roupas e fios de conta

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  • 7/30/2019 ROUPAS E FIOS DE CONTA

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO SOCIOLOGIA

    AXS E ILEQUSRITO, MITO E A ESTTICA DO CANDOMBL

    Patrcia Ricardo de Souza

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emSociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor emSociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi.

    So Paulo, 2007

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    Resumo

    O candombl uma religio em que a experincia visual muito valorizada. Essa experinciaganha mais amplitude e fora durante as festas pblicas, ocasies em que a religio celebrada. Nesses momentos, de maneira muito especial, e tambm no dia-a-dia, a dimensoesttica um aspecto central. A beleza nessa religio uma inteno e uma busca

    permanente. com beleza que se agradam os orixs, e agrad-los dever religioso. A beleza,no entanto, no um fim em si: ela est sempre ligada ao sentido. Este trabalho trata dadimenso esttica do candombl em seu aspecto mais visvel e plstico, e dos sentidos queessa dimenso revela.

    Palavras-chave: candombl, religies afro-brasileiras, esttica, mito, rito.

    Abstract

    Candombl is a religion in which the visual experience is very intense. This experience ismuch deeper and stronger during the public festivals when the religion is celebrated. In thesemoments, in a very special way, and also daily, the esthetic dimension is a central aspect. The

    beauty in this religion is a purpose and an permanent search. By means of beauty peopleplease the orishas and to do that is a religious obligation. The beauty, meanwhile, is not anitself intention it's always attended with the signification. This work is about the candombl'sesthetic dimension in it's much manifested and plastic face and about the significations that

    this dimension brings out.

    Key-words: Candombl, African-Brazilian religions, esthetic, myth, cult.

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    Ax, do iorub aso: roupa, vesturio, paramento.Ilequ, do iorub lk: contas, fio de contas, colar ritual.

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    Para Julia e Anbal, meus pais

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    Sumrio

    Agradecimentos............................................................................................................6

    Introduo..................................................................................................................... 8

    1. Ilequs: os colares rituais .......................................................................................121.1. Os colares fora do contexto ritual ..........................................................................................131.2. Os colares na religio.............................................................................................................14

    1.2.1. Os colares na umbanda ............................................................................................141.1.2. Os colares no candombl .........................................................................................161.1.3. Os colares no tambor-de-mina.................................................................................40

    2. Axs: trajes dos adeptos.........................................................................................47

    2.1. O traje do dia-a-dia.................................................................................................................502.2. O traje de festa........................................................................................................................62

    2.2.1. O traje de baiana ......................................................................................................71

    2.2.2. A baiana do candombl............................................................................................763. Ax-orix: roupas e adereos dos deuses...............................................................89

    3.1. Orix odara.............................................................................................................................893.2. Trajes e ferramentas dos orixs..............................................................................................95

    4. Fazendo axs: costura e ns ................................................................................. 127

    4.1. Os criadores dos trajes..........................................................................................................1274.2. As zeladoras dos axs...........................................................................................................132

    5. Enfeitando os espaos: o barraco e os laos....................................................... 136

    5.1. O templo e as marcas da autoridade.....................................................................................136

    5.2. Reafirmando as origens........................................................................................................142Concluso................................................................................................................. 145

    Caderno de imagens ................................................................................................. 151

    ndice e crditos das fotos ........................................................................................168

    Glossrio................................................................................................................... 173

    Referncias bibliogrficas ........................................................................................178

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao CNPq pela bolsa que financiou parte dessa pesquisa.

    A Reginaldo Prandi, meu orientador, por todos esses anos de trabalho, pela

    generosidade intelectual, pela confiana depositada, pela amizade e alegria, pela minha

    descoberta do mundo acadmico.

    Aos professores e amigos Teresinha Bernardo e Armando Vallado pelas observaes e

    sugestes importantes em meu exame de qualificao.

    minha famlia, em especial a meus pais Julia e Anbal, sem quem absolutamente

    nada teria sido possvel. A meu irmo Andr, interlocutor de todas as horas, parceiro na

    jornada acadmica, pelo incentivo e rigor intelectual de sempre.

    A todo o povo-de-santo de diversos lugares, aos venerveis pais e mes-de-santo do

    candombl de So Paulo, que sempre me receberam to bem em suas casas. Em especial a Pai

    Carlito de Oxumar, Pai Carlinhos de Oxum e Me Carmem de Oxum. A Pai Prcio de

    Xang, Pai Francelino de Xapan e Me Neide de Obalua, cujos terreiros aparecem nas

    imagens que acompanham este trabalho.

    Agradeo de modo especial ao Pai Armando Akintund de Ogum, babalorix da Casa

    das guas, e aos seus filhos-de-santo pela pacincia com minhas infindveis questes, fotos e

    observaes, mas sobretudo pela convivncia e oportunidade de aprender com eles. Dvidas

    que nunca poderei pagar.

    Ao Ebmi Jurandir Cseny pelo incentivo e por ceder imagens. A Carlos Globo, com

    quem aprendi a fazer fotos digitais, e que esteve comigo em inmeras festas, incentivando

    meu trabalho e produzindo algumas das imagens aqui presentes.

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    Aos meus amigos queridos que colaboraram, das mais diversas maneiras, para que este

    trabalho chegasse a termo: Alessandra, Rosangela, Cristina, Nia, Jnior, Denise, Rubens e

    tantos outros. Grata pelo carinho e apoio.

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    Introduo

    O candombl uma religio em que se celebra por meio da festa danante (Amaral,

    1992; 2002). na festa com msica, dana e comida que os orixs vm Terra conviver com

    seus filhos humanos, reabrindo as portas de comunicao entre o mundo sagrado em que

    vivem os deuses e espritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre

    esses mundos foi fechada e s reaberta por curtos perodos, exatamente durante as

    celebraes religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e

    participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se

    confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e danam coreografias que

    relembram aventuras narradas por seus mitos.

    A festa o momento em que a experincia visual do candombl mais intensa, em

    que sua dimenso esttica se revela com mais fora e maior amplitude. Beleza para ser vista e

    gozada, tanto pelos que so da religio como pelos demais, pelos olhares de fora, olhares dos

    que no so adeptos mas comparecem aos terreiros para fruir de sua beleza, para apreciar o

    que tambm pode ser tido como um espetculo (cf. Santos: 2005). Beleza fundamental na

    religio dos orixs. uma busca incessante, uma inteno que est marcada no mito e que

    perpassa e estrutura o ritos.

    "A arte no apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimularo que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algode esttico" (Durkheim, 1989: 455).

    O culto, o rito do candombl, carregado de uma beleza proposital e necessria. Os

    deuses se agradam do que bonito, e agradar os orixs dever religioso. Mas, aqui a beleza

    no um fim em si mesmo. Ela tem necessariamente uma finalidade e um sentido que se

    relaciona seja aos orixs e seus mitos, seja identidade, hierarquia ou organizao interna

    do grupo.

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    do aspecto esttico, em sua manifestao mais aparente, e de seus sentidos, que o

    presente trabalho trata. Optei por fazer um recorte e me ater manifestao esttica em sua

    dimenso plstica, material, visvel, e ao alcance de todos os olhares. Isso exclui dimenses

    estticas importantes como a dana, que foi estudada por Rosamaria Susanna Barbra (2001),

    e a msica, um tema que vem sendo trabalhado por Angela Lhning (1990). Tambm no

    esto aqui tratados os objetos mais estreitamente ligados ao cerimonial mantido em espaos

    secretos do terreiro, aos quais somente iniciados tm acesso, ou seja, os altares e

    assentamentos das divindades.

    No primeiro captulo trato do elemento esttico mais visvel, o mais porttil deles, que

    so os colares de contas, os ilequs. Abordo os colares fora e dentro do contexto ritual,

    procurando os sentidos que eles revelam em termos de identidade e hierarquia no grupo

    religioso, alm do aspecto propriamente mgico.

    No segundo captulo abordo os trajes dos adeptos tanto no cotidiano da religio quanto

    na festa, inclusive jias e outros elementos que compem esses trajes. Analiso seus sentidos,

    plurais, tambm no caso do traje de baiana e seus mltiplos usos, religiosos ou profanos.

    No terceiro captulo trato dos protagonistas desse espetculo, os orixs. Abordo as

    relaes e o dilogo entre a esttica do candombl e o carnaval. Relaciono um traje de cadaorix especificamente e valho-me de um mito de cada um a fim de mostrar a relao entre a

    esttica e a mitologia.

    No quarto captulo cuido da confeco e preparo das roupas e de seus executores.

    No quinto, e ltimo captulo, detenho-me em outros elementos, como o espao fsico

    do terreiro e sua decorao onde a religio acontece como expresso esttica, o que inclui at

    mesmo as comidas sagradas. O objetivo principal entender o sentido do uso da beleza e sua

    manifestao como expresso de religiosidade.

    A pesquisa foi realizada de modo mais sistemtico entre 2001 e 2006, mas desde 1996

    mantive contato com terreiros de candombl na condio de bolsista de iniciao cientfica

    orientada pelo Prof. Reginaldo Prandi, trabalhando no projeto "Os afro-brasileiros",

    financiado pelo CNPq.

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    Ao longo de todo esse tempo participei de inmeras festas e rituais, fazendo

    observao sistemtica, entrevistas e registro fotogrfico. A observao sistemtica realizada

    em municpios da Grande So Paulo foi complementada com visitas a outros estados.

    No Rio de Janeiro visitei uma exposio de colares de candombl realizada na galeria

    Mestre Vitalino e entrevistei o curador da exposio Prof. Roberto Conduru. Na mesma

    ocasio estive no Mercado de Madureira, um local de grande concentrao de lojas de artigos

    para o candombl.

    Em Salvador visitei os terreiros mais antigos, que so em grande medida a origem do

    candombl de So Paulo. Tambm fui a museus, feiras e lojas de artigos religiosos, e realizei

    entrevistas com adeptos, no adeptos e turistas que vo a Salvador tambm com o objetivo de

    conhecer o candombl.

    Empreendi tambm visitas a diversas lojas de artigos religiosos em So Paulo e

    Grande So Paulo, por vezes acompanhando as filhas-de-santo em suas interminveis buscas

    por belos tecidos, rendas, fitas, bordados, contas, canutilhos, pedrarias, firmas e tudo o mais

    que a criatividade e a imaginao permitem usar para a confeco de trajes dos filhos-de-

    santo e dos deuses.

