ou para morrer. Mas não vou dizer a vocêse deve ou não voltar. Sem lhe dar chance de dizer algo, disse adeus e desliguei. Nesses dias de incerteza, vivi um terrível drama pessoal. Temeroso de quenossos adversários acabassem vencendo o confronto desencadeado pelarenúncia de Jânio Quadros, pedi a Danuza, de quem estava separado desdejunho daquele ano – havia pouco mais de dois meses, portanto –, que fossepara Portugal com nossos filhos. Praticamente forcei minha ex-mulher aviajar, e não sabia se agira corretamente. Danuza voltou alguns dias depois de

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Jango assumir a presidência e, felizmente, nenhum problema mais graveafetou-a, nem a meus filhos. Mas eu não tinha ideia de como eles estavamnaqueles idos de agosto-setembro de 1961, o que ampliava minhaspreocupações. No começo de setembro, enfim, com a aprovação do remendoconstitucional configurado pela aprovação do parlamentarismo, Jangoassumiu o cargo que lhe pertencia de direito. Nós havíamos vencido. Logo depois de instalar-se em Brasília, Jango localizou-me em São Paulo epediu que fosse imediatamente a seu encontro. Decidi viajar de carro,sozinho, e demorei quase vinte horas até estacionar na Granja do Torto, ondeele já morava como vice-presidente. Encontrei-o cercado de guarda-costas,perto de uma churrasqueira fumegante, no melhor figurino dos caudilhosgaúchos, e ficamos trocando ideias durante algumas horas. Sugeri-lhe, entreoutras coisas, que inclusive na assessoria direta da presidência admitissealgumas figuras respeitáveis fora dos quadros do PTB, evitando cercar-seapenas de militantes do seu partido. Meu temor era que Jango recrutassemuitos elementos do seu grupo, repleto de políticos primários e aventureiros.Algumas de minhas sugestões foram prontamente aceitas. Ele me incumbiu,por exemplo, de convidar pessoalmente o professor Hermes Lima parafigurar na equipe de auxiliares diretos da Presidência, e cedeu-me um aviãopara que eu fosse ao Rio de Janeiro conversar com o grande jurista. Quanto a outras sugestões, Jango apenas simulou concordância. Assim,quando ponderei que não seria recomendável efetivar o jornalista Raul Ryffcomo secretário de Imprensa, já que as ligações desse profissional com oscomunistas certamente excitariam os setores reacionários, o presidente pediu-me que expusesse o problema a Ryff. Foi o que fiz. Com expressãodecepcionada, Ryff disse que aceitava meus argumentos, mas ponderou quegostaria, de qualquer forma, de conversar com Jango. Para meu espanto, saiudessa conversa como secretário de Imprensa, cargo que manteve até a quedado chefe. Apesar desses contratempos, deixei Brasília com a convicção deque mais uma vez eu havia escapado ao cerco – o presidente da República erameu velho amigo, as portas do poder seguiam abertas para mim. Por isso, aoouvir no rádio do carro a cerimônia de posse de João Goulart, chorei. Nóstriunfáramos, pois a presença de Jango no Palácio do Planalto representava,de alguma forma, a permanência de Getúlio Vargas. Havia evidentes e enormes afinidades entre Jango e Getúlio, mas tambémestava claro que faltava ao novo presidente o brilho do homem que inspirarasua carreira política. João Goulart era um típico moço da fronteira, que

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adorava cabarés e bailarinas, divertia-se com boêmios e prostitutas, passavanoites inteiras conversando em mesas de bar. Não tinha prazer algum emconviver com grã-finos, detestava enfiar-se numa casaca para comparecer aalguma solenidade. Gostava do povo – mostrava-se perfeitamente à vontadequando se reunia, por exemplo, com estivadores; então, podia desabotoar ocolarinho, afrouxar o nó da gravata e conversar sem cautelas protocolares.Assim, se reunia todas as condições para consolidar-se como líder populista,Jango exibia uma evidente inapetência para certas exigências do poder.Getúlio Vargas sempre demonstrou enorme prazer com o fato de ser onúmero um da República. Jango, não. Na manhã de 6 janeiro de 1964, testemunhei um episódio que ilustra àperfeição o temperamento de João Belchior Marques Goulart. Procurei-o emseu apartamento no Edifício Chopin, bem ao lado do Copacabana Palace, noRio de Janeiro. Encontrei-o, como sempre, rodeado de capangas e velhosamigos, todos bebendo uísque, com os pés confortavelmente apoiados sobreas mesas. Abracei-o e revelei a razão da visita. – Quero cumprimentá-lo pela data de hoje – disse. – Que dia é hoje? – perguntou, intrigado. Ao saber que estávamos no dia 6 de janeiro, sorriu: –Ah, é o aniversário do João Vicente. Confessei que não sabia do aniversário do seu filho. Ele refletiu por algunssegundos e murmurou: – Hoje é Dia de Reis... Recordei-lhe minha condição de judeu, pouco familiarizado com ocalendário católico. Ele me contemplou com olhos curiosos: então, quemotivos havia para que eu fosse cumprimentá-lo? Fiquei perplexo: – Jango, 6 de janeiro é uma data muito importante na História do Brasil e,principalmente, na tua vida – observei. Tratava-se do primeiro aniversário do plebiscito que restabelecera o sistemapresidencialista, extinguindo o parlamentarismo e devolvendo a Jangopoderes e atribuições que lhe haviam sido confiscados. – Não é possível que você tenha esquecido essa esplêndida vitória emapenas um ano – espantei-me. – Pois é, esqueci – confessou-me, candidamente. Por tudo isso, não cheguei a sentir qualquer compaixão por Goulart quandoa queda se consumou em 1964. Tinha por ele enorme carinho, nós nostratávamos como irmãos, nossas brigas nunca duravam muito. Mas eu sabia

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que a perspectiva de ser deposto nunca afligira Goulart da mesma forma queinquietara, por exemplo, Getúlio Vargas. Não seria preciso, portanto, chorarpor ele. A presença de Jango no Palácio do Planalto assegurou-me a retaguardanecessária para sustentar a luta contra Carlos Lacerda, e o caso logo meofereceria uma esplêndida oportunidade de fustigar meu velho adversário.Destacado para investigar a morte de um grupo de mendigos, atirados àságuas do rio da Guarda, Amado Ribeiro, repórter policial da Última Hora,voltou com informações preciosas: os suspeitos do crime eram policiais, euma das mulheres condenadas à morte por afogamento sobrevivera.Determinei a Amado Ribeiro que esclarecesse o caso a qualquer custo. Eletentou desesperadamente obter declarações da mendiga, que estava apavoradae murmurava frases desconexas. Poucos dias depois, trabalhando em tempointegral e ligando os fios do caso, meu repórter havia constatado que o chefede polícia de Lacerda, Gustavo Borges, determinara a matança de dezenas demiseráveis depois de receber do governador a tarefa de limpar o Rio deJaneiro de mendigos. Naquela época, os policiais de um determinado Estado costumavamprender mendigos e levá-los até a divisa com outra unidade da Federação,abandonando-os ali com a recomendação de que não voltassem. O problemaé que eles voltavam. Então, com o beneplácito de Lacerda, Borges articulousua solução final, que consistia em prender mendigos, levá-los às margens dorio da Guarda, dar-lhes uma pancada na cabeça e jogá-los às águas. Amendiga localizada por Amado Ribeiro não fora golpeada com suficienteviolência, e sobrevivera para contar a história. A ofensiva desencadeada pela Última Hora foi terrível, e o caso alcançoutamanha repercussão que a Organização das Nações Unidas cogitou enviar aoRio de Janeiro uma comissão encarregada de examinar tão grave ofensa aosdireitos humanos. Um artigo escrito por Paulo Francis, com o título de “OMata-mendigos”, custou a Lacerda um apelido do qual nunca mais se livraria.Antes, ele fora transformado no Corvo. Agora, surgia o “Mata-mendigos”.Não era pouca coisa. Pela primeira vez, Lacerda parecia realmente acuado,sem meios de sair da defensiva. Mas ele escaparia ao cerco, novamenterecorrendo a seu inegável talento para confundir o povo com sofismasveiculados pela televisão. Nesse episódio, Lacerda teve cinismo suficientepara aparecer na TV e, depois de exibir fotos de supostos integrantes doesquadrão da morte – que prometeu punir com severidade, naturalmente –,

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afirmar que dois ou três policiais haviam sido nomeados com a aprovação deJuscelino Kubitschek. Logo, Juscelino era o culpado. A argumentação eraabsurda, mas houve quem a aceitasse. Depois, Lacerda atribuiria as denúnciasà minha imaginação, e também houve quem nele acreditasse. Graças a taissofismas, Lacerda acabou escapando a uma merecida punição, mas os danosà sua carreira causados pelo episódio foram irreparáveis. Ao provar oenvolvimento do governador da Guanabara com o esquadrão da mortemontado por Cecil Borer, a Última Hora decididamente contribuiu paraassassinar seu sonho de chegar ao poder supremo. Entre 6 de janeiro de 1962, quando Jango assumiu afetivamente o poder, e31 de março de 1964, a Última Hora não só esbanjou força política como,também, desfrutou de ótima situação econômica. É que nesse período, maisdo que nunca, tive pleno acesso aos empreiteiros do país inteiro e às verbasimensas que eles controlavam. Como já disse nestas memórias, não é possívelescrever a história da imprensa brasileira sem dedicar um vasto capítulo aosempreiteiros. Não se trata, insisto, de uma exclusividade nacional – desde ostempos do Império Romano os responsáveis pela execução de obras públicasmantêm relações especiais com os donos do poder. No governo Goulart,aproximei-me desses homens mais que em qualquer outra época. Isso mepermitiu conhecê-los melhor e, também, assegurar à minha empresa doisanos de prosperidade. Alguns meses depois de assumir o cargo, Jango convocou-me para dizerque não tinha confiança no homem que encarregara de fazer a ligação entre oPTB, principal partido governista, o Ministério da Viação, responsável pelasobras públicas, e os empreiteiros que financiavam o partido. Chamava-seCaio Dias Batista o encarregado de fazer o esquema funcionar. O esquema sódevia envolver gente absolutamente confiável, porque nenhuma quantia eracontabilizada, nada era oficial. Como Jango deixara de confiar em Caio DiasBatista, resolvera substituí-lo. Nessa conversa, o presidente se declarou preocupado com o caixa dopartido. Creio que ele já pensava também no caixa do governo e no dinheiroque financiaria um possível contragolpe destinado a antecipar-se a algumatentativa de golpe de Estado. Jango me convidou para a missão. Aceitei. Oesquema era simples. Quando se anunciava alguma obra pública, o que valianão era a concorrência. Todas as concorrências vinham com cartas marcadas,funcionavam como mera fachada. Valiam, isto sim, os entendimentos préviosentre o governo e os empreiteiros, dos quais saía o nome da empresa que

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deveria ser contemplada na concorrência. Feito o acerto, os própriosempreiteiros forjavam a proposta que deveria ser apresentada pelo escolhido.Era sempre uma boa proposta. Os demais apresentavam propostas cujas cifrasestavam muito acima do desejável, e tudo chegava a bom termo.Naturalmente, as empresas beneficiadas retribuíam a boa vontade do governocom generosas doações, sempre clandestinas. Nunca participei desses entendimentos preliminares. Minha tarefa consistiaem, tão logo se encerrasse a concorrência, recolher junto ao empreiteiropremiado a contribuição de praxe. Não se aceitavam cheques, o pagamentovinha em dinheiro vivo. Uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu recolhiaas doações dos empreiteiros em visitas ao advogado que os representava. Eu poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Recolhia montesde cédulas que acomodava em malas. Os poagamentos sempre vinham emdinheiro vivo. E eram malas no sentido estrito, algumas do tamanho de umbaú. Intocadas, aquelas fortunas seguiam para o sítio de João Goulart. Se eunão tivesse escrúpulo nenhum, bastaria ter subtraído parte de cada coleta.Nunca agi assim. Hoje, sinceramente, me arrependo de tais pudores. Emdeterminados negócios, é verdade, recebi quantias consideráveis, quecorrespondiam à minha participação nas etapas anteriores ao acerto final.Mas sempre apliquei essas verbas na Última Hora, jamais as utilizei emproveito próprio. Eu poderia ter ficado multimilionário, repito. Não fiquei. Nesse período, os empreiteiros procuraram, com sucesso, consolidar eampliar seus vínculos com o governo. Passaram, por exemplo, a patrocinarcomícios – o famoso Comício das Reformas realizado em 13 de março de 64,por exemplo, teve suas despesas pagas por um grupo de empreiteiros. Osgastos com o evento atingiram proporções extraordinárias. Às vésperas davotação de alguma lei cuja rejeição ou aprovação interessava aosempreiteiros, pequenas fortunas influenciavam o comportamento dedeputados e senadores ligados ao governo. Como o ministro da Viação, Héliode Almeida, homem irretocavelmente honesto, jamais admitiu participar defalcatruas, o mapa da mina deslocou-se para os escalões intermediários, eentão cresceram a importância e o peso de instrumentos como a Última Hora,um jornal cujo franco acesso ao poder poderia favorecer a promoção, ouprecipitar a demissão, de certos burocratas. Era compreensível que osempreiteiros me tratassem com muita consideração. O que me salvou, e me permite agora escrever estas memórias semconstrangimentos, foi ter sempre compreendido que, se eu enriquecesse,

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acabaria transformado no judeu que se corrompeu para ganhar dinheiro –nessa hipótese, eu não teria salvação. Sempre soube disso. Às vésperas dogolpe de 1964, o advogado de um grupo de empreiteiros procurou-me parainformar que seus patrões não poderiam honrar um contrato de publicidadecelebrado com a Última Hora. Como o governo, que devia um bom dinheiroàs empresas representadas pelo advogado, alegava não possuir recursos paracumprir os compromissos assumidos em contrato, as empresas se diziam semmeios de pagar-me. Haveria, contudo, uma compensação. Esse advogadolevou-me a um prédio na avenida Atlântica, que acabara de ser inaugurado, esubiu comigo até o sexto andar. Ali, entregou-me uma chave e informou queeu me tornara proprietário de um luxuoso apartamento de frente para o mar.Estava claro que o preço a pagar por tanta generosidade seria apressar aliberação da verba retida no Ministério da Viação. Devolvi-lhe a chave: eunada queria para mim. O governo Goulart nos trouxe vantagens políticas e econômicas, mas estevelonge de configurar um mar de rosas para os aliados do presidente – o Brasilvivia um período de radicalização, e os adversários de Jango mantinham aÚltima Hora sob permanente vigilância, atentos a eventuais cochilos quepudessem explorar. Um desses cochilos ocorreu ainda em 1962, quandoJango ainda esquentava a cadeira tão penosamente conquistada. Pelotelefone, Jorge Miranda Jordão, um dos meus auxiliares diretos na redaçãocarioca, informou-me que uma caminhonete da empresa fora incendiada novale do Paraíba. Quis saber por quê, e Miranda Jordão explicou que umacharge publicada naquele dia pela Última Hora paulista havia sidoconsiderada uma agressão a Nossa Senhora Aparecida. Empalideci, prevendoa tormenta que se aproximava. Minhas relações com a Igreja eram frias,distantes. Estava claro que haveria uma reação violenta. Mandei buscar um exemplar daquela edição, que ainda não vira, e examineia charge, feita pelo Octávio. Era de extremo mau gosto. Naquela época, àsvésperas dos grandes clássicos, os times de futebol de São Paulo costumavamir a Aparecida do Norte pedir a proteção da santa. Pois bem. Um ou dois diasantes de um jogo entre o Corinthians e o Palmeiras, Octávio fez essa charge,que mostrava uma Nossa Senhora com as feições do Pelé, um beiço enorme ebraços musculosos, abençoando ambas as equipes ao mesmo tempo e compontos de interrogação sobre a cabeça. Um desastre, rapidamente capitalizadopor dois padres que dirigiam a emissora de rádio de Aparecida do Norte,controlada pela Igreja, e que eram frequentemente alvejados pelo Arapuã, um

