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EXPEDIENTEInstituto Brasileiro de Ciências Criminais

DIRETORIA DA GESTÃO 2011/2012

Presidente: Marta Saad

1º Vice-Presidente: Carlos Vico Mañas

2º Vice-Presidente: Ivan Martins Motta

1ª Secretária: Mariângela Gama de Magalhães Gomes

2ª Secretário: Helena Regina Lobo da Costa

1º Tesoureiro: Cristiano Avila Maronna

2º Tesoureiro: Paulo Sérgio de Oliveira

Assessor da Presidência: Rafael Lira

CONSELHO CONSULTIVO: Alberto Silva Franco, Marco Antonio Rodrigues Nahum, Maria (ereza Rocha de

Assis Moura, Sérgio Mazina Martins e Sérgio Salomão Shecaira

Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências CriminaisCoordenador-chefe:

João Paulo Orsini Martinelli

Coordenadores-adjuntos:

Camila Garcia da Silva; Luiz Gustavo Fernandes; Yasmin Oliveira

Mercadante Pestana

Conselho Editorial da Revista Liberdades

Alaor Leite

Alexis Couto de Brito

Cleunice Valentim Bastos Pitombo

Daniel Pacheco Pontes

Giovani Agostini Saavedra

Humberto Barrionuevo Fabretti

José Danilo Tavares Lobato

Luciano Anderson de Souza

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PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E TIPO NO NOVO PROJETO DE CÓDIGO PENAL (PROJETO DE LEI

236/2012 DO SENADO FEDERAL)

Luís Greco

Resumo: O autor avalia criticamente os dispositivos do novo Projeto de Código

Penal referentes a princípios gerais (legalidade, culpabilidade e ofensividade) e ao tipo

(causalidade e imputação objetiva; omissão; dolo, culpa, quali%cação pelo resultado;

tentativa e desistência; autoria e participação), detectando uma preocupante quantidade

de erros da mais diversa ordem, desde técnicos até de português, que fazem do Projeto

um dos mais vergonhosos documentos da história do direito penal brasileiro

Palavras-chave: Reforma do Código Penal; Projeto de Lei 236/2012; Ofensividade;

Culpabilidade; Tipo.

Abstract: *is paper provides a critical analyzes on provisions of the new Criminal

Code Reform Bill, especially issues related to its general principles (legality, culpability

and o+ensivity) as well as type (causality, objective imputation, omission, malice, guilt,

quali%cation by result, criminal attempt and desistance, authorship and participation).

It %nds several mistakes of all natures ranging from technical to Portuguese-related

issues. It therefore gets to the conclusion that it is one of the most shameful documents

in the history of Brazilian Criminal Law.

Key words: Criminal Code Reform, Bill 236/2012, o+ensivity, culpability, type.

Sumário: I. Introdução – II. Fundamentos: 1. Legalidade; 2. Culpabilidade; 3. Ofensividade;

4. Uma primeira conclusão: o populismo demagógico do Projeto – III. Causalidade

e imputação objetiva – IV. Omissão – V. Dolo, culpa, quali%cação pelo resultado – VI.

Tentativa e desistência – VII. Autoria e participação – VIII. À guisa de conclusão

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I. Introdução

Setembro de 2012, mês em que a Revista Liberdades publica o presente número especial

sobre o Anteprojeto de Código Penal apresentado pela Comissão de Juristas, recentemente

convertido no Projeto de Lei 236/2012 do Senado Federal (doravante citado como Projeto),

é, por outra razão, de importância para o Direito Penal brasileiro. Dois de seus mais notáveis

cultores, Juarez Tavares e Juarez Cirino dos Santos, completarão seus 70 anos. Dedico,

assim, as presentes re=exões a esses dois professores de quem tenho a honra de me considerar

amigo, cujos ensinamentos, agora, mais do que nunca, deveriam ser recordados.1

No que se refere ao âmbito a que aqui me limitarei, o Projeto não pecou por omissão.

A Lei 7.209/1984, que instituiu a Parte Geral do vigente CP (doravante citado como CP/84),

havia, salvo pequenas alterações, mantido inalterada a maior parte dos dispositivos oriunda

do CP de 1940. O atual Projeto, contudo, tem pretensões vanguardistas, que se manifestam

de modo bastante agudo nos setores que pretendo examinar.

O presente estudo examinará os dispositivos do Projeto que expressamente adotam

princípios fundamentais do Direito Penal (arts. 1.º e 14, caput – abaixo II) e os dispositivos que

tratam de questões relativas ao tipo em sentido amplo, quais sejam: causalidade e imputação

objetiva (arts. 14-16 – abaixo III), omissão (art. 17 – abaixo IV), dolo, culpa, quali%cação

pelo resultado (art. 18-21 – abaixo V), tentativa e desistência (arts. 22-26 – abaixo VI), e, por

%m, autoria e participação (arts. 38-41, art. 27, § 1.º – abaixo VII).

Adianto minhas conclusões. Há muito pouco que mereça elogio nos dispositivos que me

proponho a examinar. A Parte Geral do Projeto é um exuberante amontoado de erros, de uma

diversidade que faz inveja à fauna amazônica. Há erros materiais, ideias que foram adotadas,

sem que tivessem sido entendidas; há erros lógicos, isto é, dispositivos que se contradizem

reciprocamente; há erros técnicos, que demonstram o quão pouco o Projeto conhece a matéria

que se propõe a regular; e, last but not least, há erros de português.

Já que mencionei o mau português, não posso silenciar a respeito do Projeto e da

Exposição de Motivos, que em boa parte estão redatados numa linguagem que nos envergonha,

como brasileiros, diante de nós mesmos e de nossos irmãos mais velhos portugueses, e que

nos faz agradecer à Providência, por ter mantido a nossa língua privilégio de poucos. O mais

tardar nesse momento se entende por que o Projeto estava desde o início fadado ao insucesso.

A%nal, como podem as regras de atribuição de responsabilidade do Direito Penal vir a ser

1 ..... Leitura obrigatória é a recente manifestação crítica de Cirino dos Santos, “Somos o país que mais pune no mundo”, entrevista concedida a V. Ogawa, publicada no jornal Folha de Londrina, de 15.7.2012, p. 3.

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dominadas por quem sequer conseguiu entender as regras sintáticas e semânticas da própria

língua materna? Pensa mal quem escreve mal.

Permita-se-me uma observação sobre o estilo áspero em que está escrito o presente

estudo. Já me retratei publicamente por um estilo demasiado violento em um de meus escritos

de primeira juventude.2 Pensei, quando escrevi essa retratação, que nunca mais sentiria a

necessidade de manifestar-me de tal maneira. A publicação do Projeto, contudo, provou que

eu estava enganado. Não só não consigo manter um tom ameno; penso que fazê-lo seria trair

meu dever cívico de deixar registrado o descontentamento, ou melhor, a revolta com um

Projeto de Código Penal elaborado a toque de caixa, sem estudos preparatórios, sem uma

Exposição de Motivos esclarecedora, sem bom português, sem conhecimento dogmático.

Como acadêmico, não posso fazer mais, mas tampouco menos, do que denunciar, de modo

veemente e decidido, que se trate com tamanha leviandade a redação do documento legal que

determina diante de que pressupostos seres humanos serão encarcerados por anos a %o.

Eis as conclusões; passemos, assim, às razões que as embasam, isto é, ao exame do

Projeto e de seus muitos erros.

II. Fundamentos

1. Legalidade

O art. 1.º, caput, mantém a louvável tradição de abrir o CP com o princípio da legalidade

penal. Aqui, nada mudou. A aplicação da lei penal no tempo e no espaço é estudada pelo

trabalho de Quandt.

2. Culpabilidade

a) A primeira inovação do Projeto é o parágrafo único do art. 1.º: “Não há pena sem

culpabilidade”. Deixando de lado a questão quanto a se o Título “aplicação da lei penal”

é o local adequado para regular essa matéria, cumpre observar que se trata, a rigor, mais

de uma mudança cosmética do que material. Se um Código respeita ou não o princípio

da culpabilidade é algo que se extrai de outros de seus dispositivos, como o referente aos

crimes quali%cados pelo resultado (abaixo V.3), à actio libera in causa,3 ou à reincidência,

que o Projeto regulou sem grandes preocupações (art. 78 e ss., entre outros). Minhas maiores

dúvidas a respeito de se o parágrafo único é mais do que uma declaração de boas intenções

2 ..... Greco. Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. X.

3 ..... Que foi regulada em patente violação ao princípio da culpabilidade, cf. Leite, nesse volume.

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devem-se ao reconhecimento, no corpo de um Código, da odiosa %gura dos crimes hediondos

(art. 57), à geral desproporcionalidade entre as penas e às penas excessivas cominadas na Parte

Especial.

aa) Ainda que as mãos do legislador ordinário tenham sido amarradas por uma

Constituição de inspiração punitivista (Art. 5.º XLIII CF), essas amarras não são tão estreitas.