    Realizei nesses lugares entrevistas abertas com pais e mes-de-santo, adeptos de todasas categorias, pessoas que simplesmente simpatizam com a religio e a conhecem muito ou

    quase nada. Entrevistei tambm pessoas, religiosas e no religiosas, envolvidas na criao e

    confeco e venda dos trajes e adereos dos adeptos e dos orixs.

    Durante a pesquisa de campo, fui a exposies, espetculos de dana, performances,

    festas em escolas de samba, congressos religiosos, cerimnias ecumnicas e eventos

    relacionados ao universo do candombl e seus orixs. Tudo isso me permitiu conviver com

    diversos olhares e me ajudou na percepo dos sentidos da dimenso esttica do candombl e

    no amadurecimento de muitas das idias que apresento a seguir.

    As religies afro-brasileiras apresentam-se em variadas denominaes, incluindo o

    candombl, o tambor-de-mina, o batuque, a umbanda e outras menos conhecidas. Cada

    modalidade se apresenta estruturada em diferentes ritos ou naes, dependendo da origem

    tnica predominante em sua formao. O centro da presente pesquisa o candombl de nao

    queto, uma das variantes originrias das tradies predominantemente iorubs. Essa

    modalidade , sem sombra de dvida, a mais estudada, a mais conhecida, e a que tem se

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    apresentado como fonte de influncia para as demais. Alm disso, est muito presente no

    processo de expanso do candombl nordestino em direo ao Sudeste, e conta com uma

    produo etnogrfica ampla, permitindo referncias cruzadas com temas que lanam luz sobre

    a questo da esttica. o caso por exemplo, da mitologia dos orixs.

    O estudo sobre o candombl queto, mas lancei mo de informaes sobre outras

    religies afro-brasileiras com o propsito de buscar generalizaes e apontar para

    especificidades que reforam a idia bsica desse trabalho, a de que, beleza e ostentao esto

    no cerne do culto aos deuses africanos. Odara, palavra de origem iorub, que significa ao

    mesmo tempo bonito e bom, um emblema.

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    1.

    ILEQUS: OS COLARES RITUAIS

    Os colares rituais usados pelos adeptos das religies afro-brasileiras so, sem dvida,

    um sinal diacrtico importante da pertena a essas religies. Trata-se mesmo de um elemento

    decisivo e constantemente presente e isso se relaciona igualmente ao fato de que na cultura

    brasileira os colares de contas esto definitivamente associados a essas religies.

    A associao dos colares rituais s religies afro-brasileiras tambm se deve ao fato de

    que os colares integravam, e ainda integram, as diversas culturas africanas que foram trazidasao novo continente, na frica, entretanto, eles eram importantes na distino no de grupos

    religiosos, mas das diversas etnias.

    No segmento religioso afro-brasileiro, especificamente o candombl o grande

    responsvel pela associao entre essas religies e os colares de contas tendo em vista a

    visibilidade que essa religio alcanou. Os colares fazem parte, inclusive, dos esteretipos que

    a televiso e outros meios de comunicao incansavelmente divulgam.

    Para alm do mbito do candombl e das demais religies afro-brasileiras os colares

    de contas so presena marcante no cotidiano brasileiro de um modo geral, no ficando

    restritos ao mbito religioso.

    No candombl, o colar chamados genericamente de fio de contas ou de ilequ, termo

    de origem iorub. Alguns tipos, com forma, material usado e destinao ritual prprios,

    recebem nomes especficos como braj, quel e laguidib. Na umbanda os colares so

    chamados de guias, e no tambor-de-mina, de rosrios.

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    1.1. Os colares fora do contexto ritual

    Conforme diz Solange Godoy (2006: 83):

    "Feito dos mais variados materiais como sementes, conchas, coral, pedras (preciosasou no), vidro, prolas ou metais, o colar de contas existiu desde sempre".

    Nas religies afro-brasileiras, os colares de contas foram observados desde os

    primeiros tempos da religio no pas. Usados inicialmente nas comunidades de culto,

    acabaram por extravasar os muros dos templos, de tal forma que os colares usados nos ritos,

    no cotidiano dos terreiros e em cerimnias religiosas em lugares pblicos, so tambm

    freqentemente vistos fora do contexto ritual.

    Por exemplo, eles podem ser observados adornando o pescoo das tpicas baianas de

    acaraj, que vendem seus bolinhos de feijo fradinho fritos em azeite de dend por toda parte:

    nas ruas das capitais do Nordeste, como tambm de grandes cidades do Sul e do Sudeste.

    Onde quer que estejam, as baianas de acaraj so vistas sempre portando seus muitos colares

    multicoloridos. Parece ser essa marca que lhes d legitimidade.

    Trata-se de algo muito interessante porque, obviamente, nem todas as baianas de

    acaraj espalhadas pelo Brasil so baianas da Bahia, nem tampouco so todas elas adeptas docandombl. Mas de fato o traje que necessariamente inclui os colares que compe esse

    personagem amplamente conhecido, de presena obrigatria at mesmo nos desfiles de

    escolas de samba, em que a ala das baianas um quesito obrigatrio embora no conte pontos

    no campeonato dos desfiles. Carmem Miranda levou a baiana e seus colares para as telas de

    Hollywood e "tornou a baiana internacional" como dizia o samba-enredo da escola carioca

    Imprio Serrano em 1972.

    O traje da baiana, que vemos hoje , no que diz respeito forma, praticamente igual ao

    que as escravas vestiam em meados do sculo XIX, especialmente as escravas de ganho que

    iam para as ruas vender quitutes em seus tabuleiros. Os tempos so outros mas o traje

    permaneceu, inclusive no candombl.

    Um momento importante em que os colares aparecem com fora na vida fora dos

    muros do terreiro no carnaval, e para ficar num pequeno exemplo basta citar o famoso bloco

    afro Il Aiy e o afox Filhos de Gandhy, ambos soteropolitanos. No Il, os colares no so

    parte obrigatria da indumentria do desfile, mas aparecem em diversas formas e nas cores do

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    bloco (verde, vermelho, amarelo e preto). J no Filhos de Gandhy, os colares de contas branco

    e azul intercaladas so parte constituinte da indumentria do afox.

    Carnaval e venda de acaraj so contextos profanos e o uso dos colares rituais no tem

    a necessariamente conotao religiosa ou mgica, o que diferente do uso nos contextos

    litrgicos. Fora do contexto ritual, os colares em geral embora no tenham nenhuma dimenso

    religiosa ou mgica, podem ser usados como elementos mgicos, como ocorre no uso nos

    espelhos retrovisores de automveis. Das mais diversas cores, arranjos, tamanhos e

    procedncias, sua presena bastante difundida e no se restringe aos veculos cujos

    proprietrios so adeptos das religies afro-brasileiras. Aqui o uso do colar tem a propriedade

    de conceder proteo, e no por outro motivo, alis, que catlicos muitas vezes tambm

    penduram teros nos espelhos de seus automveis.

    Em que pese o fato de que essa uma prtica corrente entre os fiis das religies afro-

    brasileiras, possvel afirmar que esse uso do colar uma prtica mais umbandista.

    1.2. Os colares na religio

    Qualquer que seja a religio afro-brasileira, o uso de colares rituais os fios de

    contas ou guias emblemtico. Mudam as formas, as cores e mesmo os significados, mas

    o fio sempre pode ser visto no pescoo dos devotos. Embora o presente trabalho trate

    especificamente do candombl de nao queto, interessante uma apresentao do fio de

    contas tambm em outras modalidades religiosas afro-brasileiras.

    1.2.1. Os colares na umbanda

    A umbanda a religio afro-brasileira mais difundida, ainda que esteja perdendo

    espao (Prandi, 2003). Seus adeptos declarados representam 0,26% da populao, enquanto os

    do candombl somam 0,08% (IBGE 2000). Esse , por si, um motivo para explicar o fato de

    que a maioria dos colares que encontramos em automveis seja de adeptos dessa religio, mas

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    h ao lado disso uma razo que diz respeito prpria constituio da umbanda e do

    candombl.

    Na umbanda os ritos so muito importantes, mas menos complexos do que no

    candombl, como tambm seus repertrios simblico e mtico so menos elaborados, a

    despeito da enorme versatilidade e, portanto, capacidade de transformao, adaptao e

    incluso que essa religio tem. Disso decorre que a umbanda , em comparao ao

    candombl, visivelmente mais simples com relao aos elementos utilizados em seus ritos,

    altares, templos e, igualmente, na indumentria das divindades e adeptos. O que no quer

    dizer que a no se v encontrar rituais e templos grandiosos, altares muito elaborados e belas

    roupas.

    Nesse sentido, exatamente porque no h uma diversidade to grande de elementos

    sagrados a serem manipulados quanto no candombl que os colares, ou as guias como so

    chamados nessa religio, ocupam uma posio de evidncia como elemento portador de poder

    mgico, do qual so revestidos pelo rito. Vejamos o que diz uma sacerdotisa de umbanda:

    "A gente acredita que a guia funciona como um escudo de proteo para o corpo domdium. Ento se vai cair alguma carga, alguma demanda, alguma energia negativa,as guias esto ali para... como um espelho: para segurar a carga. s vezes estoura o fio

    no meio do trabalho, alguma coisa, como pra refletir de volta tambm. Ento elasfuncionam assim" (Me Mrcia de Iemanj).

    Esse forte carter mgico dos colares na umbanda se evidencia tambm pelo fato de

    que eles no podem ser sequer tocados por outras pessoas, estranhas ou no religio. Algo

    que, em geral, no ocorre no candombl.

    , ao meu ver, dessa concepo do colar como um elemento mgico, um amuleto

    mesmo, que advm seu uso to recorrente nos retrovisores dos automveis. A fala de uma

    me-de-santo ilustra essa noo entre os umbandistas:"Eu acho que quase todo mundo que tem carro e umbandista tem uma guia

    pendurada no pra-brisa. proteo pro carro, pra evitar que quebre o carro, que tenhabatida, que seja alvo de olho-gordo, de inveja... pra proteo mesmo" (Me Mrcia deIemanj).

    Aqui a precisa definio de Pierucci esclarece os termos:

    "Chama-se talism o objeto que serve para atrair a boa sorte. (...) Chama-se amuletoaquele objeto cuja finalidade proteger, afastar a infelicidade, repelir a urucubaca, o

    p-frio, a inveja o mau-olhado. Confeccionado ou preparado magicamente com o fim

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    de proteger seu portador das influncias malignas, um amuleto funciona como umaespcie de escudo, um 'preservativo mgico'" (2001: 19, 20. Grifos do autor).

    certo que o colar ritual umbandista no confeccionado e nem concebido

    especificamente como um amuleto, mas essa definio se d atravs da percepo dos fiis e

    tambm pelo uso que fazem do objeto. Um uso bastante difundido, inclusive, porque no

    necessrio que a pessoa seja adepta da religio para ganhar uma guia, ela pode ser

    simplesmente algum que, mesmo tendo outra religio, busca na umbanda e seus guias alvio

    para suas aflies.