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dos humoristas da Última Hora. Tão logo viram a charge, esses dois padresanunciaram pelo rádio que meu jornal cometera um sacrilégio contra a santa epediram que a população católica tomasse providências. Uma das principaisprovidências tomadas por militantes católicos mais exaltados foi incendiar acaminhonete da Última Hora no vale do Paraíba. Desloquei-me imediatamente para São Paulo, acompanhado de um padre,Antônio Dutra, que trabalhava na Última Hora do Rio, numa tentativadesesperada de conter a onda que ia se avolumando. Escrevi um editorialpatético, reconhecendo o erro e oferecendo a outra face a Cristo. Inútil. Meusinimigos já estavam em campo, procurando acuar-me. Em São Paulo,Ademar de Barros assumiu o comando da ofensiva, convocando atos deprotesto contra mim. No Rio de Janeiro, Carlos Lacerda e Amaral Netoimprovisavam comícios em plena missa. Parlamentares udenistas faziamfuriosos discursos no Congresso. As viaturas da Última Hora já não podiamcircular com segurança, sobretudo na via Dutra, que corta o vale do Paraíba.Para complicar definitivamente a situação, Ademar resolveu organizar umapasseata cujo itinerário previa a passagem dos manifestantes pela rua ondefuncionava a redação paulista. Se isso ocorresse, o empastelamento seriainevitável. Decidi pedir uma audiência a dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta,cardeal-arcebispo de Aparecida. Dom Carlos Carmelo era uma magníficafigura, um homem com ideias generosas, avançadas, e eu o admirava muito.Mas havia entre nós dois uma barreira representada pelo padre Baleeira, umaespécie de secretário do cardeal. Baleeira, secretário da Educação do Estadode São Paulo no governo Ademar de Barros, era uma personagem de péssimocaráter, envolvido em numerosos casos de corrupção. Como a Última Hora oatacava constantemente, ele viu no episódio provocado pela charge doOctávio uma boa chance de ir à forra, e passou a bloquear meu acesso aocardeal. Por isso, pedi ao próprio presidente da República que interferisse nocaso, solicitando a dom Carlos Carmelo que me recebesse. Naturalmente, ocardeal não pôde recusar o pedido. Marcado o encontro, levei Octávio a tiracolo, tendo o cuidado de proibi-lode fumar diante do cardeal. Era preciso muita cautela. Por isso, apesar daminha condição de judeu, beijei humildemente o anel de dom CarlosCarmelo. Em seguida, expus francamente minhas preocupações, pedindo suainterferência no sentido de impedir a realização da passeata, ou, ao menos,modificar seu trajeto, evitando que a multidão passasse defronte ao prédio da

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Última Hora. O cardeal mostrou-se muito receptivo, admitindo que algunsgrupos estavam procurando explorar politicamente um incidente que nãotinha tanta importância. Mas ponderou que não tinha meios de cancelar amanifestação, apresentada como uma procissão em desagravo a NossaSenhora Aparecida. Ele poderia, contudo, fazer com que eu fosse recebidopelo presidente da entidade que estava promovendo a manifestação, umaassociação de famílias católicas. O verdadeiro organizador do ato era Ademarde Barros, mas ele achara conveniente utilizar como biombo essa entidade. No dia seguinte, fui à casa desse homem a quem o cardeal me recomendara.Ao chegar, fui recebido pelas crianças da família como uma espécie deversão judaica de Satanás – elas se escondiam por trás das cortinas e meolhavam de soslaio, com expressão de terror. Meu anfitrião, um médicobastante simpático, comportou-se educadamente. – Olha, Wainer, eu já não posso impedir a manifestação – disse-me elequando externei minha inquietação. – Se o senhor puder modificar o itinerário, evitará um massacre – observei. – Isso eu posso fazer – concordou. Senti uma profunda sensação de alívio, quase fiquei de joelhos diante dohomem. Ficou combinado que a procissão passaria pelo Viaduto do Chá –longe, portanto, do prédio do jornal – e se encerraria com um comício naPraça da Sé. Despedi-me desse médico convencido de que salvara a ÚltimaHora do empastelamento. Acompanhei a manifestação pelo rádio, fechado em minha casa e tremendoda cabeça aos pés. Foi apavorante. A multidão de quase trezentas mil pessoasuivava, ecoando palavras de ordem formuladas por oradores que diziamcoisas terríveis contra mim e contra a Última Hora. O jornal, de qualquerforma, escapou à depredação. Não escapou, e quanto a isso nada pude fazer,ao desgaste provocado por aquele incidente com a Igreja. Sobretudo a ÚltimaHora de São Paulo sairia muito ferida do episódio, que indispôs o jornal comboa parte da comunidade católica brasileira. Nossas relações com a Igreja, repito, foram sempre muito difíceis – épreciso lembrar que, naqueles tempos, a ala reacionária do clero eraextremamente influente, fortíssima. Isso explica o malogro de algumastentativas de aproximação com a Igreja que empreendi enquanto comandei aÚltima Hora. Numa delas, promovi no Rio de Janeiro um concurso destinadoa premiar o mais belo presépio feito por leitores do jornal. Terminado oconcurso, que reuniu mais de oitenta mil participantes, escolhemos um

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presépio e o levamos a dom Jaime Câmara, cardeal-arcebispo do Rio deJaneiro. O cardeal abençoou o presépio e posou para nossos fotógrafossorrindo muito, bastante feliz. Estampamos as fotos na primeira página, comenorme destaque, certos de que começava a ocorrer um degelo em nossasrelações com a Igreja. No dia seguinte, Carlos Lacerda publicou na Tribunada Imprensa um longo editorial acusando dom Jaime de ter sido ilaqueadoem sua boa fé por comunistas inescrupulosos, e passou a assediar o cardealcom solicitações para que revisse seu gesto. Então, deu-se algo inacreditável:dom Jaime Câmara divulgou uma nota oficial afirmando que fora de fatoiludido e, por isso, resolvera revogar a bênção que concedera. Incrível, masverdadeiro – o presépio acabou desabençoado, se é que existe esse termo.Vinguei-me publicando durante um mês inteiro a foto do cardeal sorrindo aolado do presépio no momento em que terminara de abençoá-lo. Também para reduzir a distância que nos separava da Igreja, convidei paradirigir a Última Hora paulista um jovem poeta e jornalista chamado JorgeCunha Lima, muito ligado ao governador Carvalho Pinto, em cujo gabinetehavia trabalhado. Vinculado à Juventude Universitária Católica, Cunha Limapoderia contribuir para quebrar certas resistências que me incomodavam. Issoinfelizmente não ocorreu. Mas ele ao menos me ajudou a penetrar em algunscírculos conservadores, entre os quais o do próprio Carvalho Pinto, quecostumavam hostilizar a Última Hora. Cunha Lima estava no comando daredação no dia 31 de março de 1964, quando a Última Hora paulista sofreuum golpe de morte que ele talvez pudesse ter evitado. Mas esta é outrahistória, de que falaremos mais adiante. Nenhuma outra cidade brasileira refletiu tanto quanto São Paulo aradicalização registrada no governo João Goulart. Dependendo dascircunstâncias e do ambiente no qual me encontrava, eu podia ser tratadocomo herói ou como vilão. No dia 11 de agosto de 1963, por exemplo, estavajantando com um amigo num restaurante da rua Barão de Itapetininga quandonotei a entrada de um grande grupo de estudantes. Essa data, que assinala acriação dos primeiros cursos jurídicos no país, foi transformada pelosacadêmicos de Direito no “Dia do Pendura” – eles vão aos restaurantes,comem muito, bebem bastante e saem sem pagar. Naquele 11 de agosto,percebi que os jovens que acabavam de entrar eram estudantes da Faculdadede Direito do Largo de São Francisco, e temi que me hostilizassem, já que acorrente lacerdista nas Arcadas era bastante forte.Ao me levantar para sair, um dos estudantes reconheceu-me. Apressei o

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passo e notei que os jovens começaram a levantar-se para seguir-me. Fiqueiinquieto. Quando cheguei à porta, ouvi um tropel às minhas costas e virei-menervoso. Eles me cercaram, e um dos estudantes perguntou se eu era SamuelWainer. Confirmei, e os jovens paulistas explodiram num grito de guerra emminha homenagem. – É preciso acabar com o fascista do Lacerda! – berrou um deles. Eufóricos, levaram-me ao bar do Hotel Jaraguá, onde prosseguiram comlouvações à minha pessoa e cantos de guerra contra Carlos Lacerda, a quemsó se referiam como Corvo. Nesse episódio eu fui o herói. Houve outros em que fui o vilão. No início de 1964, por exemplo, saí parajantar no restaurante Baiuca, na Praça Roosevelt, com um grupo de amigos.Mal acabara de sentar-me quando um homem carrancudo acercou-se da mesae, dirigindo-se a um dos meus amigos, advertiu: – Vou dizer a seu pai que você anda jantando com comunistas que queremincendiar nosso país. O ambiente tornou-se terrivelmente tenso, sugeri que fôssemos a outrolugar. Fomos a uma boate chamada Ton-Ton Macoute. Minutos depois danossa chegada, ouvi um grito vindo de uma mesa próxima: – Vai dançar na Rússia! Um de meus amigos propôs que nos retirássemos. Concordei e noslevantamos. Seguimos para outra boate na mesma rua, mas não conseguimoslivrar-nos das provocações. Escoltado por seus parceiros de mesa, o homemque me provocara na Ton-Ton Macoute entrou nessa boate e começou a fazerum violento discurso contra mim. Ele afirmava que São Paulo não poderia tolerar que comunistascontinuassem circulando em suas ruas, era preciso expulsá-los. O clima ficoupesadíssimo. Um rapaz magro, muito simpático, aproximou-se de mim e,depois de identificar-se como piloto de Ademar de Barros, recomendou-meamavelmente que deixasse o local. Ele lembrou que a tática dos gruposanticomunistas consistia precisamente em fazer provocações e precipitarconflitos de rua que exigissem a mobilização da polícia. Ocorre que a polícia,controlada por Ademar de Barros, agia como aliada dessas patrulhasdireitistas. “Saia antes que a polícia chegue”, sugeriu. Meus amigos, porém,recusaram a proposta. Os provocadores, então, mandaram flores às mulherespresentes à minha mesa e intensificaram as agressões verbais. O corpo acorpo tornou-se inevitável. Assustei-me – a coragem física, afinal, nunca foium de meus atributos. Meus amigos obrigaram-me a ficar na boate e saíram à

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rua, onde a briga explodiu. Socos e pontapés multiplicaram-se até a chegadada polícia, quando os contendores se dispersaram. Essas cenas de barbárie permaneceriam para sempre em minha memória.Algum tempo depois, ao voltar do exílio, demorei dois anos até viajar a SãoPaulo. Eu tinha a impressão de que tudo aquilo poderia repetir-se.

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CAPÍTULO 33 O Brasil era um país terrivelmente polarizado, mas tanto gente de direitaquanto de esquerda continuava a apresentar-se como ocupantes do centro,uma peculiaridade tropical que costuma confundir mesmo argutos analistasestrangeiros. Durante o governo Goulart, por exemplo, esteve em nosso paíso futuro secretário de Estado americano Henry Kissinger. Ele se encontroucomigo e com Lacerda, e ambos dissemos a ele que éramos centristas.Kissinger ficou intrigado – afinal, nada em comum parecia haver entre nósdois. Expliquei-lhe que Carlos e eu estávamos no centro, só que um de costaspara o outro. Kissinger riu muito. Dias depois, mandou-me um bilhete bem-humorado no qual elogiava minhas “preocupações centristas”. Naquele Brasil tão dramaticamente radicalizado, meus adversários nãoeram os únicos a criar-me problemas. Eu sofria cobranças duras, efrequentemente injustas, de integrantes da minha própria equipe. Em meio aoconfronto entre a Última Hora e a Igreja, por exemplo, o chefe da redaçãopaulista, um jornalista português chamado Armindo Blanco, homem decaráter muito duvidoso, tentou sublevar seus subordinados, alegando que eunão poderia fazer concessões tão importantes à comunidade católica.Armindo fora comensal do salazarismo, mas se julgava em condições decensurar-me. Suas articulações deram em nada. Também tive atritos comPaulo Francis, que já naquela época se destacava como um dos grandespolemistas brasileiros. Eu gostava muito de Paulo Francis, que escreveuartigos inesquecíveis contra Carlos Lacerda e era uma das estrelas da ÚltimaHora. Mas nossa convivência tornou-se difícil a partir do momento em queFrancis resolveu encampar as ideias de Leonel Brizola. Brizola resolvera disputar a Presidência da República à revelia de Jango edos setores mais lúcidos da esquerda. Por sinal, testemunhei a conversa entreJango e Brizola durante a qual este último, então deputado pela Guanabara,reivindicou sua indicação para o Ministério da Fazenda. Goulart, espantado,observou que, se o nomeasse para o cargo, açularia os golpistas. – É preciso forçar a direita a botar a cabeça para fora, porque aí aesmagaremos – retrucou Brizola.

