roupas e fios de conta
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO SOCIOLOGIA
AXS E ILEQUSRITO, MITO E A ESTTICA DO CANDOMBL
Patrcia Ricardo de Souza
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emSociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor emSociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi.
So Paulo, 2007
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Resumo
O candombl uma religio em que a experincia visual muito valorizada. Essa experinciaganha mais amplitude e fora durante as festas pblicas, ocasies em que a religio celebrada. Nesses momentos, de maneira muito especial, e tambm no dia-a-dia, a dimensoesttica um aspecto central. A beleza nessa religio uma inteno e uma busca
permanente. com beleza que se agradam os orixs, e agrad-los dever religioso. A beleza,no entanto, no um fim em si: ela est sempre ligada ao sentido. Este trabalho trata dadimenso esttica do candombl em seu aspecto mais visvel e plstico, e dos sentidos queessa dimenso revela.
Palavras-chave: candombl, religies afro-brasileiras, esttica, mito, rito.
Abstract
Candombl is a religion in which the visual experience is very intense. This experience ismuch deeper and stronger during the public festivals when the religion is celebrated. In thesemoments, in a very special way, and also daily, the esthetic dimension is a central aspect. The
beauty in this religion is a purpose and an permanent search. By means of beauty peopleplease the orishas and to do that is a religious obligation. The beauty, meanwhile, is not anitself intention it's always attended with the signification. This work is about the candombl'sesthetic dimension in it's much manifested and plastic face and about the significations that
this dimension brings out.
Key-words: Candombl, African-Brazilian religions, esthetic, myth, cult.
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Ax, do iorub aso: roupa, vesturio, paramento.Ilequ, do iorub lk: contas, fio de contas, colar ritual.
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Para Julia e Anbal, meus pais
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Sumrio
Agradecimentos............................................................................................................6
Introduo..................................................................................................................... 8
1. Ilequs: os colares rituais .......................................................................................121.1. Os colares fora do contexto ritual ..........................................................................................131.2. Os colares na religio.............................................................................................................14
1.2.1. Os colares na umbanda ............................................................................................141.1.2. Os colares no candombl .........................................................................................161.1.3. Os colares no tambor-de-mina.................................................................................40
2. Axs: trajes dos adeptos.........................................................................................47
2.1. O traje do dia-a-dia.................................................................................................................502.2. O traje de festa........................................................................................................................62
2.2.1. O traje de baiana ......................................................................................................71
2.2.2. A baiana do candombl............................................................................................763. Ax-orix: roupas e adereos dos deuses...............................................................89
3.1. Orix odara.............................................................................................................................893.2. Trajes e ferramentas dos orixs..............................................................................................95
4. Fazendo axs: costura e ns ................................................................................. 127
4.1. Os criadores dos trajes..........................................................................................................1274.2. As zeladoras dos axs...........................................................................................................132
5. Enfeitando os espaos: o barraco e os laos....................................................... 136
5.1. O templo e as marcas da autoridade.....................................................................................136
5.2. Reafirmando as origens........................................................................................................142Concluso................................................................................................................. 145
Caderno de imagens ................................................................................................. 151
ndice e crditos das fotos ........................................................................................168
Glossrio................................................................................................................... 173
Referncias bibliogrficas ........................................................................................178
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao CNPq pela bolsa que financiou parte dessa pesquisa.
A Reginaldo Prandi, meu orientador, por todos esses anos de trabalho, pela
generosidade intelectual, pela confiana depositada, pela amizade e alegria, pela minha
descoberta do mundo acadmico.
Aos professores e amigos Teresinha Bernardo e Armando Vallado pelas observaes e
sugestes importantes em meu exame de qualificao.
minha famlia, em especial a meus pais Julia e Anbal, sem quem absolutamente
nada teria sido possvel. A meu irmo Andr, interlocutor de todas as horas, parceiro na
jornada acadmica, pelo incentivo e rigor intelectual de sempre.
A todo o povo-de-santo de diversos lugares, aos venerveis pais e mes-de-santo do
candombl de So Paulo, que sempre me receberam to bem em suas casas. Em especial a Pai
Carlito de Oxumar, Pai Carlinhos de Oxum e Me Carmem de Oxum. A Pai Prcio de
Xang, Pai Francelino de Xapan e Me Neide de Obalua, cujos terreiros aparecem nas
imagens que acompanham este trabalho.
Agradeo de modo especial ao Pai Armando Akintund de Ogum, babalorix da Casa
das guas, e aos seus filhos-de-santo pela pacincia com minhas infindveis questes, fotos e
observaes, mas sobretudo pela convivncia e oportunidade de aprender com eles. Dvidas
que nunca poderei pagar.
Ao Ebmi Jurandir Cseny pelo incentivo e por ceder imagens. A Carlos Globo, com
quem aprendi a fazer fotos digitais, e que esteve comigo em inmeras festas, incentivando
meu trabalho e produzindo algumas das imagens aqui presentes.
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Aos meus amigos queridos que colaboraram, das mais diversas maneiras, para que este
trabalho chegasse a termo: Alessandra, Rosangela, Cristina, Nia, Jnior, Denise, Rubens e
tantos outros. Grata pelo carinho e apoio.
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Introduo
O candombl uma religio em que se celebra por meio da festa danante (Amaral,
1992; 2002). na festa com msica, dana e comida que os orixs vm Terra conviver com
seus filhos humanos, reabrindo as portas de comunicao entre o mundo sagrado em que
vivem os deuses e espritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre
esses mundos foi fechada e s reaberta por curtos perodos, exatamente durante as
celebraes religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e
participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se
confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e danam coreografias que
relembram aventuras narradas por seus mitos.
A festa o momento em que a experincia visual do candombl mais intensa, em
que sua dimenso esttica se revela com mais fora e maior amplitude. Beleza para ser vista e
gozada, tanto pelos que so da religio como pelos demais, pelos olhares de fora, olhares dos
que no so adeptos mas comparecem aos terreiros para fruir de sua beleza, para apreciar o
que tambm pode ser tido como um espetculo (cf. Santos: 2005). Beleza fundamental na
religio dos orixs. uma busca incessante, uma inteno que est marcada no mito e que
perpassa e estrutura o ritos.
"A arte no apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimularo que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algode esttico" (Durkheim, 1989: 455).
O culto, o rito do candombl, carregado de uma beleza proposital e necessria. Os
deuses se agradam do que bonito, e agradar os orixs dever religioso. Mas, aqui a beleza
no um fim em si mesmo. Ela tem necessariamente uma finalidade e um sentido que se
relaciona seja aos orixs e seus mitos, seja identidade, hierarquia ou organizao interna
do grupo.
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do aspecto esttico, em sua manifestao mais aparente, e de seus sentidos, que o
presente trabalho trata. Optei por fazer um recorte e me ater manifestao esttica em sua
dimenso plstica, material, visvel, e ao alcance de todos os olhares. Isso exclui dimenses
estticas importantes como a dana, que foi estudada por Rosamaria Susanna Barbra (2001),
e a msica, um tema que vem sendo trabalhado por Angela Lhning (1990). Tambm no
esto aqui tratados os objetos mais estreitamente ligados ao cerimonial mantido em espaos
secretos do terreiro, aos quais somente iniciados tm acesso, ou seja, os altares e
assentamentos das divindades.
No primeiro captulo trato do elemento esttico mais visvel, o mais porttil deles, que
so os colares de contas, os ilequs. Abordo os colares fora e dentro do contexto ritual,
procurando os sentidos que eles revelam em termos de identidade e hierarquia no grupo
religioso, alm do aspecto propriamente mgico.
No segundo captulo abordo os trajes dos adeptos tanto no cotidiano da religio quanto
na festa, inclusive jias e outros elementos que compem esses trajes. Analiso seus sentidos,
plurais, tambm no caso do traje de baiana e seus mltiplos usos, religiosos ou profanos.
No terceiro captulo trato dos protagonistas desse espetculo, os orixs. Abordo as
relaes e o dilogo entre a esttica do candombl e o carnaval. Relaciono um traje de cadaorix especificamente e valho-me de um mito de cada um a fim de mostrar a relao entre a
esttica e a mitologia.
No quarto captulo cuido da confeco e preparo das roupas e de seus executores.
No quinto, e ltimo captulo, detenho-me em outros elementos, como o espao fsico
do terreiro e sua decorao onde a religio acontece como expresso esttica, o que inclui at
mesmo as comidas sagradas. O objetivo principal entender o sentido do uso da beleza e sua
manifestao como expresso de religiosidade.
A pesquisa foi realizada de modo mais sistemtico entre 2001 e 2006, mas desde 1996
mantive contato com terreiros de candombl na condio de bolsista de iniciao cientfica
orientada pelo Prof. Reginaldo Prandi, trabalhando no projeto "Os afro-brasileiros",
financiado pelo CNPq.
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Ao longo de todo esse tempo participei de inmeras festas e rituais, fazendo
observao sistemtica, entrevistas e registro fotogrfico. A observao sistemtica realizada
em municpios da Grande So Paulo foi complementada com visitas a outros estados.
No Rio de Janeiro visitei uma exposio de colares de candombl realizada na galeria
Mestre Vitalino e entrevistei o curador da exposio Prof. Roberto Conduru. Na mesma
ocasio estive no Mercado de Madureira, um local de grande concentrao de lojas de artigos
para o candombl.
Em Salvador visitei os terreiros mais antigos, que so em grande medida a origem do
candombl de So Paulo. Tambm fui a museus, feiras e lojas de artigos religiosos, e realizei
entrevistas com adeptos, no adeptos e turistas que vo a Salvador tambm com o objetivo de
conhecer o candombl.
Empreendi tambm visitas a diversas lojas de artigos religiosos em So Paulo e
Grande So Paulo, por vezes acompanhando as filhas-de-santo em suas interminveis buscas
por belos tecidos, rendas, fitas, bordados, contas, canutilhos, pedrarias, firmas e tudo o mais
que a criatividade e a imaginao permitem usar para a confeco de trajes dos filhos-de-
santo e dos deuses.
Realizei nesses lugares entrevistas abertas com pais e mes-de-santo, adeptos de todasas categorias, pessoas que simplesmente simpatizam com a religio e a conhecem muito ou
quase nada. Entrevistei tambm pessoas, religiosas e no religiosas, envolvidas na criao e
confeco e venda dos trajes e adereos dos adeptos e dos orixs.