    Tudo isso reitera o primeirssimo sentido dos colares nas religies afro-brasileiras que

    o de dar proteo mgica. E esse sentido no se restringe umbanda, pois igualmente os

    adeptos do candombl usam os colares em seus automveis pela mesma razo, mas a ele

    carrega tambm, para alm do carter de proteo, toda uma ampla gama de significados.

    1.1.2. Os colares no candombl

    No se pode perder de vista que os colares, ou os ilequs como so chamados no

    candombl, cumprem tambm o papel fundamental de enfeitar, o que certamente no algosecundrio porque adornar, tornar (mais) bonito por sinal uma busca constante no

    candombl. De todo modo, a principal finalidade do ilequ dizer qual o orix da pessoa,

    dar identidade. Alm do mais eles se destinam tambm a proteger quem os carrega. Magia e

    esttica andam de mos dadas nessa religio.

    H no candombl uma infinidade de tipos de colares. Esses so em geral compridos,

    at a cintura aproximadamente, e so sempre arrematados por um tipo de conta maior,

    arredondada ou cilndrica que recebe o nome de firma. Nas palavras de Raul Lody, "a firmatem funo de firmar o fio de contas arremate de uso mgico religioso. uma espcie de

    concluso do discurso simblico do prprio fio de contas" (Lody, 2003: 242).

    O acabamento do ilequ uma tarefa delicada porque requer conhecimento religioso

    para se saber qual firma usar, e para tanto se leva em conta no somente a que orix pertence

    aquele colar especfico, bem como a posio sacerdotal que aquele que usar o colar ocupa no

    grupo. Exige tambm certa tcnica para que os fios no arrebentem, para que todo o trabalho

    no se perca, alm de ser necessrio muitas vezes bordar contas para que o acabamento fique

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    perfeito. O povo-de-santo costuma reparar muito nos detalhes dos ilequs e em seu

    acabamento. Ouvi mais de uma vez adeptos do candombl dizendo que se deveria ter

    pacincia para fazer um bom acabamento nos colares para que no ficassem "cheios de pontas

    soltas aparecendo, como na casa de fulano".

    Os materiais empregados na confeco dos ilequs so muitos e variam de acordo com

    o orix, a categoria sacerdotal a que pertence o adepto e seu poder aquisitivo, o gosto de quem

    elabora o colar, e tambm, em grande medida, das preferncias do pai ou me-de-santo.

    preciso sempre ter em mente que os pais e mes, babalorixs e ialorixs, so as

    autoridades mximas dentro do terreiro a qual todos devem obedincia e por mais que se

    conquiste, com o passar do tempo, uma certa liberdade de criao tudo passa necessariamente

    pelo crivo deles. Em funo disso pode-se dizer que h um certo estilo em cada terreiro, que

    determinado pelo sumo sacerdote, e seguido pela comunidade, que na prtica marca

    diferenas estticas entre as casas, que so na verdade diferenas superficiais, uma vez que

    estruturalmente no se pode inovar tanto.

    Mas igualmente importante notar que, se perguntados acerca da razo de ser desse

    ou daquele jeito, em geral os sacerdotes recorrem s suas razes, s suas casas me, como um

    modo de legitimar suas opes estticas, e nunca dizem simplesmente que assim porqueassim eles o preferem. Como sempre se d nessa religio, a legitimidade remonta aos mais

    velhos e vontade dos orixs.

    H, entretanto, algumas noes e parmetros que formam e informam, inspiram e

    delimitam toda a criao esttica do candombl e que aos poucos se pode perceber e pontuar.

    Dentre essas est a de que forma e significado caminham estritamente ligados.

    No candombl quase toda forma est, necessariamente remetida a um significado.

    Quase tudo que se v, e que aos olhos menos atentos pode aparentar ser to somente um

    enfeite que como j foi dito tambm muito importante tem um significado, ainda que

    no possa ser imediatamente apreendido. Nada por acaso ou por gosto. Em geral o que

    parece ter exclusivamente a funo de enfeitar portador de algum significado. No

    candombl como nas culturas africanas, "a experincia esttica no se esgota em si mesma,

    pois participa de um sistema em que cada objeto tem funo e finalidade, com relao ao

    sagrado" (Montes, 1999).

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    Identidade

    Quando um potencial adepto se aproxima do candombl, o primeiro passo a consulta

    ao orculo para se saber a qual orix aquele indivduo pertence, qual sua origem mtica.

    Uma vez que se sabe qual o deus particular daquela pessoa, ela receber um colar que a

    identificar como filha do orix, havendo inclusive uma cerimnia para sacralizar o ilequ,

    chamada lavagem de contas.

    Isso refora a idia de que o colar pode ser tomado como o sinal diacrtico da pertena

    s religies afro-brasileiras e ao candombl especificamente. Nas trajetrias de insero dos

    adeptos ele aparece como o primeiro elemento material sagrado com o qual se tem contato.

    H na bibliografia muitos registros da lavagem de contas, o que d testemunho daimportncia desse adereo (Querino, 1938; Bastide, 1973; Lima, 1977; Verger, 1999). Trata-

    se essencialmente de um rito relativamente simples, em que o colar sacralizado por meio da

    lavagem em uma gua em que diversas ervas pertencentes ao orix do fiel, ao seu pai-de-

    santo e ao orix patrono do terreiro, dentre outras, foram maceradas. A partir desse momento

    o colar no ser mais um colar qualquer, mas um ilequ sagrado que de alguma forma, e ainda

    que tnue, liga esse indivduo a seu deus pessoal e comunidade do terreiro.

    Nesse sentido, o ritual de lavagem das contas pode ser visto, como aponta Vivaldo daCosta Lima (1977), como um "rito integratrio", uma vez que ele marca a insero daquele

    aspirante, o abi que alis quer dizer literalmente "aquele que vai nascer" na

    comunidade, algo muito importante, pois como uma vez ouvi de um sacerdote, "quando um

    abi chega, enquanto ele no tem um fio de contas ele no se sente parte". certo, no

    entanto, que essa insero somente se realizar plenamente em termos rituais quando esse

    indivduo passar pelos ritos de iniciao, denominados "feitura-de-santo", o que pode ocorrer

    em pouco tempo, levar anos, ou at mesmo nunca chegar a acontecer.

    Alm do carter integratrio, a lavagem das contas constitui o que se pode chamar de

    o primeiro rito de marcao da identidade do abi. comum na sociabilidade do terreiro

    tentar adivinhar qual o orix da pessoa: os mais velhos so consultados, a pessoa

    submetida a uma srie de perguntas, seus modos so observados, mas a ltima palavra dada

    atravs da consulta que o pai ou me-de-santo faz ao jogo de bzios.

    Saber de que orix o outro permite compreend-lo em profundidade, entender traos

    de seu carter e comportamento, significa de alguma forma poder classific-lo de acordo com

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    categorias pr-estabelecidas (Augras, 1983; Prandi, 1991; Birman, 1995; Segato, 1995;

    Amaral, 2002; Vallado, 2002).

    Isso no significa de forma alguma, no entanto, que todos os que pertencem a uma

    mesma divindade sero iguais, muito pelo contrrio, cada um uma configurao particular

    em que outros elementos tomam parte, mas haver sempre e indiscutivelmente elementos

    muito caractersticos referidos a cada orix. Assim muito comum ouvir num terreiro coisas

    do tipo "Ah, aquele assim mesmo daqui posso ouvir seus passos, tambm, de Ogum n?"

    ou ainda se algum derruba panelas e faz um grande barulho: "Eh, l vem Oi derrubando

    tudo!".

    atravs do ritual de lavagem das contas que o abi travar uma primeira

    aproximao com a divindade de que sua essncia se constitui. Por isso podemos entender a

    lavagem de contas como um ritual de marcao da identidade. Todo o longo processo

    inicitico levar a uma identificao cada vez mais forte e profunda do fiel com seu deus, com

    seu eu profundo, da qual a lavagem das contas constitui o primeiro passo, nas palavras de

    Armando Vallado:

    "A iniciao ao orix pode, com certeza, ser entendida como um processo social,controlado pelo grupo do terreiro, de enfatizao e internalizao de determinados

    padres de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com oorix que considerado seu pai ou sua me como uma ligao ntima e pessoal"(Vallado, 2002: 153).

    Num mito sobre a inveno do candombl, os colares aparecem como elemento

    importante da identificao dos fiis com seus deuses, e o momento em que os recebem so

    marcos dessa ligao. Diz esse mito que, aps a separao entre o Ai, a Terra dos humanos, e

    o Orum o Cu dos orixs, Olorum, o Senhor do Cu, encarregou Oxum que gostava muito de

    vir Terra brincar com as mulheres, de preparar os mortais para que recebessem em seus

    corpos os orixs, quando esses quiserem vir conviver novamente com os humanos.

    "Oxum fez oferenda a Exu para propiciar sua delicada misso/ ... Veio ao Ai juntouas mulheres sua volta,/ banhou seus corpos com ervas preciosas,/ cortou seuscabelos, raspou suas cabeas/ pintou seus corpos./ ... Vestiu-as com belssimos panos efartos laos/ enfeitou-as com jias e coroas./ ... O colo cobriu com voltas e voltas decoloridas contas/ e mltiplas fieiras de bzios, cermicas e corais" (Prandi, 2001: 527).

    Para que a ligao com o orix se faa preciso, nas palavras de Roger Bastide,

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    "que exista no colar um certo poder de atrao da fora divina, uma simpatiapreestabelecida; preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atrao,sem o que a participao no poder se estabelecer" (Bastide, 1973: 367).

    Essa fora de atrao se concretiza por meio da manipulao mgica, a sacralizao docolar, e igualmente pelo uso do material correto para cada deus em sua especificidade, uma

    vez que a cada orix corresponde um tipo e cor de conta e, dependendo do orix, da

    criatividade daquele que elabora o fio e do poder aquisitivo do filho-de-santo, ele poder

    conter ainda outros materiais.

    Tudo isso aponta para uma "propriedade", por assim dizer, do ilequ, que a de

    constituir, e, ao mesmo tempo expressar, a identidade do adepto. Um filho de Ogum na nao

    queto, por exemplo, vai usar colares de contas na cor azul-escuro. Pelo colar ser reconhecidocomo filho de Ogum, deus do ferro fundido, azul-escuro a cor do minrio de ferro, elemento

    do orix. Sabe-se, alis, que a malaquita tem de fato essa cor.