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– E se houver o contrário? – apartei. Brizola não me respondeu. Nessa época, numa recepção oferecida pelo Itamaraty, o embaixador daPolônia, um homem muito competente e bem informado, abordou-me paraperguntar se tinha fundamento a versão de que Brizola queria o Ministério daFazenda. – É verdade, mas sou contra – informei. – Eu também – comentou o embaixador, cometendo uma inconfidência queagredia todas as regras da diplomacia. É que, mesmo para um país comunistacomo a Polônia, a presença de um esquerdista da linhagem de Brizola noMinistério da Fazenda significava uma provocação que convinha evitar. Foi precisamente nessa época que Paulo Francis resolveu aderir à pregaçãode Leonel Brizola, então empenhado na criação dos “Grupos dos Onze”, cujodestino seria assumir a vanguarda das forças populares quando chegasse omomento do confronto entre a esquerda e a direita. Duvidei da sinceridade daopção de Francis – que afinidade poderia haver entre aquele refinadointelectual e o populismo brizolista? De repente, vi na Última Hora um artigono qual Francis não só defendia Brizola e sua estratégia, como, também, seconfessava integrante de um Grupo dos Onze. Chamei-o para uma conversa eexpliquei que achava absurdo um colunista tão identificado com a ÚltimaHora defender posições daquele gênero. No dia seguinte, ele escreveu outroartigo em favor de Brizola e dos Grupos dos Onze. Tive de demiti-lo. Masprecisei readmiti-lo horas mais tarde, graças a pedidos que me foramformulados por muitos amigos, entre os quais grã-finos que viam em PauloFrancis seu guru. No grupo que intercedeu por Francis figuravam, porexemplo, o banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e sua mulher, NininhaNabuco – embora inequivocamente direitistas, gostavam de confraternizarcom certos setores da esquerda, e eram amigos de Francis. Como não podiadeixar de atender um pedido de Magalhães Lins, chamei Francis ecomuniquei-lhe: “Paulo, você vai voltar, porque faço tudo que meu banqueiromandar.” Assim se revogou a demissão de Paulo Francis, que mais tardereconheceu ter ido longe demais naquele episódio. Ele não era,evidentemente, um brizolista. Apenas se deixara seduzir pela polarização queassolava o país. Não era fácil lidar com os colunistas da Última Hora, até porque o sucessodo jornal rapidamente os transformava em celebridades nacionais. Costumavadizer-lhes que não teriam liberdade para escrever; liberdade era algo que só odono do jornal poderia ter. O que eu lhes assegurava era independência.

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Explicava-lhes que jamais seriam obrigados a escrever alguma coisa quecontrariasse seus pontos de vista, mesmo em artigos ou reportagens nãoassinados. Em jornalismo, independência é isso. Mas eu não poderia permitir-lhes que escrevessem algo que afetasse os interesses da empresa; essa espéciede liberdade eles não teriam. Quase todos os colunistas aprovavam eassimilavam tais critérios. Sérgio Porto, por exemplo, valeu-se daindependência que eu lhe garantia para imortalizar-se como o nossoStanislaw Ponte Preta. Mesmo Paulo Francis costumava observar esseslimites. Quando os ultrapassava, ferindo os interesses da empresa,brigávamos. Mas a reconciliação nunca demorava muito. Assinar uma coluna na Última Hora era possuir um espaço nobre naimprensa, o que me permitia eventualmente recrutar celebridades comocolunistas sem pagar salários. Com Chacrinha, por exemplo, foi assim.Convidei-o a participar da equipe de colunistas do jornal, ele gostou da ideia.Discutimos como seria o conteúdo da coluna, seu formato, o título. Quandochegou o momento de discutir o preço, fui direto ao ponto: – O jornal é pobre e não pode pagar você. – Como? – intrigou-se Chacrinha. – Eu preciso receber alguma coisa. Eu sabia que o programa do Chacrinha estava tendo problemas com oIbope, e que a coluna lhe seria muito útil, mas preferi dar-lhe tratamento deestrela. Expliquei que, se fosse pagar-lhe o que valia, teria de chegar a dezmil dólares por mês. O problema é que eu não tinha esse dinheiro. Além domais, argumentei, se a coluna seria evidentemente vantajosa para a ÚltimaHora, ele também sairia ganhando, já que teria um espaço para comunicar-secom seu público e fazer a propaganda dos programas que apresentava. – Bem, aceito – rendeu-se Chacrinha. – Aceito porque você acreditou emmim. Quando ele saiu da sala, Paulo Alberto Monteiro de Barros, o “Artur daTávola”, que trabalhava comigo, confessou-me seu espanto: como é que euousava tratar um mito daquela forma? Nada havia de espantoso: Chacrinhasabia tanto quanto eu que valia a pena assinar uma coluna na Última Hora,mesmo de graça. Em certos casos, uma coluna na Última Hora significava um trampolimseguro para a notoriedade. Foi o que ocorreu com Adalgisa Nery, que euconhecera ainda casada com Lourival Fontes, e cuja beleza marcou minhageração. Em meados da década de 50, um amigo de Adalgisa telefonou-mepara informar que ela se encontrava internada num hospital, com a saúde

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muito debilitada, e precisava de ajuda. Adalgisa já deixara de ser a lindamulher de outros tempos. Imediatamente encomendei-lhe um artigo, fixandouma remuneração bastante satisfatória. O texto chegou dois dias depois e meagradou pela contundência. Adalgisa era uma mulher dura, quase perversa, etinha um estilo extremamente forte. Apesar dos erros de ortografia, escreviabem. Publiquei o artigo no segundo caderno. Logo recebi outro texto e, emseguida, um telefonema de Adalgisa. – Eu não fico em caderno de mulher – disse-me ela. – Quero o caderno doshomens, quero o primeiro caderno. Achei justo. – Você vai para a terceira página – decidi. Expliquei-lhe meus conceitos deliberdade e independência e liberei-a para escrever sobre o que quisesse. Nomesmo dia, criei o título da nova seção: “Retrato sem Retoque”. A seção transformou-se rapidamente numa das coqueluches da ÚltimaHora. Adalgisa agredia meio mundo com uma violência incrível, tratavamilitares a pontapés, demolia políticos, sempre se valendo do jargãonacionalista e getulista. Graças à força da coluna, ela se elegeria duas vezesdeputada estadual. Muitos a adoravam, outros tantos a odiavam. Adalgisacausou-me numerosos problemas, mas era bastante útil à Última Hora; assim,convinha-me mantê-la entre os colunistas do jornal. Recordo que no começodo governo Jânio Quadros fui chamado a Brasília pelo general Odílio Denys,à época ministro da Guerra. Estávamos conversando sobre assuntos politicosquando Denys mandou chamar o general Orlando Geisel, um de seusauxiliares diretos. – Orlando, traga o dossiê daquela marafona – ordenou. Geisel voltou minutos depois com uma pasta contendo artigos de Adalgisa,todos recheados de anotações à margem. Os textos tratavam os militares comextrema agressividade. – Wainer, você é nosso amigo, sempre teve ligações com o Exército... –começou Denys. Confirmei. – Pois então, continue conosco e você não correrá risco algum – sugeriu.Ponderei que não tinha a menor intenção de indispor-me com o Exército. – Então, você precisa mandar essa mulher embora do jornal. Expliquei-lhe que não podia fazer isso: a coluna de Adalgisa,popularíssima, era importante para a Última Hora.

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– Pense bem, Wainer – aconselhou o general. Seria um gesto fundamental. Não aceitei a sugestão do ministro da Guerra, embora àquela altura minharelação com Adalgisa fosse terrivelmente desgastante. Ela reclamava porqualquer motivo, irritava-se quando cortávamos alguma frase de seus artigos,vivíamos discutindo por telefone. Ainda assim, preferi preservá-la. Alguns anos mais tarde, quando vivia em Paris, recebi uma carta deAdalgisa, que tivera seu mandato cassado. Na carta, ela reconhecia que foramuito longe em sua agressividade, radicalizara exageradamente suasposições. Não respondi à carta, e agi bem ao silenciar, pois não demorei asaber que Adalgisa continuava a mesma. Ao receber a visita de uma amigacomum e ouvir que eu atravessava dificuldades econômicas em meu exílio naFrança, ela retrucou que não acreditava nisso. – Não é verdade – disse Adalgisa. – Samuel é agente da CIA, e deve estarmuito bem em Paris. Ela seria assim até morrer, só e abandonada pelos antigos amigos, numasilo de velhos. Definitivamente, não foi fácil manter a cabeça fria na era Goulart, e poucosconseguiram resistir aos ventos da radicalização. Mesmo homens comoDarcy Ribeiro – uma figura extremamente agradável, sensível, inteligente –acabavam sucumbindo ao clima da época. A certa altura, Darcy passou aconversar comigo como se fosse o chefete de alguma facção do PTB nointerior de Minas Gerais. Militares como o general Osvino Ferreira Alvesprocuravam-me para sugerir que a Última Hora cobrasse do governo aexecução de reformas profundas, drásticas. Fui ficando progressivamenteisolado, por não concordar com a histeria esquerdista. Percebi, num dadomomento, que os círculos mais ligados ao governo tramavam o golpe. Comome opunha frontalmente à ideia do golpe – ao contrário do que afirmamhistoriadores como Thomas Skidmore, que sempre se basearam em fonteslacerdistas –, meu isolamento se acentuou. Passei a pregar no deserto. Eu aprovava, por exemplo, a desapropriação defaixas de terras às margens de rodovias e ferrovias, já que os proprietáriosdessas glebas haviam sido diretamente beneficiados por tais obras e poderiampagar um preço por isso. Mas discordava da reforma agrária radical propostapor Miguel Arraes e Leonel Brizola, até por saber que, na América Latina,um governo que adota essa medida dificilmente sobrevive à reação dosfazendeiros. Também combati a encampação das refinarias particulares –desde os tempos de Getúlio Vargas, eu defendia a presença da iniciativa

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privada, pequena que fosse, na indústria do petróleo. Numa conversa comJango, recordei-lhe que a expropriação da Bond and Share pelo entãogovernador Leonel Brizola deixara os americanos muito inquietos, além deconvencidos de que havia um perigoso comunista no Palácio Piratini. “Umanotícia da primeira página do New York Times dizendo que você encampourefinarias deixará os americanos em pânico”, adverti. Mas Jango preferiu darouvidos a outros conselheiros. A força dos grupos radicais no interior do governo tornou-se tão aguda quepassou a influenciar a própria linha da Última Hora, levando o jornal adefender teses que não eram as minhas. Nos bastidores, eu fazia o possívelpara evitar que Jango fosse longe demais. Mas não convinha transformar ojornal em porta-voz das minhas próprias ideias, uma vez que ele seincorporara ao esquema de sustentação do governo. Assim, houve momentosem que a Última Hora pareceu favorável à execução de reformasperigosamente ousadas, ou até mesmo à consumação de um golpe deesquerda. Eu não podia atacar o comportamento de Goulart e seus aliados, ousupostos aliados, no meu jornal. Na madrugada de 12 de março de 1964, recebi em minha casa a visita deMiguel Arraes, empenhado naquele momento em disputar com LeonelBrizola a liderança de setores de esquerda que julgavam Jango moderadodemais. Arraes, um homem bom e simples, que nunca soube beber, tinhatomado algumas doses de uísque além da conta e estava bastante loquaz. – No dia 13, teu amigo Jango cai, acaba – disse Arraes a certa altura,estendendo uma das mãos com o polegar para baixo. Quis saber por quê, e o governador de Pernambuco sustentou que a massapresente ao “Comício das Reformas”, marcado para o dia 13 de março, umasexta-feira, exigiria medidas que João Goulart se recusaria a encampar.Evidenciado tal distanciamento entre o presidente e seu povo, Jango não teriacondições de permanecer no leme, abrindo o flanco para o golperadicalizante. Perguntei-lhe se iria ao comício, Arraes respondeu que sim.Espantei-me – o próprio Jango me dissera horas antes que o governadorpernambucano não estaria no palanque. Disse isso a Arraes, que se mostrouirredutível: acontecesse o que acontecesse, iria ao comício. Ele deixou minha casa perto das seis da manhã. Telefonei para Jango, queestava em seu apartamento no Edifício Chopin. Acordei-o, resumi o queocorrera e fui a seu encontro. Então, relatei-lhe detalhadamente a conversaque tivera com Miguel Arraes.

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– Não permitirei que ele venha ao comício – irritou-se Jango. – Arraes garante que irá – insisti, acrescentando que também Leonel Brizolaestaria no palanque, decidido a, em aliança com Arraes, radicalizarsensivelmente o tom da manifestação. Na minha opinião, o presidente nãoteria escolha. Se não embarcasse na aventura de Arraes e Brizola, a esquerdase dividiria e estaria aberto o caminho para um golpe de direita. Seembarcasse, dificilmente chegaria bem ao porto – também nessa hipótese adireita reagiria violentamente, certa de que chegara o momento de bloquear aascensão esquerdista. Pedi a Jango que não fosse ao comício, ele rechaçou meu apelo.Visivelmente aborrecido, chamou à sua presença o general Assis Brasil, chefeda Casa Militar, e ordenou: – Impeça Miguel Arraes e Leonel Brizola de viajarem até o Rio para ocomício. Diga-lhes que, se vierem, serão presos. Goulart também resolveu que naquele mesmo dia 12 viajaria a Brasília paradali articular o esquema destinado a esvaziar a manobra radical. Duas ou trêshoras mais tarde, quando eu já o julgava na capital, Jango ligou-me pedindo-me que voltasse a seu apartamento. Ao entrar numa sala, notei que por outraporta saíam Luís Carlos Prestes e seu séquito. Há tempos eu vinha ouvindofalar que Prestes e Jango haviam estreitado suas ligações, e aquela cenaparecia confirmar tais rumores. Jango cumprimentou-me e foi direto aoassunto. Disse que recebera tanto de Arraes quanto de Brizola garantias deque não fariam discursos provocativos. Portanto, faltavam motivos para vetara presença de ambos no comício. Além disso, Prestes lhe assegurara que oPartido Comunista se encarregaria de controlar a massa, evitando palavras deordem extremistas. Para o presidente, assim, nada havia a temer. Fiquei desapontado, mas estava claro que Jango não se dispunha a ouvirmeus argumentos. Saí do apartamento acabrunhado com as idas e vindas dopresidente da República, com suas constantes hesitações. Não fui ao comício,mas determinei que a Última Hora organizasse uma ampla cobertura.Conforme eu previa, a manifestação foi desastrosa para o governo. Instigadapor Brizola e Arraes, a multidão de cem mil pessoas fez com que o comíciotranscorresse num clima pré-insurrecional. Jango fez um discurso fortíssimoe, ainda no palanque, assinou decretos que levariam a direita à beira dopânico. Acompanhei tudo aquilo na redação, ouvindo os discursos pelo rádioe terrivelmente inquieto. Já na tarde daquele dia 13 ficara evidente para mim a manifestação

