romance policial e psicanalise

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  Interações Universidade São Marcos [email protected]  ISSN (Versión impresa): 1413-2907 BRASIL  2002 Christian Ingo Lenz Dunker / Tatiana Carvalho Assadi / María Auxiliadora M. Bichara / Joelle Gordon / Heloisa Helena Aragao e Ramírez ROMANCE POLICIAL E A PESQUISA EM PSICANÁLISE Interações,  jan-jun, año/vol. VII, núm ero 013 Universidade São Marcos Sao Paulo, Brasil pp. 113-126 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx  

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Convergências entre a estrutura narrativa policial e certas condições metodológicas de pesquisa em psicanálise.

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  • InteraesUniversidade So [email protected] ISSN (Versin impresa): 1413-2907BRASIL

    2002 Christian Ingo Lenz Dunker / Tatiana Carvalho Assadi / Mara Auxiliadora M. Bichara /

    Joelle Gordon / Heloisa Helena Aragao e RamrezROMANCE POLICIAL E A PESQUISA EM PSICANLISE

    Interaes, jan-jun, ao/vol. VII, nmero 013 Universidade So Marcos

    Sao Paulo, Brasil pp. 113-126

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina y el Caribe, Espaa y Portugal

    Universidad Autnoma del Estado de Mxico

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    ROMANCE POLICIALE A PESQUISA EM PSICANLISECHRISTIAN INGO LENZ DUNKERTATIANA CARVALHO ASSADIMARIA AUXILIADORA M. BICHARAJOLLE GORDONHELOSA HELENA ARAGO E RAMIREZPrograma de Ps Graduao em Psicologia da Universidade So Marcos, 1999

    Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: O presente artigo tem por objetivo estabelecer certas convergncias en-tre a estrutura narrativa do romance policial e certas condies metodolgicas dapesquisa em Psicanlise. Procura-se, com isso, contribuir para a distino entre aPsicanlise como mtodo de cura e como mtodo de investigao ou pesquisa. Aconvergncia entre ambos os campos j foi assinalada por inmeros autores queapontam a contemporaneidade cultural dos dois discursos em questo. Diferenassubstantivas igualmente j foram traadas. Enfatizaremos os passos da investigaolevando em conta o critrio de verdade, a formulao de evidncias, a construo deproblemas e a teoria da prova envolvida em cada um dos discursos em questo.

    Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: Psicanlise; literatura; narrativa; metodologia; clnica.

    DETECTIVE FICTION AND PSYCHOANALYTIC RESEARCHDETECTIVE FICTION AND PSYCHOANALYTIC RESEARCHDETECTIVE FICTION AND PSYCHOANALYTIC RESEARCHDETECTIVE FICTION AND PSYCHOANALYTIC RESEARCHDETECTIVE FICTION AND PSYCHOANALYTIC RESEARCHAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This paper take as an aim the proposal of some convergences betweenthe narrative structure of the police novel and some methodological conditions ofresearch in psychoanalysis. We try to make a contribution to the distinction betweenpsychoanalysis as a cure method and psychoanalysis as a research or investigationmethod. The convergence between the two fields was pointed out by some authorswhom stressed the cultural proximity between the two discourses. Importantdifferences was still marked. We emphasized the degrees of investigation examiningthe truth theory, the formulation of evidences, the problem construction and thetheory of judge in both discourses.

    KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: Psychoanalysis; literature; narrative; methodology; clinic.

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    1. IntroduoQuando falamos nesses dois personagens contemporneos

    Sherlock Holmes e Freud muitas semelhanas surgem imediatamen-te. Ambos esto imersos na atividade profissional da resoluo de mis-trios. Ambos realizam tal tarefa utilizando princpios semelhantes:confiana na razo, ateno e importncia conferida aos pequenos de-talhes, revelao do sentido oculto em aparncias desconexas, justifi-cao lmpida e persuasiva de suas concluses.