A Constituição apenas diz que certos crimes têm de ser de%nidos como hediondos, não mais,

e di-los insuscetíveis de indulto, graça ou anistia. Todo o resto o Projeto decidiu por conta

própria, curvando-se não às exigências jurídicas da Constituição, e sim às exigências políticas

de uma opinião pública punitivista.4

bb) Cominações desproporcionais, violação patente da ideia de culpabilidade, abundam

na Parte Especial.5 Como podem as lesões corporais simples receber a cominação de seis

meses a um ano (art. 129), enquanto o disparo de arma de fogo recebe pena de um a três anos

(art. 244)?6 Não basta a em si louvável intenção de acabar com a selva da legislação penal

extravagante, se um dos piores problemas dessa selva, suas cominações desproporcionais,

mesmo aleatórias, não é resolvido. O que já era ruim na legislação extravagante torna-se

intolerável em um Código, cuja primeira razão de ser é a pretensão de coerência interna.

cc) O Projeto perdeu, também, a oportunidade de abrandar as brutais cominações

tradicionais em nossa legislação penal, que, como eu recentemente tentei demonstrar, são uma

manifestação de desprezo pelo valor da vida do brasileiro,7 que di%cilmente condizem com

o reconhecimento do princípio da culpabilidade. Algumas penas foram mesmo aumentadas,

como a dos maus-tratos a animais (art. 391 – pena quadruplicada em relação ao atual art.

32 Lei 9.605/1998), a da rixa (art. 137 doCP vigente), que agora recebe a no mínimo infeliz

denominação “confronto generalizado” (art. 135), a das lesões corporais (art. 129, caput, dos

dois Códigos).

4 ..... Crítico à regulamentação dos crimes hediondos pelo Projeto também Cirino dos Santos, na acima citada entrevista.

5 ..... Mesma crítica em Cirino dos Santos, supra.A Exposição de Motivos, p. 3, arrola a %nalidade de “tornar proporcionais as penas dos diversos crimes, a partir de sua gravidade relativa” entre os seus cinco principais objetivos.

6 ..... Observe-se, ademais, a má redação desse dispositivo, que continua idêntica à do atual art. 15 da Lei 10.826 de 2003: “Art. 244. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como (nalidade a prática de outro crime: Pena – prisão, de um a três anos”. Isso signi%ca que atirar por atirar é punido segundo o art. 244; se o agente atira, contudo, para lesionar uma vítima, incidirá aparentemente apenas o art. 129, caput!

7 ..... Greco. Quanto vale a vida de um brasileiro? Um apelo à Comissão de Reforma do Código Penal. Boletim IBCCrim, ano 20, n. 236, p. 3 e ss. 2012.

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b) Ou seja: o art. 1.º, parágrafo único, do Projeto tem escasso valor jurídico. Talvez

ele seja mesmo nocivo, porque o dispositivo poderá levar a crer que, agora, sim!, temos

um Direito Penal da culpabilidade, e que tudo está bem. Mais importante do que manter

ou suprimir o novo dispositivo me parece, assim, que não nos deixemos seduzir por essa

mensagem subliminar. Aqui, mudou muito pouco, e o que realmente tinha de ser mudado

não o foi pelo art. 1.º, parágrafo único.

3. Ofensividade

a) A principal inovação do Projeto no âmbito dos princípios fundamentais está na

consagração da ideia de ofensividade (art. 14, caput: “(...) que produza ofensa, potencial ou

efetiva, a determinado bem jurídico”). Aqui valem observações análogas às que acabei de

formular sobre o princípio da culpabilidade: é a Parte Especial que tem de demonstrar que

o princípio geral é mais do que uma mera promessa. Que signi%ca esse suposto princípio da

ofensividade?

b) Seguramente, o fato de não mais se tutelarem a moral e os bons costumes;8 mas isso

tem de decorrer da Parte Especial, e não do art. 14, caput. Nesse aspecto, há que elogiar a

coragem do Projeto de descriminalizar a manutenção de casa de prostituição (art. 227 do CP

vigente), o escrito ou objeto obsceno (art. 230 do CP vigente) (Exposição de Motivos, p. 321

e ss.) e a posse de droga para consumo próprio (art. 212, § 2.º, do Projeto).9

c) Mais importante, ainda, é a ideia de que mera desobediência não basta para justi%car

uma criminalização.10 Aqui houve um grande, ainda que tímido, acerto, ao lado, contudo, de

muitos e graves erros. O acerto foi a eliminação da �gura autônoma do desacato (art. 331 do

CP vigente), verdadeiro símbolo de uma cultura autoritária que enxerga em qualquer crítica

8 ..... Cf. Roxin. Sobre o recente debate em torno do bem jurídico. In: Greco; Tórtima (Coords.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 179 e ss. (p. 187); Batista. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 91 e ss.; Tavares. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 219 e s.

9 ..... Meu posicionamento sobre esses dispositivos foi desenvolvido em: Greco. Strafbare Pornogra�e im liberalen Staat – Grund und Grenzen der §§ 184, 184a-d StGB. In: Rechtswissenschaft. Zeitschrift für rechtswissenschaftliche Forschung 2 (2011), p. 275 e ss. (especialmente p. 277-278 e ss.); idem, Casa de prostituição (art. 229 do CP) e Direito penal liberal: Re?exões por ocasião do recente julgado do STF (HC 104.467), RBCC 92/438 e ss., 2011; idem, Posse de droga, privacidade, autonomia. Re?exões a partir da decisão do Tribunal Constitucional Argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a �nalidade de próprio consumo, RBCC 87/84 e ss., 2010. Sobre o direito penal sexual de uma perspectiva liberal também Silveira. Crimes sexuais. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 154 e ss.

10 ... Com clareza Amelung. O conceito de bem jurídico na teoria jurídico-penal da proteção de bens jurídicos. In: Greco/Tórtima (Coords.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 117 e ss. (p. 139).

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à autoridade um desatino merecedor de pena. Ainda assim, a inovação foi tímida, porque a

injúria a servidor público tem a pena aumentada até o dobro (art. 137, IV).

Boa parte dos erros derivaram da tentativa de integrar uma legislação penal extravagante

de baixíssima qualidade jurídica e técnica no corpo do Código. Veja-se, por exemplo, o

novo capítulo dos chamados “Dos crimes contra eventos esportivos e culturais” (arts. 249-

254; Exposição de Motivos, p. 112-114), que compreende vários dispositivos já presentes

no chamado Estatuto do Torcedor (Lei 12.299/2010). Que valor juridicamente relevante é

protegido pelo dispositivo do art. 251: “Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que

se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva”?11 Pior ainda andou o art.

252, que con�rma a criminalização do cambismo, isto é, da conduta de “vender ingressos de

evento esportivo ou cultural por preço superior ao estampado no bilhete”: quem está sendo aqui

protegido, se as duas partes dessa transação consentem responsavelmente? Observe-se que

esses tipos constam de um capítulo situado no Título VIII, denominado “Dos crimes contra

a paz pública”, valor que, se não é modelo de precisão, seguramente em nada é afetado por

aquele que frauda competição desportiva ou que revende ingresso. A referência a um bem

jurídico aqui é meramente nominal. Mencione-se ainda o suposto bem jurídico “sossego”,

cuja “ofensa, potencial ou efetiva” (para usar os termos do art. 14, caput), por exemplo, por

meio de “gritaria ou algazarra”, deve justi�car a pena de prisão de seis meses a um ano (art.

257 do Projeto). Prisão simples de 15 dias a três meses não é mais considerada su�ciente

(art. 42 da atual LCP). Mais uma prova de que o Projeto pouco leva a sério a ideia de

bem jurídico são os novos dispositivos contra o stalking, que o Projeto batiza de perseguição

obsessiva ou insidiosa, e o bullying, batizado de intimidação vexatória (arts. 147 e 148). O

segundo desses, um primor da técnica legislativa, supostamente tutela a liberdade (Exposição

de Motivos, p. 292), mas se consuma quando há causação de “sofrimento físico, psicológico

ou dano patrimonial”. Um direito penal protetor de bens jurídicos pergunta primeiro pelo

bem, depois pela conduta que o lesiona ou o ameaça. Se o bem é a liberdade (como sugere

a inserção desse tipo no capítulo intitulado “Dos crimes contra a liberdade pessoal”), que

sentido há em exigir dano patrimonial ou sofrimento?

O que se extrai de todos esses dispositivos parece inegável: o Projeto sabe que condutas

ele quer proibir, não que bens ele quer proteger.

c) Já a menção a “ofensa, potencial ou efetiva” (art. 14, caput, do Projeto) tem o duvidoso

mérito de agradar gregos e troianos, não se posicionando na controvérsia sobre a ilegitimidade

11 ... Se esse dispositivo quis criminalizar o doping, a tentativa foi mal sucedida, cf. Leite. O doping como suposto problema jurídico-penal. In: Roxin/Greco/Leite. Doping e direito penal. São Paulo: Atlas, 2011. p. 1 e ss. (9 e s.).

