rodrigo fonseca e rodrigues · 2017. 2. 22. · 2 rodrigo fonseca e rodrigues a imagem da escuta:...
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Rodrigo Fonseca e Rodrigues
A IMAGEM DA ESCUTA: os sites person-to-person e os compositores heterônimos
PUC-SP
2007
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Rodrigo Fonseca e Rodrigues
A IMAGEM DA ESCUTA:
os sites person-to-person e os compositores heterônimos
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Comunicação Social. Área de Concentração: Signo e Significação nas Mídias. Linha de Pesquisa: Sistemas Sonoros. Orientador: Professor Doutor Silvio Ferraz.
São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2007
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Rodrigues, Rodrigo Fonseca e
Título. A imagem da escuta: os sites person-to-person e os compositores
heterônimos. Rodrigo Fonseca e Rodrigues. São Paulo, 2007.
Tese - Doutorado - Programa de Comunicação e Semiótica – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
1. Escuta. 2. Composição. 3. Internet. 4. Deleuze. 5. Tempo. 6. Pensamento.
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Banca Examinadora
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a
reprodução total ou parcial desta tese por processos
reprográficos ou eletrônicos.
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Rodrigo Fonseca e Rodrigues
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RESUMO:
A questão principal desta tese diz respeito à escuta e suas composições face aos modos
experimentais de freqüentação das arquiteturas person-to-person na internet. Serão
abordadas, como corpus empírico, práticas de composição sonora disseminadas por meio
de sites-programas como o Soulseek.org e conhecidas pelo nome de "bootleg mash ups". A
pesquisa tenta demonstrar as dificuldades das especulações do pensamento quando se trata
de indagar como as sensações na escuta se contagiam, animadas por afetos coletivos
ligados às temporalidades da tecnologia e da criação musical. A fundamentação conceitual
da tese se ampara na aproximação entre idéias ecoantes de Duns Scott, F. Nietzsche, G.
Tarde, H. Bergson, F. Pessoa, G. Deleuze e F. Guattari. O objetivo aqui é demonstrar, a
partir das concepções que estes autores deram para o problema da imagem no pensar, o que
muda na sensação da escuta ao se mudar a imagem mesma do pensamento. Para tanto, este
trabalho adota as contribuições do "pensamento das hecceidades" para tentar re-imaginar as
virtualidades criativas do Tempo na composição da escuta musical. De acordo com esta
concepção, em vez de se ater à prática de cortar e de colar elementos sonoros, o
“compositor de desktop” precisará antes investir numa economia experimental de ritmos e
de imagens do Tempo para singularizar sensações na escuta. A partir desta premissa,
afirma-se que as performances criativas da música, estimuladas pelos hábitos de convívio
nos sites peer-to-peer, precisam interferir em regimes de percepção, de sentido e da
imagem que a subjetividade adquire nas cadências estereotipadas da internet. Tais práticas
apresentam-se como uma atividade poética heteronímica, de resistência inventiva aos
recentes processos tecnológicos de subjetivação. Por tal razão, a escuta compositora
necessita ultrapassar os regimes estáveis do som, do signo, do espaço, do fenômeno, do
sentido, da técnica, do logos musical recorrentes na imagem transcendental do pensamento.
A partir do embate criativo num ambiente saturado de axiomas, a composição musical
enfrenta o problema de restituir o singular na sensação, de transduzir vontades e de
contagiar virtualidades sensíveis na escuta e no seu pensamento.
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ABSTRACT
The main issue of this thesis is concerned to the listening and it's compositions in view of
the experimental ways of frequentation of the architecture person-to-person in the internet.
They will be approached, as empirical corpus, practices of sonorous compositions spread
through site-programs like soulseek.org and known as bootleg mash ups. The research tries
to demonstrate the difficulties coming from the specutations of the thought when dealing
with the investigation how the sensations in the listening,make some contagious,
encouraged by collective affects linked to the temporalities of the technology and the
musical creation. The conceptual basis of this thesis leans on the approximation among the
echoing ideas of F. Nietzsche, Gabriel Tarde, Henri Bergson, F. Pessoa, Gilles Deleuze
and F. Guattari. The purpposal is to discuss, from the conceptions that these authors
brought to the problem of the imagem in the thought, what changes about the sensation of
listening when the image of the thought changes.In such a way this work adopts the
contribution of the "thought of the haecceitas", trying to re-imagine the creative virtualities
of the Time in the composition of the musical listening. Accorded to this conception, instead
of abiding by the practice of cutting and pastting sonorous elements, the desktop's
composer will need to invest previously in an experimental economy of rhythms and images
of the Time to potencialize the sensations in the listening. From this premise, it is asserted
that the creative performances of musical listening, stimulated by the ways of conviviality
into the sites peer-to-peer, need to interfere in the regimes of perception, sense and the
image that the subjectivity aquires in the stereotyped cadences of the internet. Such
practices present themselves as an heteronymic poetical activity, with an invenctive
resistence to the recent technological processes of subjectivation. To achieve this level, the
compositional listening needs to go beyond the reccuring stable regimes of the sound, the
sign, the space, the phenomenon, the sense, the techinque and the musical logos in the
transcndentalimage of thought. From this creative battle in a saturated enviroment of
axioms, the musical composition faces up the problem of retitute singular in the sensation,
to transduce the wills and to make a contagious of the sensivity virtualities into the thought
of the listening.
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Dedicatória:
À minha mãe Lúcia e à Sandra, pelo amor incondicional.
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Agradecimentos:
Ao meu orientador Prof. Silvio Ferraz, pela sua condução segura e amiga; à CAPES; aos
memoráveis mestres César Guimarães, Júlio Pinto e João Gabriel. Aos professores Norval
Baitello e Rogério Costa. À Teresa Leão, amiga para todo o sempre. Ao Junio Fernandes,
pela sua exortação perene. Ao Gedley Belchior, pelas motivações iniciais e por
disponibilizar seu conhecimento musical e seu acervo fonográfico. Ao Cláudio José, pela
sua solicitude e amizade. À sempre amiga e colaboradora Kênia Machado. Ao inspirado
companheiro Everton. Ao compositor Nuno Leão, pelas conversas e audições. Aos meus
irmãos lusitanos Chico Fialho, Paulão Pires, Domingos e a todos os amigos de Évora. À
anfitriã Andréia Moassab, a todos os amigos presentes na fase da pesquisa: Guaracy
Araújo, Otávio "Cuca" Paiva, Nils Peter e Rogéria Torres, Andréa Casa Nova, Alexandre
Bobs, Cláudia Fonseca, Cláudia Siqueira, Guida Trindade, Carlão e Inêz. À tia Célia e a
todos os familiares. Aos sempre saudosos Lúcio Fonseca, Antônio Rodrigues e José
Vilela.
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"Num canto da sala, pessoas conversavam e um rádio
tocava alto. O grande maestro, sentado ao piano,
escrevia uma partitura. Cheguei perto de Villa-Lobos,
envolvido na fumaça de seu charuto, e perguntei se
tudo aquilo não o incomodava: 'Meu filho', respondeu
ele, 'o ouvido de fora nada tem a ver com o ouvido de
dentro'."
Tom Jobim
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SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................................13
CAPÍTULO PRIMEIRO
1 – A internet como ambiente processual de contágios: as performances criativas da escuta
e os P2P's..............................................................................................................................25
1.1 – As imagens do Tempo no pensamento e a escuta musical...........................................31
1.2 – O Tempo das hecceidades: diferença e repetição na imagem da música.....................40
1.3 – O virtual, a virtualidade e o devir na escuta.................................................................47
CAPÍTULO SEGUNDO
2 - Os ritmos cadenciais do virtual tecnológico...................................................................56
2.1- Memória, percepção e a imagem da consciência na escuta musical.............................60
2.1.1- As "sínteses do Tempo" que fazem a escuta..............................................................70
2.2– A imagem poética do Eu ubíquo..................................................................................75
2.3- Os processos tecnológicos de subjetivação e a heteronímia criativa na internet..........80
CAPÍTULO TERCEIRO
3 - O "dj de desktop" e o bootleg mash up..........................................................................86
3.1 – A "arte da escuta" e as sonoridades...........................................................................92
3.2 – O limite e a liberdade na invenção da música: o plano de composição e o
diagrama.............................................................................................................................101
3.3 – Os ritornelos da escuta compositora.........................................................................109
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CAPÍTULO QUARTO
4- A montagem digital e a composição de virtualidades...................................................117
4.1 – O corte-maquínico, a sensação e o material na criação musical................................121
4.2 - O pensamento compositor de sensações....................................................................134
4.3 – O clichê na internet: a fadiga e o singular na escuta criativa.....................................143
4.3.1 - A novidade e o futuro na música.............................................................................150
Conclusão...........................................................................................................................158
Referências Bibliográficas................................................................................................163
Anexos................................................................................................................................173
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INTRODUÇÃO
O compromisso desta pesquisa é dar evidência ao embate entre uma nova gama de suportes
técnicos de registro, de conexão e de criação, a saber, o computador e as redes, e os
problemas da criação musical. A sua questão principal diz respeito às composições da
escuta face aos modos experimentais de freqüentação das arquiteturas person-to-person na
internet. Como um pressuposto corpus empírico, são abordadas práticas de composição
sonora, disseminadas por meio de sites-programas P2P como o Soulseek.org e conhecidas
pelo nome de "bootleg mash ups".
O trabalho foi construído por quatro Capítulos. O Primeiro se encarregou de estudar certos
traços potenciais que a escuta pode ganhar quando animada pelas circunstâncias de uso
experimental dos file-sharing services e de aplicativos de áudio. Basicamente, as nossas
perguntas são: o que se diferencia, o que se cria na realidade da escuta, em circunstâncias
motivadas por tais hábitos de conexão na internet? Como a freqüentação dos sites person-
to-person poderia propulsionar outras performances criativas para a escuta musical?
