salla resenha dias

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174 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 87 Decifrando as dinâmicas do crime Camila C. Nunes Dias. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo, Saraiva, 2013. 455 páginas. Fernando Salla No âmbito das ciências sociais, diversos estu- dos foram produzidos, desde a década de 1980, na tentativa de explicar o crescimento da criminalida- de no Brasil, bem como os seus efeitos sobre a vida das populações urbanas e sobre os aparatos desti- nados à gestão do controle sobre o crime e a puni- ção (Pinheiro, 1981; Paixão, 1988; Zaluar, 1983; Fisher e Adorno, 1987; Misse, 1999 e 2006; Ador- no, 1996). O expressivo crescimento da população encarcerada, nesse período, colocou em cena tam- bém novas dinâmicas no domínio da criminalidade e nas formas de sua contenção que ampliaram os desafios para as pesquisas na área das ciências so- ciais no país. Uma questão instigante, por exemplo, foi a emergência de grupos criminosos organizados dentro dos ambientes prisionais, para além daque- las quadrilhas e bandos que ali sempre estiveram presentes. Tais grupos forjaram identidades a par- tir de componentes próprios do mundo do crime e mesclaram no seu modo de atuação práticas e referências já existentes na sociabilidade das áreas pobres e periféricas das grandes cidades. No Rio de Janeiro, o mais famoso desses grupos foi o Co- mando Vermelho (CV) e, em São Paulo, o Primei- ro Comando da Capital (PCC). Cada um desses grupos teve, no entanto, uma trajetória própria de formação e atuação, em que pesaram as caracterís- ticas locais dos mercados ilegais, as relações com os grupos rivais e principalmente as relações com as forças repressivas. Tais grupos alteraram as dinâmi- cas da criminalidade tanto numa escala local como nacional, e mesmo internacional, se considerarmos o seu envolvimento com o tráfico de drogas no âmbito da América do Sul. As atividades criminais desses grupos transbordaram, portanto, os limites da prisão e passaram também a afetar diretamente a vida da população em várias áreas urbanas. Apesar da projeção desses grupos em todas es- sas dimensões, pode-se considerar que ainda são poucos os estudos no campo das ciências sociais, no

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  • 174 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N 87

    Decifrando as dinmicas do crime

    Camila C. Nunes Dias. PCC: hegemonia nas prises e monoplio da violncia. So Paulo, Saraiva, 2013. 455 pginas.

    Fernando Salla

    No mbito das cincias sociais, diversos estu-dos foram produzidos, desde a dcada de 1980, na tentativa de explicar o crescimento da criminalida-de no Brasil, bem como os seus efeitos sobre a vida das populaes urbanas e sobre os aparatos desti-nados gesto do controle sobre o crime e a puni-o (Pinheiro, 1981; Paixo, 1988; Zaluar, 1983; Fisher e Adorno, 1987; Misse, 1999 e 2006; Ador-no, 1996). O expressivo crescimento da populao encarcerada, nesse perodo, colocou em cena tam-bm novas dinmicas no domnio da criminalidade e nas formas de sua conteno que ampliaram os desafios para as pesquisas na rea das cincias so-ciais no pas. Uma questo instigante, por exemplo, foi a emergncia de grupos criminosos organizados dentro dos ambientes prisionais, para alm daque-las quadrilhas e bandos que ali sempre estiveram presentes. Tais grupos forjaram identidades a par-tir de componentes prprios do mundo do crime e mesclaram no seu modo de atuao prticas e referncias j existentes na sociabilidade das reas pobres e perifricas das grandes cidades. No Rio de Janeiro, o mais famoso desses grupos foi o Co-mando Vermelho (CV) e, em So Paulo, o Primei-ro Comando da Capital (PCC). Cada um desses grupos teve, no entanto, uma trajetria prpria de formao e atuao, em que pesaram as caracters-ticas locais dos mercados ilegais, as relaes com os grupos rivais e principalmente as relaes com as foras repressivas. Tais grupos alteraram as dinmi-cas da criminalidade tanto numa escala local como nacional, e mesmo internacional, se considerarmos o seu envolvimento com o trfico de drogas no mbito da Amrica do Sul. As atividades criminais desses grupos transbordaram, portanto, os limites da priso e passaram tambm a afetar diretamente a vida da populao em vrias reas urbanas.