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dos crimes de perigo abstrato.12 Se, de um lado, o termo parece conter uma insinuação no

sentido da recusa a esses crimes, de outro, a Parte Especial continua a conter inúmeros deles

(especialmente os chamados crimes de perigo comum ou contra a incolumidade pública,

como o incêndio e a inundação – art. 190 e ss. do Projeto), o que, por si só, nada tem de

errado.

d) Ademais, aquilo que a meu ver é a mais importante tarefa da teoria do bem

jurídico, a de distinguir bens coletivos “aparentes” de “reais”, só pode ser cumprida pela

doutrina, não podendo o legislador prestar aqui maiores serviços.13 Longe de mim a�rmar a

ilegitimidade da proteção penal de bens coletivos, tese que, se soa bem, demandaria que se

descriminalizassem a corrupção e o falso testemunho. O problema, contudo, é que o Projeto

vai além, tampando os ouvidos à melhor doutrina, porque ele não tem qualquer reserva a

bens jurídicos coletivos “irreais”. Boa parte do catálogo de bens jurídicos coletivos imaginários

da legislação extravagante, notório misto de tipi�cações desnecessárias ou duvidosas e de

cominações desproporcionais, foi acolhido no Projeto: desde a paz pública, que justi�ca a

punição exacerbada dos delitos de posse de arma de fogo (art. 243 e ss. do Projeto), passando

pela saúde pública, da qual se espera uma legitimação do direito penal de drogas (art. 212 e

ss.),14 às chamadas relações de consumo (art. 427 e ss.), às quais se recorre para justi�car o

draconiano direito penal de “proteção” do consumidor. É muito fácil proclamar a adesão à

ofensividade, ao mesmo tempo em que se confere reconhecimento a bens coletivos da mais

duvidosa estirpe.

e) Em síntese: Também a consagração do princípio da ofensividade é, primariamente,

uma declaração de boas intenções, que cumpre funções cosméticas. Na Parte Especial ele foi

implementado apenas no que diz respeito aos delitos sexuais e à posse de droga para consumo

próprio.

4. Uma primeira conclusão: o populismo demagógico do

Projeto

Creio que não é difícil enxergar o verdadeiro princípio seguido pelo Projeto. Sob a

12 ... Meu posicionamento nessa controvérsia em Greco, “Princípio da ofensividade” e crimes de perigos abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais 49/89 e ss., 2004 (republicado em Greco, Modernização..., p. 75 e ss.).

13 ... Sobre esse problema em detalhe Greco. Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos?, Revista de Concorrência e Regulação, ano II, n. 7/8, p. 349 e ss., 2012.

14 ... Ressalvando-se, aqui, a louvável descriminalização da posse de droga para uso próprio, acima mencionada.

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cortina de fumaça do solene compromisso jurídico com a culpabilidade e a ofensividade,

orienta-se o Projeto pela preocupação política de agradar à opinião pública. Essa opinião

pública não se importa mais com a casa de prostituição ou com o escrito ou objeto obsceno,

com a posse de droga para consumo próprio, nem com quanto tempo um marginal permanece

enjaulado, mas ela se importa com os crimes hediondos, com o bem-estar animal, com o

doping e com o cambismo, com o stalking e com o bullying, com armas, drogas e relações

de consumo. É lamentável que uma Comissão de Juristas, com letra maiúscula, se rebaixe à

condição de executor de demandas populistas. Não é por acaso que a Exposição de Motivos

em quase todos esses pontos se limita a explicar a letra da lei, sem fazer qualquer menção

aos princípios gerais dos quais supostamente partiu – algo como a aparente ingenuidade do

político antes e depois de uma eleição.

Aproveite-se o ensejo para criticar a postura do Projeto em relação às leis penais

extravagantes. A Exposição de Motivos, p. 3, menciona a �nalidade de “uni�car a legislação

penal esparsa” como o segundo dos cinco principais objetivos do Projeto. A solução do Projeto,

contudo, é de uma simplicidade salomônica: no geral, ele se limita a inserir as leis esparsas no

próprio Código.15 Contudo, permaneceram, em grande parte, irresolvidos os dois problemas

fundamentais dessas leis, quais sejam, o problema das incriminações aleatórias, repetitivas ou

injusti�cadas e o problema das cominações desproporcionais. Além disso, o que é ainda mais

grave, conferiu-se a essas leis de ocasião uma dignidade que elas em absoluto merecem. Será

muito mais difícil extirpar do ordenamento o conteúdo dessas leis irre?etidas se ele passar

a fazer parte do venerável corpo do Código Penal. O Projeto comportou-se como o marido

que, cansado da in�delidade da esposa que dorme várias noites por semana fora, convida os

amantes para morar dentro de casa.

III. Causalidade e imputação objetiva

Passemos, agora, para as regras de atribuição de responsabilidade, setor menos político

e mais técnico. Aqui, é verdade, a opinião pública perdeu a sua in?uência, porque essas regras

não lhe interessam. O Projeto, contudo, cometeu muitos e mais graves erros.

O art. 14, parágrafo único, acrescenta à tradicional exigência da causalidade a de que

o resultado decorra “da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do

alcance do tipo”. O Projeto consagrou, assim, a teoria da imputação objetiva. Não me parece

15 ... Quandt, nesse volume, acertadamente quali�ca o Projeto de consolidação de leis penais impropriamente autodenominada código.

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que essa inovação realmente seja necessária; de qualquer forma, ela não é nociva. Eu teria

apenas duas sugestões de ordem técnica: primeiramente, quali�car o risco de “proibido” ao

invés de “tipicamente relevante”, porque algo que é pressuposto do tipo não pode, por sua

vez, pressupor tipicidade; segundo, suprimir a passagem “dentro do alcance do tipo”, uma

vez que apenas um autor dentro os inúmeros defensores da teoria reconhece a exigência de tal

requisito.16 Não é adequado que um Código se �lie a opiniões isoladas, máxime quando elas

pouco diferem substancialmente da opinião mais aceita.

Os arts. 15 e 16, por sua vez, mantiveram dispositivos já constantes do vigente CP,

isto é, o reconhecimento da fórmula da conditio sine qua non e a exclusão da responsabilidade

por causa superveniente relativamente independente que por si só produz o resultado. O

dispositivo da conditio sine qua non foi alterado (“conduta”, ao invés de “ação ou omissão”,

como anteriormente), aparentemente excluindo omissões, o que, como veremos a seguir (IV),

não foi feliz. E, uma vez que se reconheceu a teoria da imputação objetiva, o mais adequado

seria suprimir a antes confusa, agora também desnecessária regra da causa superveniente.

Já nesses dispositivos, contudo, podem ser reconhecidos os três defeitos capitais que assolam

as regras de atribuição de responsabilidade do Projeto que aqui examino. Primeiramente, o

Projeto quer parecer moderno. Ele se esforça por fazer uso de terminologia nova, por mostrar

que está em sintonia com o que há de mais evoluído. Ele fala, portanto, em “criação ou

incremento de risco tipicamente relevante”; o que há de mais moderno? Ocorre que, e aqui

está o segundo defeito, o Projeto não entendeu bem o conteúdo dessas novas ideias. Daí por que

sua redação é vacilante; ele fala em “alcance do tipo”, sem saber bem de que se trata; sendo

de supor-se que ele tampouco sabe por que optou pela redação “criação ou incremento”, em

vez de só “criação”, ou porque ele chamou o risco de “tipicamente relevante”, expressão que,

se não me falha a memória, jamais vi na literatura internacional, provavelmente porque ela

aparenta conter o círculo vicioso acima apontado. Por �m, e em razão desse afã de aparentar

algo que não se sabe bem o que é, chega-se ao terceiro defeito capital. O Projeto não sabe o

que fazer com os dispositivos do CP/84, não sabe em que medida eles são compatíveis com

o novo, e por isso opta pelo mais seguro, isto é, por uma solução de superposição, mantendo o

velho ao lado do novo, ainda que essa duplicação seja, muitas vezes – quando o Projeto tem

sorte, como no que se refere à causa superveniente – redundante, outras vezes, contudo,

contraditória. Veremos que ao menos dois, mas muitas vezes todos os três defeitos ressurgem

em todos os demais setores que a seguir examinaremos.

16 ... Roxin. Strafrecht, Allgemeiner Teil. 3. ed. München: Beck, 2006. vol. 1, § 11 nm. 106 e ss.; cf. sobre essa peculiaridade da doutrina de Roxin: Greco. Imputação objetiva: uma introdução. Roxin, funcionalismo e imputação objetiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 1 e ss. (p. 116 e ss.).

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IV. Omissão

O dispositivo sobre o crime omissivo impróprio (art. 17) apresenta duas inovações.

1. A primeira é dizer “imputa-se o resultado ao omitente que devia e podia agir (...)”, em

vez de “a omissão é penalmente relevante quando o omitente podia e devia agir (...)” (art. 13,

§ 2.º, do CP/84). Aqui se veem os dois primeiros defeitos acima apontados: o Projeto quis

parecer moderno, falando em imputação; mas, como está blefando, errou. O dever de agir

não é um problema de imputação de resultado, no sentido estrito da palavra, e sim de desvalor

da ação.17 Se o pai, que tem o dever de agir para salvar o �lho menor que está a ponto de se

afogar, permanece inerte, mas ex post há certeza de que não havia mais qualquer possibilidade

de salvar o �lho, há dever de agir e resultado, mas esse resultado não poderá ser imputado

ao omitente. Como o Projeto também mudou a redação da norma sobre a causalidade (art.

