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Ruídos da gentrificação: desdobramentos oblíquos sobre a cidade Diego Pontes * Resumo: As intervenções com a mensagem “CIDADE À VENDA” espalhadas pela cidade de Florianópolis/SC me impulsionam a esboçar algumas ideias sobre o direito à cidade a partir das marcas deixadas pelo Coletivo Artístico ETC (Experiência, Trânsito e Corpo). Este diálogo com as ruas, além de provocar o questionamento da ordem urbana hegemônica por meio de reflexões a respeito das políticas da cidade em colisão, tensiona, através de seus usos e contra-usos (Leite, 2002), discursos transversais a respeito da estética dos espaços urbanos em sua dimensão gentrificada. Palavras-chave: cidade; gentrificação; errâncias urbanas; contra-usos. Notas iniciais "Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade." Leminski; Toda Poesia ; 2013 - [quarenta clics em Curitiba; 1976] As intervenções com a mensagem “CIDADE À VENDA” em viadutos, marquises, tapumes e muros da cidade de Florianópolis-SC me levam a esboçar algumas ideias sobre o direito ao uso da cidade em sua dimensão errante e ordinária (Jacques, 2012; De Certeau, 2006) a partir das marcas deixadas pelo Coletivo Artístico E.T.C. (Experiência, Trânsito e Corpo). O “caso CIDADE À VENDA”, noticiado em um jornal de ampla circulação na cidade logo após a condenação de quatro integrantes do Coletivo pelo Ministério Público por “crime ambiental contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural”, trouxe para discussão as negociações e conflitos que bordam o tecido urbano, como * Bacharel em Ciências Sociais (UFSC)

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Ruídos da gentrificação: desdobramentos oblíquos sobre a cidade

Diego Pontes*

Resumo: As intervenções com a mensagem “CIDADE À VENDA” espalhadas pela cidade de

Florianópolis/SC me impulsionam a esboçar algumas ideias sobre o direito à cidade a partir das

marcas deixadas pelo Coletivo Artístico ETC (Experiência, Trânsito e Corpo). Este diálogo com

as ruas, além de provocar o questionamento da ordem urbana hegemônica por meio de reflexões

a respeito das políticas da cidade em colisão, tensiona, através de seus usos e contra-usos (Leite,

2002), discursos transversais a respeito da estética dos espaços urbanos em sua dimensão

gentrificada.

Palavras-chave: cidade; gentrificação; errâncias urbanas; contra-usos.

Notas iniciais

"Ainda vão me matar numa rua.

Quando descobrirem,

principalmente,

que faço parte dessa gente

que pensa que a rua

é a parte principal da cidade."

Leminski; Toda Poesia ; 2013 - [quarenta clics em Curitiba; 1976]

As intervenções com a mensagem “CIDADE À VENDA” em viadutos,

marquises, tapumes e muros da cidade de Florianópolis-SC me levam a esboçar

algumas ideias sobre o direito ao uso da cidade em sua dimensão errante e ordinária

(Jacques, 2012; De Certeau, 2006) a partir das marcas deixadas pelo Coletivo Artístico

E.T.C. (Experiência, Trânsito e Corpo).

O “caso CIDADE À VENDA”, noticiado em um jornal de ampla circulação na

cidade logo após a condenação de quatro integrantes do Coletivo pelo Ministério

Público por “crime ambiental contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural”,

trouxe para discussão as negociações e conflitos que bordam o tecido urbano, como

* Bacharel em Ciências Sociais (UFSC)

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disse uma das integrantes do Coletivo na entrevista: “Esta intervenção denuncia a

política de espetacularização imobiliária e o processo de leiloamento da cidade, que

tem como catálogo o plano diretor aprovado pela atual gestão do município”1.