    Apesar da projeo desses grupos em todas es-sas dimenses, pode-se considerar que ainda so poucos os estudos no campo das cincias sociais, no

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    Brasil, que se dedicaram a explicar os processos que conduziram emergncia de tais grupos, sua exis-tncia nos domnios da criminalidade e seus efeitos sobre a sociedade de uma forma geral.

    O livro de Camila Nunes Dias contribui de forma relevante para a compreenso dos aspectos que colocaram o PCC em evidncia no debate p-blico nos ltimos vinte anos. Cabe lembrar alguns dos principais eventos que tornaram o PCC o cen-tro de atenes no somente para as autoridades da rea da segurana pblica e justia mas tambm para os pesquisadores do campo das cincias so-ciais: em 2001, o PCC foi o responsvel por uma megarrebelio em 29 unidades prisionais do estado de So Paulo. Cerca de 30 presos foram mortos em conflitos internos e o PCC reivindicava a desati-vao do Anexo da Casa de Custdia de Taubat, unidade que ento confinava os presos considera-dos lderes de grupos ou inadaptveis. Alm dessa capacidade de mobilizar simultaneamente um n-mero considervel de unidades prisionais, o PCC ainda trazia um fenmeno novo que era a trans-formao dos prprios familiares em refns-cola-boradores da megarrebelio (que havia comeado num domingo, dia de visita). Um segundo conjun-to de acontecimentos se deu em 2006, quando o PCC desencadeou no estado de So Paulo, princi-palmente em sua capital, uma srie de atentados a bancos, supermercados, prdios pblicos e ordenou o assassinato de policiais e agentes penitencirios. Alm desses atentados, dezenas de nibus foram queimados, paralisando a cidade de So Paulo. Fo-ram trs ondas de ataques que se desdobraram de maio a agosto daquele ano. Os atentados mostra-vam o grau de transbordamento do poder do PCC para alm dos muros da priso e uma ousadia nos ataques aos agentes pblicos. Em terceiro lugar, ao longo de 2012, um amplo conflito se estabeleceu entre as foras de segurana, sobretudo a Polcia Militar, e o PCC. Em 2012, dos 6.145 homic-dios ocorridos no estado de So Paulo, 547 foram provocados por policiais militares e outros 17 por policiais civis em servio, somando assim 564 ho-micdios, o que representou 9,2% de todas as ocor-rncias. Foram 14 os policiais militares assassinados naquele ano e 2 policiais civis. Em 2011, o nme-ro de pessoas mortas em confrontos com a polcia

    foi de 460: portanto, em comparao com as 564 mortes de 2012, houve um aumento de 18,4%.1

    Como esse grupo conseguiu alcanar tamanho poder dentro e fora das prises? Como se construiu essa disposio e essa capacidade de enfrentar as foras policiais? E, o mais importante, como res-ponder a essas questes a partir do repertrio inter-pretativo das cincias sociais? Foram estas algumas das questes que Camila Dias procurou responder. Seu trabalho, apresentado como tese de doutora-mento em sociologia na Universidade de So Pau-lo, parte das principais balizas tericas disponveis, sobretudo no terreno da sociologia, para analisar os contextos que tornaram possvel a emergncia do PCC e decifrar principalmente os processos sociais que conduziram sua hegemonia sobre a massa carcerria no sistema prisional paulista, sua presen-a no mundo do crime e sua influncia sobre as populaes de variados territrios urbanos.

    H que se considerar, antes de mais nada, as dificuldades inerentes para se fazer uma pesquisa sobre um grupo criminoso organizado e sobre o prprio contexto prisional. As limitaes e os obs-tculos so considerveis para a obteno de docu-mentos oficiais, para o acesso aos espaos prisio-nais, para o estabelecimento de contato direto com os principais atores como presos, policiais, agentes penitencirios, diretores de unidades prisionais etc. Certa facilidade na reunio de informaes s exis-tiu em relao a fontes representadas pela imprensa, que cada vez mais tem deixado disposio do p-blico em geral os arquivos de jornais e revistas para consulta. A autora recorreu, tambm, aos relatrios das Comisses Parlamentares de Inqurito (CPIs), especialmente a do Trfico de Armas (2005-2006). E teve acesso ainda aos depoimentos sigilosos das sesses reservadas dessas CPIs.

