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SABERES E LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA: QUESTÕES
TEÓRICO-METODOLÓGICAS E FONTES (1970-1990)
Décio Gatti Júnior
Universidade Federal de Uberlândia
Trata-se da comunicação dos resultados alcançados em investigação na área da
História das Disciplinas Escolares, na qual o olhar desenvolvido foi o sócio-histórico e
esteve concentrado no exame dos livros didáticos escritos e publicados no Brasil desde
meados da década de 1970 até o final da década de 1990, sendo que a análise deteve-se
sobre duas fontes principais, as obras didáticas e os depoimentos de autores e editores
de livros didáticos de História.
O processo de massificação do ensino brasileiro motivou a transformação dos
antigos manuais escolares nos modernos livros didáticos, significando a passagem do
autor individual à equipe técnica responsável e a evolução de uma produção editorial
quase que artesanal para a formação de uma poderosa e moderna indústria editorial.
No contexto dessa investigação foi possível apreender elementos importantes da
relação estabelecida entre editoras, governo e sociedade na disseminação do livro
didático escolar, bem como a centralidade que esse objeto material representa nos
processos de ensino e de aprendizagem no mundo e no Brasil.
Nessa direção, pôde-se abordar a importância do livro didático na escola
brasileira, a relação estreita entre os conteúdos disseminados nos livros didáticos, os
currículos escolares e os programas oficiais de ensino emanados dos órgãos de Estado,
bem como analisar as iniciativas de implantação do livro didático regional.
A invenção da escola na época moderna e sua disseminação mundial foram
formatadas desde o início pela força da cultura religiosa, sendo que os currículos
escolares da escola ginasial e, posteriormente, da escola primária, sofreram grande
influência das práticas escolares jesuíticas (Ratio Studiorum). Por muito tempo, História
Sagrada e História Profana habitaram, juntas, os currículos escolares, na perspectiva da
formação simultaneamente do súdito, cidadão/patriota e cristão fervoroso.
As mudanças provocadas pelo movimento de laicização da escola, a partir do
iluminismo, desde o século XVIII, provocaram o redimensionamento curricular e a
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mudança de finalidade na disciplina de História nos currículos escolares, no que se pode
encontrar um afastamento da questão religiosa, com ênfase concentrada na questão da
cidadania, por vezes e por razões conjunturais, mais ligada ao patriotismo, mas com
possibilidades que se abriram em certos momentos para a disseminação de conteúdos
mais críticos.
Tema, metodologia e fontes
A escolha deste tema deveu-se à percepção da existência de um campo de
pesquisa praticamente inexplorado, bem como à possibilidade de realizar uma
investigação que abordasse o livro didático, neste caso, o livro didático de História, de
modo a apanhar a especificidade dos seus processos de constituição e transformação no
decorrer das décadas de 1970 a 1990.
A periodização pôde ser estabelecida no decorrer do processo de investigação,
quando se conseguiu perceber o marco temporal que assinalou uma mudança
significativa nos textos didáticos de História. Estas mudanças foram percebidas, em um
primeiro momento, nas alterações de formato das coleções didáticas (do 14x18cm ao
21x28cm) e na modernização das concepções didático-pedagógicas e, em seguida, na
absorção de uma série de inovações temáticas, técnicas e novamente pedagógicas.
Além de a periodização ter sido definida ao longo da pesquisa, também a
delimitação espacial foi se solidificando concomitantemente ao avanço do
desenvolvimento da investigação, na qual os sujeitos envolvidos encontravam-se nas
cidades de São Paulo, Belo Horizonte e João Pessoa, bem como os empreendimentos
editoriais enfocados concentravam-se na região sudeste do Brasil.
De fato, a necessidade de abrigar grandes contingentes populacionais na escola
sem o devido investimento do Estado, acarretou uma situação quase trágica, em que à
ausência de professores qualificados somaram-se o ingresso de alunos sem condições
financeiras e culturais satisfatórias e a inadequação dos espaços escolares, sem
bibliotecas etc.
Nesta situação, o livro didático apareceu como o caminho que poderia assegurar a
qualidade da Educação recebida por todos que estivessem na escola. Repetia-se aquela
velha idéia, tão presente no início da implantação das democracias liberais de que
quanto pior o professor, melhor precisam ser os livros-texto (APPLE, 1997, p. 112).
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De qualquer modo, essas ações por parte do Estado demonstravam uma tentativa,
ainda que malfadada, de implantação da meritocracia como principio educacional no
país, mas a escola que se abriu para todos nunca foi à mesma para todos, perpetuando,
dessa forma, uma separação eficiente entre os que poderiam ocupar cargos de gestão do
trabalho e aqueles que deveriam executar o trabalho para manutenção do status quo.
Esta idéia guiou este trabalho e permitiu compreender, por exemplo, porque,
segundo a fala dos autores e editores consultados, existem livros didáticos de História
destinados ao ensino médio que eram elaborados para estudantes mais em cima ou mais
embaixo, o que, poder-se-ia traduzir como: um livro para os alunos das classes sociais
mais abastadas e outro para as massas populares.
Mas, ao lado dessa idéia, acredita-se, a partir de André Chervel, na diferença
existente entre os saberes escolares e o os saberes produzidos no ambiente acadêmico,
porém, não se tinha idéia de como levar adiante uma investigação que conseguisse
examinar esse processo, especialmente, nas três décadas enfocadas nesta pesquisa.
Porém, a partir dos relatos feitos pelos autores e editores de diversas coleções
didáticas, foi possível perceber que a constituição dos conteúdos disciplinares,
expressos nos livros didáticos, não era à transposição dos saberes produzidos na
pesquisa científica, mas sim, resultado de um leque amplo de fatores, tais como: as
novidades produzidas no âmbito da ciência, que são selecionadas conforme as opções
teórico-ideológicas dos autores e, por vezes, dos editores; as mudanças curriculares e
programáticas provenientes dos diversos órgãos que legislam sobre a educação escolar;
a sociedade civil, especialmente a mídia que por vezes conduz o aparecimento ou a
valorização de certas temáticas em detrimento de outras. De qualquer forma, estas idéias
foram valiosas e ajudaram na descoberta de uma série de características e implicações
presentes nos processos de configuração e reconfiguração dos livros didáticos.
