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PRÓXIMAPARADA

Títulooriginal:PróximaParada

Copyright©2016

TodososdireitosreservadospelaeditoraDuploSentidoEditorial.Nenhumapartedessapublicaçãopoderáserreproduzidasejapormeiosmecânicos,eletrônicos,sejaviacópia

xerográfica,semaautorizaçãopréviadaeditora.

1ªedição–Julhode2016

GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPorutguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.

DiretorEditorialJulianaSobreiraCatalão

MarceleCambeses

PreparaçãodetextoerevisãoBrunaFontes

JulianaSobreiraCatalãoMarceleCambesesTamaraSoares

VanessaMonteiro

DiagramaçãoeprojetográficoGabriellaRegina

CapaeprojetográficoVerenaBelfort

IlustraçõesdacapaediagramaçãoDesignedbyFreepik.com

DUPLOSENTIDOEDITORIAL

E-mail:[email protected]

www.facebook.com/deuplosentidoedtwitter:@duplosentidoed

instagram:@duplosentidoed

NotadaEditora

Caroleitor,

Esteéumlivroeletrônico(distribuídonosformatosPDF,ePUBeMOBI).Porcontadisso,dependendododispositivoemqueéaberto,oleitorteráaliberdadedealterarostiposetamanhosdefonteparaaobtençãodeumaleituramaisconfortável.Casoocorraalgumerronoarquivo,nãoseapavore.Oproblemanãoestánadiagramação,massimemalgunsdispositivosquepodemlê-lademaneiraindevida.

Infelizmente,issoestáalémdonossoalcance.Omaterialfoidiagramadocommuitacautela,porém,algumasfalhastécnicaspodemocorreraindaassim.Casoocorram,tenteleroeBookemoutraplataforma.

Desejamosatodosumaótimaleitura.

Atenciosamente,

EquipeDuploSentidoEditorial.

Sumário

Idasevindas,deBrunaFontes

Seteminutos,deJúliaBraga

Transbordante,deThatiMachado

Quererépoder,deVanessaS.Marine

Espelho,deMelGeve

Juntos,deTamaraSoares

Oscincoestágios,deMarceleCambeses

Biografias

Àsvezesvocêsimplesmentesabenoseuâmagoqueodiavaiserumadroga.Écomoumsexto sentidobizarroque, naverdade, todomundo tem, entãonãodánempra se sentirespecial com isso. Serve, entretanto, pra te livrar de pegar uma baita chuva repentina,porque você foi inteligente o suficiente para ouvir os sinais cósmicos e carregar umguarda-chuva na bolsa. Minha mãe diz que o tal guarda-chuva nunca deveria sair daminhamochila,masacontecequenãoéelaquemprecisacarregarcinquentalivrosdopré-vestibular que mais servem para destruir costas alheias do que para propagar a boaeducação.

DezesseteanoscompletoseomeumaiordesejoeravoltarparaasmochilasdecarrinhodaBarbiequeeuusavanoquartoanodoEnsinoFundamental.

Sonharmaisumsonhoimpossível.

Odiaaindapareciaperfeitamentenormalquandooônibuschegou.Euopegavatodososdiasalinoprimeiropontoetinhaaimpressãodequetodomundoqueprecisavafazeromesmo que eu naquele horário já se conhecia. Tinha a Dona Palmirinha ― umasenhorinha muito simpática que sempre me oferecia balas de coco, mas de quem euevitavasentarpertoporque tinhacerteza deque elamecontaria avida inteirados seusquatorzenetosmédicosatéaminhacabeçaexplodir.TinhaPaulãoTchutchucaLinda,essecaraqueestavasempreusandocamisetasdetimedefutebolcomonomedeleescritoatrás―aomenoseuachavaquefosseeleoPaulão―eouviafunksantigosnoseuradinhoapilha,semfonesdeouvido.

TinhatambémoOutdoordaHollister,essemeninoquedeviateraminhaidadeeeupodiaapostarque recebiaumagranada lojade roupasdessamarca,porqueele simplesmentenão usava nada que não tivesseHollister escrito em letras garrafais. Outro passageiroassíduoeraoCampanhadoAgasalho,umhomemnameiaidadequeaparentementenãosabiacomovestirumacamiseta.Aquilomedavamaisnosnervosdoqueos“soueu,boladefogo,eocalortádematar”saindoinconvenientementealtodorádiodoPaulão.Juro.Umdiaeuaindaiachegarneleeperguntarsepodiaajudarcomalgumasroupasdomeu

pai,porquenãoerapossível.

HaviatambémaMariaBola-de-Chiclete,aIgrejaUniversalemaisoutraspessoasqueeusempreacabavavendopelomenosduasvezesnasemananaqueleponto.Fuiaprimeiraaentrarnoônibusnodiadosexto-sentido-bizarroemesenteinoassentodajaneladeumdosbancosnomeiodoveículo,meperguntandoqualseriaaimpressãoqueelestinhamdemim, assim, sempre vestida de preto. Eu era mesmo uma pessoa das trevas, filha domovimento emo de 2008, uma legítima caçadora das sombras. Provavelmente a IgrejaUniversaltramavaumplanoparameexorcizartodavezquemeencontrava,ajulgarpelosolharesde“vocêprecisaencontrarJesus”queelamelançava.Umavezelachegoumesmoameentregarumpanfletodaigreja,dizendoque:

―ÀsvezesnósnosperdemosenosdesviamosdoscaminhosdoSenhor,masvocêaindapodeencontrarasalvação!

Dezesseteanoscompletosejáumadesviada.Essaeraeu.

Eu estava desembolando meu fone de ouvido, Paulão já havia ligado seu som e omotorista deu a partida no motor. A porta estava se fechando quando, de repente, foiatingida por umamão insistente. Omotorista a abriu de novo, um pouco irritado pelapessoa ter batido no seu ônibus, mas, apesar do mau humor terrível, ele era uma boapessoa.Solteiumlongosuspiro,relaxandonomeuassento,quandoatalpessoaembarcou.

Efoiaíqueeusoubequetudocomeçariaadarerrado.

Omeusextosentidonuncafalhava.

Nossosolharesseencontrarameeu,petrificadaecheiademensagensdealertapiscandonocérebro,nãosoubeoquefazer.Eleabriuumsorrisomuitojuvenil,eseuolhardequemestavatramandoalgumacoisafezaminhaespinhacongelardemedo.Segureiobancodafrente, pensando no que, diabos, ele estava fazendo ali no meu ônibus ― massinceramenteeunãoqueriadescobrirdeverdade.

Nãoqueeutivessealgumaescolha.

Eleparounocomeçodocorredorepegoufôlego,sepreparandoparaalgumacoisaquefezmeuestômagoserevirarempânico.Seeuoconheciabem―eeu,infelizmente,conhecia―sabiaqueboacoisanãosairiadali.Eledeslizouamochilaprafrenteetiroudeládedentroumbuquêdepeôniasvermelhas.Meuscompanheirosdeviagemoencaravamcomváriospontosdeinterrogaçãonacara,mas,quandoomalditocaminhounaminhadireçãoeficoudejoelhosnocorredor,aoladodomeubanco,todomundoolhoudiretamentepramim.

AboladechicletedaMariaBola-de-Chicleteestourou,DonaPalmirinhajuntouasmãosno peito como se não pudesse aguentar tanta fofura. Até mesmo Paulão diminuiu ovolumedorádioquetocava“Cerolnamão”doBondedoTigrão.Meucoraçãoacelerouemeus olhos arregalados nãome deixavam enganar ninguém. Ele estendeu o buquê pramimemummovimentomuitosolene,eoúnicopensamentoqueeutivenaquelemomentofoiodepegaraquelasfloreseestapeá-locomelas.

Quemelepensaqueé?

―Oquevocêtáfazendo?―perguntei;avozbaixa,graveeassassina.

―MarinadaSilvaSolano,euestouaquimehumilhandodiantedesseônibusprafazeraúnicacoisaqueeudeviaterfeitonoanopassadoefuiidiotademaispraperceber.―elesacou o celular do bolsinho da mochila e virou a cabeça para o fundo do ônibus.―Amigão, será que você pode dar um pause na sua música só um instantinho? ―perguntou.Euquismorrer.

―Vocêquemanda,Romeu―Paulãorespondeuemumtomdevozbrincalhão.

Romeuvoltouamefitar,muitosatisfeito,edeuplaynoseucelular―demodoqueMyHeartWillGoOn começoua tocar.Aessa alturaomeu rosto já estava completamentevermelhoeeunão fazia ideiadecomoestavaaguentandoficarali.Olheiparaos lados,procurando uma rota de fuga, mas o motorista (rindo da minha cara) já tinha dado apartida.

―Marina,eununcapenseiquefossemeapaixonarporalguémcomovocê.

Issoerapraserumelogio?

―Mas aqui estou eume ajoelhando e pedindo encarecidamente que você pare de serteimosaeaceiteomeuamor.

Ah,claro.Medêseuamorcomosefosseumaoferenda,é tudooqueeudesejoemumhomem.

―Eupossonãoserocaramaisperfeitodomundo,masoJacktambémnãoera―disseele, referindo-se ao personagemdeTitanic.―Ele pintava francesas nuas,Marina!Emplenos anos 1910! E mesmo assim a Rose o perdoou por esse desvio de caráterlamentável.Eununcapintariafrancesassepudessepintarvocê.

Alguém não conseguiu conter a risada e eu não podia acreditar que aquilo estavaacontecendo.Eleme fitava comaqueles olhos brilhantes e esperançosos, cheios do seusenso de humor muito peculiar. Não soube dizer se aquilo era a realidade ou algumapegadinhaqueelepreparouparaqueeucaíssecomoumpatinho.

Ondejáseviuumacoisadessas.Euaceitariaapegadinhamuitomelhordoqueofatodequeeleestavamesmosedeclarandopramimemplenoônibussemilotado,segurandoumbuquê de flores, ao somdamúsicamais brega dos últimos tempos e falando sobremepintarnua.

Eleeraumimbecil.

― Eu te pergunto com o meu coração sangrando e a minha alma devota angustiada,desesperadaparaserlogosua.MarinadaSilvaSolano,vocêaceitase…

Antesqueelepudesseconcluir,arranqueiobuquêdasuamãoefinalmentefizoqueeutinha vontade. Bati muito forte com as flores no seu rosto, fazendo os passageirosreagiremchocados.

Elemeencaravacomoseeufosseapessoamaisdoidadomundo,maseunãoestavaparabrincadeira.

―Ficoumaluco?― perguntei; meus olhos injetados de raiva. O olhar de gatinho doShrekqueelemelançouteriamefeitoderreteralgunsmesesatrás,masagoraeueraumamulherlivredassuastentações.

Umamulherlivreedanadadavida.

MyHeartWillGoOnaindaestavatocando.

―Desligaessaporcariaesentaaquiagora―ordenei,indicandooassentoaomeuladono banco. Para o resto do ônibus, eu disse: ― O show acabou! Podem voltar àprogramaçãonormalenquantoeudouumapalavrinhacomoRomeuaqui.

Ele se sentou onde mandei e eu cruzei os braços, enfurecida demais com toda aquelasituação. Se a intenção dele era me constranger e fazer o meu dia começar com a pávirada,haviaconseguidocomsucesso.Agoratodomundodeviaestarachandoqueeunãotinha coração por declinar uma declaração de amor assim tão corajosa. Oh, a góticatrevosaérealmenteumapedradegelo.Deveseraquariana.

Eueradosignodegêmeos.Muitoobrigada.

― Pra sua informação, você interpretou Titanic totalmente errado― falei aborrecida.Aindaporcima,eletinhaacoragemdefazerpoucocasodoJack,quemorreucongeladoprasalvaraRosequandotodossabemosquehavia,sim,espaçopraduaspessoasemcimadaquelepedaçodenavio.Imperdoável.

―Vocêsabequeinterpretaçãonãoéomeuforte.Eeunãogostodepessoasfrancesas―deudeombros, semnenhumremorso.Eleseviroupramim.―Sóqueria te fazerumasurpresa.

Solteiumarisadasemhumor.

―Issovocêconseguiu.

―Vocêmeodeia.

―Nãoteodeio―suspirei,revirandoosolhos.―Masdepoisdehoje,deveria.

Ficamososdoisemsilêncio,euencarandoajanelaeelerespirandopesadamenteaomeulado,comseusombroslargosepernaslongasocupandomaisdametadedonossoespaçocompartilhado. Eu não queria olhar em seus olhos agora porque não sabia o que elescausariam em mim, então deixei que a raiva assentasse e que meus sentimentos, aospoucos,voltassemparaolugar.

Percebiqueele estavameencarandoe apertei com firmezaocauledobuquêaindaemminhasmãos.Meucoraçãosaltitanteeincomodadoexplodiaparatodososlados.

―Queriasaberquandoéquenósdoisvamosfinalmentenosencontrarnamesmasintonia―eledisseumpoucopesaroso.

Eumelembravacomclarezadaprimeiravezemquemeapaixoneiporele.

EuestavanoquintoanodoEnsinoFundamental,usandominhasmochilasdecarrinhodaBarbieeviciadaemTrêsEspiãsDemais.TinhaumacoleçãodebonecasPolly,amavaas

novelasmexicanasdoSBTeviviapegandoemprestadoobatom rosa choquedaminhairmãmaisvelha―semelasaber,éclaro.

Henriqueentrounocolégionomeiodoanoelogoficamosamigos,porqueeusempreeraameninaexibidaqueiapuxarassuntocomosalunosnovos.Eugostavadeestarotempotodo com ele e escrevia seu nome nas últimas folhas de todos osmeus cadernos, comvários coraçõezinhos ao redor. Eu era uma menina infantil e ainda torcia a cara paraqualquercoisaalémdemãosdadas,masera issooquegostariadefazercomHenrique,emboranãotivessecoragem.

Umdia,entretanto,aconteceu.Eareaçãodelenãopoderiatersidomaisdevastadoraparaumagarotinhailudidadedezanosdeidade.

Elenãomeamavadevolta.Achouaquilomuitoesquisitoeriudaminhaideiabobaedemeninade segurarasmãos―opequenoHenriqueeraaindamais semnoçãodoqueoadolescente.É claro que euo empurrei no chãodepedrinhas doparquinho e disse quenuncamais ficaria no time dele no Polícia e Ladrão da escola. E o pequenoHenriqueachou,provavelmente,queeueramaluca.

Bem, eu até que era mesmo um pouco temperamental.Mas uma garota ferida precisadefenderasuahonra.

Olheipraeleaomeuladonoônibus,melembrandodecomoeleeraquandomeapaixoneidaprimeiravez.Eueraumacriançamuitoidiotaporgostardomeninomaisdebochadoearteiro da turma, aquele que ia quase sempre parar na direção e só não era o terrorcompleto dos professores porque os conquistava com o seu carisma natural. Acho quetodasasespinhasqueteveaostrezeanosforamfrutodaspragasquejogueiemcimadelenoparquinho,oquemefaziaficarbastanteorgulhosa.

Agoraelenãotinhamaisasespinhas,nemusavaoaparelhoestranhonosdentes.Henriquemeencaroudevolta,oscalafriospercorrendoaminhapele.

―Nãodá pra você forçar as coisas só porque quermuito chegar ao ponto final―eudisse,porfim.―Prachegarlá,éprecisopassarpelosoutrospontosprimeiro.

Ele pensou no assunto, seus olhos castanhos piscando pra mim. As sobrancelhas seaproximaramumadaoutraenquantooentendimentooatingia,aindaquenãodesejado.Eusabia que ele não queria se dar conta disso; preferia que as coisas pudessem serinstantâneassóporquejáhaviadecididoaondequeriachegar.

Masnãoeratãosimples.

Ao mesmo tempo em que ele estava tendo o seu surto de espinhas e todas as outraspessoas de treze anos que conhecíamos entraram no limbo da feiura e esquisitice, eucontinuei bonitinha.A essa altura, já tinha desencanado do episódio do parquinho e darejeiçãodeHenrique,econtinuamosamigoscomosempre fomosdesdeo início.Minhapaixoniteagudahaviaachadooutravítima,mas,dessavez,eufuicorrespondida.Deimeuprimeirobeijo,comeceiomeurelacionamentomaislongoatéhoje(trêssemanasemeia,um recorde pessoal), e estava feliz com a simplicidade da vida ― quando asresponsabilidadeseramapenasestudarpraprovadematemáticaeensaiaracoreografiado

grupodedança.

Dessavez foiHenriquequemseapaixonoupormim,masaquelenavio jáhaviapartidoparaoutrosmaresocidentais.Eugostavadeoutro!Eaexistênciadocarmamaisumavezestavacomprovada.Ocarma,comobemsabemos,éumavadia.

― Eu estava desesperado ― disse ele, parecendo mais uma pergunta do que umaafirmação.―Euestoudesesperado.Parecequeotempotáfazendoumjogocomagente.Quandovocêmequer,eunãotenoto.Quandoeutequero,vocêjáestáemoutra.Eessepareceserumciclosemfim.

―Acheiquevocêfossedizerqueparecequeagentetádentrodeumliquidificador.

Assobrancelhasdelesearquearam,comoseumalâmpadativesseacendidonasuacabeça.

―Eusupermeimaginodizendoisso―concordou;umbrilhoorgulhosonoseuolhar.―Assimcomoseiexatamentequevocêvaiusarsuateoriamalucade“amormiojo”prameexplicaroquantoaminhadeclaraçãofoiinadequada.

DentretodasascoisasquefaziamHenriqueserHenrique,eraoseuvocabuláriooqueeumaisadorava.Além,éclaro,dofatodequeelemeconheciamelhoratédoqueeumesma.Um sorriso insistente não pôde ser contido nosmeus lábios. Eleme acompanhou, seurostoumespelhodomeu,nósdoisoreflexoumdooutro.

―Amornãoaconteceemumpiscardeolhoscomoemfilmesadolescentesruins―euconfirmei.

―Maseuseiquevocêmeama―eledissedespretensiosamente.Porqueelesabiaqueeraverdade,nãoporquequeriasevangloriar.Porqueoquehaviaentrenósdois,depoisdeanosdeamizadeecumplicidade,sópoderiaseramor.

Amor. Essa palavra complicada que podia significar tantas coisas distintas. Eu haviaexperimentadooamorporelevezesdemaisparanãoentenderqueosentimentoeraumamultiplicação e não um número exato. Eu o amei na inocência da infância, quando omundo era uma paleta de apenas duas cores e as coisas não precisavam de nenhumaexplicação.Oameicomooamigoquetraziaaeuforiadaspequenastransgressões,quemeinstigavaàrebeldiaeseautonomeoumeuprotetor.Oameidenovo,aosdezesseis,quandoos hormônios à flor da pele consumiram cada parte de mim e não foram capazes deignorarohomemqueeleestavasetornando.Oamei todososdiascomoolugarseguroparaondeeu iaquandoprecisavadeumalicerce,quandoopesodas responsabilidades,que pareciam vir todas de uma vez, era grande demais para o meu eu despreparado,ansiosoeperfeccionistacarregarsozinho.

Oamei entre suasnamoradas,quandoasadoravae tambémquando sentia ciúmedelas.Quando eu as adorava, ele as queria trocar por mim; quando eu as queria longe parareivindicá-locomomeu,eleseapegavaaelas.Nósentramosemumjogodeidasevindasdesde aquele primeiro dia no parquinho e nunca fomos capazes de nos encontrar deverdade.

Eraofamigeradocarmasempreentrandoemação.Adrogadessavadialouca.

Aosdezesseteanoscompletos,eunãoqueriamaissaberdemeapaixonaredesapaixonarporHenrique,comosentiaquevinhafazendodesdequeoconheciseteanosatrás.Quemeleeranaminhavida?Quemeleeraparamim?Tinhasetornadoumaparteessencialdapessoaqueeuera,doserhumanoqueeuconstruíasobaminhapeleacada tormentosadecisão, todososdias.Eleeraomeumelhoramigo, incrivelmentebomemmatemática,masmuitolerdoparaentendercontextos.Incrivelmentebomdesenhista,maspéssimoemesportes com bola.Dono de um senso de humor peculiar e sem nenhuma vergonha nacara. Alguém de quem eu não abriria mão facilmente pelas seduções do corpo, pelosapitosdoshormônios,porbuquêsdepeôniasvermelhasemônibussemilotados.

ÉclaroqueHenriqueseguiuadireçãoopostadaminhalinhaderaciocínio.Enquantoeuhaviafinalmenteapagadoqualquerfagulharemanescentedeumrelacionamentoamoroso,eledecidiufinalmentemeconquistareencontraranossasintonia.

Nemquepraissoprecisassemeterospéspelasmãos.

―Éclaroqueeuteamo―respondi.Meucoraçãodeuumsolavanco.―Esseamornãoémiojo,émaisantigodoqueoclipedeBadRomancedaLadyGaga.

―Euamoesseclipe!Masquedroga.

―Eusei―ri.―Masvocêtáperdendoopontofundamentaldaminhaexplicação.

Henriquecomprimiuoslábios,meouvindocomoumbommenino.Eleencostouacabeçanobanco,mefitandocomaqueleolhardeexpectativaeserenidadequereservavaapenasparaquandolevavaascoisasasério.Nãoeraalgoqueaconteciasempre―elenuncateveum bom relacionamento com a seriedade―, mas eu estive lá todas as vezes em queaconteceu.Quandoseupaiperdeuoemprego,quandoeleparouprapensarnoquefariadepois que a escola terminasse, quando a namorada que mais amou decidiu fazerintercâmbionaIrlandaeelesofreucomonuncaantesnasuavidasimples.

Agora, ele olhava pra mim com tanta seriedade que aquilo me abalou. Todos os seusgestosexageradosnãosurtiamsequerumterçodoefeitoqueesseolharetodasascoisascotidianasmecausavam.Eranessesmomentosde reconhecimento, nesses atosquenãotentavam ser grandes, que apenas eram o que nasceram para ser e me mostravam overdadeiroHenrique,queeumesentiasendofisgada.

Eranessesmomentosqueeubalançavaemeperguntavaseelenãotinharazãoemtentarencontrar essa sintonia nunca achada, o dia em que chegaríamos ao ponto final dessacirandadeidasevindasquedançávamosdesdeainfância.