Por meio dessas intervenções urbanas, através da interferência no fluxo

cotidiano da cidade, pode-se dizer que os riscos traçados pelo Coletivo colocaram em

tensão e questão a ordem urbana hegemônica, provocando ruídos dissonantes na

frequência que visa pasteurizar e despolitizar a relação entre o corpo, a cidade, e os usos

dos espaços urbanos. Desse modo, a estratégia de divulgação da mensagem abre espaço

para reflexão sobre a dimensão da cidade pretensamente vigiada e planejada, e pode

operar como desestabilizadora de certezas da própria dimensão política e estética da

cidade.

A compreensão da arquitetura e do urbanismo enquanto interface da vida social

a partir da experiência individual e coletiva possibilita um olhar sobre a cidade além de

sua estrutura física e de suas formas. Como nos mostra Giulio Carlo Argan (1993) em

sua narrativa sobre a História da arte como história da cidade, pontuando que esta pode

ser apreendida como uma constante metamorfose que engloba todos os fragmentos

desconexos deixados por diversas épocas, durante toda a sua história.

Torna-se possível com isso, abrir campo reflexivo acerca da regulação e controle

visual das paisagens urbanas e seus contra-usos (LEITE, 2002), que se expressam no

planejamento das práticas do urbano por forças hegemônicas que pensam a cidade a

partir da construção de muros concretos, limpos e higienizados; muros calados ou hype

que apontam para uma dimensão cenográfica e espetacularizada da cidade atravessada

pelos conflitos e contradições inerentes aos planejamentos dos espaços urbanos em seus

“embelezamentos estratégicos”.

A partir destes apontamentos iniciais, que se colocam como emblemático pano

de fundo que envolve e ilustra esta reflexão, convido a uma provocação sobre o controle

da cidade e dos “impactos visuais” que as “pichações” produzem em um contexto

urbano onde políticas públicas de segurança e de higienização urbana representam e

legitimam o processo de gentrificação da cidade. Processo este marcado por imposições

de padrões hegemônicos estéticos e por conflituosas e violentas limpezas urbanas que

pretendem, dentre outras coisas, apagar os riscos ensaiados e qualificados pelas

potencialidades das experimentações e intervenções pela cidade, que se desenham

justamente nas “práticas, usos, astúcias e táticas cotidianas que desviam, alteram ou

jogam com os mecanismos autoritários da disciplina”. (DE CERTEAU: 2006).

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(Imagem 1. Intervenção no Centro de Florianópolis. Fonte: Internet)

(Imagem 2. Intervenção na Rua Conselheiro Mafra. Fonte: Acervo Pessoal)

Ruídos da gentrificação

Entendendo que as transformações e “melhoramentos” urbanos alteram

significativamente as dinâmicas do cotidiano da cidade e colocam em evidência os

conflitos inerentes aos espaços públicos, tomo como ponto de partida esta relação

conflituosa de negociações e subversões para pensar o processo de gentrificação como

expressão de interesses que apreendem a cidade como um item de consumo.

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Por este caminho, onde a arquitetura e o urbanismo são pensados em relação

com a pretensão de organização da vida cotidiana, discursos transversais a respeito das

reabilitações urbanas na cidade contemporânea emergem nesses “novos” movimentos,

deslocamentos, (des)mapeamentos, e formas de apropriação da cidade. (CASTELLS,

2012; LEITE, 2010)

A arquiteta e antropóloga Alicia N. G. de Castells (2012) elucida “o efeito de

homogeneização presente nas reabilitações do tecido urbano de nossas cidades” e abre

espaço para reflexão sobre as lógicas espaciais em tensão na cidade contemporânea.