Após a realização do trabalho investigativo fica evidente que os livros didáticos
de História passaram por processos de mudança vinculados de modo complexo às
mudanças sociais mais amplas, especialmente com o ingresso de novos contingentes
populacionais na escola, bem como aos processos de inovação teórica e temática
oriundos do campo da História e, por fim, das inovações tecnológicas apresentadas.
Quanto às inovações teóricas pode-se destacar a passagem de uma abordagem
eminentemente política e oficializada, presente na maior parte das coleções didáticas da
década de 1960 (com permanência em alguns textos até a década de 1990), para a
influência de uma historiografia de base econômica nas décadas de 1970 e 1980 (com
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maior freqüência nas coleções voltadas para o ensino médio) e, o ingresso de temáticas
ligadas a História Cultural durante a década de 1990.
Por outro lado, há marcas importantes no que diz respeito as mudança em
aspectos didático-pedagógicos presentes nas diferentes coleções didáticas analisadas,
nas quais houve movimentos no sentido de extrema valorização do papel das imagens e
ilustrações no material instrucional, em detrimento do texto escrito, as atividades
programadas, os livros consumíveis etc. (décadas de 1960 e 1970), para uma
revalorização do texto em equilíbrio com imagens e outros recursos didático-
pedagógicos, tais como boxes, mapas etc (décadas de 1980 e 1990).
Os livros didáticos examinados foram conseguidos de diversas formas: 1) muitos
já compunham a biblioteca pessoal do pesquisador, oriundos das estratégias de
divulgação das editoras nacionais que lhe enviaram, desde a década de 1980 exemplares
gratuitamente; 2) os produzidos entre as décadas de 1910 e 1960 foram doados pela
filha do falecido Prof. Osvaldo Vieira Gonçalves, ex-diretor da Escola Estadual
Uberlândia, ressaltando-se que os mesmos não constituíram o centro das atenções da
investigação, mas que serviram como importante instrumento de comparação com os
livros didáticos do período diretamente relacionado à investigação; 3) outros foram
doados ou emprestados pelos próprios autores e editores entrevistados, especialmente
aqueles publicados na década de 1970.
Chegou-se, dessa forma, ao número aproximado de 350 livros, totalizando cerca
de 50 coleções didáticas destinadas ao ensino fundamental e médio. A seleção e análise
destes materiais foram fundamentais para o desenvolvimento da investigação, pois que
possibilitaram tanto a elaboração de questões dirigidas aos autores e editoras quanto à
procura de respostas para as dúvidas que surgiram ao longo da investigação.
As entrevistas com os autores e editores foram fundamentais. Foram selecionados
diversos nomes, mas por uma série de razões de ordem prática, efetivaram-se junto a
três autores de livros bem posicionados há vários anos e dois editores, um de uma
grande editora paulista, a Editora Saraiva, e outro de uma editora mineira, a Editora Lê,
que na época se destacava na produção de coleções de História.
Foram escolhidos tanto livros didáticos quanto entrevistados que pudessem
fornecer uma amostra significativa do que foi a produção didática no campo da História
e, em um período específico, nos Estudos Sociais, nas décadas de 1970 a 1990.
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Estado, editoras e livros escolares
As editoras de livros didáticos são fornecedoras de milhares de livros adquiridos
pelo Governo Federal desde o final da década de 1960, com significativo aumento de
intensidade a partir da década de 1980 até os tempos atuais. Segundo Wander Soares, na
época da investigação, vice-presidente da Associação Brasileira de Livros (Abrelivros)
e Diretor da Editora Saraiva, nos dois últimos exercícios, o governo investiu US$ 681,2
milhões na aquisição de livros didáticos, comprando 130,4 milhões de exemplares em
1995 e 90 milhões em 96. (SOARES, 1997, p. 3)
É conveniente recordar que, no início de 1997, o MEC brasileiro veiculou na
mídia nacional noticia de sua ação de distribuição, por meio do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), de 110 milhões de livros didáticos aos alunos do Ensino
Fundamental das escolas públicas brasileiras. Como o governo brasileiro na época
adquiria apenas livros destinados a esse nível de ensino, é evidente que as editoras
tinham razão de estar preocupadas em atender às sugestões expressas nos PCN o mais
rapidamente possível, pois, provavelmente, os critérios da avaliação desses livros,
fixados pelo próprio MEC, sofreriam alguma influência das determinações expressas
nos PCN.
De modo geral, as editoras brasileiras voltadas para o segmento dos didáticos
demonstravam estar acostumadas a conviver com propostas de mudança curriculares e
educacionais dessa maneira. Sabiam, também, que muitas delas não vingam na prática,
por falta de diversas condições, dentre elas, a ausência de um material didático que as
sustente, pois as editoras têm clareza que grande número de escolas e de professores,
por uma série de razões conhecidas, tem dificuldade em promover mudanças em sua
prática de ensino, sem o suporte de um material didático consistente que, inclusive, os
ajude a organizar as aulas. Como afirma o editor Jiro Takahashi:
[...] onde o currículo está mal explicado, mal colocado, quer dizer... se
você lançar um livro bem feito, de agrado dos professores e colocar lá
no frontispício: ‘de acordo com os guias curriculares do Espírito Santo’
todos os professores de lá, se não entenderem bem a proposta curricular
do Estado, vão acabar adotando aquele como programa, e não o guia. O
livro passa a ser o próprio guia. (Citado em OLIVEIRA, 1984, p. 73)
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Governo e editoras estabelecem, dessa forma, relações de mão dupla em muitos
sentidos. De fato, a assinatura do acordo MEC/USAID, a partir do final da década de
1960, marcava o início desta relação entre editoras e o governo brasileiro. Os
investimentos governamentais nessa área cresceram vertiginosamente no decorrer do
período compreendido entre as décadas de 1970 a 1990, ajudando a alavancar o setor
editorial nacional.
Mesmo diante de significativos investimentos governamentais, não é a totalidade
da população que freqüenta a escola que tem acesso aos livros escolares solicitados por
seus professores. Constata-se que, em muitos casos, os gastos financeiros com material
didático alcançam a totalidade do valor do salário médio mensal pago à maior parte dos
trabalhadores do país, o que assinala que o acesso ao ensino médio de qualidade, no
qual o estudante pode ao menos contar com a possibilidade de utilizar um bom material
didático, é destinado a uma pequena parcela da população brasileira. Qual o significado
disto?