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artificial, forjada com métodos degradantes para quem tivesse algumaconsciência política. Vi com meus próprios olhos o presidente da República,pelo telefone, baixando ordens para que empresas dependentes do governocontribuíssem de alguma forma para o êxito do evento, ou financiando oesquema de transporte ou praticamente obrigando seus funcionários acomparecer à praça diante do Ministério da Guerra, onde se montaria opalanque. Da mesma forma, o governo mobilizou a máquina administrativapara que a manifestação atraísse uma multidão impressionante –utilizando,por exemplo, os trens da Central do Brasil. Percebi que se articulava umespetáculo fantasioso, mas nada podia fazer. Ao comício do dia 13 se seguiram outras provocações, como o motim dosmarinheiros, liderado por um certo cabo Anselmo, de quem se suspeitava serum agente a serviço da CIA. Então, a direita fez o que Brizola desejava:botou a cabeça para fora. Ocorre que a esquerda não teria forças para decepá-la. É provável que Jango não tenha percebido a proximidade do abismo, tantoassim que no dia 30 de março compareceu a um almoço organizado pelossargentos no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro. Esse almoço configuravauma evidente agressão à hierarquia militar, agressão desaconselhávelsobretudo para um presidente que não tinha força junto à oficialidade doExército. Jango tinha a seu lado alguns generais e muitos sargentos, mas lhefaltava apoio de coronéis, majores, capitães, tenentes – e, sem a simpatiadesses oficiais, não é possível a um presidente imaginar-se forte nos quartéis.Sem eles, sargentos não têm maior importância. Ao saber que Jango compareceria a esse almoço – na verdade, um comícioesquerdista –, procurei-o para implorar-lhe, este é o termo, que voltasse atrás.Tancredo Neves, aliás, foi ainda mais veemente, suplicando ao presidente queevitasse aquele desafio tão arriscado e tão desnecessário. Inútil. Àquelaaltura, Jango certamente já fora envolvido pelos golpistas e perdera o controleda situação. O naufrágio estava próximo. O naufrágio não me surpreendeu – um governo com aquele perfil nãopoderia ir muito longe. Alguns auxiliares diretos de João Goulart meinspiravam profunda desconfiança, e aqui incluo certos santos entronizadosno altar da esquerda brasileira. Francisco de San Thiago Dantas, porexemplo. Ele possuía o que se pode chamar de inteligência clássica. Era umhomem culto, pródigo em citações, e sabia como poucos lidar com leis eregulamentos. Ex-integralista aparentemente convertido a um ideário de

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esquerda, prosperou como advogado de grandes empresas e lobbiesinternacionais. Apesar desse currículo nada convincente, era idolatrado porsetores da esquerda. O franco acesso de San Thiago Dantas ao mundo dos consórciosinternacionais poderia tê-lo transformado em fator de estabilidade do governoGoulart; para tanto, bastaria aproximar Jango das classes dirigentes, que ohostilizavam. Em vez disso, San Thiago associou-se a Luís Carlos Prestes eao Partido Comunista, sem contudo distanciar-se dos capitalistas quegarantiam seus invejáveis honorários. Irremediavelmente ambicioso, elepassou a vida procurando aliados que lhe permitissem chegar ao podersupremo, não importava quais fossem. Eu conhecera essa faceta de sua personalidade ainda no governo Juscelino,num dia em que Aloísio Salles e Nelson Batista, dois gentlemen da sociedadecarioca, me convidaram para um drinque no Maxim’s, um barsemiclandestino na avenida Atlântica. Eles me propuseram um encontro comSan Thiago, advogado de todas as empresas nas quais Aloísio e Nelsontinham interesses. Aceitei. Encontramo-nos poucos dias depois, e a conversafoi muito objetiva. Ele sabia, ressalvou, que não éramos amigos, e que eudiscordava de várias teses que lhe eram caras. Ainda assim, pedia que oajudasse na tentativa de ser ministro de Estado, pois JK pretendia convidá-lopara um cargo no primeiro escalão. Se eu não estivesse disposto a apoiá-lo,ele ficaria feliz caso não o hostilizasse. Prometi que não contestaria suaindicação para algum ministério, mas a distância que nos separavapermaneceu. Eu não tinha afinidade alguma com San Thiago Dantas. Como nossos territórios eram comuns, cruzei com San Thiago muitas vezesdurante o governo João Goulart. Mas numa única ocasião – em 1963, poucosdias depois de eu ter acompanhado o presidente da República em sua visitaaos Estados Unidos – ele tentou vencer o abismo que nos separava. SanThiago, à época ministro da Fazenda, visitou-me em companhia de RenatoArcher, e quis saber de quanto dinheiro eu precisaria para comprar os DiáriosAssociados e agregar o claudicante império construído por AssisChateaubriand à Última Hora, o que ampliaria enormemente o poder de fogoda imprensa popular vinculada ao governo. Explicou que Jango, preocupadocom a penúria crônica da minha empresa, resolvera acabar com meusproblemas financeiros. A compra dos Diários, imaginavam Jango e SanThiago, eliminaria a questão. Percebi que, no fundo, ele pretendia cooptar-me para apoiar sua candidatura

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à Presidência da República. Deduzi, também, que San Thiago agenciaraalgum grande negócio envolvendo o governo, o que lhe permitira angariaruma esplêndida gorjeta, capaz de assegurar aquelas transações milionárias.Fiz alguns cálculos aleatórios e fixei uma quantia qualquer. Ele ficou depensar no assunto e prometeu voltar a procurar-me, mas o governo Goulartfoi derrubado antes que tivéssemos uma segunda conversa. Mais tarde, Jangome confirmaria que de fato encarregara San Thiago de sugerir-me a comprados Diários Associados, mas se recusou a entrar em detalhes. Por isso, eununca soube se a verba efetivamente existiu e se San Thiago resolveuembolsá-la. Mantido à distância do poder por homens como San Thiago Dantas, que meconsideravam direitista, assisti impotente à agonia do governo João Goulart.Para agravar minhas relações com o poder, o presidente, meu amigo há tantosanos, não conseguia agir lisamente com o dono do único jornal quesustentava seu governo de forma incondicional. No começo de 1964, porexemplo, ele me comunicou que decidira mandar prender o generalHumberto de Alencar Castello Branco, então chefe do Estado-Maior doExército. Jango explicou que o general transgredira certos regulamentos doExército, e que não lhe restava alternativa senão mandá-lo para a cadeia. Eleachava que essa notícia merecia a primeira página da Última Hora. Observei-lhe que a prisão do chefe do Estado-Maior do Exército mereceria a primeirapágina de qualquer jornal do país, desde que consumada. Se a prisão não seconcretizasse, quem tivesse publicado a notícia ficaria desmoralizado. – Vou mandar prender o general Castello Branco – declarou Jango depoisde ouvir minhas inquietações. – Quem está dizendo isso é o presidente daRepública. Ali estava uma grande manchete. Publiquei a notícia, que previsivelmenteagitou os quartéis. Meia hora depois da chegada da Última Hora às bancas,porém, Jango recebeu Castello Branco em audiência e negou ter dito o queme dissera. Castello continuou em seu posto, articulando as manobrasgolpistas que poucos meses depois o levariam à Presidência da República. Outros incidentes contribuíram para sugerir que estávamos às voltas comum governo em desagregação. Certa feita, em plena reunião do Ministério,entrou na sala Maria Teresa Goulart, uma jovem primeira-dama muitoatraente, muito bonita, talvez mais bonita que Jacqueline Kennedy, a musa daépoca. Maria Teresa estava na piscina, de biquíni, quando lhe entregaram umdisco de Frank Sinatra com uma dedicatória assinada pelo cantor americano.

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É provável que Sinatra tenha enviado seu disco a todas as primeiras-damasdo mundo, mas Maria Teresa ficou eufórica ao recebê-lo e fez questão deinterromper a reunião do Ministério para contar ao marido presidente queganhara um presente inesquecível. Os ministros tiveram de esperar algunsminutos antes de retomar a discussão em torno de assuntos efetivamenteimportantes. Teria sido muito fácil enriquecer naqueles últimos meses de governoGoulart, quando passaram por minhas mãos quantias milionárias. No começode 1964, por exemplo, o doutor Jorge Serpa, advogado e empresário muitoligado ao governo, pediu-me que entrasse numa operação destinada a fazerentrar no Brasil 450 mil dólares, a serem aplicados em manobras políticas.Primeiro, eu deveria abrir uma conta num banco suíço. Em seguida, essaquantia seria depositada em minha conta. Numa terceira etapa, eu viajaria atéa Suíça, retiraria o dinheiro e, de volta ao Brasil, entregaria os dólares adeterminada pessoa. Aceitei a missão. Com um depósito de cem dólares, abriuma conta na Union de Banques Suisses. Poucos dias depois, viajei parabuscar os 450 mil dólares. Quando comuniquei a um funcionário do banco que pretendia retirar tudo oque fora depositado, ele se alarmou. “Não faça isso”, aconselhou-me. “Se osenhor andar com tanto dinheiro, correrá risco de vida.” Insisti no meu pleito,e o funcionário transferiu o problema para a diretoria do banco. Fiqueialgumas horas reunido com os diretores, empenhados em dissuadir-me a sairdali com 450 mil dólares em espécie. Eles sugeriram que a retirada fosse feitapor etapas, recusei a ideia. Depois, propuseram que o dinheiro fosse enviadoa um banco do Uruguai e depositado numa conta que seria aberta em meunome. Fui taxativo: queria os dólares naquele momento. Quase no começo danoite, depois de muitas horas de conversa, eles afinal cederam, reconhecendoque eu poderia fazer o que quisesse com uma quantia que legalmente mepertencia. Decidi deixar vinte mil dólares no banco e pedi que meentregassem o resto. Eles me entregaram um envelope com cinquentacheques visados que somavam 430 mil dólares. Coloquei o envelope no bolsodo paletó, fui para o aeroporto e embarquei num avião para Roma. Eu poderia, sem problema algum, ter deixado cem mil dólares em minhaconta – tratava-se de um dinheiro clandestino, ninguém poderia fazer algocontra mim. Da mesma forma, poderia ter dito que fora assaltado e embolsaraqueles cinquenta cheques visados. Por que não fiz isso? Francamente, nãosei. O fato é que deixei em minha conta apenas vinte mil dólares. Em Roma,

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corri a depositar os cheques no cofre do hotel, tendo antes o cuidado deseparar uma parte para fazer algumas compras. Comprei três dúzias decamisas finíssimas, seis dúzias de pares de meia de fio-escócia, um jogo demalas Gucci. Gastei dinheiro nessas coisas, que me davam um prazer infantil.De volta ao Brasil, entreguei o envelope à pessoa que me fora indicada. Ohomem mal olhou o envelope, colocando-o displicentemente sobre uma mesasem sequer me agradecer. Eu arriscara minha pele em troca dos vinte mildólares que haviam ficado em minha conta. Esse dinheiro, de qualquer modo, seria muito útil quando Jango caiu e tivede seguir para o exílio. Eu julgava – equivocadamente, como veremos – queestava preparado para enfrentar um longo período de vacas magras, confiantenuma transação que fizera com Jorge Serpa. Ligado à siderúrgicaMannesmann, ex-diretor do Correio da Manhã, ele sabia tudo, conseguiatodas as informações. Às vezes, eu chegava ao sítio de Jango em Jacarepaguáe o via saindo. Serpa sempre mantivera estreitas relações com os donos dopoder. Seu acesso a presidentes, ministros e grandes empresários era tãofranco que ganhou o apelido de “Cardeal”, numa alusão ao cardeal francêsRichelieu. Discretíssimo, detestava ostentações: não dava festas, nãocomparecia a recepções, andava de táxi em vez de usar limusines. Gostava deter dinheiro e poder, mas não de exibi-los. Em março de 1964, Jorge Serpa procurou-me para dizer que Jango oencarregara de averiguar quanto dinheiro seria necessário para que a ÚltimaHora sobrevivesse a um eventual golpe de direita. Acreditei plenamente emSerpa: ele frequentemente visitava Jango de madrugada, mergulhando emconciliábulos, e sabidamente merecia a confiança do presidente. Tambémfiquei comovido – ali estava uma prova de que Jango se preocupava com odestino do meu jornal. Disse a Serpa que precisaria de um milhão de dólares. – Não se preocupe – tranquilizou-me Serpa. – Temos um negócio emmarcha e dentro de poucos dias esse dinheiro será depositado numa contaaberta em seu nome num banco suíço. Você logo receberá o número da conta. Senti-me aliviado, e nem mesmo quis saber que negócio estava em marcha.No dia 30 de março, encontramo-nos novamente. Serpa mostrou-me umarelação de nomes, esclarecendo que aquelas pessoas seriam beneficiadas pelaoperação financeira da qual sairia a verba prometida à Última Hora. Emseguida, passou-me um talão de cheques de um banco de Basileia. Serpaavisou que, em 24 horas, um milhão de dólares seriam depositados naquelaconta, e que dentro de dois dias eu poderia começar a emitir cheques. No dia

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seguinte, quando sobreveio o golpe e tive de asilar-me numa embaixada,guardei uma única folha do talão de cheques e rasguei as restantes – eu nãopodia ser pilhado com um talão de um banco suíço no bolso. Uma única folhabastaria para que eu fizesse a retirada. Algum tempo mais tarde, quando fui aesse banco em Basileia para buscar aquela fortuna, constatei que havia apenascem dólares depositados em minha conta. Fiquei furioso com Serpa. Nuncamais voltaríamos a encontrar-nos. Ele depois foi preso, teve a falênciadecretada. Mas se recuperou, tornou-se amigo e advogado de RobertoMarinho, tornou a aproximar-se de gente poderosa, e hoje vive com conforto,muito conforto. Gostaria de descobrir o que ocorreu em 1964. Nunca decifreio mistério. O fato é que não consegui preparar-me adequadamente para enfrentar asconsequências do Golpe de 64, embora estivesse convencido pelo menosdesde o começo daquele ano de que a queda do governo Goulart era questãode tempo. Eu sabia que Jango não teria condições de resistir, e precisamentepor isso não aceitei juntar-me a ele na manhã de 31 de março de 1964,quando conversamos por telefone. – Vem comigo para Brasília – propôs Jango, que se preparava para deixar oRio de Janeiro. Rejeitei a sugestão, ele insistiu: – Tu vens comigo. – Não, Jango, não vou – retruquei. – Tu vais defender a tua presidência, euvou defender o meu jornal. Procurei informar-me sobre o que ocorria e concluí que o melhor a fazer erabuscar asilo em alguma embaixada. Escolhi a embaixada do Chile. Fui para láconsciente de que, se por algum milagre o golpe malograsse, eu não poderiasair às ruas de cabeça erguida – afinal, nem mesmo esperara a queda dogoverno para buscar asilo. Jango ainda era presidente e eu já era um asilado. Como João Goulart continuava tecnicamente no poder, a embaixada chilenanão quis conceder-me asilo. Bom malandro, eu tive o cuidado de ler toda alegislação sobre asilo antes de deixar minha casa, e descobrira que, poucosmeses antes, fora instituído numa reunião em Caracas um princípio destinadoa proteger os cidadão da odiosidade pública. Aquilo me serviria, pressenti. Euestava numa cidade governada por Carlos Lacerda, meu maior inimigo ealiado dos golpistas. Estava, portanto, exposto à odiosidade pública. Osfuncionários da embaixada aceitaram minha argumentação e me acolheram.Lembro-me de que não senti qualquer tristeza ao asilar-me. Eu planejava

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viver cerca de dez anos fora do Brasil, em companhia de meus filhos, egostava muito dessa ideia. Achava, também, que a Última Hora iriasobreviver à tormenta.