    Uma passagem de Pierre Verger em um texto que trata da viagem que ele e Roger

    Bastide fizeram a frica em 1958 traz o seguinte relato, que mostra com beleza e preciso o

    carter de identidade e integrao de que esto impregnados os colares de contas no

    candombl:

    "Pelo fato de sua consagrao ao culto de Xang, Bastide tinha recebido na Bahia umcolar de prolas de vidro vermelhas e brancas alternadas, cores simblicas de seu deus.Esse colar era considerado por Bastide um 'passaporte' que o creditava a identificavacomo 'filho de Xang' junto aos seus correligionrios africanos."Isso, mais do que sbios discursos, serviu efetivamente de lao entre ele e diversassociedades (egbe) formadas pelas pessoas dedicadas a Xang em diversas aldeias dafrica" (Verger, 2003:47).

    Usar ilequs significa, de algum modo, por mais tnue que seja, fazer parte do grupo

    religioso e ter uma identidade mtica prpria.

    Certa vez, assisti a uma festa em que um pai-de-santo de outra casa estava sendo

    confirmado em um cargo importante que havia recebido naquele templo. Tratava-se de uma

    festa esplndida como a ocasio demandava, e a certa altura Ogum o orix dono da cabea do

    babalorix e patrono daquela casa, incorporado no sumo sacerdote, danava em homenagem

    ao pai-de-santo que ora se confirmava como um importante oloi (algum que tem um ttulo)

    quando tirou um dos colares que carregava e o deu de presente ao sacerdote. Ele agora entrara

    para aquela famlia.

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    Receber um ilequ de presente sinal de estima e reverncia; comum quando h

    uma iniciao, que aqueles que esto passando pelo rito confeccionem fios de seu orix

    pessoal para presentear as pessoas que ajudaram em sua obrigao. Os colares de orixs

    menos comuns so os mais desejados e quem ganha um colar daquele que est sendo iniciado

    faz questo de mostr-lo a todo o grupo. Trata-se de um gesto muito significativo, uma forma

    de agradecer, fazendo com que os presenteados participem do ax de seu prprio deus.

    Igualmente atravs do reconhecimento pblico, motiva toda a comunidade a perceber e

    valorizar o gesto daqueles que se colocaram a servio.

    Os colares que protegem, identificam e integram tambm indicam a que categoria

    sacerdotal cada um pertence. So emblemas de identidade e hierarquia.

    Hierarquia

    A hierarquia do candombl, a diviso sacerdotal do trabalho, sua organizao em

    cargos atribudos individualmente para o exerccio de funes rituais bastante complexa

    (Lima, 1977, Dantas, 1988, Prandi, 1991). Convm retomar sucintamente esse assunto a fim

    de expor a relao entre a hierarquia religiosa e os colares rituais.

    O candombl se constitui em comunidades denominadas terreiros. Essas casas, por sua

    vez, se organizam de acordo com uma rgida hierarquia estruturada pelo tempo de iniciao e

    a categoria sacerdotal a que cada um pertence e a qual no se pode escolher nem tampouco

    mudar (Lima, 1977).

    So duas as grandes categorias sacerdotais: a daqueles que manifestam os orixs em

    transe, os chamados rodantes, e aqueles que no entram em transe, os no-rodantes. Os

    rodantes se dividem em ias (filhos-de-santo) e ebmis (irmos mais velhos). Os no-rodantes

    em ogs e equedes. Os diversos olois, literalmente os "donos dos cargos", so homens e

    mulheres que ocupam uma vasta gama de cargos rituais ou honorficos. A cada categoria, no

    entanto, corresponder um tipo de insero na hierarquia da comunidade.

    A hierarquia baseada na idade de iniciao um princpio das sociedades africanas em

    que os mais velhos so profundamente respeitados por sua sabedoria. Nessas sociedades

    grafas so eles os depositrios do conhecimento e a eles se deve reverncia (Prandi, 2001b).

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    Na religio dos orixs os "mais velhos no santo", chamados ebmis, so igualmente

    reverenciados. O que conta, para tanto, o tempo de iniciao e o devido cumprimento das

    obrigaes rituais. Assim, aquele que se aproxima da religio e ainda no iniciado pertence

    categoria dos abis. Esse nome traz tona a percepo de que a iniciao representa um

    novo nascimento, o nascimento para uma nova vida (Bastide, 1961, Prandi, 1991, Eliade,

    1999, Vallado, 2002).

    Aqueles que j foram inciados so chamados ias e ocupam uma posio

    intermediria, se, por um lado, no so mais abis, por outro, ainda no cumpriram todas as

    suas obrigaes rituais, e devem reverncia a seus mais velhos.

    O longo ciclo inicitico se completa aps sete anos e o cumprimento das obrigaes de

    um, trs e por ltimo a de sete anos, em que o ia finalmente se torna um ebmi e atinge a

    senioridade sacerdotal na hierarquia do terreiro. Essa passagem garante-lhe uma srie de

    prerrogativas, e expressa simblica e esteticamente de muitas maneiras.

    A categoria sacerdotal dos no-rodantes tem um modo diverso de insero. Os ogs e

    equedes so escolhidos, o termo usado no candombl suspensos, pelos orixs em transe e

    enquanto no se iniciam so igualmente abis, a despeito de estarem aprendendo com aqueles

    que exercem as mesmas funes o seu futuro papel no rito. Quando se iniciam so includosimediatamente na categoria de ebmis, mas, diferente dos ebmis rodantes, esses, com

    algumas famosas excees, nunca podero abrir seus prprios terreiros e, embora gozem de

    muito prestgio na comunidade, assumindo inclusive por vezes uma postura arrogante, estaro

    sempre submissos ao pai ou me-de-santo.

    Essa hierarquia complexa e rgida est em constante movimento em funo das

    diversas obrigaes que sempre ocorrem e que acarretam mudanas na distribuio do poder.

    A possibilidade de ascenso no interior do grupo religioso algo significativo nessa que ,como j foi dito, uma "religio rica de adeptos pobres" que em sua maioria encontram nela

    um espao de realizao conquistado a duras penas, tendo em vista que as obrigaes so

    sempre caras e, para sua realizao, impem sacrifcios e privaes ao fiel que no mede

    esforos para agradar aos deuses.

    A hierarquia o tempo todo permeada por tenses. H no seu interior uma disputa de

    poder entre os filhos e nessa disputa cada detalhe pode ser motivo para que rivalidades e

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    alianas sejam feitas e desfeitas. Nessa intricada rede, as expresses estticas do poder

    sacerdotal ganham uma dimenso que no se pode supor num primeiro momento.

    Uma vez vi um filho-de-santo, com aproximadamente dois anos de iniciado, todo

    enciumado de uma abi da casa. Ela fora suspensa equede do orix do pai-de-santo. Ao

    perceber que o colar da outra tinha como firma um pequeno coral, que considerado um

    material nobre, ele disse em tom irnico: "Poderosa, hein, iai!"

    A cada momento da trajetria religiosa corresponde um tipo de colar. Observando os

    adeptos em uma festa pode-se perceber claramente atravs dos tipos de ilequs que usam em

    que ponto da hierarquia esto situados; nesse contexto privilegiado "a soma das escolhas de

    cada membro da comunidade, segundo os limites do culto, resulta em uma curadoria coletiva

    da coleo de colares do terreiro" (Conduru, 2002).

    Os abis so identificados por usarem poucos fios de uma nica volta e sem nenhum

    enfeite. Comumente esses tm apenas o colar de contas de seu orix principal, o branco de

    Oxal, orix da criao, s vezes tambm de seu orix secundrio, chamado adjunt, o do

    orix patrono daquela casa e mais algum que eventualmente lhe seja permitido.

    Muito diferente so os ias, que carregam fios de vrias voltas; em geral usam ilequs

    de muitas voltas de seu orix principal, do secundrio, adjunt, de Oxal, dos orixs de seupai ou me de santo, e tambm ainda que apenas um fio simples, dos orixs de seus "irmos

    de barco", aqueles com quem foi iniciado junto. Todos esses tambm sem nenhum enfeite. O

    nmero de "pernas", que como se chama cada uma das voltas de um colar, vai depender do

    orix em questo e quem determina isso o pai ou me-de-santo, para tal deciso leva-se em

    conta o nmero do orix no jogo de bzios.

    Independentemente do nmero de pernas dos colares o ia invariavelmente usa muitos

    fios o que provoca incmodo porque tantos colares juntos somam peso considervel e

    atrapalham durante a dana. Em algumas casas os ias costumam polvilhar talco nas firmas

    dos colares, a parte que fica em contato direto com a nuca, para tentar amenizar o desconforto

    causado pelo calor e o atrito dos ilequs com a pele. Obviamente ningum gosta desse

    desconforto, mas os adeptos agem como se esse incmodo, esse sofrimento, fizessem parte da

    condio de ia. Subjaz aqui a noo recorrente no candombl de que "ia tem que sofrer".

    Todo o processo inicitico, alis, marcado pela imposio de sofrimento ao corpo;

    dentre outras coisas, a pessoa dorme em esteiras sobre o cho duro, toma banhos frios, come

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    com a mo, tem seu cabelo raspado e sua pele perfurada em diversos pontos. Alm disso o ia

    tem que andar de cabea baixa, deitar-se no cho para saudar o pai ou a me-de-santo, e

    seguir uma etiqueta bastante rgida no que diz respeito ao trato como os iniciados a mais

    tempo.

    Os adeptos costumam zelar bastante para que as regras que dizem respeito hierarquia

    sacerdotal sejam estritamente cumpridas e esto sempre preocupados com isso. Conversas

    sobre o tema "quem toma beno de quem", para ficar em um pequeno exemplo, so

    constantes, alm, claro, das reprimendas queles que por alguma razo cometem qualquer

    deslize.

    A importncia de se viver cada fase da experincia inicitica muito enfatizada pelo

    povo-de-santo, uma vez que aqui o aprendizado se d por meio da observao e repetio.

    Nessa religio de tradio oral e segredo, a curiosidade no bem vista e at mesmo uma

    pergunta simples pode causar problemas. Afirma-se o tempo todo que no h outro meio de se

    aprender e ser um bom filho-de-santo, "verdadeiro conhecedor das coisas do orix" sem

    passar inclusive pelo relativo sofrimento que esse longo processo inicitico implica.