Ao discutir o fenômeno da gentrificação, a autora nos mostra que o processo de

enobrecimento e (re)valorização de áreas ou bairros urbanos históricos degradados

seguem e se adéquam os fluxos e interesses econômicos, que se propõem a “resgatar”,

“revalorizar” as especificidades culturais locais, e como desdobramento “resulta em

áreas urbanas ocupadas e frequentadas por novos consumidores” e novos valores

econômicos e morais, onde segundo a autora:

O processo de gentrificação (ou enobrecimento) generalizado em áreas degradadas

em nossas cidades – é uma prática conhecida pelas ações desenvolvidas pelas

políticas públicas em conivência ou com fronteiras pouco nítidas com as forças do

capital privado. [...] As revitalizações podem ser feitas tanto em centros históricos,

ruas, bairros tradicionais, até na realização de benfeitorias em áreas periféricas,

cumprindo, às vezes, o papel de “higienizador” dessas mesmas áreas. (CASTELLS:

2012, p. 22)

Estas transmutações do tecido e das dinâmicas urbanas em nome de uma cidade

espetacularizada se fazem por meio da intensificação do controle social e de novas

formas de exclusões, maquiadas em eufemísticos termos - tais como, “revitalização,

reabilitação, revalorização, reciclagem, promoção, requalificação, até mesmo

‘renascença’, [que] na realidade encobrem a retomada do centro das cidades pelas

camadas afluentes das cidades” (CASTELLS, 2012, apud O.ARANTES, 2000).

O processo de gentrificação analisado sob o viés contemporâneo da

“revitalização” urbana também é discutido por Rogério Proença Leite (2010; 2002) a

partir de uma crítica ao ideal de adequação e entrega das cidades às demandas do

consumo urbano e aos fluxos do turismo mainstrem.

Leite (2010; 2002) recompõe os caminhos das reformas urbanas parisienses

empreendidas pelo então prefeito Barão de Haussmann em meados do século XIX, que

consistia, por meio de um “embelezamento estratégico”, em um projeto político

higienista de adequação da capital francesa a um ideal de cidade moderna e industrial,

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que além de expulsar os mais pobres do centro da cidade, pretendia, em linhas gerais,

disciplinar e controlar os usos do espaço urbano por meio da abertura de grandes e

largas avenidas, o que facilitaria o controle de possíveis barricadas e outros “distúrbios

urbanos”.

Nesse sentido, colocando as devidas ressalvas sobre a contextualização de sua

análise, aborda o “princípio social higienizador” de herança haussmanniana, orientado

por discursos sanitaristas, estéticos e militares, e inclina esta reflexão ao caráter

visivelmente segregador que marcam as atuais modificações urbanas que ocorrem em

algumas cidades brasileiras.

Segundo o autor, as intervenções no tecido urbano retratam a lógica de

transformações do patrimônio cultural em mercadoria – que têm guiado as políticas de

restauração e revitalização “que tanto pode referir-se à reabilitação de casarios antigos

como pode englobar construções totalmente novas” -, como observou em sua etnografia

sobre o caso do Bairro do Recife antigo, a “Paris pernambucana”, onde o novo traçado

urbano executado anunciava além da adesão ao modelo urbanístico francês, mas

também a construção da moderna paisagem do bairro a partir de uma intenção

pontualmente situada:

Esses objetivos sinalizavam, desde o início, o quanto a proposta estava voltada ao

incremento da economia local, pretendendo tornar o Bairro do Recife um complexo

mix de consumo e entretenimento. De igual modo, a noção de um espaço de

“espetáculo urbano”, que iria caracterizar todo o plano, é um indicador importante

da presença de uma política de gentrification, na medida em que confirma o foco

predominantemente econômico das ações previstas, bem como o tipo de uso

esperado para cada uma delas, a partir de redefinições da noção de valor cultural

(LEITE: 2002: p. 118)

O foco direcionado pelos investimentos públicos e privados a determinados

espaços da cidade trazem à luz tensões e instabilidades entre as negociações e projeções

das forças hegemônicas sobre o espaço urbano. Estas intervenções no tecido/cotidiano

da cidade tropeçam em espaços já qualificados pelas potencialidades das

experimentações vivenciadas diariamente e que desviam ou confrontam à ordem urbana

“oficial”.