Priorizamos trabalhar a imagem conceitual da internet como um ambiente, mas como um
ambiente processual, uma imensa máquina de redistribuições de temporalidades. Os tempos
da vida, ora são codificáveis, controláveis, ora imprevistos, inapreensíveis e incontroláveis.
Em suma, a rede precisa ser apreendida como um plano catalítico de contágios potenciais
de vontades criativas, para aquém e para além dos seus regimes tecnológicos, semióticos,
imaginários e comunicacionais.
No rastro da idéia deleuziana de "contágio", apostamos que a dinâmica da existência
coletiva de convivência se ergue a partir de uma insistência de forças velozes e singulares,
fluxos do tempo que ultrapassam os tempos perceptíveis das relações pessoais e dos ritmos
da comunicação entre as pessoas. Por essa razão vimos, neste Tópico, que certos hábitos de
freqüentação aos sites "person-to-person" passam a ser pensados como potenciais
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contagiantes de um diferente regime de trocas, não apenas restrito a informações ou ao
material musical partilhados, mas que dispara e captura afetos singulares. Tais regimes de
afetos podem contagiar e intensificar uma vontade de criar. A questão tratada, no entanto, é
a do potencial afetivo que tal modo de compartilhamento pode estimular para uma nova
liberdade de experimentação de performances para a escuta. Indagamos, porém, se a
intromissão coadjuvante da internet em nossos hábitos musicais poderia, efetivamente,
motivar novos modos de contágio para uma escuta musical criativa.
Deve-se, de início, traçar um desenho de interrogações para se pensarem as implicações
desta realidade criativa musical com mudanças na escuta e nos modos como esta se pensa,
se imagina, se sente e se compõe. O Tópico 1.1 começará por assumir as dificuldades - e
também as possibilidades - encontradas na tarefa de se definir conceitualmente a escuta que
temos por hábito chamar de "musical". Ele apresenta a questão de saber se a escuta poderá
ser pensada, sem ser, no entanto, remetida às imagens transcendentais do pensamento, tais
como a representação das variedades formais dos seus materiais, dos fenômenos sonoros,
das percepções e afecções, da consciência, da lembrança, dos estados sentimentais etc.
Tendo assim em conta que o pensamento da música tradicionalmente se assenta em tais
performances de abstração que o orientam e condicionam a sua lógica, tentaremos
perscrutar, primeiramente, por que meios o olhar, a linguagem, o pensamento e a escuta
podem "se temporalizar" mutuamente. Tal exercício de re-imaginação do pensamento
precisa lutar criativamente com as palavras e os nomes, ambos criados sob a rubrica da
retina, do espaço e da imagem abstrata do Tempo.
Apresentamos a imagem paradoxal de um Tempo não-cronológico, pautados nos conceitos
que Gilles Deleuze desenvolveu para as palavras diferença e repetição, bem como na idéia
de eterno retorno, retomado dos estóicos por F. Nietzsche, para pensarmos a música a partir
de suas potências intensivas, não apenas a sua realidade extensiva. Tal concepção dessa
constante diferenciação íntima que faz toda a realidade se torna, para a nossa discussão,
uma imagem definidora, porque nos leva a pensar essa outra realidade de movimentos que
se inovam, que se afetam, irrefreáveis, por meio de uma vontade criativa do Tempo.
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Tendo assim em conta que o pensamento da música tradicionalmente se assenta em
abstrações e imagens formadas ( afecções ) que o orientam e condicionam a sua lógica,
tentamos perscrutar, primeiramente, por que meios o olhar, a linguagem, o pensamento e a
escuta "se temporalizam" mutuamente. Tal exercício de re-imaginação do pensamento
precisa lutar criativamente com as palavras e os nomes, ambos criados sob a rubrica da
retina, numa imagem abstrata e espacializada do Tempo. Questionamos assim a suposta
validade da lógica recognitiva, da memória e da representação no investimento da
imaginação conceitual da escuta musical. Por todas as dificuldades que o pensamento
enfrenta no encontro com o ainda impensado, defendemos a adoção de ritmos silenciosos
da escuta, na composição experimental de imagens conceituais. Esta proposta acerca do
modo de se pensar as imagens pelas quais o pensamento pensa, de imaginá-lo
"iconoclasticamente", também pode afetar, sobremaneira, a imagem mesma que se constrói
do Tempo, da sensação e da própria escuta musical. Pensar o Tempo e o espaço, os ritmos
extensos e intensos, as afecções e os afetos, o som e a sonoridade, o signo e o não-sígnico,
pede antes por um trabalho de dessubstancialização das imagens. Em razão disto, propõe-
se o exercício de um modo experimental de pensamento, acolhendo uma possibilidade de
adotar princípios da escuta no exercício conceitual. Um modo, por assim dizer,
"composicional" de se pensar, de imaginar o impensável, de estimular o pensamento a
contar com o impensável de que também se compõe a escuta, das suas micro-políticas de
ritmos vitais de sua vontade criadora.
O curso destas indagações não pôde, todavia, ser desenhado sem um amparo das idéias
sobre a imagem do Tempo construída pelo chamado pensamento das hecceidades, da
individuação, da imanência. Estas idéias nos ajudam na tentativa de re-imaginar as
virtualidades criativas do Tempo na composição da escuta musical. Elaborado pelo filósofo
Duns Scott, o conceito de hecceidade recebe em Deleuze a idéia de uma imagem que liberta
o pensamento da estrutura analítica que individualiza elementos, abstrai fenômenos, que
estabelece relações, que identifica formas etc. Ao invés de representar a realidade, o
pensamento das hecceidades a imagina como uma realidade absolutamente temporal, que
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insiste em virtude de seus amplexos rítmicos, de suas velocidades intensivas, condensando-
se e se dissipando, em uma irrefreável transiência de devires.
O Tópico 1.3 se dedica a problematizar os conceitos de virtual e de atual na música. Inicia-
se por apresentar a difícil imagem do virtual, um conceito antigo que sofreu uma radical
mutação no final do século XIX, com o pensamento de G. Tarde e de Henri Bergson.
Detectamos que os autores se afinam em assumir no pensamento uma imagem paradoxal da
realidade, como se esta fosse um devir universal de fluxos co-implicados. Décadas depois,
o virtual seria de novo re-imaginado por G. Deleuze. De gérmen potencial, como queria o
pensamento dialético, o virtual passou à imagem de força incorporal, imanente ao
movimento e à celeridade absoluta do Tempo. Adotamos, apoiados na concepção que
Deleuze e Guattari deram ao virtual bergsoniano, um modo de re-imaginar a escuta musical
como uma realidade feita de acoplagens tanto te modulações sensíveis, sonoras, quanto de
forças incorporais, silenciosas. Trata-se de uma realidade pré-subjetiva da escuta musical
que se urde por céleres conexões de ritmos intensivos. Em resumo, a escuta se modula em
fluxos de acoplamentos de intensidades, de "transduções", de sensações, de regimes de
imagens, de afetos incorporais invivíveis, mesmo que não nos demos conta de tudo isso.
O Tópico inicial do Capítulo Segundo virá fazer um diagnóstico dos hábitos coletivizados
nos modos triviais de uso das máquinas digitais em rede. Apontamos que no convívio com
imagens simuladas, os ritmos da nossa percepção podem ser discreta e espertamente
cadenciados pelos enclaves tecnológicos digitais: por meio de sutilíssimas celeridades, as
condutas da memória, da imaginação e da vontade têm sido ditadas por regimes de um
minucioso gerenciamento e de um controle pré-coordenado das virtualidades do Tempo.
No Tópico 2.1 são aventadas as performances da percepção e como esta espécie de
"educação da memória", que sintetiza os tempos da consciência e da personalidade, erige
toda uma realidade de escuta. Demonstramos neste ponto o pensamento inovador de Henri
Bergson a respeito da imagem da subjetividade, das performances da memória, da
percepção e da consciência na escuta musical. O autor se torna para o nosso debate uma
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figura privilegiada, porque foi dele que partiu a noção radical de imagem sem forma, e do
mundo como um conjunto dessas imagens-movimento. O investimento de Bergson vai
também alcançar uma redefinição da própria imagem conceitual de "imagem". Este ponto
se torna especial para as nossas questões, a partir do momento em que o autor ressalta que
há uma realidade de imagens imperceptíveis com as quais os nossos atos de percepção
produzem por certos condicionamentos da memória. Estas são chamadas de afecções ( as
"imagens internas" ), imagens já formadas e qualificadas da vida sensível e cognoscível.
Vimos que devemos despir a imagem da escuta musical dos traços da consciência e da
subjetividade. É a partir desta idéia que passamos a pressupor na escuta a possibilidade de
um trabalho sempre criativo de uma "imaginação sem imagens", de uma composição de
ritmos intensivos, de afetos que não se traduzem por grandezas ou por formas extensivas.
Conectamos, no Sub-tópico 2.1.1, as idéias de Bergson com uma outra concepção
deleuziana que imagina "sínteses do Tempo", idéia que ele buscou abrir para pensar as
potências e os devires não-humanos que captamos e acoplamos para fundar a existência
que redunda em nossa experiência sensível do Tempo. O mundo sensível da escuta pode ser
também pensado como uma temporalidade complexa de contrações ainda pré-sensíveis,
apenas intensivas, rítmicas, moduláveis. O mundo das formas só virá com os mecanismos
extensivos da memória voluntária ( lembrança ), com a percepção, com a linguagem e com
a vida psicológica. Apoiados nas sínteses de apreensões do Tempo, tentaremos pensar
como este amplexo de contrações, contemplações, sensações, memórias, percepções,
afecções e representações de imagens afeta a escuta musical.