    A valorizao positiva do sofrimento, no entanto, pontual, diz sempre respeito ao rito

    e no faz parte da viso de mundo do povo-de-santo. Para os adeptos do candombl osofrimento no um valor, a idia de ascese puritana inconcebvel assim como a negao do

    mundo como o lugar do pecado. Muito pelo contrrio, o candombl valoriza o mundo como

    espao de realizao e, como bem mostrou Rita Amaral, diferente das religies crists, nega o

    pecado e vive o que ela chamou de "tica da felicidade urgente" (Amaral, 1992, 2002: 75).

    As contas e outros materiais de que so feitos os colares no so baratos, ainda mais

    porque so grandes as quantidades usadas. Ento muitas vezes o nmero de voltas dos ilequs

    tambm determinado pelo poder aquisitivo do fiel, que nunca deixar de fazer enormeesforo para ter tudo que sua iniciao requerer ainda que para isso sejam necessrios anos de

    economia e a ajuda de irmos-de-santo e outros amigos e familiares. Quando ainda for

    necessrio fazer um colar com menos voltas do que seria a princpio determinado, a deciso

    no aleatria, procura-se sempre um submltiplo do nmero do orix. Por exemplo, se o

    nmero do orix for doze, como o caso de Xang, na impossibilidade de se fazer um fio

    com doze voltas se far um de seis, ou mesmo quatro.

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    O Quadro 1 indica o nmero de voltas que um colar dever ter na nao queto de

    acordo com o orix, e com a sua posio na constelao pessoal do indivduo, ou seja, a de

    orix principal ou adjunt.

    Quadro 1 A quantidade de voltas dos colares

    Orix Nmero de voltas se orixprincipal

    Nmero de voltas se orixsecundrio (junt)

    Exu 14 7

    Ogum 14 7

    Oxssi 9 6Ossaim 9 7

    Logum Ed 16 8

    Omulu 11 7

    Nana 9 6

    Oxumar 11 6

    Eua 9 6

    Xang 12 6

    Oi 9 7

    Oxum 8 5

    Ob 9 6

    Iemanj 9 8

    Oxagui 8 6

    Oxal 10 8

    Segundo etnografia na Casa das guas

    Outras adaptaes so feitas pelo mesmo motivo, para tanto se lana mo de muita

    criatividade e capricho, tomando o cuidado de nunca mudar o que essencial na composio

    dos colares. Um exemplo desse tipo de adaptao que ocorre com freqncia no caso de

    orixs que usam contas de mais de uma cor; as contas rajadas e bicolores so ainda mais caras

    do que as simples e nesse caso podem ser substitudas por contas simples, nas cores dos

    orixs, dispostas alternadamente. Assim se pode ver um fio do orix Omulu cujas cores so

    vermelho, preto e branco tanto de contas rajadas nessas cores quanto de contas vermelhas,

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    pretas e brancas alternadas, sem que isso cause qualquer problema para o adepto, ou desperte

    a ira do deus.

    Os ias tambm usam no pescoo um outro adereo, que no exatamente um colar.

    Feito de palha-da-costa tranada e bordada com contas da cor de seu orix principal, termina

    em uma espcie de vassoura chamado moc (do iorub, minha corda). O moc usado para

    puxar o ia em transe e conduzi-lo. uma pea de uso exclusivo do ia. Ele a recebe em sua

    iniciao e a deixar de usar quando completar seu ciclo inicitico na obrigao de sete anos,

    simbolizando a liberdade de movimento do seu orix. Segundo os sacerdotes entrevistados, o

    moc simboliza esse perodo de maior submisso do ia tanto ao orix, o ia entra mais em

    transe do que o ebmi, quanto aos mais velhos e, igualmente, ao pai ou me-de-santo.

    Outro colar muito importante que marca a submisso e a relao profunda do iniciado

    com seu orix o chamado quel. Trata-se de um colar disposto em formato de gargantilha,

    de contas que so sempre exclusivamente do orix principal da pessoa, de vrias voltas,

    truncado com firmas. Podem ainda ser de bzios, no caso de Oxumar e Omulu, ou ferro para

    um Ogum especfico, mas invariavelmente a prerrogativa da confeco do sumo sacerdote

    do terreiro, que pode eventualmente ser ajudado por pessoas da alta hierarquia. , dentre

    todos os ilequs, talvez aquele cuja sacralidade seja mais densa posto que nem mesmo aquele

    que o carrega deve toc-lo com freqncia.

    O quel era originalmente na frica um colar especfico do orix Xang. No Brasil

    ganhou outra atribuio, talvez uma conseqncia de ser Xang o orix cultuado na cidade de

    Oi, regio de onde saram as fundadoras do candombl no Brasil (Verger, 1981). Tanto que

    esse o orix patrono do terreiro tido como o mais antigo do Pas, a Casa Branca do Engenho

    Velho, em Salvador.

    O quel usado obrigatoriamente na feitura e tambm por ocasio das diversasobrigaes pelas quais o adepto passa ao longo de sua trajetria, sempre marcando esses

    momentos de passagem em que esse est ligado de modo muito prximo a seu orix. To

    importante o quel que ele s usado nas obrigaes em que se faz sacrifcio de animais de

    quatro patas, as chamadas obrigaes grandes.

    Nos perodos de uso do quel o ia fica impedido de fazer inmeras atividades sob

    pena de desagradar sua divindade, que pode se ressentir de algum ato em falso; alm do que a

    necessidade do cumprimento de todas as obrigaes relativas ao quel algo sobre o qual

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    toda a comunidade adverte o fiel. Exemplos de prescrio so a abstinncia sexual, regime

    alimentar apropriado, obrigatoriedade de dormir em esteira, de vestir-se de branco cobrindo a

    cabea, impedimento de se sentar em cadeira, e mesmo no nibus, metr e at no escritrio

    etc. Uma restrio importantssima que durante o uso do quel o orix mudo. O tempo de

    uso do quel aps a iniciao e as obrigaes varia de acordo com a casa, com o orix e com a

    categoria sacerdotal, podendo ir de uma semana a at trs meses. O quel em muitas casas

    chamado de "gravata do orix".

    Ainda durante o perodo de uso do quel, logo aps a sada da iniciao, ocorre o ritual

    do pan em que "os ias executam simbolicamente todas as atividades da vida corrente"

    (Verger, 1999: 110), como que se reeducando para a regressar vida secular.

    Ao trmino do tempo de uso do quel a retirada do colar a ocasio em que o orix

    manifestado vai dar o seu il, vai emitir pela primeira vez a sua saudao, o som pelo qual

    ser reconhecido quando vier em terra na cabea daquele adepto. Esse momento marca, como

    me afirmou um sacerdote "o fim do silncio da criao da nova vida que agora se manifesta

    publicamente, tal como o beb que chora ao vir ao mundo".

    Os ebmis que constituem a mais alta categoria sacerdotal, so os que possuem os

    colares mais elaborados do candombl. De acordo com o princpio da antiguidade, queassocia tempo a sabedoria, quem mais velho tem mais conhecimento e portanto maior

    liberdade, seja dentro do espao do terreiro em que pode transitar livremente por todos os

    quartos sagrados, seja no acesso aos ritos, como tambm liberdade criativa.

    "O saber ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar oconhecimento, transmutando mitos em ritos, prticas e objetos. Quanto maisconhecimento, tanto mais ritos, prticas e objetos" (Lemos, 2002).

    Embora tenham, ou devam ter, relativo domnio e conhecimento ritual os ebmis

    nunca esto livres de cometerem erros e serem censurados, freqentemente em pblico. Uma

    vez ouvi um pai-de-santo conversando com seus filhos acerca das falhas que ele tinha notado

    na ltima festa dizer que havia ebmis que sofriam da "sndrome do fio truncado". "Vocs

    sabem o que isso? Funciona assim: um filho vira ebmi, ganha um fio truncado e sai por a

    achando que pode fazer o que lhe d na telha! No bem assim, no..." O fato desse

    sacerdote se referir a essa relativa autonomia da categoria dos ebmis como a "sndrome do

    fio truncado" reitera o quo emblemticos so esses colares.

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    Os ilequs muito elaborados e enfeitados dos ebmis utilizam uma ampla gama de

    materiais, dentre esses o principal so as miangas que podem ser de vidro translcido ou

    leitoso. A diversidade de materiais, alis, algo que vem aumentando com a expanso da

    indstria produtora de peas para bijuteria, e o aumento das importaes nesse segmento.

    Segundo me contou certa vez Reginaldo Prandi, na impossibilidade de adquirir miangas, os

    adeptos da santera em Cuba, num perodo de importaes muito restringidas pelo governo,

    chegaram a usar a cobertura de plstico colorido dos fios de telefone cortada em pedacinhos

    para confeccionar os fios de seus orixs.

    Quanto mais peas importadas das diversas origens melhor. A criatividade sempre

    acrescenta novas possibilidades, e vem somar-se ao desejo de ser original e criativo de tal

    forma, que atualmente comum ver fios de ebmis intercalados com coraes, peixinhos,

    raios e muitos outros elementos que possam relacionar-se ao orix a que o determinado colar

    pertence. Coisa que, como se pode observar nos registros mais antigos, no era comum.

    Mais comum e recorrente , e foi desde muito tempo, o uso de materiais importados da

    frica, como os corais, o monjol, o segui, que um tipo de canutilho azul utilizado para o

    orix Oxagui; o laguidib, que so lminas de chifre de bfalo, usado para Omulu; o

    chamado laguidib branco, que so lminas de osso tambm utilizadas para Oxal e Oxagui;

    bzios, alm de marfim, mbar, ferro (para Ogum), e outros tantos tipos de pedras e materiais,

    como dente de animais encastoado, casca de coco, pequenas peas em madeira, conchas,

    prolas etc. Ou seja, tantos quantos materiais a imaginao, a criatividade e o desejo de

    agradar aos deuses permitir.

    Grande parte desses artefatos so importados da frica e podem ser encontrados em

    casas que vendem artigos para umbanda e candombl. H muitas dezenas de locais de

    comrcio de materiais para umbanda e candombl em So Paulo e, embora o povo-de-santo

    tenha uma complexa rede de comunicao que faz com que sempre se saiba o que comprar e

    onde, por vezes quando podem as pessoas vo ao que talvez seja o maior mercado de artigos

    para as religies afro-brasileiras que o Mercado de Madureira no Rio de Janeiro.

    As contas de vidro translcido ou leitoso so compradas em So Paulo nas muitas

    lojas da rua Vinte e Cinco de Maro ou da ladeira Porto Geral. Atualmente grande parte das

    contas provm de Taiwan ou da China, mas ainda uma parte expressiva delas, e costuma-se

    dizer que as de melhor qualidade, so importadas da Repblica Tcheca.