    A importncia de um estudo comparativo entre romance policial ePsicanlise pode ser argumentada de diversas maneiras: confluncia deparadigmas literrios na construo da escuta analtica, vasta presena demetforas que remetem ao romance policial no prprio texto de Freud ecompartilhamento de figuras retricas entre os dois estilos de escrita. Paraalm da proximidade estilstica, entre o texto de Freud e essa forma espe-cfica do romance, h ainda que considerar o potencial de esclarecimentosobre os modos de subjetivao que tornam possvel a emergncia simul-tnea da Psicanlise e do romance na civilizao ocidental. Em outras pa-lavras, entender as possveis relaes entre esses dois campos nos ajudariaa compreender a formao discursiva na qual a Psicanlise emerge e, por-tanto, algo sobre sua prpria condio de possibilidade histrica e cultural.

    O prprio esgotamento da forma narrativa do romance j foi apon-tado como correlativo do esgotamento da forma investigativa freudiana.Spence (1992), por exemplo, apontou para os diferentes aplainamentosnarrativos realizados por Freud na construo de seus historiais clnicos,bem como na seleo de peas clinicamente argumentativas. Ora, segun-do Spence, o paradigma subjetivo no qual a Psicanlise emergiu nocorresponde mais ao estilo subjetivo hegemnico em nossos tempos.No acreditamos mais em uma nica soluo, inexorvel e necessriapara o drama subjetivo. Nossas narrativas de vida no so mais retilnease conclusivas, mas polifnicas e abertas.

    A metfora, usada por Freud (1937), de que no tratamento analticotratar-se-ia de encontrar as peas e montar o quebra-cabeas de nossashistrias, de tal forma que todos os elementos se renam na figura daverdade, parece ter perdido sua fora. Mesmo o seu adendo de que, se

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    nem todas as peas do quebra-cabeas estiverem disponveis, precisoconstruir os elementos faltantes, soa-nos anacrnico. Assim como a con-fiana no aforisma de Holmes, soa-nos ingnua: Quantas vezes eu disse avoc que quando voc tiver eliminado o impossvel, o que quer que reste,por mais improvvel que seja, deve ser a verdade (Doyle, 1938, p. 18).

    A subjetividade parece ter perdido sua espessura: nem profundanem rasa, mas plstica, heteromrfica, mutante e transitria so seusatributos contemporneos. A prpria idia do destino individual oucoletivo, como um enigma a decifrar, perde fora diante dos aparatosdiscursivos de desencantamento, administrao, hiperinterpretao domundo. A descoberta, construo e cultivo de uma subjetividade enig-mtica a si mesma pressupe pacincia, interrogaes constantes e umacerta confiana no compartilhamento e estabilidade das significaeslentamente estabelecidas. Holmes e Freud so cones de uma pocaem que o mtodo se ligava indissociavelmente ao seu praticante naconstruo de uma experincia (Gay, 1997). O mtodo no poderia,em ambos os casos, ser facilmente traduzido em uma tcnica annima,infinitamente capaz de reproduo e replicao. Ambos no descobri-ram apenas a singularidade do sujeito criminoso e do neurtico, mastambm do pesquisador que sob eles se detm.

    2. Os princpios da construo da narrativaComo observou Todorov (1980, p. 68), o romance policial consti-

    tudo pela relao problemtica entre duas histrias: a histria do cri-me, ausente, e a histria da investigao, presente, cuja nica justificativaest em nos fazer descobrir a primeira histria. O romance se desenvol-ve na produo de tenses, conflitos, transformaes e equilibraesrealizadas entre a conjectura metanarrativa, elaborada pelo leitor, e a nar-rativa apresentada pelo texto. A leitura do romance, assim considera-da, uma espcie de jogo, cujo objetivo reconstituir, se possvel antesdo desenlace, qual a narrativa verdadeira. Temos, portanto, dois deteti-ves: o personagem por exemplo, Holmes, Dupin, Poirot ou Marlowe e o leitor, que convidado a situar-se no texto a partir de sua prpriaverso sobre o caso. Tal verso deve ser de fato uma narrativa, isto , nobasta que o leitor localize o autor do crime, mas deve tambm integr-lo

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    em uma rede que apresente os motivos, os meios, as circunstncias e osacontecimentos de forma a produzir uma unidade lgica no conjunto. Emoutras palavras, o leitor deve interpretar os signos de modo a construiruma verso com estrutura de verdade. O leitor deve persuadir-se a si mes-mo, deve adquirir a convico necessria sobre sua prpria soluo.

