sampaio, plínio arruda (org.) - desafios na luta pelo socialismo

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DESAFIOS DA LUTA PELO SOCIALISMO Plinio Arruda Sampaio (org.)

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D E S A F I O S D A L U T AP E L O S O C I A L I S M O

Plinio Arruda Sampaio (org.)

EDITORAEXPRESSÃO POPULAR

D E S A F I O S D A L U T AP E L O S O C I A L I S M O

Plinio Arruda Sampaio (org.)

Copyright © 2002, by Editora Expressão Popular

Projeto gráfico, capa e diagramaçãoZAP Design

Tradução e revisão:Geraldo Martins de Azevedo FilhoMaria de Almeida

Ilustração da capaJosé Clemente Orozco A trincheira (1923-1924), afresco, Cidade do México - México.Evocada de maneira visual bastante explícita neste mural, em que o soldado do meio estádeitado de braços abertos como se pregado em uma cruz, a metáfora, cristã, representa asclasses sociais e retrata o sofrimento.

Impressão e acabamentoCromosete

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: agosto de 2002

EDITORA EXPRESSÃO POPULARRua Bernardo da Veiga, 14CEP 01252-020 - São Paulo-SPFone/Fax: (11) 3105-9500Correio eletrônico: [email protected]

Desafios da luta pelo socialismo / Plinio Arruda Sampaio,organizador. -- São Paulo : Expressão Popular, 2002.104 p.Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br

ISBN 85-87394-33-9

1. Socialismo. 2. Sociologia. 3. Ciências políticas. I. Sampaio, PlinioArruda, org.

CDD 21.ed. 306.345CIP-NBR 12899

P314S

Vilma Apª Feliciano CRB 9/1152

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)Biblioteca Central da UEM. Maringá - PR.

Sumário

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 7

I - O SIGNIFICADO DO SOCIALISMO CHINÊS.............................. 11

Zhou Shixiu

II - O SOCIALISMO E AS NOVAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

E SOCIAIS NECESSÁRIAS .................................................................... 21

Fernando Martínez Heredia

III - AS RELAÇÕES DE PROPRIEDADE E AS RELAÇÕES

SOCIAIS DE PRODUÇÃO NA LUTA PELO SOCIALISMO.............. 45

François Chesnais

IV - A REFUNDAÇÃO ........................................................................... 59

Fausto Bertinotti

V - SOCIALISMO ................................................................................... 75

Michael Löwy

VI - A LUTA PELO SOCIALISMO NA ATUALIDADE ....................... 83

James Petras

Socialismo: o que permanece, o que mudaTodo socialista está em busca de uma adequação do socialis-

mo às condições de um mundo que se transformou completa-mente a uma velocidade vertiginosa. Portanto, nada mais naturalque houvesse um seminário especial sobre os rumos do socialis-mo, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Afinal, as cin-qüenta mil pessoas, vindas de todas as partes do mundo, que sereuniram na capital gaucha, em janeiro de 2002, se propunhama pensar “um outro mundo possível”.

Esta publicação reproduz as seis exposições apresentadas noseminário. Elas permitirão ao leitor entrar no âmago das questõespostas para todos aqueles que não se deixaram abater pelas derro-tas sofridas pelo movimento socialista no final do século XX, nemse deslumbraram com as aparências do mundo pós-moderno.

Nada, neste mundo novo, invalida a utopia socialista e istoficou muito claro no seminário. A idéia generosa de uma socie-dade igualitária, fraterna, solidária, formada por homens e mu-lheres livres do jugo do capital e do preconceito, continua sendo

APRESENTAÇÃO

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a melhor garantia da humanidade contra o risco, sempre presentee agora mais do que nunca agravado, da barbárie.

Nada, também, nas novas feições assumidas pelo capital – aglobalização, a produção “toyotista”, a importância da informa-ção no processo produtivo – anula a necessidade de substituir apropriedade privada dos meios de produção pela propriedadecoletiva; e de substituir a livre iniciativa dos donos do capitalpela produção planificada. Evidentemente, isto não exclui a crí-tica à maneira pela qual as experiências socialistas do século XXrealizaram essas reformas. Mas uma coisa é criticar para corrigir;outra, muito diferente, é para renegar.

Do mesmo modo, as mudanças na composição da categoriade seres humanos que transferem mais-valia para o capital des-truíram as teorias a respeito dos sujeitos sociais da revolução so-cialista. Os antigos operários de macacão transformaram-se em“trabalhadores rotineiros”, “prestadores de serviços pessoais”, “ana-listas simbólicos” – o que seja, mas esses novos trabalhadores,responsáveis por uma produção mais do que nunca socializada,transferem, como os velhos operários dos séculos de dominaçãocapitalista, parte dos valores que criam para uma classe de para-sitas sociais. Esses novos trabalhadores são o sujeito de uma revo-lução socialista, a qual, hoje, mais do que nunca, ou será mundialou não será. À luta deles soma-se atualmente a da multidão dos“descartáveis” do capitalismo em razão de falta de sua serventiapara o mundo da produção automatizada.

A leitura das seis exposições constantes desta publicação evi-denciará que há uma razoável concordância entre todos a respeitodos aspectos básicos do socialismo. Na verdade, quem os renegajá deixou de ser socialista.

Mas, se todos esses aspectos continuam, em sua essência,inalterados na doutrina socialista, o que precisa mudar?

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O esforço de retomada do movimento socialista mundial,depois da grande derrota do final do século XX, deve concen-trar-se na estratégia, nas táticas, nos estilos e nas estruturas dospartidos socialistas. Aí sim, mudanças radicais são necessárias.Excusado dizer que não surgirão da pena de algum iluminado,mas da reflexão teórica acerca da prática revolucionária de mi-lhares de militantes socialistas espalhados em todos os movimen-tos sociais neste conturbado mundo do capitalismo global.

Os seis textos, da lavra de intelectuais comprometidos comesta prática, sugerem algumas das correções sobre as quais deve-mos nos debruçar. Sem preocupação de sistematizar essas contri-buições, mas apenas de provocar a reflexão sobre elas, vão aquicitadas, ao acaso, algumas que podem causar mais impacto nasformas de organizar a atual luta de resistência anticapitalista:

– Para fazer avançar o socialismo, não basta montar umaestrutura partidária e desenvolver uma estratégia exitosa deconquista do poder. É indispensável começar a pensar e aexperimentar, desde já, formas de transformar o poder doEstado.

– O empenho transformador da sociedade atual precisa foca-lizar, ao mesmo tempo e com igual peso, as instituições e a socie-dade. A transformação socialista não se circunscreve à economiae ao Estado, mas a toda a organização da vida social. A sociedadesocialista, que pretendemos implantar, é um projeto de civiliza-ção mais generoso e humano do que a civilização belicosa e indi-vidualista criada pelo capital.

– O novo intelectual coletivo do processo revolucionário so-cialista não é mais o partido e sim o movimento. Os movimen-tos é que mobilizarão os novos sujeitos sociais para a tarefacivilizatória de destruir a dominação burguesa. Esta constataçãonão exclui, entretanto, a necessidade de uma idéia-força unitária

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e, conseqüentemente, de um sujeito político capaz de produzi-la.Só que este não será uma “vanguarda” a dar “direção” ao conjun-to, mas um instrumento de coordenação e sinergia a serviço dosmovimentos.

– Para que as metas da planificação socialista não sejam im-postas aos produtores por uma tecnoburocracia estatal, é indis-pensável encontrar formas adequadas de efetiva participaçãopopular neste processo.

Se pudermos levar alguma contribuição sobre esses pontosao 3º Fórum Social Mundial, a realizar-se em janeiro de 2003,sem dúvida, o movimento socialista dará um grande salto quali-tativo. Outra não é a ambição da Editora Expressão Popular aoeditar este livro.

Plinio Arruda SampaioAgosto de 2002.

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Em 1º de outubro de 1949, Mao Zedong* proclamou a Re-pública Popular da China em Beijing. Começou, nessa impor-tante data, a nova história da China. Essa história é densa e teveuma primordial importância para a China, e também para omundo inteiro, porque a sociedade chinesa entrou no períodosocialista e o socialismo modificou essencialmente esse país.Existia, nos anos 40, um país pobre, extremamente atrasado,predominantemente rural, que havia sido destruído pela guer-ra civil e pela invasão estrangeira. Um país no qual, naquelaépoca, pouca gente acreditava.

Em pouco mais de 50 anos, de 1949 para cá, o socialismoalterou totalmente esse quadro. Fez da China uma potência in-dustrial, melhorou profundamente os padrões sociais da China,transformou o país numa das grandes potências do mundo. Umapotência que se desenvolve a uma taxa de expansão que é, nos

I - O SIGNIFICADO DOSOCIALISMO CHINÊS

Zhou Shixiu

* A pronúncia que se consolidou no mundo ocidental, Mao Tsé-Tung, não é a maiscorreta, e sim a que aqui se apresenta.

12 Fernando Martínez Heredia

últimos 20 anos, de 8 a 9% ao ano, provavelmente a maior domundo.

Cito as palavras do embaixador brasileiro Afonso de OuroPreto, “a China é um país que nós conhecemos, potência com aqual o nosso Brasil deseja manter estreitas relações de aproxima-ção, apesar da distância geográfica. Queremos estar política eeconomicamente perto da China.”

Alexandre Lilov, diretor do Instituto Búlgaro de Estratégia eex-presidente do Partido Socialista Búlgaro, apresentou caloro-sas congratulações à China no seu 50º aniversário, consideran-do-a um exemplo no mundo. O “Jornal dos Chineses na Europa”publicou um editorial salientando que a China vem se transfor-mando num país forte e próspero, considerando este fato ummilagre criado pela nação chinesa.

O triunfo da China, especialmente os avanços dos últimos20 anos, é uma realidade que é conhecida no mundo todo. Hoje,aqui no Fórum Social Mundial, quando nós debatemos o “Socia-lismo”, quero enfatizar que este sucesso se deve ao Socialismo.Embora saibamos que a maioria dos países socialistas tenhamtido insucesso, o socialismo desenvolvido na China conseguiutrilhar um caminho que levou o país a um êxito extraordinário.Quero abordar, neste Fórum, três temas sobre socialismo tipochinês: A prática do socialismo na China; o que é o socialismotipo chinês; as perspectivas do socialismo chinês.

A prática do socialismo na ChinaDesde a fundação da RPC, em 1949, a China participa da

sociedade socialista. Esta história pode ser dividida em doisperíodos:

1º) de 1949 a 1976 – época de Mão;2º) de 1976 até hoje – período de reforma.

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Ao falar sobre esses dois períodos, faz-se necessário falar so-bre duas personalidades históricas: Mao e Deng.

Mao Zedong é considerado o principal criador da Nova Chi-na. No século passado havia uma canção popular – “VermelhoOriental” – cujos versos diziam: “O oriente está vermelho, o solse levantou. Nasceu Mao Zedong na China. Ele trabalha pelafelicidade da nação e é o salvador do povo chinês”. Até hoje, opovo chinês considera Mao um herói nacional.

No período entre o fim da década de 50 e o fim da década de70, a China percorreu um caminho acidentado e sinuoso na cons-trução socialista.

Criado na década de 1950 e tendo como modelo a entãoUnião Soviética, o sistema socialista da China teve o exemplosoviético como eixo fundamental no seu desenvolvimento eco-nômico.

O socialismo soviético caracterizava-se pela procura do altograu de nacionalização do sistema de propriedades e pela econo-mia planejada e centralizada no desenvolvimento econômico. Nodecorrer do tempo, a economia planejada começou a mostrarseus aspectos negativos na mobilização das iniciativas coletivas eindividuais. Devido a esse fator, alguns dirigentes chineses ten-taram fazer algumas emendas no modelo soviético, cedendo (em1956) o direito de autonomia às empresas e permitindo a exis-tência de algumas empresas particulares como suplemento à eco-nomia socialista. Em resumo, esses dirigentes chineses queriamque o mercado desenvolvesse seu papel de reajuste sem prejuízoà estrutura fundamental do sistema de economia planejada.

Foi lamentável, mas Mao não aceitou as idéias dos colegas e aChina não soube conduzir correta e efetivamente os esforçosdestinados à reforma do sistema econômico, que incluía o au-mento da diversificação e a flexibilidade da economia socialista.

14 Fernando Martínez Heredia

A partir de 1957, e por um período de 20 anos, o governochinês continuou a obstinada intensificação da economia plane-jada, fundamentado na concepção de que o socialismo era repre-sentado por essa economia e, quanto maior fosse a propriedadepública, maior seria a oportunidade de desenvolvimento. Comum entendimento parcial sobre a natureza do socialismo, os pro-blemas relacionados ao sistema econômico centralizado e à pro-priedade única permaneceram sem solução e, durante um longotempo, serviram de obstáculos ao desenvolvimento da produti-vidade.

A falta de conhecimento e o desvio político provocaram ain-da o grande caos nacional, isto é, a “Grande Revolução Cultu-ral”, que durou 10 anos.

Mesmo assim, a China obteve alguns êxitos nos 20 anos se-guintes. Apesar das vicissitudes, a produção industrial anual au-mentou em média 11,2%. Foram lançados, com êxito, as bombasatômicas, os mísseis e os satélites artificiais. Além disso, das gran-des instalações básicas existentes atualmente para o desenvolvi-mento do país, 70% foram construídas nos anos 60 e 70.Comparando com os primeiros anos da proclamação da Repú-blica Popular da China, a vida do povo melhorou visivelmente,o número de pobres diminuiu, as condições de assistência médicaforam aprimoradas, o nível de educação se elevou e cresceu aexpectativa de vida do povo.

Inaugurada a Nova China em 1º de outubro de 1949, Maocolocou em prática a sua idéia de dominação absoluta, conse-guindo resultados positivos. Na área econômica, Mao insistiuno modelo de economia estatal, diminuindo o espaço da inicia-tiva privada, causando uma cisão na realidade chinesa e ocasio-nando a carência no abastecimento de mercadorias para o povo.Em relação aos intelectuais, Mao considerou que eles pertenciam

Desafios da luta pelo socialismo 15

à classe burocrata e deveriam ser reeducados. Em 1957, ele ini-ciou uma campanha contra as tendências de direita, prejudican-do os intelectuais, dentre os quais cerca de 500 mil foram julgadose condenados a uma reeducação, o que significou jornadas emcampos de trabalho forçado.

Segundo Mao, o motor de arranque da sociedade era a lutade classes. Depois de conquistar o poder nacional em 1949, an-tes ocupado por Chiang Kai-Shek (1887 – 1975), Mao descui-dou-se da construção do país e deu prioridade à luta de classes,promovendo diversas campanhas políticas, tais como: a luta con-tra as tendências de direita, a luta contra as tendências direitistasdentro do Partido, as “Quatro Limpezas”, e a “Grande Revolu-ção Cultural”, que levou o país ao caos e resultou em calamidadenacional. O modelo de Mao foi aplicado inclusive na área eco-nômica, em 1957, provocando o “Grande Salto”, em que a Chi-na iria superar a Inglaterra no curto período de 15 anos. Maocriou no campo a “Comuna Popular”, uma instituição de poderque agrupava operários, camponeses, intelectuais e comercian-tes, cuja finalidade era administrar a agricultura, a educação, aindústria e o comércio. Imaginou que, dessa forma, a sociedadechinesa poderia chegar mais rápido à sociedade comunista. Maonegou a economia de mercado e limitou a produção de merca-dorias, considerando-as como próprias de países capitalistas e,conseqüentemente, inadequada à sociedade socialista, o que re-sultou em prejuízo para o desenvolvimento do país.

Em relação aos assuntos internacionais, logo após a fundaçãoda Nova China, Mao aplicou uma política paralela à URSS, par-ticipando da Guerra da Coréia (1950 – 1953). Na década de 70,Mao tinha a idéia de que o mundo se dividia em três partes:países hegemônicos, como os EUA e URSS; países capitalistasdesenvolvidos e países em desenvolvimento, como os da Ásia, da

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África e da América Latina. Acreditando nessa idéia, usou comoestratégia a construção de frentes unitárias nos países em desen-volvimento, aproveitando a divergência da “Guerra Fria”, paralutar contra os países hegemônicos, construindo assim uma novaordem mundial. (v. BANDUNG, Conferência). Diante desseposicionamento de Mao, a China projetou-se internacionalmentee, para o povo chinês, ele foi considerado um herói nacional,visto que sob a sua direção a China passou da condição de umpaís fraco e facilmente invadido pelos imperialistas à de um paísproeminente nos assuntos internacionais e poderoso na defesanacional.

Depois da morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaopingtornou-se o núcleo da nova geração de governo. Sob o dois co-mandos, a Nova China estabelecida por Mao Zedong deu aoschineses dignidade e confiança; Deng Xiaoping iniciou o pro-grama de reforma e abertura, dirigindo o povo chinês para oenriquecimento.

Após a fundação da República Popular da China, em 1949,Deng Xiaoping, como um dos criadores da Nova China, duran-te 30 anos dedicou-se à administração da economia nacional e,posteriormente, assumiu o cargo de vice-primeiro-ministro doConselho do Estado. Graças ao seu trabalho na economia nacio-nal, Deng Xiaoping implantou o conceito prático, que foi dura-mente criticado devido à estagnação ideológica da China, e eleterminou sendo exonerado de seu cargo. Em 1976, após o fimda “Grande Revolução Cultural” que durou 10 anos, DengXiaoping voltou ao palco político e reiniciou a aplicação da novapolítica relativa às reformas no interior do país e a abertura aoexterior.

Deng Xiaoping estudou o processo de desenvolvimento daNova China nos 30 anos de sua fundação e concluiu que a Chi-

Desafios da luta pelo socialismo 17

na não podia seguir o modelo de desenvolvimento da então UniãoSoviética e, sim, deveria procurar adotar um novo modelo. Apartir daí, as reformas que se seguiram tiveram como objetivo omelhoramento do sistema socialista, que levaria o país à constru-ção de um socialismo com características chinesas.

Quanto às reformas internas, Deng enfatizou a construçãoda economia como o trabalho central do governo em todo opaís. Por outro lado, considerou que a mudança no modo admi-nistrativo da economia nacional levaria o funcionamento domercado a desempenhar o papel de ajustamento.

Enquanto aplicava as reformas no interior do país, Deng, aomesmo tempo, promovia ativamente a abertura ao exterior. Nos30 anos anteriores à aplicação da abertura, a política chinesa como exterior possuía características da época da “Guerra Fria”. MasDeng incentivou a abertura do comércio exterior a todos os pa-íses, tomando importantes decisões, tais como: estabelecimentoda zona econômica especial; abertura de mais de 10 portos marí-timos com finalidade de criar uma faixa litorânea de aberturaeconômica ao exterior. Num curto espaço de tempo, as zonaseconômicas especiais e as zonas de abertura econômica obtive-ram rápido desenvolvimento e impulsionaram a abertura de todoo país ao exterior. As reformas levaram a China a um socialismocom características chinesas e desencadearam um desenvolvimen-to contínuo, estável e rápido. Mais de 200 milhões de chineseslivraram-se da pobreza.

O significado do socialismo chinêsSegundo o resultado da prática do socialismo na China, es-

pecialmente na época de Deng Xiaoping, podemos conhecer osocialismo típico da China. Então, o que é o socialismo de tipochinês?

18 Fernando Martínez Heredia

1º) O socialismo é o caminho correto e razoável para o povochinês. Ao seguir esse caminho, o povo chinês conseguiu a inde-pendência nacional e a liberdade e estruturou um sistema eco-nômico nacional relativamente completo.