Durante a pesquisa de campo, fui a exposies, espetculos de dana, performances,
festas em escolas de samba, congressos religiosos, cerimnias ecumnicas e eventos
relacionados ao universo do candombl e seus orixs. Tudo isso me permitiu conviver com
diversos olhares e me ajudou na percepo dos sentidos da dimenso esttica do candombl e
no amadurecimento de muitas das idias que apresento a seguir.
As religies afro-brasileiras apresentam-se em variadas denominaes, incluindo o
candombl, o tambor-de-mina, o batuque, a umbanda e outras menos conhecidas. Cada
modalidade se apresenta estruturada em diferentes ritos ou naes, dependendo da origem
tnica predominante em sua formao. O centro da presente pesquisa o candombl de nao
queto, uma das variantes originrias das tradies predominantemente iorubs. Essa
modalidade , sem sombra de dvida, a mais estudada, a mais conhecida, e a que tem se
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apresentado como fonte de influncia para as demais. Alm disso, est muito presente no
processo de expanso do candombl nordestino em direo ao Sudeste, e conta com uma
produo etnogrfica ampla, permitindo referncias cruzadas com temas que lanam luz sobre
a questo da esttica. o caso por exemplo, da mitologia dos orixs.
O estudo sobre o candombl queto, mas lancei mo de informaes sobre outras
religies afro-brasileiras com o propsito de buscar generalizaes e apontar para
especificidades que reforam a idia bsica desse trabalho, a de que, beleza e ostentao esto
no cerne do culto aos deuses africanos. Odara, palavra de origem iorub, que significa ao
mesmo tempo bonito e bom, um emblema.
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ILEQUS: OS COLARES RITUAIS
Os colares rituais usados pelos adeptos das religies afro-brasileiras so, sem dvida,
um sinal diacrtico importante da pertena a essas religies. Trata-se mesmo de um elemento
decisivo e constantemente presente e isso se relaciona igualmente ao fato de que na cultura
brasileira os colares de contas esto definitivamente associados a essas religies.
A associao dos colares rituais s religies afro-brasileiras tambm se deve ao fato de
que os colares integravam, e ainda integram, as diversas culturas africanas que foram trazidasao novo continente, na frica, entretanto, eles eram importantes na distino no de grupos
religiosos, mas das diversas etnias.
No segmento religioso afro-brasileiro, especificamente o candombl o grande
responsvel pela associao entre essas religies e os colares de contas tendo em vista a
visibilidade que essa religio alcanou. Os colares fazem parte, inclusive, dos esteretipos que
a televiso e outros meios de comunicao incansavelmente divulgam.
Para alm do mbito do candombl e das demais religies afro-brasileiras os colares
de contas so presena marcante no cotidiano brasileiro de um modo geral, no ficando
restritos ao mbito religioso.
No candombl, o colar chamados genericamente de fio de contas ou de ilequ, termo
de origem iorub. Alguns tipos, com forma, material usado e destinao ritual prprios,
recebem nomes especficos como braj, quel e laguidib. Na umbanda os colares so
chamados de guias, e no tambor-de-mina, de rosrios.
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1.1. Os colares fora do contexto ritual
Conforme diz Solange Godoy (2006: 83):
"Feito dos mais variados materiais como sementes, conchas, coral, pedras (preciosasou no), vidro, prolas ou metais, o colar de contas existiu desde sempre".
Nas religies afro-brasileiras, os colares de contas foram observados desde os
primeiros tempos da religio no pas. Usados inicialmente nas comunidades de culto,
acabaram por extravasar os muros dos templos, de tal forma que os colares usados nos ritos,
no cotidiano dos terreiros e em cerimnias religiosas em lugares pblicos, so tambm
freqentemente vistos fora do contexto ritual.
Por exemplo, eles podem ser observados adornando o pescoo das tpicas baianas de
acaraj, que vendem seus bolinhos de feijo fradinho fritos em azeite de dend por toda parte:
nas ruas das capitais do Nordeste, como tambm de grandes cidades do Sul e do Sudeste.
Onde quer que estejam, as baianas de acaraj so vistas sempre portando seus muitos colares
multicoloridos. Parece ser essa marca que lhes d legitimidade.
Trata-se de algo muito interessante porque, obviamente, nem todas as baianas de
acaraj espalhadas pelo Brasil so baianas da Bahia, nem tampouco so todas elas adeptas docandombl. Mas de fato o traje que necessariamente inclui os colares que compe esse
personagem amplamente conhecido, de presena obrigatria at mesmo nos desfiles de
escolas de samba, em que a ala das baianas um quesito obrigatrio embora no conte pontos
no campeonato dos desfiles. Carmem Miranda levou a baiana e seus colares para as telas de
Hollywood e "tornou a baiana internacional" como dizia o samba-enredo da escola carioca
Imprio Serrano em 1972.
O traje da baiana, que vemos hoje , no que diz respeito forma, praticamente igual ao
que as escravas vestiam em meados do sculo XIX, especialmente as escravas de ganho que
iam para as ruas vender quitutes em seus tabuleiros. Os tempos so outros mas o traje
permaneceu, inclusive no candombl.
Um momento importante em que os colares aparecem com fora na vida fora dos
muros do terreiro no carnaval, e para ficar num pequeno exemplo basta citar o famoso bloco
afro Il Aiy e o afox Filhos de Gandhy, ambos soteropolitanos. No Il, os colares no so
parte obrigatria da indumentria do desfile, mas aparecem em diversas formas e nas cores do
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bloco (verde, vermelho, amarelo e preto). J no Filhos de Gandhy, os colares de contas branco
e azul intercaladas so parte constituinte da indumentria do afox.
Carnaval e venda de acaraj so contextos profanos e o uso dos colares rituais no tem
a necessariamente conotao religiosa ou mgica, o que diferente do uso nos contextos
litrgicos. Fora do contexto ritual, os colares em geral embora no tenham nenhuma dimenso
religiosa ou mgica, podem ser usados como elementos mgicos, como ocorre no uso nos
espelhos retrovisores de automveis. Das mais diversas cores, arranjos, tamanhos e
procedncias, sua presena bastante difundida e no se restringe aos veculos cujos
proprietrios so adeptos das religies afro-brasileiras. Aqui o uso do colar tem a propriedade
de conceder proteo, e no por outro motivo, alis, que catlicos muitas vezes tambm
penduram teros nos espelhos de seus automveis.
Em que pese o fato de que essa uma prtica corrente entre os fiis das religies afro-
brasileiras, possvel afirmar que esse uso do colar uma prtica mais umbandista.
1.2. Os colares na religio
Qualquer que seja a religio afro-brasileira, o uso de colares rituais os fios de
contas ou guias emblemtico. Mudam as formas, as cores e mesmo os significados, mas
o fio sempre pode ser visto no pescoo dos devotos. Embora o presente trabalho trate
especificamente do candombl de nao queto, interessante uma apresentao do fio de
contas tambm em outras modalidades religiosas afro-brasileiras.
1.2.1. Os colares na umbanda
A umbanda a religio afro-brasileira mais difundida, ainda que esteja perdendo
espao (Prandi, 2003). Seus adeptos declarados representam 0,26% da populao, enquanto os
do candombl somam 0,08% (IBGE 2000). Esse , por si, um motivo para explicar o fato de
que a maioria dos colares que encontramos em automveis seja de adeptos dessa religio, mas
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h ao lado disso uma razo que diz respeito prpria constituio da umbanda e do
candombl.
Na umbanda os ritos so muito importantes, mas menos complexos do que no
candombl, como tambm seus repertrios simblico e mtico so menos elaborados, a
despeito da enorme versatilidade e, portanto, capacidade de transformao, adaptao e
incluso que essa religio tem. Disso decorre que a umbanda , em comparao ao
candombl, visivelmente mais simples com relao aos elementos utilizados em seus ritos,
altares, templos e, igualmente, na indumentria das divindades e adeptos. O que no quer
dizer que a no se v encontrar rituais e templos grandiosos, altares muito elaborados e belas
roupas.
Nesse sentido, exatamente porque no h uma diversidade to grande de elementos
sagrados a serem manipulados quanto no candombl que os colares, ou as guias como so
chamados nessa religio, ocupam uma posio de evidncia como elemento portador de poder
mgico, do qual so revestidos pelo rito. Vejamos o que diz uma sacerdotisa de umbanda:
"A gente acredita que a guia funciona como um escudo de proteo para o corpo domdium. Ento se vai cair alguma carga, alguma demanda, alguma energia negativa,as guias esto ali para... como um espelho: para segurar a carga. s vezes estoura o fio
no meio do trabalho, alguma coisa, como pra refletir de volta tambm. Ento elasfuncionam assim" (Me Mrcia de Iemanj).
Esse forte carter mgico dos colares na umbanda se evidencia tambm pelo fato de
que eles no podem ser sequer tocados por outras pessoas, estranhas ou no religio. Algo
que, em geral, no ocorre no candombl.
, ao meu ver, dessa concepo do colar como um elemento mgico, um amuleto
mesmo, que advm seu uso to recorrente nos retrovisores dos automveis. A fala de uma
me-de-santo ilustra essa noo entre os umbandistas:"Eu acho que quase todo mundo que tem carro e umbandista tem uma guia
pendurada no pra-brisa. proteo pro carro, pra evitar que quebre o carro, que tenhabatida, que seja alvo de olho-gordo, de inveja... pra proteo mesmo" (Me Mrcia deIemanj).
Aqui a precisa definio de Pierucci esclarece os termos:
"Chama-se talism o objeto que serve para atrair a boa sorte. (...) Chama-se amuletoaquele objeto cuja finalidade proteger, afastar a infelicidade, repelir a urucubaca, o
p-frio, a inveja o mau-olhado. Confeccionado ou preparado magicamente com o fim
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de proteger seu portador das influncias malignas, um amuleto funciona como umaespcie de escudo, um 'preservativo mgico'" (2001: 19, 20. Grifos do autor).
certo que o colar ritual umbandista no confeccionado e nem concebido
especificamente como um amuleto, mas essa definio se d atravs da percepo dos fiis e
tambm pelo uso que fazem do objeto. Um uso bastante difundido, inclusive, porque no
necessrio que a pessoa seja adepta da religio para ganhar uma guia, ela pode ser
simplesmente algum que, mesmo tendo outra religio, busca na umbanda e seus guias alvio
para suas aflies.