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    J as outras peas de acrlico, vidro, madeira, loua, plstico etc. tm origens variadas

    e muitas, inclusive, so de fabricao nacional. interessante notar que, como me afirmou um

    sacerdote, " chique" entre o povo-de-santo dizer que as coisas so importadas, sinal destatus

    que eles gostam de exibir, como pude observar, sempre dizendo que se trata de "material

    importado". De todo, o modo o que realmente preocupa os fiis que sejam a conta e o

    material certos, e para tanto se empreende muito esforo e dinheiro tambm, porque quanto

    mais raras e difceis de encontrar, tanto mais caras sero as miangas.

    Dentre os adeptos do candombl sinal de muita distino e prestgio ter colares de

    ebmi. Se por alguma razo vo visitar uma outra casa, eles o fazem portando seus fios mais

    importantes, elaborados e ricos. Esses tambm so os fios escolhidos para serem usados em

    eventos pblicos em que comparecem com seus trajes rituais, como celebraes ecumnicas,

    homenagens diversas, congressos, feiras e at no afox que abre o desfile das escolas de

    samba de So Paulo. Tive oportunidade de ver uma rica exposio desses colares por ocasio

    do IV Congresso do Intecab Instituto Nacional de Tradio e Cultura Afro-brasileira

    realizado em seis de abril de 2002 em Diadema na grande So Paulo, que tinha como patrono

    o orix Oxssi. Havia l muitos lderes religiosos e muitos ebmis ostentando fios do orix

    homenageado, e alm de seus colares de senioridade ricamente enfeitados, muitos, inclusive,

    com peas em ouro, especialmente quando se tratava de algum filho ou filha de Oxum.

    Isso nos remete a um outro valor estruturante da criao esttica do candombl, que

    a ostentao. Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de So

    Paulo, o africano Kabengele Munanga, em comunicao oral, me contou, certa vez, que para

    o africano a ostentao um valor, ou seja, se mostrar, se exibir nessas culturas algo muito

    importante, muito valorizado. Esse um valor que foi sem dvida preservado no candombl e

    persiste at os dias de hoje com muito vigor.

    Entre o povo-de-santo muito importante ser visto, chamar a ateno para si, e isso

    independe da classe social da qual o fiel faz parte. O candombl uma religio em que os

    adeptos pobres so a maioria mas em que possvel encontrar pessoas de todos os estratos

    sociais, e todas do importncia ao modo como se apresentam, em especial nas festas

    pblicas.

    As festas so ocasies em que se mostra "o que o grupo e como pensa" (Amaral,

    2002: 32), "o momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa, s vezes at

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    mesmo em seu prprio corpo" (idem: 32). So tambm, como mostrou Rita Amaral, espao

    de sociabilidade e lazer, momento para ver e ser visto, conhecer pessoas, trocar idias, fazer

    fofoca, flertar.

    A tudo isso se deve tanto esmero na confeco de tudo o que se vai usar. Desde a

    roupa mais simples do dia-a-dia, at o traje de gala, passando pelos colares, tudo tem que ser

    bonito e chamativo. Ainda que isso implique, para no falar dos altos custos financeiros, um

    grande esforo fsico, pois em geral os ilequs so muito pesados, ainda mais quando se usam

    vrios de uma vez.

    Os colares mais pesados so os dos ias, que tm mais voltas, com peso que chega a

    somar trs quilos e meio (para um ia de Xang com Oxum, por exemplo). Esse peso no

    pescoo foraria o ia a andar curvado, de cabea baixa, em postura de submisso que

    exigida para eles, sobretudo no primeiro perodo da iniciao. Se non vero bene trovato.

    Em uma ocasio fui famosa rua Vinte e Cinco de Maro, acompanhando algumas

    filhas-de-santo que iam comprar tecidos para roupas de candombl, e a cada tecido que eu

    apontava elas prontamente tinham um julgamento que no deixava dvidas: "Ah, esse no,

    essas flores so muito pequenininhas, nem vai aparecer!" ou ento "Ah, essa cor muito

    apagada, desse jeito ningum vai me ver, menina!".A combinao do gosto por ser visto e a conseqente vontade de se exibir que se

    expressam nessa esttica remetem a uma concepo profunda e vigorosa da religio dos

    orixs, pois nas palavras de Prandi:

    "O candombl afirma o mundo, valoriza-o: muito daquilo que considerado ruimsegundo outras religies, como dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso,dominao, poder para o candombl bom" (1991: 214).

    A afirmao do mundo faz dessa combinao entre o prazer em ser admirado e odesejo de se mostrar, que parte do estilo de vida, da sociabilidade do povo-de-santo, algo

    legtimo sobre o qual no h nenhum tipo de restrio, ser bonito tambm muito valorizado

    (Amaral, 1992, 2002). O julgamento acerca do que bom por vezes se confunde mesmo com

    o belo; por sinal, a palavra iorub que designa belo odara que tambm significa bom. De

    uma festa pblica diz-se sempre e antes de tudo que "foi linda", que "os orixs estavam muito

    bonitos", "que danavam muito bem", ou seja, o julgamento daquilo que bom est

    inextricavelmente associado ao belo.

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    A valorizao da beleza um dos fatores que contribui para a insero e reproduo

    do candombl na metrpole moderna. Igualmente, muito de sua visibilidade, de seu alcance

    simblico, evidenciado especialmente pelas artes, advm de sua esttica plstica exuberante,

    que se manifesta sobremaneira na festa pblica.

    Ser um ebmi definitivamente ter atingido uma posio em que se pode e mesmo se

    deve ostentar. claro que, mesmo essa ostentao limitada pelo pai ou me-de-santo. Por

    mais liberdade criativa que se tenha, conhecimento adquirido, e at mesmo dinheiro, porque

    muitos materiais so bastante caros, ainda o chefe do terreiro que vai efetivamente ditar os

    limites do que se pode ou no usar e no s porque ele quem detm mais conhecimento

    ritual, iniciado a mais tempo, mas igualmente porque os sacerdotes esto sempre

    preocupados com a imagem que seus terreiros passam s pessoas de fora, e tambm porque

    ningum deve ser mais bonito, vestir-se melhor, ter ilequs mais belos do que o sumo

    sacerdote, afinal, beleza poder.

    So basicamente dois os colares de distino do ebmi na nao queto: os brajs e o

    hungebe. O braj tem um formato especfico: as muitas voltas de miangas so unidas a

    intervalos regulares por uma firma que pode ser de loua, resina, coral, pedra, bzio ou um

    outro material. O nmero de contas de cada segmento dado por um mltiplo do nmero

    caracterstico do orix. A despeito de o ebmi poder ter tantos brajs quanto queira e possa

    ter, os mais importantes so do orix principal e do segundo orix que se costuma arranjar da

    seguinte maneira: o braj do orix principal com as contas nas cores do orix principal da

    pessoa e com as firmas nas cores do segundo orix e o braj do segundo orix de modo

    inverso. Mas h outras opes de combinao. Braj, alis, um nome de uso hoje

    generalizado mas que originalmente designava to somente os colares de bzios feitos para os

    orixs de origem jeje: Nan, Omulu e Oxumar.

    Observando atentamente uma roda de filhos-de-santo, o xir, poder se saber com

    facilidade quais so os ebmis apenas verificando quem dentre eles usam brajs. Eles

    distinguem e localizam na hierarquia que se expressa publicamente no por ocasio das festas,

    qualquer alterao nessa ordem causa muito desconforto entre os fiis. Uma vez um pai-de-

    santo me contou que na sua iniciao sua ento me-de-santo fez para ele um braj de Ogum,

    seu orix, e ele saiu na primeira festa depois de iniciado, como ele mesmo disse, "no fim da

    fila e com o braj no pescoo", fato que foi amplamente comentado por seus irmos de santo,

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    fonte de muito cimes, discusses e problemas para a me-de-santo posto que o uso de braj

    por um ia uma incoerncia por definio.

    preciso ressaltar, no entanto, que embora os brajs sejam um importante smbolo de

    distino dos ebmis, com o passar do tempo eles acabam preferindo usarilequs mais leves,

    com menos voltas, porm ainda mais elaborados, frutos de sua j comentada, liberdade de

    criao. comum usarem nesses fios elementos mais nobres, freqentemente mais caros e

    preciosos, e sempre relacionados aos orixs em questo.

    O hungebe, por sua vez, por excelncia o colar do ebmi; trata-se de um fio de uma

    volta, de contas de loua marrom intercaladas com coral. Um colar at bastante simples

    comparado aos brajs, mas de suma importncia. Vejamos o que nos diz a esse respeito, Leda

    de Ogum, 15 anos de santo:

    "O hungebe tem uma importncia suprema, e ele identifica no o orix, ele identifica oebmi. um fio que a gente recebe no dia que recebe o oi e ele te acompanha atdepois da morte".

    De acordo com os entrevistados o hungebe o nico colar que acompanha o morto em

    seu caixo, simboliza "a quebra do pacto da vida, da ligao com o mundo dos viventes".

    No candombl queto o hungebe tem uma ligao direta com o orix Oi, essa a cor

    dos fios da deusa tambm, e essa divindade, de acordo com a mitologia, a encarregada de

    levar os espritos dos mortos, os eguns, para o Alm. Da, segundo alguns sacerdotes, sua

    ligao com a vida terrena. Alm disso, ainda de acordo com esses, esse fio teria a

    propriedade de proteger seu portador da morte tendo em vista que o ebmi tambm lida com

    as intempries e eventualmente os eguns que atrapalham os seres humanos e devem ser

    despachados atravs de ritos apropriados, alm dos ritos fnebres.

    A importncia desse colar como expresso esttica da senioridade algo que no sepode perder de vista e que muito clara inclusive no cotidiano da comunidade; tanto assim

    que muitas vezes os ebmis no usam qualquer outro fio que os identifiquem a seus orixs

    mas nunca deixam de usar o hungebe.

    "Ele a identificao de voc ser um ebmi. Se de repente eu no tiver um outro fiode contas, eu tiver s o hungebe, ele tudo, ele o principal de tudo. Eu posso no terum braj, eu posso no ter um fio truncado, mas se eu tenho meu hungebe vo saberque eu sou do candombl e que sou uma ebmi" (Leda de Ogum).