15), falando, como já observei, em “conduta”, em vez de “ação ou omissão”, ele está dizendo,

ainda que não o saiba, que o garantidor que permanece inerte sempre responde pelo resultado,

ainda que o cumprimento do dever de agir não tivesse de modo algum podido salvar o bem.

Noutras palavras, o novo Código, o Código da ofensividade, transforma, à primeira vista,

todos os crimes omissivos de resultado em crimes de mera desobediência.18

2. O Projeto intuiu, porém, que isso não poderia estar correto. Daí por que a segunda

inovação: o parágrafo único do art. 17, que, literalmente, declara: “A omissão deve equivaler-

se à causação”. O escandaloso erro de português dispensa comentário; reporto-me, aqui, ao

que já disse ao início, que tamanha falta de domínio da gramática da língua que se fala desde

a tenra infância irá, a fortiori, signi�car (ou devo aqui escrever signi�car-se?) uma falta de

domínio da complexa dogmática da omissão. Se nos voltarmos à Exposição de Motivos,

leremos ter sido “acrescentada a cláusula de equivalência axiológica entre a ação e a omissão”

(p. 216), o que não só é inexato, porque o dispositivo fala em equivalência entre causação e

omissão, e não entre ação e omissão, como pouco esclarecedor, porque não se entende nem

o signi�cado, nem a necessidade de adoção dessa cláusula de equivalência. É verdade que,

na moderna dogmática, tampouco se sabe qual o real conteúdo dessa cláusula, contida em

algumas leis, como a alemã (§ 13 Strafgesetzbuch).19 Ainda assim, ou justamente por isso,

17 ... Especialmente: Freund. Erfolgsdelikt und Unterlassen, Köln etc.: Heymanns, 1992, p. 51 e ss. e passim.

18 ... Talvez esteja-se tentando aqui prosseguir em um sentido similar ao do art. 304, parágrafo único, da Lei 9.503/1997, que pune a omissão de socorro ainda em caso de morte instantânea, dispositivo esse que foi denunciado por: Busato. Introdução ao direito penal. 3. ed. (no prelo) como uma tentativa de salvar não o bem já perdido, e sim a alma do omitente.

19 ... Para um panorama Roxin. Strafrecht Allgemeiner Teil. München: Beck, 2003. v. 2, § 32, nm. 218; e ss. Tavares, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, Instituto Latino-Americano de Cooperação Penal: Rio de

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a opção por adotar uma fórmula obscura deveria ter sido fundamentada em ao menos uma

pequena oração subordinada. De qualquer modo, algo parece claro: essa fórmula não trata de

um problema de desvalor de resultado, e sim de determinar o conteúdo do comportamento

comandado, isto é, de uma especi�cação daquilo que o Código vigente e o Projeto chamam

“dever de agir”. O CP/84, aqui, é superior, porque pelo menos deixa claro que a omissão tem

de ser conditio sine qua non do resultado, não surgindo qualquer dúvida quanto ao fato de

que o pai no caso que acima mencionei responde, no máximo, por uma tentativa. O Projeto,

atrapalhadamente, afasta a aplicação da conditio a omissões, declara cabível, no lugar dessa

fórmula, o dever de agir, e acaba introduzindo uma equivalência material que ninguém sabe

o que quer dizer. Concretamente: o pai desnaturado de meu exemplo, que nada faz, querendo

que o �lho morra, sem que tampouco fosse possível salvá-lo, responderá por tentativa ou

consumação? A resposta dependerá do entendimento que prevalecer a respeito da equivalência

material. O CP/84, ainda que partindo daquilo que aos olhos de muitos pode parecer um

causalismo ingênuo, dava uma resposta não apenas clara como, ainda, correta.

3. Perto desse defeito, parece um luxo criticar que o Projeto mantenha inalterada a

teoria das fontes formais do dever de agir (lei, contrato/assunção, ingerência), já há muito vista

como insatisfatória.20

V. Dolo, culpa, qualificação pelo resultado

1. A de�nição legal do dolo, constante no novo art. 18, I, inova em dois aspectos.

a) Primeiramente, fala o Projeto em querer “realizar o tipo penal”, e não mais em querer

“o resultado”, o que é correto, de um ponto de vista técnico. O dolo se refere ao tipo,21 e o

tipo é mais do que mera causação do resultado.

b) A segunda alteração, contudo, é menos feliz. O dispositivo de�ne o dolo eventual

como aquele em que o agente “assumiu o risco de realizá-lo (o tipo penal), consentindo ou

aceitando de modo indiferente o resultado”. Novamente, é de criticar-se o português do

Projeto: o correto teria sido “consentindo no resultado ou o aceitando de modo indiferente”,

uma vez que consentir não é verbo transitivo direto. O Projeto adotou, aqui, a teoria da

indiferença ao lado da teoria do consentimento.22 A teoria da indiferença tem, contudo,

Janeiro, 1996, p. 81 considera uma tal cláusula mesmo inconstitucional.

20 ... Cf. por todos Tavares. As controvérsias... cit., p. 66 e ss.

21 ... Cirino dos Santos. Direito penal. Parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008. p. 134 e s.

22 ... Sobre essas teorias com referências: Cirino dos Santos. Op. cit., p. 143 e ss.

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pouquíssimos seguidores, o que não se deve ao acaso, e sim à circunstância de que ela pouco

se compatibiliza com um direito penal do fato, sendo própria, isso sim, de um direito penal

que se ocupa de atitudes internas. É natural que perguntemos, assim, pelo porquê da opção

por essa teoria, e que busquemos uma resposta na Exposição de Motivos. Mais uma decepção:

o único que a Exposição de Motivos consegue alegar é ter buscado “oferecer critério distintivo

mais aperfeiçoado” (p. 217). O motivo de esse critério ser “mais aperfeiçoado”, contudo, não

é dito.23

Se permanecermos na Exposição de Motivos, deparamo-nos, logo em seguida, com

algo verdadeiramente preocupante: “Consentimento e indiferença, diante da previsibilidade

objetiva do resultado, fazem o dolo eventual” (p. 217)! Deixando mais uma vez de lado

a pobreza linguística dessa a�rmação (em seu uso do verbo fazer), causa assombro que a

Exposição de Motivos declare que a previsibilidade objetiva baste para o dolo eventual, máxime

quando, em outro dispositivo, o Projeto declarou que “o erro sobre elemento constitutivo do

tipo penal exclui o dolo” (art. 27, caput), isto é, que só existe dolo com efetiva previsão de que

o tipo pode ser realizado.24 Como pode uma Exposição de Motivos de um Projeto de Código

Penal esquecer temporariamente o mais elementar sobre o conceito de dolo, a saber, que

dolo pressupõe conhecimento, o que é con�rmado em outro dispositivo do mesmo Projeto?

É impossível afastar a suspeita de que a opção pela teoria da indiferença foi fruto do acaso.25

c) A novidade mais relevante é a possibilidade de reduzir a pena em até um sexto no caso

de dolo eventual (art. 20). Não vejo fundamento para essa benevolência, mas, dos males, o

menor.

23 ... Busato observou-me que a raiz do problema talvez esteja em que o Projeto tenha partido de um ontologicismo ou psicologicismo excessivo. Isso signi�ca, contudo, supor que o Projeto esteja fundado em uma re?exão teórica mais profunda, o que, pelas razões que menciono no texto, a mais imediata das quais a passagem da Exposição de Motivos que em seguida discutirei, é sumamente improvável.

24 ... Um intérprete benévolo dirá que a Exposição de Motivos seguiu a opinião segundo a qual há uma hipótese de dolo sem conhecimento, a chamada “cegueira diante dos fatos”. Essa opinião é defendida principalmente por Jakobs, por exemplo, em Gleichgültigkeit als dolus indirectus, in: ZStW 114/584 e ss., 2002 (trad. para o espanhol de Pérez del Valle em Libro Homenaje a Bacigalupo, Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 345 e ss.). O problema nem estaria em que a Exposição de Motivos aderisse a um posicionamento, em primeiro lugar, isolado, e em segundo lugar criticável (cf. minha crítica em: Greco. Dolo sem vontade. In: Silva Dias et al. (Coord.). Liber Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 885 e ss. [891 e ss.]). O problema principal está em que ela contradiria o teor literal de outros dispositivos do Projeto (a saber, do art. 27), cujos motivos ela se propõe a expor!

25 ... Outro indício no sentido da falta de conhecimento não só da dogmática mais moderna, e sim de noções as mais elementares, é falar em “erro de tipo essencial”, quando todo erro de tipo, por de�nição, é essencial (cf. já Fragoso. Lições de direito penal. Parte geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 182, n. 155: “Denomina-se acidental o erro que versa sobre a pessoa ou o objeto, que não constituem elementos do tipo”). Mais detalhadamente Leite, nesse volume.