Tudo isso reitera o primeirssimo sentido dos colares nas religies afro-brasileiras que
o de dar proteo mgica. E esse sentido no se restringe umbanda, pois igualmente os
adeptos do candombl usam os colares em seus automveis pela mesma razo, mas a ele
carrega tambm, para alm do carter de proteo, toda uma ampla gama de significados.
1.1.2. Os colares no candombl
No se pode perder de vista que os colares, ou os ilequs como so chamados no
candombl, cumprem tambm o papel fundamental de enfeitar, o que certamente no algosecundrio porque adornar, tornar (mais) bonito por sinal uma busca constante no
candombl. De todo modo, a principal finalidade do ilequ dizer qual o orix da pessoa,
dar identidade. Alm do mais eles se destinam tambm a proteger quem os carrega. Magia e
esttica andam de mos dadas nessa religio.
H no candombl uma infinidade de tipos de colares. Esses so em geral compridos,
at a cintura aproximadamente, e so sempre arrematados por um tipo de conta maior,
arredondada ou cilndrica que recebe o nome de firma. Nas palavras de Raul Lody, "a firmatem funo de firmar o fio de contas arremate de uso mgico religioso. uma espcie de
concluso do discurso simblico do prprio fio de contas" (Lody, 2003: 242).
O acabamento do ilequ uma tarefa delicada porque requer conhecimento religioso
para se saber qual firma usar, e para tanto se leva em conta no somente a que orix pertence
aquele colar especfico, bem como a posio sacerdotal que aquele que usar o colar ocupa no
grupo. Exige tambm certa tcnica para que os fios no arrebentem, para que todo o trabalho
no se perca, alm de ser necessrio muitas vezes bordar contas para que o acabamento fique
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perfeito. O povo-de-santo costuma reparar muito nos detalhes dos ilequs e em seu
acabamento. Ouvi mais de uma vez adeptos do candombl dizendo que se deveria ter
pacincia para fazer um bom acabamento nos colares para que no ficassem "cheios de pontas
soltas aparecendo, como na casa de fulano".
Os materiais empregados na confeco dos ilequs so muitos e variam de acordo com
o orix, a categoria sacerdotal a que pertence o adepto e seu poder aquisitivo, o gosto de quem
elabora o colar, e tambm, em grande medida, das preferncias do pai ou me-de-santo.
preciso sempre ter em mente que os pais e mes, babalorixs e ialorixs, so as
autoridades mximas dentro do terreiro a qual todos devem obedincia e por mais que se
conquiste, com o passar do tempo, uma certa liberdade de criao tudo passa necessariamente
pelo crivo deles. Em funo disso pode-se dizer que h um certo estilo em cada terreiro, que
determinado pelo sumo sacerdote, e seguido pela comunidade, que na prtica marca
diferenas estticas entre as casas, que so na verdade diferenas superficiais, uma vez que
estruturalmente no se pode inovar tanto.
Mas igualmente importante notar que, se perguntados acerca da razo de ser desse
ou daquele jeito, em geral os sacerdotes recorrem s suas razes, s suas casas me, como um
modo de legitimar suas opes estticas, e nunca dizem simplesmente que assim porqueassim eles o preferem. Como sempre se d nessa religio, a legitimidade remonta aos mais
velhos e vontade dos orixs.
H, entretanto, algumas noes e parmetros que formam e informam, inspiram e
delimitam toda a criao esttica do candombl e que aos poucos se pode perceber e pontuar.
Dentre essas est a de que forma e significado caminham estritamente ligados.
No candombl quase toda forma est, necessariamente remetida a um significado.
Quase tudo que se v, e que aos olhos menos atentos pode aparentar ser to somente um
enfeite que como j foi dito tambm muito importante tem um significado, ainda que
no possa ser imediatamente apreendido. Nada por acaso ou por gosto. Em geral o que
parece ter exclusivamente a funo de enfeitar portador de algum significado. No
candombl como nas culturas africanas, "a experincia esttica no se esgota em si mesma,
pois participa de um sistema em que cada objeto tem funo e finalidade, com relao ao
sagrado" (Montes, 1999).
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Identidade
Quando um potencial adepto se aproxima do candombl, o primeiro passo a consulta
ao orculo para se saber a qual orix aquele indivduo pertence, qual sua origem mtica.
Uma vez que se sabe qual o deus particular daquela pessoa, ela receber um colar que a
identificar como filha do orix, havendo inclusive uma cerimnia para sacralizar o ilequ,
chamada lavagem de contas.
Isso refora a idia de que o colar pode ser tomado como o sinal diacrtico da pertena
s religies afro-brasileiras e ao candombl especificamente. Nas trajetrias de insero dos
adeptos ele aparece como o primeiro elemento material sagrado com o qual se tem contato.
H na bibliografia muitos registros da lavagem de contas, o que d testemunho daimportncia desse adereo (Querino, 1938; Bastide, 1973; Lima, 1977; Verger, 1999). Trata-
se essencialmente de um rito relativamente simples, em que o colar sacralizado por meio da
lavagem em uma gua em que diversas ervas pertencentes ao orix do fiel, ao seu pai-de-
santo e ao orix patrono do terreiro, dentre outras, foram maceradas. A partir desse momento
o colar no ser mais um colar qualquer, mas um ilequ sagrado que de alguma forma, e ainda
que tnue, liga esse indivduo a seu deus pessoal e comunidade do terreiro.
Nesse sentido, o ritual de lavagem das contas pode ser visto, como aponta Vivaldo daCosta Lima (1977), como um "rito integratrio", uma vez que ele marca a insero daquele
aspirante, o abi que alis quer dizer literalmente "aquele que vai nascer" na
comunidade, algo muito importante, pois como uma vez ouvi de um sacerdote, "quando um
abi chega, enquanto ele no tem um fio de contas ele no se sente parte". certo, no
entanto, que essa insero somente se realizar plenamente em termos rituais quando esse
indivduo passar pelos ritos de iniciao, denominados "feitura-de-santo", o que pode ocorrer
em pouco tempo, levar anos, ou at mesmo nunca chegar a acontecer.
Alm do carter integratrio, a lavagem das contas constitui o que se pode chamar de
o primeiro rito de marcao da identidade do abi. comum na sociabilidade do terreiro
tentar adivinhar qual o orix da pessoa: os mais velhos so consultados, a pessoa
submetida a uma srie de perguntas, seus modos so observados, mas a ltima palavra dada
atravs da consulta que o pai ou me-de-santo faz ao jogo de bzios.
Saber de que orix o outro permite compreend-lo em profundidade, entender traos
de seu carter e comportamento, significa de alguma forma poder classific-lo de acordo com
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categorias pr-estabelecidas (Augras, 1983; Prandi, 1991; Birman, 1995; Segato, 1995;
Amaral, 2002; Vallado, 2002).
Isso no significa de forma alguma, no entanto, que todos os que pertencem a uma
mesma divindade sero iguais, muito pelo contrrio, cada um uma configurao particular
em que outros elementos tomam parte, mas haver sempre e indiscutivelmente elementos
muito caractersticos referidos a cada orix. Assim muito comum ouvir num terreiro coisas
do tipo "Ah, aquele assim mesmo daqui posso ouvir seus passos, tambm, de Ogum n?"
ou ainda se algum derruba panelas e faz um grande barulho: "Eh, l vem Oi derrubando
tudo!".
atravs do ritual de lavagem das contas que o abi travar uma primeira
aproximao com a divindade de que sua essncia se constitui. Por isso podemos entender a
lavagem de contas como um ritual de marcao da identidade. Todo o longo processo
inicitico levar a uma identificao cada vez mais forte e profunda do fiel com seu deus, com
seu eu profundo, da qual a lavagem das contas constitui o primeiro passo, nas palavras de
Armando Vallado:
"A iniciao ao orix pode, com certeza, ser entendida como um processo social,controlado pelo grupo do terreiro, de enfatizao e internalizao de determinados
padres de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com oorix que considerado seu pai ou sua me como uma ligao ntima e pessoal"(Vallado, 2002: 153).
Num mito sobre a inveno do candombl, os colares aparecem como elemento
importante da identificao dos fiis com seus deuses, e o momento em que os recebem so
marcos dessa ligao. Diz esse mito que, aps a separao entre o Ai, a Terra dos humanos, e
o Orum o Cu dos orixs, Olorum, o Senhor do Cu, encarregou Oxum que gostava muito de
vir Terra brincar com as mulheres, de preparar os mortais para que recebessem em seus
corpos os orixs, quando esses quiserem vir conviver novamente com os humanos.
"Oxum fez oferenda a Exu para propiciar sua delicada misso/ ... Veio ao Ai juntouas mulheres sua volta,/ banhou seus corpos com ervas preciosas,/ cortou seuscabelos, raspou suas cabeas/ pintou seus corpos./ ... Vestiu-as com belssimos panos efartos laos/ enfeitou-as com jias e coroas./ ... O colo cobriu com voltas e voltas decoloridas contas/ e mltiplas fieiras de bzios, cermicas e corais" (Prandi, 2001: 527).
Para que a ligao com o orix se faa preciso, nas palavras de Roger Bastide,
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"que exista no colar um certo poder de atrao da fora divina, uma simpatiapreestabelecida; preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atrao,sem o que a participao no poder se estabelecer" (Bastide, 1973: 367).
Essa fora de atrao se concretiza por meio da manipulao mgica, a sacralizao docolar, e igualmente pelo uso do material correto para cada deus em sua especificidade, uma
vez que a cada orix corresponde um tipo e cor de conta e, dependendo do orix, da
criatividade daquele que elabora o fio e do poder aquisitivo do filho-de-santo, ele poder
conter ainda outros materiais.
Tudo isso aponta para uma "propriedade", por assim dizer, do ilequ, que a de
constituir, e, ao mesmo tempo expressar, a identidade do adepto. Um filho de Ogum na nao
queto, por exemplo, vai usar colares de contas na cor azul-escuro. Pelo colar ser reconhecidocomo filho de Ogum, deus do ferro fundido, azul-escuro a cor do minrio de ferro, elemento
do orix. Sabe-se, alis, que a malaquita tem de fato essa cor.