    A principal fonte de dados sobre o sistema penitencirio paulista, a Secretaria da Administra-o Penitenciria (SAP) de So Paulo, depois dos acontecimentos de maio de 2006, retirou do seu portal informaes bsicas sobre as unidades prisio-nais, sob a alegao de que elas poderiam significar algum tipo de risco para a segurana pblica (!). Mas, felizmente, a SAP no obstruiu o acesso da pesquisadora s prises e aos presos, nem o acesso a uma fonte igualmente rica para a compreenso das

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    dinmicas prisionais que so as sindicncias instau-radas nas prprias unidades.

    O captulo metodolgico (com cerca de 40 p-ginas) no qual a autora apresenta todo o percurso da pesquisa uma contribuio bastante relevante do seu trabalho para aqueles que buscam tais espaos para a realizao de suas pesquisas acadmicas.2 Ca-mila Dias descreve, com transparncia, as estrat-gias e tticas a que teve que recorrer para conseguir o seu objetivo de analisar as modificaes no siste-ma prisional paulista nas ltimas dcadas e como, nesse contexto, o PCC conquistou a hegemonia sobre a massa carcerria. Deve-se reconhecer que nem sempre tm sido apresentados, de modo cla-ro, por parte de muitos pesquisadores, os caminhos utilizados para lidar com esses objetos difceis no campo das cincias sociais. De tal modo que no so descritos, por vezes, os percursos de aproxima-o e os acordos com os envolvidos para pesquisar, por exemplo, as relaes sociais no trfico de dro-gas ou em outras atividades criminosas, ou ainda os arranjos para ter acesso s dinmicas nos espaos de confinamento etc. H em muitos estudos ma-terial emprico e anlises que podem ser bastante interessantes, mas que deixam um nevoeiro de dvidas para o leitor com relao ao processo de coleta das informaes. Nesse sentido, Camila vai numa direo oposta e descreve com objetividade os detalhes no seu caminho de pesquisa com os obstculos e com as oportunidades que foram aparecendo. As entrevistas que realizou com presos so sem dvida o material essencial de seu trabalho. A autora entrevistou 31 presos em trs unidades prisionais e pde extrair delas um rico conjunto de informaes para sua argumentao.

    Camila recorre na sua anlise aos autores, na-cionais e internacionais, relevantes que integram o campo do debate sobre a criminalidade, mas sobre-tudo sobre as prises, sobre as rebelies, sobre as gangues que ali atuam. Porm, no campo terico, a sua maior ousadia foi ir alm desses autores (Sykes, 1974; Goffman, 1974; Clemmer, 1958, entre ou-tros) e trazer para a sua construo argumentativa algumas contribuies de Norbert Elias (1993). Mobilizou, para tanto, os conceitos de pacificao social, monoplio da violncia, controle e auto-controle, interdependncia, figurao social como

    ferramentas para explicar como o PCC operou uma dominao mpar sobre a massa carcerria no sistema prisional paulista e estendeu sua influncia sobre outros territrios no prisionais.

    A utilizao de Elias pela autora, embora in-dita para explicar os processos sociais que se de-ram em prises, no deixa de provocar algumas polmicas. Elias se voltou, por exemplo, para processos sociais de longa durao para explicar a formao do Estado, o monoplio do uso da violncia, a pacificao social, capturando uma profunda complexidade de condies objetivas e subjetivas dos indivduos e das classes sociais. A escala temporal permite anlise de Elias con-ferir a permanncia de formas sociais que no se desfizeram em situaes conjunturais, como a tendncia reduo da violncia no interior da sociedade mesmo depois de guerras civis ou guer-ras mais ampliadas. J os processos analisados no livro aqui resenhado podem ser considerados de bem curta durao, duas dcadas, envolvendo ato-res especficos, hierarquizados, em relaes sociais travadas em ambientes institucionalizados. Essa escala de curta durao sugere um plano mais conjuntural que, embora rico para a descrio emprica, traz por isso mesmo a transitoriedade, a volatilidade, a fluidez dos processos sociais. Um segundo exemplo em relao s limitaes do uso das anlises de Elias para a conjuntura prisional diz respeito questo do autocontrole. Para ele, a pacificao social resulta tanto da criao de mecanismos objetivos de destituio do uso da violncia por parte dos indivduos e grupos como tambm da criao de formas subjetivas de pacificao atravs de autocontrole. Novamente, a escala temporal decisiva no estabelecimento des-se processo. No livro, no entanto, no foi analisa-do com maior preciso o lugar do autocontrole na configurao de uma nova ordem prisional sob a hegemonia do PCC. Este aparece como monopo-lizador do uso da violncia sobre a massa carcer-ria, fazendo pairar sobre ela a ameaa direta de seu uso em caso de dissidncia, sugerindo muito mais uma dominao de natureza coercitiva do que um contexto de pacificao que tenha promovido pro-cessos de subjetivao na direo de uma interna-lizao do autocontrole.