Fomos encontrar nos textos de Fernando Pessoa uma intrigante concepção da imagem
subjetivada da personalidade e de como ela precisa ser ultrapassada, nos embates da arte,
pelas experimentações da imaginação criativa. O autor parte de uma arrojada suposição: a
idéia de que um artista precisa pensar-se, para criar, a partir de uma imagem
despersonalizada do eu, de um sentir-se como outrem sem deixar de sentir-se: "sente-se em
mim". Este gesto vital da fantasia precisa, para Pessoa, passar por uma despersonalização
imaginativa da subjetividade, a invenção de um heterônimo que, como um personagem
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criativo, pré-subjetivo, componha no lugar do sujeito compositor. Esta idéia de Pessoa foi
aqui re-endereçada aos nossos questionamentos da imagem do Eu a partir da ficção
experimental de um heterônimo da criação musical na internet. Por este exercício
imaginativo de heteronímia nos ambientes digitais, pode-se talvez escapar, mesmo que não
se saiba até quando, das arbitrariedades das imagens da consciência perceptiva musical, do
espaço e de semiose na escuta e na criação musical.
O Tópico 2.3 se voltou para reativar questões ligadas aos modos dominantes de produção
da nossa subjetividade, à conformação de nossa imagem subjetiva vinculada a processos
condicionadores dos usos das arquiteturas digitais. Nos atentamos, inicialmente, à
exposição dos processos de subjetivação - a produção sutilmente controlada de nossa
identidade subjetiva - pela presença hegemônica do logos técnico informático. Aqui nos
perguntamos: a partir das prerrogativas "rizomáticas" da internet, por quais meios
poderíamos recriar, experimentar e afirmar uma nova modalidade da personalidade, uma
multiplicidade implosiva do que há de unívoco na imagem do Eu? A resposta nos levará a
uma proposta de despersonalização criativa da escuta: saber como se tornar um
"personagem compositor", erguido pela experimentação de sensações e de vontades ainda
despersonalizadas. É nessa linha imaginativa de um ethos da sensação, que se desdobra
uma espécie de "política das sensações" pela qual o desejo impessoal de simplesmente
intensificar potências rítmicas de vida, pode contagiar afetos criativos. Esta potência de
querer afetar e ser afetado torna a composição musical na internet uma tática de resistência
aos regimes sub-reptícios de controle sobre os hábitos de freqüentação dos ambientes
digitalizados.
O Capítulo Terceiro apresenta a questão da criatividade da escuta musical na internet, a
partir do aparecimento de práticas de composição sonora conhecidas por "bootleg mash
up", "bastard pop" ou "glitch pop". As singularidades desta modalidade de criação será o
nosso corpus empírico privilegiado a partir deste ponto. Os problemas composicionais dos
bootleg mash ups implicam certos modos diferentes de experimentação da escuta musical, a
partir de hábitos de convívio e de trocas nos peer-to-peer. Tomamos como um importante
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pretexto a figura de um personagem criativo: o "compositor de desktop". Ele parece
assumir posturas afins a um personagem da escuta, um heterônimo experimental de
sonoridades, nas fímbrias abertas pelas arquiteturas dos ambientes digitalizados. O dj
bootlegger, como também é chamado, passará a ser imaginado aqui como um criador que,
antes de se restringir à conotação estrita de um compositor musical, torna-se algo como um
personagem experimentador de sonoridades. Estes problemas figuram ainda como um
pretexto para outras questões menos evidentes que banham os ritmos da escuta. Tais
interrogações dizem respeito a uma escuta que "se compõe" e como tal modo de
composição se dá por uma espécie de economia de sensações, de montagem de imagens, de
cortes em nossos regimes estáveis do Tempo, da percepção, da memória, da afecção e do
sentido.
O Tópico 3.1 se dirige a compreender e a definir os modos pelos quais a escuta se constrói
para compor música, em sua constante encruzilhada de tempos e de movimentos, de forças
e de formas, de coisas e de velocidades, de signos e dos ritmos intensos, de som e de não-
som etc. Privilegiamos, de início, as idéias do conhecido pioneiro da musique concrète,
Pierre Schaeffer. O seu importante trabalho conceitual nos ajudará a pensar a escuta na
condição principal de uma efetiva performance compositora. Aderimos à sua premissa de
que a música se faz, antes de tudo, como uma arte que, para além dos dotes técnicos,
teóricos ou performáticos, diz respeito a uma real prática de composição. Debatemos a
concepção nuançada e especificamente musical que Schaeffer deu ao antigo conceito
pitagórico de "escuta acusmática". Esta idéia que defende a escuta como uma atividade
auditiva concreta, imediata, descondicionada e desimpedida de todas as camadas visuais
imaginárias, performáticas, gestuais, simbólicas ou abstratas anexadas em função de nossos
hábitos de audição musical. Contrastamos a sua concepção com a necessidade de
aceitarmos um destino extra-acusmático para a escuta musical, no intento de devolvermos a
ela, por direito, uma plena realidade paradoxal de devires, de afetos e de vontades. Nos
amparamos nas idéias de Rodolfo Caesar para colocar em xeque a possibilidade efetiva da
escuta acusmática estrita. Relatamos aqui um cruzamento entre as idéias de Pierre
Schaeffer e de Brian Ferneyrough, que Silvio Ferraz interpenetra, ao cogitar três
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modalidades recorrentes na escuta musical: a figural, a simbólica e a textural. Para cada
uma destas posturas da escuta, entram em cena trabalhos diferentes da imaginação criativa
e da mera recognição do imaginário. Tais modos muitas vezes se encavalam, se misturam,
em convivências imprevisíveis, às vezes em incontroláveis migrações: instável, a escuta se
faz como uma tarefa criativa e plural de espalhar ouvidos por todos os lugares do Tempo.
Investimos no conceito de sonoridade, nesta imagem da escuta que se reporta a todo um
plano de potencialidades e que se compõe como uma realidade de devires-sons.
Paradoxalmente, a sonoridade modula tanto idéias musicais quanto forças silenciosas,
tanto materiais sônicos quanto virtualidades imateriais, tanto formas quanto intensidades
não-formadas. Serão, portanto, a partir de ritmos intensivos ( que constroem as sensações )
e nos ritmos extensivos ( que organizam as percepções ) que vamos nos compondo: não
como uma subjetividade que ouve música, mas antes como personagens criativos de uma
escuta que se compõe nos devires das sonoridades.
O Tópico 3.2 expõe um dos conceitos mais abrangentes do pensamento de Deleuze e de
Guattari: o de "plano de composição". Vamos tentar estender esta importante noção aos
problemas da composição da escuta. A discussão se encaminhará a partir da concepção que
os autores deram para da imagem do limite e do ilimitado, do finito e do infinito, idéia que
trouxemos para problematizá-la na composição da música. Empregamos a palavra
"diagrama", que diz respeito aos limites artificiais que o artista instaura como um princípio
de estabilidade contingencial inventada para ele mesmo ser estimulado a torná-la
indecidível, a desestabilizá-la e a reestabilizá-la de um modo singular.
O Tópico 3.3 tenta imaginar uma vontade rítmica do Tempo na criação musical, acolhendo
o conceito de "ritornelo" tal como este foi redefinido por Deleuze e Guattari. O mérito dos
autores foi abstrair desta palavra a sua antiga conotação espacializada, direcional,
mnemônica, de retorno a um início, além de desprendê-la de seu sentido de repetição crua
e, principalmente, de seu significado, na sintaxe musical. O fluxo da escuta seria composto
por infinitos ritornelos do Tempo, operando para além de problemas musicais estritos, tais
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como notas, harmonias, cadências, figuras, timbres, idéias, referências, sentidos,
simbolismos etc.
O Capítulo Quarto recupera, por ser oportuno ao nosso tema, um questionamento que nos
envia ao pensamento da música sobre os seus ditos modos "concretos" de composição, os
procedimentos de colagem, de montagem ou de edição sonoras, religando-o com as
prerrogativas de criação possibilitadas pelos usos da informática e da internet. Este
momento abordará a definição conceitual a respeito da real composição que se faz pelo
princípio da montagem digital: de ritmos afetivos, modulações e transduções de
temporalidades, invenções de novas virtualidades para a sensação.
O percurso do Tópico 4.1 inicia expondo que a composição da escuta se faz entre regimes
estáveis da enunciação e transiências não-enunciáveis da sensação. Para discutir esta
imagem da criatividade na escuta, empregamos os sentidos afins que Gabriel Tarde e Félix
Guattari criaram para pensarem os movimentos criativos do mundo a partir da palavra
"máquina". Este termo, longe de ser aqui a metáfora de um sistema de natureza mecânica,
será pensado um agenciamento de ritmos, para que possamos auscultar os dispositivos que
processam, na composição da escuta, tanto signos e sons quanto velocidades e ritmicidades
incorporais simplesmente intensivas. A sensação na música, antes de ser trespassada pelo
domínio transcendental dos códigos, regimes e sentimentos catalogados, opera como uma
compositiva máquina de tempos: por meio de suas experimentações, se acoplam, se
conservam, se escoam contrações, imagens-tempo, sensações, reminiscências, gestos,
pensamentos etc. Esta idéia nos levará à interessante inversão conceitual que Guattari e
Deleuze dão à imagem da palavra "corte" e da expressão "corte-maquínico" como um
pressuposto crucial na faina da criação. É possível apreender tais conceitos na composição
mash up, por estes nos ajudarem a pensar que a montagem não vive de cortar ou colar
formas e sim de desconectar cadências dominantes de sentido que assomam a memória, a
percepção, o imaginário, os ritmos corporais etc.