Uma passagem de Pierre Verger em um texto que trata da viagem que ele e Roger
Bastide fizeram a frica em 1958 traz o seguinte relato, que mostra com beleza e preciso o
carter de identidade e integrao de que esto impregnados os colares de contas no
candombl:
"Pelo fato de sua consagrao ao culto de Xang, Bastide tinha recebido na Bahia umcolar de prolas de vidro vermelhas e brancas alternadas, cores simblicas de seu deus.Esse colar era considerado por Bastide um 'passaporte' que o creditava a identificavacomo 'filho de Xang' junto aos seus correligionrios africanos."Isso, mais do que sbios discursos, serviu efetivamente de lao entre ele e diversassociedades (egbe) formadas pelas pessoas dedicadas a Xang em diversas aldeias dafrica" (Verger, 2003:47).
Usar ilequs significa, de algum modo, por mais tnue que seja, fazer parte do grupo
religioso e ter uma identidade mtica prpria.
Certa vez, assisti a uma festa em que um pai-de-santo de outra casa estava sendo
confirmado em um cargo importante que havia recebido naquele templo. Tratava-se de uma
festa esplndida como a ocasio demandava, e a certa altura Ogum o orix dono da cabea do
babalorix e patrono daquela casa, incorporado no sumo sacerdote, danava em homenagem
ao pai-de-santo que ora se confirmava como um importante oloi (algum que tem um ttulo)
quando tirou um dos colares que carregava e o deu de presente ao sacerdote. Ele agora entrara
para aquela famlia.
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Receber um ilequ de presente sinal de estima e reverncia; comum quando h
uma iniciao, que aqueles que esto passando pelo rito confeccionem fios de seu orix
pessoal para presentear as pessoas que ajudaram em sua obrigao. Os colares de orixs
menos comuns so os mais desejados e quem ganha um colar daquele que est sendo iniciado
faz questo de mostr-lo a todo o grupo. Trata-se de um gesto muito significativo, uma forma
de agradecer, fazendo com que os presenteados participem do ax de seu prprio deus.
Igualmente atravs do reconhecimento pblico, motiva toda a comunidade a perceber e
valorizar o gesto daqueles que se colocaram a servio.
Os colares que protegem, identificam e integram tambm indicam a que categoria
sacerdotal cada um pertence. So emblemas de identidade e hierarquia.
Hierarquia
A hierarquia do candombl, a diviso sacerdotal do trabalho, sua organizao em
cargos atribudos individualmente para o exerccio de funes rituais bastante complexa
(Lima, 1977, Dantas, 1988, Prandi, 1991). Convm retomar sucintamente esse assunto a fim
de expor a relao entre a hierarquia religiosa e os colares rituais.
O candombl se constitui em comunidades denominadas terreiros. Essas casas, por sua
vez, se organizam de acordo com uma rgida hierarquia estruturada pelo tempo de iniciao e
a categoria sacerdotal a que cada um pertence e a qual no se pode escolher nem tampouco
mudar (Lima, 1977).
So duas as grandes categorias sacerdotais: a daqueles que manifestam os orixs em
transe, os chamados rodantes, e aqueles que no entram em transe, os no-rodantes. Os
rodantes se dividem em ias (filhos-de-santo) e ebmis (irmos mais velhos). Os no-rodantes
em ogs e equedes. Os diversos olois, literalmente os "donos dos cargos", so homens e
mulheres que ocupam uma vasta gama de cargos rituais ou honorficos. A cada categoria, no
entanto, corresponder um tipo de insero na hierarquia da comunidade.
A hierarquia baseada na idade de iniciao um princpio das sociedades africanas em
que os mais velhos so profundamente respeitados por sua sabedoria. Nessas sociedades
grafas so eles os depositrios do conhecimento e a eles se deve reverncia (Prandi, 2001b).
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Na religio dos orixs os "mais velhos no santo", chamados ebmis, so igualmente
reverenciados. O que conta, para tanto, o tempo de iniciao e o devido cumprimento das
obrigaes rituais. Assim, aquele que se aproxima da religio e ainda no iniciado pertence
categoria dos abis. Esse nome traz tona a percepo de que a iniciao representa um
novo nascimento, o nascimento para uma nova vida (Bastide, 1961, Prandi, 1991, Eliade,
1999, Vallado, 2002).
Aqueles que j foram inciados so chamados ias e ocupam uma posio
intermediria, se, por um lado, no so mais abis, por outro, ainda no cumpriram todas as
suas obrigaes rituais, e devem reverncia a seus mais velhos.
O longo ciclo inicitico se completa aps sete anos e o cumprimento das obrigaes de
um, trs e por ltimo a de sete anos, em que o ia finalmente se torna um ebmi e atinge a
senioridade sacerdotal na hierarquia do terreiro. Essa passagem garante-lhe uma srie de
prerrogativas, e expressa simblica e esteticamente de muitas maneiras.
A categoria sacerdotal dos no-rodantes tem um modo diverso de insero. Os ogs e
equedes so escolhidos, o termo usado no candombl suspensos, pelos orixs em transe e
enquanto no se iniciam so igualmente abis, a despeito de estarem aprendendo com aqueles
que exercem as mesmas funes o seu futuro papel no rito. Quando se iniciam so includosimediatamente na categoria de ebmis, mas, diferente dos ebmis rodantes, esses, com
algumas famosas excees, nunca podero abrir seus prprios terreiros e, embora gozem de
muito prestgio na comunidade, assumindo inclusive por vezes uma postura arrogante, estaro
sempre submissos ao pai ou me-de-santo.
Essa hierarquia complexa e rgida est em constante movimento em funo das
diversas obrigaes que sempre ocorrem e que acarretam mudanas na distribuio do poder.
A possibilidade de ascenso no interior do grupo religioso algo significativo nessa que ,como j foi dito, uma "religio rica de adeptos pobres" que em sua maioria encontram nela
um espao de realizao conquistado a duras penas, tendo em vista que as obrigaes so
sempre caras e, para sua realizao, impem sacrifcios e privaes ao fiel que no mede
esforos para agradar aos deuses.
A hierarquia o tempo todo permeada por tenses. H no seu interior uma disputa de
poder entre os filhos e nessa disputa cada detalhe pode ser motivo para que rivalidades e
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alianas sejam feitas e desfeitas. Nessa intricada rede, as expresses estticas do poder
sacerdotal ganham uma dimenso que no se pode supor num primeiro momento.
Uma vez vi um filho-de-santo, com aproximadamente dois anos de iniciado, todo
enciumado de uma abi da casa. Ela fora suspensa equede do orix do pai-de-santo. Ao
perceber que o colar da outra tinha como firma um pequeno coral, que considerado um
material nobre, ele disse em tom irnico: "Poderosa, hein, iai!"
A cada momento da trajetria religiosa corresponde um tipo de colar. Observando os
adeptos em uma festa pode-se perceber claramente atravs dos tipos de ilequs que usam em
que ponto da hierarquia esto situados; nesse contexto privilegiado "a soma das escolhas de
cada membro da comunidade, segundo os limites do culto, resulta em uma curadoria coletiva
da coleo de colares do terreiro" (Conduru, 2002).
Os abis so identificados por usarem poucos fios de uma nica volta e sem nenhum
enfeite. Comumente esses tm apenas o colar de contas de seu orix principal, o branco de
Oxal, orix da criao, s vezes tambm de seu orix secundrio, chamado adjunt, o do
orix patrono daquela casa e mais algum que eventualmente lhe seja permitido.
Muito diferente so os ias, que carregam fios de vrias voltas; em geral usam ilequs
de muitas voltas de seu orix principal, do secundrio, adjunt, de Oxal, dos orixs de seupai ou me de santo, e tambm ainda que apenas um fio simples, dos orixs de seus "irmos
de barco", aqueles com quem foi iniciado junto. Todos esses tambm sem nenhum enfeite. O
nmero de "pernas", que como se chama cada uma das voltas de um colar, vai depender do
orix em questo e quem determina isso o pai ou me-de-santo, para tal deciso leva-se em
conta o nmero do orix no jogo de bzios.
Independentemente do nmero de pernas dos colares o ia invariavelmente usa muitos
fios o que provoca incmodo porque tantos colares juntos somam peso considervel e
atrapalham durante a dana. Em algumas casas os ias costumam polvilhar talco nas firmas
dos colares, a parte que fica em contato direto com a nuca, para tentar amenizar o desconforto
causado pelo calor e o atrito dos ilequs com a pele. Obviamente ningum gosta desse
desconforto, mas os adeptos agem como se esse incmodo, esse sofrimento, fizessem parte da
condio de ia. Subjaz aqui a noo recorrente no candombl de que "ia tem que sofrer".
Todo o processo inicitico, alis, marcado pela imposio de sofrimento ao corpo;
dentre outras coisas, a pessoa dorme em esteiras sobre o cho duro, toma banhos frios, come
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com a mo, tem seu cabelo raspado e sua pele perfurada em diversos pontos. Alm disso o ia
tem que andar de cabea baixa, deitar-se no cho para saudar o pai ou a me-de-santo, e
seguir uma etiqueta bastante rgida no que diz respeito ao trato como os iniciados a mais
tempo.
Os adeptos costumam zelar bastante para que as regras que dizem respeito hierarquia
sacerdotal sejam estritamente cumpridas e esto sempre preocupados com isso. Conversas
sobre o tema "quem toma beno de quem", para ficar em um pequeno exemplo, so
constantes, alm, claro, das reprimendas queles que por alguma razo cometem qualquer
deslize.
A importncia de se viver cada fase da experincia inicitica muito enfatizada pelo
povo-de-santo, uma vez que aqui o aprendizado se d por meio da observao e repetio.
Nessa religio de tradio oral e segredo, a curiosidade no bem vista e at mesmo uma
pergunta simples pode causar problemas. Afirma-se o tempo todo que no h outro meio de se
aprender e ser um bom filho-de-santo, "verdadeiro conhecedor das coisas do orix" sem
passar inclusive pelo relativo sofrimento que esse longo processo inicitico implica.