―Qualéopontofundamentaldasuaexplicação,donasabe-tudo?―eleprovocou.

―Eunãoachoqueestousemprecerta,pelomenos―cutuqueidevolta.

Eleabriuumsorrisosacana.

―Eutinhamedodeparecerestúpidodoseulado―confessou.Fuipegadesurpresa.

―Quando?

Henriquedeudeombros.

―Poralgum tempo,quandoeueraum idiota.Mas issome fazpensarque,dealgumamaneira,euestivesemprecorrendodevocêepravocê.

Deiteiminhacabeçanobancotambém,fitando-onosolhosemeperdendonaintensidadedasuacorcastanha.

―Pormedo?

―Talvez.Medodevocê,depoismedodeteperder.

―Vocênãovaimeperder―garanti,apertandoamãoempunhoparanãoalcançaroseurostodourado.Meucoraçãobatia fortenopeito, comoumpássaro abrindo as asas, umpássaroquerendoserlivre.―Seédissoquevocêtemmedo,então…

―Nãoésóisso―elemecortou.Mordimeulábioinferior.

―Então…?

Henrique ficou em silêncio por alguns segundos. Omovimento do ônibus quase traziauma sensação de sonho ao momento, a vida passando como borrões através da minhajanelaeossonsdaspessoasalidentro tãodistantesqueeracomoseestivessememumlugardiferente.Elehaviaconseguidoatrairaminhaatenção.

―Euqueroparardecorrer.Sejadevocê,pravocê,praqualqueroutrapessoa.Sóqueroparardecorrer,defugir.Euquerochegarlogonopontofinaleencontrarvocêlá,depoisdetantacorreria,minhaesua.Queroencontrarvocêlá.

Amãodelealcançouaminhaenossosdedosseentrelaçaram.Eusentiacadafibradasuapeleme tocando, cada fração de segundo emque o atrito entre nós fazia explodir umafaíscadentrodemim.

―Éumatrajetória―meouvidizer.

―Nósdois?

―Tudo é uma trajetória.Você não pode acelerar o tempo, não pode se teletransportardaqui até o ponto final. Tem que chegar até ele, do jeito comum, do jeito que a gentepode.Umpassodecadavez…Umatrajetória…Sabe?

Eu queria que ele entendesse, queria tanto que ele compreendesse.Meu pobre coraçãoansiavaporaquilomaisdoqueeupodiaimaginar,praumagarotaquehaviadecididocomtantoafincodeixarissopralá.

―Éocontráriodoamormiojo,né?Nadaéinstantâneo.

Assenti,sorrindoparaele,quesorriudevolta.Umespelho.

―Nadaacontecedonada.Nãosãodeclaraçõesexageradasquevãofazertudoacelerar.

Eleassentiu,sorrindopramim,quesorridevolta.Umreflexo.

―Entãovocêtádizendoqueoqueeuprecisofazeréirdevagar.

―Eunãovoutedizeroquefazer,Henrique.Vocêéquetemquesaber.

― Mas eu tenho chance ― ele atestou, parecendo mais uma pergunta. Uma muito

esperançosaqueeudetestariaterdequebrar.

Eunãoqueriaquebrar.

Assenti e a expressão em seu rosto foi de pura satisfação. Ele apertou os dedosentrelaçadosnosmeuseostrouxeatéasuaperna.

―Entãovamosjuntospassarporessatrajetóriaaí.

―Vocênãopercebe?Nósjáestamosnela,seuidiota.

― Eu disse que sou difícil de interpretação! ― defendeu-se, o que me rendeu umagargalhada.

Então nos encaramos em silêncio, as amarras sendo soltas uma de cada vez, osmedossendodeixadosparatrásacadaquilômetrorodado.Eunãosabiaseestavafazendoacoisacerta,maseu sentia nomeuâmagoqueaquela era a estrada emquedeveria estar.Nãocomoumsextosentidobizarro,mascomoalgoqueagentesópercebequeexistequandonospertencedeverdade.

Talvezeuestivesseerrada,masseriaimpossívelsabersemmeteropénaestrada.Somostodossuscetíveisabatidaseperdas totais,masa incertezaéumpreçoquesepagaparaalcançaraplenitude.

―Eoqueacontecequandochegarmosaopontofinal?―eleperguntou.

Eunãosoubeoqueresponderdeimediato.Honestamente,eunãosoubeoquerespondereponto. Jamais saberia, porque aquele ônibus ainda estava emmovimento.A vida aindapassavacomoborrõesdoladodeforadaminhajanelaeeuaindaeraapenasumagarotadedezessete anos completos, trevosa, carregadora de livros gigantescos na mochila, eadoradorademetáforas.Eusabiaapenasoqueeutinhaeoquenãotinha,masnãosabiatodasasrespostas.

Enemqueriasaber.

Nóséramosapenaspessoascomunsvivendonossasvidas.

―Bom.Achoquenósvamosdescobrirquandochegarmoslá―falei.

E,comnossasmãosentrelaçadasesorrisossincerosnorosto,seguimosonossocaminho.

—Espera!

OônibusfreoubruscamenteeVanessaprecisouestenderosbraços,apoiandoasmãosnobancoàsuafrenteparanãobateracabeça.Noentanto,o impactonãofoioquemaisadeixouatordoada.

Elaconheciaaquelavoz.

Naverdade,elaconheciaaquelavozmuitobem.

Vanessa esticou o pescoço e seu olhar travou diretamente com o do garoto que haviaacabado de subir. Naquele instante, os dois compartilharam um sentimento intenso ecomumquesópoderiasertraduzidopelaexpressão“Ahnão!”.

Vanessaprendeuoar,esperandoparaveroqueooutroiriafazer.

Havia apenas duas opções para ele. Ele poderia pedir para omotorista voltar a abrir aportaparaquepudessedescer,jáqueclaramentesubirnaqueleônibushaviasidoumerroimpensado e ele nunca teria cometido tal crime se soubesse que ela estava ali.Ou elepoderiaagircomoumserhumanonormalumaveznavida,engoliroorgulhoecontinuarnoônibus.

Masaí,éclaro,Vanessaseriaforçadaaengoliropróprioorgulhotambém.Assimcomoaagircomoumserhumanonormal.Elafrancamentenãoqueriafazernemumnemooutro.

Eduardo, sabendo quemais cedo oumais tarde teria que parar de bobeira e encarar agarota, escolheu a segunda opção, e estendeu sua nota de cinco reais amassada para ocobrador.

Vanessaajeitouofonedeouvidoedesviouosolhos,soltandooarporfim.

Eramaisdoqueestranhopensaremcomotudohaviamudadoentreosdois.

Dudutinhasidoseuvizinhodesdequeelestinhamseteanosdeidade.

Ela ainda se lembrava daquela tarde em que os dois tinham se conhecido em uma

brincadeiradepolíciaeladrãocomasoutrascriançasdobairro.Elaseesconderaatrásdeum carro, e Dudu foi o policial que a deixou escapar em troca de um bubbaloo demorango.Essepequenogestodecorrupção,querapidamentevirouumaespéciedepiadainterna,setornoutambémumaponteparaumaamizadequedurariaanos.

Elesnuncahaviamsidomelhoresamigos,mascresceramjuntos,esempreandaramcomomesmo grupo de pessoas. Costumavam ter uma enorme consideração um pelo outro,mesmodepoisdemaisvelhos,quandotrocaramescaladasdeárvoreeguerrasdelamanoparque por festas e bebidas e cantorias desafinadas a plenos pulmões no meio damadrugada.Esseéotipodecoisaqueuneaspessoas.

Vanessa foi preenchida por uma imensa sensação de nostalgia só de pensar que, duassemanasantes,elaestava rindodaspiadassemgraçaqueDuducontava,eagora…malpodiaolhá-lonosolhos.

Elanãoqueriaquefosseassim,masoquehaviaacontecidoentreosdoisforadevastadordemaisparaqueelapudessesimplesmenteignorar.Agora,quandoelapensavaemDudu,eraincrivelmentedifícilselembrardasguerrasdebalãod’água,dasmangascolhidasdopé, das noites do pijama na casa da Dora, do bubbaloo de morango. Agora, quandopensavanele,elasóconseguiaselembrardaquelafestanosótãodacasadoArthur.DosSeteMinutosnoCéu.Dobeijo.

Ah,obeijo.

Vanessaesfregouatestacomaspontasdosdedoserapidamentevasculhouoônibuscomosolhosparaconferir comoestavaEduardo.Naqueleexatomomento, eleestavaempélogonoiníciodocorredor,parecendosedecidiremquallugarsesentar.Algunsassentosnofinaldoônibusestavamvagos,masoassentologoaoladodeVanessatambémestava.Eduardosabiaquesesentaremqualqueroutrolugarquenãoaqueleseriaomesmoqueadmitirumaderrota.Ofimoficialdaquelaamizade.

Vanessasentiaomesmo.Embora,porumlado,estivessetãoansiosaquetinhacertezadequevomitariaseEduardosesentasseaoseuladoporaquelaviagemdequasemeiahoraatéaescola,partedelaqueriaqueele fizesseexatamente isso.Partedelaqueriaqueeleprovassequenãoprecisavaserdaquelejeito,queelestinhamconserto,quenãotinhasidotãoruim.

Ela mordeu os lábios, esperando, mal ousando se mover. Lentamente, quaserelutantemente,elecaminhouadistânciaentreosdoise seacomodounobancoao ladodela.

—Oi—elemurmuroutímido,porémsimpático.

—Oi,Dudu—eladisse.

Tirouumdosfonesdeouvidoporeducação,maslogoemseguidasearrependeu,porqueagorateriadeconversarcomele—nãofariasentidoalgumcolocarofonedeouvidodevolta.Seriaincrivelmenterude.

Obeijonãotinhasidoterrível.Pelomenoselaachavaquenão.Masdoqueelaentendia?Haviasidoseuprimeirobeijo—seuúnicobeijo.Comdezesseisanosemeio,nãoeraalgo

que ela gostava de admitir em voz alta. Não que ela achasse que era errado nunca terbeijado alguém aos dezesseis ou dezessete ou dezoito… Ela só tinha medo do que osoutrospoderiampensar.ADoratinhadadooprimeirobeijoaosdozeanos,aJéssicaaostreze, e a Alana (que todos acreditavam que tinha sido a última) tinha beijado pelaprimeiraveznasuafestadequinzeanos.EntãoVanessamantiveraseusegredo.Paraasamigas,haviacontadoumahistóriameia-bocadecomotinhaconhecidoumgarotomaisvelhonasfériasemqueforaparaacidadedosavós.Parasimesma,elaguardavaoreceiodeacabarnuncasendobeijada.Nuncasendoamada.

Até que naquela noite, duas semanas atrás, no sótão do Arthur, a garrafa girada haviaindicado que ela deveria passar SeteMinutos noCéu comDudu dentro do armário deprodutosdelimpeza.

Vanessasabiaquesequerhesitarpoderiaseromesmoqueexporaquelapartedesiqueportanto tempo ela havia batalhado para manter escondida, então ela fora a primeira a selevantareofereceramãoparaoamigo.Juntos,elesentraramnoarmáriodeprodutosdelimpeza. Quando os amigos fecharam a porta, tudo ficara escuro. Vanessa estava tãonervosaquemalconseguiarespirar.Ela tremiaesuavafrio.Ficara imensamentegrataàescuridão,porquedaquelaformaDudunãoseriacapazdevê-laentrarempânico.

Em um momento raro de clareza em meio ao caos, Vanessa havia percebido que seuprimeirobeijoprecisavaserassim.Precisavaserdaquelejeito,naquelelugar,comaquelapessoa.ComDudu.AjudavaqueDudunãoerafeio.Eleeraatébembonitinho,agoraqueelaparavaparapensar,enãoseriaumagrandetorturaseelefosseoseuprimeiro.Então,aproveitando-sedosurtomomentâneodecoragem,elaficounapontadospésetateouocorpodoamigonoescuroatéencontrarseurosto.Atrapalhadamente,uniuseuslábiosaodele, esperando,por tudoqueeramais sagrado,queelanão fosse tão terrívelnaquiloapontodefazê-loodiar.

Oqueelanãosabia,noentanto,eraqueEduardoentraranaquelearmáriocomomesmoníveldeexperiênciaqueela:zero.Nãoeracomoseelenuncativessetidoaoportunidadede beijar uma garota. A verdade é que garotas o deixavam ansioso. Ansioso demais.Ansiosoapontodepreferirfingirdordebarrigaaprecisarlidarcomaquilo.Isso,assimcomoVanessa,elemantinhaemsegredo,paraevitarzoaçõesdosamigos.

Nofundo,sefossesersinceroconsigomesmo,elenuncatinhasesentidopronto.Naquelanoite, a apenas três meses de seu aniversário de dezessete anos, ele havia chegado àconclusão de que provavelmente nunca estaria pronto. Desse modo, quando aoportunidadedebeijarVanessaseapresentaraaelenaformadeumagarrafagiratória,elesesentiraquasealiviado.

Foi apenasquando sentiraos lábiosmaciosdagarota tocandoo seu, sua respiração tãopertodadele,quearealidadebaixara.

Oqueeufaçoagora?Ondecolocominhasmãos?Sefornacinturadela,talvezsejamuitopróximodabunda,talvezelamedêumtapa,massefornascostaspodeserincrivelmenteanticlimático.Comcertezanãodáparaficarigualumidiotacomosbraçosaolongodocorpo.Pensa,Eduardo,pensa!

Colocara uma mão no ombro dela, mas a retirara logo em seguida, sentido-se idiota.Vanessa,talvezpercebendoahesitação,guiaraamãodoamigoparasuacintura,oqueofizera puxá-la para mais perto de si. Os lábios se partiram, as pontas das línguas setocaram experimentalmente.O que eu faço com meus dentes? Os dentes se bateram.Eduardoarregalaraosolhosearfara,certodequeaquiloestavasendoumdesastre,massem ter certeza sedeveriadesistir tão rápido.Experimentaracolocar a línguamaisparadentrodabocadeVanessa,eagarotatentararetribuir,quaseosufocando.Depoisdeumtempo, a luta de línguas adquirira um ritmo não bom, mas aceitável. Por fim, umaquantidadeconsideráveldesaliva(queelenãosabiaexatamenteporqualdosdoishaviasidoproduzida)atrapalharaasuavidadedomovimento,eEduardoseafastaradeVanessa,puxando-aparatrásatéqueseuslábiossedesgrudassemcomumruídoestranho.

—Espera—dissera.

Vanessa assentira, esquecendo-se de que, no escuro, não podia ser vista. Ela se sentiraaliviada pela pausa, mas decepcionada. Sete minutos que não passam nunca, pensara,mordendoaparteinternadabochecha.

Euacabeidedarmeuprimeirobeijo,osdoispensaram.

Acomodaram-se no chão e esperaram os quatrominutos emeio restantes em completosilêncio.

Quandofinalmentesaíramdoarmário,VanessaestavacertadequeDudurevelariaparaomundoofatodeelaserumaterrívelbeijadora,masogarotonadadisseraaosoutros.Porsua vez, Eduardo estava preocupado demais com o próprio desempenho para notar asfalhasdaamiga,etomaraafaltadepalavrasdelacomoumsinaldequeelenãohaviasidomuitobom.Consolara-sepensandoqueninguémdeviaserbomnoprimeirobeijo,maselanãosabiaquehaviasidoseuprimeirobeijo.Assimcomoelenãosabiaquehaviasidooprimeirobeijodela.

O que poderia ser simplesmente resolvido com um pouco de comunicação e algumasrisadasparareviveroclima,haviarapidamentesetornadoumadestruiçãodeamizade.Osilêncio mútuo atuara apenas como confirmação de que a performance havia deixadomuitoadesejar.Então,aterrorizadosporguardaremosegredomaisíntimoumdooutro,EduardoeVanessaseafastaram.Seisolaram.Passaramaseevitar.

Atéquenessediaodestinohaviafinalmenteosunidodenovonoônibusparaaescola.

Eduardosabiaque,assimcomoele,Vanessaestavapensandonobeijo.Elesabia,eodiavaisso.Odiavanãosabercomoagir.Odiavanãosabersedeveriasedesculpar,seexplicarouimplorarparaqueelafingissequenadatinhaacontecido.Então,eleexperimentoumudardeassunto.

—Oqueestáouvindo?

—Quê?—Vanessasealarmou.—Ah,amúsica.Hum.TaylorSwift.

—Aquelaloira?

— Não vem me fingir que não sabe quem é Taylor Swift, Eduardo — Vanessa riu,

revirando os olhos, porque aquilo era tão típico dele. Se fingir de sonso só para nãoprecisaradmitirqueconheciaumacantorapop(etalvezatémesmogostassedela).—EujávivocêcantandoBlankSpacecomosesuavidadependessedisso.

Eduardo abriu a boca para responder com um comentário igualmente espertinho, masentãonesseexatoinstanteosdoiscongelaram,porqueperceberamquehaviamesquecido.Poruminstante,obeijonuncahaviaexistido,nadahaviasealteradonadinâmicadosdois.Por um instante, o relógio havia voltado duas semanas, e era como se tudo tivesseretornadoaonormal.Poruminstante,eleseramdenovodoisvizinhosnomesmoônibuspara a escola, rindo, dividindo cheetos e fones de ouvido… Em vez de precisaremmodificartodaarotinapré-aulaparapoderemseevitar,pegandoônibusdiferentestodososdiaspelosimplesalíviodenãoteremdeencararseusmedos.Poruminstante,agiramnormalmentecomtantanaturalidadequeera,acimadetudo,assustador.

Eduardo,quesemprepreferiaenxergarocopomeiocheio,viuaquilocomoumsinaldeque talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez, com o tempo, tudo pudesse realmentevoltaraonormal.

—Talvezminhavidadependessedisso—eledisse.Masoclimajátinhaseperdido.AspalavrassóserviramparaassustarVanessamaisainda.

—Hã?Dependessedoquê?

—Da…Hum…Música.—elelimpouagargantaemordeuoslábiosdiantedaexpressãoconfusadagarota.—BlankSpace.TaylorSwift.

—Ah—Vanessafezquesim,voltandoaolharpelajanela,engolindoseualívioemsecoeesperandoqueEduardonãotivessenotadoseupânicomomentâneo.

O famoso silêncio constrangedor pairava sobre os dois, pesando por uns bons cincominutosatéficarcompletamenteinsuportável.

Então,porumabizarrasintonia,osdoiscomeçaramafalaraomesmotempo.

—Olha,eunão…

—Dudu,eu…

Pararamdefalar,arregalaramosolhosequasesorriramumparaooutro.

—Oquevocêiadizer?—Vanessaperguntounumsussurro.

—Euiadizerque…Queeunãoqueriaqueagenteficasseassim.

—Assim?

—Assim. Estranhos um com o outro. Tudo bem que a gente nunca foi exatamente…Hã…Próximosumdooutro…Masagentenuncafoiassim.

—É,maséqueantesagentenãotinha…

—Eusei.Masmesmoassim.Éestranho,nãoacha?

—Vocêpreferefingirquenuncaaconteceu?

—Nãosei.Vocêpreferefingirquenuncaaconteceu?

—Euachoquefingirvaiserbemdifícil.

—É,masagentepodetentar.

—É.Talvez…

Osilênciovoltou,masmenosesmagadordoqueantes.Agoraeraquasecomoumatrégua.Ergueram-se asbandeirasbrancas.Osdois lados estavamcansadosde lutar—estavamcansadosderesistir.

Eduardo se concentrouno leve ruídoque escapavado fonedeouvidodeVanessa, umabatida constante,mas irreconhecível. Ele puxou todo o ar que seu pulmão aguentava,depoiso soltou tremido.Olhoupela janelaepercebeuqueaindaestavamnametadedocaminho.Faltavamunsdezminutosatéaescola.Talvezmais,setivessetrânsito.AteoriadarelatividadedeEinsteinderepentefeztodoosentidodomundo.Presonaqueleespaço,o tempo parecia quase infinito, enquanto as pessoas lá fora pareciam seguir com suasvidas normalmente. Ele viu um senhor passeando com o cachorro, uma senhoracomprandoojornalnabanca,umacriançagritandocomumamãecansada.E,aoseulado,Vanessa,comsómetadedofonedeouvido,permaneciacompletamentecalada.

—VocêfoinacasadaDoranosábado?

—Não—elasevoltouparaele,franzindoonariz.Queriamuitoterido,masomedodeencontrá-loahaviamantidoemcasa.Então,elafezumapergunta inútil,umavezqueaprópriaperguntadeletambémserviacomosuaresposta.—Vocêfoi?

—Não—respondeuele,quetambémficaraemcasapelomesmíssmomotivo.—Enokaraokê?

—Tambémnão.—elaforçouumarisada.—Issoéridículo,Dudu.Achoqueagentejápassoudaidade,né?

— Idade?—ele perguntou, pensando na idade em que tinha dado seu primeiro beijo.Quasedezesseteanos.Tardedemais,paraalgunsparâmetros.

—É,daidadedeficaragindoquenemcriança.Vocêestácerto,agenteprecisafingirquenãoaconteceu.

—É,masaconteceu.

Vanessa fez uma careta, porém não evitou um sorriso.Dudu era tão teimoso. Era bemmaisfáciltratá-lonaturalmentequandoeleagianaturalmente.

—Vocêsempremudadeopiniãosóprapodermecontrariar—elaacusou.

—Eu?

— Sim! E é muito irritante! Acabou de falar que precisamos tentar fingir que nãoaconteceu, e agora fica aí todo “É, mas aconteceu” — ela fez uma voz grossa eestereotipicamente,comoseparaimitá-lo.

—Ei,eunãofaloassim!Equaléoproblemadeeumudarde ideia?Penseimelhor,e

vocêtinharazãoantes.Édifícilfingirqueissonãoaconteceu,Vanessa.Agentenuncavaipoderseguiremfrenteenquantonãoreconhecerqueaconteceu.

—Ok—elacruzouosbraços.—Ok,aconteceu.Eagora?

—Agoraagentefalasobreisso—Eduardosugeriu,encolhendoosombros,apesardeseraúltimacoisaquequeriafazer.

—Falaroquesobreisso?Quefoi…Hum…Quefoiterrível?

— Foi terrível? — ele não disfarçou a mágoa, o que a pegou completamentedesprevenida.