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2. A culpa foi de�nida no art. 18, II, substituindo-se a tradicional enumeração

“imprudência, negligência ou imperícia” referida à causação do “resultado” (art. 18, II, do

CP/84) pela realização do “fato típico” por meio de “inobservância dos deveres de cuidado

exigíveis nas circunstâncias”. Trata-se de um dispositivo ao qual não farei reparos. As duas

modi�cações são adequadas.26 A forma culposa permanece excepcional e taxativa (art. 19).

3. O dispositivo sobre os crimes quali(cados pelo resultado (art. 21) foi ligeiramente

modi�cado, sem, contudo, qualquer diferença substancial. O vigente CP exige que o agente

tenha “causado” esse resultado “ao menos culposamente”; o Projeto diz que o resultado “só

pode ser imputado ao agente que o causou com dolo ou culpa”.

VI. Tentativa e desistência

1. Tanto a de�nição de consumação e tentativa, quanto a redução de pena constantes

no art. 14 do CP/84 foram mantidas (arts. 22 e23). Não criticarei a perda da oportunidade

de melhorar esses dispositivos, porque há algo mais urgente: o novo dispositivo sobre o

início da execução (art. 24). O Projeto até começou o dispositivo bem, a�rmando que “há o

início da execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipo ou, segundo seu

plano delitivo, pratica atos imediatamente anteriores à realização do tipo (...)”. Se o dispositivo

terminasse aqui, poder-se-ia elogiar o Projeto, por ter deixado claro que é insu�ciente a ainda

bastante aceita teoria objetivo-formal, segundo a qual há tentativa quando se inicia a conduta

constitutiva do tipo.27 Mas o Projeto prossegue: os atos imediatamente anteriores à realização

do tipo têm de ser tais “que exponham a perigo o bem jurídico protegido”.

Aqui o Projeto, em mais um esforço mal sucedido de parecer moderno, especi�camente:

sintonizado com a ofensividade, cometeu uma confusão categorial. Tentativa e consumação,

como acertadamente de�nem o CP/84 e o Projeto, são conceitos formais, no sentido de que

eles se referem ao tipo (objetivo).28 Se o tipo está realizado por completo, em todos os seus

elementos, tem-se consumação; se falta um elemento do tipo objetivo, pode existir uma

26 ... Cf. também as críticas à tradicional tripartição da culpa em: Tavares. Teoria do crime culposo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 268; Cirino dos Santos. Op. cit., p. 173 e s.

27 ... Panorama das posições na doutrina nacional em: Nucci. Código Penal comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2010. Art. 14 item 32, que observa como a teoria formal-objetiva vem cedendo lugar à teoria individual-objetiva.

28 ... Por todos: Stratenwerth/Kuhlen. Strafrecht – Allgemeiner Teil. 6. ed. München: Vahlen, 2011. § 11, nm. 12.

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tentativa. Já o conceito de bem jurídico se refere a algo material. Concretamente: existem

também crimes de perigo, cujo tipo se realiza por completo (ou seja, consuma-se) com o

mero perigo a um bem jurídico. E existem mesmo crimes de perigo abstrato, cujo tipo se

realiza ainda que esse perigo seja apenas estatístico. Ou seja, consumação do tipo e lesão a

bem jurídico não são a mesma coisa. Há tipos consumados sem lesão (tipos de perigo). Há

também lesão sem consumação – como o estelionato, art. 171, que só se consuma quando

alguém “obtém (...) vantagem ilícita”, não bastando a lesão ao bem, isto é, o dano patrimonial.

Todos os tipos acima mencionados podem, contudo, ser tentados. Para �carmos com

os delitos de perigo: o Projeto conhece um delito geral de periclitação da vida e da saúde

alheia (art. 130; similar ao art. 132 do vigente CP). Aqui, o perigo ao bem não fundamenta

mera tentativa, e sim consumação. E se o agente tentar expor a perigo a vida ou a saúde

de alguém, sem o conseguir? Segundo o novo art. 24, parece que aqui não será possível a

tentativa, porque o bem jurídico ainda não foi exposto a perigo.

Se é isso que o Projeto deseja – acabar com a tentativa em todos os crimes de perigo –

o mais adequado seria dizê-lo expressamente. O problema é que, muitas vezes, é impossível

determinar em caráter de�nitivo se se está diante de um delito de lesão ou de perigo, porque

isso depende de como se entenderá o bem que determinado tipo penal se destina a proteger.

Até mesmo o furto e o roubo, por exemplo, podem ser entendidos como crime de perigo,29

uma vez que, subtraída a coisa alheia móvel, o direito de propriedade sobre ela não deixa de

existir. A caracterização desses tipos como de dano ou de perigo depende, assim, de como o

intérprete descreve o bem protegido: se o intérprete entende que a propriedade é o direito

de dispor da coisa como aprouver (o que se poderia derivar do disposto no art. 1.228, caput,

do Código Civil), os delitos são de lesão; se propriedade é entendida como o direito de

titularidade, os delitos são de perigo.

Se não é isso que o Projeto deseja, se o Projeto quer continuar a reconhecer a possibilidade

de tentativa nos delitos de perigo, então a novidade é supér?ua. A�nal, se a nova cláusula tem

de ser entendida contra a própria letra, de modo que seu ponto de referência não seja mais o

bem jurídico propriamente dito, e sim o tipo – com o que, para que houvesse uma tentativa

do art. 130, não fosse necessário perigo para os bens “vida, saúde ou integridade física”, e

sim perigo de realização do tipo, isto é, de se “expor a vida, a saúde ou a integridade física

de outrem a perigo direto ou iminente” – o Projeto está repetindo a fórmula anterior, que se

referia a “atos imediatamente anteriores à realização do tipo”.

29 ... Nesse sentido Maurach/Schroeder/Maiwald. Strafrecht, Besonderer Teil. 10. ed. Heidelberg etc.: C.F. Müller, 2009, v. 1, § 32, nm. 2.

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Mais uma vez, �cam patentes os três defeitos capitais acima apontados. Querendo

aparentar so�sticação, o Projeto de�ne o início da execução fazendo referência a um perigo a

bem jurídico (ofensividade!); como o Projeto não sabe que lesão a bem jurídico não signi�ca o

mesmo que realização do tipo, surgem problemas que o Projeto sequer imagina; e por isso ele

opta mais uma vez pela superposição de dispositivos novos e antigos, sem perceber os atritos

que isso gera. O mais imperdoável, sem dúvida, é que o Projeto demonstre não ter entendido

nem mesmo o teor de dispositivos básicos do CP/84, simplesmente desconhecendo o mais

elementar, o caráter formal do conceito de tentativa. O Projeto não percebeu ter inserido um

conceito material de tentativa ao lado do conceito formal (correto) do CP/84. A Exposição

de Motivos demonstra que não há a menor consciência a respeito das di�culdades que aqui

aponto (p. 218).

2. A próxima novidade é um estranho parágrafo único sobre os crimes contra o

patrimônio, que declara que “a inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação

do delito”. Entendo que, como diz a Exposição de Motivos, esteja-se tentando derrubar uma

jurisprudência consolidada (p. 218). O lugar para fazê-lo, porém, seria a Parte Especial. De

qualquer forma, mais uma vez, dos males, o menor.

3. A próxima matéria regulada é a desistência voluntária e o arrependimento e(caz. O

dispositivo que os de�ne (art. 15 do CP/84) não foi modi�cado pelo Projeto (art. 25). Apenas

acrescentou-se um parágrafo único que esclarece o caráter pessoal do benefício, o que não está

errado, mas foi feito sem muita re?exão a respeito das di�culdades que surgirão. Ainda assim,

essas di�culdades poderão ser resolvidas pelos intérpretes, sendo louvável que, ao menos aqui,

eles possam se ocupar apenas dos problemas reais, sem ter de lidar também com os erros do

Projeto.

4. O dispositivo sobre o crime impossível (art. 26) permaneceu substancialmente

idêntico ao do CP/84. Não criticarei a perda da oportunidade de introduzir melhoras, porque

qualquer mudança introduzida provavelmente seria para pior. Criticarei, sim, o português do

novo dispositivo: “Não há crime quando, por ine�cácia absoluta do meio ou por absoluta

impropriedade do objeto, é impossível a sua consumação”. Quem sabe português, sabe que

o “sua” se refere a um dos substantivos das orações anteriores, sem, contudo, explicitar qual.

Ocorre que há cinco substantivos na oração anterior – crime, ine�cácia, meio, impropriedade,

objeto.30

30 ... Compare-se, aqui, a escorreita redação anterior: “Não se pune a tentativa quando, por ine(cácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime” (art. 17 do CP/84).

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VII. Autoria e participação

1. O último objeto das presentes considerações serão as regras sobre autoria e participação.

Em linhas gerais: o Projeto cometeu todos os três erros capitais acima mencionados. Querendo

parecer moderno, ele de�niu autores e partícipes (art. 38, § 1.º, I, II); mas como ele tem

di�culdades com a dogmática do Direito Penal, cometeu vários erros; e, também por faltar-

lhe domínio do tema, manteve ele dispositivos antigos de um lado problemáticos, de outro

incompatíveis com as novidades.