Se os livros didáticos assumiram um papel importante nos processos de ensino e
de aprendizagem desenvolvidos na educação escolarizada, quais são as conseqüências
deles não estarem disponíveis para toda a população que ocupa os bancos escolares? Ao
que parece, o livro didático torna-se mais um dentre os diversos objetos culturais que
assinalam diferenciação e exclusão social.
Disseminação do uso do livro didático
Nos Estados Unidos calcula-se que cerca de 75% do tempo em sala de aula é
gasto no trabalho com livros didáticos e que 90% do tempo de estudo em casa são
ancorados neste mesmo instrumento educacional. (APPLE, 1995, p. 85). No Brasil, não
há dados precisos sobre este assunto. Porém, é possível afirmar, com boa chance de
acerto, que o país alcança um nível senão maior, pelo menos, muito próximo daquele
que se apresenta nos Estados Unidos.
Além de desempenhar este papel central no cotidiano escolar dos alunos há
tempos e, no caso brasileiro, por que não mencionar, no exercício profissional dos
educadores dos mais diferentes níveis, os livros didáticos desde há muito tempo são
ainda o produto mais vendido pelas editoras nacionais.
Dados da década de 1990 demonstravam a predominância dos livros didáticos
na produção das editoras nacionais. Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), em
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1996, os livros escolares representaram 61% dos exemplares vendidos e 55% do
faturamento do setor. (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. 1996. p. 2).
Na França, a título de comparação, as editoras, neste mesmo ano e nicho de
mercado, concentraram aproximadamente 20% do negócio editorial. (CÂMARA
BRASILEIRA DO LIVRO. 1996. p. 2) As editoras norte-americanas, em 1980,
concentravam cerca de 25% do seus negócios no ramo dos livros escolares, o que, em
valores absolutos, alcançou 1,5 bilhão de dólares (APPLE, 1995, p. 90).
É interessante observar, que há algumas décadas, o setor didático não ocupava
tal centralidade, nem no cotidiano dos alunos, nem na produção editorial. Dos anos
trinta ao início dos anos sessenta, os chamados manuais escolares eram solicitados pelos
professores aos alunos, mas nem sempre eram utilizados. Por exemplo, a Profª. Joana
Neves, autora de livros didáticos, relatou sua relação com os livros didáticos,
especialmente os de História, durante sua formação escolar entre as décadas de 1950 e
1960:
Eu não utilizava. Sempre comprava, mas nunca utilizava. Para
demonstrar como a gente não utilizava o livro didático vou te dar um
exemplo. A Rádio Record tinha, em São Paulo, um programa de coleta
de livros didáticos usados, para distribuir aos alunos carentes. Isso no
fim da década de 50, início da de 60. Em casa, nós éramos seis
estudantes. Nós tínhamos um número de livros didáticos bem razoável. O
livro de inglês era o único que nós usávamos de fato, pois, [...] tinha as
lições e o professor usava. [...] Nós sempre comprávamos os livros, às
vezes 2 para 3 usarem, porque os horários não batiam e as salas de aula
que íamos ficar permitiam que realizássemos a troca etc. De qualquer
modo, geralmente, a gente comprava. O rapaz da Rádio Record que ia
buscar os livros lá em casa dizia que era bom, porque eles estavam
novinhos. A gente realmente não usava. (NEVES, 1997, pp. 55-6)
É evidente que, entre as décadas de 1970 a 1990, foi quase que eliminada a
possibilidade de relatos como este, pois, com a ampliação do número de escolas e com a
entrada de novos personagens sociais neste território, o livro tornou-se um recurso
didático indispensável para a escola brasileira.
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Desta forma, pode-se afirmar que os livros didáticos são, incontestavelmente,
instrumentos privilegiados no cenário educacional brasileiro e internacional, pois são
eles que, verdadeiramente, estabelecem grande parte das condições materiais para o
ensino e a aprendizagem nas salas de aula de muitos países através do mundo (APPLE,
1995, p. 81).
Ao fornecer estas condições, eles acabam sendo os fiéis depositários dos saberes
provenientes das diferentes disciplinas escolares. Os livros didáticos, nesse sentido,
rivalizaram quando não, em certo sentido, substituíram os professores no decorrer
desses anos, passando a ser os portadores dos conteúdos explícitos a serem transmitidos
aos alunos e, também, como se verá adiante, tornando-se os organizadores das
atividades didático-pedagógicas exercidas pelos docentes para viabilizar os processos de
ensino e de aprendizagem.
Ao que parece, o saber contido nos livros didáticos não é a pura e simples
transposição do conhecimento desvelado no universo da pesquisa de ponta, mesmo
porque os resultados alcançados nesta são quase sempre contraditórios e divergentes.
Não parece possível que os antigos manuais escolares e os modernos livros didáticos
possam comportar as diversas aquisições da pesquisa de ponta desenvolvida em todo o
planeta e expor as divergências dessas investigações para crianças e jovens espalhados
pelas escolas de todo mundo.
Nem mesmo as enciclopédias, que nasceram com o intuito de condensar todo o
conhecimento humano em suas páginas, conseguiram esse feito, o que de toda maneira
é uma impossibilidade, quanto mais os manuais e livros didáticos, que foram
constituídos para serem utilizados por períodos determinados e por para clientelas
específicas e que nunca puderam e nem poderiam atingir um número de páginas e
volumes como os das enciclopédias.
Desde o Séc. XVIII, os saberes escolares foram divididos em diferentes
disciplinas, comportando processos complexos e diferenciados de constituição em todos
os lugares. Na escola brasileira, especialmente nas últimas décadas, estes saberes
disciplinares encontraram no livro didático um lugar quase que exclusivo para sua
existência.
É importante lembrar André Chervel, para quem as disciplinas escolares e,
conseqüentemente, os saberes das quais são portadoras, não são a simples adaptação ou
transposição do saber acadêmico para os níveis escolares fundamentais.