—N-não!Querdizer.Nãosei.Foi?

—Foi…Estranho.

— É, foi bem estranho — Vanessa concordou. — Eu… Hum… — ela pigarreou,desistindode continuaroquequeriadizer.—Desculpa—murmurou tãobaixinhoqueEduardoachouquetinhasidosóimaginação.

—Desculpa?—elerepetiumaisalto,fazendo-acorar.—Desculpapeloquê?

—Vocêvaimefazerdizerissoemvozalta,nãovai?

—Dizeroquê?

—Ai,Eduardo,peloamordeDeus—elacobriuorostocomasduasmãosesuspirou.Então, abaixou as mãos e riu de si mesma. — Ok. Lá vai. Você provavelmente jásuspeitava,mas…Foimeuprimeirobeijo.

—Sério?

Vanessarevirouosolhos.

—Não se fazde sonso,por favor— resmungou,virandoo rosto coradonadireçãodajanela.—Nãoétãofofoquantovocêpensaqueé.

Eduardo segurouopulsodela, eo toquea fezolharpara ele comoquepor reflexo.Osolhosdele,castanhos,tãointensos,nãodesviaramdosdelaumsegundo.

—Nãotômefazendodesonso.Ésérioisso?Foiseuprimeirobeijo?

—Como se fosse um choquemuito grande— ela comentou amarga, não se deixandoconvencerpelasinceridadedoamigo—,depoisdoqueeufizládentro.

—Éissoquevocênãotáentendendo,Nessa—Duduusouoapelidoqueelasóguardavaparaseusamigosmaisíntimos.—Vocêfoiquemfeztudoládentro.E-eu..Eusó…Fiqueiali parado, sem saber exatamente como agir. Foi… Hum…— Ele olhou ao redor eabaixouconsideravelmenteotomdevoz.—Foimeuprimeirobeijotambém.

Aresistênciadeladespencou.

—Mentira!Sério?

— Você também não suspeitou? — ele estreitou os olhos. — Não é como se minha

performancetivessesidonota10.

— Eu não tinha como saber, né, Dudu? — A risada brotava do fundo do estômago,nascidadealívioefelicidade.—Nãotinhanadacomquecomparar.

—É—eleconcordou,sendocontagiadopelaalegriarepentina.—Nemeu.

Vanessamordeuoslábiosesorriuconsigomesma.

—Entãoquerdizerquenãofoiruimporminhacausa—elasuspirou.—Foiruimporquenenhumdenóssabiaoquefazer!

—Foiruim?Vocêachou?

Elafezumacaretinha.

—Bem,Dudu.Bomnãofoi,né?Euacho.Seilá.Mas,portodaapropagandaquefazem,euestavaesperandocoisamelhor.

—Éverdade!Fazemamaiorpropaganda!—eleexclamouaosrisos.

—Mastalvezagentenãotenhafeitodireito—elaencolheuosombros.

—Talvezagentedevessepraticarmais…—Eduardosugeriu,meiosempensar.Apenasquandoaspalavras escaparamparaomundo foique ele se tocoude comoaquilo tinhasoado.Elequiseradizerquedeviampraticarmaisdeformageral,nãonecessariamenteumcomooutro.Mastentarseretrataragoraseriaapenascolocarmaislenhanafogueira.

Com os olhares presos um ao outro, nenhum dos dois ousava sequer respirar. EraextremamentereconfortantesaberenfimaverdadesobreobeijonosSeteMinutosnoCéu,maseraumacoisacompletamentediferentesugeriralgoassim.Vanessanãosabiacomosesentir.Perdidaempensamentosansiosos,eladesviouosolhosrapidamenteparaconstataratragédia:

— Nossa parada!— exclamou, percebendo que o ônibus acabava de dar partida paradeixaropontoemqueelaeDududeveriamdescer.Levantou-seapressadamenteepuxouacordinhacomdesespero.

Eduardolevoualgunssegundosparaentenderoqueestavaacontecendo.Osdois, rindo,desceramnaparadaseguinte,ecorreramadiferençaentreumaparadaeoutra,commedodechegarematrasados.

Comsorte,chegaramnafrentedoprédiodaescolaatempodeouviremoprimeirosinalbater.

Era aqui que se separavam. Cada um deveria seguir para a sua própria sala, eprovavelmente não se encontrariam na saída, porque Eduardo tinha curso de inglês eVanessageralmentepegavacaronacomairmãmaisvelhanavolta.

Osdoispararam, frente a frente, semsaberemexatamenteoquedizer, aindaumpoucoofegantesdacorrida.

—Bem…Achoqueéissoentão—Dudufalou,suspirando.—Vejovocêmaistarde.

—Boaaula—Vanessadesejou.

—Boaaula—eledesejoudevolta,segurandoasalçasdamochilaesorrindo.

Elesevirouparaseguirseurumo,eVanessasentiuocoraçãopalpitar.

—Dudu!—elagritou.—Espera!

Eduardo parou de andar imediatamente e olhou na direção dela, como se estivessetorcendoparaquedissessealgoassim.

—Oquê?

Meio atrapalhadamente, Vanessa pegou um pequeno objeto no bolso externo de suamochila eo escondeunopunho fechado, fazendoumgestoparaqueogaroto abrisse amãoparareceberaoferta.Quandoeleofez,eladelicadamentecolocouoobjetonapalmadesuamão.Semdizermaisnada,elaesboçouumsorrisoe,dandoascostas,entrounoprédiodaescola.

Eduardoaindaficouumtempoapenasapreciandoasimplicidadedoqueelahaviaacabadodelheentregar:umbubbaloodemorango.

Aqueleeraumsinaldeque,mesmoquetudomudasse,oessencialcontinuariaomesmo.

Sorrindo,eleguardouochicletenobolsoeseguiuparasuasaladeaula.

Saí correndo o mais desesperadamente possível. Não podia perder aquele ônibus emhipótesealguma.Aceneidescontroladamenteparaomotorista,quecomcertezaviaomeuesforço descomunal pelo retrovisor, e ainda assim não se apiedava de mim. Aquelebigodudonãotinhacoração!Euperderiaoônibuse,considerandootrânsito,opróximopassariaemvinte, talvez trintaminutos. Isso implicarianomeuatrasoque,porsuavez,resultarianaminhaausêncianahoradotestedebiologiaparaoqualvinhamematandodeestudar. Bufei frustrado e desacreditado. Minhas esperanças estavam sendo carregadaspelocoletivoquandoelefinalmentecomeçouadesacelerar.

Opa.

Essaeraaminhachance.

Retomei minha corrida e quase gritei de felicidade ao embarcar pela porta da frente.Encareiomotoristacomminhamelhorexpressãode“vaiseferrar!”,maselenemnotou.Encaravaoretrovisorcomosolhossemicerrados,atéquegritou:

― NÃO VAI DESCER, GAROTO? ― desviei minha atenção para o alvo do seuquestionamentoe…

Perdiofôlego.

Era oMarcos. Ele estava de pé diante da porta traseira, como quempretende saltar doônibus, mas não o fez. Deu de ombros para o motorista e com um sorriso amareloretrucou:

―Mudeideideia.

O motorista bigodudo (e mal-encarado) não gostou e ficou resmungando palavrasincompreensíveis.Sentiminhasmãossuarememinhaspernastremerem.TeriaoMarcosdadosinalapenasparaqueeupudesseembarcar?Ecasoelerealmentetenhafeitoisso…Qualseriaasua realmotivação?Sentivontadedemeaproximardeleedarvozaomeuquestionamento mental. Mas o resultado provavelmente seria desastroso. Marcos e eu

temosumaespéciedeacordonãoformalizadodeconvivência.Fomososmelhoresamigosquepoderíamosserdosdoisaosdozeanosde idade,atéque todaaescola resolveumeperseguiretornaraminhavidaumverdadeiroinferno.EMarcossimplesmenteseafastou,temendoseralvodeagressões(verbaisoufísicas)porminhacausa.

Pegávamosomesmoônibustododia.Nomesmohorário.Rumoaomesmolocal.Masnãotrocávamos uma palavra sequer.Essa era a regra.Ainda assim, possuímos umpequenouniversoparticulardentrodaqueleapáticoônibus:semprequecomprávamosnovasHQs,fazíamosumatrocaemsilêncio.Tudocomeçounoanopassado…

Sentei-menofundodoônibusembuscadealgumapequenadosedetranquilidadequemepermitisseleraHQdaMarvelrecém-lançada.Meusolhosnãodesgrudaramdaspáginasdahistórianemporumamínimafraçãodesegundo.Otrânsitoeraintenso,demodoquealcanceiaúltimapáginapoucoantesdechegarmosaocolégio.

Saltei e corri.Marcos e eu não nos comunicávamos de nenhuma forma naquela época,nematravésdegestosouolhares.Simplesmenteignorávamosapresençaumdooutro.Pormim,ascoisasjamaisseriamassim.Continuaríamossendoamigose…

Tantofaz.Eraumpassadoremotodemais.

Aquelediafoiumtédiodanado,lembro-mecomosefossehoje.Saídaescolacommaissono do que entrei.Marcos e eu aguardávamos a chegada do ônibus junto com outrosestudantes. Embarcamos em silêncio, ocupamos nossos assentos distantes e a viagemcomeçou.Jáestávamoschegandoàsnossascasasquandoelepuxouosinalparadescernoponto seguinte. Eu estava pronto para me levantar e saltar do transporte quando algoaconteceu:emabsolutosilêncio,MarcoslargouumaHQnomeubancoepartiusemolharparatrás.Aquilomeconfundiu.

Passei todo o dia pensando no significado de seu gesto inesperado,mas não cheguei anenhumaconclusão,defato.Nodiaseguinte,entreinoônibusmeioapreensivo.Antesdechegar ao colégio, no entanto, me levantei e larguei sua HQ no banco em que estavasentado.Junto,deixeiaHQnovinhaquetinhalidonodiaanterior.Eleesboçouumsorrisona minha direção e logo tratei de fazer o mesmo. Não dissemos nada. Saltamos dotransporteeseguimosnossasvidasbemlongeumdooutro.Masapartirdaísecriouumhábito. Sempre que um de nós lia umaHQ incrível, deixávamos no banco do outro. Eassimseguíamosfazendoduranteoúltimoano.

Mas agora havia sido diferente. Eu estava atrasado e desesperado correndo atrás doônibus.Vendoqueomotoristanadafariaarespeito,Marcosselevantouedeusinalparaque o transporte parasse e eu pudesse embarcar. Aquilo significava que, no fundo(beeeeeemnofundo),eleseimportavacomigo.Eoqueeudeveriafazerarespeito?Tinhamedodefalarcomeleeacabarestragandoatênueligaçãoquetínhamos.Emborativessesuperadoa“perda”domeumelhoramigodeinfância,confessoquenossastrocassecretasdeHQmedeixavamentusiasmado.Aindaquenão fossemgrandecoisa, eramamelhorpartedomeudia.

Meusolhossevoltaramnasuadireçãoepercebiqueelemeencarava.Quandoosnossosolharessecruzaram,elenãodesviou.Muitopelocontrário.Sustentouomomentocomose

esperassealgodemim.Então,numímpeto,sussurrei:

―Obrigado―elesorriudeformacontidaeassentiudeleve.

Emseguida,semmaisnemmenos,elevoltouaficarsérioevirouacara.CREDO!!!Qualéoproblemadele,afinaldecontas?Eununcaconseguireientendê-lo.Primeiro,noaugedoseuamorpor“Pokémon”eleresolvequenãopodemosmaisseramigos.Anosdepois,iniciaumatrocasecretaesilenciosadeHQsnaporcariadoônibus.Mesesdepois,játendoumaespéciedecódigosecretopré-definido,eleresolvefazermaiseficaboladoquandotentolheagradecer?

Ninguémnuncamedeuo“manualdeconvivênciacomoMarcos”paraeuterquesaberoquefazer!

Resolviignorá-lopelorestantedocaminho.Emquarentaminutoschegaremosaocolégioevoltaremosaserdoisestranhosnovamente.Muitobem,possoaguentar.AbriamochilaembuscadosmeusfonesdeouvidoesentiódiodemimmesmoaomedepararcomumaHQ novinha que pretendia lhe emprestar antes mesmo de ter lido. Trinquei os dentes,furiosocomigopor tamanha tolice.Quandoacheios fones, foiumalívioconectá-losaomeucelular.

Embora Ed Sheeran fosse meu crush eterno, eu estava muito (MUITO) viciado numabandaderockalternativochamadaParadiseFears.Suascançõespareciamtrilhassonorascriadas exclusivamente para a minha vida. Para os momentos bons e também para osruins;paratodoseles.Aprimeiraestrofede“BattleScars”tocounoúltimovolume:

“Thisisananthemforthehomesick,forthebeaten,

(Esteéumhinoparaosquetêmsaudadedecasa,osmachucados)

Thelost,thebroke,thedefeated,

(Osperdidos,osquebrados,osderrotados)

Asongfortheheartsick,forthestandby’s,

(Umacançãoparaoscoraçõespartidos,paraosqueesperam)

Livinglifeintheshadowofgoodbye”

(Vivendoàssombrasdeumadeus)

Ironicamente,amaioriadasmúsicasqueeumaisamavamefazialembrardoMarcos.Danossa amizade, dos momentos que compartilhamos durante boa parte da infância etambémdaquelesquedeixamosdecompartilhar.Eaúltimafrasequeelemedisseraaindaecoavafortenaminhamente:

“Vocênãopodeestarapaixonadopormim,Naldo.Souumgaroto.Issoéumaaberração”.

Aberração,aparentemente,eraexatamenteapalavraquemedefinia.Porquedesdeosdozeanos,quandomelançaramparaforadoarmárionomeiodoensinofundamental,eradissoquemechamavam.SemoMarcosesemnenhumoutroamigo, fui levandominhavida,deixandoosanospassarem.

Porém,paraqueessafalsatranquilidadecontinuasse,Marcosnãopodiaresolvermudarasregrasquandobementendesse.Eeletambémnãopodiaesperarqueeusoubesselidarcomsuasinexplicáveisvariaçõesdehumor.Eeletambémnãopodia…Nãopodia…Continuaralimentandoasminhasesperanças.

Fechei os olhos e recostei a cabeça no vidro da janela. Estávamos parados nocongestionamento há pelo menos dez minutos. Se tivesse perdido esse ônibus, nãochegariaatempodaprovadebiologianememsonho.Deixeiqueabatidadamúsicameenvolvesseemelevasseparaqualquerlugarlongedali…QualquerlugarondeoMarcosesuasvariaçõesnãopudessemmeencontrar.

Eu estava sonolento e o ruído das buzinas era insuportável. Nem amúsica no volumemáximoeracapazdedetê-lo.Todososdiasencarávamosalgunspontosdetráfegointenso,mas hoje a situação pareciamuito pior. Carro nenhum andava para sentido nenhum.Ocruzamento parecia um emaranhado sem fim de buzinas, gritos, ofensas, semáforos eapitos.

― ACIDENTE!!! ― o motorista bigodudo gritou de fora do seu assento, já de pé,encarandoos passageiros.―Vamos ficar aqui por pelomenosmeiahora.Nãoháparaonde fugir ― comunicou, como se não houvesse uma prova importantíssima paraacontecerdaquiapouco.

Ok.Aculpadoacidentenãoédele.Umcaminhãoedoiscarrosdepasseiosechocarammaisadiante,masnãoépossívelquenãoexistaumaformadesairmosdaqui.Osdemaispassageiros não gostaram da notícia e já estavam berrando como se aquilo pudesseresolveralgumacoisa.

Bufei.

Aoinvésdosgritos,ondeestáofilhodomagnatacomumhelicópteroàdisposição?Ondeestáocarrodepolíciacomasireneligadaabrindopassagemondeelasupostamentenemexiste?Ondeestáogalãdefilmenumamotovelozmeoferecendoumacarona?

Incapazdelembrarseaquelaeraaprimeiraouasegundatrocadefaixanaminhaplaylist,aguardeiasprimeirasbatidasparaidentificarqualseriaatrilhasonoradaquelemomentocaótico.“Youtobelievein”eraaescolhida.Atéaítudobem.Maseunãoficarianadabemcomoqueestavaprestesaacontecer.

Amúsicacomeçou:“Somethinglikeacrisisaquarterlifegoneby”(Umquartodevidaqueseesvaiemalgocomoumacrise)

E então alguém se sentou ao meu lado. Até então nada de errado. Mas aquele cheiromentoladoeratãofamiliar…Eeusabiaqueaquiloprovavelmentesetratavadeumtruquedaminhamentepatética.Marcosnuncasesentouaomeuladonoônibus,atéque…

Elesentou.Eessacomprovaçãosóaconteceuporqueelepuxouofonedeouvidodomeu

lado direito e colocouna sua orelha. Foi nessemomento quemevirei e encontrei seusenigmáticoseinconstantesolhoscastanhos.

Euquisgritar:“OQUEVOCÊPENSAQUEESTÁFAZENDO?”,masdesaprendiausarminhavoz.Tambémquisficarcomraiva,masoquemeinundavaopeitoeraesperança.Umaesperançatolaevãqueserecusavaameabandonar.Oqueelaaindafaziaali?Meuscolegashaviamdesistidodemim;minha família havia desistidodemim;Marcoshaviadesistidodemim;eemalgunsmomentos,eufaziaomesmo.Porqueelecontinuavaameconfundiretorturardaquelaforma?

Semsabercomoagirouoquepensar,apenaspauseiacançãoeaguardeipeloseupróximopasso.Elejogouocabeloparaolado(algoquevinhafazendocomfrequêncianosúltimosoitomeses)eabriuumsorrisodiscretoequase imperceptível.Euera,provavelmente,oúnicocapazdecompreenderqueaquele leverepuxarde lábiosse tratavadeumsorriso.Nãoretribuí.Esabiaqueomeusemblantenãoestavanadaamigável.

―Volte para o seu lugar―murmurei apesar da dor que tomavameu peito e fechavaminhagarganta.

Ignorando-me sem grandes esforços, ele apenas me estendeu um pacote de suas balaspreferidas.Recusei.

―Ademorangoéaminhapreferida―eledisseequasenãoreconhecisuavoz.

Euoescutavacomfrequêncianaescola,masnuncasedirigindoamim.Suavozsempremesooualtivaemáscula.Masali,diantedemim,pareciaapenasdoce.Comoabalaquemeeraoferecida.

― Eu estava pensando…― começou, falando baixo, mas não exatamente como umsussurro.―Jáfazmuitotempo.

Minhacuriosidade estavaprestes ame trair, perguntando“Oque já fazmuito tempo?”.Masaindamerestavaumpouquinhodedignidade.Sóumpouquinhomesmo,masaindaassim,eraalgonoqualmeagarrar.

―Porquedeixamosdeseramigos?―questionou,porémnãoparamim.Marcospareciaestardentrodeseusdevaneios.―Porqueeufuiumidiota,paracomeçodeconversa―respondeucomumarisadaamargurada.

Gostariadesercapazdeexplicaraloucuraqueaconteciadentrodemim,maspareciaumatarefa impossível. Meu coração embarcava numa insana montanha-russa repleta deloopings, enquantominha saliva era tragada de volta por uma espécie desconhecida demonstro.Eoquedizerdasminhasmãos?Elasderepenteforamsubmersasnumapiscinarepletadegelo,enquantoosossosdasminhaspernasforamsubstituídosporgelatina.

Mas,mesmo com todas essas reações sem sentido,minha voz foi capaz de encontrar asuperfíciedosmeuslábioseseatirardaaltamontanhademágoaeconcordância:

―Vocêfoiumidiota!

―Quebomqueestamosdeacordo,masissonoslevaparaoutropensamentoquenãotemsaídodaminhacabeça:setivesseaoportunidadedepassarpelamesmasituaçãodeanos

atrás,dequeformaeureagiria?Oquefariadediferente?

Fazia muito tempo que eu não conversava com ninguém. Teclar pelo celular oucomputadoréumacoisa.Conversarcara-a-caraéoutracompletamentediferente.Eentãomedeicontadequehámuitosanoseunãomesentavacomalguémparaconversar,olharnos olhos daquela pessoa e trocar reações e contatos verdadeiros. Todos aomeu redorhaviammeisoladonumadrogadebolhagay,comosefossealgocontagioso.

―Nãoseiquantoavocê―resmunguei,aindabancandooorgulhoso―,maseujamaisteriaconfiadoemvocê.

Ele assentiu como se compreendesse minha posição. Como se, no meu lugar, tambémfizesseomesmo.Eaquelasituaçãonãopodiaficarmaisestranha.Pelomenoseraissoqueeurepetiaparamimmesmoempensamento,enquantomeuex-melhoramigoaparentavaumaespéciedeconflitointerno.

―Foiassustadorparamim,Naldo―gelei.Apenaselemechamavapelomeuapelidoeisso não acontecia há anos. Para todos os outros, antes de ser “aberração”, sempre fuiRonaldo.―Eutinhaacabadodecompletardozeanosetodoscomeçaramanospressionarcomolancedebeijargarotas.Eaí,donada,vocêdizqueestáapaixonadopormim.Eufiquei apavorado com a revelação, masmais ainda quando percebi que não estávamossozinhos na biblioteca.Aqueles garotos transformaram nossas vidas num inferno desdeentão―seudiscursoiabem,masderrapoufeionaquelaúltimafrase.

―Não,Marcos,elesnãotransformaramnossasvidasnuminferno.Aúnicavidainfernaldessahistóriaéaminha―eeleseriaumcínicoseinsistissenocontrário.

Marcos havia se tornado um geek altamente popular, sociável e cobiçado. A quem elequeriaenganar?Aquelearrependimentotardiopodiaatéabalarasminhastolaseingênuasestruturas,masnãomeengava.

―Sim…Masesseéexatamenteoponto,Naldo.Vocênãovê?―negueicomacabeçaetentei não dar bola para a senhora que prestava demasiada atenção na nossa conversa.Sabeocaosque tinha se instaladonaquele cruzamento?Haviadesaparecidocomonumpassedemágica.Ocaosagoraeraoutroeaconteciadentrodemim.―Eufiqueiconfusoenãosoubelidarcomasituação.Masseparamimfoiassim,paravocêascoisasdevemter sidomuito piores. E no auge dosmeus doze anos, eu não tive essa percepção. Fuiincapazdeassumirosriscoseficardoseulado,comoumamigodeverdadedevefazer.