    Os passos que organizam ambas as narrativas so mais ou me-nos conhecidos:

    1) examinam-se as circunstncias do acontecimento, colhendoexaustivamente indcios suspeitos;

    2) indutivamente testa-se a consistncia desses indcios, de modoa transform-los em pistas;

    3) pondera-se o valor das pistas de modo dedutivo e procura-se, apartir delas, construir evidncias;

    4) conjectura-se uma reconstruo lgica das evidncias, de formaa desvendar o crime; e

    5) a partir disso, a conjectura apresentada a alguma forma deinstncia de julgamento que avalie seu valor de verdade.

    uma regra constitutiva desse jogo que os signos e indcios apre-sentados ao longo da narrativa admitam, necessariamente, mais de umsentido e que eles se coloquem como possveis solues para uma fra-tura de sentido; em outras palavras, para um problema. Um bom ro-mance policial capaz de, ao longo da trama, deslocar o problemaoriginalmente proposto, reconfigurando indcios e evidncias. Talreconfigurao passa, muitas vezes, pela trama de contextos que seconjugam na narrativa: intenes amorosas, situaes pendentes nopassado obscuro, pactos por dinheiro ou poder, interesses polticos esegredos relacionais. Em outras palavras, um bom romance policial,assim como uma boa pesquisa, ressignifica vrias vezes os mesmosindcios ou conceitos, formando, com isso, uma trama no completa-mente antecipvel pelo leitor. Ambos devem reunir procedimentos deambiguao, em que aumenta a valncia semntica dos signos comprocedimentos de desambiguao (Haroche, 1992), a qual diminui avalncia semntica dos mesmos. Neste sentido, podemos estender uma

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    linha imaginria da estratgia investigativa adotada pelo pesquisador.Em um extremo, esto os que procedem pelo esprito de finura (finesse),tal como descrito por Pascal. Nele, a verdade emerge das contnuasreviravoltas (renversements) do pr e do contra. Nenhuma afirmao considerada sem a sua contrria, surgindo a concluso de uma torofulgurante das evidncias, como por exemplo nos procedimentos deMiss Marple. No extremo oposto, esto os pesquisadores que operampelo esprito geomtrico. Nesse caso, a escrupulosa ateno ao deta-lhe, somada ao rigor dedutivo e inexorvel ordem das razes, com-pem o arsenal bsico desse tipo, bem representado por Hercules Poirot.

    interessante como alguns estudiosos da estilstica de Freud e deseu mtodo de construo de narrativas forneam-nos indicaes so-bre como abordar seu texto, que parecem valer tambm como conse-lhos para um leitor mdio de romances policiais. Holt (apud Souza,1999) faz as seguintes recomendaes:

    1) cuidado para no retirar as afirmaes de seus contextos;2) esteja alerta para inconsistncias;3) no confie na estabilidade das definies;4) adote um ceticismo benvolo; e5) tenha cautela com o poder de persuaso de Freud.

    A maior parte dessas indicaes nos informa que preciso estarpreparado para surpresas e reviravoltas. Alm do mais, desconfiar dasevidncias e asseres peremptrias sem, ao mesmo tempo, deixar deconferir crdito a tais movimentos ao longo do processo narrativo.

    No caso do romance policial clssico, o problema primitivo, oponto de partida para a trama, colocado no incio da narrativa sob aforma de um corpo. Um corpo de delito que geralmente contextualizado do modo simples e compreensvel. Como diz Zizek (1995), ocorpo funda um conjunto de suspeitos (o crculo ntimo de suspeitos),que corresponde cena inicial do romance, mas tambm da Psicanli-se. Na pesquisa psicanaltica, ao contrrio, geralmente h um longopercurso de consolidao do problema; ele no se coloca de forma