2. No geral, foram mantidos em sua integralidade os dispositivos dos atuais arts. 29-31.

As agravantes no concurso de pessoas, reguladas no art. 62 do CP/84, foram reposicionadas no

§ 4.º do art. 38, com pequenas alterações. As novidades começam com a de(nição de autoria,

no inciso I do § 1.º do art. 38. A sistemática que encontrou sua expressão mais acabada na

obra Autoria e domínio do fato, de Roxin, distingue três formas de autoria: a autoria direta ou

imediata, que se refere ao caso daquele que, de mão própria, realiza o tipo; a autoria indireta

ou mediata, que se refere àquele que realiza o tipo por meio de um chamado “instrumento”; e

a coautoria, que se refere àquele que realiza o tipo atuando de modo coordenado com outras

pessoas.31 Coautoria, nessa sistemática, não é sinônimo de concurso de pessoas, e sim uma

forma especí�ca de realização do tipo, em que cada qual responde pelo comportamento dos

demais. O Projeto tenta seguir essa sistemática e inclusive mostrar um comprometimento

com a ideia que a fundamenta, a saber, o domínio do fato.

a) O Projeto de�ne a autoria direta como o caso daqueles que “executam o fato realizando

os elementos do tipo” (art. 38, § 1.º, I, a). A formulação não é muito exata, uma vez que

é bem provável que o autor mediato também possa ser subsumido sob a mesma de�nição.

Melhor teria sido, assim, dizer algo como: “executam diretamente o fato”, “executam o fato

de mão própria”.

b) O próximo dispositivo refere-se àqueles que “mandam, promovem, organizam,

dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a realização dos elementos do

tipo” (art. 38, § 1.º, I, b) – com o que, suponho, quis o Projeto de�nir a coautoria. O problema

é que aqui, o Projeto optou por um conceito extremamente amplo de coautoria, que não mais

se deixa reconduzir à ideia do domínio do fato. Considerar autor quem promove, organiza ou

31 ... Roxin. Täterschaft und Tatherrschaft. 8. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 2006 (há trad. espanhola da 7. ed., autoría y dominio del hecho en Derecho Penal, por Cuello Contreras/Serrano González de Murillo, Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2000), p. 127 e ss., 141 e ss., 277 e ss. Fundamental no Brasil: N. Batista. Concurso de agentes. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005 (1. ed. publicada em 1979), p. 75 e ss., 99 e ss., 127 e ss. Uma acessível síntese do pensamento de Roxin: Greco/Leite. Claus Roxin, 80 anos. Revista Liberdades 7/97 e ss. (101 e ss.), 2011.

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dirige o crime, ainda é algo defendido por vários dos que acolhem o domínio do fato, se bem

que não pela maior autoridade no assunto.32 Mas só partindo de um conceito subjetivista

de autor e abandonando a ideia de que autor é só quem tem certo domínio, isto é, um

controle objetivo sobre o fato, é que se pode considerar quem “manda” autor.33 Tampouco

está claro por que se considera autor quem faz algo indispensável para realizar elementos do

tipo, uma vez que muitas condutas de auxílio material, próprias de partícipes,34 estarão aqui

compreendidas. O Projeto não se limita a elevar aquilo que alguns ordenamentos chamam de

cooperação necessária (art. 28, II, b, do CP espanhol) à qualidade de autoria, mas também

transforma, por exemplo, quem entrega da arma a alguém que comete um tipo quali�cado

como o constrangimento ilegal do art. 145, § 1.º, do Projeto em coautor da quali�cação,

sem que ele tenha sido coautor do tipo básico (art. 145, caput). Esse paradoxo decorre de que

o Projeto não tenha entendido que o autor, e por conseguinte também o coautor, é quem

domina a realização do tipo como um todo, e não apenas de alguns de seus elementos.

c) Nos próximos dois dispositivos, o Projeto tenta regular a autoria mediata. No

primeiro deles declara autores aqueles que “dominam a vontade de pessoa que age sem dolo,

atipicamente, de forma justi�cada ou não culpável e a utilizam como instrumento para a

execução do crime”, no segundo “aqueles que dominam o fato utilizando aparatos organizados

de poder” (art. 38, § 1.º, I, c, d).

Aqui, mais uma vez tentando parecer moderno, o Projeto disse mais do que deveria e

mencionou expressamente o “domínio da vontade” e o “domínio do fato”. Sou o último que

questionará o acerto das ideias de domínio do fato e domínio da vontade. O que me parece

de todo inadequado, contudo, é que um dispositivo legal faça uma confusão entre o que é

pressuposto de uma regra de incidência, de um lado, e entre o que pertence à ratio legis, de

outro. Explicitando-o com base em um exemplo claro: a ratio legis por trás do art. 121 do

CP é a proteção do bem jurídico vida. Os pressupostos de incidência do art. 121, contudo,

são apenas “matar alguém”. Se o legislador seguisse, na Parte Especial, o mesmo método

32 ... Por exemplo: Jakobs. Strafrecht Allgemeiner Teil. 2. ed. Berlin/New York: DeGruyter, 1991, § 21, nm. 48; Stratenwerth/Kuhlen. Op. cit., § 12, nm. 93 e s. Contra: Roxin. Strafrecht... cit., v. 2, § 25, nm. 210.

33 ... Não é incomum, porém, ler na literatura nacional que, segundo a teoria do domínio do fato, o “mandante” seria autor. Trata-se, contudo, de nada mais do que um erro (cf. por exemplo, Jescheck /Weigend. Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil. 5. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1996. p. 687; e Roxin. Leipziger Kommentar zum Strafgesetzbuch. 11. ed. Berlin: DeGruyter, 1993. § 26/58, que enumeram entre os meios da instigação: presentes, promessas, ameaças, abuso da reputação ou de autoridade, persuasão, provocação de erro, manifestação de um desejo, de uma pergunta, de uma sugestão ou de um pedido), cuja origem, segundo vejo, é o escrito de: Jesus. Teoria do domínio do fato no concurso de pessoas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 27.

34 ... Que pre�ro chamar de cumplicidade: Greco. Cumplicidade através de ações neutras. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 6; assim também: Cirino dos Santos. Op. cit., p. 379 e ss. e antes de nós dois principalmente: Batista. Concurso... cit., p. 186 e ss.

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que seguiu ao de�nir a autoria mediata, ele teria de redigir o homicídio simples35 como

“lesionar o bem jurídico vida de outrem, matando alguém”. Seria mais adequado, assim,

que os dispositivos se abstivessem de mencionar a ratio legis do domínio. Eles poderiam ter a

seguinte redação: “utilizam como instrumento para a execução do crime pessoa que age ...”

ou “utilizam aparatos organizados de poder”. De resto, a enumeração da letra c não está, em

si, incorreta; ela é, contudo, de natureza em boa parte fenomenológica. Não é o fato de o

instrumento agir atipicamente ou justi�cadamente o que fundamenta o domínio do homem

de trás, e sim encontrar-se aquele em um erro ou coagido. Se não fosse assim, emprestar uma

arma a quem age em legítima defesa fundamentaria autoria mediata pelas lesões ou pelo

homicídio praticado por quem se defende.

3. Em seguida, o Projeto de�niu, no inciso II, a participação, por ação e por omissão.

O primeiro dos dispositivos (letra a), que de�ne como partícipes “aqueles que não �gurando

como autores, contribuem, de qualquer outro modo, para o crime”, é satisfatório. A verdade

é que, em razão do amplíssimo conceito de coautoria do qual o Projeto partiu (cf. acima

2.b), pouco restará para esse dispositivo. Na letra b, determina o Projeto que todo omitente

será partícipe. Essa posição, por vezes defendida na doutrina,36 não me parece acertada, mas

discutir esses problemas nos levaria longe demais. Creio que se pode deixar o dispositivo

como está.

4. Os principais problemas do Projeto se referem menos aos novos dispositivos e mais

a certos dispositivos antigos que foram mantidos, sem que se entenda por quê.

a) O primeiro deles é a regra geral de que responde pelo crime toda pessoa que para ele

concorre (art. 38, caput, do Projeto; art. 29, caput, do CP/84). Esse dispositivo, só compreensível

partindo-se de uma concepção de tipo reduzida à causação de um resultado, e que, em última

análise, faz tanto da conduta de disparar, como da de gritar “dispare!”, realizações do tipo do

35 ... Que, poeticamente, a Exposição de Motivos não quer mais chamar de homicídio simples, mas simplesmente de homicídio, porque “não há simplicidade no ato de matar”, a�nal: “Ceifar-se a vida de outrem é, sempre, o (m de um sonho, de uma história em progresso, de um mundo. Para a família e os amigos da vítima, bem assim para toda a sociedade, é dor que não se acomoda a descrições” (p. 274). Tal lirismo jurídico, de se esperar, no máximo, em discursos de paraninfo ou na Voz do Brasil, é sintomático do nível de elaboração teórica em que se move o Projeto. Ou devemos levar o que está sendo dito a sério? Nesse caso, ter-se-ia de excluir a aplicação do tipo quando a vítima não tem mais sonhos, nem história em progresso, nem família, nem amigos, e a sociedade pouco se importa com ela, noutras palavras: quando a vítima estiver na situação em que se encontram muitos de nossos indigentes. A Exposição de Motivos ou não pode ser levada a sério, ou ela sugere que se possa matar impunemente indigentes.