―Poisé―foitudooqueeudisseporquederepentefiqueisemsaberoquedizer.

―Maseujuroqueaminhavidatambémnãotemsidoummarderosasdesdeentão…―confessounumsussurrobaixoquemegolpeouopeitoemearrancoutodooar.Oqueelequeriadizercomaquilo?

Opacotedebalasqueelemeofereceranoiníciodaquelasurrealconversaaindaestavanasuamão esquerda e, deixando uma pequena parte domeu orgulho de lado, aceitei suaofertatardiamente:

―Querouma.Massósefordemorango―elesorriuetirouaprimeirabaladopacoteque,lamentavelmente,nãoeradosabordesejado.―Tudobem,podeseressamesmo…

―Aolongodetodosessesanostenegueimuitascoisas―admitiuinesperadamente.―Nãocometereimaisomesmoerro―eletiroumaistrêsbalasdopacoteenada.Restavaapenasumaeseriamuito irônicoelanãoserdemorango.Mas,pensandobem, tambémseriairônicosefosse.Enfim,tudonaquelemomentoeraumagrandeironia.

― Não desperdice todas essas balas, Marcos. Posso ficar com a de outro sab… ―entusiasmado,elemeinterrompeu.

― Finalmente! ― ele me estendeu sua bala favorita, claramente abrindo mão dela.Devolveuasdemaisparaopacoteemeutolocoraçãoestremeceu.

―Obrigado―murmurei,certodeestarcorando.

Osveículos acidentados finalmente foram retiradosdomeiodo cruzamento, permitindoqueosoutrosvoltassemacircular.Omotoristabigodudodonossoônibusreassumiuseupostoedeupartida,parecendodesesperadoparaconcluirotrajeto.Minhasúbitavontadepela bala preferida dele havia tirado o foco de umdetalhemuito importante.Reunindotodacoragemdentrodemim,resolviretomá-lo.

―Vocêdiziaqueasuavidanãotemsidoummarderosasdesdeodiaemque…―“medeclarei para você” era o que eudevia ter dito,masnão tive coragem.Não com tantaspessoasaoredor.―Bem,vocêsabe.

―Ahsim…Isso…Vocêdeveestarquerendosaberoquemelevaaessaafirmação,nãoémesmo?―assenti,felizporconstatarqueeleaindapareciameconhecermelhordoqueninguém.―Diantedacrueldadedaquelesgarotosnabibliotecaedoshorroresquevivocêpassardurantetodosessesanosnaescola,preciseisufocartudoqueeueraemaisamava.Precisei ignorar todos osmeus sentimentos e angústias parame encaixar no que todosesperavam demim. Então vesti umamáscara e criei um personagem convincente parasuportaressadrogadeensinomédio.

Aquiloprovavelmentenãoestavaacontecendo.

Provavelmenteerafrutodaminhamentetendenciosa.

― Mas a verdade, Naldo, é que todos os dias eu deito na cama e não consigo meconvencerdequesoufeliz.Nãoconsigomeconvencerdequefizacoisacerta.Epodeserquevocênãoacredite,mas…QuandotrocamosnossasHQs…Essaéaminhapartedodiafavorita.EntãoháalgunsmeseseumedeicontadequeoMarcosqueeusouequeeuamosernãoexistesemoNaldo.AssimcomooNaldoqueeuamoequerobeijarnãoexistesemmim.

ELEHAVIADITOQUE…ESPERA…OQUÊ???

Meumundoviroudecabeçaparabaixoederepentefuiarremessadonoarsemnenhumaespécie de proteção ou paraquedas. E qual era a garantia que eu tinha de aterrissar emsegurança?

Nenhuma.

―Essa é a hora emque você diz alguma coisa― ele sussurroume tirando daminhaquedaimaginária

― Isso é algum tipo sádico de brincadeira? ― questionei, disposto a não me deixarenganarmaisumavez.Dispostoanãomeiludir.

―Eunãobrincariacomisso,Naldo―eelecontinuavaapronunciarmeunomedeformaternaeabsurdamentegentil.Quaseapaixonada!

Asenhorafutriqueiraqueestavamuitointeressadananossaconversafinalmentedesciadoônibus.Observei-aporalgunssegundosapenaspornãosaberparaondecanalizarminhaenergia.

―Vocêdissequequermebeijar―constateiespantadoeaossussurros.

―Fareiissonospróximosminutos,sevocêmepermitir―COMOÉQUEÉ?Acheiqueessafrasetivessesaídoapenasnomeupensamento,maseumeioquehaviagritado.Ops!― É o que duas pessoas fazem quando se gostam, não? ― questionou de um jeitodivertido.Ficavatãoabsurdamentelindoqueeraaindamaisdifícilmeconcentrar.

―Mas…Mas…Nós…Você…― essa foi a minha tentativa de formular uma fraseincrédula,oque,comovocêspodemperceber,nãoaconteceu.

―Nóssomosdoisgarotos,eusei.Mas tivemuitosanosparaentenderqueoamornãotemgênero.Ésóamor…

Issosignificavaqueele…Meamava?

―Sei o que você está pensando―acusoudivertido e cada vezmais lindo.Eu estavatranspirando nos lugares mais improváveis e bizarros do mundo. ― Sim, Naldo, issosignificaqueestouafirmandoqueamovocêequemearrependodasatitudesridículasquetomei aosdozeanos.Sevocêpudermeperdoar, poderemos sermuitomaisqueapenasmelhoresamigos.Poderemossernamorados.

EfoiquandoaWanessaCamargoentrounonossoônibuscantando:“Meumundocaiu…”.

Ok,issonãoaconteceu.Masconsiderandotudoqueacontecianaqueledia(tãoevitadopormimemvirtudedaprovadebiologia),teraWanessacantandoseriaodemenos!

― Você me perdoa, Naldo? ― inquiriu com uma expressão de gatinho abandonado.Quantacovardia.

Incapaz de encontrar as palavras adequadas, e commedo de despertar de um sonho aqualquermomento,apenasassenti.Ficamosnosolhandocomumsorrisobobonorosto.Algum sentimento inexpressável nos tomava e era tão avassalador e sincero quetransbordava.

MarcoseNaldo,juntos,transbordavam.

Desdepequenos.

Desdesempre.

Elesaiudeseutransemomentâneoetiroumeucelulardeminhasmãos.Digitandoasenhanovisordoaparelho(adatadoseuaniversário,tãoprevisível!),eleodesbloqueouedeuplaynamúsicaquedeixeipausadadurantetodoessetempo.E,maisumavez,“Paradise

Fears”eraaperfeitatrilhasonoradaminhavida.

Bom,talvezeudevadizer…

Danossa!

“YeahI’vegotyoutobelievein

(Sim,eutenhovocêparaacreditarnisso)

(Ohwoah-oh,ohwoah-oh)

I’vegotyoutobelievein

(Sim,eutenhovocêparaacreditarnisso)

(Ohwoah-oh,ohwoah-oh)

I’vegotyoutobelievein

(Sim,eutenhovocêparaacreditarnisso)

(Ohohwoah-oh)”

Pode ser que alguns passageiros daquele coletivo estivessem nos lançando olhares dereprovação,masnuncapodereidizeraocerto.

QuandooMarcostomoumeurostonasmãos,instintivamentefecheiosolhoseaguardeiansioso o momento com o qual tanto sonhei. Pude senti-lo se aproximando e nossasrespirações se fundiram naquele veículo, que de repente parecia pequeno demais paratransportartodososnossossentimentosávidoseincontroláveis.

Seuinconfundívelaromamentoladoinvadiuasminhasnarinassempedirlicença,dispostoaseinstalaraliportempoindeterminado.Quandosaídecasaevioônibuspassar,previum dia desastroso. Essa suspeita se confirmou quando me flagrei correndo atrás doveículo feitoum louco.Mas, nememmeusmelhores sonhos, eupoderia imaginar algodaquelamagnitude.

Seuslábiosforamaoencontrodosmeus.

Efoicomosetodoocéufossetomadoporfogosdeartifício.

Ocolégio se aproximavaemepegueinervoso.Seráquecontinuaríamos fingindo?Seráque…?

Marcosfezsinalelogoomotoristareduziuparaquepudéssemossaltar.Surpreendendo-me(denovo;ainda!),elemeestendeuamãoeentrelaçouseusdedosnosmeus.Eentãoseguimosparaaaula…

Transbordando.

Atimideznãoéumdosadjetivosquecompõeaminhadescriçãocomopessoa.Tampoucoéo sentimentomais recorrente emmim.Hoje, eume comunico com facilidade comaspessoas,quasecomoseissofosseumdom.Porém,quandoestounomesmoambientequeMaristela,acoisamudadetom(rimapropositalinfeliz):Euficotímido,nervoso,sentindocomo se tivesse nascido do jeito errado.Como se osmédicos tivessemme tiradopelaspernasdoúterodaminhamãe―nãopelacabeça―e,porcontadisso,meusassuntoscomMaristelasótendemaserpioresdoqueconversasdeelevador.

―Quantotemposeráquevaidemorarparaesseônibuschegar,hein?―elaperguntou.

“Ok,Hugo, respira fundo.É só umagarota.Maristela é sóuma garota” pensei comigomesmoenquantoaencaravaali,aomeuladonopontodeônibus.

―Nãosei.―disse,voltandoaencararmeusallstars (eusimplesmentenãoconseguiafalar eolharpara ela aomesmo tempo)―Talvezalgunsminutos.― respondi,mesmosabendoqueaquelaeraquaseumaperguntaretórica.

Maristela faz omesmo cursinho pré-vestibular que eu. Sentamos na primeira fileira daclasse,decaraparao“palco”emqueosprofessoresdãoseu“showdeconhecimento”.Elaémuitointeligente,estudabastante,emontaumcubomágicoemmenosde40segundos(seu recorde). Quando o professor passa os exercícios, ela é a primeira a terminar derespondê-los; quando alguém faz piada associando sua inteligência ao fato de ela terdescendênciaasiática,elaapenas ri,exibindo todososseusdentes impecáveis,emitindoaquelarisadacalorosaesonoraeperfeita.Seusolhossãoenormes(aocontráriodosolhosdeseuavôjaponês),apeleéamarelada(comoadoseuavô),ocabeloéenorme,pintadodecor-de-rosa,easuaalegriaeotimismocontagiamtodososoutrosaoseuredor.

Elaémuitonadela,assimcomoeutambémerana infância,masmesmodelongevocêconsegue perceber que é uma garota especial. Fica desvendando seu cubomágico nosintervalos das aulas, e vez ou outra se vira para as meninas que sentam atrás dela econversa sobre bandas asiáticas e lançamentos da Marvel. Mas dentre essaspeculiaridadezinhas,aquemaismechamouaatenção,desdeoprimeiroinstante,écomo

os seus olhos falam. Ela nem precisa abrir a boca. Só pelo olhar você já obtém suasrespostas, risadas,perguntas,dúvidas…É tudo tãoclaroe cativante (não sei se sóparamimouseparatodomundotambém).

Secadapessoaéumapoesia,Maristelaéomeupoemafavorito.

Eeunemgostodepoesia.

Senoiníciodasaulaseumesentavanaprimeirafileirasóparapoderprestarmaisatençãonoprofessor,depoispasseiaocuparaquelelugarsónaesperançadequeessagarotamenotasse.Euatépasseiameesforçarmaisnosestudosparaconseguiracompanharoritmodelaenãoparecerumimbecilaoseulado.EtodososdiaseumentalmenteimploravaparaqueMaristelameolhassecomaquelesolhosquefalamtanto…

Atéqueelaolhou.

Nestamanhãduranteaaula.

Elacomeçouapuxarassuntocomigo(“sabequaléapáginadeexercícios?”)epapovai,papovem,descobrimosquepoderíamospegaromesmoônibusparafazerocaminhodevolta para casa. Digo, cada um para a sua própria casa. Porque Maristela e eu nãomorávamosjuntos.Masbemquepoderíamosvivernamesmacasa…SantoDeus,oqueéqueeuestoufalando?

―Aqueleéonossoônibus?―Maristelaperguntouderepente,apertandoseusolhinhosemdireçãoaoscarros,interrompendoomeufluxodepensamentos―Estousemosmeusóculos,nãoconsigoverdaqui.

Euolheinadireçãoqueelaapontava.Sim,eraonossoônibus.Deisinalcomminhasmãosridiculamentetrêmulasesuadasporcontadonervosismo.

Mesmo sofrendo dos sintomas de um típico “homem bunda-mole”, eu consegui, pormilagre,mostrarmeuladocavalheiro,dandopassagemparaqueelaentrasseprimeironocoletivo.Elasorriuparamimemgratidãoeentrounoônibus,comigologoatrás.

― Boa tarde. ― cumprimentei o motorista assim que entrei, porém em vez de umarespostaigualmentecordial,recebiumaencaradarabugentadohomem.

Desvieioolhar,intimidado,indomejuntaràMaristela,quejáestavanacatraca.

MeuDeus,elajáestavanacatraca!Eunempudemeoferecerapagarapassagemdela…Ah,não, espera.Ela tembilheteúnico.Menosmal.Eunão iria passar por ummonstroavarentooualgoassim…Talvezeuestejamepreocupandoumpoucodemais.

Passeipelacatracatambémelogooônibuscomeçouaandar.Emseguidamesenteiaoseulado no lugar que ela havia escolhido, pousando minha mochila entre os meus pés.Aproveiteipara“secar”asminhasmãossuadasdisfarçadamenteemmeusjoelhos.Logoquemesenteidemaneiraereta,sentiumcheirodesagradávelvindodealgumlugar.Meusolhos percorreram assento por assento do coletivo até encontrarem um velhinho quecarregavaunicamenteumasacola.Rapidamenteassocieiomaucheiroaele.

Engraçadoquesemprequeotransportepúblicoestáfedendo,agenteassociaofedoraum

idoso, nunca à menina gostosinha sentada perto da gente. Nunca somos nós mesmos.Comeceiarirdemimporcausadisso.

―Oquefoi?―Maristelaperguntoucuriosa,sorrindo.

―Nada.―respondi,tentandoconterarisada.―Bobagem.Quertrocardelugar?

Etrocamos.Fomosparaofundodoônibus,longedofedor,demodoqueeumesenteinobancodajanela,eMaristelanodocorredor.

Algunsminutos sepassaramdesdeanossanovaacomodação.O transportebalançavaenós nada dizíamos um ao outro.Viu? Pior do que papo de elevador, já que o papo deelevadoraomenosexiste.

―Vocênãoédefalarmuito,né?―Maristeladissederepente.

Euaencareinosolhos.MeuDeus,aquelesolhos.

―Nãomuito.― concordei sinceramente―Mas é só que…Aminha vida não é tãointeressanteprateroquedizer.

―JoelBarish?―elaperguntousorrindo.

―Oi?

―EssafraseédoJoelBarish.

―Desculpa,nuncaouvi.

―Nãoéumcantor.―elariu.

―Desculpa,nuncali.―tenteinovamente,meioquefazendoumapiadinha.

Hahaha.

―Éopersonagemdeumfilme.―elaenfimrevelou.―BrilhoEternoDeUmaMenteSemLembranças.De2004.

―Umpoucovelhojá,não?Masébom?

―Éótimo!Umdosmeusfavoritos.

―Vocêdeveconhecerváriosfilmesclássicosbons,jáquevaiprestarCinema.―tenteiprolongaroassunto,percebendoquemeusombrosestavamcomeçandoarelaxar.

―Ah, alguns, sim…Não muitos. Não tenho tanto tempo assim para assistir a tantosfilmes como antigamente, mas conheço uns ótimos. Sei de vários lançamentos legaistambém.―elaressaltou―Nãosoutipoumbaúdascoisasantigas.―disseessaúltimafraseumpoucochateada.

―Nãoachoquevocêsejaumbaúdecoisasantigas.

―Temgentequeacha.

―Bom,foda-se.

Elameolhouumpoucoassustada.

―Nãovocê!―esclareci―Fodam-se as pessoas. Fodam-se essas pessoas que dizemissodevocê!

―Ah!Quesusto.―elariuumpoucoaliviada.―Eunãomeimportoquepensemissodemim,naverdade,masàsvezeseufico,sim,umpoucoincomodada.

Nessemomentonãosóoônibus,comoomeumundointeiroparou.Oônibusporcontadosemáforo,jáomeumundoporcontadoqueestavaprestesavir.Minhaaudiçãoficoumaisaguçada,poispercebiqueMaristelaestavaprestesafalardeseussentimentos(mesmoquenãodemaneiraclara),eeunãopoderiaperdernenhumapalavra.

―Citeexemplos.―ainstigueiafalarmais.

Elaestavaolhandopara frente, comamãoapoiadanoencostodooutrobanco.Abriuabocaparadizer algo,masdesistiu.Depoisde alguns segundospassou a língua entreoslábiosefinalmentecomeçouafalar:

―Estoufazendoumcursodeescritacriativa,eaprofessorapediupragenteescreverumroteiropequeno.Eeuescreviomeu.―meencarouparaverseeuestavainteressadonoqueeladizia (euestava),eentãocontinuou―Aíelamedeuumanotabaixa,poisnãohavia“elementosjovens”nele.

―Eoqueseriam“elementosjovens”?

―Exatamente!Foioqueeupergunteiaela.Daíeladissequeeupoderiatercitadoumasbandasadolescentes.

Eucomeceiarir;oônibusvoltouaandar.

―Exatamente!―elarepetiu,apontandoparamim,queestavarindo.―Comonãorir?Bem,nahoraeunãori,confesso.Fiqueisópensandonissoe…Porqueosadultosachamqueproduzirconteúdoadolescenteéficarcitando478bandaspassageiras?Poxa,eunãoconheçometade dessas bandas de hoje em dia. Cada dia uma termina e outra aparece.Todoscomamesmavoz.

―Uhum.―euconcordei.

―Enemporissodeixodeter17anos,né?Achoqueseradolescentetemmuitomaisaver com liberdade. Ou a falsa liberdade que pensamos ter…― ela divagou enquantoencaravaaindaobancodafrente.―Asprimeirasvezes,aansiedade,apaixãopelavidaepelaspessoasecoisas…NinguémprecisaserdageraçãoJustinBieberpraserjovem.

―SebemqueoJustinBiebertemfeitomúsicasótimasagora.

―Temrazão.―concordou.―Aíestáaminhareferênciajovementão.Dapróximavezocitonosmeusroteiros.

Eusorri.

―Vocênãoéumbaúdecoisasvelhas.―falei,poispercebiqueissoapreocupava.

―Será?Nãosintoquefaçopartedageraçãodosanos2000.Eneméporqueeuqueromesentirassimprapagardehipster…Eusónãosintoquenascinaépocacerta.

―Milharesdepessoassesentemassim.

―Vocêsesenteassim?

―Sim.PrincipalmentequandoligoaMTVevejoqueestápassando“DeFériascomoEx” e não algum programa musical. Se meu irmão mais velho está na sala nessesmomentostambém,elelogosoltaum“naminhaépocaaMTVsópassavaclipdemúsica”.Elesótem25anosejáfalacoisascomo“naminhaépoca”.

Elariu.

―Vocênãoéesquisita.―concluí.

―Vocêpensaassimporquetalvezvocêtambémsejaesquisito.

―Eunãomeimportodeser.―deideombros―Deveria?

―Não.Temrazão.Dapróximavezeumandoaminhaprofessorairsefoder.OucitooJustinBieber.

―Isso.Aprendeudireitinho.

Voltamosaficaremsilêncio.

Meurostotinhaumsorrisobempequenininhodesatisfação.JánãoficavatãonervosoporestarnapresençadeMaristela,aindamaisporquedecertaformaeua tinhaajudadoemumdilemapessoal.

Deusabençoeaprofessoraderoteirodela,eDeusabençoeoJustinBiebertambém.

―VocêpoderiameemprestaraapostiladeMatemática?Euprecisoanotarosexercíciosquenãoconseguipegarnaaula.Claro,sevocênãoforestudá-lahoje…

―Emprestosim.―ainterrompijámexendonamochila.

Entregueiaapostilaelogofuifalando:

―Minhasanotaçõessãoumabagunça.Alémdisso,vocêémuitomaisinteligentedoqueeu…Aliás,eunemseiporquevocêfazcursinho.VocêvaiprestarCinema.Nemprecisase matar tanto de estudar… Não querendo desmerecer o seu curso, mas você é beminteligentemesmo.―eucomeceiameembolar.

―Voulevartodosessescomentárioscomoumelogio.―eladisse,abrindoaapostilaeafolheando.

―Porfavor,poissãoelogiosmesmo!―eufiqueivermelho.

― Bom. Eu gosto de estudar.― ela falou, justificando o fato de fazer cursinho pré-vestibular.―Gostodoambientedocursinho,equeroconseguirumaboabolsa…Ei,essaéasuaapostiladeHistória,nãoadeMatemática.―disse,semtirarosolhosdasfolhas,passandoaspáginasmaislentamente.―Oqueéisso?

Merda.

Merda,merda,merda!

Maristela estava apontando para um dosmeus desenhos de estudo feitos em cima dostextosdaapostila.

― Não é nada.― respondi, já mexendo na bolsa rapidamente, procurando a apostilacerta,atéqueenfimaachei―Toma.Essaéaapostilacerta―aentregueiparaMaristela.

Elapegoua apostila deMatemática,masnãoparoudever adeHistória, comosmeusdesenhos, nemdemonstrou interesse emme devolvê-la.Voltei a suar pelasmãos e nãosabiacomopedi-ladevolta.

―Oqueéisso?―elarepetiuapergunta,dessavezolhandoparamim.

Como explicar os meus desenhos para Maristela? Como explicar que passei mais dametadedaminhavidareclusodasociedadeaomeuredoreque,por isso,eueraomaisquietodasala,semamigos,eviviacomacaraenfiadanoslivros?Comodizerquemeusdedoscorriamentreoslivrosdaescolaúnicaeexclusivamenteparadesenharemcimadostextos? De que forma eu diria que fazia aquelas “belíssimas obras-primas” (lê-se comironia),mas nesses anos todos não apreendi nada damatéria dada, pois não conseguiaprestar atenção na aula? Que estive sempre com a minha boca próxima à boca daReprovação,prontoparaserbeijadoporela,enquantoatéosalunosmaisbagunceirosdasala(oscasossemsolução)passavamdeano?