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Para Chervel, a constituição dos saberes escolares, concretizados especialmente
por meio das disciplinas, segue itinerários bastante diferenciados, obedecendo a
demandas de esferas sociais quase nunca idênticas àquelas existentes na produção do
conhecimento acadêmico. Para ele,
A disciplina Escolar é [...] constituída por uma combinação, em
proporções variáveis, conforme o caso, de vários constituintes: um
ensino de exposição, os exercícios, as práticas de incitação e de
motivação e de um aparelho docimológico, os quais a cada estado da
disciplina, funcionam em estreita colaboração, do mesmo modo que
cada um deles está, à sua maneira, em ligação direta com as finalidades.
(CHERVEL, 1990, p. 207)
Caso a assertiva de Chervel esteja correta, pode-se afirmar que o núcleo
constitutivo de uma disciplina escolar pode ser observado e examinado nos livros
didáticos que, no caso brasileiro, assumiram um papel duplo: o de portadores dos
conteúdos disciplinares e o de organizadores das aulas.
Nesse sentido, pode-se afirmar que estes objetos da cultura escolar - os livros
didáticos - são o resultado e, conseqüentemente, uma amostra dos processos culturais
vivenciados na escola, lugar onde se entrecruzam aspectos da História da Cultura e da
História da Pedagogia.
Há, evidentemente, diversas outras formas de entrada nesta questão dos saberes
escolares. Philippe Perrenoud, por exemplo, promoveu uma diferenciação entre
currículo formal e real no trabalho escolar, criticando a predominância de um sistema de
avaliação que se prende ao currículo formal e alija elementos efetivamente praticados
por professores e alunos no ambiente escolar1, no que está acompanhado, de certo
modo, por Ivor Goodson, que estabelece uma diferenciação entre norma e prática no
âmbito escolar.
De qualquer modo, é importante não deixar de lado a idéia de que as práticas
escolares apresentam um percentual de não-correspondência variável em relação às
diretrizes e normas emanadas dos órgãos governamentais ou eclesiásticos, mas também
que há uma tendência, por diversos fatores, para que as práticas de ensino das diversas
1 Para obter maiores informações consulte: Phillippe PERRENOUD. La Fabrication de l'excellence
scolaire: du curriculum aux pratiques d'évaluations (especialmente o capítulo VIII).
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disciplinas se homogeneízem, ainda que em um país de dimensões continentais como o
Brasil.
É perceptível o fato de que nos livros didáticos apresentam-se os conteúdos
disciplinares de forma explícita. Assim, estes conteúdos que constantemente mudam,
são sempre uma seleção daquilo que deve ser trabalhado nas escolas. Este caráter
seletivo é extremamente importante na compreensão dos livros didáticos.
Como exemplo, pode-se observar que em diversos momentos, diferentes
coleções didáticas destinadas para um determinado grau escolar apresentam conteúdos e
textos muito parecidos. Quais as razões disso? Provavelmente, a existência de um
consenso social em torno do ensino daqueles conteúdos e não de outros, ou seja, na
sociedade cria-se uma variedade de determinações e imposições que não abre muito
espaço para experiências alternativas.
Livro didático como fonte para a História do ensino e das disciplinas escolares
Se nesta pesquisa os livros didáticos puderam ser, no campo da História da
Educação, uma fonte bastante satisfatória, por que eles não foram chamados desde há
muito tempo para exercer esta função? Provavelmente, porque nos paradigmas
historiográficos predominantes no país até a década de 1970, não sobrava espaço para
investigações desta natureza, pois a tendência do desenvolvimento de análises
estruturais e sistêmicas não permitia a incorporação de uma investigação mais
específica e detalhada sobre o cotidiano e as práticas escolares, ou seja, daquilo que se
passava no interior das escolas.
No Brasil, só recentemente, houve esforços de pesquisadores em constituir
acervos de materiais escolares. Diferentemente da França e outros países europeus onde
há algumas décadas se desenvolvem trabalhos sistemáticos de investigação histórico-
educacional, tanto por meio das pesquisas de base quanto no financiamento de
investigações de longo alcance e por isso mesmo de longa duração.
Na França, o Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica (INRP), herdeiro do
Museu Pedagógico, realiza pesquisas de base e aplicadas referentes ao ensino de todos
os graus, possuindo atualmente diversas áreas de investigação, dentre as quais a de
História da Educação. Nesta área, há um banco de dados, Emmanuelle, sobre os
manuais escolares franceses e que abarca o período compreendido entre a Revolução
Francesa e a atualidade.
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Na década de 1990, Circe M. F. Bittencourt implantou a Biblioteca do Livro
Didático na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FaE/USP), a qual
mantém vinculação com o Emmanuelle francês, o que, sem dúvida, constituiu alento
para os pesquisadores que se dedicam à temática dos livros didáticos, pois para
realizarem suas pesquisas os investigadores quase sempre tem que produzir seu próprio
acervo de livros didáticos.
O livro didático foi objeto de uma série de análises alicerçadas em diferentes
cortes teóricos e metodológicos, provenientes de diferentes campos de investigação
científica. Mas, segundo Magda Soares,
Muitos e vários olhares vêm sendo lançados sobre o livro didático nos
últimos anos: um olhar pedagógico, que avalia qualidade e correção,
que discute e orienta a escolha e o uso; um olhar político, que formula e
direciona processo decisórios de seleção, distribuição e controle; um
olhar econômico, que fixa normas e parâmetros de produção, de
comercialização, de distribuição. Avaliar qualidade e correção, orientar
escolha e uso, direcionar decisões, fixar normas...são olhares que
prescrevem, criticam ou denunciam; por que não um olhar que
investigue, descreva e compreenda? Olhar que afaste o "dever ser" ou o
"fazer ser", e volte-se para o "ser" - não o discurso sobre o que "deve
ser" a pedagogia do livro didático, a política do livro didático, a
economia do livro didático, mas o discurso sobre o que "é", o que "tem
sido", o que "foi" o livro didático. (SOARES, 1996, p. 53)
e complementa:
É verdade que olhares investigativos e descritivos - talvez não muitos,
mas vários - têm sido lançados, em nosso país, sobre o livro didático tal
como é ou tem sido: pesquisas sobre conteúdos programáticos, aspectos
psicopedagógicos e metodológicos, conteúdo ideológico. O que,
entretanto, tem faltado entre nós é um olhar sobre o livro didático que se
lance do lugar de uma História do ensino e de uma Sociologia do ensino,
ou seja, um olhar que busque uma perspectiva sócio-histórica do livro
didático. É olhando desse lugar que talvez se possam entender as
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polêmicas em curso em nosso país: manter ou rejeitar o livro didático?
defendê-lo ou condená-lo? O que é, afinal, um livro didático de
"qualidade"? (SOARES, 1996, p.54)
Olhares como os sugeridos por Magda Soares têm sido lançados recentemente
por pesquisadores vinculados ao campo de investigação da História das Disciplinas
Escolares, de matriz francesa, pois que influenciados pelos esforços de pesquisa do
INRP, mas que, no Brasil, pode ser observado especialmente na produção intelectual e
na ação da professora Circe Bittencourt.