A valorizao positiva do sofrimento, no entanto, pontual, diz sempre respeito ao rito
e no faz parte da viso de mundo do povo-de-santo. Para os adeptos do candombl osofrimento no um valor, a idia de ascese puritana inconcebvel assim como a negao do
mundo como o lugar do pecado. Muito pelo contrrio, o candombl valoriza o mundo como
espao de realizao e, como bem mostrou Rita Amaral, diferente das religies crists, nega o
pecado e vive o que ela chamou de "tica da felicidade urgente" (Amaral, 1992, 2002: 75).
As contas e outros materiais de que so feitos os colares no so baratos, ainda mais
porque so grandes as quantidades usadas. Ento muitas vezes o nmero de voltas dos ilequs
tambm determinado pelo poder aquisitivo do fiel, que nunca deixar de fazer enormeesforo para ter tudo que sua iniciao requerer ainda que para isso sejam necessrios anos de
economia e a ajuda de irmos-de-santo e outros amigos e familiares. Quando ainda for
necessrio fazer um colar com menos voltas do que seria a princpio determinado, a deciso
no aleatria, procura-se sempre um submltiplo do nmero do orix. Por exemplo, se o
nmero do orix for doze, como o caso de Xang, na impossibilidade de se fazer um fio
com doze voltas se far um de seis, ou mesmo quatro.
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O Quadro 1 indica o nmero de voltas que um colar dever ter na nao queto de
acordo com o orix, e com a sua posio na constelao pessoal do indivduo, ou seja, a de
orix principal ou adjunt.
Quadro 1 A quantidade de voltas dos colares
Orix Nmero de voltas se orixprincipal
Nmero de voltas se orixsecundrio (junt)
Exu 14 7
Ogum 14 7
Oxssi 9 6Ossaim 9 7
Logum Ed 16 8
Omulu 11 7
Nana 9 6
Oxumar 11 6
Eua 9 6
Xang 12 6
Oi 9 7
Oxum 8 5
Ob 9 6
Iemanj 9 8
Oxagui 8 6
Oxal 10 8
Segundo etnografia na Casa das guas
Outras adaptaes so feitas pelo mesmo motivo, para tanto se lana mo de muita
criatividade e capricho, tomando o cuidado de nunca mudar o que essencial na composio
dos colares. Um exemplo desse tipo de adaptao que ocorre com freqncia no caso de
orixs que usam contas de mais de uma cor; as contas rajadas e bicolores so ainda mais caras
do que as simples e nesse caso podem ser substitudas por contas simples, nas cores dos
orixs, dispostas alternadamente. Assim se pode ver um fio do orix Omulu cujas cores so
vermelho, preto e branco tanto de contas rajadas nessas cores quanto de contas vermelhas,
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pretas e brancas alternadas, sem que isso cause qualquer problema para o adepto, ou desperte
a ira do deus.
Os ias tambm usam no pescoo um outro adereo, que no exatamente um colar.
Feito de palha-da-costa tranada e bordada com contas da cor de seu orix principal, termina
em uma espcie de vassoura chamado moc (do iorub, minha corda). O moc usado para
puxar o ia em transe e conduzi-lo. uma pea de uso exclusivo do ia. Ele a recebe em sua
iniciao e a deixar de usar quando completar seu ciclo inicitico na obrigao de sete anos,
simbolizando a liberdade de movimento do seu orix. Segundo os sacerdotes entrevistados, o
moc simboliza esse perodo de maior submisso do ia tanto ao orix, o ia entra mais em
transe do que o ebmi, quanto aos mais velhos e, igualmente, ao pai ou me-de-santo.
Outro colar muito importante que marca a submisso e a relao profunda do iniciado
com seu orix o chamado quel. Trata-se de um colar disposto em formato de gargantilha,
de contas que so sempre exclusivamente do orix principal da pessoa, de vrias voltas,
truncado com firmas. Podem ainda ser de bzios, no caso de Oxumar e Omulu, ou ferro para
um Ogum especfico, mas invariavelmente a prerrogativa da confeco do sumo sacerdote
do terreiro, que pode eventualmente ser ajudado por pessoas da alta hierarquia. , dentre
todos os ilequs, talvez aquele cuja sacralidade seja mais densa posto que nem mesmo aquele
que o carrega deve toc-lo com freqncia.
O quel era originalmente na frica um colar especfico do orix Xang. No Brasil
ganhou outra atribuio, talvez uma conseqncia de ser Xang o orix cultuado na cidade de
Oi, regio de onde saram as fundadoras do candombl no Brasil (Verger, 1981). Tanto que
esse o orix patrono do terreiro tido como o mais antigo do Pas, a Casa Branca do Engenho
Velho, em Salvador.
O quel usado obrigatoriamente na feitura e tambm por ocasio das diversasobrigaes pelas quais o adepto passa ao longo de sua trajetria, sempre marcando esses
momentos de passagem em que esse est ligado de modo muito prximo a seu orix. To
importante o quel que ele s usado nas obrigaes em que se faz sacrifcio de animais de
quatro patas, as chamadas obrigaes grandes.
Nos perodos de uso do quel o ia fica impedido de fazer inmeras atividades sob
pena de desagradar sua divindade, que pode se ressentir de algum ato em falso; alm do que a
necessidade do cumprimento de todas as obrigaes relativas ao quel algo sobre o qual
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toda a comunidade adverte o fiel. Exemplos de prescrio so a abstinncia sexual, regime
alimentar apropriado, obrigatoriedade de dormir em esteira, de vestir-se de branco cobrindo a
cabea, impedimento de se sentar em cadeira, e mesmo no nibus, metr e at no escritrio
etc. Uma restrio importantssima que durante o uso do quel o orix mudo. O tempo de
uso do quel aps a iniciao e as obrigaes varia de acordo com a casa, com o orix e com a
categoria sacerdotal, podendo ir de uma semana a at trs meses. O quel em muitas casas
chamado de "gravata do orix".
Ainda durante o perodo de uso do quel, logo aps a sada da iniciao, ocorre o ritual
do pan em que "os ias executam simbolicamente todas as atividades da vida corrente"
(Verger, 1999: 110), como que se reeducando para a regressar vida secular.
Ao trmino do tempo de uso do quel a retirada do colar a ocasio em que o orix
manifestado vai dar o seu il, vai emitir pela primeira vez a sua saudao, o som pelo qual
ser reconhecido quando vier em terra na cabea daquele adepto. Esse momento marca, como
me afirmou um sacerdote "o fim do silncio da criao da nova vida que agora se manifesta
publicamente, tal como o beb que chora ao vir ao mundo".
Os ebmis que constituem a mais alta categoria sacerdotal, so os que possuem os
colares mais elaborados do candombl. De acordo com o princpio da antiguidade, queassocia tempo a sabedoria, quem mais velho tem mais conhecimento e portanto maior
liberdade, seja dentro do espao do terreiro em que pode transitar livremente por todos os
quartos sagrados, seja no acesso aos ritos, como tambm liberdade criativa.
"O saber ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar oconhecimento, transmutando mitos em ritos, prticas e objetos. Quanto maisconhecimento, tanto mais ritos, prticas e objetos" (Lemos, 2002).
Embora tenham, ou devam ter, relativo domnio e conhecimento ritual os ebmis
nunca esto livres de cometerem erros e serem censurados, freqentemente em pblico. Uma
vez ouvi um pai-de-santo conversando com seus filhos acerca das falhas que ele tinha notado
na ltima festa dizer que havia ebmis que sofriam da "sndrome do fio truncado". "Vocs
sabem o que isso? Funciona assim: um filho vira ebmi, ganha um fio truncado e sai por a
achando que pode fazer o que lhe d na telha! No bem assim, no..." O fato desse
sacerdote se referir a essa relativa autonomia da categoria dos ebmis como a "sndrome do
fio truncado" reitera o quo emblemticos so esses colares.
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Os ilequs muito elaborados e enfeitados dos ebmis utilizam uma ampla gama de
materiais, dentre esses o principal so as miangas que podem ser de vidro translcido ou
leitoso. A diversidade de materiais, alis, algo que vem aumentando com a expanso da
indstria produtora de peas para bijuteria, e o aumento das importaes nesse segmento.
Segundo me contou certa vez Reginaldo Prandi, na impossibilidade de adquirir miangas, os
adeptos da santera em Cuba, num perodo de importaes muito restringidas pelo governo,
chegaram a usar a cobertura de plstico colorido dos fios de telefone cortada em pedacinhos
para confeccionar os fios de seus orixs.
Quanto mais peas importadas das diversas origens melhor. A criatividade sempre
acrescenta novas possibilidades, e vem somar-se ao desejo de ser original e criativo de tal
forma, que atualmente comum ver fios de ebmis intercalados com coraes, peixinhos,
raios e muitos outros elementos que possam relacionar-se ao orix a que o determinado colar
pertence. Coisa que, como se pode observar nos registros mais antigos, no era comum.
Mais comum e recorrente , e foi desde muito tempo, o uso de materiais importados da
frica, como os corais, o monjol, o segui, que um tipo de canutilho azul utilizado para o
orix Oxagui; o laguidib, que so lminas de chifre de bfalo, usado para Omulu; o
chamado laguidib branco, que so lminas de osso tambm utilizadas para Oxal e Oxagui;
bzios, alm de marfim, mbar, ferro (para Ogum), e outros tantos tipos de pedras e materiais,
como dente de animais encastoado, casca de coco, pequenas peas em madeira, conchas,
prolas etc. Ou seja, tantos quantos materiais a imaginao, a criatividade e o desejo de
agradar aos deuses permitir.
Grande parte desses artefatos so importados da frica e podem ser encontrados em
casas que vendem artigos para umbanda e candombl. H muitas dezenas de locais de
comrcio de materiais para umbanda e candombl em So Paulo e, embora o povo-de-santo
tenha uma complexa rede de comunicao que faz com que sempre se saiba o que comprar e
onde, por vezes quando podem as pessoas vo ao que talvez seja o maior mercado de artigos
para as religies afro-brasileiras que o Mercado de Madureira no Rio de Janeiro.
As contas de vidro translcido ou leitoso so compradas em So Paulo nas muitas
lojas da rua Vinte e Cinco de Maro ou da ladeira Porto Geral. Atualmente grande parte das
contas provm de Taiwan ou da China, mas ainda uma parte expressiva delas, e costuma-se
dizer que as de melhor qualidade, so importadas da Repblica Tcheca.