2º) O ponto chave do socialismo para um país socialista édesenvolver a produtividade. O governo deve trabalhar com aconcretização da construção da economia. O socialismo não écontraditório à economia de mercado e nem a economia de mer-cado é patente do capitalismo. O país socialista também temmercado.

3º) O caminho do socialismo é uma “Grande Marcha”. De-pois de 50 anos da fundação da Nova China, o país ainda está naetapa inicial do socialismo.

4º) O fundamento do socialismo é sempre tratar o povo comoo objetivo da construção socialista e investir todo esforço namelhoria da vida do povo, permitindo o enriquecimento de al-gumas pessoas no início para atingir o enriquecimento de todo opovo no final.

Concluindo, o socialismo de tipo chinês consiste na libera-ção e no desenvolvimento das forças produtivas, eliminação daexploração, equilíbrio da distribuição de rendas e, finalmente,em concretizar o enriquecimento comum do povo.

5º) O socialismo deve saber administrar juridicamente o país,lutar contra a corrupção e desenvolver a política democráticasocialista. O socialismo não despreza a herança da excelente tra-dição cultural de seu país, ainda que absorva todos os traços cul-turais estrangeiros.

Futuro do socialismo chinêsOs próximos 5 a 10 anos condensam um período muito im-

portante para o desenvolvimento econômico-social da China e

Desafios da luta pelo socialismo 19

também a fase mais espinhosa da reforma chinesa. Por isso, a Chi-na definiu um plano de desenvolvimento econômico-social nacio-nal para os próximos 10 anos e desenhou as perspectivas dedesenvolvimento para os próximos 5 anos. O desenvolvimentoserá o tema principal; o ajuste estrutural, o eixo; a reforma, a aber-tura e o progresso científico-tecnológico, a força de propulsão; e aqualificação do nível de vida popular será o ponto de partida. Paraconseguir realizar esses objetivos, será necessário um ajuste com-pleto às estruturas produtivas, regional, urbano-rural e do sistemade propriedade, colocando em prática a estratégia de desenvolvero grande oeste, que tem como meta central a construção de infra-estruturas e a melhoria do meio ambiente. Além disso, o país pla-neja fomentar a ciência e a educação, destinando investimentos naformação dos recursos humanos, nas inovações científico-tecnológicas e estruturais e acelerando o processo da informatização.O esforço conjunto terá como objetivo alcançar o equilíbrio dodesenvolvimento econômico e social, conseguir que as reformasavancem paralelamente e governar o país de acordo com a lei e amoralidade. Este é o primeiro ano na execução do 10º PlanoQüinqüenal, que contou com um início positivo. No contexto dadesaceleração geral da economia mundial, a China tem mantido atendência de rápido crescimento. A taxa de crescimento do PIBchinês, no primeiro semestre deste ano, foi de 7,9%. Recentemen-te, na 18ª Reunião do Grupo de Trabalho Mundial de Comérciosobre a China, foram aprovados todos os documentos legais emrelação à entrada da China naquela organização.

Segundo Sima Qian, o mais famoso historiador chinês antesde Cristo, o objetivo do historiador é estudar a relação entre ohomem e a natureza, conhecer as razões das mudanças e das re-formas de uma sociedade.

20 Fernando Martínez Heredia

Há dois mil anos atrás, Sima Qian, pai da história chinesa,assinalou a China na história. Hoje, participando deste FórumSocial Mundial, posso assegurar que um brilhante futuro socia-lista é possível, é realidade. O povo chinês percorreu um longo eacidentado caminho, mas, com persistência e disciplina, encon-trou o caminho adequado e, hoje, a nação chinesa se projeta nocenário mundial. Acredito que todos os países poderão encon-trar seus próprios caminhos, espelhando-se ou não na experiên-cia chinesa, convictos de que o progresso de uma nação dependesobretudo de seus cidadãos.

Almejo a todos os participantes e aos seus povos que alcan-cem o desenvolvimento sem abrir mão da humanidade e que a“Paz” seja o objetivo de todos.

Desafios da luta pelo socialismo 21

Venho falar de socialismo, mas, para fazê-lo, antes de tudo queroexpressar aqui minha solidariedade, como cubano, com a luta doMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com os Atingidospor Barragens, com todos os demais que resistem e lutam, no Bra-sil e em todas partes do mundo; minha solidariedade com a ViaCampesina, com os organizadores deste seminário, onde nos cabedebater e trocar idéias sobre o socialismo. A formação, o debate e oestudo não são divagações na luta pelo socialismo; são uma formaimportante dessa mesma luta, que nos torna mais fortes e mais efi-cazes e também nos proporciona, como hoje, neste lugar, a emoçãoe o encontro, a arte da dança nos pés dos filhos dos camponeses e acanção internacional dos trabalhadores cantada em todas as línguas,em todos os idiomas que os povos inventaram para expressar o amor,o trabalho e a busca da felicidade e da liberdade.

Pensar o socialismoQuando se fala de socialismo, surge a necessidade de distin-

guir entre as propostas e o dever ser do socialismo, por um lado,

II - O SOCIALISMO E AS NOVASRELAÇÕES DE PRODUÇÃO ESOCIAIS NECESSÁRIAS

Fernando Martínez Heredia

22 Fernando Martínez Heredia

e as formas concretas que existiram e existem em países e regiões,a partir das lutas de libertação anticapitalistas, e nas sociedadesque realizaram transições socialistas. A prefiguração, os ideais, aprofecia, o projeto são a alma e a razão de ser do socialismo eforjam a meta que inspira a combater. Contudo, as experiênciassão a própria matéria da luta e da esperança; por meio delas, osocialismo avança e por elas é avaliado.

Esta distinção é básica, mas não é a única distinção impor-tante na reflexão sobre o socialismo. Quando queremos conhe-cer uma experiência socialista, nos deparamos com um problemainterno do país em questão: como se dão, ali, as relações entre opoder existente e poder desejado; e com outro problema, esteexterno: aquele que se refere às relações entre o país em transiçãosocialista e o restante do mundo. Na realidade, são dois proble-mas, mas não estão separados: as práticas de cada um deles afe-tam o outro e, em grande medida, os definem.

As questões apresentadas até aqui não existem em separado,nem em estado “puro”. Devem ser enfrentadas simultaneamentee estão mescladas ou combinadas, ajudando-se, dificultando-seou confrontando-se, exigindo esforços ou sugerindo esquecimen-tos e adiamentos fatais. Suas realidades – e outras situações eêxitos contrários – condicionam em certa medida cada processo.Cada transição socialista se debate entre as mudanças civilizatóriase as mudanças de libertação conquistadas ou não; as correlaçõesentre graus de liberdade que se tem e necessidades que o obri-gam, as motivações e atitudes dos indivíduos, que são os quefazem o socialismo e qualquer outra coisa, a razão de Estado e ointernacionalismo, e outros dilemas e problemas. Para que o pen-samento cumpra sua função decisiva, neste empenho nunca an-tes visto, de ir contra o conjunto das relações de opressão quetêm existido e criar um mundo novo, é necessário que a reflexão

Desafios da luta pelo socialismo 23

se ocupe dos problemas centrais. Alguns problemas teóricos maisgerais são de valor permanente, como o da necessidade da revo-lução em escala mundial frente ao âmbito nacional de cada ex-periência socialista e frente a um capitalismo que tem sido cadavez mais profundamente globalizado; ou o problema de definiro que é fundamental desenvolver nas sociedades que empreen-dem um caminho de instituição do socialismo.

Porém, não devo continuar sem responder a uma perguntaurgente: o que é que o socialismo tem a ver conosco? Opinoque a única alternativa prática ao capitalismo atual é o socialis-mo, e não a extinção ou o aperfeiçoamento da chamadaglobalização, que é uma vaga referência ao grau em que o capi-talismo transnacional e de dinheiro parasitário exerce sua do-minação no mundo atual; tampouco será alternativa o fim doneoliberalismo, palavra que serve para descrever determinadaspolíticas e a principal forma ideológica adotada pelo grandecapitalismo atual. Estes conceitos não são inocentes; a lingua-gem nunca é inocente. Quando se aceita que a “globalização éinevitável”, está-se ajudando a escamotear a consciência dasatuais formas de exploração e de dominação imperialista, e sualonga história de mundialização da pilhagem aberta e das do-minações sutis, classificando-se como fenômeno natural – comose fosse o clima – uma cruel forma histórica de oprimir as maio-rias. O repúdio ao neoliberalismo indica um avanço importan-te de consciência e é uma instância unificadora nas lutas sociaise políticas; porém, o capitalismo é muito mais abrangente, in-cluindo o neoliberalismo e todas as vantagens “não liberais” deseu sistema econômico e de seus poderes que dominam o Esta-do, a política, os meios de comunicação, a escola, a corrupçãoe a “luta” contra ela etc. Dominar tudo através da imposição deuma linguagem que condiciona os pensamentos possíveis faz

24 Fernando Martínez Heredia

parte da guerra cultural desenvolvida pelo capitalismo em es-cala mundial.

É pela sua própria natureza que o sistema capitalista se tornasinistro para a maioria da população do planeta e para o próprioplaneta, e não por suas supostas aberrações, por uma malformaçãoque pode ser extirpada ou por um equívoco que pode ser corrigi-do. O capitalismo chegou a um ponto de seu desenvolvimentoem que colocou em prática toda a capacidade do sistema, comum alcance mundial, mas sua essência continua sendo o lucro ea avidez pelo lucro; é a dominação, a exploração, a opressão, amarginalização ou a exclusão da maioria das pessoas, é a trans-formação de tudo em mercadoria, a depredação do mundo emque vivemos, a guerra e todas as formas de violência que lheservem para se impor, ou para dividir e contrapor os dominadosentre si. Só a eliminação do poder do capitalismo e um combatecriativo, amplo e muito prolongado contra a persistência de suanatureza poderá nos salvar. A única proposta capaz de impulsio-nar tarefas tão incontestáveis e extraordinárias é o socialismo.

Porém, a afirmação do socialismo é a pressuposição doenfrentamento de um poderoso grupo de perguntas e desafios. Osocialismo é uma opção realizável, é viável? Pode existir e persistirem países ou regiões do mundo sem controle dos centros econô-micos do mundo? É um regime político e de propriedade, e umaforma de distribuição de riquezas, ou está obrigado a desenvolveruma nova cultura, diferente, oposta e mais humana que a culturado capitalismo? Por sua história, o socialismo não está tambémincluído no fracasso das idéias e das práticas “modernas”, que sepropuseram a aperfeiçoar as sociedades e as pessoas? Não se podeesquecer nem dissimular nenhum desses desafios, precisamentepara dar uma base firme à idéia socialista, tirar proveito de suasexperiências e ter mais possibilidades de realizá-la.

Desafios da luta pelo socialismo 25

É certo que, recentemente, as lutas populares têm sofridomuitas derrotas no mundo e que a dominação parece mais pode-rosa do que nunca, embora na realidade, também tenha grandesdebilidades e elementos contra si. O maior potencial adverso dadominação é uma enorme cultura acumulada de experiênciasem conflitos sociais e políticos – e de avanços obtidos pela Hu-manidade – cultura de resistências e rebeldias que fomentamidentidades, idéias e consciência, e manifesta reações e exigênciascolossais e urgentes. Tudo isso favorece a opção de sentir, neces-sitar, pensar e lutar por avanços e criações novas. Essas lutas se-rão socialistas. Desejo que meus comentários sejam uma modestacontribuição ao debate e à formação política, que são indispen-sáveis para o aperfeiçoamento desses propósitos. Escolho apenasumas poucas questões, dado o tempo de que disponho, sabendoque serei bastante parcial em minha exposição.

Temos visto duas maneiras diferentes de entender o socialis-mo no mundo do século 20: o socialismo que temos vivenciadoou o socialismo com que temos sonhado. Elas têm estado muitorelacionadas entre si, costumam reivindicar a mesma origem his-tórica, não têm sido excludentes. Mas, atenho-me aqui às dife-renças entre elas, porque são elas que nos permitem vislumbrar oessencial.

A primeira é um socialismo que pretende mudar totalmenteo sistema econômico mediante a racionalização dos processos deprodução e de trabalho, a eliminação do lucro, o crescimentosustentado das riquezas e a chamada satisfação crescente das ne-cessidades. Propõe-se a eliminar o caráter contraditório do pro-gresso, cumprir o sentido da história, concluir a obra da civilizaçãoe o ideal da modernidade. Seu material cultural prévio tem sidoo pensamento europeu, que contribuiu com a fonte de doutri-nas cívicas por excelência do Ocidente. Este socialismo propõe

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cumprir a promessa de modernidade, introduzindo a Justiça e aharmonia universal. Para consegui-lo, necessita de um grandedesenvolvimento econômico e de grande liberdade para os tra-balhadores, a tal ponto que a economia deixe de ser medida pelotempo de trabalho. A democracia seria realizada por este socialis-mo em um grau muito superior aos projetos anteriores mais ra-dicais. Liberdades individuais completas, garantidas, instituiçõesintermediárias, (entre o produtor e o consumidor), controle ci-dadão (sic), extinção progressiva dos poderes. Em uma palavra,toda a democracia e toda a proposta comunista de uma associa-ção de produtores livres. Seu pressuposto é que, racionalmente,não é possível ao capitalismo a realização daqueles fins tão eleva-dos: só o socialismo pode torná-los realidade.

A outra maneira de entender o socialismo tem sido a de rea-lizar em um país a libertação nacional e social, criando um novopoder, pondo fim ao regime de exploração capitalista e sua pro-priedade, eliminando a opressão, acabando com a miséria e pro-movendo uma grande redistribuição das riquezas e da Justiça.Tem na base de suas práticas outros pontos de partida. Suas ma-ravilhosas conquistas são o respeito à integridade e à dignidadehumana, a obtenção de alimentação, serviços de saúde e educa-ção, emprego e demais condições para uma qualidade de vidadecente para todos, e o estabelecimento de prioridade dos direi-tos das maiorias e das premissas de igualdade efetiva das pessoasde diferentes posições social, de raça ou de gênero. Propõe ga-rantir sua ordem social e um desenvolvimento econômicomediante o poder e a organização revolucionária a serviço dacausa, da honestidade administrativa, da centralização dos re-cursos e sua destinação aos fins econômicos e sociais seleciona-dos ou urgentes; da conquista de relações econômicasinternacionais menos injustas e dos planos de desenvolvimento.

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Este socialismo deve percorrer um penoso e longo caminho paragarantir a satisfação das necessidades básicas, promover enérgicaresistência a seus inimigos e combater suas debilidades; criar ins-tituições democráticas e um Estado de direito e desenvolver umanova cultura, diferente e oposta à do capitalismo.

No âmbito do primeiro socialismo, é privilegiado o significa-do burguês do Estado, da Nação e do nacionalismo, que sãovistos como instituições da dominação e da manipulação. Noâmbito do segundo socialismo, a libertação nacional e a plenasoberania têm um peso crucial, porque a ação e o pensamentosocialistas deverão exterminar o binômio dominante estrangeiro-nativo e combinar com êxito o desejo de justiça social com o deliberdade e de autodeterminação, frente ao domínio exercido pelasmetrópoles coloniais e neocoloniais. As profundas diferençasexistentes neste terreno – entre o socialismo realizado em regiõesdo mundo desenvolvido e o produzido no mundo que foi subju-gado pela expansão mundial do capitalismo – têm conduzido agrandes desacertos teóricos e políticos e a graves desencontrospráticos.

A exploração do trabalho assalariado e a missão do proletariadotêm um lugar prioritário na ideologia do primeiro socialismo;nas práticas do segundo, o ponto central são as reivindicações detodos os oprimidos, explorados ou humilhados. A profundamudança nas vidas das maiorias não pode esperar, qualquer queseja o critério que se tenha sobre os procedimentos utilizados ouos debates que, com toda razão, se produzam acerca dos riscosimplicados, porque a força deste tipo de revolução socialista nãoestá em uma racionalidade que se cumpre, mas sim em potenciaishumanos que afloram.

A liberdade social – e sublinho social – é priorizada neste se-gundo tipo de socialismo como uma conquista obtida pelos pró-

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prios participantes, mais que as liberdades individuais e os recur-sos conseguidos de um Estado de direito; é uma liberdade que segoza ou que faz exigências a seu próprio poder nos planos sociais,e é aquela que gera mais autovalorizações e expectativas cidadãs. Alegitimidade do poder está ligada a sua origem revolucionária, aopacto social que está na base da política e à capacidade que essepoder tem de representar o espírito libertário que se deixou enqua-drar por ele, de manter o rumo e de defender o projeto.

O segundo tipo de socialismo não pode desprezar o esforçocivilizatório como um objetivo inferior ao socialismo. Deve pro-porcionar roupa, sapatos, emprego, atendimento à saúde e instru-ção a todos; mas, a seguir, todos querem ler jornais e até livros; e,quando ficam sabendo que existe a Internet, querem navegar nela.O auge das expectativas de qualquer pessoa no mundo atual podeser imenso. E este socialismo dos pobres revela então o que a pri-meira vista pareceria um paradoxo: o socialismo que está a seualcance e o projeto que pretende realizar está obrigado a ir muitoalém do que o cumprimento dos ideais da razão e da modernidade;deve compreender que seu caminho é negar que a nova sociedadeseja resultado da evolução do capitalismo e negar a ilusão de quebasta a expropriação dos instrumentos do capitalismo e será possí-vel construir uma sociedade que o “supere”. Ou seja, este socialis-mo se vê obrigado a trabalhar pela criação de uma nova concepçãoda vida e do mundo, ao mesmo tempo que se põe em prática.

E então aparece também outra questão principal. Do mesmomodo que todas as revoluções anticapitalistas triunfantes não acon-teceram em países com maior desenvolvimento econômico – dei-xando de cumprir, portanto, o dogma que postula o contrário – e noúltimo meio século todas essas revoluções aconteceram no chamadoTerceiro Mundo, o socialismo factível e desejável não depende daevolução progressiva do crescimento das forças produtivas, nem da

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antiga exigência de “correspondência entre as forças produtivas e asrelações de produção”, mas sim de uma mudança radical de perspec-tiva social e econômica e de uma conjunção de forças sociais e polí-ticas unificadas por um projeto de libertação humana.

Nessa perspectiva é preciso qualificar – e avaliar de maneiraapropriada – os fatores necessários para empreender e fazer avan-çar a transição socialista. Dou exemplos. Destruir os limites dopossível torna-se um fator fundamental, e que a confiança de nãoexistirem limites para a ação transformadora se torne um fenôme-no de massa. Dentro do possível modernizações são alcançadas,mas a transição constituída por elas só produz, ao final, moderni-zações da dominação e novas integrações ao capitalismo mundial.A educação tampouco pode estar em nível com a economia: deveser, precisamente, muito superior a ela e muito criativa. Esta edu-cação socialista não se propõe formar indivíduos para submeter-seà dominação e interiorizar seus valores; ao contrário, deve ser umterritório antiautoritário e, ao mesmo tempo, um veículo para as-sumir capacidades e conscientização, uma educação obrigada a sersuperior às condições de reprodução da sociedade, porque deve sercriadora de novas forças para a libertação.

Diante da falta de tempo, reúno perguntas sobre questõescruciais: o desenvolvimento econômico é um pressuposto dosocialismo, ou o socialismo é um pressuposto do que até agoratemos chamado de desenvolvimento econômico? Que objetivospode e deve ter realmente a “economia” dos regimes de transiçãosocialista? Que crítica socialista do desenvolvimento econômicoé necessária neste século 21? Outro campo de perguntas: Atravésdo aperfeiçoamento da democracia marcha-se em direção ao so-cialismo, ou através do crescimento do socialismo marcha-se aoaprofundamento da democracia? Como passar da ditadura revo-lucionária, que abre caminhos para a libertação humana, para

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formas cada vez mais democráticas que, com seus novos conteú-dos e procedimentos, assegurem a preservação, a continuidade eo aprofundamento daqueles caminhos? Como conseguir e asse-gurar que a transição socialista inclua sucessivas revoluções narevolução?