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Adveio desta discussão, uma questão acerca da concepção do "material" na composição da
música, que ultrapassa a noção de matéria dotada de uma forma. O que se chama
usualmente de "material", a despeito de se referir a toda matéria ( mesmo não sendo
estritamente sonora ) que sofre a injeção dos investimentos do compositor, é apenas um
pretexto para uma composição que maquina virtualidades para a sensação. A palavra
"material" precisará ser imaginada, não como qualidade de uma matéria formada, mas
como um composto de sensações que ganha vida nos afetos do Tempo. Demonstramos que
não importa se o artista se vale deste ou daquele material, se é um violão ou um
sintetizador, uma partitura ou um groove de sampler, uma imagem percebida ou uma
sensação ordinária não-musical, uma escala musical exótica ou uma célula rítmica, uma
frase solta lida num livro, uma batida de samba, uma reminiscência ou a lembrança de uma
cena cotidiana qualquer etc. O que conta na composição é o poder de singularizar a
vontade, afetar os nossos devires. O que conta na composição é o poder de singularizar a
vontade, de afetar devires.
Precisamos definir, no Tópico 4.2, o esquivo conceito de "sensação" e como o pensamento
das hecceidades lida com ela na escuta. Para imaginarmos o que se move na música, para
além das figuras conceituais que se apóiam em estados vividos e em afecções, atribuímos à
palavra sensação uma realidade de fluxos intensivos e "invivíveis" para os tempos
"dramáticos" da percepção. Nos apoiamos nos conceitos de "percepto" e de "afeto"
pensados por Deleuze e Guattari para entendermos o papel dessas virtualidades do Tempo
na música. O percepto e o afeto poderão nos trazer uma imagem diferente da sensação e de
como ela pode ser intensificada pela criação musical. Apresentamos ainda neste mesmo
Tópico a instigante doutrina criada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, um tipo
de pensamento poético altamente imaginativo e ousado ao qual se deu o nome de
Sensacionismo. O pressuposto sensacionista seria o de intensificar fluxos da sensação ou de
criar sensações extra-ordinárias, por meio da imaginação. Tomando de empréstimo esta
idéia, pode-se também pensar a escuta como uma economia de perceptos e de afetos, para
aquém e além dos estados de coisas, do vivido, pela memória perceptiva e pela afecção já
repertoriada por sentimentos.
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No Tópico 4.3 problematizamos a questão da fadiga, como sintoma dos hábitos de escuta
na freqüentação da internet. É a partir do conceito de clichê, re-trabalhado pelos dois
autores, que iremos demonstrar o problema da composição como um problema de restituir
uma singularidade que desarme a fadiga da sensação. Pelo fato de o mash up ter vindo à
baila como uma prática criativa nascida no seio do excesso informacional e da velocidade
de seus fluxos, são levantados os problemas que esta modalidade de composição enfrenta
nos pressupostos de convivência massiva com os regimes hegemônicos de enunciação
musical. Ainda imaginamos aqui o trabalho da criação mash up como uma performance da
escuta, uma escuta que interfere e que desestabiliza certas forças dominantes de sentido
musical. O compositor de desktop deverá, por princípio, desencaminhar as formas
estabilizadas pela escuta habitual e deformá-las, despi-las de suas figuras e cadências,
provocando um oxímoro na sensação. Antes de operar nas camadas semânticas ou
mnemônicas, uma composição mash up pode, ao atenuar o clichê musical, forçar a escuta a
se recompor para proceder novos acoplamentos entre virtualidades, sensações e afetos. A
escuta estará, por algum tempo, livre ou ao menos desprendida das vestes do estereótipo
que estorvam seu contato com a novidade. A singularidade na sensação somente se fará na
condição de se ativar uma restituição do paradoxo nos regimes imagéticos da percepção, da
memória e da significação.
Para finalizar o trabalho, o Tópico 4.3.1 trata das imagens do futuro e do "novo",
respectivamente, e como estas podem ser pensadas na escuta musical. Primeiramente, de
acordo com a imagem que lhe dá o pensamento das hecceidades, o "futuro", sendo
concebida como a face imprevista do devir, também se torna a força realmente criativa do
Tempo. Apesar de ter na face do passado o apoio prévio de ritmos estáveis para a criação,
o futuro é a face livre do Tempo e que irá responder pela sua incessante renovação. A nossa
preocupação vai, desse modo, abarcar o futuro como um especial problema da escuta:
compor sonoridades é intervir nos fluxos de afetos dos devires.
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Ao aproximar a imagem de um futuro sempre iminente, de um futuro-do-devir como a face
criativa da sensação na música, procuramos definir essa potência sempre inventiva e
recomeçante que faz a escuta. Perguntamos: se a concepção do futuro vive intimamente
conectada à idéia da contínua novidade, o que seria realmente inovar na música? O que faz
da composição na música uma instauração da novidade na escuta não se dará, afinal, por
meio de meras combinações e re-combinações de códigos, de sintaxes formais, de notas
musicais, de acordes, de figuras rítmicas. A composição antes pressupõe um recomeço de
mundo, uma vontade de afetar os regimes estáveis da percepção por ritmos singulares da
sensação.
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CAPÍTULO PRIMEIRO
1 – A internet como ambiente processual de contágios: as performances criativas da
escuta e os P2P's
"A realidade verdadeira de um objeto é apenas parte
dele. O resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço".
F. Pessoa
Escutar música diante da tela de um computador conectado a um file-sharing-service,
enquanto vasculham-se arquivos de outros membros on-line, à procura de novas músicas a
serem baixadas em seguida: esta pode ser, para quase todos nós, acostumados ao consumo
de música eletronicamente distribuída, a mera ilustração de uma cena trivial, de um dos
muitos modos corriqueiros de se ouvir música. Um traço diferencial começa quando os
nossos hábitos de audição musical, já acomodados sob as condições instauradas pelo
regime da indústria fonográfica, têm agora a chance de se desprender de algumas das suas
chancelas e, quiçá, de reinventar outras novas performances para a escuta. Esta chance,
acreditamos, vem sendo propulsionada pelo expansivo uso de uma arquitetura digital
específica, que se desenvolveu, há alguns anos, no seio da internet: os gerenciamentos de
fluxos "person-to-person", usualmente chamados de "peer-to-peer", ou simplesmente
“P2P”. Este é um fato que hoje assume para si uma parte significante dos fluxos em tráfego
na internet. A sua lógica de roteamentos, como se sabe, é diferente da tradicional,
basicamente dominada pela arquitetura da Web1.
1 Os responsáveis pela instauração e manutenção dos peer-to-peer são os ISPs (Internet Service Providers), tecnologias de suporte e provisionamento de recursos de fluxos digitais. O princípio desta arquitetura de rede se pauta no controle do comportamento básico do tráfego, em termos de volume, de vazão e de duração dos fluxos. A diferença é que o seu volume gerado é, substancialmente, menor do que o tráfego gerado por aplicações via Web. Isto se dá por meio da elaboração de algoritmos mais eficientes, de novas técnicas de caching e deste roteamento otimizado, na rede overlay. Ao desenvolverem seus próprios mecanismos de roteamento, os ISPs provêm um conjunto de serviços, tais como aqueles que possibilitam a localização de um usuário ou de um recurso disponível, além da criação de grupos de discussão, da performance dos downloads e uploads de arquivos etc..
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Dentre as centenas de sites-programas de intercâmbio de arquivos person-to-person
encontrados na internet, a nossa atenção concentrou-se exclusivamente nas práticas ligadas
ao Soulseek ( www.slsknet.org ) por duas razões, respectivamente: os P2Ps em atividade,
de modo geral, se restringem aos modos triviais de baixar arquivos, sem muitas novidades
para além da partilha de arquivos musicais etc.; e a notável singularidade do Soulseek no
que concerne ao movimento de experimentação e de criação musical que este programa
vem estimulando em muitos de seus freqüentadores habituais.
O que distingue o Soulseek dos demais P2Ps pode ser aventado, portanto, em algumas
particularidades que nele se efetivam. Algumas das singularidades que justificam o nosso
interesse, resumidamente, são: a pragmática realidade de acesso a um universo de
composições musicais, numa diversidade de acervos que antes era restrito, sob a rubrica da
indústria fonográfica; as normas de convívio do programa que implicam uma contrapartida
ao simples download, que condiciona o freqüentador a construir uma fonoteca que traduz,
em tese, o seu perfil como ouvinte; uma certa manutenção pessoal dos arquivos
fonográficos, como se os membros mais assíduos dispusessem o seu repertório musical
com vistas a atrair preferências e empatias afins, na chance de apresentar aos seus visitantes
novidades musicais; o Soulseek gerou, em sua dinâmica, uma prática insuflada por djs que
passaram a trocar arquivos de canções alteradas, por softwares, para futuras criações de
novos remixes etc. Esta última razão foi um dado importante para que pudéssemos
observar o quanto uma arquitetura tecnológica, altamente condicionada por interesses
mercantis e por performances de utilização triviais, pode motivar gestos criativos e que
ultrapassam o mero hábito de compartilhar música. Foram circunstâncias dessa ordem que,
para além de contagiarem outras práticas criativas, impulsionaram o aparecimento dos "dj's
de desktop" e o desdobramento do expansivo movimento musical conhecido como bootleg
mash up.
Será esta a nossa pergunta: por quais princípios a sonoridade poderia se renovar, se
singularizar, a partir de virtualidades desconhecidas que assomam os hábitos de
freqüentação dos sites person-to-person"? O que mais conta para o nosso trabalho, no
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entanto, é saber como pensar esta trama dispersiva de situações de escuta, em jogo nas
modalidades inventadas na freqüentação do Soulseek, obviamente atravessadas por outras
tantas forças coletivas, a partir de uma problematização da própria realidade da escuta
musical. Nessa trilha de indagações, muitas outras questões se erguem diante do
pensamento, o que nos levou, por vezes, a um labirinto de imponderabilidades.