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    imediata e auto-evidente, nem consensualmente reconhecido. Outroagravante que a meta-narrativa padro j bastante conhecida. Emoutras palavras, um leitor mdio de textos psicanalticos dispe de umrepertrio relativamente extenso de problemas colocados pela tradi-o qual adere ou freqenta. Uma pesquisa, se pretende acrescentaralgo a essa tradio, deve tramar um duplo dilogo: com o leitor e como conjunto de solues j explicitado por outros autores. Caso contr-rio, incorre-se no risco de ter a soluo antecipada e o efeito de surpre-sa e originalidade diludo. So conhecidos os exemplos de teses e artigosque, nas primeiras pginas, eliminam o problema, ficando a continuaocomo uma repetio dogmtica do que j se sabe. Como o problema indissocivel de seu processo de investigao, o tipo de conhecimentoassim produzido no se reduz apenas aos contedos, generalizvel emcertas concluses, mas tambm, e fundamentalmente, depende da for-ma como se chegou a tais concluses.

    O contedo de um romance policial pode ser facilmente resumi-do em uma pgina, mas essa pgina, nela mesma, simplesmente no mais uma narrativa policial. Nada acrescenta tradio literria do ro-mance. Note-se que isso estabelece uma sria diferena com relao aoutras formas de investigao e de produo de conhecimento emque o produto dissocivel de seus meios narrativos de exposio.

    Outro aspecto fundamental, ponto de semelhana entre o roman-ce e a escrita investigativa, a construo dos argumentos. Nessa via, oque se procura obter o assentimento intelectual do leitor (Mezan,1998, p. 290). Isto , esto proscritas solues de ltima hora, pistasno trabalhadas ou evidncias descartadas sem motivos. Podemos acres-centar que a argumentao por autoridade geralmente sinalizada pelouso excessivo ou no argumentado de citaes, tambm colide coma estratgia de persuaso do leitor. Inversamente, o estilo potico, autilizao de figuras e formas de construo estilizantes, pode ser umrecurso desejvel, desde que no objetive diretamente o assentimentointelectual, mas o suponha como um ganho por acrscimo secundrio.

    Uma forma bastante til de apresentar as regras do texto, em acor-do com a regra do assentimento, se d pela explorao do trivial, do

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    sabido, que introduz o leitor a um universo de experincias que ele su-postamente domina. Ao tratar da intriga e do mistrio, Mezan mostracomo este geralmente produzido a partir da regularidade no real e anecessidade de padro (1998, p. 359). O crime , certamente, uma des-continuidade na rede de suposies e expectativas que compe a realidade.O que torna o crime interessante e digno de investigao depende darevalorizao de aspectos antes irrelevantes desta mesma realidade. So asmarcas deixadas pelo assassino, as pequenas rotinas, os detalhes que nose encaixam. , por outro lado, essa reinveno do cotidiano, exploradapor Freud na sua escolha de temas, que produz o efeito de que a soluoestava a presente e clara desde o incio, ns que no a captamos. Holmes,Freud mas tambm Dupin, o detetive criado por E. A. Poe regem-sesempre pelo princpio de que o mais difcil de perceber sempre o que estmais evidentemente mostrado. A busca de um problema intrincado, com-pletamente inovador, como se esse, sim, conferisse relevncia pesquisa,no deixa de conter uma certa ingenuidade. A elegncia da demonstraoreside, muitas vezes, na sua simplicidade e parcimnia.

    A fora dessa estratgia de construo requer, em contrapartida, aateno dirigida ao detalhe dissonante. O raciocnio clnico de Freud eHolmes no opera por exausto, pela descrio completa, mas pela forado fragmento, pela produo do elemento nico e irredutvel. Freud dis-cute esse tema no incio do caso Dora, intitulado Fragmentos da anlise deum caso de histeria (Freud, 1905). Fragmentos que so compostos pelanarrativa e que so isolados propositalmente pelo investigador.