O balanço crítico das experiências socialistas que existiram eexistem é um exercício indispensável em toda atividade de for-mação sobre o socialismo. Nunca o esqueço, mas não me tocafazê-lo em minha intervenção. Limito-me então a reiterar – depassagem – que os principais inimigos internos das experiênciasfracassadas de transição socialista foram a incapacidade de for-mar gradualmente campos culturais próprios, diferentes e opos-tos à cultura do capitalismo, e a recaída progressiva dessasexperiências nos modos capitalistas de reprodução da vida sociale da dominação. E, do mesmo modo, reiterar que, apesar detudo, as lutas anticapitalistas e de libertação do século 20, e aacumulação cultural que essas lutas produziram, são os fatos maistranscendentes do século que terminou. Enquanto o capitalis-mo, cada vez mais centralizado e excludente, produziu mons-tros, sufocou ideais em um mar de sangue e de lama e perdeu suacapacidade de promessa, tão atrativa. Por isso é que hoje o capi-talismo esforça-se para consumar o escamoteio de cada ideal e decada transcendência e de reduzir os tempos apenas ao presente,sem passado nem futuro, para nos impedir de recuperar a me-mória e formular novos projetos, essas duas armas nossas, tãopoderosas.

A experiência cubanaOs estudos e os debates sobre a experiência da revolução so-

cialista de libertação nacional cubana podem ser muito valiosospara os objetivos de formação que se tem aqui. Cuba é um pe-

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queno país latino-americano com uma história muito rica. Pas-sou pela colonização, por integrações sucessivas ao capitalismomundial, por lutas tremendas por sua libertação, o que criou oEstado nacional e uma consciência política nacionalista muitoforte e de caráter popular, uma precoce e completa subordinaçãoneocolonial aos Estados Unidos, grandes e muito ativos movi-mentos operários e sociais, difusão de idéias de justiça social esocialistas, uma grande insurreição popular e uma história demais de 40 anos de poder revolucionário de transição socialista,que tem tido relações com praticamente com todos os movi-mentos e eventos significativos dessas últimas décadas. Serei bas-tante seletivo em minha exposição, por razão de tempo,chamando mais a atenção sobre traços principais do que sobrefatos e dados.

Na origem, houve um processo muito intenso desde a insur-reição nacional até a liquidação de toda ordem interna e de sujei-ção neocolonial vigentes, mediante um novo poder popular emobilizações praticamente permanentes de massas cada vez maio-res, que mudavam as relações e as instituições sociais, ao mesmotempo que mudavam a si mesmas. O tempo se condensou e asidéias, a confiança e os sentimentos a respeito da vida cívica e degrande parte da vida cotidiana foram transformadas; o povo seapoderou de seu próprio país, aprendeu a viver nele de outramaneira e adminsitrar seu funcionamento. Para sobreviver, se-guir em frente e continuar produzindo mudanças foi necessárioum novo poder muito forte, que partiu de princípios diferentes,atuou com grande decisão e criatividade, levantou um novo sis-tema de instituições e relações sociais e políticas, e recebeu umacredibilidade ilimitada. Os limites do possível retrocederam – ealgumas vezes se romperam – os que dominavam foram expro-priados e a propriedade privada foi dessacralizada; marcharam

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juntos longamente o espírito libertário e o poder revolucionário;todas as oposições, ataques, resistências às mudanças e as míni-mas insuficiências foram vencidos, em jornadas e anos maravi-lhosos e traumáticos. É difícil exagerar o alcance que teve a granderevolução, e é impossível entender a Cuba atual sem levar emconta todo esse processo.

Não me deterei nas décadas em que o país multiplicou suasforças, agora de maneira sistemática, e em que a transição socia-lista encontrou os limites de suas possibilidades. Os esforços su-premos, os trabalhos diários, os acertos e as conquistas, os erros,a sistemática agressão imperialista, os obstáculos, as vingançasda geopolítica, o internacionalismo, os desvios de rumo e as de-formações filhas do próprio processo, as más influências, a mag-nífica resistência antiimperialista sem concessões – e outros temas– tornariam interminável a mais sucinta análise e debate de umaexperiência latino-americana que, no entanto, é preciso conhe-cer. Faço somente breves comentários sobre a Cuba atual*.

A existência de Cuba socialista é escandalosa, porque nega umaexigência básica da ideologia dominante no mundo atual: que énecessário resignar-se ao domínio do capitalismo sobre a existên-cia cotidiana, a organização social e a vida dos países em todo omundo. O país sofreu, pela segunda vez, um corte brusco e súbitode suas relações econômicas principais, apenas 30 anos depois queos Estados Unidos provocaram o primeiro – corte que causou umacrise econômica profundíssima e uma grande deterioração da qua-lidade da vida – e outra vez conseguiu sobreviver. Cuba não se

* Os parágrafos que seguem sobre Cuba foram tirados, com pequenas reduções, do capí-tulo IV do ensaio de minha autoria “A alternativa cubana”, publicado três semanas apósa realização deste II Fórum Social Mundial, in “HEREDIA, F. Martinez. El corrimientohacia el rojo. Editorial Letras Cubanas, La Habana.”

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somou à sucessão das “quedas do socialismo”, apesar dos agravan-tes causados pelo fim de uma ampla e longa bipolaridade, e de umformidável desprestígio mundial do socialismo. Empregou esfor-ços gigantescos e sistemáticos ao longo dos anos 90 para que suasobrevivência se transformasse na viabilidade de seu regime; hoje,todos reconhecem que o objetivo foi alcançado. A Cuba atual éum complexo composto por sua acumulação social revolucioná-ria, pelos elementos da crise dos anos 90 e por suas transformaçõese permanências em curso. A continuidade de seu tipo socialista deorganização social é o dominante em suas expressões políticas e nobalanço que pode ser feito de sua sociedade.

Cuba demonstrou ser uma alternativa viável ao não aplicar,em suas crises, as políticas econômicas exigidas no mundo atual,e foi em frente sem prejudicar a vida das maiorias, ao contráriodo que se tornou usual. Seu Estado continuou sendo muito fortee intervencionista, em alto grau, na economia, ao contrário doque se exige. Desde 1995 até hoje, sua economia vem se recupe-rando em ritmo gradual, mas constante, e ganha em eficiênciaapesar das enormes mudanças que precisou implementar.* Uma

* A evolução do Produto Interno Bruto real (para 1993 = 100) foi estimada pelo InstitutoNacional de Estatística de Cuba em: 1995 = 103,2; 1996 = 111,2; 1998 = 115,6; 1999 =122,8; 2000 = 130,2 (La Habana, 2000). A previsão foi superada pelo crescimento realde 2000 em 5,6%; a produtividade do trabalho cresceu 4,6% (Informes de OsvaldoMartinez, Presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, e de José Luís Rodrígues,Ministro da Economia e Planejamento, à Assembléia Nacional do Poder Popular. Granma.La Habana. 22-12-2000, p. 4, e 23-12-2000, p. 4). Contudo, Rodríguez esclarece que,com isso, foi possível chegar a apenas 85% do PIB de 1989, ainda que com “uma econo-mia mais eficiente, assegurando um desenvolvimento qualitativamente superior”. Em“Desconexão, reinserção e socialismo em Cuba” (1992), questiona o valor das compara-ções diretas dos dados econômicos de Cuba 1974-1991 com os dados de anos anteriorese seguintes (in Em el horno de los 90, Edit. Barbarroja, Buenos Aires, 1998, p. 85). Osinvestimentos internos em 2000 (3 100 milhões de dólares) (sic) foram mais do que odobro dos investimentos em 1995 e 16% superiores aos de 1999. Efetivamente, os inves-timentos cresceram 5.8%.

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primeira razão básica desse êxito é que Cuba utiliza com eficá-cia suas próprias forças. Sua população tem níveis gerais e capa-cidades úteis que, em muitos aspectos, são realmente notáveise estão bem consolidados; a economia possui apreciáveis níveisde reprodução, controle, diversificação e outros traços positi-vos; a infra-estrutura tem desenvolvimento; o sistema de servi-ços sociais está entre os mais avançados do mundo, e temresistido bem à deterioração produzida pela crise; a paz social epolítica favorecem em muito a atividade econômica; o Estadoe as estruturas de poder em geral se mostram capazes na reali-zação de suas tarefas.

Torna-se extraordinária a combinação de capacidade na ati-vidade econômica, flexibilidade e exercício de controles severos,que pode se observar mencionando apenas alguns assuntos daúltima década. O turismo, que quase não existia, contribuiu em1998 com 50% do total da receita nas exportações de bens eserviços e já é um setor consolidado e dinâmico. A economiaaçucareira decresceu a partir de 1993, mas não entrou em colap-so, nem pôs fim a sua enorme massa de trabalhadores; recupe-rou-se até quatro milhões de TM em 2000, é cada vez maiseficiente e busca sua diversificação. O níquel multiplicou suaimportância e registra uma sólida expansão produtiva (72 000TM em 2000) e comercial (vende para mais de trinta países),alta eficiência, proveitosa associação com o capital estrangeiro erenovação tecnológica. O setor energético é um caso exemplar: oholding estatal Cubapetróleo aproveitou o enorme conhecimen-to acumulado e, em plena crise, continuou a expansão produtivae estabeleceu empresas mistas com companhias de vários países;passou de 0,8 milhões de TM em 1991 para 3,3 em 2000, eagora aproveita o gás associado ao petróleo. Cerca de 70% daeletricidade é produzida com petróleo nacional; em 2001 há pre-

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visão para alcançar 90%, e uma produção de quatro milhões deTM de petróleo e gás.

Junto a uma reorientação radical do comércio exterior, fo-ram realizadas inumeráveis gestões e negócios no setor externo.Internamente, o país, com o maior percentual de terra estatal domundo, entregou, em usufruto gratuito, a maior parte das gran-jas estatais a seus coletivos de trabalhadores, com seus equipa-mentos e rebanhos (1993); uma distribuição singular quetransformou em cooperativistas um grande número de trabalha-dores. Estabeleceu-se a circulação legal do dólar junto ao pesocubano (1993), medida ousada para um regime rigorosamenteantiimperialista, que franquiou uma grande captação de divisaspelas remessas feitas por emigrantes a seus familiares em Cuba euma rede comercial estatal; o peso está cotado a 27 por dólar.Um país com 94,4% de emprego estatal, em 1988 abriu espaçolegal ao trabalho por conta própria, que mantém certa amplitu-de, embora dentro de normas restritivas.

Apesar de todos os elementos positivos mencionados, Cubanão pôde evitar de se deparar com uma situação muito difícil,a partir dos limites de seu desenvolvimento e do duplo efeitoda aguda crise por que passou nos anos 90 e do agravamentoda situação da maioria dos países em relação ao altíssimo graude centralização do sistema capitalista mundial e da naturezade sua forma dominante transnacional e parasitária atual. Cubaé muito vulnerável em suas relações econômicas internacio-nais, pelos intercâmbios desiguais e pelo escasso controle dascondições em que se realizam, o que eterniza seu crônicodesequilíbrio comercial, pela vulnerabilidade frente ao movi-mento das finanças e seu alto endividamento externo. As fon-tes de financiamento externo, ou estão vedadas, ou se tornammuito difíceis e onerosas. Se o País não naufraga nessa situa-

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ção tão adversa é precisamente pelas forças que retira de seuregime social.

Por outro lado, o crescimento das desigualdades sociais temsido uma conseqüência da situação e das medidas adotadas, oque é grave, pois afeta a essência igualitária quanto àredistribuição de riqueza e oportunidades do sistema de transi-ção socialista cubano. A desigualdade principal é pela renda epelo acesso ao consumo. É mais desgastante porque está associa-da à dupla moeda; os dólares não são obtidos pela realização detrabalhos mais complexos ou por atitudes individuais credorasde maior reconhecimento pela sociedade. Obtém-se, sobretu-do, de atividades relacionadas com a economia mista, com oturismo, com algo aleatório como receber remessas, e com umaampla gama de atos que vão, desde o oferecimento privado deserviços e produtos, até o enriquecimento de intermediários enegócios ilegais, nas duas moedas. Os preços informais emmoeda cubana são demasiadamente altos para a renda pessoal efamiliar da maioria. A corrupção – esse demônio da falsa moralpública atual do capitalismo – devia ser analisada em suas fun-ções sociais em cada caso concreto. Na Cuba atual tem umpapel silencioso.

Nessa nova situação se integram grupos privilegiados e, emseu entorno, vão se formando constelações sociais. O certo é queainda são de procedência realmente variada e carecem de todalegitimidade que acompanhe sua capacidade aquisitiva, mas acultura política nacional é suficientemente sólida para que sededuza que esses grupos poderiam chegar a ser mais privilegia-dos, integrar-se mais e desenvolver auto-identificações e proje-tos. Um efeito extremamente prejudicial desta realidade social éo sério desgaste das motivações e dos valores socialistas, gerandoum sutil desarmamento ideológico cotidiano, alheio à violência

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e às decisões dos enfrentamentos políticos, mas, a longo prazo,mais perigosos que estes para a vigência do socialismo.

A cultura socialista é vigorosamente sustentada pela políticasocial do regime. A realocação de recursos através do orçamentocentral do Estado é um mecanismo que redistribui a renda emfavor dos serviços, setores estatais e de interesse da sociedade emantém a confiança no objetivo das medidas econômicas. Ofe-reço alguns dados de ano 2000. O desemprego tem sido evitadoe combatido; de 8,1% da PEA em 1995 caiu até 5,5%. A rendamédia do trabalhador foi de 359 pesos, alta vinculada ao aumen-to do salário médio (7,3%) e a estímulos variados que entre umterço e mais da metade do total dos assalariados recebem: paga-mento por produção, em divisas, alimentos, roupa e sapatos,outros artigos. O Estado subsidiou produtos regulamentados aoconsumidor em 755 milhões de pesos e está aumentado, de al-guma forma, sua oferta de alimentos nos mercados “liberados”,a preços mais baixos que o setor privado. A alimentação total percapita foi estimada em 2.585 quilocalorias e 68 gramas de proteí-nas. Houve aumento em diversos serviços e se enfrenta a grandedeterioração sofrida pela infra-estrutura. Mesmo assim, os infor-mes oficiais qualificam como discreto o avanço nas condições devida da população. A seguridade social atendeu a 1,4 milhão depessoas (12% da população); são atendidos de maneira diferen-ciada aqueles com baixos rendimentos e outros menos favoreci-dos, através da assistência social. O montante e a proporção arespeito do total nos gastos públicos correspondentes à saúde,educação e seguridade social vêm crescendo durante toda a décadaanterior até hoje.*

* A situação social de Cuba continua sendo excepcional na América Latina, segundodados de organismos internacionais, como pode ser visto em dois informes recentes: o doLaboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação aos Ministros da

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A cultura política dos cubanos é decisiva. Aponto apenas doistraços seus, embora muito relevantes. O primeiro, a atitude frenteaos objetivos do trabalho e da relação indireta entre seus resultadose as retribuições, que caracterizam a transição socialista – tão dife-rentes ao que é normal no capitalismo – continua se manifestandona abnegação com que enormes massas de trabalhadores e técni-cos deram e dão continuidade à produção e aos serviços, em novascondições nas quais a finalidade do trabalho e as retribuições socia-listas são debilitadas e obscurecidas, reforçando-se a retribuiçãodireta e o egoísmo. O segundo, a peculiar relação com o consumocriada pela revolução, que faz parte da cultura cubana contempo-rânea, tem resistido à tremenda ofensiva de uma década de mu-danças e influências que, em grande medida, favorecemmodificações das necessidades e dos desejos, assim como tambéma adoção de representações e relações capitalistas. Apesar da deterio-ração registrada, aquela relação com o consumo continua sendoum valor socialista, e um fator decisivo para a estratégia e para odesempenho econômicos do País, desde o ângulo do apoio ou darejeição da população, quando, em um caso como o cubano, adisposição favorável da maioria é indispensável.

A acumulação revolucionário prévia foi decisiva nos anos decrise aguda e conserva um papel principal apesar das modifica-ções da situação. O fenômeno político de massa, fundamentaldos anos 90, foi o predomínio da coesão, da disciplina e da ativi-dade social em apoio da maneira de viver que fora construídanas três décadas anteriores, o que se expressa, não somente nas

Educação dos países da América Latina na VII Reunião Intergovernamental doPROMEDLAC; Cuba ocupa o 1o lugar na região, com índices duas vezes superiores àmédia regional (Cochabamba, março de 2001); outro, de risco de saúde sexual ereprodutiva: Cuba tem a menor taxa da região (Population Action International: Investi-gação em 133 países).

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instituições e na legislação, mas também na consciência social,nos costumes, nas representações que se estendem aos diversosespaços públicos e privados. Esse comportamento social majori-tário tem sido a chave da política do período. Entendo que suamotivação fundamental em escala mais geral da sociedade se apóiaem três pontos: a) a unidade entre os cubanos é vital para enfren-tar todas as questões cruciais que vêm se apresentando desde fi-nais do anos 80; b) o regime político vigente dedica-se a manterativamente a maneira de viver que a revolução e a transição socia-lista construíram, defende eficazmente a soberania nacional econtrola a economia nacional; c) um retorno ao capitalismo emCuba significaria para a maioria dos cubanos, um desastre, emperda de direitos sociais e de qualidade de vida, em exploraçãodo trabalho, pobreza e humilhações e em soberania popular.

A atuação social consciente tem dado ao sistema um elevadograu de autonomia política. O poder político tem utilizado essaautonomia para conduzir o País pelas situações de todos essesanos, mantendo sob seu estrito controle variáveis fundamentais,que são o setor econômico estatal majoritário, que inclui os ban-cos, as comunicações e o comércio exterior – um bloco aindamaior, se somarmos as cooperativas rurais criadas em 1993 – e aseconomias mista e privada, sujeitas a um controle muito amplo;uma enorme capacidade negociadora exterior, a exemplar políti-ca social; o sistema político, os meios de comunicação, a educa-ção e outros campos da produção espiritual. O desgaste dodiscurso político já era percebível desde antes de 1989, e os anosmais críticos sem dúvida deterioraram em certa medida acredibilidade e a aceitação do regime. Contudo, este nunca sedeslegitimou, e a firmeza e a eficiência de sua atuação lhe permi-tiram recuperar terreno. A administração pública e a manuten-ção da ordem se baseiam no consenso e não na repressão. O

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mesmo poder político que garante todas as mudanças e as medi-das tão diversas da transição atual é claramente percebido comodefensor do socialismo e da soberania. Hoje, é o eixo da situaçãocubana e, por sua vez, depositário das esperanças da maioria.

A formação social cubana atual é de transição em dois senti-dos: a) é de transição socialista, porque reproduz as condiçõeseconômicas e políticas que dão continuidade a este regime e estaé a base da forma de governo; b) está em um processo de reinserçãolimitada no sistema de economia mundial controlado pelo capi-talismo, de tal modo que até agora administra todas as suas variá-veis favoráveis para manter o controle, tomar decisões e alocarrecursos; ou seja, para continuar sendo de transição socialista emvez de realizar uma integração progressiva ao capitalismo mun-dial. Seus principais trunfos são seu tipo de relação entre podereconômico e poder político, e o consenso majoritário com queconta. Uma e outra – embora com diferenças entre si – baseiamsua legitimidade na revolução realizada e no regime de transiçãosocialista, e não na reinserção em curso. Isso proporciona enor-me firmeza ao regime vigente. Mas, para um futuro não deter-minado, constitui uma séria interrogação se se poderá ou nãoevitar: a) a contaminação de atores ou beneficiários das relaçõeseconômicas não socialistas e suas constelações sociais dentro dodesejo de participar na forma capitalista de vida que vêem ouimaginam, e que essa influência se estenda a outras camadas dasociedade; b) que a transição socialista vá perdendo lentamenteseu caráter dominante frente à atração das relações de tipo capi-talista, tanto econômicas quanto todo seu complexo cultural, e oregime seja permeado e ganho para a integração ao capitalismomundial, com suas especificidades nacionais.