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    No plano da reconstruo histrica da formao e consolidao do PCC, o trabalho constri perio-dizaes que ajudam a compreender as principais caractersticas das diferentes fases desse grupo. Num primeiro perodo (de 1993 a 2001), trata-se de sua ascenso em um processo de expanso territorial, dominando gradativamente as unidades do sistema prisional paulista. Perodo que marcado por um impressionante nmero de rebelies e mortes entre os presos. O PCC conseguiu destruir ou anular os grupos de presos rivais, em um processo que envol-via tanto a eliminao fsica dos desafetos como as presses na administrao para o desmantelamento dos demais grupos por meio de transferncias ou isolamento em unidades prisionais especficas. Com isso, o PCC chegou ao final dos anos 1990 com amplo domnio sobre os presdios paulistas, depois de ter expropriado os grupos rivais de sua capacida-de de uso da violncia na soluo de conflitos e no controle da massa carcerria. De acordo com a au-tora, no segundo perodo (de 2001 a 2006) o PCC se expande e impe sua dominao, mesmo sob a presso de algumas reaes do Estado, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) na ten-tativa de conter a expanso desse tipo de grupo no interior das prises. Alternam-se os momentos de guerra interna com os de paz. De um modo geral, caem os nmeros de homicdios dentro das prises e tambm o de rebelies. De 2006 a 2012, desenha--se um terceiro momento em que o PCC exibe a sua hegemonia sobre a massa carcerria e ainda seu enraizamento e capacidade de mobilizao fora das prises. Internamente s prises o PCC promove a paz. Camila, nesse sentido, mostra como o PCC, para tanto, passou a proibir que os presos tivessem armas improvisadas (facas, chuchos, porretes etc.), ao mesmo tempo que seus principais lderes colo-cavam-se como rbitros das disputas internas, re-gulando diversos aspectos da vida prisional, como a distribuio de presos pelos pavilhes, pelos espaos de trabalho. evidente que resistncias e dissidn-cias de presos a essa dominao eram vistas como enfrentamento e oposio, portanto tais presos no deveriam permanecer no convvio com os demais (o que os obrigava a permanecer nas alas de seguro ou ento serem transferidos para unidades prisionais neutras, ou seja, sem o domnio do PCC).

    Muito desse padro de organizao prprio s prises foi transposto para as reas nas quais o PCC passou a ter o controle sobre as atividades crimino-sas, especialmente o trfico de drogas. Alm disso, membros do PCC ou a ele identificados passaram a exercer um papel de rbitros e reguladores da vida das comunidades, interferindo em questes como as relaes familiares, as disputas interpessoais, promo-vendo debates e decidindo sobre a vida das pessoas.

    Interessante notar que essa dimenso regulat-ria do PCC, tanto no interior como fora das pri-ses, sempre se ancorou na sua capacidade e amea-a de impor a violncia. Nunca o grupo deixou de reafirmar a sua identidade com o crime, e os dois estatutos3 que ele produziu desde sua fundao mostram isso. So evidentes ali as ameaas de mor-te aos dissidentes ou aos que no se alinhassem s regras do partido. Ou seja, quaisquer contedos morais ou mesmo religiosos que possam fazer parte do repertrio discursivo desse grupo diluem-se nas dinmicas de filiao e lealdade ao crime e organi-zao, com possveis solues de natureza violenta. Camila Dias mostra tambm que no se sustenta o argumento de que o grupo tenha se democratizado. Sua hierarquia sempre foi fortemente centralizada, as dissidncias no so toleradas, no se pode ques-tionar as decises das lideranas. Uma certa flexi-bilizao desse controle se deu no por dinmicas pluralistas adotadas pela liderana em funo de um aperfeioamento da organizao, mas sim por conta das formas de represso ao grupo (como por intermdio do RDD e investigaes do Ministrio Pblico, entre outras), que acabaram por limitar os fluxos de comunicao e articulao na linha de co-mando que existiram na dcada de 1990.