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CAPÍTULO 34 Em 1961, houve uma noite em minha vida em que tive um incidente muitograve com Danuza, de quem estava me separando. Fiquei desesperado, poisuma de minhas obsessões era evitar que chegássemos ao ponto de ruptura, oque certamente incidiria de modo negativo sobre a formação dos nossosfilhos. Eu me excedera ao discutir com Danuza, perdendo o controle dosnervos, e a ofendera de forma lamentável. Fiquei perambulando peloscaminhos sombrios do Largo do Machado, ruminando a cena da discussão etentando encontrar uma maneira de reparar meu erro. A certa altura, lembrei-me de que perto dali morava uma psicóloga a quem Danuza levara minhafilha Pinky; resolvi procurá-la. Bati à sua porta às sete horas da manhã; ela abriu a porta estremunhada.Não era exatamente uma mulher simpática, mas eu já não tinha como recuar. – Desculpe-me ter vindo aqui perturbá-la – disse. – Mas estou desesperado equero saber o que fazer. Ela mandou-me entrar, eu lhe abri a alma. Até então, essa psicóloga não meconhecia pessoalmente. Quando terminei meu desabafo, ouvi algo que nuncamais esqueceria. – O senhor me dá a impressão de ser um homem para quem a luta em si émais importante que o começo da luta, ou o seu desfecho – disse-me ela. – Oque o senhor não sabe fazer, nem pode, é abandonar o combate. O senhorentrou numa luta e agora não quer sair dela. Guardei para sempre essas palavras, que encerravam uma boa dose deverdade. Era a luta, algum tipo de luta, que me mantinha, me sustentava, mepreservava. Lembro-me de que, numa ocasião em que Carlos Lacerda meatacava com especial intensidade, recebi a visita de Oscar Pedroso Horta. Eleme encontrou com o televisor ligado na TV Tupi. O vídeo mostrava o rostode Carlos Lacerda, mais uma vez empenhado em reconstituir a árvoregenealógica dos Wainer. Pedroso Horta pareceu chocado com o que ouvia. – Não é possível que isso continue – exclamou a certa altura. – Isso aindavai levar o país à guerra civil, é preciso que acabe já. Virou-se para mim com expressão de pena.

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– Como você deve estar sofrendo, Samuel – condoeu-se. Senti vontade de rir, uma sincera vontade de rir. Contive-me. – Horta, não estou sofrendo – expliquei. – Primeiro, acho grotesco ver oCarlos desenhando a árvore genealógica da minha família. Além disso, essaluta representa para mim uma razão de viver. Isolado na embaixada do Chile, em abril de 1964, eu procurava convencer-me de que a luta não cessara – haveria apenas um intervalo, durante o qualseria possível esquecer-me de Lacerda, da necessidade de revidar a ataquesdiários, da mesquinhez dos supostos amigos de João Goulart. Livre desseproblemas cotidianos, poderia dedicar-me às coisas de que gostava e, maisimportante ainda, a três pessoas que amava particularmente: meus filhos, comos quais sempre tive relações muito especiais. Pinky, Samuca e Brunoatravessavam sem esforço algum a couraça que sempre bloqueou minhaafetividade. Essa compulsão de preservar-me de doações afetivas incondicionais memanteve a certa distância tanto dos políticos com os quais convivi atéfraternalmente quanto dos amigos que viveram comigo a imensa aventura daÚltima Hora. Neste caso, movia-me também a convicção de que o homemque lidera não pode ter limitações afetivas, não pode esbarrar em vínculossentimentais. O homem que lidera é um homem só. Confesso, honestamente,que jamais alimentei uma grande amizade. Tive amigos que se sacrificarampor mim, que me contemplaram com gestos de extrema generosidade. Tive,em resumo, amigos que me amaram, mas eu nunca soube retribuir, nemmesmo fui ao enterro de alguns deles. Recebi muito mais do que dei. Poderiater-lhes oferecido demonstrações de afeto ao longo de trinta, quarenta anos deconvivência. Mas me contive, embora os amasse. Com meus filhos sempre foi diferente, a nossa proximidade se aguçou como tempo. No momento em que dito estas memórias, eles me oferecemdemonstrações de carinho que saboreio com enorme prazer. De repente,Samuca, por exemplo, telefona para contar como foi uma reportagem queacabou de fazer para a TV Globo, no tom entusiasmado de quem vairevolucionar a televisão brasileira. Pinky me liga de Ubatuba para perguntarcomo estou e pedir um presentinho – ela já está casada e tem filhos, mas quero colo do pai. Saio com Pinky com certa frequência, e então lhe compro umcasaco, ou um doce. Essas pequenas coisas me protegem da nostalgia dopoder e impedem que eu me arrependa por não ter enriquecido. No meu exílio, que se estenderia até 1968, penso que soube educar meus

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filhos de modo a prepará-los para a ideia de que ter dinheiro não era vital. NaFrança, por exemplo, quando meu caçula Bruno me pedia dois francos paracomprar um gibi, eu lhe dava quatro e o proibia de devolver o troco. Aliás,achei ter chegado a hora de voltar ao Brasil num dia em que fiz a mesmacoisa com Samuca e ele espantou-se. “Papai, tu es fou”, comentou. Ele viranaquele gesto perdulário um sinal de que o pai havia enlouquecido. Naverdade, Samuca já estava começando a ser contaminado pelo espíritoavarento, pela mesquinhez que marca o caráter do povo francês. Eu faziaquestão de que meus filhos fossem desprendidos em relação ao dinheiro.Felizmente, nenhum dos três jamais me acusou de não lhes ter deixadoalguma herança. Ao contrário, riem muito quando conto histórias dos temposem que fui rico; irônicos, agradecem a “herança cultural” que leguei. Creioter conseguido equipá-los psicologicamente para a hipótese de um eventualempobrecimento, que afinal se consumou. Contemplando meu percurso, constato ter vivido uma experiência humanacompleta ao cumprir uma trajetória que me permitiu conhecer a ascensão, aglória e a queda. Na época em que eu era um príncipe do governo Vargas, arevista Time publicou a meu respeito uma reportagem cujo título era “OProfeta”. Alguns anos depois, outra reportagem sobre mim, na mesmarevista, tinha como título “O Profeta Destronado”. A revista acertou – eurealmente fora destronado. Mas sobrevivi sem maiores inquietaçõesinteriores. A queda não me afetou como eu temia, até porque um outro traçode temperamento – meu desapego às pompas, à glória, ao próprio poder –contribuiu para reduzir sensivelmente seu impacto. Claro, às vezes sinto saudades dos prazeres que o poder proporciona, dosafagos que minha vaidade recebia. Mas nada supera a alegria de constatar queas pompas do mundo não me fazem falta. Isso me permitiria, mais tarde,voltar a trabalhar como assalariado, sem qualquer constrangimento, naredação do jornal que eu próprio fundara. Ademais, estou convencido de quenão me deformei, não me corrompi, não perdi a dignidade, não me humilhei.Sim, não é agradável lembrar que passei cinco, seis horas na sala de esperado escritório de algum banqueiro, mas fiz isso para que meu jornalsobrevivesse. Eu lutava por uma causa. Da mesma forma, fiz acordos eacertos que muita gente condena, mas também aí estava em jogo asobrevivência da Última Hora. Nada guardei para mim. Quando decidi escrever estas memórias, não pretendia escrever algumdiscurso de defesa. Queria apenas saber se valeu a pena. Contemplando o que

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o destino me ofereceu, só posso concluir que valeu. Claro, claro que valeu.Mas não me detive nessa espécie de balanço em abril de 1964, asilado naembaixada do Chile, talvez pelo desejo de acreditar que o mesmo combateque me absorvera durante anos logo seria retomado. Tratava-se de umapausa, nada mais que uma pausa. Só mais tarde entendi que chegara ao fim, eque os vencidos haveriam de pagar um preço por isso. Naquele momento,procurei não pensar nessas coisas. Eu queria agarrar-me à crença de que aÚltima Hora sobreviveria à tormenta. A Última Hora efetivamente mostrou-se preparada para suportar atormenta. Em outros estados, contudo, meus jornais sofreram já no dia 31 demarço golpes que se revelariam fatais. Em São Paulo, por exemplo,problemas pessoais impediram que Jorge Cunha Lima, o chefe da redaçãopaulista, comparecesse ao prédio do jornal na noite do dia 31 de março paradefendê-lo, e a Última Hora ficou acéfala num momento crucial de suahistória. O general Amaury Kruel, então comandante do II Exército,mantinha relações de amizade comigo e me prometera, dias antes, proteger ojornal de eventuais ataques direitistas. Desencadeado o golpe ao qual viria aaderir dois dias depois, Kruel colocou soldados na porta do prédio. Semcomando, o jornal deixou de circular durante longos 21 dias. Quando voltouàs bancas, perdera definitivamente a força de outros tempos, vergando-se àanemia que precipitaria sua venda e, mais tarde, sua morte. A Última Hora de Pernambuco pagou um alto preço por ter configurado,em seus 22 meses de existência, uma ilha esquerdista cercada por umaimprensa regional profundamente reacionária. No dia 31, quando eu já mepreparava para asilar-me na embaixada do Chile, o diretor da UH do Recife,Múcio Borges, telefonou-me para saber que manchete deveria publicar.Decidimos que a manchete seria “Todo Poder à Legalidade”. No dia seguinte,nem bem o jornal chegou às bancas, militares do III Exército invadiram aredação para prender os responsáveis pelo jornal e fechá-lo. O jornalistaMilton Coelho da Graça reagiu àquela arbitrariedade e, além de preso, foibrutalmente torturado. Milton aborreceu-se comigo porque censurei suaatitude. Talvez não tenha compreendido que eu apenas queria que, em vez dedefender o jornal, defendesse sua vida. Como não havia condição algumapara a resistência, o mais sensato era que, naquele momento, cada umcuidasse da própria sobrevivência. Acompanhei essas violências refugiado na embaixada chilena, ondeaguardava o momento de sair do país. No dia 3 de abril de 1964, o próprio

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embaixador do Chile comunicou-me que uma visita estava à minha espera emoutra sala. Era Ibrahim Sued. Fiquei intrigado: segundo as leis do asilo, eu sópoderia receber familiares na embaixada. O diplomata chileno esclareceu queabrira uma exceção porque Ibrahim Sued era um homem muito importante.Fui ao encontro do ilustre visitante, e Ibrahim explicou-me que estava ali emnome de um grupo de empreiteiros interessados em comprar a Última Hora.Eram os empreiteiros que mais tarde se ligariam estreitamente ao coronelMário Andreazza. – Não quero vender a Última Hora, Ibrahim – informei. – Você é maluco? – espantou-se ele. – Não vê que não tem condições demanter o jornal? Repeti que não tinha intenção alguma de desfazer-me da Última Hora. – Eles pagam o preço que você estabelecer – ressalvou Ibrahim. Insisti na negativa, e a conversa começou a morrer. Alguns anos depois, aocabo de penosas negociações que serão aqui relatadas, a Última Hora acabousendo comprada pelo mesmo grupo de empreiteiros que haviam incumbidoIbrahim Sued de ir ao meu encontro. Naquele instante, porém, eu achavaconveniente preservar o jornal até que a situação brasileira se tornasse menossombria. Eu ainda não compreendera que o regime militar teria vida longa.Não alcançara, também, até que ponto os empreiteiros estavam dispostos aampliar sua influência direta sobre a nossa imprensa. Alguns meses depois, exilado em Paris, recebi a visita de um emissáriodesse grupo de empreiteiros, liderados pelos irmãos Alencar – Maurício,Marcelo e Mário. Os Alencar sempre haviam cultivado lucrativas ligaçõescom multinacionais e militares, e pressentiam que, com o golpe de 64, suahora chegara. Já convencido de que não seria fácil sobreviver no exílio, senti-me inclinado a fechar negócio. Para consumar a transação, eu precisava doconsentimento formal de Haryberto Miranda Jordão, advogado da minhaempresa, e Sérgio Lima e Silva, diretor da Última Hora. Diante dasincertezas provocadas pelos idos de 64, eu passara a cada um deles um terçodas ações do jornal. Tratava-se, naturalmente, de um artifício legal, pois euretomaria as ações tão logo o quadro brasileiro se aclarasse. Haryberto foi ao meu encontro em Paris, e só então percebi que eleslevaram a sério o que para mim fora apenas um artifício: o advogado e odiretor da minha empresa achavam que as ações efetivamente lhespertenciam, e Haryberto conversou como se fosse, de verdade, dono de umterço da Última Hora. Fiquei perplexo, mas nada podia fazer. Eles

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informaram que só venderiam suas partes por uma quantia X, muito superiorao preço que os empreiteiros poderiam pagar. Graças a Haryberto e Sérgio, asnegociações goraram. Foi então que os empresários voltaram seus olhos parao Correio da Manhã. Embora já estivesse muito distante da opulência exibida nos tempos domandarinato de Paulo Bittencourt, o Correio da Manhã ainda era a marcamais valiosa da imprensa brasileira. O jornal tinha tanta influência e tamanhatradição que, logo depois de ter precipitado a queda de Jango com violentoseditoriais, conseguiu fazer oposição ao poder ascendente dos militares emanter sua força. Creio que o Correio da Manhã estaria vivo ainda hoje senão tivesse tido a má sorte de passar, no começo dos anos 60, às mãos deNiomar Moniz Sodré Bittencourt, a viúva de Paulo. Niomar, uma sinhazinhabaiana inteiramente despreparada para assumir a direção de um dos grandesjornais do Brasil, resolveu provar que era melhor do que o marido e o sogro,Edmundo Bittencourt. Pendurada nessa autossuficiência, destruiu o jornal empouco mais de três anos. Ao saber que o Correio da Manhã, sitiado pelo governo militar, enfrentavagraves dificuldades, resolvi propor a Niomar uma aliança conveniente anossos jornais. A ideia era que a gráfica do Correio – uma oficinamonstruosa, capaz de imprimir simultaneamente meia dúzia de jornais –rodasse as edições de Última Hora. Além disso, os exemplares do meu jornalseriam distribuídos pela frota do Correio, que somava dezenas e dezenas deveículos. Achei que ali estava um bom negócio para nós dois. Acertada essaespécie de pool, eu poderia desfazer-me tanto da gráfica quando da frota daÚltima Hora. Niomar, em contrapartida, poderia utilizar a capacidade ociosade seus equipamentos e veículos. Pedi a Danton Jobim, que me visitava emParis e era amigo de Niomar, que lhe expusesse minha proposta. – Não me misturo com cafajestes – respondeu Niomar. Poucos meses depois, o Correio da Manhã foi comprado pelos empreiteirosque haviam tentado obter o controle da Última Hora. Mais alguns meses e ovelho jornal já não existia mais. Deixei o Brasil com trinta mil dólares que conseguira reservar paraemergências. Algum tempo depois, retirei os vinte mil que deixara guardadosno banco suíço. Mais tarde, obtive de Jorge Serpa outros noventa mil dólares,ao fim de constrangedoras negociações. Ao constatar que não seria fácilsobreviver com meus filhos na França, fiz chegar a Jorge Serpa uma ameaça:se não me fosse entregue um milhão de dólares, conforme ele me havia