Se este é o problema principal, então as tensões e batalhasfundamentais não se dão, hoje, nos terrenos da economia ou da

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política, mas, sim, no terreno ideológico, ou, mais exatamente,em um terreno cultural em que as ideologias estão incluídas. É ób-vio que, nesta luta, as influências externas cumprem papéis mui-to maiores do lado capitalista que do lado socialista, o qual temconseqüências muito diversas. De maneira muito particular, Cubatambém participa na atual guerra cultural mundial.

A reabsorção de Cuba pelo capitalismo exigiria atos de von-tade para os quais não existem hoje legitimidade alguma, nemconjuntura favorável nem forças sociais dispostas e suficientes.Este fato, e o alto grau de controle efetivo que possui, dão aoregime cubano todo um período a seu favor. É preciso aproveitá-lo, agindo acertadamente. Volta a ser decisiva a atuação qualifi-cada para fazer que uma tendência e não a outra seja triunfante.Esta atuação não pode se limitar a repetir o que, em outros tem-pos, foi eficaz, porque o meio e as variáveis que incidem atual-mente são diferentes: tem de ser uma atuação criativa e original. Atransição socialista está obrigada a se basear na intencionalidadeda construção social e no uso cada vez mais e melhor planejadodos meios e das idéias com que conta; e basear-se na participaçãodemocrática cada vez maior da população, porque ela é a forçafundamental do regime e sua motivação e sua eficiência depen-dem dos elementos envolvidos numa construção social tão radi-calmente nova e diferente. O cubano tem percorrido todo ocaminho “moderno” da individualização e tem aprendido a criare a ampliar vínculos de solidariedade para enfrentar e superar amodernidade mercantil capitalista. Se a extraordinária culturapolítica dos cubanos se mobiliza e exerce seu discernimento esua ação frente aos problemas e perigos reais de hoje, se suasidéias, opiniões, iniciativas e esforços forem utilizados, essa cul-tura será decisiva para o aperfeiçoamento das pessoas e das insti-tuições no sentido socialista.

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O apolitismo e o pensamento e os sentimentos conservado-res têm registrado avanços em Cuba nesses últimos anos. Masnão têm se generalizado; estamos em meio a uma intensa bata-lha de valores. É necessário derrotar as crenças sobre as relaçõese representações capitalistas como algo dado, de origem exter-na, que é inevitável aceitar. E impedir que se converta em algo“natural” para os cubanos a existência de desigualdades sociaise hierarquias devido ao poder do dinheiro. Está se desfazendotambém a questão crucial do vínculo entre o cubano e o socia-lismo, que estiveram unidos na identidade nacional durantedécadas. Identidade e nacionalismo integraram, em seu núcleo,a justiça social, o que os enriqueceu decisivamente e significouuma contribuição muito valiosa de Cuba ao pensamento e àslutas pela libertação no chamado Terceiro Mundo. As reela-borações do problema devem constituir um aspecto central dacultura cubana atual.

Cuba descobre o vigor e a complexidade de suas diversidadessociais – antigas ou emergentes – com sentimentos diferencia-dos; é compreensível porque a revolução destruiu os sentidos dasujeição da sociedade ao poder da república burguesa neocolonial,mudou a vida social e construiu seu próprio sistema de relaçõese instituições sociedade-poder e sociedade-Estado. A crise dosanos 90 e as desigualdades sociais recentes têm muito a ver comtudo isto, mas seria absurdo reduzir a questão a elas, ou acreditarque uma diversidade social ativa expressa a debilidade do Esta-do. Este erro participa da desastrosa confusão entre o Estado e osocialismo, que tanto dano causou às experiências do século 20.A diversidade social em movimento é uma grande riqueza dopaís e um potencial de renovação de todos os aspectos da vidasocial, que pode fortalecer muito o socialismo, se seus ideais,atividades e organizações sentirem que o socialismo é seu condu-

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tor, e se os órgãos e a cultura socialista forem capazes de hege-monizá-la.

Cuba socialista é uma alternativa latino-americana ao capita-lismo, alternativa que existe e que mostra, com suas conquistas esuas realidades, que é possível viver de outra maneira, mais hu-mana, e que os países podem ser outra coisa além de lugares decontradições inaceitáveis, frustrações e iniqüidades. Cuba man-tém o sistema social e a estratégia que lhe permitem conservarsua maneira de viver, sua soberania nacional e sua autonomia nomundo atual. Os obstáculos e tarefas que tem diante de si nãopodem ser enfrentados por um país capitalista dependente, sejapequeno ou grande . Porém não lhe bastará persistir. Frente àsopções e aos problemas de hoje e os que virão, acertará se avan-çar no caminho do socialismo, em vez de retroceder. Entre essesavanços estarão a multiplicação dos participantes sistemáticosno controle e nas decisões sobre a economia, a política e a repro-dução das idéias e na elaboração de um projeto socialista maisavançado, integrador e complexo, mais capaz e participativo doque os que têm existido. Estará na continuação da estratégia eco-nômica a base da premissa de que seu primeiro objetivo é o bem-estar da população, do aproveitamento racional dos recursos ede conseguir aumentos de eficiência, mas também de autono-mia em sua inserção internacional. Estará colocar em primeiroplano a batalha pelo predomínio dos vínculos de solidariedadesobre o egoísmo e o individualismo, e fazer que as liberdades e ointeresse social se complementem.

Um comentário finalDesculpem-me pela extensão da exposição de alguns aspec-

tos da experiência cubana. Pareceu-me conveniente fazê-lo porduas razões. Cuba é um caso exemplar para ilustrar o desenvolvi-

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mento do segundo tipo de socialismo, influenciado e em muitoíntimas relações e contradições com o primeiro; e a vigência deseu regime e da luta por seu projeto nos permitem, por sua vez,confiar que nossos sonhos são viáveis e dispor de uma realidadepara estudar os traços, conflitos e possibilidades de nossos empe-nhos socialistas. Além disso, por ser cubano, parece-me um de-ver internacionalista dar informações honestas sobre Cubasocialista, um laboratório social que também é de todos vocês.

Não se pode ser socialista sem ser internacionalista. Na atualsituação, seria sumamente prejudicial tentar obrigar aqueles quelutam conseqüentemente pelo socialismo a escolher entre man-ter sua autonomia e dos interesses e ideais de sua luta, ou subme-ter-se a relações que exigem o comprometimento com outrosobjetivos que não sejam os da libertação humana. Temos de ela-borar, antes de mais nada, estratégias para coordenações interna-cionais flexíveis que, por sua vez, constituam exemplos e avançosdaquilo que buscamos. Temos toda razão quando dizemos que osocialismo não pode esperar que se consolide um poder para es-tabelecer novas regras nas relações humanas e na convivênciademocrática. Os cubanos – como todos aqueles que têm pratica-do realmente o internacionalismo – sabemos que quem maiscontribui em uma relação internacionalista é quem acaba maisbeneficiado por ela, porque se desenvolve humanamente, por-que amplia mais sua capacidade de ser superior à reproduçãoegoísta das relações e do mundo existente, e ajuda a criar umcampo prático de relações novas, contra o sentido comum, que ésempre burguês, e contra a reprodução do capitalismo dentro decada um de nós, que é a mais poderosa e sutil forma da existênciado capitalismo.

Outro mundo é possível. A luta pelo socialismo é o caminhoimprescindível para conquistar este outro mundo.

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Companheiros e companheiras, é com muita emoção quefaço uso da palavra neste grande auditório. É com muita emoçãoque venho aqui como convidado da Via Campesina e do MST,no contexto de duríssimos combates pela terra, cujos objetivosentendo e com os quais compartilho totalmente. Antes de entrarno tema, vou dedicar minha intervenção aos estudantes da Plazade Tiananmen. Eles foram e são nossos irmãos e irmãs e nãopodemos conversar sobre o socialismo – e temos a participaçãonesta mesa de um representante da China – sem recordar quenão pode haver socialismo sem respeito absoluto às liberdades deexpressão política e de organização.

Para nós, reunidos hoje nesta sala, neste ciclo de seminários,nos foi dada a tarefa de restabelecer o projeto do socialismo oucomunismo (para mim, ambos são sinônimos) em sua dimensãomais fundamental: como projeto de emancipação humana cole-tiva e individual, tanto social quanto de cada homem e mulherenquanto indivíduo, mas temos de fazê-lo com base nos proces-sos econômicos e políticos e das lutas sociais que estão se dandoe se produzindo hoje em dia.

III - AS RELAÇÕES DE PROPRIEDADEE AS RELAÇÕES SOCIAIS DEPRODUÇÃO NA LUTA PELOSOCIALISMO

François Chesnais

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Dar forma teórica e respostas políticas a processos econômi-cos e políticos concretos

Companheiros, companheiras, no Manifesto Comunista,Marx e Engels afirmam que as posições dos comunistas não sãooutra coisa – e eu diria que não podem e não devem ser outracoisa – que a expressão geral das condições reais e efetivas da lutade classes existente em um momento histórico dado, de ummovimento que se descortina diante de nossos olhos. É nestemarco que eu vou colocar algumas questões.

Hoje, nossa tarefa é propor este projeto de emancipaçãohumana coletiva e individual dentro do movimento multiformechamado “antiglobalização”, que busca os caminhos de sua coor-denação no combate contra o capitalismo globalizado. Estemovimento ainda tem de alcançar plena consciência de si mes-mo e, neste sentido, nossa tarefa é ajudá-lo a encontrar umasaída verdadeira, um caminho para a superação do capitalismoe para a destruição de seus aparelhos de dominação. Os ho-mens e as mulheres dominados e explorados buscam novamenteum meio de tomar, em suas mãos, o combate para sua emanci-pação. Ninguém pode fazer isso por eles. O princípio funda-mental estabelecido por Marx e Engels no Manifesto afirmaque a emancipação da classe trabalhadora só pode ser obra daprópria classe trabalhadora. Este princípio vale igualmente paraeste novo movimento social e político contra a globalizaçãocapitalista e imperialista, este novo movimento em direção deum internacionalismo atuante.

A única coisa que nós, comunistas, podemos fazer é estabele-cer, em cada etapa da luta, tanto imediata quanto a longo prazo,as prioridades da ação e as opções para as formas de luta.

Quais devem ser, no âmbito internacional atual e dentro des-ta perspectiva internacionalista – sobre a qual o companheiro

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cubano insistiu tão justamente – as prioridades de nosso movi-mento?

Em primeiro lugar, minha opinião é que, hoje em dia, a prio-ridade entre as prioridades é a de defender o processo revolucio-nário incipiente na Argentina, contra as ameaças externas jádeclaradas e as ameaças internas que se darão mais adiante.

Em segundo lugar, e relacionado com o anterior, temos deestar prontos para atuar contra qualquer intervenção na Colôm-bia, Venezuela e Cuba. Temos de levar a sério as ameaças deGeorge Bush, entender que, para este senhor e seu governo, nóssomos terroristas, na medida em que questionamos a ordem ca-pitalista e imperialista e lutamos contra isso. Portanto, devemoscompreender que a terceira grande prioridade é nos dirigir à ju-ventude, à classe trabalhadora e aos organismos antiglobalizaçãonos Estados Unidos para trazê-los para o nosso lado. Não pode-mos deixar de combater esperando que as forças que se reuniramem Seattle voltem a se reunir outra vez para lutar contra os pla-nos de George Bush na América Latina e no Caribe. No finaldos anos 50 e 60, a revolução cubana soube buscar um forteapoio na juventude e na intelectualidade norte-americanas. Opovo do Vietnam também soube fazê-lo. Isto deve se repetir, e setorna vital, já que o militarismo imperialista só pode ser detidodesta maneira.

Socialismo e liberdades de pensamento, de expressãopolítica e de organização

Tenho utilizado a expressão “socialismo ou comunismo” comoprojeto de emancipação humana coletiva e individual. Este foi oprojeto de Marx, não só do “jovem Marx”, mas também do Marxda Comuna de Paris, do Marx dos comentários dos programasdo Partido Social Democrata Alemão, de Marx até sua morte.

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Tenho utilizado a expressão de emancipação humana coletiva eindividual, mas não há neutralidade na escolha desta definição;pelo contrário, ela traz consigo uma série de conseqüências fun-damentais, tanto para o amanhã quanto para hoje.

Para o amanhã, significa que, uma vez superado o momentoinicial do isolamento político e da destruição organizativa e físi-ca dos aparelhos e estruturas de dominação capitalista e imperi-alista, bem como dos que defendem essa dominação, não podehaver socialismo sem o respeito – sem exceção – dos direitos deexpressão política e cultural, de organização de reunião nos pla-nos econômico, político e cultural.

Todos os passos que foram dados para restringir estes direitos –primeiro, fora do partido bolchevique contra outros partidos; de-pois, rapidamente, dentro do próprio partido – prepararam as con-dições para a ditadura stalinista e para o domínio econômico,político e social de uma burocracia, bem como para a reconstru-ção de uma sociedade de dominação social. No caso da China,minha opinião é que, como em todos os países onde a revoluçãofoi conduzida para se estruturar de acordo com o modelo soviéticostalinista, estes direitos foram negados desde o início e a Praça deTiananmen é a expressão mais dura de tudo isto. Hoje, conhece-mos as conseqüências, sabemos o resultado final: a restauraçãocapitalista, e este caminho não pode voltar a ser o nosso.

Esta conclusão não é uma nova abstração, mas tem conseqüên-cias práticas para o momento atual. Vamos encontra-las no pla-no do reconhecimento dos movimentos sociais e das formasalternativas de luta, que têm traços que anunciam ou prefiguramas relações constitutivas do socialismo. Tem conseqüências prá-ticas também nas relações que temos de estabelecer entre mili-tantes, quanto como entre os movimentos sociais, as organizaçõespolíticas e os sindicatos. A liberdade de expressão e o respeito às

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posições dos demais é algo que temos de construir hoje mesmoe, assim como o fazemos nesta sala, temos de fazê-lo em toda aação política.

O lugar teórico estratégico do conceito de relações depropriedade

Companheiros, companheiras, em que consiste o projetoemancipador? Ou, mais precisamente, baseado em que tipo derelações sociais este projeto pode se sustentar? A resposta queproponho é dizer que o projeto emancipador tem de se sustentarem relações de propriedade e de produção que permitam aostrabalhadores da cidade e do campo duas questões fundamen-tais: em primeiro lugar, eles mesmos determinarem e decidirem,através de mecanismos coletivos de decisão política, a destinaçãosocial e o uso dos meios de produção, comunicação e intercâm-bio acumulados socialmente ou legados pela natureza e pelo tra-balho de gerações anteriores. Em segundo lugar, no marco dasdecisões tomadas neste nível, organizar, de forma autônoma, otrabalho nos níveis descentralizados onde se desenvolvem as ca-pacidades de produção.

O conceito de relações de propriedade, a partir de um enfoqueteórico e político marxista, não se refere ao mero aspecto superficial– o que é meu, o que é teu, o que é deles – nem sequer apenas aoque determina de forma imediata o nível de vida, mas se refere àsrelações que determinam a destinação social, o uso e também onão uso da terra – que vocês conhecem melhor do que eu – dosrecursos naturais, dos meios de produção e comunicação e da dis-tribuição dos produtos coletivos do trabalho social.

Atualmente, uma das maiores contradições – cujas conseqüên-cias estão em alta na tomada de consciência do movimento“antiglobalização”, mas que á preciso ainda compreender me-

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lhor – é a contradição entre o autogoverno da socialização einternacionalização dos meios de produção e comunicação e suaapropriação privada de forma concentrada em mãos de uns pou-cos.

Vivemos em uma sociedade em que a produção está alta-mente socializada. A grande maioria dos produtos industriais é oresultado de uma corporação produtiva complexa e intensa; in-clusive uma grande parte da produção agrícola também se apóianos resultados dessa corporação do setor industrial. No entanto,a sociedade dos produtores manuais e intelectuais hoje está sepa-rada de qualquer influência sobre a destinação de seu trabalho.Vivemos, efetivamente, em uma sociedade em que as decisõesmais importantes tomadas a respeito da destinação social, ao usoe ao não uso dos meios de produção e à distribuição dos resulta-dos do trabalho socializado estão concentradas em poucas mãos,e inclusive se encontram fora do alcance dos mecanismos políti-cos das instituições parlamentares eleitas. Esta é a primeira di-mensão da relação tão decisiva que os trabalhadores mantêm comos meios de produção.

A segunda dimensão, inseparável da primeira, diz respeito àrelação de cada coletivo de trabalho, fábrica, oficina, fazenda,com os meios de produção com os quais os trabalhadores dessecoletivo de trabalho realizam seu trabalho concreto. Hoje emdia, esses meios de produção são propriedade privada de empre-sas, de grupos industriais, de latifundiários e de acionistas. Otrabalho social acumulado é concebido como propriedade docapital e, portanto, como uma força alheia aos trabalhadores. Arelação que os trabalhadores mantêm com os meios de produçãoconsiste em serem explorados como assalariados do capital e éessa relação que tem de ser rompida. Hoje em dia, a relação passapela intermediação do mercado de trabalho e pela determina-

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ção, a todo momento e de forma brutal, de os proprietários dosmeios de produção decidirem descentralizar a atividade produtivafora da fábrica, ou transferir a produção a países ou nações nosquais a taxa de lucro possa ser mais alta para eles.

Enfrentamentos com a burguesia no terrenoda propriedade

Tanto as relações de propriedade quanto as relações concre-tas dos trabalhadores com seus meios de produção são centraisna obra de Marx e em muitos escritos de Engels. Sua compreen-são foi pormenorizada por muitos comentários de Marx e temosde voltar a esses conceitos. A importância teórica, frente a essesconceitos, tem conseqüências políticas muito importantes.

Primeiro, para determinar a pretensão de uma sociedade pós-revolucionária de denominar-se socialista e que essa sociedadetenha um futuro como economia não capitalista. E entendo acapacidade de Cuba de resistir, porque, nesse país, ao menos hátraços dessas relações diretas dos trabalhadores com seus meiosde produção, e é por isso que a sociedade cubana resiste.

Segundo, a importância teórica desses conceitos nos permiteidentificar e reconhecer reivindicações, demandas e formas deação que desafiam a burguesia no plano das relações de proprie-dade, ou que aproximam, mesmo que seja de forma transitória,de uma nova forma de relação dos trabalhadores com seus meiosde produção.

É neste ponto da intervenção que devo ressaltar a importân-cia que tem para mim estar aqui presente, como convidado daVia Campesina e do MST, e, mais ainda, ressaltar a importânciaque, no meu entender, tem a reivindicação defendida pelo MSTde negar que os proprietários tenham o direito de, através do usoinadequado e prejudicial, tornarem as terras improdutivas. Sua

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ação é um desafio no plano das relações de propriedade da terrae significa entender que as relações de propriedade dos meios deprodução é uma relação determinante para combater a burgue-sia e para construir novas formas de relação social.