Tanto Magda Soares quanto Circe Bittencourt, uma na teoria e outra na prática
investigativa, compartilham da idéia de que os livros didáticos são uma fonte importante
para a investigação, descrição e compreensão da História dos processos de ensino das
escolas brasileiras.
É interessante observar que os próprios autores de livros didáticos entrevistados
compartilham dessa opinião, conforme se pode depreender da avaliação crítica realizada
pelo Prof. Ricardo Faria, autor de livros didáticos a respeito da adequação dos livros
escolares como fonte para compreensão do ensino brasileiro. Pare ele,
[...] o livro didático da maneira como ele é usado no Brasil oferece uma
amostra muito clara o que é a proposta pedagógica brasileira: é o
“samba do crioulo doido”. [...] O livro que se usa na França, no 2º
grau, se tentássemos colocá-lo na escola brasileira, ele não seria aceito
porque é uma coisa tão gigantesca a proposta, é tão rica a metodologia
que não teria lugar na escola brasileira. É o tal negócio: o livro é uma
mercadoria e por mais que a gente tenha uma proposta pedagógica, ele
é uma mercadoria e o editor lança aquilo que vai vender. (FARIA e
BERUTTI, 1997, pp. 120-1)
Opinião assemelhada foi manifestada pela Profa. Joana Neves, com o
complemento de importantes dados históricos sobre a utilização desse objeto.
Questionada sobre a fertilidade do livro didático como fonte de pesquisa, ela respondeu:
Por intermédio do estudo do livro didático você chega a ter um
panorama do ensino brasileiro. Nesse caso, eu daria até uma pista, que
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talvez para essa compreensão seja mais importante do que entender o
livro didático como produto, como conteúdo. É entender o uso que se
faz do livro didático. Quais são as expectativas em relação ao livro
didático e o uso que se faz dele. [...] No meu tempo, por exemplo, o livro
perdia de longe para o caderno que a gente fazia [...] Como ele [livro
didático] passou dessa condição de material secundário para o aluno,
para a de material prioritário para o professor? Eu acho que a
compreensão desse processo sobre o uso livro didático elucidaria muita
coisa da realidade do ensino brasileiro. (NEVES. 1997. pp. 45-6.)
De fato, neste trabalho, parte-se da assertiva de que os livros didáticos são uma
fonte importante para a compreensão da forma tomada pelo ensino das disciplinas
escolares, especialmente, do ensino da disciplina História, nas últimas séries do ensino
fundamental e nas três séries do ensino médio. Importante, mas não única, pois há uma
série de determinações para a compreensão do fenômeno educacional que envolveriam
a busca de outras evidências.
Mas, afinal, que são livros didáticos? Existe uma resposta única para essa
questão? Sua conceituação é variada, revelando a complexidade da qual se reveste o
objeto que se pretende compreender. Os livros didáticos são tomados simultaneamente
como: material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num
processo de aprendizagem ou formação; materiais caracterizados pela seriação dos
conteúdos; mercadoria; depositário de conteúdos educacionais; instrumento pedagógico;
portador de um sistema de valores; suportes na formulação de uma História Nacional;
fontes de registros de experiências e de relações pedagógicas ligados a políticas
pedagógicas da época; e ainda como materiais reveladores de ângulos do cotidiano
escolar e do fazer-se da cultura nacional. (BITTENCOURT, 1993, p. 3;
CARVALHO(a), 1991, pp. 17-8; CARVALHO(b), 1992, p. 3; OLIVEIRA E OUTROS,
p. 11; MUNAKATA, 1994, p. 12)
Este aparente emaranhado é, na verdade, uma amostra da complexidade que a
análise deste objeto comporta, pois o livro didático é simultaneamente um pouco de
tudo isto e, nesse sentido, cada ângulo de observação permite o desenvolvimento do
olhar histórico.
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No final da década de 1990 a centralidade que o livro didático havia ganhado no
interior das práticas escolares brasileiras era impressionante. De fato, boa parte dos
professores havia tornado-se dependente desses materiais instrucionais, pois os mesmos
tornaram-se o material básico de referência para os alunos e também eram os
organizadores das atividades desenvolvidas na quase totalidade das aulas.
Evidentemente que as dificuldades enfrentadas pelos docentes brasileiros à
época e que, em boa medida, permanecem até os dias atuais, a saber: baixos salários;
falta de condições adequadas para estudar e preparar as aulas; formação inicial
deficiente; ausência de formação continuada; sobrecarga de trabalho, com muitas aulas
semanais e pilhas de trabalhos e provas para corrigir etc. Mas, será que foi sempre assim
na escola brasileira?
Tudo indica que não, pois, quando o volume de alunos que ocupavam os bancos
escolares era reduzido, na primeira metade do Séc. XX, os professores, ainda que não
tivessem salários altos, tinham melhores condições de trabalho. Nesse período, a escola,
grosso modo, restringia-se a formar as camadas mais abastadas da população,
especialmente no nível secundário e superior.
A expansão da rede escolar brasileira, iniciada na década de 1960 e que no final
da década de 1990 ainda estava inconclusa, expandiu para todos uma escola com
condições de qualidade bastante diferenciadas, com predominância da baixa qualidade
para aquelas destinadas as massas populares.
Nesse sentido, na formação do estrato mais carente da população foram
disponibilizados pelo Estado, quase sempre: os piores prédios escolares, os professores
com nível de capacitação mais baixo e, por fim, minguados investimentos financeiros.