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prometido, eu revelaria todos os detalhes da transação que ele comandara.Serpa assustou-se e mandou um emissário a Paris para entender-se comigo.Lutamos como leões. Eu dizia que meus filhos enfrentavam sériasdificuldades e que a Última Hora estava condenada à morte. O emissáriosustentava que Serpa não dispunha de tantos recursos. No fim das contas,contentei-me com noventa mil dólares. Embora tivesse certeza de que Serpaembolsara o dinheiro, achei sensato não prolongar a discussão. Mas nãofiquei com os noventa mil dólares. Sempre perdulário, entreguei quarenta mila Sérgio Lima e Silva, encarregando-o de ressuscitar a Última Hora em SãoPaulo. Mais uma vez, joguei dinheiro fora. A Última Hora me preocupava permanentemente, mas também dei curso aoutros projetos que frequentavam minha imaginação. Como alguns dosgrandes jornalistas franceses eram meus amigos, resolvi convencê-los de quevaleria a pena lançar uma versão europeia de Seleções do Reader’s Digest,um enorme sucesso naquela época. A ideia era fazer uma revista, cujo títuloseria Europe Moderne, ou simplesmente E. M., que traduzisse o pensamentoe a cultura da Europa ocidental. A ideia, em princípio, agradou bastante.Certo dia, fui à redação do jornal Le Monde falar sobre esse projeto. Como eugostava de tocar várias coisas ao mesmo tempo, aproveitei a ocasião paraconvencer a direção do Monde a me vender os direitos sobre a reprodução desuas reportagens no Brasil por cem dólares mensais. Entusiasmado com esse acerto, fechei contratos semelhantes comL‘Express, por duzentos dólares mensais, e com Le Nouvel Observateur, pelomesmo preço. Ou seja: por quinhentos dólares ao mês, eu conseguiracontratos de exclusividade com o principal diário e as duas revistas maisimportantes da França. Quando a notícia chegou ao Brasil, AssisChateaubriand despachou para Paris o fotógrafo Jean Manzon, com a missãode torpedear ao menos o contrato com o Monde. Manzon procurou HubertBeuve-Meury, diretor do jornal, para dizer-lhe que a Última Hora era o jornalda ralé carioca; não valeria a pena, portanto, formalizar qualquer espécie deacerto com uma publicação desse tipo. – A terra pertence ao primeiro ocupante – filosofou Beuve-Meury, decididoa manter a palavra empenhada. Durante algum tempo, a Última Hora utilizou com relativo sucesso asreportagens compradas a Le Monde, mas depois de poucos meses constateique aquele dinheiro desembolsado a cada mês estava ficando caro demaispara meus bolsos. Desfiz o acordo com as revistas e transferi os direitos sobre

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os textos de Le Monde para a Folha de São Paulo, que até hoje os republica.Tentei levar adiante a ideia da versão europeia de Seleções, mas é meiocomplicado discutir com franceses. O projeto acabou morrendo, mascontinuo com a convicção de que tinha tudo para dar certo. Ainda em 1965, a Última Hora recuperou sua saúde financeira e passei areceber quatro mil dólares por mês. Isso me bastava. Com esse dinheiro,mantinha meu Alfa-Romeo, um apartamento de dois quartos (administradopor uma empregada importada de Portugal) e pagava a escola das crianças –Pinky estudava num colégio perto de Paris, Bruno e Samuca numa escola naSuíça. Paralelamente, seguia com minha intensa vida social, favorecida porrelações que estabelecera em anos anteriores. Quando cheguei a Paris, porsinal, Le Monde noticiou na primeira página o desembarque do “exiladobrasileiro e grande editor Samuel Wainer”. Essas coisas impressionavammuito e contribuíram para abrir-me as portas do grand monde parisiense. Sempre muito provincianos, os brasileiros não conseguem encarar comnaturalidade minha convivência com artistas, intelectuais, playboysmilionários. Em jornais do Rio e de São Paulo, cronistas sociais publicavamnotas anunciando, com franca admiração, que eu fora visto ao lado daprincesa Soraya, a bela mulher repudiada pelo xá do Irã por não poder dar-lhefilhos. Soraya tinha um rosto realmente lindo, mas era bastante simples, umaalma quase camponesa, também ela deslumbrada com as luzes de Paris.Circulando pelos lugares da moda, era inevitável que eu fosse visto emcompanhia de gente famosa. Certa noite, fui a uma recepção numa das casasda família Rothschild. A caminho da festa, encontrei-me com um pequenogrupo formado por Fred Chandon, o homem da champanha, Claude deLeusse, uma querida amiga que apesar de genuinamente aristocratatrabalhava como jornalista, e Anita Ekberg, a estrela de A Doce Vida. Entreino salão de braços dados com duas esplêndidas mulheres – Claude eraelegantíssima. Adolfo Bloch, para meu desprazer, estava presente à recepçãoe me recebeu com um olhar de profunda inveja. Mais tarde, conversandocomigo, tentou ser amável: – Você parecia um artista de Hollywood! – admirava-se Bloch. – DeHollywood!

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CAPÍTULO 35 Em agosto de 1965, Otávio Frias de Oliveira, o dono do grupo Folhas, depassagem por Paris, convidou-me para tomar um drinque no Hotel Claridge emostrou-se interessado em comprar a Última Hora de São Paulo. Àquelaépoca, eu estava cético quanto às possibilidades de sobrevivência do meujornal paulista. No final do ano anterior, em mais uma tentativa de reanimá-lo, eu passara o comando da redação a dois amigos, Rubem Paiva e FernandoGasparian. Foi um erro, antes de mais nada porque eles não eram jornalistas,não eram do ramo. Além disso, ambos foram rapidamente assaltados pelasensação de onipotência que geralmente contamina quem assume o controlede um jornal. Em pouco tempo, já dispensavam meus conselhos econtrariavam minhas diretrizes. Para mim, o importante naquele momento eraassegurar a sobrevivência econômica do jornal, e para tanto era precisocautela na linha editorial. Gasparian e Rubem Paiva, entretanto, radicalizarama posição da Última Hora. Vi-me forçado a afastá-los da chefia da redação. Quando me encontrei com Otávio Frias de Oliveira em Paris, a Folha deSão Paulo já era um grande jornal, e sua empresa se preparava para oprocesso de expansão que se desenvolveria nos anos seguintes. Friasdiscorreu sobre seus planos, entre os quais figurava a compra da Última Hora– tratava-se, como ele observou, de uma grande marca jornalística. Pediu-meque fixasse um preço. Respondi que seria difícil fixar um preço, até porque aÚltima Hora paulista tinha pouquíssimos bens materiais, nem mesmodispunha de terreno próprio. Seu patrimônio estava praticamente na marca.Para avaliar o preço dessa marca, seria preciso saber, por exemplo, queespécie de orientação seria imprimida ao jornal. No fim das contas,conseguimos chegar a um preço, a ser pago em cinco anos. Incluí nesseacerto cláusulas que me pareceram importantes. Combinamos que Friassaldaria as dívidas trabalhistas da empresa, e que absorveria o pessoal daredação paulista. Havia funcionários com quase quinze anos de casa, e eu nãopretendia abandoná-los à própria sorte. Frias recorreu a um artifícioengenhoso. Em vez de demitir alguns funcionários e indenizá-los,simplesmente remanejou-os para outros setores de sua empresa e esperou que

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se aposentassem. Com isso, economizou alguns bilhões de cruzeiros. Frias imediatamente convocou a Paris o advogado da empresa, que viajouem companhia de um dos sócios do grupo. Dois dias depois do nosso drinqueno Claridge, o contrato estava pronto para ser assinado. Quando só faltavaformalizar o acordo, João Saad, dono da TV Bandeirantes, mandou-me umtelegrama oferecendo o dobro do que Frias iria pagar-me, e fazendo um apelopatético para que eu lhe vendesse o jornal. Sempre gostei muito de João Saad,um homem encantador a quem devo muitos favores pessoais. Mas recusei aproposta por dois motivos. Primeiro, o contrato com Frias estava redigido,apenas à espera das assinaturas. Segundo, eu temia que o jornal, nas mãos dohomem que era genro de Ademar de Barros, adotasse uma linha querenegasse seu belo passado. Saad ficou extremamente aborrecido comigo. Consumada a venda, divulguei uma nota explicando que decidira transferira tarefa de seguir adiante com a Última Hora a uma empresa que consideravacomercial, sem nitidez político-ideológica, cuja filosofia estava em fazer bonsjornais. Incorporada ao grupo Folhas, a Última Hora esteve bem de saúde até1968, quando o advento do AI-5 provocou fundas mudanças em seuconteúdo. Então, o jornal que eu fundara em São Paulo começou a morrer.Sobretudo entre 1952 e 1964, fora um grande jornal, muito influente entre ostrabalhadores urbanos. Fiz essa observação a Frias ao colocarmos nossasassinaturas no contrato. – Você terá nas mãos um excelente instrumento – disse-lhe. Frias concordou, sorrindo. Depois, em tom de blague, fez-me umaconfidência bastante verdadeira:– O que eu gostaria de fazer, agora, era ir até a Federação das Indústrias doEstado de São Paulo e mostrar, numa bandeja de prata, a cabeça de SamuelWainer.– Foi barato – comentei. Era isso: Frias achava que acabara de decepar minha cabeça, ao menosminha cabeça paulista. A rigor, a FIESP não queria destruir-me – queriadestruir o jornal, e o jornal continuaria vivo. Mas o novo dono da ÚltimaHora de São Paulo tinha certa razão: a FIESP não deixaria de alegrar-se aosaber que eu perdera minha tribuna no principal estado do país. Em meus primeiros meses de exílio, convivi bastante com JuscelinoKubitschek. Saíamos juntos com frequência, conversávamos horas seguidas.JK, que deixara o Brasil depois de submetido a humilhações intoleráveis,confidenciava-me então seu imenso desejo de voltar ao país. Eu ponderava

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que valia a pena esperar até que as coisas se aclarassem, mas Juscelinoparecia sempre pronto a embarcar no próximo avião. Adorava fazer política,e ansiava por retomar o poder. Ele vivia em campanha. Recebia vereadoresem seu escritório parisiense, correspondia-se com eleitores que lhe escreviamde remotas paragens brasileiras. Nessas conversas, fantasiávamos sobre a possibilidade de associar-nos numjornal, talvez a própria Última Hora. Ele estava convencido de que precisavade uma cunha na imprensa para voltar à Presidência da República, masnossos projetos nunca foram adiante. No começo dos anos 70, quando euseguia buscando oxigênio para tornar menos penosa a sobrevida da ÚltimaHora, tornei a encontrar- me com Juscelino, então um homem riquíssimo. Vium JK muito diferente do que eu conhecera – parecia desencantado, triste,desinteressado por projetos de retomada do poder. Até sua morte, nós nosabraçávamos com ternura a cada encontro, conversávamos com o carinho deamigos que sabiam ter cometidos erros recíprocos, mas relevavam esseserros. Só que já não percorríamos caminhos comuns. Nosso distanciamento começara ainda em 1966, quando Juscelino sonhavacom sua ressurreição política e achava que qualquer meio era válido paraalcançar tal fim. Eu costumava dizer-lhe que deveria adotar a postura dovelho Winston Churchil, que perdeu o poder depois de ter salvo a Inglaterrada derrota na guerra. Sugeria-lhe que escrevesse um grande livro, guardassesuas declarações para momentos efetivamente dramáticos; agisse, enfim,como estadista. – Espere que a nostalgia popular venha buscá-lo – repetia. Inútil: Juscelino não podia esperar. Tanto não podia que aceitou reconciliar-se com Carlos Lacerda, unindo-se a ele e a João Goulart na chamada “FrenteAmpla”. Durante mais de dez anos, Lacerda chamara JK de crápula, canalha,ladrão e outras expressões extraídas de seu rico vocabulário. Ao saber que ovelho inimigo gostaria de propor-lhe uma aliança, contudo, Juscelinoimediatamente esqueceu esses adjetivos – mais importante, imaginou, era queele e Lacerda lutassem juntos para a convocação de eleições presidenciais. Osdois se encontraram em Lisboa, num clima de enorme cordialidade. DonaSarah Kubitschek recebeu alguns rapapés de Carlos e retribuiu-os comprazer, entre xícaras de cafezinho. Também Juscelino mostrou-se muitosimpático ao visitante, e os dois antigos adversários não demoraram aentender-se. Acertaram, então, que Jango seria atraído para a Frente Ampla. Em meio às conversações de Lisboa, Juscelino telefonou-me para pedir que

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não atrapalhasse a tentativa de cooptação de Jango. Respondi-lhe que, pelaprimeira vez, iria discordar publicamente de Goulart caso se reconciliassecom Lacerda – discordara de Jango em outras ocasiões, mas sempre entrequatro paredes. JK apelou-me em tom dramático para que não influísse sobreo comportamento de Jango. Reiterei que faria o que estivesse ao meu alcancepara impedir a formalização da aliança. Juscelino irritou-se: – Você não tem o direito de fazer isso – censurou-me. – Se tenho direito ou não, presidente, eu é que decido – retruquei, jásuspeitando de que nossa amizade nunca mais seria a mesma. De Paris, escrevi a Jango uma carta, mais tarde divulgada intensamente pelaimprensa, aconselhando-o a não sucumbir ao canto de sereia lacerdista. Acarta historiava nossas divergências com Lacerda, seu comportamento torpeem relação a Getúlio, sua deslealdade para com Juscelino, as agressões queinfligira ao próprio Jango. Para Lacerda, afirmei, aliar-se a Goulart era umafórmula para retocar a imagem antipopular construída ao longo de suacarreira. Alcançados seus objetivos, ele não hesitaria em abandonar os aliadosde ocasião. Soube mais tarde que, depois de ler minha carta, Jango fez umcomentário sardônico a meu respeito: – O Profeta está negociando seu passaporte – ironizou.A carta deixava claro que eu romperia politicamente com Jango caso ele seencontrasse com Lacerda. Mas meu velho amigo não me ouviu. Alguns diasmais tarde, recebeu Lacerda em sua casa no Uruguai. Entre goles dechimarrão, entenderam-se muito bem, como sugerem as expressões felizesexibidas nas fotos divulgadas pela imprensa. Penso que, no fundo, tantoJango quanto Juscelino alimentavam o desejo, tipicamente pequeno-burguês,de serem alforriados pelo seu mais implacável acusador; reconciliar-se comCarlos Lacerda seria uma forma de tornar sem efeito o que se dissera. Assim,Jango deixava de ser o grande gângster, JK deixava de ser o grande ladrão.Eis aí algo que nunca me afligiu, tanto assim que repeli com veemência assondagens feitas por intermediários de Lacerda, interessado em incluir-meentre os simpatizantes da Frente Ampla. Confesso ter experimentado uma clara sensação de alívio ao romper comJango. Até então, eu me sentia obrigado a silenciar sobre nossas divergências,a tolerar e eventualmente apoiar certos erros, a violentar algumas de minhasconvicções. A partir do momento em que ele se reconciliou com CarlosLacerda, senti-me livre para cultivar apenas e tão somente a fidelidade àmemória e ao pensamento de Getúlio Vargas.