―São…―minhavozsaiufalhada,entãopigarreeiparavoltarao tomnormal.―Sãomeusdesenhosdeestudo.

―Desenhosdeestudo?

Eurespireifundo.

―Senãoquiserfalar,tudobem.―eladisseaomeversuspirar.

―Não,não!―tenteiarrumarasituação.―Eudesenhoparaestudar.―expliquei―Euleioostextosedesenhooqueestáescritoneles.

―Vocêqueinventouessemétododeestudo?―perguntou,voltandoaolharparaosmeusrabiscos.―Sãolindos.

Sorriinvoluntariamentecomoelogio.

―Foiumaterapeutaquedeuaideia.Eujáestavaplanejandolargarosestudos…Eunãoera um bom aluno. Eu desenhava nos livros em vez de estudar, até que essa terapeutasugeriuqueeucomeçasseadesenhardepoisde leros textos.Deucerto.Agora souumfuturoestudantedearquitetura.

Elariuumpoucodebochadamente,mefazendoficaralertadenovo.

―Vocêtemoutrosdesenhos?Semserdeestudo?

Nossa,mas ela tinhaváriasperguntasnamanga,não?Daqui apoucooSilvioSantos aconvidaparafazeranovaversãodoShowdoMilhão.

―Tenho…Noslivrosqueeuleiopordiversão.Eusódesenhoemlivros,nuncaemfolhasembranco.―expliquei.

―Vocênãoparecequererestudararquitetura.

― Não, não quero mesmo. Mas “querer” não é poder. Se fosse, já tinha milhares depessoascomosX-Men.―eudissecomumsorrisodebochado.

Elanãoriudaminhapiadaruim.Nempordó.Pareidesorrirecomeceiaolharatravésdajaneladoônibus,tentandomeimaginarnumfilmeemqueascoisasdãocertoparamim(aocontráriodaminhavidareal).

―Oquefariasepudesseentão?

― Desenharia assim. ― respondi sem pestanejar, desviando a atenção da janela eapontandoparaaapostilaaindaabertaemseucolo.―Fariaexposições,acho.Masnãoseisetenhomuitotalentoparaisso…seilá!Prefironãopensar…

Pareidefalar,porquedetestavademonstrarasminhasdúvidas.Hápoucosminutoseraeuquem a estava ajudando com seus dilemas pessoais, citando o Justin Bieber e a velhaMTV.Agoraeraeuquemmecolocavanumaposiçãofrágil.Eeudetestavaisso.Faziaeumesentirerrado.

―Bom,deveriapensaretentarfazeressastaisexposições.

―Porquê?

―Porquenão?

―Porestabilidadefinanceira…Essascoisas.

Maristeladevolveuaminhaapostila,semdizernada.Ficamosemsilêncioporumtempo,enquantooônibusnoschacoalhava.

― Adoro o fato de você querer cursar Cinema. De sua única preocupação ser com aprofessoradeescrita,nãocomoseufuturo.

Maristelanadadisse,entãoeucontinuei:

―Nãoachoquevocênãoiráterumfuturopromissor…Masqualquerumnoseulugarestariacommedo.

―Eusóestariacommedoseeuestivessemecondenandoaumcaminhoqueeuseiquenãome fará feliz.Cinema é o que eumais amo, então lá é omeu lugar. Por que lutarcontraisso?Éoqueeuquero.

Euaencarei,ouvindoatentamente.

―Equererépoder,sim.―elacontinuou―Eusereireferêncianoqueeuquerofazer,simplesmenteporqueeuquerofazeraquilo.Porqueeusoufelizfazendoaquilo.

―Ok.

―Ok?

―Ok.

―Ai,meuDeus,vocêestácitandoasfalasdoJoelBarishdenovo.

―Desculpa.

―Não,issonãoéruim.

―Entãodenada.

Nósdoisrimos.

Masoqueeuqueriadizercom“ok”eraquetalvezMaristelaestivessecerta.Elanãoeraum baú de coisas antigas… Era o ser humano mais sábio e maduro que eu tive aoportunidadedeconhecer,entãoguardeiaspalavrasdelacommuitocarinho.Omaislegalera que eu nem precisei dizer tudo isso a ela. Através de seus olhos que falam tanto,percebiqueconseguiu“ouvir”todasessascoisasqueforamditaspelosmeusolhos.

Quandonósdescêssemosdesseônibus,eunãosabiasejáteriatomadoadecisãodoquefazercomomeufuturo,secursariaarquiteturaouinvestirianaquiloquerealmentemefazsentirvivo.TambémnãosabiasefinalmenteparariadecitarparaMaristelafrasesdeumpersonagem de um filme que nunca vi, nem se teria coragem de chamá-la para umencontro.Massabiaexatamentequeaquiloeraumcomeço.Paraasduascoisas.

Pouseiminhamão(quenãomaissuavaoutremia)emcimadeumadasmãosdaMaristelaeseguimosviagemnumsilêncioextremamenteconfortável.

Tinhasidoumlongo,longodia.Umdaquelesquecolocamemxequeaimpressãodequeexistemesmoolimitetemporaldiáriodevinteequatrohoras.

Aliás!

Vinteequatrohoraseraotempoqueestavadurandoapenasoseutrajetoparacasa.

Seu corpo doía, as pernas fraquejavam e seus olhos certamente carregavam profundasolheiras: evidência incontestáveldanoitemaldormida, damanhãmal acordada e…Davidamalvivida.

Oh,indíciosdedrama.Oprimeirosintomadeseuesgotamentomental.

Estavadepénoônibusmeiocheio,comascostasapoiadasnaarticulaçãoqueviabilizavaapassagemdoveículogigantepelasruasestreitasdacidade.

Porcausadeumafreada,Augustosentiuocorpointeirosendolevadoprafrenteeporuminstantedesejousoltaramãoqueagarravaabarraverdelimãoecair.Ah,ochãopareciatãoconfortável,tãoacolhedor…

Optou, então, por observar aqueles com quem compartilhava o caminho de volta paracasa.Seusrostoseramomaispuroreflexodoseu:cansaço,desânimoefaltadeexistência.

Erapalpávelaausênciadeumrostovivo,umaexpressãorevigorada,meuDeus!Augustopodiasentirocheirodamorte.Nãofísica,éclaro,masmental.

Afinal,todosospresentespareciamsofrerdomesmomalestar:arotinaincessante.

Umasenhorasentadaàsuafrente―noprimeirobancoantesdaarticulação―passouasemoverinquieta,apresentandoclarossinaisdequeseudestinoseaproximava.Guardouosfonesdeouvido,fechouabolsa,ajeitouapostura.

Augusto,apesardeimersoemseuspensamentossobreotrabalhofinaldeCálculoIIsorriudiante da constatação de que, lentamente, passava a dominar aLinguagemCorporal noÔnibus.

Talvezelepudessedaraulassobreisso:“Comodescobrirqualseráapróximapessoaadescer.”Seriatãoútilquandoalguémpensassesobreondesentareprecisasseescolheropontocommaiorpotencialdesucesso.

A mulher se levantou e desceu instantes depois, liberando o lugar para qualquer umadaquelaspessoasque,depéemroda,poderiamtomá-locomoseu.

Augusto, sendoomaispróximodoassento,eranaturalmente seuproprietáriocorreto,oherdeirolegítimo,detentordodireitoaodescanso.

Todavia,aoolharparadentrodesi―paraoseuestadodeespírito―eanalisarosdemaispretendentesaobanco,constatouqueseriaextremamenteegoístadesuapartesentar.

Eraevidentequehaviaoutraspessoasmaiscansadasdoqueele,commaisdornaspernas,comumamochilamais pesada…Elenão era dignoobastante daquele lugar, então eraclaroqueacondutacertaseriadoá-loparaquemfosse.

Talvezaosenhorgrisalhodecalçajeansegorro.

Àmoçanegraqueapoiavaacabeçanomesmobastãoemquesesegurava,cochilandodepé.

Atémesmoàmãebemdisposta―acompanhadadeummeninodetrezeanos―pareciamaisaptadoqueele.

Porisso,sacrificouoseulugar.

Enão se arrependia, afinal,Augusto sempre foraum rapaz solidário e adepto a fazerobem.

Foiumaquebradeexpectativadignadenoveladasnovequandoamoçanovinha―eladeveriateroquê?Unsdezesseteanos?―passoupelacatraca,sorriupelafortunadeacharumlugarvagoesesentou,semhesitação.

Ela,diferentementedosdemais,emitiaumaluzincontestável.Sorriaeemanavaofrescorquesóaspessoasrenovadasconseguiamliberar.Elaestavabem.Maquiagemimpecável,olhos brilhantes, pele perfeita… Não carregava nenhum dos indícios dos outrospassageiros,tãoexaustos.

E,aindaassim,paraaprofundaindignaçãodeAugusto,roubaraoseulugar.Olugarqueelehaviadecididocederparaalguémemnecessidade.

Nãoparaela.

Oras,deformaalgumaparaagarotarevigorada.

Se tal assentoestivessedisponívelparaqualquerum,elepróprio teria sentado―nãoéevidente?

A menina era com certeza um daqueles casos de gente alheia à realidade. Dispersa,perdida, turista davida real.Aindamais comaqueles fonesdeouvidogigantescos, queimpediamqueospensamentossaíssemdesuacabeça.

Sentou-seconfortavelmente,satisfeitacomasortequetivera.Apoiouamochilanocolo,

abriuozípereremoveudedentro…oh.

UmHarryPotter.

Aliás,OHarryPotter.

AOrdemdaFênixeraindiscutivelmenteomelhorlivrodasérie.

Edestaconstataçãoderivouacertezadequeagarota―usurpadorade lugares!―nãopassava de uma poser que só descobrira a magnitude do universo escrito por J. K.Rowlingdepoisdeassistiratodososfilmes.

EsóporqueoDanielRadcliffeéumgato.

Indignamaldita.

Agarota…elatinhacaradeterumnomecomG.

Giovana,talvez.OuseriaGiuliana?

Sim,Giuliana,definitivamente.Seela tiversidobatizadacomqualqueroutronometerásidoumequívocosemtamanho.

Amoçaremoveuomarcadordepáginasmordidonapontaeabriuolivroemumapáginabemdepoisdametade.

Abaixouacabeça,eAugusto,detãopertoqueestava,eracapazdeassistiraosseusolhospercorrendoaslinhascomumapressaqueseaproximavadaansiedade,daangústia.

Criançachata,inexperiente,novinha.

Ele tambémpoderia estar lendo, seelanão tivesse sidodesagradável eusurpadoo seuassento.

Se não quisesse ler, outra opção seria cochilar―mas é claro que isso não aconteceriaporque ele, apesar de exausto, possuía um turbilhão de pensamentos na cabeça paracoordenar.

Porenquanto,asoluçãoeravoltartodaasuaatençãoparaGiuliana,naexpectativadequeoseuolharcortanteafizessenotar―ecomsortesearrepender―dopecadocometido.

O que aconteceu, todavia, foi que os lábios da garota se contorceram em um sorrisogigantesco,tãoiluminadoquantoaenergiaqueemanava.Eelariubaixinho,antesdefazerque“não”comacabeçaerevirarosolhos.

Emquetrechoelaestariapararirassimdepoisdametadedolivro?

Existiamdezenasdepossibilidades,eela,poserdocaramba,certamenteestavavendoapiadapelaprimeiravezeporissoaachoutãoengraçada.

Augustoapertouosolhosparaanalisaroexemplarqueeraacariciadodelevepelasmãosmaciasdamoça.

Esperavaverumaediçãonova,aquelabonitaquetemumafatiadafachadadeHogwartsnalombada―massedeparoucomumlivrovelho,azulcomooseu,aspontascurvadas,oesqueletoquebradoealgunspedaçosdacapacoloridaseseparandodopapeloriginal.

Maisdoqueisso,aoanalisarasfolhas,percebeuqueelasestavamamareladasporcausadocontatoconstantecomosole,aindaporcima,apresentavammanchasdeuso.Talvezeletivessecaídoacidentalmentenapiscinaoutomadoumbanhodecafé?Possivelmenteambos,ponderou.

Aquelelivroeravelhoeviajado.Poderiaseratéumaprimeiraedição,exatamenteigualaqueAugustopossuía.

Arregalouosolhoseelafezomesmo.

Seuespantoeracausadopelasurpresadeencontrar,emGiuliana,umaleitoraapaixonadacomoele.

O dela, por outro lado, era em decorrência de algum acontecimento inacreditável nahistória. A menina apertava um lábio contra o outro com tanta força que eles ficarambrancos.Malconseguiasemover,tamanhoochoque.

Ecomoelapoderiaficarchocadacomumahistóriaquejáleradezenasdevezes?

Augustobalançouacabeçaemumatentativafalhadeobrigarocérebroamudarseufoco.Erainvasivoencararumapessoaassim,aindamaisalguémemposiçãotãovulnerável.

ApenasocorpodeGiulianaselocomoviadentrodaqueleônibus.Suamentedeveriaestarno Hospital St. Mungus para doenças e acidentes mágicos, tentando acudir um Sr.Weasleymachucado.

Será?

Ameninaergueuacabeçaemumsobressalto,fugindodasituaçãoemqueseencontrava,sóparasedepararcomosolhosfixosdeAugusto.

Seantesorapazexpressavaomaispurocansaçocombinadocomumvazioimensurávelnaalma,agoranãoconseguiadeixartransparecernadaalémdeencanto.

Encantopelajovemmorenaapaixonadaporseulivro.

Risonha,aflita,surpresa.

Totalmenteentregueàquelaspalavrasmágicas.

―Bom,né?―elecomentousemcompreenderexatamenteoporquê,enquantoindicavaolivrocomacabeça.

―Nossa!―elaexclamouemresposta―Vocênemimagina.

E então abaixou a cabeçamais uma vez. Augusto conseguiu ver suamentemergulharnaquelaspáginasabertasedesaparecerdevista.

Eleriubaixinho,fazendocomqueseusombrosbalançassem.

“Vocênemimagina”.

Oras, talvez qualquer outra pessoa fosse incapaz de imaginar ― mas ele? Ele sabiaexatamentepeloqueelaestavapassando.

Ficoucomvontadedeperguntaremqualtrechoelaestava,ouseelarealmenteacreditava

queSiriustinhamorrido.

Suateoriaeraadequeeleseguiavivoeconscienteemumuniversoparalelo.

Pensandobem,amortepodesermesmoumportalparaoutrouniverso,nãoé?

Nãotevecoragemdeinterrompê-la,porquelogodepoisdevirarapágina,elajápreparavaa seguinte comosdedos, engolindoas linhas,mordendoos lábios e incapazde tirarosolhosdaqueleaglomeradodepapel.

Augustofinalmentedesviouoolhar.

O senhor grisalho de gorro havia aberto um pacote de salgadinho e comia deliciado,lambendoosdedosentreumabatataeoutra.

Amoçanegracansadatinhaparadodecochilardepéeagoramoviaacabeçanoritmodeumamúsicaqualquer.Elasorriaenquantocantavabaixinho.

O filho de treze anos contava animadamente para a mãe sobre os planos para a suapróximapeçadeteatro,eamulherouviacuriosa.

OruídodealguémpuxandoumaquantidadeimensadearchamouaatençãodeAugusto.

Giuliana,cujosolhosexpressavamomaisprofundo terror.Erapossívelouvirdalioseucoraçãobatendoacelerado.

―Ele…Elemorreu.―elamurmurou.

― Eu sei…― Augusto se sentiu obrigado a responder, o que arrancou um pequenosorrisodeseuslábios―Dóitodavez.

―Seilá,achoquereleioesperandoquealgumdiaofinalsejadiferente.

Seuslábiosseabriramemumsorrisoquerefletiaodela.

―É,euentendo.

A garota tornou a baixar os olhos, mas parecia incapaz de se entregar à leitura, poispoucossegundosdepoisvoltouafitarojovem.

Com o canto do olho percebeu que um rapaz de preto na cadeira do outro lado docorredor,comobancoalinhadoaodeGiuliana,começavaaseprepararparadescer.

―Eutenhoumateoria,sabia?―Augustocomeçou―AchoqueoSiriusnãomorredeverdade,elesómudadeplano.

Agarotagargalhou,jogandoacabeçaparatráserevirandoosolhos.

―Ah,sim,elefoipara“umafazendabeeembranca”assimcomooLancelote.

―Lancelote?

―Meu coelho.― explicou rapidamente― Bom, ex-coelho, né? Ele “fugiu para umacampamentode coelhos” hámais oumenos ummês.― contou enquanto fazia aspascomosdedos.

Foiavezdelederir.Suamochilaestavapesada,masseencontravatãodistraídocoma

conversa que sequer sentia a força de cinco livros grossos de cálculo, do caderno dequinhentaspáginasedacalculadorapotente,puxando-oparabaixo.

Ocaradepretoselevantouesaiu.

EraasegundaoportunidadedeAugustonaqueletrajeto.

Haveriaalguémmaiscansadodoqueele?

Analisou todas as outras pessoas com um pedido legítimo ao assento, mas o senhorgrisalho estava distraído em um jogo de celular; a moça negra cantava mais alto,emendandoemsuaperformanceumacoreografiadiscreta;eamãejátinhaidoembora.

Sentou-seaoladodeGiuliana.

―Tá,falandosério―prosseguiu,atraindoaatençãodamenina―EuachomesmoqueoSiriusnãomorreu.―colocouamochilanaspernasenotouquetodososseusmúsculosrelaxavamporcausadoapoioinesperado.Eradeliciososentar,noentantoabririamãodacadeiraparacontinuaraconversa.

―Ésério?

Assentiu.

―Derepenteestouerradoeesteéojeitoqueomeusubconscientelidacomoluto.―completou,surpresoporseabrirassimcomalguémqueelesequerconhecia.―daquiaalgumas semanas fará um ano que omeu pai morreu, e eu acredito do fundo domeucoraçãoqueelesóestáemoutrolugar.Enãoqueele…acabou.

Ameninaconcordoucomacabeça,solidáriacomatristezaalheia.

―Eusintomuito.

Umsorrisotorto,triste,despontoudoslábiosdorapaz.

― Não tem problema, foi uma batalha longa contra o câncer. No final das contas, adoençavenceuporexaustão.Nósjáestávamosprontos,sabe?Meupaiinclusive.Agenteteveachancedesedespedir.

—Eeuaquifalandodomeucoelho,desculpa―ameninapediu,encabulada.

Augustofezumgestocomamãonosentidode“deixarparalá”enquantodavadeombros.

Aqueleassuntopodiaserextremamenteíntimo,masnãoerasensível.

―VocêjátinhalidoHarryPotterantes?―eleperguntoumesmosabendoaresposta,sóparamudardeassunto.

Não queria que a conversamorresse quandoGiuliana, tão brilhante e especial, pareciaajudá-loarecuperaranoseanosdeenergiaperdida.

Oônibus parou emumponto e algumaspessoas desceram, obstruindoo seu campodevisão.

―Pff,claro!―amocinharespondeurevirandoosolhos(esteeraumhábitocomumdela,elereparou)―Essadeveserasétimaouoitavavezquepegoesselivro.

Augustoarregalouosolhos,surpresocomaresposta.

―Ésério!Eusempreanotoadatadeinícioefimdoslivrosqueleionaprimeirapágina.―contou―Olhasó―esticouobraçocomointuitodelheentregaroexemplarsurradojáaberto.

―Caramba, trezedeagostode2008?!―ogaroto leu―Isso foi aprimeiravez?Fazmuitotempo.

Aquela definitivamente era uma primeira edição, o que fez as suas entranhas secontorceremdeentusiasmo.

Talvezelafosse,sim,dignadolugaremquesentava.

―Vocêeranovinhanaépoca,então.

Ameninaassentiu.

―Sim,tinhaunsdez,onzeanos.―revirouosolhos,vasculhandoamenteembuscadeuma memória. Quando a encontrou, mordeu os lábios com satisfação. ― Meu paicomprouolivroassimquesaiu,massófuileranosdepoisporqueaindaerapequena.―eentão,voltouseuolharparaogaroto.―Agora tôcomdezoito.―Fezumapausa―Eprestandovestibular,obrigadaporlembrar―continuoumecanicamente―Enão,nãoseio que quero da vida. ― bufou, exausta de mencionar o assunto ― Sim, apesar deestarmosnomeiodoano.

Erevirouosolhos.

Denovo.

―Seráquepodemosmudardeassunto,porfavor?―pediu,irritada.

―Maseunãofaleinada!―Augustoprotestou,apesardenofundo,nofundo,acharasituaçãoumtantoquantoengraçada.

―Maspensouqueeuouvi.

Eentãoeleriu.

― Não pensei, juro! ― respondeu―Mas posso falar? Eu também não sabia o queprestar.―Augustomordeuumapelinhapertodaunhaantesdecontinuar―Decidisabequando?Nodiadefazerainscriçãoparaovestibular.

Agarotaarregalouosolhos.

―Como?

―Sorteio―elerespondeusério,torcendosecretamenteparaqueelaentendesseapiada.

―Nãoacredito!―ameninaexclamou,gargalhando.

―É,ok,nãofoisorteio,sorteio.―confessou―EuestavaemdúvidaentreEconomiaeOdontologia.Parecido,né?Aítireiparouímpar(maseusabiaqueestatisticamenteopartinhamaischancesdeganhar).

Elariuenquantoabraçavaseulivro.

―Nossa,tudoaverumacoisacomaoutra!Consideroodontologia,acredita?Masachoque prefiromedicinamesmo por sermais amplo.― ponderou―Não sei.― e entãoencarouseusolhos,enfurecida―Nãosei!Eunãodissequenãoqueriafalarsobreisso?

Augustodeudeombros.

―Acho que todas as opções são válidas. É amaior bobeira tentar ver“onde você seimaginadaquiadezanos”,prefiropensarondeeuqueromeversemanaquevem.Noseucaso:cutucandobocasou…qualqueroutrapartedocorpo?―perguntouparasimesmo.

―Medicinaédifícildemais.

Elerevirouosolhos.

―Edesdequando isso importa?Vocêprecisa fazer oque acharmelhor,apesar de serdifícil.