No decurso do desenvolvimento e processo de intensificação do capitalismo,

onde algumas cidades brasileiras adequavam-se aos anseios e “necessidades”

desenvolvimentistas, passava-se, então, a conceber cidades que “oferecessem serviços,

que concentrassem as unidades produtivas, que congregassem o mercado consumidor e

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que organizassem e disciplinassem uma massa trabalhadora”, como nos mostra Rafael

Sêga (2000) ao analisar os melhoramentos urbanos como estratégias de dominação

social que pretendiam inserir à paisagem urbana a integração e assimilação de valores

modernos em forma de projetos civilizatórios e higienistas.

Os discursos dissonantes que conectam as políticas de higienização com as

políticas de segurança apontam para “o papel do Estado como instrumento de

intervenção ideológica” na afirmação de uma concepção de cidade que se construía

enquanto lócus da ordem, do progresso e da consolidação do poder burguês, onde

segundo Sêga (2000), as contradições presentes nos cenários urbanos “em

desenvolvimento” refletem espaços urbanos marcados por opressões e condições

desiguais de habitação.

Com isso, o autor inclina sua reflexão ao olhar de Henri Lefebvre (2006) sobre a

cidade encarada como expressão mais avançada da dominação social e meio de

transmissão capitalista, e pontua que “os melhoramentos faziam parte da construção

dessas barreiras, pois as classes dominantes, ao se apoderarem do aparelho do Estado,

passavam a remodelar a cidade de acordo com seus anseios e interesses próprios”.

Segundo Lefebvre (2006), a industrialização e urbanização como características

da sociedade moderna se desenham em meio a espaços potencialmente conflituosos,

justamente por se tratar do espaço urbano pensado também como cenário político da

utopia contra a lógica de produção de uma cidade a serviço do capital.

A discussão aberta por Lefebvre (2006) se desdobra em uma crítica ao

urbanismo positivista, possibilitando pensar a ruptura com certas tradições consolidadas

no decurso do movimento modernista, que refletia um contexto urbano marcado pelo

impacto de estratégicas de transformações urbanas em algumas cidades brasileiras, onde

as dinâmicas urbanas eram redesenhadas por meio de códigos e valores sociais e

políticos que refletiam interesses estrategicamente localizados.

Este cenário de transformações culturais anunciava a profanação da literatura,

das artes, do teatro, da arquitetura e do uso da cidade, e se tornava palco de entusiasmos

e embriaguez vivenciados pelo novo homem moderno metropolitano. A cidade moderna

de base psicológica elucidada na clássica análise de George Simmel (1973) abrange a

personalidade do homem metropolitano envolto à dinâmica de transformações urbanas e

de preservação da intimidade, que se construía no choque anestesiado com essa nova

cidade que emergia.

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Além do enquadre de fotografias turísticas, a cidade contemporânea se mostra e

se faz também distante de valores racionais e esterilizados que pretendem orientá-la e

ordená-la. Multidão, hibridez, anonimato e alteridade passam a ser pensados como

constituinte do espaço urbano metropolitano em seus devires e experimentações, e

marcam indelevelmente as potencialidades da busca pelo choque com o “outro” que a

vida na metrópole possibilitaria.

Distendendo a reflexão sobre a anestesia produzida pelo choque com a

metrópole e sua áurea moderna apresentado por Simmel (1973), quando pensamos os

contextos urbanos contemporâneos em sua dimensão espetacularizada e idealizada

como território de exibição e exploração cultural, não podemos ignorar que intrínseco às

dinâmicas hegemônicas da gentrificação, coexistem contra-usos, errâncias, riscos,

flanêur, que apontam para outros caminhos por onde podemos pensar e vivenciar a

cidade.

Cidade errante

A cidade pensada enquanto lócus político de experiências, movimentos, trânsito

e circulação se faz em meio a discursos e vivências polissêmicas a seu respeito.

Construídas com base em alicerces hegemônicos – tais como razão, unidade, identidade,

estrutura e ordem -, neste ponto destas elucidações os discursos que moldam a

arquitetura e urbanismo são colocados em questão.