Para a formação das elites intelectuais, sempre foram destinados o que de melhor se
poderia oferecer em Educação, bons prédios escolares, professores mais preparados e
recursos financeiros vultuosos.
A Educação tipicamente liberal, igualitária e meritocrática, com função
legitimadora das diferenças sociais e organizadora dos talentos esteve, deste modo,
longe de ser efetivada no processo de democratização da escola brasileira desde a
década de 1960. Nesse sentido, seria melhor que se substituísse o termo democratização
que, neste caso, tem significado enganoso para a análise do processo de expansão de
vagas escolares no Brasil, pelo termo massificação que, aparentemente, representa
melhor o processo vivenciado por milhares de crianças e jovens brasileiros no decorrer
das décadas de 1960 a 1990.
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Em um contexto como esse é que se fez e criou o livro didático de História
existente no final da década de 1990. É certo que ele passou por alterações no decorrer
das décadas de 1960 a 1990, em especial, em seus conteúdos e em sua edição, mas
houve a permanência de uma função paliativa no cenário escolar.
De fato, o livro didático e a política de distribuição executada pelos diversos
governos serviram para camuflar um sem número de mazelas do sistema educacional
brasileiro. Se parte considerável dos professores recrutados para o trabalho nessa escola
que se expande não eram à época formados nas áreas disciplinares em que atuavam,
nada melhor que um livro organizador dos conteúdos e das práticas pedagógicas das
aulas, acompanhado, evidentemente, das perguntas e respostas às questões propostas no
próprio livro didático.
Para o Sr. Alexandre Faccioli, editor da Saraiva no final da década de 1990, o
livro didático sempre ocupou papel central na escola brasileira disseminada ao longo do
Séc. XX. Porém, para ele, na primeira metade deste século existiam professores mais
capacitados e que necessitavam do livro didático com suporte e não como elemento
central de sua ação educacional. O Sr. Lino Fruet que era, na época da entrevista,
gerente editorial da Saraiva ressaltou o papel essencialmente comunicativo que o livro
didático assumiu entre as décadas de 1970 e 1990, o que o diferenciava dos livros
didáticos do início do Séc. XX. Por fim, o Sr. Alexandre Faccioli relatou que essa
centralidade não torna o livro didático culpado pelas mazelas educacionais do país, mas,
em certa medida que ele pode ser parte da solução dos problemas nessa área, o que
deveria, em sua análise, ser complementado pela existência de professores que
soubessem bem a disciplina que lecionassem (FACCIOLI e FRUET, 1997, pp. 11-2).
Para o Prof. Jobson Arruda a centralidade assumida pelo livro didático no
interior da escola brasileira é uma:
Faca de dois gumes! Porque, de um lado, eu já disse que o desejável
seria que você não tivesse o texto didático e que o professor pudesse, por
exemplo, para cada passo, indicar um livro, mas isso é impossível. Por
outro lado, você deve levar em consideração as dificuldades do
professorado brasileiro. Você tem professores com boa formação e tem
professores que precisam do livro didático do lado do aluno e do lado
dele mesmo. O fato de haver respostas para o livro do professor, isso
ajuda muito ao professor. Uma vez alguém disse: “- Puxa, mas você
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contribui para a ignorância, porque você dá a resposta mastigada para
o professor e ele não tem que estudar”. Eu disse: “- É, mas você não
pensou na outra hipótese, que isto que eu estou dando para ele é o que
ele vai aprender, ele vai aprender isto, ele não sabe mais do que isso e
não vai aprender mais nada”. Basta ver, outro dia apareceu uma
matéria, não sei se foi no jornal ou na televisão, de uma menina que foi
contratada para dar aula, de quatorze anos, que era a única pessoa que
sabia alguma coisa para dar aula num lugar qualquer ai, acho que em
Rondônia. Agora, imagine se para ela um livro que tenha as respostas
não é uma coisa útil, se ela chegar a aprender tudo aquilo é uma
maravilha! (ARRUDA, 1997, p. 87)
Para o Sr. José Orlando Cunha, na época editor da Editora Lê, desde a década de
1970, devido à decadência da formação dos professores, os livros didáticos no mercado
haviam se tornado de difícil compreensão de boa parte dos professores, o que fez com
que as editoras moldassem seus produtos para um perfil docente com baixo nível de
formação e, por conseguinte, com pouca autonomia frente aos conteúdos e a prática
pedagógica. Nesse sentido, o Sr. José Orlando Cunha criticou a avaliação dos livros
didáticos realizada pelo MEC na década de 1990, pois que ela considerava os livros
didáticos apenas pela ótica dos acadêmicos, sem levar em consideração os ditames do
mercado, ou seja, dos desejos e necessidades dos professores (CUNHA, 1997, pp. 108-
9).
Na mesma direção o Prof. Ricardo Faria externou que no final da década de
1990 era perceptível a enorme dependência dos professores em relação ao livro
didático, pois que diante das mudanças curriculares levadas a cabo em Minas Gerais em
meados da década de 1990 os livros didáticos é que a viabilizaram, concretizaram-na.
Em suas palavras:
Nós tivemos um exemplo aqui em Minas, com esta última coleção para
as quatro últimas séries do 1° grau. Ela atrasou um pouquinho. O
programa foi lançado pelo governo e foi exigido que as escolas o
aplicassem já em 1996. Não havia livro nenhum no mercado, ficou todo
mundo doído. Por quê? Porque ninguém sabia trabalhar sem o livro. Há
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uma dependência do professorado em relação ao livro didático que é
uma coisa que incomoda. (FARIA e BERUTTI, 1997, pp. 122-3)
É interessante observar que os depoimentos permitem vincular o exame da
centralidade assumida pelo livro didático na escola brasileira ao processo de
desqualificação dos docentes. Porém, a lembrança do Sr. Alexandre Faccioli de que os
livros didáticos sempre foram muito utilizados na escola brasileira deve ser entendida
com ressalvas, pois, sempre houve exceções e, mesmo que esses livros fossem
utilizados, eles não cuidavam de tantas coisas como os do final da década de 1990, que
tinham cadernos de atividades, sugestões de filmes, sugestões de práticas em sala de
aula etc.