Giulianadeudeombrosetentou“encararseucérebropelosolhos”.

―Nãosei.―elaconcluiuporfim.

―Eunotei.

―Notounada.

O rapaz olhou pela janela do ônibus por um instante, só para perceber, surpreso, queestavamaispertodesuacasadoqueimaginava:faltavaapenasumpontoenadamais.

―Eudesçonopróximo―avisou,iniciandoarotinadetodosqueestavamprestesasair.Seráquetinhaalguémlheassistindo,prestesaabocanharoseuassento?

―Ah,ok.―foiarespostadagarota,enquanto tornavaaabriro livro―Prazeremteconhecer,moço.

―Oprazerfoitodomeu,moça.―provocouemresposta―Esperoquefiquembem―eselevantoudobanco―Você,oSiriuseoGalahad.

Augusto estranhava ser chamado de “moço”, quando não passava de um adolescenteperdido no segundo semestre da faculdade. Era quase injusto que Giuliana imaginasseumabarreiraetáriatãograndeentreosdoisquando,narealidade,nãomaisdoqueumpardeanososseparava.

―ÉLancelote!―protestouantesdemergulharemseulivromaisumavez.

―Ok,Giuliana,desculpa.―arriscou.

―ÉJulieta!―corrigiudenovo.

Augusto desistiu de conversar com amenina e se voltou ao ônibus―o seu objeto deestudosociológico.

Tinhagentedormindoegentecansada,sim.Masmesmonosrostosmarcadosporolheiras,osolhosestavambrilhantes,bemdispostos,prontosparaumanoitefelizemcasa.

Amoçanegradançavaempolgada,comoseestivesseinvisívelparaosoutrospassageiros.

OsenhorgrisalhoocupouolugardeixadoporAugusto,masnãoconseguiatirarosolhosdateladeseucelular.EraumjoguinhodeFórmula1,pelovisto.Seeleestivessejogandoqualqueroutracoisa,seriaumequívocosemtamanho.

Nemtodossorriam,maserainegávelquepareciamfelizes,leves,vivos.

Aatmosferatinhamudadocompletamente.

Ou,talvez,eletivesse.

Todomundosabequeumamulhermaduranãopersegueseuex-namorado.Perseguirosoutrosécoisadegentequenãoestámuitobem,gentequeprovavelmentepassanaquelejornaldassetehorasenocanaldeassassinato.Nãoqueeuassistaaocanaldeassassinato,ouaojornaldassetehoras.

Emminhadefesa,euentreinesseônibusprimeiro.

Eusouaquele tipodepessoaestranhaquegostadepegarônibusnopontofinal,porqueentãopossosentarecurtiralongaecansativaviagem.Etambémfinjoquedurmoquandoaparecem idosos.Ébomestabelecerdesdeocomeçoquenãosouumaboapessoa. Issonãoquerdizer,entretanto,queeusouotipodepessoaqueatraioex-namoradoparaumlugardesertoeomata.

Nãoquenão tenhapensadonisso.DepoisdeumamaratonadeHowToGetAwayWithMurderachoquequalquerumconsegueaprenderobásicosobrecomomatarumapessoadesagradável, não? Mas se eu quisesse matar o indivíduo, provavelmente usaria umaseringavaziaeluvas.

Sei que estou soando psicótica, mas ele mematou primeiro. Não no sentido literal dapalavra,atéporqueeunãopoderiaestaraqui.Outalvezsim,asleisfantasmagóricassãocoisas queHTGAWM aindanão abordou, entãonão sei como funcionamuito bemessemeio.

A questão é que ele pegou uma menina perfeitamente saudável, feliz e amada, etransformou numa mulher que passa suas horas assistindo a séries de assassinato,comendo todos os doces da casa e, o pior de tudo, usando o tinder. Tinha virado oestereótipodaex-namoradalargadanasarjeta.

Paracompletar,aquiestavaacausade todososmeusproblemas,sentadonomeubancopreferido,dividindofonedeouvidocomaquelameninaquecreiosersuanovaconquista.E, obviamente, ela era linda. Seus cabelos negros sedosos, seus olhos amendoados, aroupaperfeitamentepassada.

Umtotalcontrastedabagunçaquemetornei.

Deveria existir uma lei universal que proibisse pessoas como ele de andar nosmesmosônibusquepessoascomoeu.Nãobastavasubirlogonopontoqueficaemfrenteaonossorestaurante favorito, ele tinha que estar usando aquela camisa verde que eu comprei!Epior,quevestiacomperfeiçãooseucorporecém-malhado.

Parece que foi só nosso namoro acabar para ele se transformar numa bela borboleta.Enquantoeuvolteiaoestadodelagarta,rastejandopeloscantos,imaginandoodiaemquevoltaria a voar. Pensando emmetáforas piegas como essa, desgastando aminhamenterelembrando dosmomentos em que nós fomos felizes.Como ele está agora, brincandocomumamechadocabelodamenina,quesorriencantada.Osdoisparecemperfeitosumparaooutro;elaencostousuacabeçanoombrodeleesussurroualgo.Aparentementefoiumapiada,poisasuaaltagargalhadaecooupeloônibuscomoumtrovão.

Quando nós namorávamos, eu costumava fazê-lo rir assim, de forma espontânea eextravagante.Modéstiaàparte,jáfuimuitoengraçada.Eutinhaumaluzqueirradiavaporvontadeprópria,sempretrazendopessoasparapertodemim.Hojeemdianemsentarnobancoaoladoaspessoasqueriam.

Sebemquetinhaaimpressãodequeninguémgostariadesentarcomameninaloucaqueouviamúsicas satânicas no últimovolume.Não eramexatamentemúsicas satânicas, eunãochegueinessenívelainda.Estavaouvindoumaplaylistmaravilhosaquetinhacriadonospotify,chamada“Hate”.

Iade4MinuteaBrahms,inclusive.

Otário,comominhamelhoramigacostumavachamá-lo,diziaqueomeugostoeramuitoeclético.Mas não de uma forma ruim, como se eu não soubesse do que gostar.O queOtárioqueriadizercomissoera:

—Vocêtemodomdeacharomelhoremtudo.

Atualmenteeuconseguiaveropioremtudo,ecommuitoorgulho.Porexemplo,nuncatinha reparadoqueoOtário erameiocalvo.NãoPríncipeWilliamcalvo,mas tinhaumprincípiodecalvíciebemnaminhacara,eeununcareparei.Apostoqueerapelastoucasqueeleinsistiaemusarmesmoduranteoverão.

Otáriosempreteveopiorsensodemodadomundo.

Tambémnãotinhapercebidoqueoseubraçoesquerdoeraestranhamentetorto.Pareciaquealguémtinhatorcido―daquelejeitoqueagentetorcearoupamolhada―sóqueobraço dele não tinha voltado ao normal. Sem falar naquela calça jeans que ele estavausando,tãobrega.

Talvez o amor fosse mesmo cego, porque aquela calça com certeza não passavadespercebida.

Comoseestivesselendoaminhamente,elevirouacabeçaparatrás.Fiqueicommedodequepercebesseaminhacompanhia,emeencolhiaindamaisnobanco,colocandoomeucapuz.Otárionãopercebeu,seusolhoscuriosossevoltaramparaumameninaquesorriu

aovê-lo.

Tãocafajeste.

A garota que estava com ele, pobrezinha, não notou.Minha vontade era a de levantarnaquelemomentoefazerumacenamaiorqueadomeninoquetinhasedeclaradoantesdeo ônibus partir. Aquela cena típica de filme americano, que se eu não estivesse tãoamargurada,meteriafeitorirnacaradele.

A rejeição foi o suficiente para o garoto, coitado. Quase quis abraçá-lo e dizer que oentendia,sabiamaisdoqueninguémcomoeraserjogadaparaescanteioporumapessoaqueeratãoimportante.Éclaroqueeunãofizisso,possoserumpoucolouca,porémnãochegueinesseestágio.

Otáriovoltouaouvirsuanovaconquista,sorrindotodavezqueelaotocava,epudeverque estava brincando com os seus dedos. Do mesmo jeito que ele fazia comigo,inacreditável.Estavacomeçandoaacharqueelenãosabiafazeroutrascoisas,queoseujeitodeconquistaeraomesmocomtodasasgarotasporaí.

Quandoelemechamouparasairfoiassimtambém.Otáriopegouoônibuscomigoparasecertificardequechegariaemcasasegura,eeu,ingênua,caínasuaarmadilha.Nocaminhodevoltaelepareciaprestaratençãoemtodasaspalavrasqueeudizia,edepoisdealgunsminutosdesilêncioconstrangedor,começouabrincarcomosmeusdedos.

Eletambémtirouumdosmeusanéisecolocounoseudedo,rindo.Eusempretiveumamão gorda,mas naquelemomento pensei que era um sinal. Então dei o anel para ele,comoformaderecompensarpelaviagemquetinhafeitosópormim.Naquelediaeudescidois pontos antes da minha casa, podia estar encantada pelos seus charmes, mas nãoqueriaserassassinada.

Nãodemoroumuitoparaeledescobrirqueeutinhafeitoisso,masemvezdeficarbravo,Otário achou graça. Segundo ele, isso era uma das várias qualidades que eu possuía.Revisitandotodasessasmemórias,sóconsigoperceberoquantofuiburraemacreditarnassuaspalavras.

MeufoneestavaexplodindoaosomdeumamúsicadoPSY,quenãoeraumcantordequeeuparticularmentegostava,masapreciavaasuaexcentricidade.OtárioeraaúnicapessoaquenãoriademimporouviroutrasmúsicasdelealémdeGangnamStyle.NósinclusiveconcordávamosemcomoGentlemaneraamelhormúsicadetodosostempos.

Otáriotinhaumótimogostomusical.

De repenteomotoristaparouemaisalguémentrounoônibus.Eusimplesmenteodiavaessas pessoas que entravam depois de o ônibus sair, elas bem que podiam esperar opróximo e sei lá, aprender um pouco sobre pontualidade. Otário, por exemplo, semprechegavanahoramarcada.

Aúnicavezemqueelenãochegouquandomarcamos, foinodiaemque tudoacabou.Nós tínhamos combinado de nos encontrar em frente ao hospital onde mamãe estavainternada,maselenãoapareceu.Fiqueiesperandoporhorasnacalçada,atéqueohoráriodevisitafinalmentefoiencerrado.

Otárioapareceucorrendoemepediudesculpas.

—Desculpasnãoadiantamagora,minhamãevaientraremcirurgiaeeunemtivetempodevisitá-laporqueeufiqueiaquiteesperando.

—Eutiveumimprevisto,acontece.

Nãorespondi,jáestavadandosinalparaoônibus.Eletentoumepuxarpelobraço,maseume desvencilhei com força, tentando segurar as lágrimas. Que tipo de pessoa tem umimprevisto durante o dia inteiro?E não liga para avisar!Como se a gente estivesse noséculoretrasado,impossibilitadosdenoscomunicarmosimediatamente.

Passeimeu bilhete único com raiva e quase fiquei presa na catraca. Por sorte o ônibusestava quase vazio, e ninguém notou a cena que eu estava fazendo. Otário subiu emseguida,mesmoqueaqueleônibusnãofosseparaasuacasa.Fizquestãodemesentaraoladodeumasenhora,esperandoqueelenãofalassenada.

— Estela, por favor, me desculpa. ― sua voz implorava por perdão, mas naquelemomentoeunãoseriacapazdeprovidenciá-lo.

—Nãotemnadaparasedesculpar,foiumimprevisto,acontece.

Sabia que era imaturodaminhaparte, poréma raivame consumiamais doqueobomsenso.Elesabiacomoissoeraimportanteparamim,comomamãeesperavaporconhecê-lo.Emesmoassimelenãofoi,semaomenosdarummotivoconvincenteosuficienteparafazeraminhafúriapassar.

—Estela, pelo amor deDeus, você nãopode ficar com raiva demimpara sempre.EuprometoquevereisuamãequandoelasairdaUTI.

—Vocêachaqueéesseoproblema?―ri.―Entãovocênãomeconhecemesmo.

Otáriopareciaferido,epelaprimeiraveznaqueledia,sentipenadele.

Sua fisionomia estava completamente diferente da de hoje, antes era como se estivessesempre cansado, sempre correndo atrás de algo. Agora ele parecia tranquilo, em pazconsigomesmo.Maisumlembretedecomoasuavidaeramelhorsemmim.

Amenina roubouo fonedele e começouaouvirmúsica sozinha.Primeiro ele fezumacara brava, tentando assustá-la. Depois começou a fazer cosquinhas nela, até quefinalmente a menina cedeu. Otário adorava fazer cosquinhas em mim, principalmenteporqueeraomeupontomaisfraco.

Eraengraçadocomoelesabiaexatamenteondemeatacar.

—Se você trabalhasse pra CIA ninguém ia precisar de tortura psicológica para roubarsegredosdevocê,amor.―disseumavezenquantovoltávamosdocinemaànoite.

—Esevocê trabalhasse lá, tenhocertezadequevenderia todosos segredosdeEstadoparaaconcorrente.

Otáriofingiuseofender.

—Quem foi que dedurou a vizinha que ouvia música alta para o síndico mesmo?―

provocou.

Minhavizinhaatépodiaserminhaamigaeumaótimacozinheira,masalémdeouvirrádiono último volume, ainda tinha que ser rádio de trânsitoAM.Ninguémmerece acordarouvindoquenaavenidataldoiscarroscolidiramecincopessoasmorreram.Eusóestavafazendoumfavoràhumanidade.Foraqueamulhernemtinhacarro!

—Eunãodedureimeuirmãomaisvelhopraminhamãesóporqueelefumavaescondido.―retruquei.

—Eusóestavapensandonasaúdedele,queinjustiça!―contra-atacou.

—Nãofoinomaçoescondidoquevocêguardanasuasegundagaveta,né?Sei,menino.Muitoespertinho,você.

Nósdoisrimos,desistindodaimplicância.

EleentrelaçounossosdedosecomeçouacantarTheSoundofSilence,comosemprefaziaquando começava a escurecer. Sua voz era muito boa, ele até poderia ser cantor sequisesse. Mas tinha outros planos, como se formar em medicina e se especializar emcardiologia.

—Vocêsabequeaescuridãonemdeveselembrardevocê,né?

— Como ela se esqueceria de mim depois da minha fase emo em 2008? Eu usavadelineador.

—Eu posso perdoar essa sua época duvidosa se vocême ensinar a fazer delineado degatinho,topa?

Acabouqueelemeensinoumesmoadelinearmeusolhos,oque foiótimo.Combinavabastantecomomeuestadodeespíritoatual.Nãoqueeu tivessemuitavontadedefazerqualquercoisaquefosse,masàsvezeseuatéconseguiamearrumarumpouco.

Osuficienteparaqueaminhafamílianãoachassequeeutinhadesistidodavida.

Duranteonossonamoroeueraumadaquelaspessoasqueficavahorasescolhendoaroupacerta,penteandoocabelomilharesdevezesechecandoomeuperfume.Aparêncianuncafoialgomuitoimportanteparamim,masgostavadesempremostraromeumelhorquandoestavacomele.

“Olhacomoeusoubonita,vocênuncavaiencontraroutrameninacomoeu.”.

Euestavaenganada.

—Motorista,euvoudescer!―alguémgritou.

Euachavamuitocuriosocomosempretinhaumapessoaqueeraesquecidapelomotorista,e precisava gritar para que ele reabrisse as portas. Isso sempre acontecia, mas nuncacomigo.Achoquepelomenosomeucarmaemtransportepúblicodeveriasermelhorqueomeucarmaemrelacionamentos.

A senhora que gritou― eram sempre senhoras!― desceu, e o ônibus continuou seupercurso.Ninguémsealteravapelapequenagritaria,erapartehabitualdeandardeônibus.

Como os vendedores ambulantes, o pessoal pregando a palavra de Deus e as criançaschoronas.

Eopessoalqueouviamúsicanoalto-falante.

Otárioeeuodiávamosessaspessoas.Nãofaltavasóbomsensonelas,comobomgostomusicaltambém.Enãoporquetenhoalgumtipodepreconceitocomamúsicaalheia,masseapessoaouviasertanejo,erasempresobredordecorno.Sefossefunk,nãoeranadalegaltipoValesca,mascoisasdegradantescomnovinhas.

Etinhaumtipodegentequeeunãoentendia,tipoessecaraqueumavezfoideBrunoeMarrone a Jackson Five, sem esquecer do bom e velho sertanejo universitário. Eu atéadmireioquantoaquelapessoaeraeclética,masédifícilgostardealguémqueligaumacaixadesomdentrodeumalatadesardinha,né.

SegundoOtário,essaspessoastinhamumlugarreservadonocéusóparaelas:oladodefora.EugostavadepensarqueDeusestavamuitoocupadocombatendooódionomundopara se lembrarde injetar sensocomumnacabeçadelas,masvai saber.NoMaisNovoTestamentoacaixadesomnoônibuspodeserumadasmaisnovassetepragas,nãoé?

Eufinalmenteestavameacalmando,econsequentementeparandodeencará-locomoumamaníaca, quando aminhaplaylist resolveu tocar I Say A Little Prayer, que ao lado deCan’tTakeMyEyesOffYou,formamasmelhoresserenatascinematográficasdomundo.Ah,eeraanossamúsicapreferida.

Tambémconhecidacomoamúsicaquemaisouvienquantochoravanomeuquarto,comosetivesseacabadodeassistiràqueleepisódiodeGrey’sAnatomy.Pelomenoscomasérieeu sabia que era só ficção, mas a minha vida, do contrário, não passava da dura earrasadorarealidade.

Rangimeus dentes, tentando segurar o inevitável choro que estava por vir, emudei demúsica.Agora tocavaumhip-hop japonês,cuja letraeunãofaziaamenor ideiadoquesignificava―oqueeramuitobom.Aignorânciaeraumabençãoassimcomodiziam.

—Comovocêousadizerqueeunãoteconheço,Estela?Poracasovocêélouca?

—Sim,eusoulouca.Souinsana,oquevocêvaifazer?Terminarcomigo?Entãotermina,vai,querover.

—Vocêtemproblema,Estela.―merepreendeu.

Nãoespereiqueelecontinuasselistandoosmeusdefeitosepuleinopontoseguinte,queeranumlugarbemestranhoemalfrequentado.Nãoouseiolharparatrás,poissabiaqueele nãome seguiria, não quando eu era amais errada naquela situação toda. Emesmoassim,aquiestavaeuinsistindoemculpá-lopelosmeusatosdeliberadosdeloucura.

Sequisesseserumpoucojusta,Otárionãofoiopiordosnamorados.Claroquenão.Elefoi ótimo, aguentava as minhas crises histéricas, esteve do meu lado quandodiagnosticaramo problema damamãe,me apoiava nasminhas loucuras.Otário era, nofundo,umaboapessoa.

Boapessoaessaquepareciamilvezesmelhorsemmim.

Osdois tinhamparadodebrincaragora,eameninacomeçavaagesticularfuriosamentecomasmãos.Nãoconseguiaouvirsobreoqueelesdiscutiam,masdelongepareciamuitosério.Elefaziaaquelacaradequemqueriapedirdesculpas,maseramuitoorgulhosoparaisso.

Amenina, por outro lado, não parecia ter vergonha de se descabelar na frente de tantagente. Se eu não tivesse sido ela há muito tempo, com certeza riria do seu ataque depelancas.Nadaquesaíadabocadelepareciasersuficienteparaacalmararaivadela,queagarrouabolsanumrompanteepartiuportaafora.

Uma cena maravilhosa para um drama coreano, provavelmente. Podia escutar a trilhasonora trágica tocando ao fundo enquanto a mocinha corria para casa aos prantos. Omocinhotambémchoraria,encarandoopróprioreflexonovidroembaçado,relembrandotodososbonsmomentosdeseurelacionamento.Entãoafacedosdoiscongelaria.

Nadadissoaconteceu.

Avidarealcostumavasermenosextravagante.Ninguémtinhaamnésia,entãocâncer,entãoamnésiadenovo.Aomenoseunãoconheciaumserhumanoque tivessepassadoporessasexperiênciasbizarras.

Tirandoumtiomeuqueacreditavatersidoabduzidoporextraterrestres.

Tentei ser corajosa e não olhar na direção dele, eu sabia que se visse o seu semblantetriste,iriaatélátentarajudá-lodealgumaforma.Eunãoconseguiaresistiràquelacaradecãoabandonadoqueeletinha.

Nãopercebiqueoassentoaomeuladoficaravago.

—Estela.

Vireiminhacabeça,assustada,eencontreiseusolhos.

—Fernando,oi.―respondi,semgraça.

Quetipodepessoasentavaaoladodaex-namorada?Respirafundo,Estela,respirafundo.

—Táfazendooqueaqui?Meseguindo?

Seriahiláriosenãofossetrágico.

—Voltandomaiscedodaescola,evocê?Brigoucomanamorada?

Fernandoergueuumasobrancelha,curioso.

—Quenamorada?

—Aqueestavacomvocêatéagora,ué.―solteiumarisadaseca, tentandocamuflaroconstrangimentodetodaaquelasituação.

—Nãotinhaninguémcomigo,Estela.―respondeunumtompreocupado.

Claroquetinha!Euvi,commeusprópriosolhos.Maséclaroqueelenãoiaadmitir,eratípicodoOtárioinventaressasdesculpasvazias.Dessavez,pelomenos,nãoiriaacreditar.Comosefossepossívelqueeunãovisseacenaqueameninafizeraháunsminutos.Todo

mundoviu,porDeus!

Pelomenoseuvimuitobem.

—Estela,vocêtábem?Suacaratáestranha.

—Ésóumafebre,logopassa.Nãosepreocupa.

Fernando assentiu, quieto. Continuou sentado ao meu lado, batendo os pés de formaansiosa, mas eu estavamuito focada tentando não perder a compostura em sua frente.Faziamuito tempo que não nos víamos. Para ser sincera, desde o dia em que fugi doônibuscomoodiabofogedacruz.

Aquelefoiopiordiadaminhavida.

—Eusoubedasuamãe.―falou.―Meuspêsames.

Sim,porisso.

—Aspessoasesperamparafalarissonovelório,sabe?Nãodoismesesdepois.

—Eumereço,eusei.