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Senti-me livre, também, para dedicar-me a outros projetos, um dos quaisme levou a compor uma desastrada parceria com um diretor de cinema gregochamado Nico Papatakis. Eu o conheci na noite de Paris, que o tinha entreseus mais singulares personagens. À época casado com a atriz Anouk Aimée,Nico era um maluco muito simpático, amigo de intelectuais como Jean-PaulSartre, grande jogador, conhecido gigolô de mulheres e homossexuaisendinheirados, amante de duquesas e baronesas. Ele fizera um filme baseadonum texto de Jean Genet que repercutira muito bem junto à crítica. Agora,com um script pronto na gaveta, estava à procura de alguém disposto afinanciar sua obra-prima, cujo título seria Os Pastores da Desordem. Numa noite, Nico deu-me o roteiro para ler. A história se passava na Gréciae era repleta de alegorias, algumas delas complicadíssimas. Mas gostei doque li. Nico explicou-me que precisava de noventa mil dólares para realizar ofilme, e que sessenta mil já lhe haviam sido prometidos por uma instituiçãoestatal francesa semelhante à nossa Embrafilme. Faltavam apenas trinta.Aventureiro incurável, logo me entusiasmei com a perspectiva de aprender afazer cinema e decidi entrar na sociedade. Apesar das sucessivas advertênciasque ouvi de vários amigos, abrindo-me os olhos para a cabeça aloprada dePapatakis, arranjei-lhe a verba que faltava. Nico, antes de mais nada, renovou seu guarda-roupa. Viajou em seguidapara a Grécia, escolheu o cenário para as locações e, aproveitando aoportunidade, alugou uma casa espetacular perto do local das filmagens. Erao começo de uma série interminável de loucuras. Meu sócio grego contratoudezenas de figurantes, alugou dezenas de mulas para o transporte deequipamento e mantimentos. Em pouco tempo tínhamos três horas de filme,embora o roteiro estivesse longe de chegar ao fim. O dinheiro acabou.Consegui mais uns setenta mil dólares no Rio de Janeiro, sangrando os cofresjá abalados da Última Hora. Recorrendo a seu prestígio junto a homossexuaisdo ramo, Nico obteve uma segunda subvenção na “Embrafilme” francesa. As filmagens pareciam intermináveis. Certa feita, Nico consumiu quatorzehoras ensaiando uma gargalhada da heroína. Com a paciência esgotada,chamei-o para conversar e lhe disse que ele não era um profissional. O gregoolhou-me com ódio e quis atacar-me com uma faca. Outras pessoasinterferiram e sobrevivi para ouvir, algum tempo depois, que faltavam só dezdias para o encerramento das filmagens. Fiquei feliz, mas Nico me apareceucom outro achado algumas horas mais tarde. Ele lembrou que toda a históriase passava num dia de verão. O problema é que o verão terminara muito antes

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do fim das filmagens e o sol agora brilhava fracamente. Muito preciosista,meu diretor informou que se recusava a filmar com luz artificial e decidiraesperar pelo próximo verão. – Eu vou para Paris – informei, vencido. – Você fica e acaba o filme. Nico permaneceu na Grécia à espera do sol forte, até que um dia o filmeficou pronto, só que com quase três horas de projeção. Ele se recusouterminantemente a reduzi-lo. Recorrendo a amigos providenciais,conseguimos incluir Os Pastores da Desordem no Festival de Veneza. Afotografia era belíssima, o roteiro tinha alguma inventividade, mas a maioriada plateia dormia no meio da exibição. Também organizamos uma avant-première em Paris. Subornamos alguns críticos e o filme recebeu váriascríticas favoráveis. Uma semana depois, foi lançado numa cadeia de oitosalas, mas só ficou três dias em cartaz. Os espectadores se retiravam ao fimde uma hora, indignados e berrando que não estavam dispostos a assistir a“filmes histéricos”. Com o pretexto de lançar o filme em meu país, decidi viajar para o Brasil,interrompendo meu exílio. Os Pastores da Desordem ficou oito semanas emcartaz no Cine Paissandu e até conseguiu algum sucesso entre plateias jovens.Lançado em São Paulo às vésperas do AI-5, não durou mais que uma semana.Aí terminou minha curta e turbulenta carreira de homem de cinema. Dessaexperiência, além das cópias do filme e das lembranças que hoje medivertem, ficaram muitas dívidas em Paris, que jamais seriam saldadas. Não foi fácil conseguir regularizar meu passaporte para viajar com umacópia do filme ao Rio de Janeiro. Mas circulei com desembaraço, semqualquer problema, e desconfiei de que estava chegando o momento deregressar definitivamente ao Brasil.

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CAPÍTULO 36 Meu exílio se encerrou em 1968, quando entendi ter chegado a hora devoltar ao Brasil e reassumir efetivamente o comando do jornal. Em 1967, euvoltara a meu país pela primeira vez, mas por pouco tempo; ficara no Rio deJaneiro apenas três semanas, tempo suficiente para providenciar os dólaresexigidos pela desastrada associação com Nico Papatakis. Naquela ocasião,não pudera ocupar-me dos problemas da Última Hora, que me eramregularmente relatados em cartas de amigos e colaboradores como Etcheverrye Moacir Werneck de Castro. Tais cartas, em tom frequentemente patético,sustentavam que, se eu não voltasse a tempo, a Última Hora caminharia parao abismo. Faltava dinheiro, faltava papel, o quadro de funcionários foradrasticamente reduzido, a situação política era francamente adversa. Tudo,enfim, conspirava contra nós. Eu estava convencido de que pelo menos a Última Hora carioca nãopoderia ter um final assim melancólico. Àquela altura, os jornais que eufundara em outros estados haviam sido transferidos para outros proprietários,ou simplesmente fechados – mas, nesses casos, não me senti tão intimamenteenvolvido. A Última Hora do Rio era diferente: ali começara minha grandeaventura, ali estava boa parte da minha vida; não se tratava, portanto, de umjornal qualquer. Decidi prolongar sua sobrevida até que pudesse vendê-lo emcondições que não fossem demasiado inglórias. A liderança ostentada pela Última Hora nos bons tempos já se tornara coisado passado. As vendas caíam continuamente, enquanto as publicaçõesconcorrentes prosperavam. O Globo, por exemplo, consolidara e ampliara seupoderio, o Jornal do Brasil aumentara enormemente sua penetração, O Dia jávendia cerca de 150 mil exemplares. Ainda assim, a opinião da Última Horaseguia tendo peso considerável, um trunfo, aliás, que a equipe da redação,então dirigida por Danton Jobim, talvez não tenha sabido avaliar. Algumasmanchetes e certos títulos me pareciam quase irresponsáveis. Em plenoregime militar, a Última Hora soltava manchetes que soavam provocativasaos donos do poder. Era comum aparecer numa edição qualquer, no alto daprimeira página, algo como “ELEIÇÕES, SÓ DE MISS”. Os militares,

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naturalmente, não sentiam prazer algum nesse tipo de leitura. De volta ao Brasil, exercitei exaustivamente minha criatividade. Inventei,por exemplo, a teoria do “jornal padrão brasileiro”, segundo a qual umapublicação genuinamente nacional, sem vínculos com financiadoresestrangeiros, não poderia ter mais de quatorze páginas – era o limite dahonestidade num país pobre como o nosso. Tratava-se claro, de um artifíciodestinado a poupar-me de admitir que a Última Hora não tinha condições desair com mais de quatorze páginas, mas a teoria fez sucesso e foi encampadapor alguns milhares de leitores. Defendi-a em dois ou três editoriais, nosquais sugeria que os concorrentes só eram mais volumosos porque contavamcom o apoio do capital estrangeiro. A criatividade da redação era diretamente proporcional aos problemas quesurgiam. Em 1970, quando a Seleção Brasileira de Futebol se preparava parao Mundial do México, criamos o Jornal da Copa, um suplemento emtamanho tabloide inteiramente dedicado ao campeonato. Ocorre que nãotínhamos verba para enviar uma equipe de jornalistas ao México – o únicocom passagens asseguradas era Maneco Muller, o “Jacinto de Thormes”, quemuitos anos antes estabelecera um acordo comigo: acontecesse o queacontecesse, ele assistiria a todos os mundiais de futebol por conta da ÚltimaHora. Como o Jornal da Copa não poderia ser feito apenas com o materialremetido por Maneco Muller, resolvi utilizar os serviços das agências denotícias, apresentando-os, porém, com muito mais charme. Assim, anuncieique a Última Hora teria no México uma equipe de 120 pessoas. Essa era asoma das equipes destacadas pelas agências, mas divulguei o número decorrespondentes sem esclarecer quem eram eles. Quando as matériaschegavam, dávamos um jeito de camuflar sua autoria. Os leitores nãoperceberam o estratagema, e o Jornal da Copa foi um sucesso, até porque seuconteúdo era de ótima qualidade. O objetivo, como já disse, era ganhar tempo até encontrar algum compradorpara o jornal, mas não foi fácil sobreviver, inclusive porque eu não estavanuma maré de sorte. Transações que tinham tudo para dar certo acabarammalogrando em momentos nos quais, mais do que nunca, eu precisava dedinheiro. Foi o caso do prédio que tínhamos na avenida Presidente Vargas, eque aluguei por cinco anos à IBM. Recebi, adiantados, cerca de 450 mildólares, que imediatamente usei para quitar dívidas e comprar papel. Trêsmeses depois de fechado o negócio, o prédio foi desapropriado pelaCompanhia do Metrô. Tive de devolver o dinheiro, sabe Deus de que forma.

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Na manhã de 13 de dezembro de 1968, cheguei à redação com opressentimento de que algo muito grave estava prestes a acontecer. – Vem fogo aí – comentei com Danton Jobim. Danton, um liberal com suficiente flexibilidade ideológica para aderir aqualquer regime político, como mostrou ao longo de sua vida, reagiu comincredulidade. – E vem censura – emendei. – Censura no Brasil, nunca mais – respondeu Danton. Horas depois, ogoverno decretou o AI-5 e uma trinca de oficiais do Exército – dois coronéise um major – assumiu o controle da redação da Última Hora. Devo admitirque nossos censores não foram tão rigorosos em sua atividade, até porque setornaram amigos de alguns redatores, com os quais passaram a frequentarboates e cabarés. Mas nenhum deles procurou aproximar-se de mim – eradesaconselhável, sobretudo naqueles tempos, ter como amigo o jornalistaSamuel Wainer. Já na noite de 13 de dezembro divulgou-se uma lista de pessoas quedeveriam ser presas e que incluía meu nome. Refugiei-me num apartamentoda rua Barão da Torre que pertencia a Danuza, e telefonei para um delegadoligado à polícia política, que me devia alguns favores, entre os quaisempregar seu irmão na Última Hora. Disse ao delegado que, já quedesejavam interrogar-me, gostaria de colocar-me à sua disposição. Eleponderou que, como as viaturas de sua delegacia estavam ocupadas –provavelmente prendendo alguns dos meus companheiros de lista –, eu lhefaria um grande favor se fosse por conta própria a seu encontro. Prometiatendê-lo. Fiquei trocando ideias com João Etcheverry, que aparecera no apartamentologo depois de saber da presença do meu nome na relação de procurados.Ainda não estava convencido de que a melhor solução seria entregar-me aoDOPS. Resolvi recorrer a Ibrahim Sued, um grande amigo, que sempreobservou em relação a mim o código de honra dos mafiosos – estivemosocasionalmente em posições opostas, às vezes antagônicas, mas Ibrahimjamais traiu minha confiança. Pedi-lhe que conseguisse informações maisexatas sobre minha situação. Minutos depois, Ibrahim telefonou parainformar que, pelo menos na área da polícia estadual, nada havia contra mim.Pouco depois, outro telefonema: descobrira que os problemas estavamlocalizados na esfera federal. Perto das dez da noite, desci com Etcheverry e Danuza e tomei um táxi.