O Sr. Lino Fruet, por seu turno, foi muito oportuno ao assinalar que uma das
características mais importantes dos livros didáticos do passado era a de não expressar
grandes preocupações didático-pedagógicas e comunicacionais, ignorando o leitor para
o qual se destinavam.
Nesse sentido, a afirmação do Sr. Alexandre Faccioli de que o livro didático não
deve ser tomado como vilão, mas sim, como parte da solução é repleta de sentido, pois
que o livro didático, durante as décadas de 1970 a 1990 foi utilizado como paliativo
para problemas de boa parte do professorado, que consistiam, em síntese, na falta de
qualificação e de tempo para preparação de suas aulas.
Aparentemente, sempre foi cômodo, barato e seguro para o governo, do ponto de
vista político, distribuir livros, pois agindo dessa forma o governo não precisava investir
diretamente nas escolas; agradava aos setores industriais e evitava ter que agir junto aos
cursos deficientes de licenciatura oferecidos por boa parte das faculdades que se
espalhavam pelo país à época.
Saberes, currículos e livros escolares
Nos depoimentos foi possível apreender a opinião dos autores sobre as relações
que existentes entre os conteúdos expressos nos livros didáticos e os currículos
escolares. A Profª. Joana Neves acredita que:
A grande aspiração de todo editor é poder colocar na capa do livro: "De
acordo como a proposta oficial" ou "De acordo com os Parâmetros
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Curriculares", porque eles trabalham com a suposição de que o
currículo é obrigatório, de que ele vai ser cumprido e se o livro estiver
de acordo com o currículo, vai ser adotado. Agora, o que não está sendo
considerado pelas editoras é que boa parte das reestruturações
curriculares se origina nos livros, quando as equipes das Secretarias de
Educação são organizadas para reelaborarem os currículos. [...] Há,
principalmente, sugestões de conteúdos que equivalem aos índices dos
livros. Nós já tivemos a oportunidade de ver alguns programas que são
reproduções dos livros didáticos, de um determinado livro didático, mais
usado e mais vendido. Isto era mais simples e mais fácil durante o
regime militar, que era um regime mais claramente, assumidamente
centralizado. Depois, com a chamada redemocratização, com a
regionalização, com uma liberdade local maior, as secretarias de
educação estaduais e municipais são proclamadas a se sentirem livres,
para proporem aquilo que é mais adequado para sua região. (NEVES,
1997, pp. 53-4)
Ainda sobre a temática da relação entre livro didático e currículo escolar, o Prof.
Jobson Arruda afirmou que o redirecionamento de uma programação curricular pelos
órgãos responsáveis pela Educação em seus diversos níveis tem impacto imediato e
abrangente no consumo e, portanto, na produção do livro didático. Pare ele
Muitas vezes você faz uma mudança porque isso corresponde às pessoas
que naquele momento têm a possibilidade de fazê-lo e que estão
comungando com um determinado direcionamento da História. [...]
Houve uma proposta da CENP, recentemente, [...] para fazer uma coisa
mais temática, partindo do imediato e generalizar. Isso afeta os livros
didáticos, os livros que têm essa trajetória ou foram feitos para isso, eles
podem, evidentemente, ter uma melhor aceitação. E os livros que não
têm essa perspectiva? No meu caso, eu escrevi um livro que tem,
digamos, uma certa generalidade, ele atende a um público muito amplo.
E ele não está ligado a esses casuísmos, a esses modismos, por isso
mesmo talvez ele permaneça mais. [...] Eu vou ser sincero, um livro que
eu diria que foi feito para um determinado escaninho do mercado foi
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esse História Integrada, mas me parece que a tendência é que História
Integrada se expandam [...] nos últimos anos, pode ser que essa
tendência mude. Por exemplo, Minas, que era um lugar onde isso tinha
começado a se expandir, voltou para trás. (ARRUDA, 1997, 90-1)
Os professores Ricardo Faria e Flávio Berutti, por seu turno avaliam que há a
interferência dos professores na escolha de livros didáticos que nem sempre são os
indicados ou mesmo os mais utilizados em seu Estado e, sobretudo, não correspondem
aos programas oficiais. Há, nesse sentido, uma dinâmica de ruptura e resistência com o
estabelecido que nem sempre é percebido pelo próprio sistema de ensino. Os
professores Ricardo Faria e Flávio Berutti, em particular, afirmou que
[...] as editoras têm muito mais capacidade de divulgar seus livros do
que a Secretaria de Educação tem de divulgar seus programas
curriculares. Quantas e quantas vezes, três anos depois da alteração do
programa de História de 1986, em Minas, nós vimos professores que
nem sabiam que o programa tinha mudado! [...] O desconhecimento era
tamanho, que, às vezes, o professor identificava nosso livro com o
programa e dizia: "- Ah! É esse aqui o programa novo! (FARIA E
BERUTTI, 1987, p. 128)
A partir da análise do conteúdo dos depoimentos dos autores, torna-se mais
compreensível o fato de que diferentes escolas em diferentes regiões brasileiras
pudessem adotar os mesmos livros didáticos, ainda que estivessem submetidos a
programas disciplinares bastante diferentes.
A esse respeito, por exemplo, no final da década de 1980 o programa oficial de
História para o Estado de São Paulo era seriado, com História do Brasil na 5ª e 6ª séries
e História Geral na 7ª e 8ª séries. Em Minas Gerais, desde 1986, o programa oficial era
integrado, sendo que História do Brasil, Geral e da América eram estudados
simultaneamente de 5ª à 8ª séries. Porém, podia-se encontrar diversos exemplos em São
Paulo de professores e escolas que adotavam os livros didáticos elaborados em
conformidade com o programa oficial de Minas Gerais, bem como, era possível
encontrar, também, em Minas Gerais, professores que ainda utilizavam os livros
didáticos elaborados conforme o programa de Minas Gerais.
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De fato, nesta questão sobre o predomínio de uma ou de outra instância na
produção das coleções didáticas, o que não se pode afirmar é que se tratasse de uma via
de mão única, pois não se observava uma determinação fixa, pois que: os professores,
especialmente das escolas particulares, usavam os livros de sua preferência, sem
grandes preocupações com as normas oficiais.