    Outra faceta desta estratgia de investigao aparece na correla-o explicitamente apontada por Freud entre esta e o mtodo de Morelli,desenvolvido para detectar falsificaes em obras de arte. Um dos prin-cpios de tal mtodo est em evitar os grandes traos, caractersticos deum pintor, ou de uma escola. Tais traos so mais facilmente imitadosdo que os pequenos detalhes, como a composio de uma mo ou odesenho da curvatura de um dedo. Na anlise da escultura de Moiss,feita por Michelangelo, Freud (1914) parte exatamente de uma injus-tificvel tenso nas mos de Moiss. Essa incompreensvel tenso osuficiente para desenvolver uma narrativa do que teria acontecido na-quele instante, segundo a imaginao de Michelangelo, para que essa

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    configurao das mos fosse assim representada. Freud argumenta queessa tenso torna-se compreensvel se ela se associa ao momento emque Moiss pretende levantar-se, irado pela adorao do bezerro deouro. O gesto contm sua violncia, transferindo esta ilao de afetopara um imperceptvel movimento de apego das mos s escrituras.

    O mtodo Morelli possui um interessante correlato naquilo quealguns bigrafos apontam como uma fonte decisiva para a invenodo personagem Sherlock Holmes (Lipari, 1996). Segundo alguns bi-grafos, a grande fonte inspiradora para a construo do famoso deteti-ve teria sido o mdico chefe de Arthur Conan Doyle, em Edimburg:Dr. Bell. Diz-se que tal mdico era capaz de diagnsticos complexospela mera observao do modo como o paciente entrava no consult-rio ou relatava os primeiros sintomas. Dr. Bell comentou sua influn-cia no caso da seguinte forma: O nico crdito que posso aceitar noque Holmes diz o fato de ter sempre recomendado a meus alunos, ea Doyle entre eles, a vasta importncia das pequenas diferenas e osignificado infinito das pequenas coisas (Shepherd, 1987, p. 16).

    Falou ainda que essa habilidade j fora descrita por Rousseau, naforma do que o genebrino chamou de mtodo de Zadig. Este seria apedra angular de uma cincia conjectural, baseada na reconstruonarrativa e causal como soluo para problemas. No se pode deixar delembrar que Lacan (1966), em um de seus textos fundamentais sobre arelao entre Psicanlise e Cincia, afirmava que a Psicanlise deveria serpensada como uma cincia conjectural.

    Mas a idia de que a investigao psicanaltica procede pela mon-tagem de um quebra-cabeas, em analogia com a investigao ilustradapelo romance policial, tem tambm seus crticos. Como afirmamosanteriormente, Spence (1992, p. 157) afirma que a idia de uma solu-o inferencialmente nica para o problema levantado na esfera dasubjetividade deriva, na verdade, de dois movimentos de aplainamentonarrativo. Em outras palavras, o psicanalista seleciona fatos, super-valoriza evidncias, descarta dissonncias em dois nveis. Primeiro,durante a sesso, ocasio em que tem que eleger certos elementos emdetrimento de outros; e, em segundo nvel, na redao da pesquisa,

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    quando valoriza certos aspectos, produzindo uma falsa unidade, requeridapor uma exposio persuasiva e sistemtica. Para Spence, levar a srioesse ponto corresponde a admitir que a Psicanlise , no fundo, umgnero literrio e que, correlativamente, ela deve abandonar suas preten-ses a se estabelecer como cincia que busca a investigao da verdade.

    A crtica de Spence destaca um aspecto irrefutvel. Por exemplo,ao comprimir as mais de oitocentas pginas de notas que compem omaterial clnico que serviu de base para a redao do caso clnico co-nhecido como Homem dos Ratos e ao apresent-lo sob forma de umanarrativa coerente, muitas escolhas podem ser argumentadas comoinjustificveis. Mas, como observa Mezan (1998, p. 369), a mestria dacomposio freudiana reside justamente nisso. O aplainamento narra-tivo, no sentido crtico, empregado por Spence, certamente no permi-te que olhemos para a anlise de um caso como o espelho dos fatoslinearmente ajustados sob forma da nica explicao possvel.