—Não,Fernando,vocênãomerece.Nãoéculpasuaqueeudeiumataquenaqueledia,ouqueamamãemorreu.

—Seeuchegassenahora,talvezfossediferente.―observou.

Não estava comvontade de discutir o que seria da nossa vida se ele tivesse chegado atempo, de qualquermaneira o resultado seriamais oumenos esse:mamãemorreria nopós-operatório.Eissonãoeraalgocomqueeuestavasabendolidarmuitobem.Meupaidiziaqueeunãoestavasabendolidareponto.

Talvezestivessenahoradeaceitar.

—Eunãoteodeioporisso,sabe.Eumeodeio,naverdade.Pornãotervistoelanaqueledia,porterbrigadocomvocê,portudo.Ésóqueeunãoseicomoficarempazcomisso,entende?Étãoinjusto.

Fernandopegounaminhamão,fazendocarinhocomseupolegar.

—Eunãoqueromaisterraivadevocê,Nando.

Elemeabraçou,entrelaçandoosnossosdedoscomofaziaantigamente.Seucheiroaindaeraomesmo,tãofrescoquantoanoitepós-chuva.Fernandopassouabrincarcomomeucabelo,eeumejuntavacadavezmaisaoseucorpo.Podiasentiroseucoraçãobatendopordebaixodacamisetaverde,egostavadaquelasensação.

Com aquela sua voz rouca de cantor indie-folk começou a cantar baixinho nos meusouvidos.

—Hellodarkness,myoldfriend.―sentiseuslábiostocaremolóbulodaminhaorelha.―I’vecometotalkwithyouagain.

Me juntei a ele nummini coro de Simon & Garfunkel enquanto o ônibus fazia o seucaminhoeaspessoasprosseguiamcomassuasvidas.Estavatãoimersanaquelasensação

de paz de que finalmente pude desfrutar, que não percebi que nós éramos as únicaspessoasarestaremnoveículo.

—SandyeJunioraíatrás,vocêsnãovãodescer,não?―omotoristabigodudogritou,derepente.

Fernandopegounaminhamãoenóscaminhamosparaforadoônibus,ondeomotoristaconversavaanimadamentecomocobrador.

—Ondeagenteestá?―perguntei,confusa.

—Aquiéopontofinal,crianças.

Girei minha cabeça tentando reconhecer o lugar em que estávamos, mas não obtivesucesso.Fernando,aomeulado,procuravanoseucelularalgumsinalqueindicassequefimdemundoeraaquelenoqualnosenfiamos.Parasortedele,eueramuitomaisesperta.

—Vocêvaificaraqui,mocinha?―omotoristarabugentoperguntou.

Confirmeicomacabeça.

—Vocênãoachamelhorpegarumtáxi?―Nandosugeriu.Eleaindaprecisavairparaoestágio,eahoradealmoçoestavaquaseacabando.

Neguei,rindo.Maisumavezachandograçadetodaaquelasituação.Nãoqueeuestivessefinalmente feliz, issonão.A felicidadeeraalgoquedemoravaa serconquistada,emeucoração ainda sofria com a ausência da mamãe. A dor era uma constante que eu fuiobrigadaainserirnaminharotina,eissonãoiaemboraassimtãofácil.

O rancor, todavia, sim. Finamente me senti livre das amarras que me prendiam a umpassadoquetantomemachucava.Osegredo,incrivelmente,estiverasemprecomigo.Eueraachavequeabriaaportadeumnovohorizonte,eueraadonadomeufuturo.Eueraadonadasminhasfrasespiegasemeioautoajuda.

—Relaxa,Nando.Vocêpodepegarumtáxi,euestoubem.―certifiquei.

Nandopareceurelaxarumpouco,osuficienteparaligarparaumtaxista.

—Certeza?

Ànossafrenteomotoristaeocobradorsepreparavamparareiniciarmaisumaviagem,aindarabugentos.Umafiladepessoascomeçavaaseformaremfrenteaoônibus,eeuatéreconhecialgumasdelas.Fiqueicuriosaparasabersobresuashistórias,suasangústias.Setinhaalguémqueentendiaoqueeuestavapassando.

—Sim,éumaviagemqueeuprecisofazer.

Entãosubinaquelemesmoônibus,rumoaumajornadasomenteminha.

Oventobatenomeurostopelafrestadajanela,incendiando-ocomabaforadadoverão.Olho o cenário aomeu redor emmovimento, ganhando embalo, transformado em umaimensasilhuetadesfocadadaqualmalconsigodistinguiraarquiteturaemcadaprédio.Osponteirosdorelógiomeacompanham,tomamvida,emharmoniacomotitilardasrodassobreoasfaltoquente,dorangerdosbancosmalacabadosemquemesentotododia.Masnãomeincomodo…

Ocheiroemminhasnarinasaindaéomesmo,aquelamisturadeperiferiacomosuordalabuta, dos rastros dos sonhos e expectativas emaranhados no cansaço que arrastamosdesdecasa.Assimsigoviagem.DomeubairroatéoCentro,doCentropelaorla,ondeteencontroemmeioàsondas.Vocêtãofeliz,tãoempazcomavida,sorrindoaoquefoieaoquenuncaseriacomoquemdesabrochaaomundocomacertezadoDestino.

Vocêsendovocê.

Eusendoeu,sejaláoqueissofor.

Eusendofeliztambém.Porquevocêévocê,eeusendoeupossotecarregarcomigoparaondefornaminhacarne,nomeuespírito.

Porquevocêsesenteassimtambém:tãoplenitudenosmeusbraços.

Meucoraçãoapertacomaslembranças,malcabendoemsidealegriaporsaberqueenfimnosreencontraremos.Quehojeoônibusquemetransportatododiaparaarotinadaescolaedotrabalhonãomelevaaobrigações,masàquelesnovosaresdeprazeres,delazeres,devontadesquemeacometemtodavezquepensoemvocê.

É, em você. Com aqueles mesmos traços bonitos do primeiro dia, a mesma gentilezainsuperávelquecolecionanopeitoequeadocicaasuavozsemprequeasideiasfalam.Osmesmoscabelossedososdemechasaloiradasparaabrigaraluzdosolerefletiradasuaalma; aquela alma reluzente. Os mesmos olhos bondosos, perfeitamente amendoadossobreasmaçãsdasuafacequetantasvezeseuquisbeijaremsegredo.

Vocêsendovocê.

Quandoeuaindanãoeraeu.

Vocêeeu,aindaassim,dealgumaforma.

ParadaUm:Negação

Era difícil respirar naquele espaço. Em horário de pico, a lotação do coletivo tornariaqualquer um claustrofóbico. Dezenas de cabeças se espremiam por metros quadrados,desafiandoasleisdafísicasobredoiscorposnãoconseguiremocuparomesmolugar.Nanecessidade, três ou quatro o faziam. As gotículas de suor brilhavam emminha testa,lambuzando os cachos menores que, com tanto empenho, uma de minhas irmãs haviamodeladoparaaentrevistadeumtrabalhocomoaprendiz.“Dessejeito,emolduramoseurosto,Dani”,elasdiziamsempreparajustificaremaintervençãonaminhaaparência.

Maquiagens eram pinceladas, retocadas, exigidas. “Uma mocinha deve se comportarassim em sociedade”, explicavam desde o berço. O protocolo me foi dado, mas oentendimentoquedeveriavirjuntoteimavaemescambarparaacontestação.Uma,duas,ummilhãodevezes.Enãoimportavaoquantoeuesperneasse,orótuloencontravaváriasformasde,emnanquim,mecarimbar:mulher.

Ogêneronãovinhadosgostos,masdaculturaintuitivadequalquerumaomeuredor.Elesurgia em toda parte: nos lacinhos e furos na orelha presenteados no berçário; nasroupinhas cor-de-rosa; nas bonecas e panelas de plástico que Papai Noel entregava,mesmo que a cartinha lhe pedisse, expressamente, por um carrinho de corrida ou umComandosemAção.Estavanapostura,nosseios,noespelho,nosaltoaltoque,navoltapracasa,impingiaosmeuspésaumatorturaexcruciante.

Meus lábios artificialmente avermelhados exalaram um suspiro. A imagem de mimrefletida na janela, parada no corredor amontoado de pessoas, não demorou a delatar odesconfortoqueeusentia.Eramaisumdiavividopelametade,nainautenticidadedesesentiroquenãoéparafingirestarfeliz,paraconquistaromeulugarnomundo.

Nemumlugarnoônibuseuhaviaencontrado,queironia.

Vocêtinhaum.

Lembro-me,comosefossehoje,dasuaexpressãodeserenidade.Ossorrisosespontâneosesemmotivoque,àsvezes,davaaofecharosolhoscomose,pordetrásdaspálpebras,ingressasseemumuniversosóseu.Portantotempoeuquissaberoquevocêvia…oquetefaziaexalaraquelaenergiatãorefrescantequemelevavaasorrirtambém.

Faziaanosdesdeomomentoemquetevicruzaracatracapelaprimeiravez.Oseucorpodesenhado sob os uniformes do colégio já havia adotado as calças de yoga como omodelito oficial. Os cabelos, antes negros e pesados, se esvoaçavam em camadasiluminadasdaraizàspontas.Asuaauraborbulhante,antesinquietaecuriosa,assentavacomoumaplacidezdealma.Masaessênciaeramesma,eupodianotar.

Fazia anos desde a primeira vez que eu te vi. Fazia anos desdeque eume fascinei porvocê,semjamaisteracoragemdesustentarosseusolhares.Aquelaplenitudemeeraumcasodeamorplatônico,eiamuitobemassim,ameuver.

Atéosseusolhosmeencontraremnotumulto.

—Ei!Querqueeusegureabolsa?—vocêdisse.

Nãosoubebemoquefazeraprincípio.O timbredasuavoz irradiavaemminhasveiascomoasvoltagensdeumchoqueelétrico.Nãoseidizeroquepenseiparaconcluirquefalar“tá”eteestenderamochilaseriaconsideradoumarespostaplausível.Mastegarantoqueoconstrangimento inicialdenãopodervirar a cara, comvergonha, já foi castigoobastanteporessainsensatez.

As gaguejadas vacilantes antes de me sentir à vontade contigo, nem se falam… Foi aviagemmaisdemoradadaminhavida!

—Qualéoseunome?

Primeiroponto.

—Er…D-Daniele.E-eos-seu?

Ai,queidiota!

Segundoponto.

—ÉManuela,muitoprazer—osseusdedosbrincavamdeummodobonitinhocomasamarrasdamochila;oseusorrisocomomeucoração.—Estranhoseraprimeiravezquenosfalamos,né?Faztantosanosquepegamosomesmoônibusetal…semnuncatermosconversadoe…—vocêencarouosprópriospésdepoisdeolharparamim.

Umflagraduploseconsumounaqueleinstante.Oseu,sobreeuestarteobservandocomuminteressemuitoalémdocorriqueiroenquantovocêfalava.Omeu,sobreaconfissãonãocalculadadeque,desdeantes,vocêmenotavatambémàsuamaneira.Eissotedeixousemgraçademaisparaconcluirafrase.

Tivequeintervir,iniciandoumnovoassunto.

Aquelesilêncioestavamematando!

—Vocêgostadegatos?—perguntei,apontandoacapadoseucaderno,cheiadegatinhosmulticoloridos.

“Vocêgostadegatos?”,quepergunta imbecil!Talvez,atéconversarsobreo tempoouapalavradeDeussoassemaisnaturalnaquelecontextodoqueaformacomomeexpressei.Aomenos, jáerampaposmanjadosparase terdentrodoônibuscomumdesconhecido,

né?

—Oquê?—vocêfranziuocenho,sementenderqualeraaminha.Nemeusabia,parasersincera!—Ah!Omeucadernodealemão,claro!Claro!Sim,eu…eugostodegatos.Ou,como diria aminha professora, Ich mag Katzen!— então, os seus olhos se reviraramnumaexpressãobrincalhonaquemefezrir.Aquelerisoque,porfim,nosrelaxou.

Terceiroponto.E,comele,adespedidadagóticatrevosaquesentavaaoseulado.Assumiolugarapartirdali.

— Então, você faz alemão? — quis saber, muito mais empolgado do que o meuentendimentocomputava.Haviaalgonasuapresença,nosseustrejeitos,quemedeixavaagitado. Nem percebi que os meus dedos te tocaram no ombro, cheios de intimidade,quandovocêassentiu.—Legal!PretendeirpraEuropaumdia?

Então,vocêmecontoutudo.

AlieusoubequeasuagenéticasemisturavaentreoBrasileaTailândia,masqueosseussonhosnãotinhamrumo,jáerampluriculturais.Soubequevocêqueriacursarfisioterapiapara se tornar instrutoradepilates, umagrandepaixãoque tinhadesdepequena.Soubeque omar limpava as suas energias, que você era espiritualista e acreditava emmuitasvidascomoformadeaprendizado.Soubeque,quandovocêria,assuasbochechasexibiamcovinhas,equeelasqueriamsentiroardeváriospaísesasbeijandoaoredordomundo.Soubequevocênutria,bemdentrodesi,acrençadequesãoosmomentosruinsquenosconduzem às vitórias, e que os contratempos cotidianos te eram bem-vindos comooportunidadesdeamadurecer.

Alieusoubeoquevocêvia,mergulhadaemsimesma,encarandoasprópriaspálpebras.Alieusoube…efizquestãodetambémfecharosolhosparaembarcarnessaviagem.Nempercebiovigésimopontopassar.

—Estáperdida?Eudesçocontigopravocênãovoltarsozinha.Quer?—aofertasurgiuquandovocêsedeucontadaminhafaltaderumo.Quemderaeupudesseconfessarqueeuestavabemmaisperdidadoquevocêcogitava;queaminhabússolaemocionaleraaindamaisdesnorteadadoqueomeusensodedireção.

Teriasidomaisfácil.

—Não,queisso,eumeviro.Nãoprecisa—negueiporeducação.Avontaderealeraadeaceitarasuacompanhiapormuitomaistempodoqueumregressoparacasaapenas.Masnãopodiadizer…

— Talvez não precise, Dani. Talvez, eu só queira. — E nesse sussurro, senti o meucoraçãoderreterporinteiro.Oquevocêfezcomigo?—Então?Vamosjuntas?—asuamãomefoiofertadacomoapropostadeescoltamaisagradávelquejárecebi.

Eume senti tão vulnerável…Aomesmo tempo protegida domundo,mas indefesa devocê.Segureiasuapalmacomostemoresdaminha,eocalorzinhoreconfortantequeelaemitiamepareceuestranhamentefamiliar.

Talvez nós viajássemos lado a lado há muito tempo, e eu não sabia. Talvez eu te

observassetantonaqueleônibusporveremvocêumamor(ouumaamiga)queeutinhamuitoantesdenascereaprenderomeupróprionome.

SóqueomeunomenãoeraDani.

Eaquelamoçanãoeraeu.

Então,eunãomepermitidepoisdo“atélogo”naquelanoite,apesardetudoemvocêmesoartãocertoetãobonito.Nãomepermitiporquevocêjáeravocê.Eseoseu“eu”meconhecessedeverdade,talveznãodessemaisamãoparamim.

Erreifeio.

ParadaDois:Raiva

Nadameservianaquelaporradearmário.Querdizer,servir,servia,masnãocombinavacomavisãoqueeutinhademim.Osmeuscachosestavamdisformes,eeusabiaqueissoiamerenderumasériedecomentáriosdafamíliasobreeudevermecuidarmelhor.Quesedane,então!Aproveiteiarebeldiaparasairmaiscedoedecaralavada,comummoletomdomeupai.

O dia podia ter começado com o pé esquerdo, porém foi o direito que embarcou noônibus,convictodequeascoisasiriammelhorar.Doceilusão!

—Nossa,Dani,vocêtáumcaco!—Joselindo,omotoristabigodudo,comentouquandopassei.

Não retruquei por preguiça. O Zé já era velho demais para que eu o mandasse ir proinferno.Ignorantedemais,semnenhumtompejorativo,paraentenderquedaquelejeitoeumesentiabemmaisconfortável,bemmaiseu.

Tirarocelulardobolsoemeatentarsomenteaelefoiamelhorcoisaqueeufiz.

Faziadoismesesdesdequevoltamosjuntas.Efelizmente,nadespedida,vocêdecidiumedar o seu número, apesar dasminhas reservas. Com o tempo, aquelamuralha que pusentre nós foi cedendo, tijolo por tijolo, até dar vazão à enxurrada de mensagens quecomeçamosatrocardiariamente.Comovocêerainteressante!

Devídeosengraçados,passamosacompartilharhobbies;dentreeles,aleitura.Aliás,nemrecordo como foi que adquirimos esse hábito estranho de você ler por áudio paramimenquantoeuimaginavaascenas.Vocêlembra?Seiqueasensaçãodasuavozeraamesmadeumabraçoequeeulogomevicieiemreceberasnarrativas.Aintimidadeentrenósfoisurgindo rapidamente, com uma naturalidade espantosa. E quando nos demos conta, já

estávamos dividindo segredos, confessando o inconfessável, a qualquer hora, em todolugar,graçasaomilagredatecnologia.

NãofoidifícilfingirqueoZénemtavaali.

Manu:Sim,euadorolersobrereligiões.Émuitoinstrutivoconheceraformacomocadaumaenxergaasdivindadeseanossarazãodesernomundo.Seilá…achoquenãotenhoumacrençadefinida,nemsoumuitoortodoxa.Sótenhoacertezadequeoserhumanoéprecáriodemaisparaestaracimadetudo.―enviadoàs3:30am.

Aliestavavocêcomigo;eloquenteparameenvolvernasuafilosofia,perfeccionistaparanão sepermitir burlar aortografianempormensagem.Tiveque rir ao cogitarque, aosdezesseisanos,euerasapiossexual.Esquisitaépouco!

Dani:Eoquevcfazqndquermuitoumacoisaquealgumadelasdizqueépecado?―enviadoagora.

Senteiemqualquer lugar, relendomilvezesoque tinhaenviado.Paraliseideansiedadequandovocêvisualizou.Seráqueeuhaviapassadodoslimites?Asuarespostasussurradanomeuouvidosócomprovouqueapercepçãonãoestavasendoomeuforte.

—Eulembroquesouhumana.Bomdia!—obeijoquevocêestalounaminhabochechaemcumprimentoterminoudemequebrar.

Eunão tinha tevistosentadanobancode trás!Eospelosdomeucorpoaindaestavammuitoeriçadoscomasuaalegação.Ocontatodasuabocanaminhapele,então…nãomeajudouemnadanareconquistadojuízo.

—O-oi!Quesusto.—tenteidizernormalmente,vendovocêsereacomodaraomeulado.

Aquilo era estranho!Não, estranhonão é a palavra; era intimidador.Por detrás deumatela, a barreira não existia, éramos só você e eu.Mas ao vivo… eu virava um porco-espinho!Nãoerapormal.

—Tátudobem?—oseutomsooupreocupado.Coloqueilogoamãonocoloantesquevocêapegasse,semperceber,paramereconfortar.Vocêégentilassim.

—Tá…é….tásim.Sónãopareceporqueeutôsemmaquiagem.—meesquivei.

Putamerda!Oquefoiisso?

—Nãoentendi.

Manuela,sempre tãogenerosa.Distribuindooportunidadesparaqueeuvoltasseatrásnasonsiceeabrisseojogodeumavez.Eraumapenaeusercovarde.

—É,eutenhoessacaradedoençamesmo.Vocênãoviudaoutravezporqueeuestavamaquiada.—Claro,porqueameninaquepegavaomesmoônibusqueeuháanossómeviu uma vez na vida! Daniele, pelo amor de Deus, cala a boca!—Você não lembra?Estavaatédebatomvermelho.—Porquevocêcontinuoufalando,Daniele?Assimnãotemcomotedefender!Calaaboca!

—Ahsim…nãoerabemnissoqueeuestavareparando—sentipelomodocomovocê

meolhoude soslaio que eu consegui te decepcionar.Umamassa de ar seco entalounaminha garganta. — Eu só… devo ter te interpretado errado, me desculpa — e o seuarrependimentofoitãopalpávelquequaseoabraceientrenósemconsolo.Nãoconseguinemteencararporqueomeu,deumpesoenorme,aindaestavasentadoemcimademim,mesufocando.

Vocêjamaismeinterpretouerrado.

Eeumorrideódiodemimmesmapornãotertidocoragemdetedizernaquelahora.

ParadaTrês:Barganha

Uma moeda pelos seus pensamentos. Eu não aguentava mais imaginar no que vocêpensava quando olhava pela janela, ouvindomúsica. Só sei que aquela serenidade, queantesme contagiava, ganhava um tom demelancolia sempre que os nossos olhares secruzavam.

Eumesentiaumanimalporterfeitoissocontigo!

Porém, a inadequação era uma velha companheira de jornada com a qual eu já estavaacostumado.

Tentei, então, seguir o protocolo: fingir que nada aconteceu.Mentir paramim sobre ossinais berrantes em cor de neon que eu queria ignorar; que eu tinha que ignorar paraconseguir seguir em frente. Jurava que te ocultar do meu coração seria até fácil,considerandoarealidadetãomaisdescaradaqueeunegligenciavahátantotempo.

MasoDestino,ouseiláquem,nãopermitiuquefosseassim.

Aintervençãodivinasefezpresentede“n”formasduranteossetediasemquedeixamosde nos falar: primeiro, começamos a nos esbarrar no ônibusmais vezes do que nunca;depois, por descuido, liguei para você sem querer quando tentei ampliar a sua foto dowhatsapp; então, anovagerentequeassumiua loja emqueeuera aprendiz tambémsechamavaManuela. E por último, o Jefferson (mais conhecido comoPaulão, segundo onomeescritonascamisetasdefutebolqueeleusava)decidiu,enquantoeuteolhava,queera um ótimo momento para trocar a nostalgia funk por uma estação de rádio maisromântica.

“Outravez,eutivequefugir,eutivequecorrerparanãomeentregar.Asloucurasquemelevamatévocêmefazemesquecerqueeunãopossochorar”.

O timbre da Roberta Campos se espalhou pelo corredor, fazendo com que eu mearrependesseamargamentedenãotertrazidoosfonesdeouvido.Omeucoraçãopalpitavaforte,comosequisessecontribuircomapercussãodamúsica.Erana letraqueaminhaessênciaseencontrava,noentanto.Nãoconseguiaesconder.