Venho da tradição política de Rosa Luxemburgo, de Gramscie de Trotsky, na qual a greve geral com ocupação de fábricas, otipo de greves de Torino, da França de 36 e de 68, eram grevespara lutar e estabelecer elementos de controle dos trabalhadoressobre a produção. Estas são formas de luta que desafiam a bur-guesia na base do seu poder.

O capitalismo neoliberal põe a sociedade em perigoCompanheiros, companheiras, entramos em uma nova fase

histórica, que exige de nossa parte a maior atenção e a maior daslutas. Entramos em uma fase histórica marcada pelo início deum processo de colapso de países e de suas estruturas econômi-cas, sociais e políticas, sob o peso da especulação promovida pelocapital financeiro internacional. Isto é algo novo. No século 20,os momentos de colapso social radical derivaram diretamentedas guerras interimperialistas. No século 21, os momentos decolapso social serão o resultado da atuação do capital financeiro,das potências hegemônicas e das instituições internacionaisencabeçadas pelo FMI. Na verdade, o processo começou na dé-cada de 1990, mas foi difícil caracterizá-lo com precisão por es-tar ligado, tanto às condições particulares de desintegração dosEstados multinacionais dirigidos pela burocracia stalinista, oupor seus Estados-satélite, e às condições particulares dos Estadosmultinacionais criados na África de forma totalmente artificial,quanto ao resultado do triplo processo de colonização,descolonização e recolonização neoliberal. O colapso da socieda-de indonésia também poderia ser interpretado em termos de uma

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combinação entre o impacto da crise financeira e fatores de lutanacional e religiosa particulares.

Mas, com à Argentina, estamos enfrentando um caso de ver-dadeiro colapso das estruturas sociais, justamente em um dospaíses mais desenvolvidos fora do grupo dos países centrais doimperialismo. Este colapso é o resultado da integração total ecompleta da Argentina aos mecanismos da chamada “economiaglobalizada” e da adesão absoluta – sem restrições – da burguesiaparasitária local e de todos os seus partidos políticos aos patrõesdo chamado “neoliberalismo”.

Quais são os objetivos do neoliberalismo? Os objetivos per-seguidos por estas políticas têm sido a liberação, a desregula-mentação e a privatização da economia com fins deliberados porparte do capital financeiro, em todas as suas configurações – gru-pos industriais e multinacionais, bancos internacionais e fundosde investimento financeiro – que atuam para devolver a este ca-pital toda a sua liberdade, ou seja, a totalidade das prerrogativasque tinham antes da crise dos anos 30 e dos processos revolucio-nários da II Guerra Mundial.

O capital deveria ser liberado, ter sua liberdade devolvida. Asregras de trabalho que prejudicam as relações entre o capital e asempresas deveriam ser desregulamentadas. Deveria ser propostaa compra de todas as indústrias do Estado, ou serem nacionaliza-das. Deveria haver liberdade de ação no campo dos investimen-tos e da saúde. Os sistemas de investimento público deveriam serdesmontados para serem submetidos aos mercados financeiros.Por último, deveriam ser criados novos direitos para a proprieda-de privada, como esse novo direito à propriedade científica e àspatentes.

Este processo tem beneficiado o capital mais concentradoem todas as suas formas e todas as configurações do capital fi-

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nanceiro, mas tem sido feito sempre da forma mais intensa emfavor e sob o domínio do setor mais “financeirizado” do capitalfinanceiro. Os ganhadores têm sido os portadores de títulos dedívidas públicas e de empresas, o sistema acionista, os bancosinternacionais e as bolsas de valores mundiais, em cujo centroestão Wall Street e NASDAQ. Na verdade, estamos vivendo, te-mos vivido e estamos combatendo no marco do capital financei-ro puro, no auge da renda como categoria econômica, política esocial dominante, no auge de todos os privilégios no interior docapitalismo, de exploração sem investimento ou com investimen-to mínimo e de extração de mais-valia. O domínio da renda é odomínio da pilhagem. Estamos diante de um sistema que não sedirige à reprodução ampliada do capital, mas à pura reproduçãodo domínio de uma oligarquia financeira e de seus aparelhos depoder e de dominação.

Isto fica totalmente claro nos discursos de Bush quando falaem nome daqueles que não têm outro objetivo senão o de man-ter e reproduzir sua dominação, qualquer que seja o custo para omundo inteiro.

Defender o direito de autodeterminação política esocial do povo argentino

Companheiros, companheiras, termino minha intervençãocom algumas considerações a respeito da solidariedade que de-vemos à Argentina, diante da magnitude e da brutalidade docolapso econômico e social do povo argentino, que gerou umarebelião popular importantíssima.

A sociedade argentina foi arruinada em suas estruturas poreste capitalismo que traz, no âmbito do neoliberalismo, até suasúltimas conseqüências, as tendências destrutivas que estão anali-sadas na obra de Marx e dos grandes teóricos marxistas. Isto nós

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já sabíamos. O que não se podia prever com certeza é que, frenteao colapso da sociedade argentina, assistíssemos a esta granderebelião, a esta insurreição de todo o povo contra a brutal des-truição social sofrida pela Nação, enquanto povo explorado edominado. Isto, hoje, é o fato que consideramos de real impor-tância, de uma importância extraordinária.

Quais são os aspectos mais importantes deste processo ar-gentino? Sem dúvida alguma, para mim, o aspecto mais impor-tante é a capacidade de autoconvocação e de auto-organizaçãoque vem demonstrando. A esta altura do processo de reorganiza-ção do povo para defender sua própria existência, as assembléiasde comunidades, como a assembléia interbairros do Parque Cen-tenário, por um lado, e o movimento “piqueteiro”, por outro,são as duas principais instituições que caracterizam a auto-orga-nização.

Quais poderiam ser as respostas aos desafios de enfrentamentoentre o povo argentino e a oligarquia local e o imperialismo –imperialismo do FMI, dos bancos e das multinacionais, tantoeuropéias quanto norte-americanas – que se depreendem da aná-lise sobre as relações de produção e de propriedade apresentadasnesta intervenção?

Em primeiro lugar, trata-se obviamente de defender o povoargentino e suas organizações no momento em que decidam to-mar uma série de medidas urgentes para deter a saída de recursose terminar com os mecanismos de pilhagem, da integral capta-ção do produto do trabalho daquele país. Terminar com a pilha-gem supõe, com certeza, o repúdio à dívida externa, que não édo povo, mas sim da oligarquia “nacional” e dos governos suces-sivos, começando pelos da ditadura militar. Mas pressupõe tam-bém uma série de medidas para impedir a fuga de recursos: ocontrole do câmbio, o congelamento dos lucros das empresas

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estrangeiras, a interdição da exportação de capital e a quebra dosigilo bancário. Isto, por sua vez, supõe, não só medidas executi-vas, mas também a atuação direta dos trabalhadores dos bancos edo sistema financeiro. Se os trabalhadores desse setor atuaremnesse sentido, temos de estar com eles para lhes dar nosso apoio.

Já sabemos, pelas notícias trazidas por companheiros argen-tinos, que as assembléias nos bairros estão tomando iniciativassempre mais audazes para atender às necessidades básicas, porexemplo, em matéria de saúde (financiamento e abastecimentodos hospitais). Considero que, à medida que as crises econômicae a crise política (que não são idênticas, mas interligadas) se agra-varem, e que as multinacionais começarem a sair do país pormedo do processo, que é revolucionário em sua essência, os tra-balhadores argentinos vão se deparar com a necessidade de esta-belecer formas de controle operário sobre a produção nas fábricas.Teremos de estar prontos para apoiar tal formação de comitês defábrica, é algo que temos de apoiar. Mais adiante pode acontecerque seja proposta a expropriação das empresas estrangeiras.

Mas este processo, como já disse o camarada cubano, sópode existir, só tem futuro se puder contar realmente com oapoio internacionalista. É por isso que eu quero fazer uma pro-posta ao MST, ao companheiro João Pedro, a proposta – incluídaa demanda – de que do setor do movimento social deste Fórumsaia uma reivindicação, uma convocatória a todos os trabalha-dores da América Latina e de fora da América Latina para queapóiem a Argentina, para que apóiem Cuba. Mas, particular-mente, uma declaração de apoio a essa incipiente revoluçãoArgentina para que eu possa também levá-la em meu regresso àEuropa. Um chamamento de solidariedade total e de manifes-tação de seu repúdio à dívida pública, de apoio à construção deassembléias nos bairros, nas fábricas, de criação de um novo

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processo institucional, porque a única saída é a construção deuma nova ordem política.

Tudo isto não é uma abstração, mas significa a criação derelações de produção e instituições de um novo tipo de poder.Isto é o socialismo, e quando começa a se colocar, como creioque a Argentina está fazendo, temos de afirmar a nossa solidarie-dade. Isto é internacionalismo. Isto é a luta pelo socialismo.

Podemos definir a nova ordem mundial como uma “revolu-ção capitalista restauradora”. “Revolução” porque, sem dúvidaalguma, trata-se de uma transformação de grandes dimensões.“Capitalista” porque esta enorme mudança mantém intacta anatureza do processo capitalista, onde tudo muda, mas a formade produção continua a mesma. “Restauradora” porque mani-festa formas de um novo domínio sobre o mundo.

Esta revolução capitalista restauradora tem sua origem naderrota do movimento operário, na crise do ciclo fordista-keinesiano e na queda dos regimes do Leste Europeu. Na Euro-pa, nasce com a derrota da última tentativa de contestação contrao capitalismo representada pela grande revolução estudantil eoperária dos anos 70.

A queda dos regimes do Leste Europeu e a derrota do movi-mento operário possibilitaram ao capital a introdução da idéiade um mundo unificado, no qual se verifica uma acumulaçãoilimitada e onde o trabalhador se transformou no verdadeiro alvodo sistema: difundiu-se, pois, nesses últimos anos, uma gigan-

IV - A REFUNDAÇÃO

Fausto Bertinotti

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tesca inovação que modificou a composição social do capital,que modificou a composição do trabalho e que produziu umanova hegemonia cultural das classes dominantes. Destahegemonia cultural o núcleo forte é a inovação, a palavra chave é“novo”.

Pareceu-nos assistir ao renascimento de um novo positivismo,a um novo baile Excelsior.

Esta grande inovação modificou substancialmente a relaçãoentre a produção e a natureza, entre a produção e as pessoas,entre a produção e a organização social. A sua filosofia é a daabsolutização da competição. E, em seu nome, aumentam asdesigualdades e as injustiças. Neste mundo globalizado, a cadadez segundos uma mulher ou um homem morre porque nãotem água para beber; a renda de 600 milhões de pessoas que seencontram nos quarenta e três países mais pobres equivale à ren-da de três pessoas supermilionárias. Em 1820, no início da revo-lução industrial, os países ricos tinham uma renda que equivaliaao triplo daquela dos países pobres; em 1920, era 15 vezes àque-la; depois da II Guerra Mundial, 30 vezes; hoje, os países ricostêm uma renda equivalente a 80 vezes àquela dos pobres.

Mas esta revolução é tão forte que conquista enormes con-sensos, e os conquista enquanto se agravam os desequilíbrios,aumentam a distância entre ricos e pobres, entre Norte e Sul,terminando por derrubar as conquistas fundamentais do mun-do do trabalho. O mundo ao qual dá espaço não é o do “fim dotrabalho”, mas o do “trabalho sem fim”.

Seu modelo é o social norte-americano, porque mais flexívelno trabalho e porque privado de um antagonismo de classe orga-nizado.

Com esta revolução foram estabelecidas as bases de um pro-cesso universal de privatização de toda forma de intervenção do

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governo na economia e de liberalização do mercado de trabalho.Os governos nacionais entraram em crise e modificaram o pró-prio papel. A soberania e a democracia foram substituídas porgovernos legitimados exclusivamente pelas funções que assumeme não pelo consenso que têm junto aos povos. Nessa revolução,os principais sujeitos do compromisso social e democrático – ospartidos do movimento operário e os sindicatos – entraram demodo subalterno.

A globalização, então, produziu novas instituições, produziuhegemonia, produziu o pensamento único, mudou os sujeitospolíticos, a natureza dos governos nacionais e das grandes for-mações do movimento operário. Mudou as formas de governo.E a sua força e hegemonia pareceram irresistíveis mesmo diantedas denúncias que contra elas se fizeram. Foram denunciadas asinjustiças e as contradições. Foi denunciado o agravamento dascondições econômicas no Hemisfério Sul, o aumento da distân-cia entre ricos e pobres, as novas formas de exploração do traba-lho. Mas sua hegemonia se manteve porque conseguida atravésdo envolvimento de forças políticas do centro, da esquerda etambém daqueles que deveriam ter se oposto àquele processo,mas que terminaram por se preocupar somente em governá-lo.

A segunda globalizaçãoEste processo já entrou em crise, por isso pode-se falar de

segunda globalização, a “globalização da crise”. Quais são as di-ferenças entre essas duas fases e em que consiste a passagem deuma à outra?

Que a primeira globalização produzisse desigualdades e in-justiças era claro para todos, para os seus difamadores ou os seusapologistas. Mas os últimos sustentavam que, mesmo em pre-sença de aspectos negativos, ela produzia crescimento, desenvol-

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vimento, civilização. Hoje, estamos diante da traição das pro-messas sobre as quais a modernização capitalista tinha construídoa própria hegemonia. De um lado, as promessas de civilizaçãosão, progressivamente, substituídas por uma verdadeira crise decivilização; de outro, a idéia de crescimento irrefreável vem sen-do contestado pela própria crise econômica. Substancialmente,bloqueou-se aquele grande e prometido processo que deveriadesenvolver-se em nível planetário, que cancelaria qualquer idéiade crise, que reconduziria à globalização capitalista toda e qual-quer idéia de futuro, diante das quais as injustiças e o progressivodeterioramento da democracia eram considerados secundários.Com ele foi abalada aquela convicção de que o mundo não po-deria ser, de modo algum, diferente deste que a globalização es-tava definindo, aquele pensamento “único” que não dava margema dúvidas, contradições e ulteriores aprofundamentos.

As crises, porém, reapareciam. O futuro, que deveria ser qua-se cientificamente determinado, está sendo dominado pela in-certeza. A vida cotidiana, que os progressos da ciência e datecnologia deveriam ter coberto de segurança, encontra-se, porsua vez, exposta à arbitrariedade e ao medo. Um caso que seoferece como exemplo perfeito: “a vaca louca”. A exploração damatéria viva, que teria de dominar a fome e a morte, fazendocom que os homens ficassem mais fortes e mais capazes de do-minar a natureza, atingiu o resultado oposto. Mais quedominadores, encontramo-nos ainda mais sujeitos a domíniosdesconhecidos; mais do que nos distanciando estamos nos apro-ximando da morte.

A guerra retorna com violência e, ainda que a globalizaçãotente revertê-la a seu favor, tentando transformá-la em “consti-tuinte”, ela deixa clara (junto ao caráter oligárquico do novo go-verno do mundo) a incapacidade de resolver a exclusão de grandes

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massas do planeta do bem-estar e também das mais elementarespossibilidades de sobrevivência. A segunda globalização tem ori-gem neste segundo quadro, contraditório e instável.

Não é um fenômeno e uma mudança insignificantes, e tam-bém não é o único. Manifestou-se com uma violência desconheci-da e se fez evidente no dia 11 de setembro um outro fenômenoque assinala outro aspecto da crise da “primeira globalização”. Fezvir à tona um novo e impensável tipo de exclusão de categorias dopensamento único. Aquela de quem recusa, não somente o mode-lo econômico e social proposto pela modernização capitalista, masa própria civilização ocidental. Uma exclusão que promove umprocesso cultural que não prevê nem busca algum momento deintegração, no qual se pode desenvolver o fundamentalismo e ondeé possível criar esta mescla cultural de um terrorismo que nasce ese constitui sobre um pensamento político autônomo.

A resposta dada com a guerra, por parte de quem pareciafechado em certezas inabaláveis e foi atingido, não é mais que oreconhecimento da falência da globalização como momento dehegemonia e de cooptação. É também outra prova de que a pri-meira forma de globalização não consegue mais ser propulsora eque deve-se readaptar aos tempos da crise, levando em conside-ração, também, o combate violento com aquela parte do mundonão integrada nos processos econômicos, sociais e culturais.

E ela – a guerra – tem um forte componente econômico,quer porque o controle das reservas petrolíferas é um dos ele-mentos da desavença, quer porque levou a propostas de políticaseconômicas e governamentais que a primeira globalização que-ria eliminar. Refiro-me às abrangentes intervenções públicas queo governo dos Estados Unidos está planejando.

Para revelar plenamente a incoerência do processo deglobalização, volta à cena o espectro da crise econômica, que

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investe também contra os Estados Unidos, o país locomotor dodesenvolvimento, o país cujo modelo econômico e social é maisfavorável aos seus processos.

Mas a globalização também entra em crise porque, hoje, umnovo sujeito a coloca em discussão.

Em uma situação incipiente de incerteza “global”, nasce omovimento não-global, que se revelou no momento em que al-cançou uma massa crítica capaz de evidenciar todas as “crises”,provocadas pela globalização, que ainda não eram visíveis. Evi-denciou-as, conseguiu remontar os efeitos do mal-estar às suascausas. Com este nascimento e neste processo, o pensamentoúnico se rompeu, a globalização perdeu seu caráter exclusivo efundamental e apareceu no horizonte a idéia de que “um outromundo é possível”.

Quais são, então, as características desta nova fase? A precarie-dade é uma das mais evidentes. Paradoxalmente, podemos dizerque, enquanto a primeira globalização fundou sua estabilidade,sua segurança e também sua agressividade sobre a precariedadedo mundo do trabalho, nesta segunda globalização a precarieda-de se transformou em condição geral. Ela governa a existência detodos, inclusive dos próprios processos de modernização. O sím-bolo desta precariedade e desta falibilidade é, exatamente, a des-truição feita por mãos terroristas das duas torres de Manhattan.

A segunda característica é a consciência, cada vez mais difun-dida, de que, com a globalização, não estamos diante da “últimasociedade”; ela não é a única estrada para definir o futuro, não éo único e possível modelo econômico e social. Perdeu a objetivi-dade que a fazia parecer, aos olhos da maioria, quase um proces-so natural. Pode ser colocada em crise, seja por um movimentoque contesta suas razões e propõe um outro modelo, seja por umfenômeno destrutivo. E o crescimento econômico, além de não

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ser o único quadro possível, precisa também levar em considera-ção a possibilidade do aparecimento de uma crise que pode, in-clusive, transformar-se em depressão.

Nada mais é como antesNão se pode mais, na situação que descrevi, perseguir o objeti-

vo mais alto, mais político – a transformação do estado de coisasexistente – limitando-se a percorrer, de novo, os caminhos do grandee terrível século XX. É evidente que, para se chegar à transforma-ção do estado de coisas existente, é necessário agir diversamente. Éevidente que, antes de tudo, devem ser mudados os sujeitos que secandidatam a perseguir o objetivo da transformação.

Por que não podemos mais agir como antes, ao menos na-quela parte do mundo que chamamos de ocidental? Porque re-gistramos uma profunda crise política, em particular, uma crisepolítica da esquerda.

Esta revolução capitalista restauradora demoliu o compro-misso social e democrático que, na Europa, tinha-se realizadodepois da vitória contra o nazi-facismo. As conquistas dos traba-lhadores, as conquistas da classe operária, as conquistas progres-sistas e as da civilização foram agredidas a tal ponto que foiradicalmente modificado o panorama social, institucional, cul-tural e civil. Nessas condições, produziu-se um obscurecimento,um eclipse da política, porque a natureza restauradora destareestruturação capitalista colocou em discussão dois pontos docompromisso alcançado até então: uma democracia que, pro-gressivamente, alargasse os próprios horizontes a faixas sociaisantes excluídas e a autoridade do estado-nação.