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    Uma ocasio, em janeiro de 2003, assisti a uma sada de ia em que havia tambm um

    rapaz dando obrigao de sete anos, e portanto tornando-se um ebmi. Ele foi trazido ao

    barraco e, sentado em sua cadeira, aguardava visivelmente emocionado o momento em que o

    sacerdote que o homenageava danando em sua frente e ostentava o colar do ebmi nas mos,

    lhe colocaria o hungebe no pescoo, sinal de sua maioridade sacerdotal, de sua grande

    intimidade com os deuses. Se o ilequ funciona como documento de identidade o hungebe

    usado como prova de maioridade.

    Algodo ou nilon?

    Os colares rituais tm uma dinmica de circulao, montagem, desmontagem,remontagem e uso dentro dos terreiros. Muitas vezes acontece, por exemplo, de algum

    comprar um determinado tipo de conta que no exatamente a cor de seu orix. Essa conta

    fica guardada e um dia mais tarde vai servir a outro filho-de-santo. muito comum tambm

    que por ocasio da obrigao de sete anos os ilequs de ia sejam desmontados e remontados

    como brajs.

    Outra situao bastante usual daqueles que mudam de ax, que por alguma razo

    saem de uma casa e vo para outra em busca de algo que no encontraram anteriormente, e apode ocorrer de a cor de suas contas mudar. Nessas circunstncias possivelmente as firmas

    podero ser reaproveitadas.

    Mais de uma vez pude acompanhar a montagem dos colares no terreiro. Enfiar contas

    um trabalho que pode envolver toda a comunidade que se mobiliza para a iniciao ou em

    perodos de obrigao em que fiis ficam recolhidos no templo. Esses so momentos

    privilegiados na sociabilidade do grupo, quando emergem, dentre outros, assuntos como de

    onde veio essa ou aquela firma, em que circunstncias se ganhou esse ou aquele colar, a razo

    do uso de determinado material ou cor.

    Em mais de uma dessas oportunidades ouvi comentrios acerca do tipo de fio utilizado

    para se fazer o colar. Na grande maioria das casas pesquisadas de que tive notcia, usa-se fio

    de nilon para a confeco dos ilequs, por razes de ordem prtica uma vez que esses fios

    so muito resistentes, fceis de se passar nos buracos das miangas e tambm no absorvem a

    gua de folhas, nem o sangue por vezes vertido sobre os fios. Alm disso secam rapidamente

    e no ficam com mau cheiro.

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    Existem, no entanto, algumas casas que usam o chamado cordon, um fio de algodo

    levemente encerado, que no to resistente quanto o fio de nilon nem tampouco prtico ou

    higinico, uma vez que estraga com facilidade e muito mais difcil de passar pelas contas.

    no entanto, o fato de absorver a gua, o amassi e o sangue sacrificial que segundo alguns

    sacerdotes o faz ritualmente mais apropriado que o fio de nilon, porque de acordo com esses,

    ao reter esses elementos o cordon de algodo retm ax.

    A discusso subjacente ao uso de um ou outro material algo muito recorrente nessa

    religio de tradio oral, em que cada templo autnomo, e em que cada pai ou me-de-santo

    muito criativo.

    O candombl se formou no Brasil em meados do sculo XIX como uma organizao

    original da dispora de diversos povos africanos e, como religio de dominados, sofreu fortes

    presses que poderiam ter levado sua extino. O que se verificou, no entanto, foi que a

    religio dos orixs no s sobreviveu como se expandiu e h muito tempo j no mais uma

    religio de negros, mas universal, cujo alcance extrapola, inclusive, os limites das fronteiras

    nacionais.

    Nesse longo processo de resistncia e reproduo, o candombl sempre se preocupou,

    e se preocupa ainda, em preservar-se, em guardar bem os seus segredos, seus ritos, mitos,enfim, sua tradio (Prandi, 2005).

    Manter a tradio, no entanto, no significa ausncia de mudanas, uma vez que

    mesmo "aquele trao aventado de querer-se permanente da tradio no exclui a sua prpria

    evoluo histrica mesmo a permanncia tem uma histria" (Bornheim, 1987: 23). E no

    candombl assim tambm se faz, a mudana, a ruptura, necessria sua conservao e

    manuteno. Como assinala Bornheim:

    "A tradio s parece ser impertubavelmente ela mesmo na medida em que afastaqualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de quea ausncia de movimento termina condenando-a estagnao da morte.A necessidadeda ruptura se torna, em conseqncia, imperiosa, para restituir a dinamicidade aoque parecia 'sem vida'"(idem, : 15, grifo meu).

    Tratam-se de mudanas, de rupturas, que visam a conservar, restituir a tradio, ou

    seja:

    "A noo de 'tradio' para o prprio candombl , portanto, uma noo que tem a

    dinmica como um forte elemento constitutivo, em termos de que a transformao seja

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    por meio de abandonos, resgates, acrscimos, substituies, etc. um mecanismopresente nas vrias possibilidades de representao desta religio e que assegura, deresto, sua continuidade nos vrios contextos em que se insere" (Silva, 1995: 291).

    As mudanas aqui so sempre feitas em nome da manuteno, ou mesmo recuperaoda tradio, ainda que o resultado seja uma "tradio inventada".

    "Tradies inventadas" so, de acordo com Eric Hobsbawm, altamente aplicveis no

    caso da "nao", uma inovao histrica comparativamente recente, e seus fenmenos

    associados. Por tradio inventada entende-se:

    "Um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamenteaceitas; tais prticas de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores enormas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, umacontinuidade em relao ao passado" (Hobsbawn, 2002: 9).

    Como no candombl a legitimidade garantida por meio dessa continuidade em

    relao ao passado, pela referncia constante aos mais velhos, as novidades, as

    transformaes, que so introduzidas no processo de reproduo da religio adquirem

    necessariamente ostatus, por assim dizer, de tradio e se configuram, por meio da repetio,

    em verdadeiras "tradies inventadas".

    desse modo que um novo modelo de roupa que nunca tenha sido usado em um

    determinado terreiro, por exemplo, pode ser introduzido pelo pai-de-santo que simplesmente

    tenha visto esse modelo em outra casa, achado bonito e copiado. Logo se ouvir dizer da

    roupa nova que " assim" porque no terreiro de origem, " assim que se veste".

    H, no entanto, um espao efetivamente aberto para as inovaes, em que no h a

    possibilidade de se afirmar que " assim porque sempre foi assim". Esse o caso das

    inovaes tcnicas no mbito da cozinha, que central no candombl porque l que as

    comidas que alimentam os deuses so preparadas. H todo um debate dentro da religio se aadoo alimentos j processados, como o p de feijo para o preparo do acaraj por exemplo,

    ou mesmo de eletrodomsticos modernos que facilitam a preparao das comidas, no seriam

    ruins para a religio por caracterizarem um afastamento do modo tradicional de se cozinhar a

    comida dos deuses.

    Mas a despeito de toda a discusso no se v, hoje em dia, algum pilando feijo para

    obter a farinha para o acaraj e possvel at que de to habituados aos pacotes de farinha

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    pronta, facilmente encontrados no comrcio, que filhos mais novos nem saibam qual era o

    processo para produzi-la no passado.

    Perguntados acerca disso, a maioria dos sacerdotes afirma no ver nessas inovaes

    um perigo, pois h a percepo de que elas contribuem para que a vida no santo seja menos

    penosa e o dispndio de tempo com a religio, de um modo geral, seja menor. Algo sem

    dvida muito importante para a manuteno do candombl e mesmo para arregimentao de

    novos adeptos, especialmente em uma cidade to grande como So Paulo em que talvez o

    bem maior de que as pessoas possam dispor seja exatamente tempo livre. Conforme ouvi de

    uma me-de-santo "O que importa a f minha filha! Se vai usar liquidificador ou pilo o

    orix no vai se importar, desde que a comida dele seja feita com os ingredientes certos e

    com devoo".

    Esse debate, obviamente, no se restringe somente s "coisas da cozinha". O povo-de-

    santo est sempre discutindo se a adoo de tcnicas e materiais industrializados no seria

    prejudicial religio, no provocaria uma perda paulatina da tradio e conseqentemente da

    fora, do ax, a energia vital que move o mundo e sustenta a religio. O uso do nilon vesus

    cordon apenas uma pequena amostra desse debate, que o mesmo que se trava em torno de

    outros pares de alternativas como usar o liquidificador ou triturar os alimentos no pilo, usar

    fogo a gs ou fogo a lenha, comprar farinha pronta para fazer acaraj ou produzi-la,

    comprar os ilequs prontos ou enfi-los etc.

    Os ilequs e as cores

    Alm dos tipos de colares j mencionados preciso lembrar que eles tambm podem

    ter comprimentos diversos. Em geral eles vo at o umbigo, mas os colares dos orixs

    masculinos so usados pelos ebmis atravessados sobre o peito e so, portanto, um pouco

    mais compridos. Usar colares atravessados , de acordo com Me Stella, a ialorix do Ax

    Op Afonj, uma prerrogativa exclusiva dos filhos de orixs masculinos "independentemente

    de tempo de iniciao e condio hierrquica" (Santos, 1995).

    Existem tambm colares de contas mais curtos que se fazem para uso cotidiano, fora

    do rito, e igualmente colares de pedras, corais ou outros materiais, usados somente por

    ebmis, que podem tambm ser mais curtos. Uma vez ouvi um sacerdote dizendo que sua

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    me-de-santo o havia aconselhado a fazer para si alguns colares mais curtos para proteger o

    peito, uma parte do corpo simblica e efetivamente central.

    Alm da enorme diversidade de materiais que podem ser usados nos ilequs, conforme

    j mencionei, preciso ter em vista que as miangas tambm so diferentes. Existem dois

    tipos de contas as que so de vidro opaco, leitosas, e as de cristal, que so translcidas.

    As contas translcidas so usadas, em geral, para as divindades femininas, em

    especfico as ligadas s guas, como o caso de Iemanj e Oxum; esse uso uma referncia

    transparncia das guas que essas deusas habitam. Nas palavras de Claude Lpine "o cristal

    evoca por sua transparncia as guas doces como as guas salgadas" (1978: 300).

    H o caso especial de Logum Ed, o orix masculino, que filho de Oxum comOxssi e usa alternadas, as contas de seu pai, azul-turquesa opacas, e de sua me, dourado

    translcido claro. Igualmente tambm possvel encontrar miangas translcidas para um ou

    outro orix masculino em um avatar muito especfico, dependendo do templo, mas isso raro.