Os professores da escola pública e particular denotavam a percepção de que os
programas disciplinares mudam demasiadamente, haja vista que, a cada mudança de
administração estadual ou mesmo municipal, os programas são revistos pelos novos
titulares dos órgãos de Educação, repetindo os vícios dos legisladores brasileiros que, ao
invés de atacar os reais problemas da Educação, preferem, desde há muito tempo, criar
artifícios que, infelizmente, no final das contas, não alteram em muito a realidade do
ensino.
Outra questão importante e que em certa medida é um desdobramento da
temática da estruturação curricular refere-se à problemática da convivência de livros de
História elaborados e impressos no Rio de Janeiro, em São Paulo e, mais recentemente,
em Minas Gerais, com autores, em geral, destes mesmos estados e que são utilizados em
todo Brasil, o que traz conseqüências danosas às propostas de ensino de estados que
acreditam que os alunos devem partir da aprendizagem do que lhes é mais próximo para
construir as noções e conceitos de entendimento da realidade etc. Sobre a questão do
atendimento as diversidades e especificidades regionais, a Profª. Joana Neves afirmou:
[Eu] acho que nós nos defrontamos com um problema que extrapola a
questão didático-pedagógica e mesmo científica [...]. As editoras, as
grandes livrarias e os grandes distribuidores de livros se concentram no
Centro-Sul e monopolizam o mercado brasileiro. Isto faz com que
estudantes de História ou mesmo de Geografia (eu acho que na
Geografia isso é mais sério ainda) lá do interior da Amazônia leiam os
mesmos textos e vejam as mesmas ilustrações produzidas por alguém
que tem, do Brasil, a visão a partir de São Paulo que, diga-se de
passagem, é uma visão provinciana. Isto poderia gerar uma certa
homogeneização e contribuir para idéia de uma identidade brasileira,
etc. Mas, eu não acredito que você possa construir uma identidade
nacional, escamoteando as identidades locais e as identidades
regionais.(NEVES, 1997, p. 47)
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Nesse sentido, a própria Profa. Joana Neves apresentou uma série de exemplos
oriundos tanto de sua experiência profissional quanto de sua vivência como autora de
livros didáticos dos problemas ocasionados pela divulgação nacional de livros destinos
a públicos localizados:
Estava eu dando aula no Mato Grosso, usando um Atlas Geográfico [...]
e uma aluna, mostrando um mapa, dizia assim: "- Lá no Pantanal Mato-
Grossense”. Eu falei: "- Como, lá no Pantanal Mato-Grossense?. Mas,
ela respondeu: "- Professora, está escrito no Atlas [...] Eu falei:"- Minha
filha, nós estamos quase sucumbindo a uma inundação do Pantanal”.
[...] Nessa avaliação de livros didáticos que eu participei na 1ª fase,
tinha um livro do Mato Grosso, História do Mato Grosso, no qual a
autora precisava de uma ilustração - do tipo antes e depois, para
mostrar a ação do homem sobre a natureza. Ela queria uma paisagem
no mesmo lugar, no momento em que o homem não tinha mexido e
depois já com a civilização presente, quer dizer, com o trabalho humano
presente. O livro era de História do Mato Grosso e a ilustração
escolhida foi do Pão-de-Açúcar, no Rio de Janeiro. Tem-se a entrada da
Baia, o Pão-de-Açúcar e depois, o bondinho do Pão-de-Açúcar e tal.
Não é possível que não houvesse em nenhum lugar do Mato Grosso uma
foto que se prestasse a essa ilustração. Agora, a editora do livro é do
Rio, a autora provavelmente é do Rio, não sei se conhecia o Mato
Grosso ou se teve alguma visão de uma paisagem do Mato Grosso.
(NEVES, 1997, 47-8)
De fato, há dificuldades enormes, mas também alguns avanços, pois em diversos
estados brasileiros, como desdobramento da pesquisa regional, tem sido possível a
produção de livros didáticos que abordam com propriedade as questões e
especificidades locais. A esse respeito o Prof. Jobson Arruda emitiu considerou que a
pesquisa regional se
[...] desenvolveu muito no Brasil, o programa de pós-graduação em
História está consolidado no país. Existem muitos programas hoje de
Mestrado e de Doutorado que são muito bons, em vários lugares do país
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e é claro que estas pessoas que produzem pesquisa avançada num
determinado passo começam também a produzir os textos de divulgação,
isso é muito normal, correto e até lógico; desejável até. (ARRUDA,
1997, 86-7)
O Prof. Ricardo Faria afirmou que a questão regional na produção dos livros
didáticos é bastante complexa. Em seu depoimento salientou que existem poucos
programas que assinalam vinculações com a temática regional e que era uma questão
que o preocupava:
Quando fico sabendo o meu livro está sendo adotado no Amazonas, fico
pensando se realmente seria o livro mais indicado para o Amazonas
porque eu não conheço a realidade do Amazonas, quer dizer, será que
um autor sentado aqui em Minas Gerais tem condições de absorver essa
imensidão cultural que é o Brasil e escrever um livro que seja bom para
todos os estados do Brasil? Eu acredito que não. A gente tem que lidar
com essa questão que é problemática realmente. Mas produzir um livro
para cada região, aí já entra o aspecto da mercadoria. Isso para uma
editora seria inviável. (FARIA e BERUTTI, 1997. p. 122)
De fato, há uma série de livros de História com temas regionais que vinham
sendo publicados no final da década de 1990. Eram Histórias do Piauí, de Teresina e do
Ceará, com abordagens e clientela diferenciadas, mas que se ocupavam da região na
qual os estudantes e os professores habitavam. A qualidade dessa produção
demonstrava melhora significativa e mesmo as grandes editoras já começavam a se
movimentar no sentido de viabilizar estas publicações com mercados bastante
específicos. Os maiores problemas dos livros didáticos feitos para o mercado nacional
residiam, de fato, na falta de cuidado com o leitor que está em uma localidade distante
da região em que são escritos e publicados os livros.
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MATERIAIS HISTÓRICOS
1. Depoimentos (1997)
Antônio Alexandre Faccioli & José Lino Fruet
Joana Neves
José Jobson de Andrade Arruda
José Orlando Pinto da Cunha
Ricardo de Moura Faria & Flávio Costa Berutti.
2. Referências bibliográficas
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24
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