Com uma regressão social e civil tão violenta, a moderniza-ção capitalista foi também capaz de exercitar uma hegemoniatão forte que se pôde, então, falar de “pensamento único”.

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A crise política na Europa foi, sobretudo, uma crise políticada esquerda, que se manifestou na crise de todos os partidos co-munistas da Europa e em uma grande parte daquele que chama-mos ocidente, com uma mudança radical das formaçõessocialdemocráticas, que se transformaram, segundo a inspiraçãoda “terceira via”, em formações neoliberais e neocentristas.

O eclipse da política e a crise política da esquerda não de-terminaram uma total destruição porque se acenderam algu-mas chamas de resistência política e social em nome deidentidades, em nome de ideologias, em nome de reivindica-ções sociais. Em todo caso, resistência. Uma resistência impor-tante, mas cujos modelos, sujeitos, conteúdos não são maiscapazes de serem propulsores e regeneradores da política. Nãose pode mais agir como antes.

Pode-se, porém, recomeçar. A globalização capitalista já en-trou em crise. O que quer dizer, simplesmente, que suas injusti-ças, suas contradições, seus desequilíbrios vieram à luz. Isto já setinha verificado e era já sabido, em maior ou menor medida.Sabia-se que aumentava a distância entre ricos e pobres, que cres-cia o número de mortos por fome no mundo, que as conquistasda civilização vinham sendo devastadas nos países de capitalis-mo avançado e que uma tecnocracia neocapitalista tomava o lu-gar da soberania nacional e da democracia. Hoje, podem-se veroutras coisas. Vê-se a crise da globalização, ou seja, a sua incapa-cidade de dar espaço, não mais a uma igualdade social, negada jána raiz, mas também a um desenvolvimento quantitativo.

Por outro lado, a política renasce a partir dos movimentosque se constituíram na crítica e na contestação a esta moderniza-ção capitalista, devido à traição de expectativas criadas ao redorda modernização, enquanto se consuma a falência de todas aspolíticas de colaboração tentadas com ela. O centro-esquerda,

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desde Clinton a Schroeder, a Blair, a D’Alema, faliu totalmente.Faliu em relação à tarefa de dar à política a missão de governaresta revolução através da moderação das políticas neoliberais eatravés de novas regras. Esta hipótese foi eliminada, mas acaboupor emergir como novo fundamento de uma política de esquer-da, uma crítica radical à globalização. A última fronteira de umapolítica que, definindo-se reformista, foi somente um acompa-nhamento da revolução capitalista, reduziu-se a cacos e emergiupor sua vez como única possível refundação da política, ummovimento que contesta nas raízes a lógica e a inspiração, a na-tureza da globalização. Efetivamente, este movimento, de Seattle,fala de um outro mundo, possível, redescobrindo a política noseu ponto mais alto, a idéia de transformação do mundo e dasociedade existentes.

O primeiro movimento depois do século XXQue movimento é este e o que pede? É o primeiro movimen-

to pós-novecentos. Distingue-se de todos os movimentos operá-rios e de contestação que vivenciaram este grande e terrível século.É uma nova subjetividade que representará o futuro do mundo.Este movimento, na verdade, não é um fenômeno excepcional econjuntural. É uma longa onda que tem o mesmo sentido que omovimento operário teve no século XX. Atravessará o futurocomo uma crítica permanente a esta globalização capitalista.Naturalmente, está construção e, por isso, é complexo, não tem,ainda, uma “idéia força” unitária, mas contém todos os elemen-tos críticos à globalização: os de raiz operária, os que se origina-ram com o feminismo e com a cultura de gênero, os ambientalistase ecologistas, os que nasceram a partir de necessidades sociaisinsustentáveis e dramáticas, da fome e doenças do sul do mundoe da alienação do norte do mundo.

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Nos últimos anos, desde Seattle até os dias de hoje, este mo-vimento manteve sua marcha, não permanecendo, porém, igualao que tem sido. Dentro da idéia de que um outro mundo épossível, vem crescendo a capacidade de uma outra propostapolítica. Não é verdade que este movimento tenha vocações pre-dominantemente éticas e redistribuidoras. Certamente, não seresolveu a questão do sujeito e dos sujeitos da transformação:mas esta questão já foi colocada. Ao mesmo modo, amadureceuum nível de consciência crítica agora já mais anticapitalista queantiliberal. Isso não significa que tenha sido completamente ela-borada uma hipótese de superação do sistema, mas o processoque nos leva, desde a denúncia de injustiças sociais e econômicasaté a individualização de suas causas, é iniciado e já se encontra“em andamento”. Quando, por exemplo, se fala de direito à águacomo necessidade essencial, universal, coloca-se em movimentoum percurso reivindicador, de dimensão tanto local quanto glo-bal, que pode fazer explodir instâncias transformadoras, não so-mente relativas à relação da humanidade com o meio-ambiente,mas também relativas às composições políticas, aos poderes, àpropriedade.

No movimento existem também tendências, propensões, di-versidades significativas. Em Porto Alegre entraram em cena, pelaprimeira vez, os “reformistas”. Uma demonstração, uma novademonstração de que o movimento é capaz de atravessar territó-rios que, até hoje, lhe tinham sido proibidos a priori, ganhandoconsensos em âmbitos não afins e que, usando uma terminolo-gia clássica, ganhando hegemonia. É também a demonstraçãode que uma parte dos reformistas, diante da crise irreversível do“reformismo real”, diante da derrota mundial do centro-esquer-da, intui a capacidade de abrir, de qualquer modo, uma novaestação. Penso a Soares, como exemplo de todos aqueles que,

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mesmo permanecendo no interior de uma lógica reformista, ad-vertem para a necessidade de uma refundação, que têm um com-portamento diverso da cínica arrogância dos reformistas reaisainda no poder, como Blair e Schroeder.

Trata-se de uma interessante estratégia de atenção, quase umaforma de “neomoroteísmo”. Diante dos movimentos de 68 e 69,Aldo Moro propôs equilíbros mais avançados. Hoje, por partedos reformistas, estamos diante de algo análogo.

Mas, no movimento, em relação e em reação aos reformistas,toma corpo uma tendência que podemos definir antipartidária,que tenta preservá-lo de toda contaminação através de uma es-pécie de barreira separatista. O movimento pode somente fazero movimento, afirma-se.

Estas são, por exemplo, as posições da ATTAC francesa.Há, também, uma terceira componente, aquela que propõe

o socialismo como meta final do mundo possível de serconstruído. É uma idéia que não percorre as vias tradicionais daciência da revolução, mas se expressa, sobretudo, por meio deexperiência social radical. A idéia socialista que há entre osmetalúrgicos da CUT, entre os militantes de Via Campesina,entre os Sem Terra brasileiros, não é periférica e também não évivida como herança histórica: reapresenta-se quase, em um es-tado nascente, como solução racional para as injustiças do mun-do, com êxito possível da necessidade de liberdade. Estastendências lançam de novo, com força, a relação entre “new glo-bal” e partidos anticapitalistas e comunistas.

A refundação da políticaEste movimento é a grande novidade do nosso tempo e é

uma verdadeira ocasião para a refundação da política. Uma oca-sião enorme e extrema. Grande porque é uma oportunidade.

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Extrema porque, se a política da esquerda perder esta ocasião,perde a possibilidade de se refundar no novo século. Estamos,então, diante de uma passagem crucial. Quanto maior é a possi-bilidade de dar nova vida à política, tanto mais alto é o risco demorte. O movimento existe e, de qualquer forma, irá pela suaestrada, mas sem esta refundação da política, encontrar-se-á sem-pre privado de uma força, da possibilidade de se propor ao inte-rior da batalha que o novo adversário histórico propõe.

Quem tem origem na história do movimento operário e co-munista tem a obrigação de se confrontar com o problema daruptura histórica com aquele que denominamos modelo alemão,ou seja, com o modelo lassalliano de relação partido-sindicato-cooperativas, que inspirou todos os movimentos socialistas, co-munistas, socialdemocráticos. Para redescobrir a validez das razõesdo nascimento do movimento operário, aquele modelo tem deser superado, definindo uma nova relação entre as forças políti-cas e o movimento, que não pode mais ser uma relação entre paie filho. As forças políticas de esquerda, quer se chamem comu-nistas, quer de outro modo, devem perder a presunção teórica deserem o guia externo do movimento em nome de uma primaziaideológica teórica, de uma cátedra que ninguém está disposto alhe reconhecer. A reconstrução de uma esquerda radical,neocomunista, passa por recolocação em discussão esta relaçãohierárquica.

De que modo? Antes de tudo, modificando a relação entre oempenho na sociedade e o empenho nas instituições. Asinstituções são importantes, mas o pêndulo da política há de serlevado à sociedade, entre as forças que nela agem, às subjetivida-des críticas. Não sei se as instituições seguirão o passo. Digo,porém, que a refundação da política tem de ser reconstruída nasociedade.

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Tem, também, de ser revista a relação entre poder e processode transformação. Não no sentido de que o poder não é impor-tante, mas no sentido de se perder o hábito mental de fazer pre-ceder a conquista do poder ao processo de transformação. É estehábito mental que nos levou da conquista do Palácio de Invernoà dramaticidade das condições e à ruína dos países do Leste Eu-ropeu. E que, hoje, leva a esquerda no poder a governar os pro-cessos existentes sem mudar nada, ou quase nada. Ou entãointroduzindo, sim, uma mudança, mas na natureza da esquerda,em sua identidade, nas suas categorias, reduzindo-a àquela partedo mundo que se deveria combater.

Deve-se recolocar em discussão a relação entre formação dedecisões no interior do partido e formação de decisões no movi-mento. O partido deve ter a ambição de fazer uma proposta,mas deverá também confrontá-la com o movimento e aceitar asconclusões que derivam deste confronto.

Naturalmente, seria somente um início, mas seria o início deuma esquerda alternativa, isto é, de uma nova esquerdaanticapitalista da qual os comunistas poderiam ser uma parte,mas não o todo, o início de um processo de transformação, ouseja, um processo revolucionário.

Seria, no final das contas, o início do retorno a um caminhoem direção ao comunismo.

O socialismo hojeO socialismo hoje é necessário, depois da derrota do movi-

mento operário do século XX e diante de um capitalismo, o daglobalização, que se fez ainda mais perigoso. O grande confron-to do movimento operário com o capitalismo, no século passa-do, terminou com a nossa derrota, mas esta derrota não cancela,ao contrário, reforça as razões pelas quais nasceu o socialismo, e

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à luta de classes resta um instrumento decisivo para o desenvol-vimento da civilização e da história.

O problema da revolução é atual. Se faz ainda mais atual nestenovo capitalismo, que transforma o mundo deixando inalterado opoder do capital, ou melhor, criando um novo domínio.

Não é só uma questão de injustiça, é também uma questão debarbárie. Esta revolução capitalista corre o risco de destruir a hu-manidade e, efetivamente, precisa da guerra para poder funcionar.

Este capitalismo produz uma nova barbárie. Como afirmavaKarl Marx, se a luta de classes não produz uma nova civilização,o risco é a dissolução de ambas as classes em luta. Por isso osocialismo é necessário. E hoje é também possível. Depois daescuridão desses anos, chegou de novo o dia. Este é o amanhecerdo movimento dos movimentos, dos povos de Seattle. Que nãose iludam os novos padrões do mundo e os senhores da guerra:este movimento irá longe. Neste movimento existem forças di-versas, histórias diversas, culturas diversas, mas, pela primeiravez, estas diferenças não são um ponto fraco, mas sim um pontode força. Este movimento, em todo o mundo, trouxe ao cenáriopolítico uma nova geração. Não é ainda um movimento com-pletamente anticapitalista, mas contém todas as potencialidadespara sê-lo, para construir uma alternativa ao capitalismo, paraconstruir um outro mundo .

Este movimento permite que se mantenham juntas todas asforças críticas, sobre bases discriminantes simples. Podem e devemfazer parte dele todos os que são contra a guerra e contra as políti-cas neoliberais. Ele é o nosso futuro, mas necessitamos nos per-guntar o que ainda falta para que o futuro possa ser conquistado.Para recomeçar, devemos fazer as contas com a nossa história, re-fletindo também sobre erros e tragédias que a atravessaram, senãonão conseguiremos entender porque fomos derrotados. Somos

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anões sentados sobre as costas dos gigantes, mas devemos ter acoragem intelectual de criticar os gigantes, de examinar critica-mente o movimento socialista. Movimento que, no século passa-do, teve três funções fundamentais: foi o movimento de luta detodas as classes subalternas no mundo, foi uma teoria de crítica aocapitalismo e foi a base da construção de governos nacionais quese disseram socialistas. Temos de ter a coragem de admitir que estaúltima experiência morreu, e que não é repetível. É necessário dizê-lo agora para que o morto não coma o vivo. Aquela experiêncianão foi derrotada somente pelo capitalismo, foi-o, sobretudo, pe-los seus próprios erros. Foi vencida porque uma grande idéia deliberação do mundo se transformou em uma forma de opressãoestatal. Temos de deixar esses erros para trás de forma definitiva,valorizando a experiência de luta do proletariado no mundo eredescobrindo o extraordinário valor do ponto de partida de Marx.

No século passado, aprendemos algumas coisas importantes:a revolução, a transformação da sociedade capitalista ou é mun-dial ou não o é. Aprendemos que não é suficiente tomar o poder,é necessário transformar o poder se quisermos transformar a so-ciedade. Aprendemos que a primazia da política não vive nasinstituições e no governo, mas na realidade social e na vida dasclasses e das pessoas. Que a ciência, a economia e o governo nãosão neutros. Que precisamos construir, nós mesmos, uma novaciência da sociedade e, para construí-la, não são suficientes osconhecimentos e os saberes oficiais e formalizados. Não basta oque se aprende na universidade, serve aquilo que se aprende navida. Serve a experiência. Então, sem a experiência dos campo-neses, dos trabalhadores, dos jovens, das mulheres, não se cons-trói a nova ciência da sociedade.

O que precisamos aprender ainda? Temos de aprender a nosabrirmos ao mundo, deixarmos de lado as nossas prevenções teóri-

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cas, como também as ambições vanguardistas dos partidos domovimento operário. A política do socialismo deve estar no povocomo o peixe está na água. Necessitamos construir uma culturaporque a nossa cultura de classe é necessária, mas não suficiente.Há outras culturas críticas igualmente importantes: a cultura dasmulheres, a cultura dos ecologistas, a cultura da paz, as culturas doHemisfério Sul. Temos de nos abrir a experiências diversas da nos-sa. É importante a reivindicação e a luta operária, mas são igual-mente importantes experiências de vida de outras realidades que,mesmo não sendo socialistas, exprimem instâncias de liberação.

Para construir o socialismo, precisamos construir um novomovimento operário em escala mundial e um novo proletariado,composto não somente pelos que trabalham nas fábricas, maspor todos aqueles e todas aquelas que se encontram subordina-dos ao domínio capitalista: um novo proletariado para uma novaestratégia da liberação. Precisamos de um novo sujeito políticoque, creio, estamos começando a construir.

A refundação de uma estratégia da transformação da socie-dade capitalista e a refundação dos partidos que querem o socia-lismo recomeça com a participação popular e com a crítica dospovos ao poder capitalista. Gramsci falava sobre o partido datransformação socialista como se se tratasse de um intelectualcoletivo. Creio que devemos ter, agora, a coragem da transfor-mação: não é o partido que deve ser o intelectual coletivo, é omovimento que tem de ser o intelectual coletivo, que deve pen-sar na revolução e praticar a transformação.

Dentro do movimento, pode viver o projeto de uma forçapolítica; fora do movimento, perde o socialismo e o capitalismovence. O movimento nos oferece, hoje, uma ocasião. Esforcemo-nos para não perdê-la.

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Ser socialista significa ser radical. A palavra “radical” vem dolatim radix, “raiz”. Radical é aquele que ataca os problemas pelaraiz. Como, or exemplo, os companheiros do MST e da Confe-deração Camponesa da França que, no ano passado, por ocasiãodo 1o Fórum Social Mundial, organizaram um passeio pelo inte-rior do Rio Grande do Sul para arrancar, pela raiz, plantaçõestransgênicas da multinacional Monsanto. Qual é a raiz dos pro-blemas sofridos pela humanidade neste começo de século? Qualé a raiz do desemprego, da pobreza, da monstruosa desigualdadesocial? Qual é a raiz do neoliberalismo, da dívida externa, daespeculação financeira incontrolável, dos programas de “ajusteestrutural”, da ditadura do FMI? A raiz é o sistema capitalistamundial, a lógica global da acumulação capitalista, a hegemoniamundial do grande capital financeiro, a propriedade capitalistado meios de produção. Muitos nesse Fórum Social Mundial com-partilhamos este diagnóstico. Mas precisamos começar a discutiras alternativas. E, se buscamos uma alternativa radical, é a ques-tão do socialismo que se coloca na ordem do dia.

V - SOCIALISMO

Michael Löwy

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O socialismo a que me refiro não é aquele “socialismo” quedesmoronou depois da queda do muro de Berlim, pobre carica-tura burocratica de um sistema político que há muito tempo jáhavia perdido seu espírito revolucionário inicial. Tampouco éaquele “socialismo” de certos partidos que se declaram socialistasou socialdemocratas, mas não passam de social-liberais, simplesadministradores da ordem estabelecida. Quando me refiro aosocialismo, refiro-me à utopia socialista, ao sonho radical de jus-tiça social e da comunidade de bens, que tem séculos de históriae que encontramos nas palavras de fogo dos profetas bíblicos, naprática fraternal das primeiras comunidades cristãs, nas revoltascamponesas da Idade Média; um sonho que encontrou sua for-ma moderna e revolucionária no pensamento e na ação de KarlMarx e Frederico Engels. O socialismo de que estou falando éaquele que inspirou os mártires do “1° de Maio”, de Chicago, etantos outros combatentes assassinados pelas classes dominan-tes, que sacrificaram suas vidas pelo ideal socialista da emancipa-ção dos trabalhadores da cidade e do campo: Emiliano Zapata eRosa Luxemburgo, Farabundo Marti e Leon Trotsky, Buenaven-tura Durruti e Antonio Gramsci, Camilo Torres e ErnestoGuevara, Carlos Marighella e Chico Mendes.

No que consiste o socialismo? Ele não tem nada de misteriosoou obscuro. Seu princípio fundamental é transparente e claro comoágua da cascata: os meios de produção devem pertencer à socieda-de e as grandes decisões sobre investimentos, produção e distribui-ção não devem ser abandonadas às leis cegas do mercado, a umpunhado de exploradores, ou a uma camarilha burocrática, mastomadas, depois de um amplo e pluralista debate democrático,pelo conjunto da população. Nada mais simples, mas exige, paraser realizado, uma verdadeira revolução, a supressão do sistemacapitalista e do poder das classes dominantes...

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O socialismo significa, concretamente, que a produção nãoserá mais submetida às exigências do lucro, da acumulação docapital, da produção em massa de mercadorias inúteis ou noci-vas, mas voltada para a satisfação das necessidades sociais: ali-mentação, vestuário, habitação, saneamento básico, água,educação, saúde, cultura. Significa também o fim da discrimina-ção racial – contra o negro, o mestiço, o indígena – da opressãodas mulheres, da desigualdade social, da destruição do meioambiente, das guerras imperialistas. E aqui, na América Latina,significa antes de tudo: o fim de séculos de dominação colonial eimperialista sobre os povos de nosso continente.