36 ... Principalmente Gallas, Comentário à decisão BGH, 1 StR 59/50, de 12.2.1952, in: JZ 1952, p. 371 e ss. (p. 372); crítica em Roxin, Strafrecht II ..., § 31, nm. 151 e ss., com ulteriores referências.

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art. 121,37 deveria ser cortado, uma vez que se de�niram expressamente os conceitos de autor

e partícipe.

b) Outro dispositivo que já há muito deveria ter sido extirpado é o da chamada

concorrência dolosamente distinta (art. 38, § 2.º, do Projeto; art. 29, § 2.º, do CP/84). Esse

dispositivo, já estranho no sistema anterior, �ca ainda pior em um sistema que de�ne autor

e partícipe. A única razão de ser desse dispositivo é deixar claro que o excesso de outro

concorrente pode fundamentar culpa. Se é assim, deveriam ser aplicadas as regras do crime

culposo, e só. O problema é que a norma da concorrência dolosamente distinta transforma

condutas culposas que, a rigor, não seriam puníveis, em condutas puníveis por via indireta,

violando a ideia de que o delito culposo só é punível excepcionalmente, como o reconhece o

próprio Projeto (cf. já acima V.2).

Concretamente: A foi rejeitado pela bela Y, e quer vingar-se. Ele pede ao conhecido

ladrão B que entre na casa de Y e a estupre. Ele diz a B, contudo: “por favor, não encoste em

nenhum objeto da casa; meu problema é só com a menina, os objetos pertencem todos ao pai,

de quem eu gosto muito”. Na casa de Y, e depois de havê-la estuprado, B vê um impressionante

relógio e não resiste. B responde pelo estupro (Projeto, art. 180; CP vigente, art. 213), em

concurso formal com a violação de domicílio (art. 150 do CP atual),38 em concurso material

com o furto, art. 155.39 A, por sua vez, responde pela participação (ou coautoria, cf. acima

2.b) no estupro e na violação de domicílio. Já o furto não foi objeto do dolo de A; foi um

excesso de B, ainda que previsível, uma vez que B era um conhecido ladrão. Segundo as regras

gerais, A não responderia por nada, porque inexiste furto culposo. Mas a regra da concorrência

dolosamente distinta transforma esse furto culposo em algo indiretamente punível: a pena

pela participação do estupro é aumentada. E aqui está o problema: não se compreende por

que razão um furto culposo torna a participação em estupro algo mais grave.40

37 ... Cf. Greco. Cumplicidade... cit., p. 11 e s.

38 ... Dispositivo, curiosamente, inexistente no Projeto! Ao menos não o encontro. Terá sido isso mero esquecimento?

39 ... Deixemos de lado aqui a invasão de domicílio.

40 ... É verdade que, como me objetou Quandt ao reler o presente estudo, o principal campo de aplicação do dispositivo não são exemplos como o que formulei, e sim casos em que o cooperador quer participar de crime menos grave – de um furto e não de um roubo (cf. também os exemplos em Nucci. Código Penal comentado cit., art. 29 notas 9, 10). Ainda assim, minha crítica permanece válida. Mesmo em caso como esse, não se compreende por que a contribuição culposa a um crime que só é punido na hipótese de dolo possa aumentar a pena pela prática de outro crime. Se aquele que participa de um furto podia prever que seu comparsa praticaria lesões corporais e essas lesões puderem ser objetivamente imputáveis ao primeiro, o correto não é puni-lo por furto com pena aumentada, e sim por furto e lesões culposas, em concurso formal. As regras do concurso formal resolvem o que existe por resolver no problema da chamada cooperação dolosamente distinta.

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Essa regra não só não pode ser consertada; ela não tem sentido. Os princípios de

atribuição de responsabilidade do crime culposo e as regras do concurso de crimes dão conta

de todas as di�culdades. No máximo, pode-se cogitar de uma pena maior, nos termos do art.

59 do CP/84, art. 75 do Projeto. Lacunas de punibilidade que eventualmente possam surgir

são adequadas, porque decorrem da decisão de punir a culpa só nos casos expressamente

previstos em lei.

c) O dispositivo do art. 40, que condiciona a punibilidade das condutas de ajuste,

mandado, induzimento, determinação, instigação e auxílio, ao início da execução do crime, não

diferente substancialmente do art. 31 do CP/84. Talvez fosse possível, contudo, suprimi-lo, se

se suprimisse o caput do art. 38. O estranho é que aqui não se usem termos idênticos aos que

foram usados no art. 38, § 1.º, I, II, com o que o Projeto se mostra, mais uma vez, diletante.

d) O dispositivo da comunicabilidade de circunstâncias (art. 39 do Projeto; art. 30 do

CP/84) já há muito requer um reexame mais detido. A nossa doutrina ocupou-se especialmente

do problema da participação no crime de infanticídio,41 problema esse que o Projeto optou

por solucionar na Parte Especial (art. 124, parágrafo único), deixando de lado questão muito

mais fundamental, que um futuro Código deveria resolver, qual seja: a de como justi�car que

uma pessoa responda por um crime mais grave, apenas pelo fato de ela atuar ao lado de outra

pessoa que apresenta a elementar pessoal constitutiva do crime mais grave. Concretamente:

se A e B praticam juntos ato de violência contra C, responderão os dois pelo crime de lesões

corporais, com pena de três meses a um ano (ou, segundo a nova cominação do Projeto, de

seis meses a um ano). Se B, contudo, for funcionário público e praticar o ato de violência no

exercício dessa função, incidirá também o art. 322 do CP vigente, cuja pena é de seis meses

a três anos. O que não �ca bem explicado é por que, pela mera existência da regra sobre a

comunicabilidade de circunstâncias, a conduta de A, que não é funcionário público, passa a

ter a mesma gravidade da conduta de B, que o é.42

De qualquer maneira, esse problema já o temos há muitas décadas. É de louvar-se

que o Projeto não tenha tentado resolvê-lo, porque o mais provável é que tivesse tornado as

coisas ainda piores. Consigno apenas que aqui temos um problema sério e pouco discutido,

a merecer mais atenção.

41 ... Cf. as referências em Nucci. Código Penal comentado cit., art. 30, nota 18-A.

42 ... Vide ademais a justi�cada má vontade que confere: Batista. Concurso... cit., p. 170 e s. ao dispositivo, por ele reinterpretado de maneira a que autor de delito especial só possa ser quem apresente, na própria pessoa, a qualidade especial.

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e) Por �m, há dispositivos sobre autoria e participação dispersos noutros setores.

aa) Em primeiro lugar, foi mantido o dispositivo sobre o erro determinado por terceiro,

art. 27, § 1.º, do Projeto, que corresponde ao atual art. 20, § 2.º, do CP/84. Esse dispositivo

é redundante em face do art. 38, § 1.º, I, c, do Projeto e deveria ter sido suprimido.

bb) O Projeto, contudo, deu um passo adiante e acrescentou ao dispositivo que regula

a inimputabilidade em razão de idade parágrafo único de conteúdo análogo (art. 34). Esse

dispositivo é, no que se refere a seus pressupostos de incidência, duplamente problemático.

Ele é, primeiramente, redundante em face do art. 38, § 1.º, I, c, que se refere de modo expresso

ao caso de instrumento não culpável. Em segundo lugar, o dispositivo dá ensejo à pergunta

quanto ao porquê de só se acrescentar tal dispositivo ao artigo que regula a maioridade penal,

e não, por exemplo, ao dispositivo que regula a inimputabilidade em razão de doença mental

(art. 32, I). Está claro que, em razão do art. 38, § 1.º, I, c, não há espaço para qualquer

argumento a contrario sensu; não será surpreendente, entretanto, que alguém avance esse

tipo de argumento. A única relevância prática do dispositivo está no aumento de pena nele

previsto. Ocorre que ela, também, é de duvidosa legitimidade: por que razão, a�nal, aquele

que se vale de menor merece pena mais severa do que quem se vale de louco ou de adulto que

age sem dolo?

VIII. À guisa de conclusão

O Projeto de Código Penal apresentado pela Comissão de Juristas, que foi examinado

apenas em parte no presente estudo, é, ao menos nessa parte,43 uma piada de mau gosto.