O Elogio aos errantes, esboçado por Paola Berenstein Jacques (2012), me

fornece pistas para pensar a cidade escrita para além dos holofotes, dos roteiros

turísticos, dos patrimônios e dos cartões postais. Uma cidade opaca, escrita em nossas

práticas culturais cotidianas partilhadas no sensível, no imaterial, às “escondidas”.

As reflexões propostas por Pasqualino Magnavita (2008) e Paola Jacques (2012),

partem da valorização das práticas errantes urbanas para uma concepção de arquitetura e

urbanismo que se trace pela multiplicidade, alteridade, e pela diferença, e não enquanto

totalidade e solidez.

As narrativas exploradas por Jacques (2012) colocam em evidência o quanto as

experiências errantes pela cidade e os seus meios “de transmissão e compartilhamento,

podem operar como potente desestabilizador de algumas das partilhas hegemônicas do

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sensível, e, sobretudo, das atuais configurações anestesiadas dos desejos.” (p.11). Com

isso, tais práticas operam como questionadoras do espaço guiado pelo processo de

espetacularização a qual se encontra a cidade contemporânea. (JACQUES, 2012).

O conceito de corpografia urbana utilizado pela autora em sua análise sobre a

experiência corporal das cidades recompõe “o registro de experiências corporais da

cidade que ficam inscritas no corpo de quem as experimentam”. A autora pensa uma

configuração entrelaçada do corpo e cidade, em que “além dos corpos ficarem inscritos

nas cidades, as cidades ficam inscritas e configuram nossos corpos”, uma espécie de

cartografia corporal, que possibilita a apreensão de um olhar sobre a cidade construída,

modificada e apropriada por seus usuários e usuárias.

Através da corpografia, Jacques (2010) busca lançar olhos atentos às marcas que

subvertem e cruzam os caminhos planejados para a cidade, podendo ser pensadas como

fontes de micro-resistências à arquitetura e ao urbanismo que se colocam como

sinônimo de forma e intermediada pela lógica do espetáculo e do capital,

desconsiderando o movimento, os ritmos e fluxos, os corpos que transitam e criam

atalhos, a curiosidade e a pulsante possibilidade de experimentação do corpo e da

cidade.

Outro autor que traz a questão das práticas ordinárias ao pensar o cotidiano

urbano, é Michel De Certeau (2006). Para ele, esses praticantes são os que por meio de

suas experiências pela cidade fazem brotar ruídos dissonantes que provocam dissensos e

questionam o planejamento e a construção da cidade de forma crítica, colocando em

evidência os conflitos inerentes aos espaços urbanos que envolvem a relação do corpo

com a cidade.

Para esta discussão, o autor debruça atenção sobre a Invenção do cotidiano,

dizendo que “a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto

urbanístico dela excluía. A linguagem do poder se ‘urbaniza’, mas a cidade se vê

entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder

panóptico”.

Em uma detalhada descrição do policiamento urbano quando se declarava a

peste em uma cidade no final do século XVII, Michel Foucault (2009) apresenta o seu

funcionamento: uma ideia de inspeção constante, permanente, e que proporcionava um

registro extensivo e detalhado de tudo que ocorria no cotidiano. Era um registro do

patológico (ou a partir dele), registro constante e centralizado, que em seu conjunto,

constituía um modelo de dispositivo disciplinar que respondia a peste com ordem e

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punição, tendo como função desfazer a confusão da doença que se transmite quando os

corpos se misturam e se contaminam.

Esse dispositivo disciplinar dita a cada um/a seu lugar, seu corpo, sua doença e

sua morte. A cidade doente, atravessada pela vigilância, hierarquia e documentação, é

imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre

todos os corpos: é a utopia da cidade perfeitamente governada, onde o exílio do doente

expressa, antes de tudo, o exercício do poder disciplinar.