Um dos primeiros marxistas latino-americanos, o peruano JoséCarlos Mariátegui, já escrevia em 1928: “Contra uma América doNorte capitalista, plutocrática, imperialista, só é possível opor, demaneira eficáz, uma América, latina ou ibera, socialista”.1 Qua-renta anos mais tarde, Che Guevara retoma esta bandeira socialis-ta e antiimperialista, que havia sido esquecida por tanto tempo, e,polemizando com os partidários de uma suposta “revolução de-mocrático-nacional em aliança com a burguesia nacional” (políti-ca que predominava na esquerda latino-americana nesta época)afirma: “as burguesias autóctones perderam toda sua capacidadede oposição ao imperialismo – se é que alguma vez a tiveram – eagora são apenas seu reboque. Não há mudanças a fazer, ou revo-lução socialista ou caricatura de revolução”.2 Com esta conclusãode sua famosa “Mensagem à Tricontinental”, de 1967, ele cortouo nó que amarrava a esquerda no continente latino-americano e

1 J.C.Mariátegui, “Aniversario y Balance”, 1928, Indeologia y Politica. Lima, Amauta,1971, p. 248.2 Ernesto Che Guevara, “Mensaje a la Tricontinental”, 1967, in Obra revolucionaria.Mexico, ERA, 1973, p. 645.

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abriu um formidável horizonte de esperanças que até hoje iluminanossas consciências.

Qual socialismo? Cada vez mais crítico, nos seus últimos anos,em relação às experiências socialistas européias, Ernesto Guevarabuscava, para Cuba e para a América Latina, um novo caminhosocialista. Também aqui suas idéias coincidem com as idéias deJosé Carlos Mariátegui, que havia escrito no mesmo documentode 1928: “Não queremos, certamente, que o socialismo seja nasAméricas calco e cópia. Deve ser criação heróica. Temos de darvida, com nossa própria realidade, com nossa própria lingua-gem, ao socialismo indo-americano”.3

Não sabemos se Guevara conhecia este texto de Mariátegui.4

Mas, de qualquer forma, se pode-se considerar que boa parte desua reflexão e de sua prática política, sobretudo no curso dosanos 60, tinha como objetivo sair do beco sem saída a que levavaa imitação, o “calco e cópia”, do modelo soviético. Suas idéiassobre a construção do socialismo são uma tentativa de “criaçãoheróica” de algo novo, a busca – interrompida por sua morte –de um paradigma de socialismo diferente das caricaturas buro-cráticas até então existentes.

O motor essencial dessa busca de um novo caminho (maisalém de questões econômicas específicas) é a convicção de que osocialismo não tem sentido – e não pode triunfar – se não repre-senta um projeto de civilização, uma ética social, um modelo desociedade totalmente antagônico aos valores do individualismomesquinho, do egoísmo feroz, da competição, da guerra de to-

3 J.C. Mariátegui, op.cit., p. 249.4 Possivelmente o havia lido, posto que sua primeira companheira, a socialista peruanaHilda Gadea, lhe havia emprestado os escritos deste autor nos anos que precederam arevolução cubana.

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dos contra todos da “civilização capitalista” – este mundo noqual, dizia Che, o “homem é um lobo para os outros homens”.

A construção do socialismo é inseparável de certos valoreséticos, contrariamente ao que afirmavam as concepçõesdogmáticas e economicistas, que só consideravam “o desenvolvi-mento das forças produtivas”. Na famosa entrevista com o jor-nalista francês Jean Daniel (julho de 1963), Guevara insistia: “osocialismo econômico sem a moral comunista não me interessa.Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a aliena-ção. (...) Se o comunismo passar por cima dos fatos da consciên-cia, poderá ser um método de distribuição, mas não será maisuma moral revolucionária”.5 Se o socialismo pretende lutar con-tra o capitalismo e vencê-lo em seu próprio terreno (o terreno doprodutivismo e do consumismo), utilizando suas próprias armas(a forma mercantil, a concorrência), está condenado ao fracasso.

O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma novasociedade, baseada em valores de igualdade, solidariedade, cole-tivismo, livre discussão e participação popular. Tanto suas críti-cas – crescentes – ao modelo soviético, quanto sua prática comodirigente político e sua reflexão sobre a experiência cubana sãoinspiradas por esta utopia revolucionária.

A questão da planificação socialista ocupa um lugar centralem seus escritos econômicos. Mas, em seus últimos anos, a ques-tão da democracia socialista na planificação começa a aparecercomo uma questão essencial. Por exemplo, numa crítica ao Ma-nual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS,redigida por volta de 1965-66, ele avança um princípio demo-crático fundamental: na planificação socialista, é o próprio povo,

5 In L’Express, 25 de julio del 1963, p. 9.

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os trabalhadores, “as massas”, que deve tomar as grandes deci-sões econômicas:

“Em contradição com uma concepção do plano como deci-são econômica das massas conscientes dos interesses populares,se oferece um placebo, no qual só os elementos econômicos de-cidem o destino coletivo. É um procedimento mecanicista,antimarxista. As massas devem ter a possibilidade de dirigir seudestino, de decidir qual é a parte da produção que será destinadaà acumulação e qual deverá ser consumida. A técnica econômicadeve operar nos limites dessas indicações e a consciência dasmassas deve assegurar sua realização”.6

Contra a monopolização das decisões por um punhado detecnocratas, o Che insistia na necessidade de uma verdadeiraparticipação popular: os grandes problemas socioeconômicos deuma nação não são técnicos, mas, sim, políticos e devem ser ob-jeto de debate e decisão democrática.

A reflexão de Guevara sobre o socialismo não concerne uni-camente à Cuba e à América Latina: ela é universal, mundial,internacional. Para o Che, o verdadeiro socialista, o verdadeirorevolucionário é aquele que considera sempre os grandes proble-mas da humanidade como seus problemas pessoais, é aquele queé capaz de “sentir-se angustiado quando se assassina um ser hu-mano em qualquer lugar do mundo e sentir-se entusiasmadoquando, em algum lugar do mundo, se levanta uma nova ban-deira de liberdade”.7 Há uma frase de José Marti que Ernesto

6 Por razões inexplicáveis, este documento ainda não foi publicado. Citamos uma passa-gem mencionada no artigo do economista cubano Carlos Tablada, “Le marxisme du CheGuevara”. Alternatives Sud, vol. III, 1996, 2, p. 173.7 E. Che Guevara, Obras 1957-1967. La Habana, Casa de las Americas, 1970, tomo II,pp. 173, 307, cf. também p. 432: “La revolución cubana... es una revolución concaracteristicas humanistas. Es solidaria con todos los pueblos oprimidos del mundo”.

Desafios da luta pelo socialismo 81

Guevara citava com freqüência em seus discursos e na qual via “abandeira da dignidade humana”: “Todo ser humano verdadeirodeve sentir na sua face a bofetada dada em qualquer outro serhumano”. O internacionalismo para Guevara – ao mesmo tem-po modo de vida, fé profana, imperativo categórico e pátria espi-ritual – era inseparável da idéia mesma de socialismo, enquantohumanismo revolucionário, enquanto emancipação dos explo-rados e dos oprimidos do mundo inteiro, numa luta sem tréguasnem fronteiras contra o imperialismo e contra a ditadura do ca-pital.

As balas assasinas da CIA e de seus sócios bolivianos inter-romperam em outubro de 1967 este trabalho de “criação herói-ca” de um novo socialismo revolucionário, democrático,humanista e internacionalista.

Nos últimos trinta anos, aprendemos a enriquecer nossa idéiado socialismo com a contribuição do movimento das mulheres,dos movimentos ecológicos, das lutas de negros e indígenas con-tra a dicriminação. Assim é o processo de construção do projetosocialista: não um edifício pronto e acabado, mas um imensocanteiro de obras, onde se trabalha para o futuro, sem esqueceras lições do passado.

O socialismo exige uma transformação revolucionária da so-ciedade. Não se trata de esperar que o capitalismo desmoronepor suas próprias contradições. Como dizia Walter Benjamin,nossa geração aprendeu uma lição importante: o capitalismo nãovai morrer de morte natural. Para que desapareça o mais rapida-

Como disse simples e poeticamente Roberto Fernandez Retamar: ao Che “no le preocupabaestar al dia: lo que le preocupaba era ofrecer al mediodia de la justicia el caudal de susconocimientos. Y la justicia le reclamo vincularse con los humillados y ofendidos, echarsu suerte con los pobres de la tierra”, “El Che, imagen del pueblo”, Contracorriente. LaHabana, diciembre, 1996, n° 6, p. 4.

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mente possível, não devemos esperar que “as condições amadu-reçam”, mas agir plantando as sementes do socialismo. Cada le-vante indígena, como o dos zapatistas, em Chiapas, ou daCONAIE, no Equador, cada ocupação de terras do MST, cadainsurreição popular, como o “argentinazo”, cada mobilizaçãocontra a globalização capitalista, como as de Seattle ou de Gêno-va, cada reunião como esta, de dezenas de milhares de pessõasque sonham com um futuro diferente, é uma semente de socia-lismo. Depende de nós que estas sementes cresçam, dêem árvo-res, galhos, folhas e frutos.

Desafios da luta pelo socialismo 83

IntroduçãoUma discussão sobre a luta pelo socialismo nos dias de hoje

deveria começar pela definição do que é e do que não é socialis-mo. É importante ter clareza política, não só das falsas alterna-tivas, mas também dos componentes básicos da sociedadesocialista. Este ensaio tratará do assunto, analisando critica-mente três das mais influentes ideologias anti-socialistas, de-fensoras de uma esquerda renovada e que apresentam umenfoque alternativo de socialismo. Em seguida, será apresenta-da uma discussão da via militante ao socialismo e uma críticadas ilusões a respeito da política eleitoral. Por último, será exa-minado o atual contexto mundial e os desafios e oportunida-des que se apresentam à Esquerda frente à ofensiva imperialistade Washington.

O que não é socialismoA esquerda enfrenta, em essência, três alternativas falsas de

socialismo: 1) a “terceira via”, promovida por Tony Blair; a

VI - A LUTA PELO SOCIALISMONA ATUALIDADE

James Petras

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Socialdemocracia européia e do Terceiro Mundo e 3) o “socialismode mercado” ao estilo chinês.

A “Terceira Via”, proposta pelo líder do Partido Trabalhistainglês, Tony Blair, pretende apresentar uma outra relação (umaterceira via) entre a propriedade pública dos meios de produçãoe dos serviços sociais e o mercado liberal não regulamentado. Defato, reúne o que há de pior:uma enorme e dispendiosa burocra-cia estatal, a serviço das poderosas instituições financeiras e dosbanqueiros, e uma legislação autoritária, que transgride as liber-dades individuais. Na prática, a “Terceira Via” de Blair é umcaminho direto para a guerra, para a crise e para a intensificaçãodas privatizações às custas dos consumidores, do meio ambientee dos trabalhadores. O regime de Blair tem sido um ativo e sub-misso colaborador de Washington nos selvagens bombardeiosde civis na Iugoslávia, no Afeganistão e no Iraque, assim comona conquista e ocupação do Afeganistão, de Kôsovo e daMacedônia. A “Terceira Via” promoveu a desindustrialização daInglaterra, o “boom” especulativo das telecomunicações e seucolapso, precipitando o país na atual recessão. O programa deprivatizações de Blair solapou o plano nacional de saúde, trans-formou o sistema de transporte e de infra-estrutura no pior daEuropa Ocidental e jogou os trabalhadores ingleses no pior lu-gar em relação aos direitos sociais. Sem dúvida alguma, a “Ter-ceira Via” não passa de um eufemismo para o neoliberalismoautoritário e para o militarismo.

A segunda versão da burguesia para o socialismo é asocialdemocracia. Durante os últimos vinte anos, os partidossocialdemocratas e populistas da Europa e da América Latinaabandonaram seus programas reformistas, de bem-estar social,em prol de políticas neoliberais, subordinando-se à hegemoniaimperialista dos Estados Unidos, e, na América Latina, adotan-

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do programas de ajusta estrutural do FMI. Num breve espaço detempo, os socialdemocratas e os populistas converteram-se aoneoliberalismo, fazendo a redistribuição da riqueza entre as clas-ses altas e o capital estrangeiro. Não são mais partidos reformis-tas das classes trabalhadoras, são partidos reacionários,pró-imperialistas e neoliberais. Os melhores exemplos desta con-versão são, no Brasil, o PSDB, de Fernando Henrique Cardoso,e, na Argentina, o Partido Peronista.

O terceiro exemplo de falso socialismo é o chamado “socia-lismo de mercado” chinês. A realidade política da China nosmostra a subordinação da propriedade social ao mercado capita-lista. O “socialismo” chinês não tem absolutamente nada de so-cialista: os trabalhadores chineses têm as jornadas de trabalhomais extensas, os piores salários e os menores direitos sociais detodos os trabalhadores asiáticos. Os capitalistas chineses e seussócios de outros países têm lucros altíssimos e, ilegalmente, en-viam ao estrangeiro, anualmente, entre 30 e 40 bilhões de dóla-res, provocando o surgimento das maiores desigualdades sociaisda Ásia. O Estado socializa as dívidas das empresas privadas e daselites estatais corruptas, que roubam milhões do tesouro nacio-nal para financiar seus investimentos,suas contas no estrangeiroe seus estilos de vida de um luxo obsceno. O “Socialismo deMercado” é uma ideologia usada para justificar a transferênciada propriedade coletiva para o capitalismo selvagem.

O que o socialismo significa atualmenteEm contraposição a tais exemplos de “falso socialismo”,

atualmente o verdadeiro socialismo, em primeiro lugar, implicana socialização dos meios de produção, na transformação dapropriedade e no controle dos bancos, das fábricas, da terra, dosserviços sociais, do comércio exterior, assim como na transferência

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do poder dos capitalistas para os produtores diretos, para osconsumidores e para os defensores do meio ambiente. Osocialismo significa oposição a todas as guerras imperialistas, àsintervenções militares, significa o apoio à autodeterminação dasnações e dos movimentos de libertação nacional. Num regimesocialista, a representação e as eleições terão lugar nos locais detrabalho, nos bairros e nas cooperativas, buscando a formação deuma assembléia nacional, que devera prestar contas diretamenteàs organizações dos trabalhadores, dos camponeses e dos consumi-dores. O socialismo promoverá profundas reformas na família,no trabalho e nos serviços sociais para facilitar a igualdade entrehomens e mulheres O orçamento deverá ser modificado para,em vez de subsidiar os capitalistas e de pagar a dívida externa, sercanalizado para um amplo e gratuito serviço de saúde, educaçãoe lazer para o povo em geral.

As diferenças entre o verdadeiro e o falso socialismo são fun-damentais e das quais não se pode esquivar. Não existem basespara uma aliança com o falso socialismo. Os antagonismos sociaisentre as classes manifestam-se no conflito entre o verdadeiro e ofalso socialismo. As diferenças não são apenas intelectuais; são,também, práticas.

A via militante ao socialismoO caminho para o socialismo implica numa série de ativi-

dades práticas para os militantes socialistas, em contrapartidaàs práticas elitistas dos líderes políticos do falso socialismo. Naluta pelo socialismo, os militantes atuam em vários níveis deação: 1) no comprometimento direto com as lutas cotidianasnos bairros, nos locais de trabalho e nas ruas; 2) na organizaçãodo movimento de massas, sem sectarismos, para promover umareforma agrária integral, para promover a socialização das fá-

Desafios da luta pelo socialismo 87

bricas, da propriedade pública e dos bancos, assim como pro-mover o controle estatal do comércio exterior; 3) na organiza-ção dos militantes para a tomada do poder político – e nãodando importância apenas à participação em fóruns internacio-nais, ou se reunindo com outros turistas de esquerda sem ne-nhuma base social em seus países de origem; 4) na reunião dosmilitantes em busca da solução dos problemas do dia-a-dia,dos problemas das massas e para estudar os processos políticos,as estruturas do poder, assim como a elaboração de alternativasrevolucionárias; 5) na coordenação das lutas das massas com acriação de formas socialistas de organização e de participaçãoem assembléias deliberativas; 6) na não aceitação de líderes quecultivam o personalismo e que subordinam as lutas e as organi-zações populares a seu poder pessoal; 7) no investimento detempo e recursos pelos militantes na educação política de diri-gentes e organizadores, para que sejam capazes de tomar deci-sões difíceis, com discussão das táticas e da estratégia nasassembléias; 8) no enfrentamento, pelos dirigentes, dos mes-mos riscos a que estão sujeitos os seus dirigidos – os dirigentesde vem estar na linha de frente da luta, deixand0o de lado apolítica de gabinete. Para inspirar, na luta de massas, uma ati-tude resoluta, é importante “mostrar a cara”.

A história e a experiência nos mostram que a ação populardireta de massas é o único caminho viável para se conseguir asmudanças fundamentais no poder, na propriedade e na auto-estima. Eleições para parlamentos impotentes não conduziram anenhuma reforma digna desse nome nos últimos vinte e cincoanos. Dirigentes populares que começam seu trabalho políticona esquerda e, depois, são eleitos para o parlamento, são assimi-lados pelo sistema e acabam discursando ao povo e trabalhandopara o capital. No caso, a trajetória de Lula confirma esta análise.

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Ele começou liderando lutas populares e terminou abraçando adireita neoliberal em uma coligação eleitoral.

Combater ilusões: Eleições, a via parlamentare as reformas

A aproximação do Partido dos Trabalhadores , no Brasil, à po-lítica neoliberal a possível escolha pelo candidato a Presidente daRepública pelo PT – Lula – de um grande empresário direitista –José de Alencar – como candidato à vice-Presidência na chapapetista, revela a decadência da esquerda parlamentar em sua evo-lução rumo à direita. Durante os últimos 25 anos de eleições par-lamentares, em que as massas, de maneira uniforme, serviram debase aos políticos burgueses e aos grandes financiadores em todasas campanhas eleitorais, a grande maioria da classe trabalhadora,dos camponeses e dos desempregados, sofreu uma severa quedaem seu nível de vida. As campanhas eleitorais burguesas serviramde fachada para legitimar o poder e as decisões das elites não eleitasdo FMI, do Banco Mundial e dos funcionários nativos a serviçoda burguesia no poder. Como resultado, os líderes políticos eleitoslevam adiante políticas conservadoras: a concentração das terras àscustas dos camponeses sem terra e dos pequenos produtores; acorrosão dos direitos democráticos populares ao governar por de-creto e ao apoiar uma legislação antitrabalhadores; a imposição deuma política macroeconômica (o “neoliberalismo”), que destrói omercado interno, desgasta o controle da coisa pública e solapa apropriedade dos setores estratégicos da produção, das matérias-primas e das finanças. Contrapondo aos fracassos das políticas elei-torais, a política da ação direta dos movimentos sócio-políticos doBrasil, Equador, Argentina e de outros lugares, têm acumuladovitórias com mudanças sociais e políticas significativas. O Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, atra-

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vés de sua política de ocupações de terras, conseguiu o assenta-mento de mais de 250.000 famílias. A CONAIE, do Equador, jáconseguiu destituir dois presidentes. Na Argentina, a união dasforças dos movimentos de desempregados (Piqueteiros), das orga-nizações de vizinhos (panelas vazias) e dos jovens ativistas conse-guiram o não-pagamento da dívida externa, a destituição de cincopresidentes e, finalmente, criar um movimento popular de âmbitonacional contra toda a classe política burguesa.

Em contraste com as vitórias práticas dos movimentos sócio-políticos comprometidos com a ação direta de massas, a impotên-cia, a corrupção e a cooptação da esquerda eleitoral salta à vista.