Não é novidade o fato de que nós nos habituamos e aprendemos a ouvir de acordo com os
materiais técnicos, sígnicos, imaginários, sonoros a que estamos expostos. Mas o problema
do qual nos ocuparemos, todavia, será o das novas aberturas experimentais para a escuta,
ensaiadas pelos usos criativos deste site-programa. E tal acontece, imprevisivelmente, por
práticas de resistência criativa que vão aparecendo, nas fímbrias dos hábitos sutilmente
instaurados pela "tecnologia do virtual". Tais atividades de resistência surgidas a partir da
freqüentação nos peer-to-peer vêm ativando, principalmente, uma ampliação mútua de
interesses, de trabalhos, de projetos, de ações e de experimentações. Diante disto,
trataremos de saber se há realmente alguma dinâmica inovadora ou, ao menos, certas
possibilidades criativas na escuta musical, uma vez implicada aos modos de convívios na
internet.
Estas questões serão discutidas e re-imaginadas no problema da realidade criativa da
escuta, quando digitalmente "plugada". As ocasiões de convívio que se constroem a partir
das arquiteturas person-to-person, na internet, serão adiante abordadas, no que tange aos
movimentos chamados de "contágios criativos". Tais encontros singulares, catalisados pelo
Soulseek, redundaram em certas modalidades intrigantes de composição: os bootleg mash
ups.
Jean Baudrillard (2002) assinala que estamos implicados, de um modo inexorável, a uma
era de conexões, de contato, de contigüidade, de simultaneidades e de interface
generalizada no universo da comunicação. Ele também se mostra cético quanto à
ostensivamente alardeada "cultura da interatividade", como uma atmosfera de interação
interfaceada entre máquinas e "usuários", que nelas investem os seus desejos pré-
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codificados. A despeito das laureadas promessas de heterogeneidade que habitaria a
freqüentação da internet, uma vez sob a rubrica do controle gerencial, não seríamos,
segundo o autor, estimulados a experimentá-la criativamente, o que acaba por inibir o seu
enorme potencial de abertura. Por isso ainda não tivemos a chance de experienciar a
arquitetura sistêmica da internet em sua possível liberdade "rizomática"2. E o que distingue
uma simples comunicação ou interatividade em rede da suas virtualidades criativas é que,
ao contrário da rede, controlável em suas performances, o rizoma se in-decide sem parar,
em imprevisíveis bifurcações, em encontros, contágios e potencialidades irredutívais à
lógica da rede digital.
Afirma-se, por isso, que há sim um potencial "rizomático" na internet. Ela abriga gestos de
invenção que podem potencializar imprevisíveis conexões de afetos, justamente a partir de
um regime de trocas e de contatos circunstanciais. Tais práticas vão se consolidando, antes
de qualquer ato comunicativo, como ações contagiantes. São, destarte, nas trivialidades dos
hábitos de convívio em rede, que certas experimentações acabam por se firmar, assumindo
um papel de "disparadoras", de catalisadoras, que podem nos contagiar e nos levar a agir
criativamente. Em suma, as forças heterogêneas que daí emergem, antes de serem
comunicáveis, são simplesmente "contagiosas".
Para tentar entender essas forças contingenciais, mas que perduram nas ocasiões de
convivência nas arquiteturas de rede person-to-person e das condições da escuta permeadas
pelos ditames da tecnologia digital, vamos tomar aqui a internet não como "rede", uma vez
que esta palavra se encontra bastantes metaforizada pelos jargões das ciências da
comunicação e do marketing digital. Vamos imaginá-la sim como um tipo de ambiente,
mas não num sentido de "meio espacializado", de um espaço homogêneo, de um invólucro
imersivo do espaço "cibernético", de um entorno ou de um envoltório simulacral, mas sim
2 O rizoma se define como um termo da biologia que pressupõe um complexo de conexões em que qualquer ponto se conecta a qualquer outro, em qualquer parte. Não há, no rizoma, nenhuma ordem hierárquica, sistêmica ou classificatória. O rizoma é pensado como um plano de conexões heterogêneas, sem um eixo central nem direções previsíveis, multiplicando livremente distribuições singulares de ritmos.
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como uma ambiência individuada, como um processo, uma hecceidade de fluxos, de
velocidades, de imagens, de temporalidades, de contágios.
Uma importante acepção que Gilles Deleuze dá à palavra “contágio” vem para nos
amparar. Não é a comunicação entre pessoas que interessa ao autor, mas sim o encontro
com o que elas fazem, com as suas atitudes, gestos, pensamentos, afetos etc. Em toda a
gama de coexistência coletiva nas redes é, de fato, muito comum nos encontrarmos com
atividades - e com virtualidades - que podem estimulam o que há de virtualmente ativo em
nossos apetites vitais, que nos atraem e nos agitam, nos afetam e nos impelem, de modo
imprevisto, a outras ações. Por sua vez, nossas ações também estarão imprevisivelmente
abertas e potencialmente contagiantes. Seria preciso exercitar, na internet, essa capacidade
de capturar, por exemplo, um gesto, um ritmo, um pensamento poético, um "charme",
mesmo antes que se efetue qualquer significação. Deleuze assim aponta o efeito indelével
do contágio:
...percebendo alguém com quem nos ajustamos, alguém que nos ensina algo, que nos abre, nos desperta, e nós nos tornamos sensíveis a uma certa emissão de sinais. Nós os recebemos ou não, mas nós nos tornamos abertos a eles. (DELEUZE, 2003, p. 24)
As iniciativas de criação na internet podem, deste modo, passar pelos encontros
"incomunicáveis" com virtualidades que acabam por entrar em ressonância com o que se
está fazendo. É um tipo indeterminado de contato "imanente", no qual se podem criar
relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis, com uma linguagem, uma pré-
linguagem, ou mesmo um afeto não lingüístico. São esses modos inapreensíveis de
contágio que ultrapassam os nossos tempos “dramáticos”, fenomenológicos, das relações
entre pessoas.
Na verdade, o contágio se realiza não somente nos trâmites da internet, mas sempre se
opera em qualquer outra circunstância social. O que pode haver de diferente nos modos do
contágio que co-implicam-se nos encontros person-to-person é, por exemplo, como certos
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hábitos de freqüentação ao Soulseek passaram a contagiar um novo regime de trocas, não
apenas restrito ao material musical, mas de afetos singulares, de criatividade, que gerou
uma prática coletiva de criação musical e assim por diante. Enfim, a principal questão
tratada nesta trilha de indagações é a do potencial afetivo que tal lógica de contato pode
estimular, para a experimentação da escuta.
A internet precisa ser, por tudo isto, repensada, não apenas como uma realidade midiática,
restrita às performances técnicas e de comunicação, mas antes como um ambiente temporal
de catálises, de encontros, de colisões, de encruzilhadas, em suma, de uma heterogeneidade
de contágios, de sensações incomunicáveis, para aquém e além dos regimes tecnológicos,
informáticos, semióticos e comunicacionais.
Apontamos, à guisa de argumentação, o conceito "sound-giving”, uma expressão do
compositor contemporâneo Paul Lansky. Podemos, com alguma liberdade, estender a sua
idéia para a possibilidade rizomática da internet, porque tais hábitos hoje incluem a troca de
arquivos musicais, sejam metódicos ou sejam aleatórios, nos sites p2p, blogs afins, páginas
de artistas etc. Ao transportarmos para esse universo exponencial de permutas a noção de
que um ouvinte reaviva a experiência social da música, ao compartilhar o que está ouvindo,
tentamos demonstrar o quanto a lógica do contágio, para além da comunicação, pode
catalisar novas performances para a escuta3. Imaginamos aqui um novo personagem da
escuta: o "p2p-sound-giver". O "sound-giver dos p2p" se distingue, desse modo, não apenas
pela maneira como ele compartilha os seus arquivos, mas como aquele que também faz, por
exemplo, cópias de gravações, que as oferece ou as empresta aos amigos, recomenda ou
critica algum artista, indica um álbum recente etc. Em termos de vitalidade social o
"sound-giver", comporta um grande número de implicações ativas: uma vez afetado pelas
sensações da escuta, ele as compartilha.
3 O compositor Paul Lansky afirmava, ainda nos anos setenta, que o hábito de escutar, promulgar e partilhar sons, idéias, materiais, informações, afetos, pontua, decisivamente, muitos momentos de nossa vida musical contemporânea. Os exemplos são infinitos e variadíssimos. Basta que façamos uma breve consulta à memória e verificaremos, por quantas maneiras singulares de vida social, chegamos a escutar uma canção, a conhecer um artista etc.. Lansky admite, no entanto, que não é possível saber o alcance das trocas, o destino dos contágios, e de que modo decisivo a escuta seria modificada por episódios dessa natureza.
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São, por fim, as imprevistas ações impulsionadas pelos encontros singulares da internet,
que levam o ouvinte a criar possibilidades rizomáticas de trocas, num processo que, avesso
às inflexões meramente comunicacionais, antes se aproxima de um contágio de afetos, de
empatias, de uma "micro-política" na escuta musical.