    Muito da exuberncia e diversidade dos colares se deve ao seu colorido, ou

    multicolorido, tendo em vista que so muitas as cores usadas. No candombl queto so

    aproximadamente dezesseis as divindades cultuadas e cada uma comporta em geral uma ou

    duas cores bsicas que podem variar de tom de acordo com a invocao do orix, a qualidadecomo diz o povo-de-santo, conforme se v no Quadro 2. Nas palavras de Armando Vallado

    (2002: 41):

    "Qualidade o termo usado no candombl para referir-se s mltiplas invocaes ouavatares dos orixs. (...) as qualidades referem-se a cultos especficos dos orix, emque so invocados aspectos mticos da sua biografia mtica, o que inclui suasdiferentes idades, suas lutas, seus momentos de glria etc. Tambm locais geogrficos

    passam a compor a qualidade".

    De tal forma que se pode ter um ilequ de Oxum cuja cor o dourado desde o maisclaro at quase marrom dependendo do avatar da deusa em questo. Nesse sentido Claude

    Lpine (1978: 308) sustenta que tanto mais velho o orix, mais escuras so as contas e, por

    conseqncia, quanto mais jovem, mais claras.

    Juana Elbein dos Santos (1975) e Rosa Maria Bernardo (1994) classificam as cores

    usadas nos colares e roupas dos orixs de acordo com um sistema tripartite baseado em Victor

    Turner (1967), segundo o qual as cores-significado podem ser classificadas a partir do branco,

    vermelho e preto do qual todas as outras cores derivariam.

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    Assim, de acordo com essa teoria (Santos, 1975: 41), ao vermelho estariam

    associados: o corrimento menstrual, o sangue humano ou animal; o azeite de dend, o ossn,

    um p ritual vermelho muito usado nas iniciaes, o mel; cobre e o bronze. O vermelho

    tambm abrange o amarelo.

    Quadro 2 Os colares e as cores no candombl de nao queto e na umbanda

    Orixs Cores das contas no candombl denao queto

    Cores das contas na umbanda

    Exu vermelho e preto, azul e preto(alternadas)

    vermelho e preto (alternadas)

    Ogum azul escuro, verde escuro, azul escurorajado de verde vermelho

    Oxssi ou Od azul turquesa verdeOssaim verde e branco (alternadas ou rajadas) -Oxumar amarelo e preto, laranja e preto, verde

    e amarelo (alternadas), bzios-

    Obalua ou Omulu vermelho, branco e preto (rajadas oualternadas)

    preto e branco, amarelo e preto

    Xang vermelho e branco, marrom e branco(alternadas)

    marrom, amarelo, roxo

    Oi ou Ians marrom, vermelho escuro laranjaOb vermelho e amarelo translcido,

    vermelho escuro, laranja translcido

    -

    Oxum dourado translcido dourado translcido, amarelo, azulescuro

    Logum-Ed dourado translcido e turquesa(alternadas)

    -

    Eu bzios, vermelho escuro translcido -Iemanj vitrificada cristal transparente, ou

    alternada com azul ou verdetranslcido

    vitrificada cristal transparente ouazul claro translcido

    Nan branca rajadas de azul cobalto, roxo roxoOxagui (Oxal

    jovem)

    branco e azul real intercaladas -

    Oxaluf (Oxalvelho)

    branco branco

    Ao branco estariam associados: o smen, a saliva, o hlito, as secrees, o plasma; a

    seiva, o sumo, o lcool e as bebidas brancas derivadas das palmeiras e outros vegetais, o

    yrosn, p branco de uso ritual, o ori que uma manteiga vegetal; alm de sais, giz, prata e

    chumbo.

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    Por fim, ao preto estariam associados: cinzas de animais; sumo escuro de alguns

    vegetais; o wj, p azul escuro tambm de uso ritual; carvo, ferro e outros minerais. O preto

    compreenderia ainda o verde e o azul.

    Parece-me muito difcil afirmar, com base na pesquisa de campo, que a determinao

    das cores consagradas aos orixs obedea a princpios cujo simbolismo tem um alcance to

    preciso. As cores esto ligadas s caractersticas dos orixs, que por sua vez se depreendem de

    sua mitologia, que, como j foi dito, forma e informa a esttica do candombl como um todo e

    inclusive as cores dos colares.

    Um mito de Xang expressa claramente essa dinmica. Diz esse mito que Xang era

    um filho muito rebelde e inconseqente que causava muito desapontamento em seu pai

    Obatal que vivia recebendo muitas queixas pelos problemas causados pelo filho rebelde.

    Obatal justificava os atos do filho afirmando que Xang no havia sido criado perto de si,

    mas esperava o dia em que ele haveria de submeter-se sua autoridade. Certa ocasio Xang

    estava na casa de uma de suas mulheres quando teve seu cavalo roubado por Obatal e,

    percebendo o roubo, saiu em encalo do velho e quis enfrent-lo. Obatal no se intimidou e

    ordenou que Xang se prostrasse a seus ps e ele, desarmado, atirou-se ao cho e foi

    dominado por Obatal. O velho ento desfez o colar de contas vermelhas que Xang trazia

    consigo e "alternou as contas encarnadas de Xang com as contas brancas de seu prprio

    colar. Obatal entregou a Xang, o novo colar vermelho e branco. Agora todos saberiam que

    aquele era seu filho" (Prandi, 2001: 261, 262).

    Esse mito ainda menciona o branco emblemtico de Oxal. Branco, entre os iorub,

    a cor da criao; Bastide (1961) afirma que os ritos de iniciao se do sob o signo de Oxal

    pois so tambm ritos de criao, "uma nova personalidade est em vias de ser modelada"

    (idem: 48) e esse patronato de Oxal sobre a criao simbolizado pelo uso de roupas brancas

    por parte do ia durante todo o perodo da iniciao.

    Igualmente o rito funerrio do axex marcado pelo uso de roupas brancas e Bastide

    cogita: "Mas, pode-se perguntar se o axex no seria tambm uma criao, e por isso mesmo

    posta sob o signo de Oxal" (idem: 99). Criao que nesse caso no mais a da nova

    personalidade, mas a do egum, o esprito ancestral a ser cultuado.

    Assim como o branco da criao de Oxal, o vermelho est associado ao fogo e

    guerra. Essa a cor do colar de Xang, o deus do trovo, de Oi, a senhora do raio e da

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    tempestade, e tambm de Ob, a terceira esposa de Xang, igualmente guerreira, que ainda

    pode usar laranja ou vermelho e amarelo combinados.

    O verde est ligado s plantas e floresta, a cor de Ossaim, deus das folhas, e pode

    ser usada por algumas qualidades de Ogum e Oxssi. O dourado, evocando o ouro, a riqueza,

    de Oxum. O transparente das guas de Iemanj, podendo ser mesclado com verde ou azul

    claro, tambm transparente. So tonalidades do mar. O azul escuro a cor de Ogum, que

    remete ao minrio de ferro, origem do patronato desse deus que o ferro e a forja. Azul-

    turquesa a cor de Oxssi, que se por um lado um caador que vive nas matas, por outro

    lado irmo mais novo de Ogum, como o povo-de-santo sempre faz questo de enfatizar.

    H ainda o roxo usado para Nan que parece ser uma meno morte, que seu

    patronato, e a qual essa cor est ligada entre os catlicos. Alm do vermelho, branco e preto

    de seu filho Omulu que parece estar relacionado tambm ao simbolismo da morte, portanto

    branco, e tambm a divindade da terra quente, da o vermelho e preto. Oxumar, a serpente,

    talvez seja um dos deuses sobre o qual o consenso seja mais difcil, mas suas contas so

    sempre bicolores ou multicoloridas, aludindo, segundo me foi dito, pele das cobras e

    tambm ao arco-ris que uma de suas representaes.

    De todo o modo, foi no final do sculo XIX e comeo do XX que o candombl firmousua constituio, definindo costumes rituais at hoje mantidos. Dessa poca a fixao das

    cores e possvel que a razo das escolhas j tenha em alguns casos sido esquecida.

    Dentro da mesma nao, as cores consagradas aos colares dos orixs variam pouco de

    terreiro para terreiro, porque h um amplo conhecimento desse repertrio; as variaes

    maiores ficam por conta dos orixs menos cultuados, mais "raros" como Ob, Eu e mesmo

    Oxumar. O mesmo no acontece com as roupas dos deuses; para essas as possibilidades

    cromticas so muito maiores.

    1.1.3. Os colares no tambor-de-mina

    Tambor-de-mina o nome da religio dos voduns no Maranho. Voduns so os deuses

    africanos dos povos jejes ou fons. Tal como o candombl, trata-se de uma religio inicitica e

    sacrificial, em que os adeptos, preparados atravs dos rituais, manifestam os deuses no transe.

    O tambor-de-mina hoje se encontra espalhado pelo Nordeste e tambm o Norte do Pas, mas

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    tem como matriz cultural dois terreiros que permanecem vivos at hoje em So Lus: a Casa

    Grande das Minas e a Casa de Nag; foi a partir dessas e outras casas tradicionais que a

    religio dos voduns se espalhou e se consolidou (Prandi, 1997).

    O tambor-de-mina se instalou em So Paulo h quase trs dcadas. Os voduns e

    encantados desembarcaram na metrpole junto com aquele que veio a ser o maior expoente da

    mina em So Paulo, pai Francelino de Xapan, que em 1977 inaugurou a Casa das Minas de

    Tia Jarina (Prandi, 1997).

    Pai Francelino filho-de-santo do j falecido Pai Jorge de Itacy, fundador do Terreiro

    de Iemanj, localizado em So Lus, que, por sua vez, teve origem a partir do Terreiro do

    Egito, outro dos mais antigos e importantes templos do tambor-de-mina em So Lus.

    Atualmente pai Francelino j tem filhos e netos-de-santo espalhados por So Paulo e

    mesmo nas regies Sul e Norte, toda uma gerao de mineiros cuja origem a bem sucedida

    Casa das Minas de Tia Jarina localizada em Diadema.

    O tambor-de-mina difere em diversos aspectos do candombl tanto queto, como

    angola, os mais praticados em So Paulo. As diferenas vo desde a lngua ritual para as

    cantigas dos voduns, que o ewe-fon, e abrangem diversos aspectos do rito, como tambm a

    esttica. Nesse aspecto talvez os colares sejam um dos pontos mais divergentes em relao aocandombl; partindo dessa constatao que abro aqui um espao para tratar detidamente dos

    colares do tambor-de-mina em So Paulo.

    Tanto quanto no candombl, os colares no tambor-de-mina tm um papel muito

    importante no rito, e so bastante valorizados pela beleza exuberante e os diversos

    significados que encerram, que vo, como j foi dito em relao ao candombl, desde o

    aspecto da proteo mesmo, passando pela identificao com os deuses, at o posicionamento

    na tambm rgida e complexa hierarquia.

    Aqui os colares so igualmente sacralizados atravs