O processo eleitoral não tem impacto sobre as políticas doscandidatos eleitos. Várias vezes, durante as campanhas eleitorais,os candidatos burgueses e os de esquerda prometem a criação deempregos, o ataque ao “neoliberalismo” e a defesa de um sistemaeconômico mais eqüitativo. Entretanto, quando assumem seuscargos, aprofundam e ampliam as privatizações, impõem novaspolíticas de ajuste estrutural e aumentam a repressão à luta dosmovimentos populares. Os candidatos eleitos pelos partidos deesquerda se vêem impotentes na oposição ou, muito pior, evolu-em para alianças e colaboração com a direita, recebem grandessalários e, paulatinamente, se distanciam das lutas das massas,priorizando as atividades nas instituições. Freqüentemente, ospolíticos de esquerda transformam os militantes que os ajuda-ram a se eleger em funcionários de baixo nível e transformam osmovimentos em comitês eleitorais. A transformação dos parti-dos socialdemocratas e populistas e seus líderes em adeptos doneoliberalismo significa que as principais organizações que lu-tam pela reforma agrária, pelo cancelamento da dívida externa,pelo sistema nacional de saúde etc., são os movimentos sociaisde ação direta. Os velhos partidos socialdemocratas e populistas

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não são mais reformistas. São partidos que trabalham para o ca-pital local, multinacional e imperialista.

O enfraquecimento do reformismo socialdemocrata está re-lacionado com o fato de que a burguesia dominante já não é“nacional” – produz para o mercado estrangeiro, deposita seuslucros no estrangeiro, depende de financiamentos estrangeiros ede tecnologia estrangeira Está integrada nos circuitos imperialis-tas do capital. Os socialdemocratas dependem do capital exter-no e não podem promover reformas sociais sem sofrer fugas decapital, pressões financeiras etc.. Instados a abandonar as políti-cas de colaboração de classes e a construir poderosos movimen-tos de massas para realizar “reformas”, os socialdemocratasesquecem as reformas e se acomodam nos interesses de seus sócioscapitalistas estrangeiros. O abandono pelos socialdemocratas deseus programas reformistas de “bem-estar” social ilustra sua su-bordinação e sua dependência da orientação do capitalismo demercado, das finanças e das redes imperialistas.

O fato de movimentos sócio-políticos, sindicatos e marxistascontinuarem apoiando “criticamente” os partidos ex-socialde-mocratas, converte-os em reféns da burguesia neoliberal e emtraidores de seu compromisso com a transformação social.

Com o colapso do projeto neoliberal – ilustrado pela falênciada Argentina e pela recessão mundial – a possibilidade de refor-mas sociais e de uma recuperação do estado de bem-estar capita-lista é remota. As reformas pelo estado de bem-estar aconteceramnum período de expansão capitalista na Europa e nos EstadosUnidos, durante o período de 1950-1972, e na América Latina,entre os anos de 1940 e 1970. Atualmente, os capitalistas vêemos operários e os camponeses enquanto custo de produção paraos mercados externos e não como um consumidor para o mercadointerno.

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A polarização mundial provocada pela atual ofensiva militardos Estados Unidos enfraquece qualquer tentativa de as forçasreformistas organizarem coligações progressistas. O apoio dossocialdemocratas à cruzada contra-revolucionária de Washing-ton reforça as forças repressivas do Estado e a legislação repressi-va dirigida contra as reformas propostas pelos movimentospopulares.

Os socialdemocratas, enredados na polarização cada vez maisprofunda entre o imperialismo e os movimentos populares, aban-donam sua oposição ao militarismo, à ALCA e à dívida externa. Arecessão e a queda da arrecadação tornam impossível aossocialdemocratas subsidiar as exportações e as empresas falidas,socorrer instituições financeiras, pagar a dívida externa e, ao mes-mo tempo, financiar reformas sociais para as classes populares.

A queda das exportações, a diminuição dos investimentosestrangeiros e a queda do Produto Interno Bruto significam queo projeto reformista, de apoiar o neoliberalismo ao mesmo tem-po em que incrementa os gastos sociais, não é viável. O compro-misso socialdemocrata de incrementar um modelo neoliberal nomomento em que os Estados imperialistas aumentam o protecio-nismo e expandem a concessão de subsídios à sua agricultura,significa que a crise socioeconômica na América Latina seráaprofundada e que seu regime político estará em crise perma-nente. A possibilidade de se combinar reformas sociais com regi-mes neoliberais é virtualmente nula.

Somente os movimentos populares revolucionários ou ra-dicais podem levar a cabo reformas, no transcurso de umaação direta de massas, que edifiquem novas formas popularesde representação. As reformas duradouras somente serão pos-síveis sob um novo Estado revolucionário de operários e cam-poneses.

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A conjuntura atual: Obstáculos e oportunidadesA luta pelo socialismo nesta conjuntura exige que evitemos

dois conceitos errados: 1) a suposição de que o imperialismoamericano é onipotente e onipresente, que Washington automa-ticamente terá êxito em tudo o que diz ou faz; 2) a suposição deque o aumento das lutas populares na América atina, particular-mente na Argentina, significa que estamos entrando em um novoperíodo revolucionário – em uma luta pelo Poder.

A ofensiva militar mundial dos Estados Unidos (sua rejeiçãounilateral aos tratados de Kioto, de mísseis, de armas biológicasetc., a marginalização da Europa/OTAN pelos americanos nomassacre do Afeganistão, seu apoio incondicional aos israelensesno massacre dos palestinos, suas propostas de novas guerras con-tra o Irã, o Iraque e a Coréia do Norte, a intervenção americanaem grande escala na Colômbia, a campanha para desestabilizar oPresidente da Venezuela, Chávez, o colossal aumento dos gastosmilitares...) tem a função de deter o declínio de seu poder e ainfluência no mundo. Antes dos acontecimentos de 11 de se-tembro de 2001, o Irã conseguiu enfraquecer o boicote dos Esta-dos Unidos, ob tendo financiamentos e promovendo o comérciocom a Europa e a Ásia. O Iraque tornou-se membro efetivo daOPEP e da organização internacional dos países islâmicos. AIntifada Palestina e o Hezbollah, no Líbano, desafiam o poderisraelense. Na América Latina, Chávez, na Venezuela, rechaçoua política imperialista americana – o bombardeio do Afeganistão,o Plano Colômbia, os vôos americanos sobre o espaço aéreovenezuelano e o cronograma dos Estados Unidos para a ALCA.Os avanços militares e políticos das FARCs e a degradação doregime fantoche de Pastrana, ameaçam o domínio americano eseu controle sobre a Colômbia. O colapso do regime pró-Esta-dos Unidos na Argentina, em dezembro, e os movimentos po-

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pulares ameaçaram o domínio americano em um país-chave naAmérica Latina. No Brasil, a radicalização do eleitorado, os cres-centes protestos contra a ALCA, o crescimento dos movimentospopulares (como o MST) e o enfraquecimento do governo FHCrefletiram a queda da influência americana no maior e mais im-portante país latino-americano.

A consolidação da União Européia e da sua moeda, o euro,ameaçou a supremacia do dólar e dos Estados Unidos como san-tuário para as fugas de capitais. Os conflitos comerciais com aEuropa resultantes dos subsídios e do protecionismo americanodesafiaram a retórica de Washington sobre mercados livres.

A militarização da política dos Estados Unidos e seuunilateralismo expõem a volta em direção ao imperialismoneomercantilista. Como reposta aos desafios mencionados, Wa-shington adotou uma nova estratégia: o neomercantilismo. AALCA está fundamentada na idéia de um bloco comercial com oobjetivo de concorrer com a Europa e privilegiar os investimen-tos e as exportações americanas. A defesa das posições econômi-cas monopolistas dos Estados Unidos depende de umamilitarização cada vez maior e da intervenção americana paraproteger e subsidiar os setores não competitivos de sua econo-mia. O neomercantilismo e a intervenção militar representam,sérias ameaças para os movimentos populares. Entretanto, as basesdo poder imperialista dos Estados Unidos são vulneráveis e ascontradições e as crises do império americano são profundas ecrônicas, criando oportunidades para o avanço da luta pelo socia-lismo.

Enquanto os Estados Unidos expandem seu poderio militarpelo mundo afora e ameaçam os países de quatro continentes,sua economia encontra-se fragilizada, precisando financiar seuenorme déficit de suas contas com o exterior, não através de sua

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produção, mas com a emissão de dólares. Alguns de seus gigan-tes corporativos (Enron, Quest, Crossways) quebraram e os in-vestidores perderam a confiança nos assessores de investimentose nas agências contábeis de Wall Street. Os lucros sofreram redu-ção, assim como as exportações. Excedente do orçamento ameri-cano converteu-se num crescente déficit. Enquanto os gastosmilitares aumentaram, há menos recursos para subsidiar e/ousalvar as multinacionais em processo de quebradeira. E, o maisimportante, os bancos americanos e as “agências de crédito” es-tão ameaçados por craques financeiros tipo Argentina, e por ne-gativas ao pagamento da dívida, que pode causar a ruína doimpério financeiro de Wall Street.

As duas forças motrizes do império americano estão se mo-vendo em direções opostas: sua economia está em declínio, en-quanto seus gastos militares expandem-se, o que causaconseqüências insustentáveis. Mais ainda, as conquistas milita-res têm, de um lado, os inevitáveis custos, mas, de outro lado,não produzem lucros a curto ou a médio prazos. Os custos dasintermináveis guerras em escala mundial agravarão mais e mais ojá grave desequilíbrio entre os investimentos improdutivos daexpansão militar e a atividade econômica em queda.

A outra contradição encontra-se na transição dos Estados Uni-dos para um império neomercantilista. Na versão atual do impé-rio, o Estado imperialista tem um papel central no estabelecimentoda primazia econômica das corporações e dos bancos americanos.O Estado imperialista aumenta os subsídios agrícolas para con-quistar mercados externos, mantém ou introduz novas barreiras eassegura, para as multinacionais americanas, contratos de recons-trução nos países-cliente ao fim das guerras imperialistas. O Esta-do imperialista provê subsídios para suas empresas exportadoras eestabelece barreiras alfandegárias e cotas para proteção de suas in-

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dústrias cada vez menos competitivas (aço, automóveis etc.). OsEstados Unidos insistem no Acordo Latino-americano de LivreComércio, que é um tratado comercial promovido pelo Estado edestinado a privilegiar os investimentos americanos à custa doscompetidores europeus e japoneses.

A melhor explicação para a postura militarista e unilateral deWashington encontra-se em seu redirecionamento rumo aoneomercantilismo: a intenção de assegurar vantagens comerciais– não pela competência do mercado, mas através de decretosunilaterais de Estado e pela intervenção militar, que intimida oscompetidores e enfraquece ou desorienta o desenvolvimento desua economia.

Entretanto, o neomercantilismo acirra os conflitos e provocamaiores rivalidades entre os países imperialistas. A Europa temdenunciado as ameaças americanas contra os Estados produtoresde petróleo do Golfo – Iraque e Irã – com os quais vemincrementando, tanto os investimentos, quanto o comércio depetróleo. Os países asiáticos, como a China e a Coréia do Sul,têm contestado as ameaças militares americanas contra a Coréiado Norte – ameaças essas que abalam o comércio e a ampliaçãodos investimentos interasiáticos. A aliança militar dos EstadosUnidos com Estados árabes seus apaniguados é a contrapartidaaos esforços da União Européia em tentar estreitar as relaçõescom a Associação dos Estados Islâmicos. Na América Latina, aEU está promovendo um acordo de integração e de livre comér-cio com o MERCOSUL, a organização regional de comércioque inclui o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Bolí-via. Enquanto que a diferença de poderio militar entre os EUA ea EU se amplia, o mercado integrado da EU e seus vínculos como exterior proporcionam um formidável desafio à construção doimpério neomercantilista. À medida que as tensões e os conflitos

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são exacerbados, as rivalidades poderiam causar um impacto como enfraquecimento das bases econômicas do império militaramericano e seus esforços para debilitar a sociedade européia.Por exemplo, logo após as conquistas militares americanas noAfeganistão, estes se negam a cooperar com os europeus visandoa erradicação dos cultivos de drogas, com um potencial de pro-dução de 4.500 t de ópio e 450 t de heroína – das quais 150 tirão abastecer a Europa e ameaçarão seu tecido social. (FinancialTimes, 18 de fevereiro de 2002, p. 3)

Segundo, a invasão militar americana e os bombardeios vito-riosos não produzem áreas propícias a investimentos e que pro-duzam lucros: áreas potenciais para investimentos são destruídase são formadas economias corruptas, tribais e mafiosas, comoaconteceu em Kôsovo, na Albânia, na Macedônia e na Bósnia.No Afeganistão, os senhores tribais da guerra estão combatendoselvagemente por todo o país, inclusive em Cabul. Os regimesapaniguados de Washington acabam como Estados falidos, semlei, incapazes de impor as mínimas condições de segurança, me-nos ainda de estabelecer as condições básicas para investimentos.Enquanto Rumsfeldt compara favoravelmente a conquista mili-tar do Afeganistão com o uso de alta tecnologia com a“bliekzkrieg” nazista na Europa (Financial Times, 18 de fevereirode 2002, p. 4), a inovação no uso de armas guiadas pelo laser nãoproduz o menor impacto para tirar os EUA de uma recessãoindustrial que já dura dois anos.

O imperialismo de Washington, exatamente pelo fato de tervinculado seus Estados apaniguados do exterior com o mercadoamericano, espalhou sua crise pelo mundo todo.

Todos os assim chamados “Estados protegidos neoliberais”tiveram redução em suas exportações, queda mos preços de suasmercadorias e tiveram muitas de suas empresas falidas. A ban-

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carrota da estratégia de crescimento “com base nas exportações”significa que os Estados apaniguados apresentaram sérias difi-culdades em suas receitas e em seus rendimentos, que os impe-dem de importar alimentos básicos e produtos acabados ousemi-acabados, o que provoca taxas negativas de crescimento,queda nos níveis de vida e pressões pela renacionalização das in-dústrias estratégicas e dos bancos, assim como uma mudançaestratégica: a produção para o mercado interno.

A oposição ao domínio americano e europeu alastrou-se, desdeos desempregados e os pobres do campo a uma classe médiaempobrecida e com mobilidade social descendente. Isto está bas-tante claro na Argentina, onde a classe média teve todas as suaseconomias confiscadas pelo regime apaniguado em colaboraçãocom os bancos estrangeiros. Como resultado, pela primeira vezna história recente da Argentina, a classe média desse paísradicalizou suas exigências para incluir um amplo conjunto dereivindicações antiimperialistas.

Por último, e o mais importante, a intervenção militar dosEUA em defesa de seus apaniguados e sua dependência quaseexclusiva da guerra e das ameaças militares, está criando umapolarização favorável à esquerda, o que faz aumentar a oposiçãoaos EUA e o isolamento de seus aliados.

As 50.000 pessoas em passeata contra o Acordo de LivreComércio, por ocasião do II Fórum Social Mundial, em PortoAlegre, em 4 de fevereiro de 2002, representam apenas a pontade um “iceberg” da crescente oposição popular. Centenas demilhões de dólares de ajuda às forças militares e paramilitares daColômbia não foram suficientes para modificar o equilíbrio dasforças da guerrilha e dos militares desse país. Pelo contrário, de-formou ainda mais a economia do país e fortaleceu a oposiçãodas organizações cívicas.

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Na Bolívia, no Paraguai e no Equador, as mobilizações demassas, as greves gerais e os bloqueios de estradas têm sido maisamplos e efetivos ao paralisar a economia, desacreditando os re-gimes apaniguados.

No Brasil, o papel ativo dos movimentos populares e dospartidos de origem marxista nas lutas de massas ainda exerceuma poderosa influência em importantes setores da população.Ainda mais importante, o incessante caráter de massa dos levan-tes populares na Argentina e a renúncia imposta a cinco presi-dentes (“num curtíssimo espaço de tempo”) são indicadores dopotencial revolucionário nesse país.

Entretanto, esta contra-ofensiva popular – que, apesar dapolítica de militarização global de Washington, segue em frente– tem suas limitações. Muitos dos movimentos de massas lutampor reivindicações específicas (comida e trabalho, por exemplo,para os desempregados argentinos); os movimentos são regio-nais e setoriais e ainda não contam com uma condução nacionalcapaz de propor o desafio da tomada do poder. Muitos dos diri-gentes ativistas desafiam os regimes apaniguados, mas, rapida-mente, negociam acordos de curto prazo (a maioria dos acordosnunca é cumprida pelo Estado). Dessa forma, entra-se num cír-culo vicioso de mobilização: ação direta – confrontação – nego-ciação – acordos – promessas não cumpridas – mobilização etc.etc. No entanto, já existem sinais importantes de um grande avan-ço nas questões políticas. Muitos dos ativistas e militantes lati-no-americanos estão totalmente desiludidos com os lídereseleitorais de esquerda. O pacto de Lula com o Partido Liberal eseu amplo apoio à política pró-capitalista obrigam à maioria daesquerda conseqüente a se voltar para a ação direta de massas e,possivelmente, para a formação de um novo pólo socialista. NaArgentina, as lutas nos bairros, nos subúrbios empobrecidos da

Desafios da luta pelo socialismo 99

classe trabalhadora, dos desempregados, dos setores da classemédia com mobilidade social descendente, do funcionalismo, adata significativa não é o 11 de setembro, como quer Bush, masos dias 19 e 20 de dezembro, os dias das barricadas e da derrotado regime fantoche neoliberal no poder.

ConclusãoEstamos vivendo um período de guerras imperialistas, levan-

tamentos populares, crescente militarização e polarização políticae social.

A intenção de Washington de formar uma aliança contra-revolucionária mundial mostra fissuras cada vez mais profun-das. As bases econômicas do império apresentam enormes falhas.E a resistência popular está em fase de expansão nos países co-lonizados.

As alternativas reformistas, mesmo que ainda atuantes, já nãosão viáveis. Os políticos voltados para as eleições e para os parla-mentos encontram-se cada vez mais isolados das grandes con-frontações históricas. As grandes máquinas sindicais já nãocontrolam nem detêm as lutas das massas. E é no interior dessaslutas que o socialismo está ressurgindo, tanto das cinzas da expe-riência stalinista derrotada e desacreditada, quanto de umasocialdemocracia igualmente corrupta e servil, chafurdada na lamaneoliberal.

A luta pelo socialismo ressurge inicialmente através de umasérie de reivindicações por mudanças estruturais: reforma agrá-ria, renacionalização dos bancos, dos sistemas de telecomunica-ções e dos recursos estratégicos. No entanto, o avanço dosocialismo não se desenvolve de forma linear: sofremos derrotase retrocessos, com dirigentes históricos da classe trabalhadora,como Lula e o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, comprome-

100 James Petras

tendo-se com a reação e desorientando seus partidários da classeoperária. Um regime neoliberal é derrubado (De La Rúa) e subs-tituído por outro (Duhalde) na Argentina. Interrupção de rodo-vias e greves na Bolívia desafiam o Estado, mas terminamrepentinamente sem tocar nas questões fundamentais. Na Co-lômbia, a insurreição popular desenvolve-se de forma desigual:poderosa no campo, fraca nas cidades. E as rivalidades pessoais edivisões entre “reformistas” e revolucionários continuam.

A coordenação internacional entre os movimentos nacionaise a organização de manifestações internacionais deve ser parteintegrante do calendário político. As lutas nacionais, os movi-mentos localizados formam militantes revolucionários conscientesno interior dos movimentos. O império não pode estar sempreem todo lugar, não é onipresente. À medida que a luta pelo socia-lismo se estende dos militantes para as massas, a ameaça da re-pressão e da propaganda contra-revolucionária deixa de intimidaros movimentos de massas. Os desempregados, os empobrecidos,os desamparados, com os olhos famintos e os punhos cerrados,avançam: a questão é quem organizará a luta pelo poder políticosocialista.