1.1- As imagens do Tempo no pensamento e a escuta musical
"Com uma textura de palavras e conceitos, ( o
pensador ) lança como que uma rede no rio do tempo, mas pesca apenas os peixes que ele próprio lá havia
colocado..." Fink
Pensar a escuta. Pensá-la como escuta musical. Pensar o que se passa com escuta quando
esta se implica à realidade das conexões digitais. Pensá-la também a partir do que ela tem
de potencialidades de criação, uma vez comovidas pelos modos de contato com os
intrincados fluxos contemporâneos da tecnologia. Imaginar as forças coletivas que estes
fluxos condicionam, das transiências criativas aninhadas entre os tempos coletivos,
perceptivos, mnemônicos, sensitivos e incorporais, implicados na composição do que
usualmente denominamos como escuta musical. Que imagem de pensamento pode dar
conta de problematizar esta palavra que pretende definir uma realidade composta em meio
a tantas forças mudas, co-implicadas e que excedem a todas as circunstâncias musicais? E
ainda: de que vale pensar a escuta, problematizá-la como uma realidade vital, para além das
questões estéticas, objetivas, técnicas, musicais, sociais? Mas como desligá-la destas
esferas tradicionais do pensamento?
O desafio experimental deste momento da pesquisa trata de pensar, juntamente com as
questões pontuais da escuta ligada à internet, a imagem do pensamento que se volta para
conceber a sua realidade: os tempos, os movimentos, as forças, os ritmos, a linguagem, o
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não-linguístico, as performances da memória, da percepção, da suposta consciência
subjetiva, diante dos mistérios da sensação, dos movimentos impensáveis do pensamento e
da criação musical.
Sabemos que a realidade sensível se nos apresenta em sua impenetrabilidade ao nosso
pensamento. Tentamos, através deste artifício, domar infinitos movimentos que são
absolutamente estranhos e rebeldes ao modo de operação do pensar. Ao que nos parece, o
artifício do pensamento se constrói, contudo, como um exercício paradoxalmente
inextricável à dinâmica das sensações. A estas remetemos imagens, signos abstratos e
relações, criados para lhes dar alguma forma estável e, por meio de convenções, um certo
sentido compartilhável.
Tal como Gilles Deleuze enfatiza, o pensamento tem, por sua própria gênese, uma imagem.
Pensa-se imaginando um mundo formado por múltiplos elementos isolados e finitos e no
qual adquirem contornos calculáveis, formas identificáveis e durações mensuráveis. O que
o nosso pensamento tradicional pressupõe como condição primeira, a imagem de um
sujeito, com um olhar fixo, perspectívico, sempre imobilizado por uma lógica de
binarizações e de compartimentações objetivas e articuláveis.
Ora, isso significa que, quando percebemos e pensamos o mundo, quase sempre nos
valemos de imagens mentais, afecções que são dotadas de forma, de contorno, de
espessura, de medida, de substância, de mobilidade etc. Essa realidade percebida, produzida
por nossos estados vividos, porém, precisa coincidir com um modo de organizar o
pensamento que, para se orientar e se desenvolver, imagina uma lógica espacial.
Não é preciso aqui demonstrar que a linguagem, sendo portadora de dinamismos e
articulações próprias precisa, para ela se efetivar, de que recortemos os fluxos contínuos da
existência em unidades descontínuas, "discretas", do signo. São tais descontinuidades, as
palavras, as frases, as idéias de grandeza, as imagens formadas etc. Ela também exige que
estabeleçamos, entre nossas idéias, as mesmas distinções, a mesma descontinuidade que
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supostamente percebemos haver entre os objetos materiais. A língua, atada aos seus
problemas intrínsecos, é forçada a figurar, a metaforizar, para exprimir forças e
movimentos que não se circunscrevem sob o sistema lingüístico, que nem sequer se
restringem a um regime de signos e que, igualmente, se esquivam à memória e à percepção.
Estas, de sua parte, facilmente nos convencem de que vivemos uma realidade que é urdida
por relações entre fenômenos. Este modo fenomênico de pensar é, porém, absolutamente
incapaz de pensar a indivisibilidade do ato, dos fluxos do Tempo.
Alguns pensadores contemporâneos, tais como Maurice Blanchot, Michael Foucault, Gilles
Deleuze, respectivamente, nos alertaram para um fato deveras intrigante, que envolve a
nossa realidade vivida e que afeta a realidade do pensamento: o quanto a nossa linguagem é
atravessada por todo um modo de ver, por uma visualidade (DELEUZE, 1991). Eles
assinalam que a relação, ao mesmo tempo simbiótica e dicotômica entre o olhar e a
linguagem, condiciona a maioria dos nossos modos de imaginar, de lembrar, de sentir, de
pensar, de criar etc. O ato de ver mentalmente enquanto se está pensando tem sido uma
espécie de recurso que, ao longo processo histórico de construção do pensamento, toma o
domínio do sentido da visão como o próprio paradigma do conhecimento, deste modelo que
sempre nos mantém nos limites e na inércia de um horizonte espacial e homogêneo4.
4 Em um de seus primeiros textos, Michel Foucault apresenta uma idéia insólita a respeito da obscura gênese do pensamento: aprendemos a pensar porque o homem desenvolveu uma aptidão mnemônica para se lembrar dos seus sonhos. A explicação que ele nos dá é a de que os sonhos possuem uma dinâmica plástica e imaginativa. Isto quer dizer que a imaginação no sonho é uma tarefa absolutamente criativa. Assim pensado, é ao sonho que todo ato de imaginação remete. O sonho não é somente uma modalidade da imaginação, ele é a sua condição primeira. Foucault afirma que foi no trabalho dinâmico da imaginação onírica, no caráter de seu movimento, engendrado pelo sonhar, que nasceu a nossa aptidão para conectarmos imagens numa progressão, com um certo ritmo distinto dos ritmos da percepção e da memória, quando estamos em vigília. Quando a consciência, no mundo já constituído pelas percepções, tenta reapreender esse movimento, ela o interpreta em termos de encadeamentos lineares de imagens, que vão sendo injetadas de sentido. O sonho imagina, cria imagens, e a percepção, apenas as reconhece. Concluindo, Foucault assinala: “A frase (lingüística) se oferece, de imediato, com um sentido trivial: os caminhos da percepção estariam fechados ao sonhador, isolado pelo desabrochar interior de suas imagens.” (FOUCAULT, 2002, p.127-130).
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Sabe-se que, há muitos séculos, a música se diz como uma arte sonora para os olhos5. Isto
significa que a escuta "se vê" sempre assomada por um desejo de controlar a emergência de
imagens: abstratas, simbólicas, gestuais, figurais, narrativas, episódicas, filosóficas, afetivas
etc. O que temos por hábito chamar de música, por ser das práticas criativas aquela que lida
com um material especialmente "volátil", etéreo, invisível, tais como os ritmos, os fluxos
incomunicáveis e as modulações simplesmente intensivas, nos lembra Pasquale Criton
(2000), talvez seja, por isso, uma das que mais sofrem os persistentes trabalhos de
codificação dos hábitos sociais. A fluidez das intensidades fugidias motivou, há muito
tempo, práticas musicais que adotaram uma espécie de território formalizador: o nomos.
Esse recurso talvez tenha sido, antes de tudo, um mecanismo instituído para atender a
necessidades de hábitos mnemônicos coletivizados. Uma base rítmica estável,
convencionada, passou a se operar, na música, por padrões dinâmicos de acentuações e de
tempos extensos, o que se efetivou por meio de formas reiterativas de durações perceptíveis
e memorizáveis. Tal prática recorrente de adoção do nomos como essa espécie de
"plataforma" temporal escandida, de organização dos trabalhos da memória - a anamnese -
passou a condicionar, coletivamente, a escuta musical. São mecanismos dessa natureza, tais
como a escansão, a rima, os versos entoados, os cadenciamentos, a estrofe e o refrão, por
exemplo, que orientam a prática da música desde as remotas expressões líricas,
dramatúrgicas e intrinsecamente musicais de compositores e ouvintes da Antiguidade.
Vide, por exemplo, todo o universo de figuras, intervalos, gradações etc.. que aindam
persistem condicionando a realidade da música, ao menos na história do Ocidente, de um
modo geral. É interessante notar que, palavras como: ponto, linha (melódica), intervalo,
distância, até mesmo velocidade, andamento, ritmo, compasso, ritornelo, não se encontram
imunes à tendência imagética formalizada e cronológica. Tão logo apreendemos os seus
símbolos e sistemas de valores duracionais, passamos a reconhecê-los, por força de uma
5 A frase de Tomas Draxe, em 1616, nos atesta esta noção: "A música é o olho do ouvido". Aqui nos referimos especialmente aos recursos musicais recorrentes nos madrigalismos, pelos quais o que está sendo dito nos versos é sugerido por convenções de gestos musicais, tais como escalas, cadências, arpejos, notas repetidas, intervalos harmônicos etc.
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domesticação coletivizada da audição6. A escuta passa, submetida a tal recurso
"espacializador", a sofrer um tipo de delimitação de um horizonte lógico, de uma
verticalização harmônica matematizada e de um tempo dramatizado, que se pautaram em
encadeamentos sucessivos, tanto de formas perceptíveis, quanto de estados sentimentais.