    As autoridades, ao longo dos anos 1990, nega-ram a existncia do PCC. Depois, nos anos 2000, veio o pior, pois reconheciam que ele existia, mas minimizavam sua presena nas prises, nas perife-rias e nas economias ilegais. A pesquisa apresentada no livro mostra a sofisticao dos processos de or-ganizao interna desse grupo criminoso e a trama de elementos de referncia que o grupo representa para os presos e familiares, para o mundo do crime e das periferias. Ainda que possam ser volteis tais arranjos, so demolidores dos argumentos das au-toridades de que esse grupo no organizado ou

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    que se limite a um punhado de presos imobilizados numa unidade prisional do interior do estado de So Paulo (Presidente Wenceslau).

    Em suma, o fato que as prises brasileiras, com todas as suas mazelas, favoreceram a emer-gncia de grupos como o Comando Vermelho e o PCC, assim como a sua permanncia ao lon-go do tempo. A longeva precariedade material e humana que impera nas prises brasileiras, a per-sistente negao por parte do Estado dos direitos dos presos, j descritos na Lei de Execuo Penal (de 1984), as falhas em todo o circuito de fun-cionamento das instituies do sistema de justi-a criminal que lastreiam esses dficits, tudo isso tem contribudo para que atores coletivos, como o PCC, levantem a bandeira da violao dos direi-tos, apontem tais falhas e se coloquem como de-fensores da massa carcerria, provendo inclusive as necessidades materiais dos presos e ainda se colo-cando como interlocutores frente s autoridades. At a crnica prtica da violncia dos agentes em relao aos presos diminuiu diante desse empode-ramento de grupos organizados.

    De fato, a combinao de todos esses fatores levou a uma participao cada vez mais acentua-da do PCC na manuteno da ordem no interior das prises. Se a tradio de estudos sociolgicos (Sykes, 1974; Goffman, 1974) indica que qualquer ordem interna em instituies de confinamento sempre passa por negociaes, acomodaes entre custodiadores e internos, num jogo local de intera-es sociais, o caso PCC traz componentes novos que desafiam essas clssicas anlises. Mas no se trata apenas de um grupo de presos de uma uni-dade prisional barganhando com as autoridades locais a ordem interna, disciplina, benefcios e res-ponsabilidades: trata-se de um coletivo que pos-sui uma certa organizao, uma certa identidade como grupo, que delineou algumas diretrizes de atuao para seus membros, que no est limitado a um gueto tanto no sentido territorial como em termos de atividades criminosas. Os efeitos des-se novo jogo de relaes de poder so recentes na histria das prises.

    O livro, nesse sentido, contribui com suas anli-ses, ancoradas na tradio da reflexo sociolgica, para que se compreenda esse novo cenrio presente sobre-

    tudo nas prises do estado de So Paulo, no qual os bandos, gangues, quadrilhas perdem espaos para a presena de um coletivo que se coloca como hegem-nico diante da massa carcerria e que provoca novas formas de gesto prisional por parte das autoridades.

    Num quadro mais geral, o trabalho de Camila integra a produo acadmica de uma nova gera-o de pesquisadores (entre outros, Teixeira, 2009; Biondi, 2009; Marques, 2009; Godi, 2010; Shi-mizu, 2011) que, embora partam de pressupostos tericos e metodolgicos diferentes no campo das cincias sociais, contribuem de forma substantiva para a compreenso das dinmicas prisionais con-temporneas no Brasil, dos grupos que ali atuam e dos efeitos que eles produzem direta ou indireta-mente na vida das populaes urbanas.

    Notas

    1 Fonte: Coordenadoria de Anlise e Planejamento (CAP) da Secretaria de Segurana Pblica do Governo do Estado de So Paulo. Disponvel em: .

    2 Talvez tenha sido uma sorte a autora ter feito a pes-quisa antes de a SAP ter institudo, em abril de 2010, um Comit de tica em Pesquisa para o qual todos os projetos de pesquisa destinados ao sistema peni-tencirio de So Paulo precisam ser encaminhados. Esse procedimento tem sido bastante questionado na rea das cincias sociais no s pelo crivo que a ins-tncia administrativa pode impor aos projetos, como tambm por terem esses comits uma configurao estruturada na rea da sade e, portanto, com pre-ocupaes que no necessariamente sejam aceitveis quando se trata de pesquisa no mbito das cincias sociais com temas como a criminalidade ou os apara-tos de controle social.

    3 O primeiro estatuto do PCC surgiu em meados dos anos de 1990, e o segundo apareceu em 2011. Ambos se destinavam a regular as formas de pertencimento dos membros do grupo ao PCC e principalmente as relaes hierrquicas dentro dele.

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