43 ... É uma pena que não tenhamos, nesse número especial da Revista Liberdades conseguido apresentar uma crítica aos demais títulos do Projeto, que não aos dois primeiros da Parte Geral. Uma análise cientí�ca requer tempo, assim como a elaboração e a discussão de um Código. Minhas considerações conclusivas se referem exclusivamente àquilo que examinei no presente estudo, isto é, aos dispositivos desses dois títulos, e a outros dispositivos expressamente mencionados de passagem. Tenho forte suspeita, entretanto, de que quando quase todos os frutos que se colhem por acaso de uma árvore são podres, o resto do Projeto provavelmente não estará melhor. Por isso, tomarei a liberdade de fugir um pouco de meu tema e tecer considerações críticas ao modo como foram regulados o aborto e a eutanásia. No aborto, acrescentou-se uma exclusão da antijuridicidade “se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”, (art. 128, IV); permitiu-se também expressamente o homicídio no caso em que se deixe de “fazer uso de meios arti(ciais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão” (art. 122, § 2.º). Longe de mim querer resolver tais problemas em uma nota de rodapé constante de um estudo sobre outro tema. Ao contrário do Projeto, estou ciente de que se trata de questões di�cílimas. Quero apenas mencionar que recusar a proteção penal à vida justamente daqueles seres humanos que se encontram em situação de mais extrema vulnerabilidade, a ponto de sequer disporem de uma voz para protestar contra a violação de seus direitos, só poderia, quando muito, justi�car-se se acompanhada de uma coerente e decidida estratégia de proteção extrapenal. Concretamente: ter-se-ia de proibir que o médico que atesta a falta de condição psicológica da gestante fosse o mesmo que realizasse o aborto; de regular rigorosamente o papel desse pro�ssional de saúde,

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Ele é fruto de uma rara mescla de desconhecimento jurídico e linguístico, falta de estudo,

desatenção, exibicionismo e demagogia. Ao menos no que se refere ao âmbito tratado no

presente estudo, o Projeto crê-se moderno, porque ele supõe que o que importa é mencionar

certos slogans, como ofensividade, domínio do fato, imputação objetiva, cujo conteúdo ele

quase que inteiramente desconhece. Ele não apenas mostrou não conhecer ou não se importar

com a obra de nossos falecidos mestres, como Nelson Hungria, Aníbal Bruno, Heleno

Fragoso, Assis Toledo, como optou soberanamente por ignorar nossos mestres vivos, como

Juarez Tavares, Juarez Cirino, Nilo Batista, Miguel Reale Júnior. Talvez me objetem que

René Dotti compunha a comissão; mas o fato de que ele a tenha abandonado bem cedo

é emblemático. O resultado �nal dá provas de que o mestre paranaense estava coberto de

razão.44

Velho e novo não são sinônimos, nem antônimos, de pior e melhor. Velho e novo não

são argumento. Quem deseja mudar o velho, tem de saber o que mudar, mais concretamente:

o que acrescentar e o que suprimir. Como se viu, o Projeto quase sempre andou mal, ou

errando naquilo que acrescentou, ou naquilo que não suprimiu, ou mesmo combinando os

dois erros. Os poucos acertos que consegui encontrar (principalmente acima II.3.b) poderiam

ser introduzidos por meio de uma lei especí�ca, sem que fosse necessário elaborar um novo

código. Quando tentamos descobrir de que razões o Projeto partiu para errar tanto, vimos

que a Exposição de Motivos, apesar de extensa (p. 207-479), em geral se limita a parafrasear a

redação dos dispositivos, sem apresentar um fundamento sequer. Pergunto-me, também, por

que não foi divulgado qualquer registro das muitas reuniões da Comissão de Juristas, por que

as discussões não foram, ao que parece, protocoladas.45 Fato é que o Projeto põe e dispõe, mas

não presta contas de quase nenhuma dessas decisões, talvez porque o único princípio jurídico

impondo-lhe o dever de esclarecer que “arcar com a maternidade” não implica necessariamente a criação de um �lho, de modo que a mãe, antes de matá-lo, deveria oferecê-lo para adoção; ou de regulamentar extensamente o living will, também conhecido como testamento vital, em vez de dar aos parentes e mesmo ao companheiro o direito de decidir sobre a vida de um enfermo. O Projeto, mais uma vez, quer parecer moderno, e colhe os aplausos de uma imprensa cuja única preocupação também é parecer moderna, sem re?etir sobre a di�culdade e a importância da tarefa que lhe está sendo con�ada. O que, na Parte Geral, parece quase uma brincadeira teórica (sem o ser; cf. acima I), na regulamentação dos crimes contra a vida signi�ca a temeridade de declarar não pessoas os “indesejados” da sociedade de consumo – aqueles que insistem em nascer ou em não morrer (fundamental: Silva Sánchez. Os indesejados como inimigos: a exclusão de seres humanos do status personae. Revista Panoptica, trad. Mário Monte, disponível em: <http://www.panoptica.org/novfev08v2/A2_V0_N11_A7.pdf>).

44 ... Cf. as considerações de Leite, nesse volume, que acertadamente observa que “a ciência não foi convidada” para a elaboração do Projeto.

45 ... Ouvi dizer que algumas reuniões foram transmitidas por televisão. É curioso que, na era da informação, essas supostas transmissões sejam de tão difícil acesso; não consigo encontrá-las por meio dos habituais sites de busca. De qualquer forma, como se diz há séculos, verba volent, scripta manent

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que ele leva a sério seja o nemo tenetur, e ele não quer produzir prova contra si mesmo. É

impossível reprimir a suspeita de que o Projeto blefa e chuta, de que seus dispositivos foram

redigidos sem que se soubesse exatamente o que se estava escrevendo, sem conhecimento,

sequer super�cial, dos institutos jurídicos que se estava tentando regular.46 Talvez me objetem

que eu exagero, que não é bem assim. Admito que há uma explicação alternativa para o

surgimento desse vexaminoso Projeto. Essa explicação, contudo, transforma em dolo aquilo

que era mera culpa. Eu já havia dito que as excessivas cominações presentes em nossas leis

penais manifestam uma atitude de desprezo pelo valor da vida do brasileiro.47 A explicação

alternativa seria a de que o presente Projeto vai além, manifestando um olímpico desprezo

pela nossa inteligência. A diversidade amazônica de erros do Projeto não decorreria, segundo

essa explicação alternativa, de desconhecimento jurídico e linguístico, e sim de uma falta de

respeito pelo povo brasileiro. Nossos legisladores sabem Direito, sabem Direito Penal, sabem

português, mas não se esforçam, porque pensam que nós, brasileiros, somos burros, que não

conhecemos nem Direito, nem Direito Penal, nem português, e que, portanto, acharemos

ótimo qualquer lixo que nos apresentem. Eles não ligam para o fato de que, apesar de nossas

dimensões geográ�cas, demográ�cas, ecônomicas e culturais, das quais, como brasileiros,

temos o direito de nos orgulhar, ganhemos um Código Penal diletante e descuidado, que fará

de nós, brasileiros, motivo de gargalhadas no resto do mundo, em todo lugar que se tenha

alguma noção elementar de direito penal.48

Não sei qual das duas explicações corresponde à realidade dos fatos. Provavelmente

cada qual em alguma parte. Sei apenas que transformar o Projeto em lei será um dos maiores

dentre os já muitos desserviços que o nosso Poder Legislativo terá prestado ao nosso país. O

único consolo que tenho é que nosso Legislativo não conseguiu transformar em lei nem o

Projeto de Código de Processo Penal (PL 156/2009), in�nitamente melhor que o diploma que

aqui critico, de modo que tudo indica que a reforma da legislação penal material tampouco

esteja entre as suas prioridades. No que diz respeito ao direito penal material, o Legislativo

nem estaria errado. De fato, não há pressa. Não se entende o porquê da correria, de elaborar o

Projeto em sete meses, de querer votá-lo no Senado até o �m do ano,49 como se, do dia para

a noite, a nossa legislação, cujas imperfeições ninguém desconhece (nem mesmo o Projeto,

46 ... Em sentido similar Cirino dos Santos, que enxerga “problemas conceituais muito sérios, (...) desarranjos cientí�cos e sistemáticos” no Projeto.

47 ... Cf. o artigo que cito em minha sétima nota de rodapé.

48 ... E nos (por sorte) poucos lugares em que se sabe português.

49 ... Como declarou o Presidente do Senado Federal, José Sarney, em notícia publicada no dia 6 de agosto de 2012, http://www.senado.gov.br/senado/presidencia/detalha_noticia.asp?data=06/08/2012&codigo=110558&tipo=12

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que porém se ocupa do cisco no olho alheio, ignorando a trave que está no próprio), tivesse

tornado-se tão agudamente insatisfatória a ponto de requerer um novo Código.50 Mas nunca

se sabe. Talvez tenham sido justamente as qualidades do Projeto de Código de Processo

que o emperraram. Se a velocidade de tramitação de um projeto de lei for inversamente

proporcional à sua qualidade,51 será questão de semanas ou mesmo de dias até que tenhamos

um novo Código Penal.

Luís GrecoAssistente cientí�co junto à Cátedra do prof. dr. dr. h.c.

mult. Bernd Schünemann, na Universidade de Ludwig

Maximilian, Munique, Alemanha;

Doutor em Direito e LL.M. pela mesma instituição.

50 ... A única razão para correr seria evitar a necessária discussão, da qual tem de participar a sociedade e a ciência do direito penal.

51 ... Para alguns exemplos recentes: Lei 12.694, de 9 de julho de 2012, sobre a lavagem de dinheiro; Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, sobre organizações criminosas.