Toda a sua temporalidade submete-se, desde então, a relações de cálculos cronométricos,
de índices de velocidades escalonadas (os andamentos), de grandezas duracionais. Os
ritmos, sejam das vibrações sonoras, sejam das obras e das suas estruturas (recorde-se o
compasso) ou até mesmo o ritmos das sensações, passam a ser, arbitrariamente,
mensurados e limitados em estados mnemônicos, perceptivos. Esses estados serão
traduzidos em outros estados: em afecções (imagens interiorizadas), sentimentos, pathos,
catarse etc.. Leiamos esta idéia de Paul Valèry:
O contraste entre o ruído e o som é aquele entre o puro e o impuro, entre a ordem e a desordem; esse discernimento entre as sensações puras e as outras permitiu a constituição da música. Que essa constituição pode ser controlada, unificada, codificada graças à intervenção da ciência física, que soube adaptar a medida à sensação e obter o resultado essencial de ensinar-nos a produzir essa sensação sonora de maneira constante e idêntica, por meio de instrumentos que são, na verdade, instrumentos de medida. (VALÈRY, 1991, p. 209)
Muitas das linhas teóricas que se restringem ao escopo da percepção sonora buscam
compreender os modos por meio dos quais os sons se apresentam na escuta. Algumas delas
relutam em se deter somente diante de questões acerca deste caráter espacial da imagem do
Tempo na música e da escuta. Em todo caso, a expressão “espaço sonoro” será sempre
ambígua, porque ela pode designar, de uma parte, o espaço acessível ao movimento
corporal no qual se produzem os sons que, propagados fisicamente no ar, podem ser
6 A imagem mental que o pensamento clássico – e que se estende à música - gera, por exemplo, do conceito de "sistema", se define por elementos hierarquizados e articulados por relações coordenadas funcionais. Das funções de seus órgãos, devidamente articulados, o seu "organismo se organiza", quer dizer, na organização de um sistema as coisas só ficam juntas por uma explicação, por associações de imagens espacializadas, como matérias formadas e suas mobilidades coordenadas. A organização do sistema dependerá sempre de uma dimensão anexa. O sistema, desse modo, é pensado como se ele fosse fundado num princípio em que uma constante sofre suas variações ou articula-se com as variáveis de um sistema de mobilidades – não movimentos – coordenadas, com um início e um fim, um espaço fechado pelos limites de enquadramentos visuais imobilizantes aos quais a prática do horizonte óptico-lingüístico nos condicionou.
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localizados por um ouvinte. Esta é uma tarefa à qual se dedica a psicoacústica. De outro
lado, a musicologia insiste estudando o espaço lógico dos sons, a estrutura relacional entre
intervalos escalonados das alturas do som e das durações dos pulsos rítmicos ou, num
sentido mais genérico, os espaços internos da música. Estes, uma escuta visual vasculha,
pautada em preceitos da simbologia da música, transformando-os em afecções sentimentais.
A escuta que chamamos de "abstrata" corresponde a estes preceitos, pois, quando ela passa
a alinhar os sons em sucessões num espaço ideal – o meio -, também ela imagina contar
esse sons numa duração que é, geralmente, uma representação espacial do Tempo. Um
modo de pensar calcado na visualidade e na mobilidade abstrata erige, na realidade, um
pseudo-movimento7 Esta é a deficiência do pensamento que vê elementos num meio
espacializado: o Tempo só se torna representável por imagens espaciais8. Se, no entanto, o
nosso modo ocidental de pensar se firmou numa certa lógica fenomenal, seria preciso
retirar da escuta a primazia de representar, de metaforizar o Tempo. Precisamos aceitar que,
ao escalonar durações temporais, não fazemos mais do que formalizar, espacializar,
homogeneizar e tornar estáticas forças não-figuráveis do Tempo.
Vale, desde já, mencionar uma interessante idéia, citada por Rodolfo Caesar, pela qual
Nietzsche observa que certos eventos, geralmente ignorados num estado de vigília, quando
passam a perturbar o ouvido, na ausência da visão, e podem despertar um outro tipo de
atenção ou de uma outra performance sensorial que passa a trabalhar criativamente,
imaginativamente. A noite é, então, o momento no qual a escuta e os modos do medo
passam, segundo o autor, a convergir em direção a uma performance de imaginação sonora.
Isto quer dizer que, na ausência de imagens perceptíveis, nos vemos forçados a imaginar. 9
7 Segundo a concepção fisicalista da manifestação acústica, o que se entende por "onda sonora", define-se assim pela compressão de um meio, cujas moléculas se deslocam a partir de uma fonte de emissão. É importante aqui considerar, ao contrário, que ondas sonoras num meio são, antes de tudo, processos co-implicados. E se um processo, por princípio, não se desloca, a onda sonora também não age assim. 8 Para Strawson, uma experiência puramente auditiva supõe, como princípio motor, um mundo não espacial (STRAWSON, apud CASATI & DOKIC, 1959). 9 Nietzsche, a partir de duas categorias sensíveis e imaginárias - a angústia e a ansiedade - e da sua prevalência sobre o ouvido, arriscou uma abordagem que aproximava as experiências musicais ligadas à experiência do espaço e à do tempo a esses dois modos emocionais do medo. Os dois eixos principais do
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Poderíamos, desde já, inferir o quanto esta idéia de Nietzsche já procurava antecipar uma
espécie de "acusmática" no pensamento10. O ouvido, em sua natureza sintética, ao contrário
da tendência óptica das abstrações analíticas, poderia experimentar o mundo "cegamente".
A orelha, "órgão da noite", seria capaz de nos habilitar para desarmarmos, por meio da
imaginação desfigurada, essa compulsão espacializadora em sua obstinada recognição de
formas. Quando escutamos, com efeito, somos afetados por um mundo que é
primordialmente vibratório, um mundo feito de intensidades e de ritmos (NIETZSCHE
apud CAESAR, 2004).
Michel Serres (2001) é outro autor que também nos adverte sobre a necessidade de nos
libertarmos do império da simbiose entre a retina e a linguagem. Serres argumenta que o
som exige uma dimensão a mais para a escuta das suas ondas e, nessa aptidão, o audível
supera o visível, na ampliação intensiva do campo sensível. O dado, sendo já uma entidade
da linguagem que, por sua vez, impõe silêncio ao mundo ("a clareza substitui o rumor"),
precisa ser escutado como um "dado fugidio". Para Serres, somente a orelha conhece esse
afastamento em relação ao signo (SERRES, 2001).
cruzamento de referências filosóficas do mundo vivido, o tempo e o espaço, foram relacionados por Nietzsche aos "modos do receio". O primeiro, que diz respeito à dinâmica própria da ansiedade, e o segundo, correlacionado à sensação da angústia. A ansiedade e a angústia, continua ele, cada uma a seu modo, estariam ligadas ou presidiriam a percepção musical. O pólo da ansiedade fala de algo como um tipo de sofrimento dos efeitos da passagem do tempo sobre os nossos estados sensíveis. Esta escuta literalmente anseia pelo término de uma espera. O filósofo atribui a percepção de um tempo teleológico à prática da música ocidental, se comparado com o chamado "tempo contemplativo", cíclico, próprio da escuta mais cultivada na história oriental. Nietzsche afirma, deste modo, que o sentido temporal que se expressa como ansiedade só se exprime como que cadências episódicas que dramatizam o fluxo contínuo sensível em um determinado rumo. A ânsia na escuta denota o desejo constante de renovação, de ultrapassagem, de não-conformidade com o presente, de uma não aceitação do instante, querendo, por conseguinte, detê-lo ou acelerá-lo. Já o modo de escuta ligado à angústia, por sua vez, parece mais se aproximar de experiências percepcionais nas quais prevalece uma dinâmica espacial, a um senso e a uma imagem que se plasmam ao som e ao seu ambiente sensível. Como assinala Rodolfo Caesar, a angústia de se estar dentro de um espaço menor, é uma situação que pede para ser musicalmente "resolvida" através de uma abertura espacial. Tome-se, como sentido de movimento engendrado por uma escuta relacionada à sensação espacial, a experiência musical, quando à percepção se oferece, por exemplo, o conforto de uma reverberação de espaços mais ampliados. (NIETZSCHE, apud CAESAR, 2004) 10 Acusmática, termo pitagórico, designa um modo de escutar que se esforça por evitar uma realidade visual na escuta. A escuta acusmática se refere à uma escuta despida de quaisquer imagens narrativas, gestualidades visualmente performáticas etc..
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Quando, em seu Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche nos propunha "filosofar com o martelo",
era ao instrumento da medicina, àquele que se usava para auscultar o corpo de um paciente,
que o filósofo se referia. É por esta figura que Nietzsche evoca a necessidade de se acolher
um modo de "escutar no pensamento", para que se possa ao menos tentar capturar
intensidades e nuances que escapam ao domínio hegemônico do olhar abstrato. De fato, os
encontros com o mundo auditivo, por processos que sequer conhecemos, nos forçam, de
algum modo, a pensar, a imaginar 11.
Não nos parece que se trata de uma frase de efeito quando Deleuze nos diz que a música
está imediatamente ligada ao pensamento e que os conceitos são verdadeiras canções em
filosofia12. É que, de acordo com o filósofo:
há uma música no pensamento, e inversamente, a música faz com que vejamos algumas coisas estranhas, cores e sensações, uma espécie de circulação, entre elas, dessas dimensões, entre conceitos, sensações pictóricas e afetos musicais. (DELEUZE, 2003, p. 23)13
Até onde vimos, se a abstração no pensamento erigiu um logos que tentou figurar e
mensurar o Tempo, afirmamos, ao contrário, que este é uma força incorporal, uma
máquina ubíqua de forças cujos movimentos, apesar de sua íntima exuberância, são
absolutamente imperceptíveis para a nossa vida orgânica e mnemônica. Por meio de seus
ritmos insondáveis, as potências inexpressas do Tempo realizam todo o nosso mundo
sensível. Precisamos, por isso, acolher uma via de pensamento para a escuta e que esta seja, 11 Pensar não seria somente procurar traçados firmes e estáveis, como quer o olho, mas escutar ressonâncias, "transduzir" - fazer uma força migrar de natureza - o pensamento. Torná-lo um transdutor de imagens. Esta nova realidade se urde por co-implicações imanentes e que devemos, para pensá-las, antes "auscultá-las". Os investimentos do pensar que se pensa a si mesmo, pedem que o pensador seja antes um tipo de ouvidor – e não uma testemunha ocular - de suas condições e de seus problemas intrínsecos, como a questão dos próprios fundamentos que o erigem e das imagens que orientam o seu percurso. 12 Temos de aceder, em igual medida, quando Bastien Gallet nos diz que a música teria certo poder de colocar o pensamento, por assim dizer, a nu, tal como ele mesmo explica em seguida: "O que interessa na música que eu escuto é o que ela me faz pensar, o que ela diz sobre o funcionamento do pensamento, seu tempo, seus ritmos, suas idéias fixas, sua ansiedade, tudo que nele toma uma coloração musical" (GALLET, 2005, p. 2). 13 Lagneau falava dessa velocidade e dessa amplitude que o induziam a aproximar a "Ética de uma música": a rapidez do pensamento fulgurante, a potência em extensão profunda, ou melhor, o poder de perceber, num único ato, a relação de um maior número possível de pensamentos (LAGNEAU apud DELEUZE, 2002).