—Música linda da porra!—murmurei para disfarçar a razão do embaçado nosmeusolhos.Queriaqueomundoacreditassequeeueraumapessoamusicalmentesensível,nãoumadolescentetodoerradoquenãosabiaadmitirnemparasimesmooquesentiabemlánofundo.

Nãoatéviràsuperfície.

Manu:Querconversar?―enviadohá2segundos

Manu:Senãoquiser,tudobem,vocênãoéobrigada.Nãoqueroteincomodar―enviadohá1segundo.

Sorri como um idiota, sem perceber, assim que vi as suasmensagens. Eme consola acerteza de que, assistindo à cena, você deve ter se tornado omeu reflexo na reação.Agentesabiaquetinhaqueconversar,que,maiscedooumaistarde,iríamos,porqueaquelassensaçõesafluentesnãopoderiamfugireternamentedosentimentoprincipal.

Aquelesentimentoque,todososdias,pegavaoônibuscomigodesdequeteconheci.Eque,defato,sónomeiodetransporte,poderiaserconsideradopassageiro.

Eupercebiquenãoiapassar.

Dani:Vcnuncameincomoda.―enviadoagora.

Dei a brecha, apesar de saber que aminha presença andavameio boneca russa: quantomaisvocêdespiaasminhasfachadas,maiseuiasumindo.Sustenteioseuolhar,dooutroladodocorredor,paratransmitircomfirmezaqueeunãoiameesquivardenovo.AsuaalegriaaotrocardelugarcomoPaulãoparasentarcomigovaleutodooesforço.

— Senti falta das nossas conversas — a confissão veio dos seus lábios, ainda maisbeijáveis do que no primeiro dia.Não conseguia desviar os olhos deles, tive que fazerforçaparaenxergaroresto.

—Sentifaltadevocê—admiti.Porqueeraverdade.Nasuaausência,omeucelularficouquieto,aminhacabeçavazia.Longedasuaprimavera,eusófaziameenclausuraraindamais no meu inverno. E custei a admitir que, no fundo, achava que merecia morrertrancadonaquelelugar.

Vocêmedevolviaachave.

— Por que ficamos sentindo falta uma da outra quando estamos bem aqui? Não écoerente!

“Nãoécoerente”.Asuarevoltacomportadasempremefezrir.Achavaengraçadocomovocê,virginiana,queriaorganizaravida,atéocaosdasemoções.Quepetulante!

—Eusóseiirdevagar—expliquei,torcendoparaquevocêcompreendesseanegociaçãoimplícita.Euficaria, semmais rodeios, semmais fugas.Contantoquevocêconseguisse

serpacientecomigoeacompanhasseomeuritmo.

Paciênciaeraoseupontoforte.

—Nãoéporquecorrotodamanhãqueeunãoseimeditar,Dani.

Dani…Aformacomovocêdisseomeunomedebatismotornouaatrairaminhaatençãopara a suaboca, comonumcampomagnético.Eu tinhao seu consentimento e tambémmuita,muitavontadedesentirnapeleoresultadodaquelasomaentrenósduas.

— Talvez um pouco de pressa não seja tão ruim…— ouvi meus lábios repensarem,capturandoasírisnegrasquetantomefascinavam.

Triângulosmútuosforamtraçados,semparar,pelasvisõesdesejosas,indodeolhoaolhoeculminandonasbocas.Olho,olho,boca;olho,olhoboca.Atéqueemumnovopercurso,nãopudemaismeconter.Trouxevocêparamim.

Os seus cabelos eram sedosos e tinhamcheirodemaçãverde; o seunariz prendia o arquandoomeuoacariciavaemumadançadeprenúnciosqueexigiamaconsumação.Asuapelearrepiavacomotrajetodosmeusdedos,quepassearamvagarosamentepeloseuqueixoesetrancaramemvoltadanuca.Faltavasóumpouquinho…

Unspassageiroscomeçaramagritar“beija!”;outrosprotestaramemnomedamoraleosbons costumes, mas eu não quis nem saber. As borboletas no meu estômago tambémdiziam “beija!”; o roçar carinhoso da sua bochecha naminha também dizia “beija!”; omodo como nos olhávamos desde o princípio dizia “beija!”. Então, eu pouco meimportavacomqualqueroutraopiniãoquenãoendossasseocoro.

Beijei você alimesmo, com vontade,me perdi. Beijei você na sua casa, na penumbra,ondeninguémpodianosver.Beijeivocênosseussonhos,comaminhaalma,medespi.Enaperdiçãodedesejos,fuimeencontrandoatéperceber:

Parateamarinteiroesaudável,acondiçãoeraamaramimmesma.

Vocêeraaminhabarganha,Manuela.Eeuaceiteisemolharparatrás.

ParadaQuatro:Depressão

Osmeus olhos estavam embotados de lágrimas. Eu não entendia por que, nos quebra-cabeçasdavida, logoeu era umadaquelas peças deformadasquenão cabiamem lugaralgum.Especialmentequando,nodesespero,eutantasvezestenteimesocaratémudarde

formaeconseguirumencaixe.

Elenuncaaconteceu.

Hámaisdeumanoconvivíamoscomfrequência.Eacadaencontroeunãopodiadeixardeme transformar um tiquinhomais: você resgatava a autenticidade emmim. Pouco apouco,asmaquiagensforamsumindo,oscabelosencurtando,asdesculpasnãosaindo,asroupas alargando e, quandome dei conta, ficavamenos impossível deme enxergar naminhaprópriapele.

Aomenosparamimmesma.

“Nãoéporquesaiudoarmárioetemumanamoradaquevocêprecisaandarporaívestidacomo uma caminhoneira”, alguns parentes advertiam, fosse ou não para me proteger.“Issonãoénormal!”.

Nessashoras, a aberração sóconseguia ir se refugiarno seucoloparaquea“estranha”fortalezasecondensasseaoestadolíquido.

—Adorariaentenderporqueaspessoas tantocismamqueoconceitodenormalidadeéumsó—vocêrecorriaàideologiamulticulturalparameescusar.Eranoafagoquefaziaemmeuscabelos,aninhadonoseupeito,queeumeabsolvia,entretanto.—NoOrienteMédio,énormalandardeburca;nastribosindígenas,énormalandarpelado;noBrasil,énormalevocarosensocomumparaexcluirosoutroscomoseanormalidadenãofosseumconceitoquasesubjetivo,quevarianotempoenoespaço.—eugargalhei.—Oquefoi?Ésério!—vocêseendireitounacamaparapoderolharpramim.

Eu já sabiaqueera sério,meuamor.Sónãopodiadeixarde rir doquãoadorávelvocêficava, toda plácida, usando a lógica, em vez de falarmil palavrões e xingarDeus e omundo como eu fazia nasminhas revoltas. “Quem tem razão não precisa se exaltar; acoerênciafalaporsisó”.Vocêétãoúnica,Manu!

—Nada.Eusógostodoseujeitinhozen—comentei,brincandodeataredesatarosseusdedosentreosmeus;asuapresençasurtiaumefeitoansiolítico.Alihaviaoencaixe.

—Eeudetestoquandotefazemsesentirmenorporserquemvocêé.

Aquilofoicerteiro.Umazero.

—Talvezeusejamaisestranhadoquevocêpensa—arrisqueiumempate,virandoparaacabeceiraopostaàsua.Eununcaganharia,pormaisquetentasse.“Acoerênciafalaporsisó…”.

— Talvez eu saiba, desde o início, exatamente quem você é. Só esteja assistindodesabrochar. — as nossas mãos se embrenharam, colando o seu corpo junto ao meu.Aquelecalortãofamiliarmeinundandodaenergiainconfundívelquemelevavaatévocê.

Jamaisganhariamesmo.

—Botõessãomenosfrágeisquepétalas.

—Massãoaspétalasqueembelezamomundoaocaptaremaluzdosol.

Quelavada!

—Nãomepedeparafazer isso,Manu.Eunãopossoarriscaroqueagentetem.—mepegueiamargurado,mastigando,comosevocênãoentendesseasmetáforasetudoaquiloqueelasredesenhariam,casotransformadasemrealidade.

“Vocêjamaismeinterpretouerrado”,lembra?

—Amoréamor,Dani.

—Ebananassãobananas.—eláestavaeu,novamentemeesquivando.Nãodevocê,masdoassunto.

Eradifícildemaisteouvirdizerquemeamava;comumaincondicionalidadequeomeuemocionalaindatãofrágil,tãoperdido,nãoconseguiaassimilar,sóagradecer.Vocêvoltouomeucorpoparasi,eeu,semquerer,afasteiapalmaquemeacariciavanacintura.

—Desculpa,eu…

Não seria, nem de longe, a primeira vez que nos beijávamos, que nos amávamos, semamarras,vocêeeunaquelacama.Maseuaindasentiavergonhadasformasquetinha.Tãoimatura!

—Gostodosseusolhos—vocêdisse,quandotenteiesconderasírismel-esverdeadasquecomeçavamaseinundar.Sabiaque,emsuaspalavras,haviabemmaisdoqueapredileçãopelosmeus olhos.Você se referia à alma que enxergava ali detrás; amesma que, nemsempre,euconseguiaveraoencararoespelho.Tãosensível!

— Ich mag Katzen — me ouvi dizer, também de um modo reducionista perto doverdadeirosignificado.Eunãogostavasódosgatos,gostavadevocê.Amavacadacolisãodos nossos universos, incluindo o novo centro de gravidade que elas traziam consigo.AqueleeraomeuIchliebedich,aconfissãodequeeuteamava.

Evocêentendeu.

—Então,sedeixasair.

Naqueledia,pegueioônibuspracasacientedequeembarcavanumatransição.

ParadaCinco:Aceitação

— Você vai ficar bem? — a sua indecisão me perguntou durante a arrumação dasbagagens, em uma recaída ao defeito mais recorrente que possuía: a condescendência.Sabíamos que, se eu dissesse não, você cancelaria tudo para ficar aqui comigo. E, às

vezes,eradesconfortávelterqueabrirmãodomeuegoísmoeabdicardessepoder.

Masvocêmerecia.

—Vousim,eusemprefico.—mentira.—EeununcavouteperdoarsenãoembarcarpraAlemanhaenãoviveromelhoranodasuavida.—mentiradenovo.

Oumelhor,parcialmenteverdade.

Eurealmentequeriaquevocêcomeçassearealizarosseussonhos.Queviajasseomundoe conhecesse aquela cidadezinha alemã de nome impronunciável onde nasceu JosephPilates, o seu inventor queridinho. Queria que você aspirasse, in loco, as culturas queidolatrava.Equevoltassepramimaindamaisplenaerealizadadoquejáeraaprincípio.

Apenasnãoreclamariasevocê,porvontadeprópria,nãoquisessemaisir.

Nuncatequestioneisobreissoporqueeujátinhaaresposta.

Vipormimmesma,noprimeirodia,quandotambémfecheiosolhosparamergulharnasuaimensidão.

—Poiseuquenãovouteperdoarsevocêmeafastarsóporqueestoulonge,hein.

Maiormentiradetodas!Vocêsabequeécondescendente.

—Daniele,a“exiladora”—deideombros,debochandodasuacaraporconsideraraqueleabsurdo.Tavapensandoqueeusouquem?Nenhumdenóseradadoadramas,entãoqueanossadespedidanãosetornassepesadaquandopodiaserbonita.

—Medálogoumbeijoantesqueeudesista.

Eassimasuabocalevoucontigoumpedacinhodemimparaforadopaís.

Osmesessearrastaramlentamente.Osconflitoscresceramagoraque,nospés,eucalçavaoscoturnosparaenfrentaraguerra.Aspalavrasseafiaramcomofacas,osgritosdentrodecasa eram granadas espalhadas por todo lugar. Ficou difícil me mexer naquele campominado. A cada transformação pisada em falso, um familiar explodia, detonando asrelaçõesqueoparentesco,umdia,prometeuseremeternas.

Omeuprópriopainãofaloumaiscomigopordoismeses.

Eaminhamãe,portrêssemanas,garantiunãomereconhecer.

Seeunãotivesseasminhasirmãsdomeulado,meacalentando,lutandocomigo,nãoseidizerseteriaconseguidotranscenderatéaqui,Manuela.Foibemdifícilsemvocê.

—Voucolocarobinder,estábem?—eurebobinavaosseusúltimosgestosantesdobeijodedespedida,paraternoquemeampararetesentircomigo.

Atexturadotecidoaindaeraumpoucoásperapromeugosto,masassuasmãos,sempretãomacias,meconvenceramdequeeraahoradeeumeacostumar.Sentimuitoincômodonosprimeirosdiascomoselásticosatadosaomeu tórax,nãovoumentir;apressãonascostelaseafaltadeartentavam,atodoinstante,mefazervernainérciaomenosdolorosodentreosmales.Porém,oseutoquepermaneciaimpregnadonosmeusporos,nascosturasdo binder, nos meus ideais, me relembrando de que era para frente que eu deveria

continuarmarchando.

Assimofiz.

“Manu: Quando voltar, quero TE ver e te dar boas-vindas. Eu te amo.”, a mensagemenviada do aeroporto tomava a tela do meu celular quando era necessário. Ou seja,sempre.

AManuelapartia,masocarinhoficava.

Vocêsendovocê.

Dani(?):Estouaquiteesperando,minhalinda.―enviadoháumahora

Eucomeçandoasereumesmocomojamaisfui.

**

— Quer se acalmar? — o Zé me interpela, olhando a minha imagem irrequieta peloretrovisor.Malsabeeleque,desdequecomeceiatomarhormônios,tercalmanemsempreéummilagrepossível.Aomenososustonãomeaborrece.

—Porque esse trânsito, hein?—eumeaproximoe ficodepénoportal da cabinedomotorista.

Joselindonãogostademeterali,deequilibrista,quandohálugarparasentar.

—Teveumacidente,ficoutudoparado.Dápravocêsossegaressabunda?—elegrita—Já esqueci a marmita! Não preciso de um passageiro machucado para encerrar oexpedientemaravilhosoqueestoutendo.—ascurvasbruscasmebalançando,deumladoprooutro,ilustrambemoqueoZéquerdizer.

—Peloseuhumor,jáviquefoiumsaco!—alfineto,quasecaindono“Jesus,meleva”;aquelebancodeumsólugarnaprimeirafileira.Foiporpouco.

—Nadaaver!Eusótôcomfome.Eomeuciáticotámematando!

Então, o José se alonga parame contar, commais conforto, as aventuras que viveu aolongododia.

Realmente,monótononãofoi.Tevedetudo!

Nas palavras do motorista: “teve um garoto maluco se declarando com música brega;váriospirralhosdiscutindoarelação.Essagarotatristinhaquetásentadaaíatrás,essaaímesmo,ficoubrincandodecarrossel, indoevoltandodeumpontofinalprooutrocomoquemnãotemmaisoquefazerdavida…Ah!EumcasalgaytambémsebeijoupravocêeaManudeixaremdesertãoexcepcionaisaquinomeubusãoe…”.

—Mas,Zé,eusouumhomemhétero.Trans,mashétero—interrompo,aosrisos,apesardesaberque,noíntimo,elevaiduvidardemim.Osolhosrevirandoacimadobigodesóconfirmam a minha hipótese. Nem ligo; sou eu quem tem que me aceitar.— Se nãoacredita,possocomeçarafalartop,sextouerapeizeprateconvencer.Quetal?—doudeombros.

Agargalhadadatal“garotatristinhaquebrincavadecarrossel”,paradalogoatrásdemim,

mefazsobressaltar.Nãopercebiquejáhavíamoschegadoaopontofinal.

Abropassagemparaeladescerepeçodesculpas.

— Não vai também, criatura? Vou te levar pra garagem, hein! — o “Zé Lindinho”provoca,cientedequeéparalámesmoqueeuqueroir.

A garagem da viação fica mais perto da sua casa, você sabe. E o Joselindo nunca seincomodadenosconduzirpra“alémdosreinosdoterminalrodoviário”.

—Estáentregue.—elemediz;umsorrisovoltandoabrotaremseurosto.Seiquenãoéporminhacausa,épelaexpectativadechegaratempodeassistirànovela.Masficofelizporele.—FalapraManudarumbelotratonesseseuhumorzinho,hein!Desdequetrocouasbolas,ficoumetidoaengraçado.Voltesempre!

Ai,Zé,querido…engraçadinhoeusemprefui,sóestava infelizdemaisparademonstrarantes.

Começo a descer as escadas cuidadosamente; a ansiedade de estar apenas a algunsminutos de vocême tira o senso de gravidade, tenhomedode tropeçar.Respiro fundo,parandoumsegundonoúltimodegraudoônibusquetransformouasnossasvidas.Entãoavistahabituadaatonspastéispordozemesesficavibranteaovervocêàminhaespera.

Vocêestátãolinda!Oscabelosaindamaisaloiradosparacompensarobronzeadoquesefoi.Osseusbelostraçoscontinuamosmesmos…

Mas,desdevocê,nadamaisfoiigual.

Vounasuadireção,semperceberqueestoucorrendo,emeespanto,nachegada,comoprantoqueinundaasuaface.Vocêsemprefoimuitotranquila,inabalávelnasuacalmaria.

Parecequenãomudeisozinho.

—MeuDeus!Vocêestátãobonito!—oseuabraçomerecebe,eeumeperguntocomofoiquecrieiasassemtê-loaquiporpertoparameencasulardocaos.“Sãoosmomentosruinsquenosconduzemàsvitórias”.

—Não tavamaisme aguentandode saudade de você,Manu!—enxugo as lágrimas evistoomeumelhorsorrisoparaatrairumrisoseu.

Hojeeunãoquerochorar.Mesmoquesejadealegria.

Damososbraçosecaminhamosatéoseucarronovo,ondeosmilbeijosematrasofazemquestãodemetingiroslábiosdecarmesim.Essevermelho,sim,combinamuitocomigo.

—Então, o que vai ser?— você enfimme pergunta,matadas as saudades físicas queofuscavamospensamentos.—Muitoprazer,Daniel?

Riobastantedopalpite.

—Nah,muito óbvio!— estalo a língua—Seria uma afronta àminha criatividade—gostodeouvirseurisofrouxo.Quesaudade,quesaudade!

— Ariovaldo é uma gracinha…— você sugere, mais implicante do que consigo melembrar.NãoseioqueaAlemanhatefez,masfezbem.Ficoinstigadoadesbravaressas

facetasqueenriqueceramasuabagagemaolongodadistância.

Sóqueoassuntoeramasminhas.

—Muitoprazer,Benjamin.—estendoapalma,teconvidandoaconheceronovoeueaentrelaçarasmãoscomele.

Comoverdadeiro.

—Sejabem-vindo,Benji.—asuavozmerecepciona.Enasonoridadedomeunomeeutenhoacertezadequeencontreiocaminhodecasa.Elaévocê.

Nuncapensei,Manuela,queviveriaessesmomentoscontigo.Que,deamoreabrigo,vocêtambém se tornasse a ponte que me conduziria à autenticidade que eu tinha medo deexperimentar. Das areias passadas, guardo as pegadas perdidas, seu nome junto com omeueaslembrançasqueridasdequando,nasruínas,vocêpreviuomeurenascer.

Járenasci.

Napenumbradeantes,reluzemasmetassuperadas,easliçõesqueaprendemosnãoforam“quase sem querer”. Sei que posso ter andado distraído e impaciente lá no começo detudo,masdecidi,porlivreescolha,fecharmeusolhosparaveromesmoquevocê.

Então,medeixeisair.

Muitoobrigadoporviajarcomigo.

Comtodoamor,

Benjamin

P.S:IchmagKatzen.

Aindagostodegatos.

Biografias

Bruna Fontes nasceu emNiterói, Rio de Janeiro, em 1993. Estuda Letras na UFRJ etrabalhacomoprofessoradeinglês,tradutoraepreparadoradetextos.PublicouolivroLaLaLand:OSonhoAmericanoeSobOMesmoTeto tantonainternetquantoemformatoimpresso,ePlatônico,dentreoutros,noWattpad.

Mantémumcanalnoyoutube:www.youtube.com/c/BrunaFontesEscritora

Contatocomaautora:

[email protected]

JúliaBraganasceuemBrasília,DistritoFederal,em1993.CursaLetrasnaUniversidadedeBrasília.PublicouolivroEu,CupidonoWattpadeagoraestápostandoaobraQueridobebênaplataforma.

Contatocomaautora:

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MarceleCambesesnasceunoRiodeJaneiro,Capital,em1991.ÉgraduadaemDireitopelaUERJeatualmentetrabalhacomopreparadoradetextos.PublicouolivroSinfonia,oprimeirovolumedaSérieDestinoTrocado,noformatoimpressoeparticipoudaantologiaAmores(Im)possíveisdaeditoraAndross.TodasassuasobrasjáestãodisponíveistambémnoWattpad.

Contatocomaautora:

[email protected]

MelGevenasceuemSãoPaulo,Capital,em1995.EstáconcluindoocursodeDireitonaFGVeatualmentetrabalhacomPropriedadeIntelectualeInternet.PublicouolivroTragoSeuAmordeVoltaemTrêsDiasnoWattpad.

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TamaraSoaresnasceuemSãoPaulo,Capital,em1996.EstudaLetrasPortuguês/Inglês

na Universidade Presbiteriana MacKenzie. Trabalha atualmente como preparadora detextos. Possui quatro histórias publicadas noWattpad:Fangirlish, Desnorteadas, FeiradosCoraçõesPartidoseTudoentreAmigos.

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ThatiMachado nasceu emNiterói, Rio de Janeiro, em 1990. Estudou artes cênicas epublicidadeetrabalhacomomodeloPlusSize.PublicouoslivrosPontedeCristaleComoutrosOlhosemformatoimpressoePoderExtraG,Singular,dentreoutros,noWattpad.Mantémoblog:www.nemteconto.org

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VanessaS.Marine nasceu emSãoCaetano do Sul, São Paulo, em 1993. Formada emLetras pela Universdade Presbiteriana Mackenzie. Publicou Novembro: 281 dias pararecuperarumsorrisoemformatoimpresso,tambémdisponívelnoWattpad.

Contatocomaautora:

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