    Mas isso s desloca o problema para a diversidade de formas nar-rativas possveis em que uma investigao pode ser relatada e para opoder de verdade que a fico pode esconder. Problema que, alis,mostra-se na evoluo do prprio romance policial. Como salientouZizek, a forma do romance se modificou agudamente de modo arelocalizar a incidncia do real:

    (...)novas tecnologias literrias (dissociao da conscincia, estilo pseudo-documentrio etc) levam a testemunha para a impossibilidade de localizarum fato individual em uma histria, orgnica, total e plena de sentido;mas em outro nvel, o problema do romance policial, o mesmo: o atotraumtico (assassinato) no pode ser localizado na totalidade de sentidode uma histria de vida (Zizek, 1995, p. 49).

    A metfora da investigao policial pode ser traioeira, se issosignificar apenas a introduo da ordem onde antes governava o caos;o restabelecimento catrtico do equilbrio perdido. preciso ter emmente que esse movimento se acompanha, tanto no romance, quantona pesquisa em Psicanlise, do movimento inverso de introduo dadesordem, onde antes reinava a continuidade estvel do real. A produ-o da surpresa e do enigma onde antes havia a trivialidade do j sabido.

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    Spence (1992, p. 138) fixa-se em demasia no primeiro movimen-to, por exemplo quando afirma: Apresenta-se um detetive (terapeuta)que se v diante de uma srie de acontecimentos estranhos e desco-nexos (sintomas), relatados por um cliente algo desesperado e desor-ganizado (paciente).

    Poderamos refazer a frase de Spence, invertendo os sinais e, mes-mo assim, ela permaneceria vlida para o contexto da pesquisa emPsicanlise: Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se v diante deuma srie de acontecimentos banais e coerentes (sintomas), relatadospor um cliente algo tranqilo e organizado. Ocorre que, como o pro-blema no dado como um fato da natureza e, sim, construdo pelodetetive, a banalidade, ou trivialidade, apenas uma parte da histriasobre a qual se engendrar uma segunda narrativa.

    Sherlock Holmes, na investigao do caso conhecido como Es-trela de prata, auxilia-nos novamente a compreender a questo. Trata-se do desaparecimento de um cavalo de corrida e do assassinato deseu treinador, ocorridos durante a noite que antecede a grande corri-da. O cuidador do animal talvez tenha sido dopado, uma sugestivacaixa de fsforos encontrada no local, sinais de luta no corpo davtima. Enfim, uma srie de indcios acusam a presena de um outrona cena do crime, que virtualmente constitudo como suspeito. V-rias coisas fora do lugar compem o quebra-cabeas a ser reconstrudo.No entanto, a soluo no passa pelo mero recolhimento dessas pis-tas, mas tambm pela produo e constatao do que permanece,aparentemente, o mesmo. Como se nota no seguinte dilogo-chave:

    preciso entender o problema representado pelo co diz Holmes.Mas qual problema? Ele permaneceu dormindo como sempre retruca Watson. justamente esse o problema, meu caro Watson (Doyle, 1938, p. 134).

    De fato, o acontecimento crucial representado pela ausncia delatidos do co conduz idia de que foi o prprio treinador quemretirou o cavalo, a partir do que o caso se resolve pela incluso dosdemais detalhes.

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    A funo de Watson um elemento clssico do romance poli-cial. Ele ocupa o lugar estruturalmente necessrio do personagemque se engana. No da mesma maneira que a polcia, como no casoda Carta roubada, de Poe, que se engana pela impossibilidade emisolar as diferenas que fazem diferena, que tudo olha mas nadav, que trabalha pela exausto e opera com um roteiro que uni-versalize as aes, desconhecendo a singularidade do criminoso.Watson ou Hastings, o fiel companheiro de Hercules Poirot, sopersonagens de mediao entre o leitor e o detetive. Eles represen-tam o senso comum, atraindo para si uma identificao do leitor. com eles que o detetive argumenta, se justifica e presta contas desuas aes.