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antes, voltada para uma outra apreensão da realidade da música, como se esta fosse uma
fábrica de tempos que recriasse diferentes ritmos, que levasse à sensação uma
transritmicidade do Tempo. Para tanto, é preciso antes problematizar a própria imagem que
o Tempo assume no pensamento. Uma tarefa como esta precisaria antes redimensionar
alguns pontos de partida, na busca de experimentar outros meios conceituais para re-
imaginar a escuta, não mais como um fenômeno ligado ao som, mas sim como uma
paradoxal composição de sensações do Tempo.
Para Nietzsche e para alguns de seus epígonos, o pensamento ocidental deveria se investir
de poderes libertários para despir-se de suas imagens abstratas, encorajando a proposta de
um pensamento destituído de imagem. Para tanto, ele prioriza a questão da impensável
física de forças que faz o pensamento viver e se criar. Em muitos de seus princípios, este
estudo se assume como uma experimentação que tateia certas linhas do pensamento de
Gilles Deleuze, principalmente as que transitam pelos âmbitos da música e do próprio
pensamento. O autor adota a defesa de um pensamento que esteja em imediata correlação,
não com uma forma, seja do mundo ou do sujeito, mas sim com forças, com potências não-
formadas de um cosmos de fluxos energéticos. Afinal, há movimentos ínfimos e
pequeninas vibrações dos quais se elevam eventos impensáveis à realidade do pensar.
Por essa razão, o pensamento só pode existir na condição de um investimento de
imaginação criativa, de encontrar um princípio de criatividade ao pensamento, que
promova um modo de se pensar criativamente. E tal vontade criativa somente se dará ao se
fugir do pensamento como mero exercício da recognição: isto significa "problematizar".
Pensar, enfim, é criar, porque é o que poderá fazer nascer um problema que ainda não
existe, ao invés de simplesmente representar o que já está dado14. A partir das idéias de
Henri Bergson (1999), o pensamento terá uma chance de ultrapassar o pensamento
representacional e passará a investir na recriação de um mundo inteiramente
"problemático". Pensar, segundo Bergson, não é resolver uma questão com respostas, mas 14 Para Deleuze, é preciso exercer, antes de tudo, o pensar em um nexo com o impensável, de dar pensamento a um impensado, de tentar atingir um plano paradoxal que não pode ser pensado e que todavia nos dá o que pensar, um não pensável que nos força a pensar (DELEUZE, 2003).
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experimentar, criar um campo de problemas. Problemas esses que não param, contudo, de
deslocar-se e de disfarçarem-se a si mesmos 15. Esta iniciativa faz do pensar a escuta não
como uma questão com respostas, mas como um campo problemático, ou seja, é preciso
tratar a questão da escuta como um campo de problemas.
1.2 – O Tempo das hecceidades: diferença e repetição na imagem da música
"Fervilha, sob a nossa realidade percebida, na espessura
de uma matéria efervescente, radiante, múltipla, inquieta, marulhosa, espumante, uma vida engendrada
por miríades de mudanças ínfimas."
Tarde
Vale perseverar, neste momento da discussão, recordando que Gabriel Tarde (2003) se
preocupava muito mais com a ação recíproca entre os elementos do que com a sua natureza
íntima, essencial. É que para ele não havia nada no universo senão conexões que se
compõem e que também nunca uma coisa seria separável de suas acoplagens com o mundo.
A sua imagem dos maquinismos de forças – e não só de coisas – que compõem o real
remetem-se ao pensamento da individuação, ou da hecceidade, imaginada anteriormente
por Duns Scott, filósofo que viveu entre os séculos XIII e XIV. A inquietação de Scott
voltava-se para o questionamento do princípio de pensamento preocupado em destacar
coisas, pessoas, valores, sujeitos e objetos, individualizados por meio de nomes próprios, de
seus predicados, atributos, propriedades etc..
É a individualização no pensamento o artifício mental pelo qual se injeta um sentido a
partir da identidade. O que este recurso do pensar desconsidera, no entanto, são os 15 O desafio daquele que busca pensar é, antes de tudo, tentar colocar problemas e criar conceitos para estes. Os problemas, todavia, se erguem por detrás das questões que formulamos. O problema e a questão transformam-se mutuamente, conforme o modo de questionar e de problematizar. Sempre que um problema é criativamente colocado, devem aparecer novos conceitos para percorrê-lo (BERGSON, 1999).
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movimentos não-identificáveis, que nos fazem e que nos afetam. Individualizar é operar,
por meio de um recorte imagético abstrato, unidades materiais formadas por suas supostas
características e naturezas. O pensamento das hecceidades, ao contrário, pressupõe a
"individuação" (e não individualização), que evita olhar para as coisas e tenta imaginar
ritmos, fluxos, cópulas, velocidades, transiências. A necessidade de se pensar em termos de
hecceidade é que, antes de se deter na matéria e na forma, prefere deslizar entre estas,
imaginando o mundo como um amplexo maquínico de ritmos heterogêneos 16.
Parece, todavia, que o nosso mundo percebido nos é dado "fenomenalmente", numa
multitude de elementos, de formas e de relações. Na realidade do presente vivido, as coisas
percebidas, lembradas e abstraídas encobrem, contudo, um ilimitado e irrefreável
movimento que se compõe por céleres dinamismos, irredutíveis aos recortes
fenomenológicos. Mas eis que a evidência sensitiva contradiz, aparentemente, esta
concepção das hecceidades, pois vemos efetivamente coisas, distinguimo-nos como uma
coisa em relação a outras. Todo o real se move, já o dissemos, por meio da força
onipresente, una e múltipla, que é o Tempo. Podemos aqui descrevê-lo como um jogo de
ondas de força, acumulando-se num dado ponto enquanto se afrouxam noutro, do mais
ínfimo ao mais gigantesco movimento. Ou seja, a realidade do Tempo possui uma dinâmica
que não se parece, em nada, com a realidade do nosso mundo espacial, da percepção e da
linguagem. Enquanto percebemos formas e exprimimos estados vividos, um mar de forças
agitadas por tempestades moleculares, em perene fluxo-refluxo, encavala ritmos que nem
sequer sentimos. Tamanho acoplamento de ritmos se torna sensível apenas quando ganham
velocidades que nosso organismo – ele mesmo uma síntese de ritmos variados - alcança
apreender como duração perceptiva, por meio de várias performances de memória.
Buscamos também um amparo no "pensamento da imanência", afinado às hecceidades de
Scott e defendido por autores como Nietzsche, Bergson, Blanchot, Deleuze e Guattari.
Foram principalmente eles que ousaram investir na apreensão, pela experimentação do 16 Deleuze nos afirma a necessidade dessa imagem no pensamento porque: "não amamos alguém separadamente das paisagens, das circunstâncias de toda natureza por ele englobadas" (DELEUZE, 2002, p. 128).
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pensamento, de uma face intensiva da realidade, de sua transiência íntima, heterogênea e
imprevisivelmente criativa. Já temos visto que, enquanto o pensamento transcendental
escreve sobre coisas, objetos, signos ou fenômenos, o pensamento a favor da imanência
pretende conceber imagens que nos remetam ao problema das intensidades, do movimento,
dos fluxos, ritmos e afetos do Tempo.
Um dos pontos mais delicados na demonstração do pensamento da imanência, da
individuação ou das hecceidades na escuta é apontar que, para a imagem conceitual da
música, o pensamento transcendental nos mantém irremediavelmente retidos nas imagens
individualizadas do som, do fenômeno sonoro, das qualidades sonoras etc.., com suas
características formais, tais como abstrações matemáticas, intervalos, métricas, durações
extensivas, estruturas, simetrias entre partes, figuras, cadências, objetos musicais, imagens
psicológicas (afecções), pathos, gestos, narrativas, biografias, símbolismos, subjetividade
etc.. Isso tudo pode ocupar o rol de preocupações poéticas de muitos compositores, mas não
é o que realmente interessa ao mundo das sensações, não é o que nos afeta, não é o real
poder da música. Isto porque será somente um acavalamento singular de sensações que
poderá realizá-la diferente, paradoxal e criativamente.
A realidade que apreendemos perceptivamente é, em suma, o resultado de uma
complexidade infinita: sob uma aparente uniformidade, se encontra uma diversidade. Trata-
se, por fim, de uma agitação, de uma realidade inquieta que subsiste/insiste por trás da
percepção do vivido, tal como uma intempestividade, uma realidade feita de tempos
"invivíveis". O que nos parece imóvel, na realidade, está prenhe, repleto de movimentos
incessantes, infinitos, imanentes; de ritmos, continuamente dobrados uns nos outros.
Recorremos às idéias de Tarde, uma vez que ele assinala que até mesmo os átomos, última
unidade elementar que se acreditava ser homogênea, estável, se revela múltipla, e cuja
diversidade interna executa movimentos de grande imprevisibilidade. As suas palavras nos
explicam melhor: "Sob a calma aparência que a percepção nos dá, um turbilhão se diz, num
ritmo vibratório, algo infinitamente complicado." (TARDE, 2003, p.11