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J as outras peas de acrlico, vidro, madeira, loua, plstico etc. tm origens variadas
e muitas, inclusive, so de fabricao nacional. interessante notar que, como me afirmou um
sacerdote, " chique" entre o povo-de-santo dizer que as coisas so importadas, sinal destatus
que eles gostam de exibir, como pude observar, sempre dizendo que se trata de "material
importado". De todo, o modo o que realmente preocupa os fiis que sejam a conta e o
material certos, e para tanto se empreende muito esforo e dinheiro tambm, porque quanto
mais raras e difceis de encontrar, tanto mais caras sero as miangas.
Dentre os adeptos do candombl sinal de muita distino e prestgio ter colares de
ebmi. Se por alguma razo vo visitar uma outra casa, eles o fazem portando seus fios mais
importantes, elaborados e ricos. Esses tambm so os fios escolhidos para serem usados em
eventos pblicos em que comparecem com seus trajes rituais, como celebraes ecumnicas,
homenagens diversas, congressos, feiras e at no afox que abre o desfile das escolas de
samba de So Paulo. Tive oportunidade de ver uma rica exposio desses colares por ocasio
do IV Congresso do Intecab Instituto Nacional de Tradio e Cultura Afro-brasileira
realizado em seis de abril de 2002 em Diadema na grande So Paulo, que tinha como patrono
o orix Oxssi. Havia l muitos lderes religiosos e muitos ebmis ostentando fios do orix
homenageado, e alm de seus colares de senioridade ricamente enfeitados, muitos, inclusive,
com peas em ouro, especialmente quando se tratava de algum filho ou filha de Oxum.
Isso nos remete a um outro valor estruturante da criao esttica do candombl, que
a ostentao. Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de So
Paulo, o africano Kabengele Munanga, em comunicao oral, me contou, certa vez, que para
o africano a ostentao um valor, ou seja, se mostrar, se exibir nessas culturas algo muito
importante, muito valorizado. Esse um valor que foi sem dvida preservado no candombl e
persiste at os dias de hoje com muito vigor.
Entre o povo-de-santo muito importante ser visto, chamar a ateno para si, e isso
independe da classe social da qual o fiel faz parte. O candombl uma religio em que os
adeptos pobres so a maioria mas em que possvel encontrar pessoas de todos os estratos
sociais, e todas do importncia ao modo como se apresentam, em especial nas festas
pblicas.
As festas so ocasies em que se mostra "o que o grupo e como pensa" (Amaral,
2002: 32), "o momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa, s vezes at
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mesmo em seu prprio corpo" (idem: 32). So tambm, como mostrou Rita Amaral, espao
de sociabilidade e lazer, momento para ver e ser visto, conhecer pessoas, trocar idias, fazer
fofoca, flertar.
A tudo isso se deve tanto esmero na confeco de tudo o que se vai usar. Desde a
roupa mais simples do dia-a-dia, at o traje de gala, passando pelos colares, tudo tem que ser
bonito e chamativo. Ainda que isso implique, para no falar dos altos custos financeiros, um
grande esforo fsico, pois em geral os ilequs so muito pesados, ainda mais quando se usam
vrios de uma vez.
Os colares mais pesados so os dos ias, que tm mais voltas, com peso que chega a
somar trs quilos e meio (para um ia de Xang com Oxum, por exemplo). Esse peso no
pescoo foraria o ia a andar curvado, de cabea baixa, em postura de submisso que
exigida para eles, sobretudo no primeiro perodo da iniciao. Se non vero bene trovato.
Em uma ocasio fui famosa rua Vinte e Cinco de Maro, acompanhando algumas
filhas-de-santo que iam comprar tecidos para roupas de candombl, e a cada tecido que eu
apontava elas prontamente tinham um julgamento que no deixava dvidas: "Ah, esse no,
essas flores so muito pequenininhas, nem vai aparecer!" ou ento "Ah, essa cor muito
apagada, desse jeito ningum vai me ver, menina!".A combinao do gosto por ser visto e a conseqente vontade de se exibir que se
expressam nessa esttica remetem a uma concepo profunda e vigorosa da religio dos
orixs, pois nas palavras de Prandi:
"O candombl afirma o mundo, valoriza-o: muito daquilo que considerado ruimsegundo outras religies, como dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso,dominao, poder para o candombl bom" (1991: 214).
A afirmao do mundo faz dessa combinao entre o prazer em ser admirado e odesejo de se mostrar, que parte do estilo de vida, da sociabilidade do povo-de-santo, algo
legtimo sobre o qual no h nenhum tipo de restrio, ser bonito tambm muito valorizado
(Amaral, 1992, 2002). O julgamento acerca do que bom por vezes se confunde mesmo com
o belo; por sinal, a palavra iorub que designa belo odara que tambm significa bom. De
uma festa pblica diz-se sempre e antes de tudo que "foi linda", que "os orixs estavam muito
bonitos", "que danavam muito bem", ou seja, o julgamento daquilo que bom est
inextricavelmente associado ao belo.
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A valorizao da beleza um dos fatores que contribui para a insero e reproduo
do candombl na metrpole moderna. Igualmente, muito de sua visibilidade, de seu alcance
simblico, evidenciado especialmente pelas artes, advm de sua esttica plstica exuberante,
que se manifesta sobremaneira na festa pblica.
Ser um ebmi definitivamente ter atingido uma posio em que se pode e mesmo se
deve ostentar. claro que, mesmo essa ostentao limitada pelo pai ou me-de-santo. Por
mais liberdade criativa que se tenha, conhecimento adquirido, e at mesmo dinheiro, porque
muitos materiais so bastante caros, ainda o chefe do terreiro que vai efetivamente ditar os
limites do que se pode ou no usar e no s porque ele quem detm mais conhecimento
ritual, iniciado a mais tempo, mas igualmente porque os sacerdotes esto sempre
preocupados com a imagem que seus terreiros passam s pessoas de fora, e tambm porque
ningum deve ser mais bonito, vestir-se melhor, ter ilequs mais belos do que o sumo
sacerdote, afinal, beleza poder.
So basicamente dois os colares de distino do ebmi na nao queto: os brajs e o
hungebe. O braj tem um formato especfico: as muitas voltas de miangas so unidas a
intervalos regulares por uma firma que pode ser de loua, resina, coral, pedra, bzio ou um
outro material. O nmero de contas de cada segmento dado por um mltiplo do nmero
caracterstico do orix. A despeito de o ebmi poder ter tantos brajs quanto queira e possa
ter, os mais importantes so do orix principal e do segundo orix que se costuma arranjar da
seguinte maneira: o braj do orix principal com as contas nas cores do orix principal da
pessoa e com as firmas nas cores do segundo orix e o braj do segundo orix de modo
inverso. Mas h outras opes de combinao. Braj, alis, um nome de uso hoje
generalizado mas que originalmente designava to somente os colares de bzios feitos para os
orixs de origem jeje: Nan, Omulu e Oxumar.
Observando atentamente uma roda de filhos-de-santo, o xir, poder se saber com
facilidade quais so os ebmis apenas verificando quem dentre eles usam brajs. Eles
distinguem e localizam na hierarquia que se expressa publicamente no por ocasio das festas,
qualquer alterao nessa ordem causa muito desconforto entre os fiis. Uma vez um pai-de-
santo me contou que na sua iniciao sua ento me-de-santo fez para ele um braj de Ogum,
seu orix, e ele saiu na primeira festa depois de iniciado, como ele mesmo disse, "no fim da
fila e com o braj no pescoo", fato que foi amplamente comentado por seus irmos de santo,
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fonte de muito cimes, discusses e problemas para a me-de-santo posto que o uso de braj
por um ia uma incoerncia por definio.
preciso ressaltar, no entanto, que embora os brajs sejam um importante smbolo de
distino dos ebmis, com o passar do tempo eles acabam preferindo usarilequs mais leves,
com menos voltas, porm ainda mais elaborados, frutos de sua j comentada, liberdade de
criao. comum usarem nesses fios elementos mais nobres, freqentemente mais caros e
preciosos, e sempre relacionados aos orixs em questo.
O hungebe, por sua vez, por excelncia o colar do ebmi; trata-se de um fio de uma
volta, de contas de loua marrom intercaladas com coral. Um colar at bastante simples
comparado aos brajs, mas de suma importncia. Vejamos o que nos diz a esse respeito, Leda
de Ogum, 15 anos de santo:
"O hungebe tem uma importncia suprema, e ele identifica no o orix, ele identifica oebmi. um fio que a gente recebe no dia que recebe o oi e ele te acompanha atdepois da morte".
De acordo com os entrevistados o hungebe o nico colar que acompanha o morto em
seu caixo, simboliza "a quebra do pacto da vida, da ligao com o mundo dos viventes".
No candombl queto o hungebe tem uma ligao direta com o orix Oi, essa a cor
dos fios da deusa tambm, e essa divindade, de acordo com a mitologia, a encarregada de
levar os espritos dos mortos, os eguns, para o Alm. Da, segundo alguns sacerdotes, sua
ligao com a vida terrena. Alm disso, ainda de acordo com esses, esse fio teria a
propriedade de proteger seu portador da morte tendo em vista que o ebmi tambm lida com
as intempries e eventualmente os eguns que atrapalham os seres humanos e devem ser
despachados atravs de ritos apropriados, alm dos ritos fnebres.
A importncia desse colar como expresso esttica da senioridade algo que no sepode perder de vista e que muito clara inclusive no cotidiano da comunidade; tanto assim
que muitas vezes os ebmis no usam qualquer outro fio que os identifiquem a seus orixs
mas nunca deixam de usar o hungebe.
"Ele a identificao de voc ser um ebmi. Se de repente eu no tiver um outro fiode contas, eu tiver s o hungebe, ele tudo, ele o principal de tudo. Eu posso no terum braj, eu posso no ter um fio truncado, mas se eu tenho meu hungebe vo saberque eu sou do candombl e que sou uma ebmi" (Leda de Ogum).