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Estávamos no Aterro do Flamengo, a caminho da rua da Assembleia, ondefuncionava o DOPS, quando fui novamente assaltado pela suspeita de quenão deveria apresentar-me. – Acho um absurdo entregar esse restinho de liberdade – disse. Etcheverry,sempre honestíssimo, discordou: – Você prometeu ao delegado – lembrou-me. Observei que promessas feitas a carcereiros não chegam a ser invioláveis, epropus uma solução intermediária: retardar minha apresentação por algumashoras e, nesse espaço de tempo buscar o conselho de algum advogado amigo. Fomos à procura de Nelson Cândido Motta, pai do Nelsinho Motta – ovelho Nelson mantinha ótimas relações com o governo e os quartéis.Informado do que se passava, ele começou a movimentar-se, com algunstelefonemas estratégicos. Terminada a rodada de consultas, concluímos que omais seguro seria negociar minha apresentação ao Exército. Nos meustempos de poder, eu costumava frequentar o comando do I Exército com omesmo desembaraço com que circulava pelos palácios do governo. Ali fizerabons amigos, que poderiam ajudar-me naqueles agitados idos de 1968. Liguei para o quartel-general e informei a um coronel que me atendeu quedesejava entregar-me ao Exército, não à polícia. Fui instruído para telefonarnovamente em cinco minutos e falar com o capitão Montagna, filho de umgeneral, César Montagna, que ficara famoso por ter tomado no grito, em abrilde 1964, o QG da Artilharia de Costa no Forte de Copacabana. Contei-lhe oque me afligia, e o oficial foi taxativo. – Esteja onde estiver, volte para casa. São ordens do I Exército – avisou. Ele esclareceu a seguir que, se por acaso recebesse alguma intimação dequalquer outra autoridade, deveria recusá-la: a partir daquele instante, estavasob a proteção do Exército brasileiro. Montagna passou-me os números dedois telefones, avisando que deveria discá-los caso surgisse algum problema.Agradeci-lhe a consideração e perguntei até quando ele ficaria de plantão. Ooficial explicou que, numa situação de emergência como aquela, seriaimpossível estabelecer horários rígidos, mas recomendou que não mepreocupasse, já que o Exército havia montado esquemas especiais deproteção a certas pessoas incluídas nas listas de procurados. Bastava ligarpara um dos telefones cujos números me passara. Inquieto, indaguei se eletinha telefone em casa, desculpando-me pela insistência. O oficial seaborreceu. – Capitães não têm dinheiro para comprar telefones – replicou Montagna,

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em tom áspero. Percebi que meu interlocutor era um típico oficial lacerdista. No dia seguinte, um sábado, eu descansava em minha casa, à espera daevolução dos acontecimentos, quando recebi à noite um telefonema dogovernador Negrão de Lima, meu amigo de muitos anos. – Samuel, o Exército está comovido com o seu comportamento – informouNegrão de Lima. Contou-me, então, que fizera naquela tarde uma visita ao general SizenoSarmento, comandante do I Exército (além de lacerdista furioso), e ouvirapalavras amáveis a meu respeito. “Veja, governador, que homem de bem éesse Samuel Wainer”, dissera-lhe Sizeno. “Ele se apresentouespontaneamente, em deferência ao I Exército. É uma pessoa que merecenosso respeito.” Percebi que tomara a decisão correta, e tive um tranquilo fimde semana. Na manhã de segunda-feira ligou-me o capitão Montagna. Depois detrocarmos algumas amabilidades, ele me perguntou se poderia comparecer aocomando do I Exército no começo da tarde. Cruzei no portão com ChicoBuarque, que acabara de ser interrogado. Instalado numa sala, aguardei achegada do general que me ouviria, em meio a algumas provocações feitaspor oficiais que entravam e saíam. Um deles, um certo coronel Viana, queusava pincenê, examinou-me com expressão hostil e quis saber: – É o senhor, então, que é o Wainer? É o senhor que faz com que a gentetenha de sair com nossos tanques a cada cinco anos para defender a Nação edepois devolver o poder aos civis? Suportei as provocações em silêncio, até que fui encaminhado a outra sala,em companhia de dois coronéis (um deles era esse Viana). Sentado numamesa muito comprida, esperei pelo general Álvaro Henrique Americano, umaflor da extrema-direita. Quando entrou na sala, vi que se tratava de umhomem muito bonito – no Brasil, aliás, oficiais reacionários costumam ser,além de brancos, muito bonitos. O general sentou-se à minha frente. Estendi-lhe a mão, ele me negou ocumprimento, fiquei com o braço no ar. Perguntou-me que espécie defunções exercia na Última Hora. Dei-lhe as informações necessárias. Eleindagou se eu estava disposto a esclarecer a origem dos meus bens. Achei apergunta bastante oportuna – ali estava uma questão que não me incomodava,até porque meu patrimônio era insignificante –, e sugeri que fossemrequisitados os documentos em poder da CPI que havia vasculhado minha

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vida. Seguiram-se outras perguntas da mesma família, e acabei dispensadonum clima de cordialidade. Os coronéis me forneceram alguns telefones,recomendando novamente que recorresse a eles se sobreviessem problemas.E reafirmaram, mais uma vez, que eu estava sob a proteção do Exércitobrasileiro. Fiquei muito feliz por não ter ido para a prisão, mas, à saída dodepoimento, fiz uma previsão a Etcheverry, que me acompanhara aocomando do I Exército: teríamos dias difíceis pela frente. Era evidente que osmilitares me cobrariam um preço pela proteção oferecida naquelascircunstâncias. Mais do que nunca, estávamos expostos aos humores dosquartéis. O começo da cobrança que eu temia não demorou. Alguns dias depois, ocoronel Viana convocou-me para um encontro em seu gabinete. Abriu aconversa lembrando que eu lhe assegurara que meu jornal não se orientavapor interesses políticos – publicava o que era importante, o que merecia sernoticiado. Feita a introdução, o coronel informou que o I Exército haviapromovido um concurso para escolher uma poesia que respondesse à cançãoPra não Dizer que não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, o grande sucessode um festival de música popular brasileira realizado em 1968. Vandrécompusera uma espécie de manifesto antimilitarista, deixando os quartéisexcitadíssimos. O coronel Viana esclareceu que o concurso mobilizara cercade oito mil aspirantes, e que lhe parecia muito importante divulgar naprimeira página da Última Hora o texto premiado com o primeiro lugar. Oautor era um certo aspirante Bastos, que produzira um soneto. Tratava-se deum texto primário, uma coisa ridícula. Lembro-me de um trecho: “Tu,Vandré, que andas pela noite no chopinho do Castelinho, que sabes da nossaPátria?” O coronel leu o poema com lágrimas nos olhos, muito emocionado.Passou-me uma cópia, perguntando se eu estava disposto a publicá-la. Elogieio poema, dizendo que um texto de tal qualidade merecia a primeira página.Ele pareceu duvidar do que ouvia. Reafirmei que não estava prestando favoralgum às Forças Armadas: eu achava essencial mostrar que o Exércitosoubera reagir e neutralizar a musiquinha de Geraldo Vandré. Voltei à redação e comuniquei a meus auxiliares diretos o que se passara,relatando-lhes o acordo celebrado com o coronel: o soneto teria de sair naprimeira página. A reação foi previsivelmente negativa, todos eles seopuseram à publicação da obra do aspirante Bastos. Deixei claro que oacordo só não seria cumprido se eu fosse demitido, o que estava fora decogitação. Se quisessem, eles que se demitissem, mas o soneto seria

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publicado de qualquer forma. A crise acabou sendo contornada e, semgrandes traumas, os versos do aspirante apareceram na primeira página daÚltima Hora. Eu sabia, porém, que o I Exército continuaria a fazer cobranças,o soneto em resposta a Vandré fora apenas o começo. Chegara a hora devender meu jornal, antes que as concessões exigidas pela necessidade desobreviver alcançassem um preço muito caro. Os pedidos dos militarescertamente prosseguiriam. Se me recusasse a atendê-los, a Última Hora seriafechada. Se os atendesse, o jornal sofreria um terrível processo dedesfiguração. Assim, a única alternativa era passar adiante a empresa. Parameu alívio, nesse exato momento surgiram pessoas dispostas a comprar aÚltima Hora. O grupo de empreiteiros que arrendara o Correio da Manhã, liderado porMaurício Alencar, estava agora interessado em comprar a Última Hora,manobra que lhe permitiria consumar um plano diabólico. A ideia dessesempreiteiros era esvaziar progressivamente o Correio da Manhã, cujatiragem caía dia a dia, transferindo para outro jornal, no caso a Última Hora,todos os contratos que parecessem lucrativos. Graças ao contrato celebradocom Niomar Moniz Sodré Bittencourt, esses empreiteiros poderiam utilizarcomo bem entendessem a gráfica do Correio. Poderiam, por exemplo, utilizá-la para imprimir outro jornal. Por que não juntar, e colocar a serviço dos seusinteresses, o equipamento do Correio e a marca da Última Hora? A proposta de compra da Última Hora, formulada pelo advogado do grupo,Frederico Gomes, representou a abertura de uma temporada de penosasnegociações. Eu não podia mostrar que tinha pressa em fechar negócio, o queme colocaria em evidente desvantagem na transação, mas também não tinhadinheiro para jogar com tranquilidade. Enquanto as conversas se arrastavam,vi-me compelido a vender quadros, móveis, e a inventar promoções queprolongassem a agonia do meu jornal. O que me restava era a marca ÚltimaHora, e era precisamente essa marca o alvo do grupo de empreiteiros quenegociava comigo. Eu precisava ganhar tempo, mas o tempo conspiravacontra mim. A certa altura, pressionado pelas circunstâncias, decidi estabelecer umpreço e, baseado em cálculos inteiramente aleatórios, fixei em um milhão emeio de dólares o valor da Última Hora. Não era muito. Com essa quantia eupagaria as dívidas trabalhistas da empresa e ainda ficaria com algum dinheiro– os credores que se virassem, pensei. Os empreiteiros prometeram examinara proposta e, hábeis negociadores, permaneceram algum tempo em silêncio.

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Tal silêncio me atormentava, já que os problemas financeiros da minhaempresa cresciam. Num determinado momento, percebi que estava prestes aperder o respeito dos meus funcionários, todos compreensivelmente aflitoscom a iminência do naufrágio. Não havia como controlar essas manifestações de desrespeito. Na porta doelevador, por exemplo, um funcionário qualquer se aproximava de mim einformava: “Minha mulher me disse que, se eu não conseguir dinheiro paracomprar leite, é melhor não voltar para casa.” Em seguida, eu sofria acompanhia de um ascensorista que me contemplava com maus olhos. Asituação era insustentável, até porque, embora não fosse rico, eu consolidaraa imagem do milionário, do homem que enriquecera no convívio com opoder. Achava razoável que pensassem assim. Afinal, eu morava numapartamento muito confortável na Zona Sul, frequentava lugares elegantes,namorava mulheres famosas. Tinha, enfim, o perfil do bon vivant. Mas nãotinha dinheiro. Em dezembro de 1971, vendi alguns painéis de Di Cavalcanti a AntônioGallotti e consegui os recursos necessários para aguentar por mais algumassemanas o cerco dos empreiteiros, cuja estratégia era vencer-me pelocansaço. No começo de 1972, finalmente, Maurício Alencar concordou empagar o milhão e meio de dólares pela Última Hora, em 36 prestações.Acertei com o advogado do grupo que a primeira prestação seria paga no dia21 de abril daquele ano. Feito o acerto, senti uma indescritível sensação dealívio. Com aquele dinheiro, eu poderia resolver os problemas financeirosvividos pelos meus funcionários e tentar escrever com dignidade o epílogo dahistória da Última Hora. A transação com o grupo de empreiteiros, porém,reservava-me um último sobressalto, uma prova a mais de que eu estavalidando com gângsters. No dia 20 de abril, menos de 24 horas antes daconsumação do negócio, cuja senha seria o pagamento da primeira prestação,recebi em meu apartamento a visita de Maurício Alencar – era o chefe dobando que me aparecia em pessoa. – Aquele acordo já não vale mais – disse Maurício. Contive minha perplexidade e perguntei-lhe o que acontecera. Elerespondeu que, refeitas as contas, os integrantes do grupo que lideravahaviam concluído que as prestações eram demasiado elevadas. Por isso, onegócio só poderia ser fechado se o preço fosse reduzido em um terço daquantia estabelecida nas conversas anteriores. Maurício foi claro: era aquiloou nada.

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Nunca fui um bom negociador. Além de faltar-me a frieza dos jogadores depôquer, um grande trunfo em transações comerciais, eu não sabia discutirpreços, não sabia dizer não. Naquele momento, porém, tive uma reaçãoinesperada até mesmo para mim, e disse a Maurício que ou ele pagava o queficara acertado ou não haveria negócio. – Nesse caso, o negócio está desfeito – retrucou Maurício, que se levantouimediatamente e saiu. Fiquei gelado, suspeitando de que cometera a maior burrice da minha vida.Fechado naquele apartamento, olhando para o mar, afundei-me em reflexõessombrias. Como seria no dia seguinte? Como tocar o jornal se não haviadinheiro sequer para comprar papel? Certamente ocorreria uma rebelião dosfuncionários, a redação se dispersaria. Era o naufrágio que eu temera. Mas não foi assim. Perto da meia-noite, o telefone tocou e, ao atender, ouvia voz de Maurício Alencar, inteiramente de porre. – Seu filho da puta! – saudou-me. – Você deve estar aí me gozando, porquesabe que vou mesmo comprar o jornal. Fiquei perplexo, e Maurício prosseguiu pedindo-me que o procurasse àsonze horas da manhã seguinte, com toda a papelada necessária para o acertofinal. – Você ganhou a parada – rendeu-se Maurício, enfim disposto a pagar o queeu queria. Às 12 horas do dia 21 de abril de 1972, quando saí do escritório de MaurícioAlencar, a Última Hora já não era minha. A próxima edição seria rodada nasoficinas do Correio da Manhã, com outra linha editorial, outra equipe, outraalma. Fui para o prédio da Última Hora e convoquei meu pessoal paracomunicar-lhe o desfecho de um capítulo importantíssimo da história dojornalismo brasileiro. Depois, sozinho no prédio, vazio, dei-me conta de quea minha grande aventura terminara.

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EPÍLOGO Samuel Wainer afirma, em suas memórias, que o episódio da venda daÚltima Hora assinalou o fim de sua grande aventura. Talvez tenha terminadoali sua maior aventura; talvez. Mas o jornalista Samuel Wainer seguiriaescrevendo outros capítulos de sua melhor e mais fascinante reportagem: avida do homem Samuel Wainer. Em 1971, esse incansável criador de publicações fundou a revista DomingoIlustrado, editada pela Bloch. Entre maio de 1973 e janeiro de 1975, numacomovente demonstração de humildade, foi redator-chefe da Última Horapaulista, então sob o controle do grupo Folhas. O pai do grande jornalpopular brasileiro aceitou voltar como assalariado à redação que fizera nascere entrar para a História. De novembro de 1975 a outubro de 1977, Samuelconcentrou seus múltiplos talentos na tentativa de consolidar o semanárioAqui São Paulo. E, entre 1978 e 1980, foi editor assistente da Carta Editoriale da Editora Três, espalhando seus textos, conselhos e ensinamentos pordiferentes publicações. Nenhuma dessas atividades, todavia, pareceu orgulhá-lo tanto quanto umpequeno espaço na página dois da Folha de São Paulo que tornou duasiniciais – SW – populares em todo o Brasil e especialmente caras a milharesde leitores. Essa coluna diária, à qual Samuel se dedicava com a paixãoobstinada de um artilheiro em busca do gol, apareceu pela primeira vez emjunho de 1977. E, pelos anos seguintes, revelaria um domador de palavras noauge da maturidade, sábio e tranquilo, preocupado com o destino de seu paíse de seu povo. Samuel Wainer morreu em São Paulo, em 2 de setembro de 1980. Augusto Nunes