Segundo Foucault (2009), o Panóptico de Bentham deve ser compreendido a

partir de sua arquitetura e como uma maneira de definir as relações de poder com a vida

cotidiana dos corpos. Consiste em uma arquitetura do poder disciplinar, que poderia ser

utilizada em escolas, prisões, hospitais e outras instituições; uma espécie de mecanismo

pelo qual o poder adquire sua força máxima. No modelo panóptico, a vigilância é

exercida de forma que o corpo vigiado não sabe se está ou não sendo mirado, sabe

apenas que esta possibilidade é constante:

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O

princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma

torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do

anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando

toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,

correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que

a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre

central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um

operário ou um escolar. (FOUCAULT, 2009, p.190)

(Imagem 3. Planta do Panopticon de Benthan)

Michel De Certeau (2006), em outra direção, volta atenção à sociedade

indisciplinada, escrita na profanação dos mecanismos autoritários disciplinares. Em

busca de micro-resistências urbanas, Paola Jacques (2010), em diálogo com o autor,

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parte da análise de zonas de tensão pela cidade. A autora apreende a complexa relação

entre corpo e cidade como um dos caminhos para a busca por “usos cotidianos da

cidade que contrariam os usos que foram planejados” para espaços urbanos marcados

por processos contemporâneos de espetacularização e pacificação. Para Jacques (2012)

a espetacularização urbana:

está diretamente relacionada com a pacificação do espaço publico, [e]

através da fabricação de falsos consensos, busca esconder as tensões que são

inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a própria esfera

pública, o que, evidentemente, esterelizaria qualquer experiência e, em

particular, a experiência da alteridade nas cidades. (JACQUES, 2012, p. 14)

Inspirado pelas narrativas que atentam para a errância urbana como crítica a

cidade contemporânea, trago para a discussão sobre a profanação das ruas, a figura do

flâneur nas vozes de errantes a partir de suas próprias vivências do corpo-cidade por

meio de experimentações sensoriais com o urbano: Baudelaire (1821 – 1867), poeta e

teórico francês, que em suas narrativas poéticas, explicitava e questionava o

planejamento e a construção da cidade denunciando a demolição de bairros em palavras

críticas à reforma e transformação urbana parisiense de meados do século XIX, e Walter

Benjamim (2013), que também teceu um olhar errático sobre a cidade a partir de sua

experiência, narrando, por exemplo, a História de um fumador de haxixe pelas ruas de

Marselha, na França.

Ambos os autores, e também o olhar da arquiteta e urbanista Paola Jacques

(2012), me permitem pensar a investigação da cidade pelo flâneur, que recriado em

Baudelaire, expressa uma mistura de fascínio e reação ao processo de modernização da

urbe, causando o embaralhar de sentidos no contato com a multidão, “um estado de

choque, que pode ser resumido como uma experiência da alteridade radical da cidade.”

(JACQUES, 2012):

O flâneur de Charles Baudelaire era aquele que não se protegia

psicologicamente; justo ao contrário, buscava o choque, buscava a

experiência do choque como Outro, com os vários outros anônimos, a

embriaguez da multidão, a relação entre anonimato e alteridade, que

constitui o próprio espaço público metropolitano. Mais ainda do que isso, o

flâneur se distinguia por sua enorme potência crítica (JACQUES: 2012, p.

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O corpo flaneur em contato com a multidão se apresenta então como um leque

aberto de experiências e possibilidades, que se desdobram pelos caminhos percorridos

no corpo e na cidade, ou, como diz a autora, no “se perder ou se encontrar no meio de

desconhecidos, [...] nas esquivas, deslocamentos de ombros, olhares passantes, toques

errantes”.

Com isso, torna-se possível por esta direção sinuosa apreender a cidade por meio

de registros errantes e a partir de uma perspectiva crítica à arquitetura e ao urbanismo

hegemônicos, considerando o espaço urbano construído pelo movimento, pela

potencialidade das curvas e riscos, pelos seus fluxos, contra-fluxos, usos e contra-usos

que tornam turvas a nova iluminação urbana acesa pela gentrificação. (LEITE, 2002) .

Notas

1. Disponível em:< http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/162767-arte-ou-

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