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Uma ocasio, em janeiro de 2003, assisti a uma sada de ia em que havia tambm um
rapaz dando obrigao de sete anos, e portanto tornando-se um ebmi. Ele foi trazido ao
barraco e, sentado em sua cadeira, aguardava visivelmente emocionado o momento em que o
sacerdote que o homenageava danando em sua frente e ostentava o colar do ebmi nas mos,
lhe colocaria o hungebe no pescoo, sinal de sua maioridade sacerdotal, de sua grande
intimidade com os deuses. Se o ilequ funciona como documento de identidade o hungebe
usado como prova de maioridade.
Algodo ou nilon?
Os colares rituais tm uma dinmica de circulao, montagem, desmontagem,remontagem e uso dentro dos terreiros. Muitas vezes acontece, por exemplo, de algum
comprar um determinado tipo de conta que no exatamente a cor de seu orix. Essa conta
fica guardada e um dia mais tarde vai servir a outro filho-de-santo. muito comum tambm
que por ocasio da obrigao de sete anos os ilequs de ia sejam desmontados e remontados
como brajs.
Outra situao bastante usual daqueles que mudam de ax, que por alguma razo
saem de uma casa e vo para outra em busca de algo que no encontraram anteriormente, e apode ocorrer de a cor de suas contas mudar. Nessas circunstncias possivelmente as firmas
podero ser reaproveitadas.
Mais de uma vez pude acompanhar a montagem dos colares no terreiro. Enfiar contas
um trabalho que pode envolver toda a comunidade que se mobiliza para a iniciao ou em
perodos de obrigao em que fiis ficam recolhidos no templo. Esses so momentos
privilegiados na sociabilidade do grupo, quando emergem, dentre outros, assuntos como de
onde veio essa ou aquela firma, em que circunstncias se ganhou esse ou aquele colar, a razo
do uso de determinado material ou cor.
Em mais de uma dessas oportunidades ouvi comentrios acerca do tipo de fio utilizado
para se fazer o colar. Na grande maioria das casas pesquisadas de que tive notcia, usa-se fio
de nilon para a confeco dos ilequs, por razes de ordem prtica uma vez que esses fios
so muito resistentes, fceis de se passar nos buracos das miangas e tambm no absorvem a
gua de folhas, nem o sangue por vezes vertido sobre os fios. Alm disso secam rapidamente
e no ficam com mau cheiro.
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Existem, no entanto, algumas casas que usam o chamado cordon, um fio de algodo
levemente encerado, que no to resistente quanto o fio de nilon nem tampouco prtico ou
higinico, uma vez que estraga com facilidade e muito mais difcil de passar pelas contas.
no entanto, o fato de absorver a gua, o amassi e o sangue sacrificial que segundo alguns
sacerdotes o faz ritualmente mais apropriado que o fio de nilon, porque de acordo com esses,
ao reter esses elementos o cordon de algodo retm ax.
A discusso subjacente ao uso de um ou outro material algo muito recorrente nessa
religio de tradio oral, em que cada templo autnomo, e em que cada pai ou me-de-santo
muito criativo.
O candombl se formou no Brasil em meados do sculo XIX como uma organizao
original da dispora de diversos povos africanos e, como religio de dominados, sofreu fortes
presses que poderiam ter levado sua extino. O que se verificou, no entanto, foi que a
religio dos orixs no s sobreviveu como se expandiu e h muito tempo j no mais uma
religio de negros, mas universal, cujo alcance extrapola, inclusive, os limites das fronteiras
nacionais.
Nesse longo processo de resistncia e reproduo, o candombl sempre se preocupou,
e se preocupa ainda, em preservar-se, em guardar bem os seus segredos, seus ritos, mitos,enfim, sua tradio (Prandi, 2005).
Manter a tradio, no entanto, no significa ausncia de mudanas, uma vez que
mesmo "aquele trao aventado de querer-se permanente da tradio no exclui a sua prpria
evoluo histrica mesmo a permanncia tem uma histria" (Bornheim, 1987: 23). E no
candombl assim tambm se faz, a mudana, a ruptura, necessria sua conservao e
manuteno. Como assinala Bornheim:
"A tradio s parece ser impertubavelmente ela mesmo na medida em que afastaqualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de quea ausncia de movimento termina condenando-a estagnao da morte.A necessidadeda ruptura se torna, em conseqncia, imperiosa, para restituir a dinamicidade aoque parecia 'sem vida'"(idem, : 15, grifo meu).
Tratam-se de mudanas, de rupturas, que visam a conservar, restituir a tradio, ou
seja:
"A noo de 'tradio' para o prprio candombl , portanto, uma noo que tem a
dinmica como um forte elemento constitutivo, em termos de que a transformao seja
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por meio de abandonos, resgates, acrscimos, substituies, etc. um mecanismopresente nas vrias possibilidades de representao desta religio e que assegura, deresto, sua continuidade nos vrios contextos em que se insere" (Silva, 1995: 291).
As mudanas aqui so sempre feitas em nome da manuteno, ou mesmo recuperaoda tradio, ainda que o resultado seja uma "tradio inventada".
"Tradies inventadas" so, de acordo com Eric Hobsbawm, altamente aplicveis no
caso da "nao", uma inovao histrica comparativamente recente, e seus fenmenos
associados. Por tradio inventada entende-se:
"Um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamenteaceitas; tais prticas de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores enormas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, umacontinuidade em relao ao passado" (Hobsbawn, 2002: 9).
Como no candombl a legitimidade garantida por meio dessa continuidade em
relao ao passado, pela referncia constante aos mais velhos, as novidades, as
transformaes, que so introduzidas no processo de reproduo da religio adquirem
necessariamente ostatus, por assim dizer, de tradio e se configuram, por meio da repetio,
em verdadeiras "tradies inventadas".
desse modo que um novo modelo de roupa que nunca tenha sido usado em um
determinado terreiro, por exemplo, pode ser introduzido pelo pai-de-santo que simplesmente
tenha visto esse modelo em outra casa, achado bonito e copiado. Logo se ouvir dizer da
roupa nova que " assim" porque no terreiro de origem, " assim que se veste".
H, no entanto, um espao efetivamente aberto para as inovaes, em que no h a
possibilidade de se afirmar que " assim porque sempre foi assim". Esse o caso das
inovaes tcnicas no mbito da cozinha, que central no candombl porque l que as
comidas que alimentam os deuses so preparadas. H todo um debate dentro da religio se aadoo alimentos j processados, como o p de feijo para o preparo do acaraj por exemplo,
ou mesmo de eletrodomsticos modernos que facilitam a preparao das comidas, no seriam
ruins para a religio por caracterizarem um afastamento do modo tradicional de se cozinhar a
comida dos deuses.
Mas a despeito de toda a discusso no se v, hoje em dia, algum pilando feijo para
obter a farinha para o acaraj e possvel at que de to habituados aos pacotes de farinha
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pronta, facilmente encontrados no comrcio, que filhos mais novos nem saibam qual era o
processo para produzi-la no passado.
Perguntados acerca disso, a maioria dos sacerdotes afirma no ver nessas inovaes
um perigo, pois h a percepo de que elas contribuem para que a vida no santo seja menos
penosa e o dispndio de tempo com a religio, de um modo geral, seja menor. Algo sem
dvida muito importante para a manuteno do candombl e mesmo para arregimentao de
novos adeptos, especialmente em uma cidade to grande como So Paulo em que talvez o
bem maior de que as pessoas possam dispor seja exatamente tempo livre. Conforme ouvi de
uma me-de-santo "O que importa a f minha filha! Se vai usar liquidificador ou pilo o
orix no vai se importar, desde que a comida dele seja feita com os ingredientes certos e
com devoo".
Esse debate, obviamente, no se restringe somente s "coisas da cozinha". O povo-de-
santo est sempre discutindo se a adoo de tcnicas e materiais industrializados no seria
prejudicial religio, no provocaria uma perda paulatina da tradio e conseqentemente da
fora, do ax, a energia vital que move o mundo e sustenta a religio. O uso do nilon vesus
cordon apenas uma pequena amostra desse debate, que o mesmo que se trava em torno de
outros pares de alternativas como usar o liquidificador ou triturar os alimentos no pilo, usar
fogo a gs ou fogo a lenha, comprar farinha pronta para fazer acaraj ou produzi-la,
comprar os ilequs prontos ou enfi-los etc.
Os ilequs e as cores
Alm dos tipos de colares j mencionados preciso lembrar que eles tambm podem
ter comprimentos diversos. Em geral eles vo at o umbigo, mas os colares dos orixs
masculinos so usados pelos ebmis atravessados sobre o peito e so, portanto, um pouco
mais compridos. Usar colares atravessados , de acordo com Me Stella, a ialorix do Ax
Op Afonj, uma prerrogativa exclusiva dos filhos de orixs masculinos "independentemente
de tempo de iniciao e condio hierrquica" (Santos, 1995).
Existem tambm colares de contas mais curtos que se fazem para uso cotidiano, fora
do rito, e igualmente colares de pedras, corais ou outros materiais, usados somente por
ebmis, que podem tambm ser mais curtos. Uma vez ouvi um sacerdote dizendo que sua
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me-de-santo o havia aconselhado a fazer para si alguns colares mais curtos para proteger o
peito, uma parte do corpo simblica e efetivamente central.
Alm da enorme diversidade de materiais que podem ser usados nos ilequs, conforme
j mencionei, preciso ter em vista que as miangas tambm so diferentes. Existem dois
tipos de contas as que so de vidro opaco, leitosas, e as de cristal, que so translcidas.
As contas translcidas so usadas, em geral, para as divindades femininas, em
especfico as ligadas s guas, como o caso de Iemanj e Oxum; esse uso uma referncia
transparncia das guas que essas deusas habitam. Nas palavras de Claude Lpine "o cristal
evoca por sua transparncia as guas doces como as guas salgadas" (1978: 300).
H o caso especial de Logum Ed, o orix masculino, que filho de Oxum comOxssi e usa alternadas, as contas de seu pai, azul-turquesa opacas, e de sua me, dourado
translcido claro. Igualmente tambm possvel encontrar miangas translcidas para um ou
outro orix masculino em um avatar muito especfico, dependendo do templo, mas isso raro.