    A funo-Watson corresponde figura tantas vezes utilizada porFreud do interlocutor imparcial ou presente, pela interpolao, notexto, de expresses como: Sei que ser difcil ao leitor me acompa-nhar neste ponto, mas...; ou ainda: Peo compreenso ao leitor,mas tambm quando o paciente relatou-me isso pela primeira vezno pude entender.... Essa dissociao do autor do texto em vozesdissonantes e dialogantes, presentes na narrativa, aparece ainda noextenso uso da ironia como recurso retrico caraterstico do roman-ce policial. Em detetives como Marlowe (Goldrub, 1994) e no ro-mance policial americano, a ironia transforma-se quase em cinismoou sarcasmo, na medida em que o investigador passa a trabalhar cadavez mais solitariamente. Outro recurso para indicar o distanciamentocalculado do desejo do investigador diz respeito ao pagamento quecontrasta com a tica e o engajamento intrnseco na descoberta, pelosimples amor verdade ou pelo prazer intelectual.

    Watson simboliza o que Zizek (1992, p. 54) chamou de necess-ria falsa soluo. Necessria, pois preciso contar com ela paraque se possa chegar verdadeira concluso. Ela no apenas umdesvio, um erro ou uma estratgia para produzir suspense, mas interna lgica do processo. Por exemplo, nos Crimes ABC, de AgathaChristie, os nomes das vtimas seguem um complexo padro alfabti-co, sugerindo a existncia de uma mensagem, que conferiria sentido

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    aos mesmos, bem como induzindo o leitor a pensar no assassinocomo uma espcie de luntico serial killer. Ocorre que exatamenteesta falsa soluo que o assassino quer produzir, uma vez que, naverdade, ele uma pessoa extremamente prxima da nica vtimaque ele realmente quer atingir.

    A falsa soluo desenrola-se sempre na funo-Watson, que nodeixa de estar presente em certos critrios da pesquisa psicanaltica.Por exemplo, a argumentao deve seguir passos, seno refutveis,que ao menos considerem seriamente a existncia de uma contra-explicao para o movimento proposto. A funo-Watson aindaimportante para avanarmos um outro problema da pesquisa psica-naltica, especialmente quando esta se desenvolve no mbito da uni-versidade. De que lugar fala o pesquisador em seu texto ? Certamen-te no o de analista, mas talvez o de testemunha de uma experinciaelaborada. Surge aqui uma importante diferena entre a Psicanlisecomo mtodo de cura e a Psicanlise como mtodo de pesquisa; ou,ainda, como campo de doutrinas e saberes articulados sobre o in-consciente. Freud oferecia esta tripla definio da Psicanlise, masno desenvolveu inteiramente quais seriam suas conseqncias. Ad-mitindo-se a proximidade entre a narrativa policial e a pesquisa psi-canaltica, podemos postular que o lugar a partir do qual se escreveuma experincia analtica muito semelhante ao ocupado por Watson.Ele compartilha a experincia da investigao; ele quem narra asmemrias de Holmes; para ele que os argumentos e justificativas deHolmes so expostos. Sem ele, o efeito de surpresa se transformariaem uma tediosa exposio dedutiva, perdendo muito de sua plau-sibilidade. Sem ele, a pesquisa e a investigao policial perderiam suaestrutura essencial de dilogo. Como aponta Zizek (1992, p. 57), odetetive realiza a funo que Lacan chamou de Sujeito Suposto Sa-ber, articulador da transferncia analtica. Ora, nem o psicanalistanem o pesquisador deveriam identificar-se com este lugar; no en-tanto, sem ele no h anlise ou pesquisa. A funo-Watson permi-te operar com essa suposio de saber, prpria de uma cinciaconjectural, aproximando-se, assim, da precipitao da verdade emsua estrutura de fico.

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    CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER TATIANA CARVALHO ASSADI MARIA AUXILIADORA M. BICHARA JOLLE GORDON HELOSA HELENA ARAGO E RAMIREZ

    INTERAES VOL. VII n.o 13 p. 113-126 JAN-JUN 2002

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    CHRISTIAN INGO LENZ DUNKERRua Clvis Bueno de Azevedo, 17604266-040 Ipiranga So Paulo SPtel: (11) 3887-3037e-mail: [email protected]

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    recebido em 26/10/01 aprovado em 25/06/02

    INTERAES VOL. VII n.o 13 p. 113-126 JAN-JUN 2002

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