Muito da exuberncia e diversidade dos colares se deve ao seu colorido, ou
multicolorido, tendo em vista que so muitas as cores usadas. No candombl queto so
aproximadamente dezesseis as divindades cultuadas e cada uma comporta em geral uma ou
duas cores bsicas que podem variar de tom de acordo com a invocao do orix, a qualidadecomo diz o povo-de-santo, conforme se v no Quadro 2. Nas palavras de Armando Vallado
(2002: 41):
"Qualidade o termo usado no candombl para referir-se s mltiplas invocaes ouavatares dos orixs. (...) as qualidades referem-se a cultos especficos dos orix, emque so invocados aspectos mticos da sua biografia mtica, o que inclui suasdiferentes idades, suas lutas, seus momentos de glria etc. Tambm locais geogrficos
passam a compor a qualidade".
De tal forma que se pode ter um ilequ de Oxum cuja cor o dourado desde o maisclaro at quase marrom dependendo do avatar da deusa em questo. Nesse sentido Claude
Lpine (1978: 308) sustenta que tanto mais velho o orix, mais escuras so as contas e, por
conseqncia, quanto mais jovem, mais claras.
Juana Elbein dos Santos (1975) e Rosa Maria Bernardo (1994) classificam as cores
usadas nos colares e roupas dos orixs de acordo com um sistema tripartite baseado em Victor
Turner (1967), segundo o qual as cores-significado podem ser classificadas a partir do branco,
vermelho e preto do qual todas as outras cores derivariam.
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Assim, de acordo com essa teoria (Santos, 1975: 41), ao vermelho estariam
associados: o corrimento menstrual, o sangue humano ou animal; o azeite de dend, o ossn,
um p ritual vermelho muito usado nas iniciaes, o mel; cobre e o bronze. O vermelho
tambm abrange o amarelo.
Quadro 2 Os colares e as cores no candombl de nao queto e na umbanda
Orixs Cores das contas no candombl denao queto
Cores das contas na umbanda
Exu vermelho e preto, azul e preto(alternadas)
vermelho e preto (alternadas)
Ogum azul escuro, verde escuro, azul escurorajado de verde vermelho
Oxssi ou Od azul turquesa verdeOssaim verde e branco (alternadas ou rajadas) -Oxumar amarelo e preto, laranja e preto, verde
e amarelo (alternadas), bzios-
Obalua ou Omulu vermelho, branco e preto (rajadas oualternadas)
preto e branco, amarelo e preto
Xang vermelho e branco, marrom e branco(alternadas)
marrom, amarelo, roxo
Oi ou Ians marrom, vermelho escuro laranjaOb vermelho e amarelo translcido,
vermelho escuro, laranja translcido
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Oxum dourado translcido dourado translcido, amarelo, azulescuro
Logum-Ed dourado translcido e turquesa(alternadas)
-
Eu bzios, vermelho escuro translcido -Iemanj vitrificada cristal transparente, ou
alternada com azul ou verdetranslcido
vitrificada cristal transparente ouazul claro translcido
Nan branca rajadas de azul cobalto, roxo roxoOxagui (Oxal
jovem)
branco e azul real intercaladas -
Oxaluf (Oxalvelho)
branco branco
Ao branco estariam associados: o smen, a saliva, o hlito, as secrees, o plasma; a
seiva, o sumo, o lcool e as bebidas brancas derivadas das palmeiras e outros vegetais, o
yrosn, p branco de uso ritual, o ori que uma manteiga vegetal; alm de sais, giz, prata e
chumbo.
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Por fim, ao preto estariam associados: cinzas de animais; sumo escuro de alguns
vegetais; o wj, p azul escuro tambm de uso ritual; carvo, ferro e outros minerais. O preto
compreenderia ainda o verde e o azul.
Parece-me muito difcil afirmar, com base na pesquisa de campo, que a determinao
das cores consagradas aos orixs obedea a princpios cujo simbolismo tem um alcance to
preciso. As cores esto ligadas s caractersticas dos orixs, que por sua vez se depreendem de
sua mitologia, que, como j foi dito, forma e informa a esttica do candombl como um todo e
inclusive as cores dos colares.
Um mito de Xang expressa claramente essa dinmica. Diz esse mito que Xang era
um filho muito rebelde e inconseqente que causava muito desapontamento em seu pai
Obatal que vivia recebendo muitas queixas pelos problemas causados pelo filho rebelde.
Obatal justificava os atos do filho afirmando que Xang no havia sido criado perto de si,
mas esperava o dia em que ele haveria de submeter-se sua autoridade. Certa ocasio Xang
estava na casa de uma de suas mulheres quando teve seu cavalo roubado por Obatal e,
percebendo o roubo, saiu em encalo do velho e quis enfrent-lo. Obatal no se intimidou e
ordenou que Xang se prostrasse a seus ps e ele, desarmado, atirou-se ao cho e foi
dominado por Obatal. O velho ento desfez o colar de contas vermelhas que Xang trazia
consigo e "alternou as contas encarnadas de Xang com as contas brancas de seu prprio
colar. Obatal entregou a Xang, o novo colar vermelho e branco. Agora todos saberiam que
aquele era seu filho" (Prandi, 2001: 261, 262).
Esse mito ainda menciona o branco emblemtico de Oxal. Branco, entre os iorub,
a cor da criao; Bastide (1961) afirma que os ritos de iniciao se do sob o signo de Oxal
pois so tambm ritos de criao, "uma nova personalidade est em vias de ser modelada"
(idem: 48) e esse patronato de Oxal sobre a criao simbolizado pelo uso de roupas brancas
por parte do ia durante todo o perodo da iniciao.
Igualmente o rito funerrio do axex marcado pelo uso de roupas brancas e Bastide
cogita: "Mas, pode-se perguntar se o axex no seria tambm uma criao, e por isso mesmo
posta sob o signo de Oxal" (idem: 99). Criao que nesse caso no mais a da nova
personalidade, mas a do egum, o esprito ancestral a ser cultuado.
Assim como o branco da criao de Oxal, o vermelho est associado ao fogo e
guerra. Essa a cor do colar de Xang, o deus do trovo, de Oi, a senhora do raio e da
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tempestade, e tambm de Ob, a terceira esposa de Xang, igualmente guerreira, que ainda
pode usar laranja ou vermelho e amarelo combinados.
O verde est ligado s plantas e floresta, a cor de Ossaim, deus das folhas, e pode
ser usada por algumas qualidades de Ogum e Oxssi. O dourado, evocando o ouro, a riqueza,
de Oxum. O transparente das guas de Iemanj, podendo ser mesclado com verde ou azul
claro, tambm transparente. So tonalidades do mar. O azul escuro a cor de Ogum, que
remete ao minrio de ferro, origem do patronato desse deus que o ferro e a forja. Azul-
turquesa a cor de Oxssi, que se por um lado um caador que vive nas matas, por outro
lado irmo mais novo de Ogum, como o povo-de-santo sempre faz questo de enfatizar.
H ainda o roxo usado para Nan que parece ser uma meno morte, que seu
patronato, e a qual essa cor est ligada entre os catlicos. Alm do vermelho, branco e preto
de seu filho Omulu que parece estar relacionado tambm ao simbolismo da morte, portanto
branco, e tambm a divindade da terra quente, da o vermelho e preto. Oxumar, a serpente,
talvez seja um dos deuses sobre o qual o consenso seja mais difcil, mas suas contas so
sempre bicolores ou multicoloridas, aludindo, segundo me foi dito, pele das cobras e
tambm ao arco-ris que uma de suas representaes.
De todo o modo, foi no final do sculo XIX e comeo do XX que o candombl firmousua constituio, definindo costumes rituais at hoje mantidos. Dessa poca a fixao das
cores e possvel que a razo das escolhas j tenha em alguns casos sido esquecida.
Dentro da mesma nao, as cores consagradas aos colares dos orixs variam pouco de
terreiro para terreiro, porque h um amplo conhecimento desse repertrio; as variaes
maiores ficam por conta dos orixs menos cultuados, mais "raros" como Ob, Eu e mesmo
Oxumar. O mesmo no acontece com as roupas dos deuses; para essas as possibilidades
cromticas so muito maiores.
1.1.3. Os colares no tambor-de-mina
Tambor-de-mina o nome da religio dos voduns no Maranho. Voduns so os deuses
africanos dos povos jejes ou fons. Tal como o candombl, trata-se de uma religio inicitica e
sacrificial, em que os adeptos, preparados atravs dos rituais, manifestam os deuses no transe.
O tambor-de-mina hoje se encontra espalhado pelo Nordeste e tambm o Norte do Pas, mas
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tem como matriz cultural dois terreiros que permanecem vivos at hoje em So Lus: a Casa
Grande das Minas e a Casa de Nag; foi a partir dessas e outras casas tradicionais que a
religio dos voduns se espalhou e se consolidou (Prandi, 1997).
O tambor-de-mina se instalou em So Paulo h quase trs dcadas. Os voduns e
encantados desembarcaram na metrpole junto com aquele que veio a ser o maior expoente da
mina em So Paulo, pai Francelino de Xapan, que em 1977 inaugurou a Casa das Minas de
Tia Jarina (Prandi, 1997).
Pai Francelino filho-de-santo do j falecido Pai Jorge de Itacy, fundador do Terreiro
de Iemanj, localizado em So Lus, que, por sua vez, teve origem a partir do Terreiro do
Egito, outro dos mais antigos e importantes templos do tambor-de-mina em So Lus.
Atualmente pai Francelino j tem filhos e netos-de-santo espalhados por So Paulo e
mesmo nas regies Sul e Norte, toda uma gerao de mineiros cuja origem a bem sucedida
Casa das Minas de Tia Jarina localizada em Diadema.
O tambor-de-mina difere em diversos aspectos do candombl tanto queto, como
angola, os mais praticados em So Paulo. As diferenas vo desde a lngua ritual para as
cantigas dos voduns, que o ewe-fon, e abrangem diversos aspectos do rito, como tambm a
esttica. Nesse aspecto talvez os colares sejam um dos pontos mais divergentes em relao aocandombl; partindo dessa constatao que abro aqui um espao para tratar detidamente dos
colares do tambor-de-mina em So Paulo.
Tanto quanto no candombl, os colares no tambor-de-mina tm um papel muito
importante no rito, e so bastante valorizados pela beleza exuberante e os diversos
significados que encerram, que vo, como j foi dito em relao ao candombl, desde o
aspecto da proteo mesmo, passando pela identificao com os deuses, at o posicionamento
na tambm rgida e complexa hierarquia.
Aqui os colares so igualmente sacralizados atravs