rios e paisagens urbanas em cidades brasileiras

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Page 1: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras
Page 2: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

PROJETO EDITORIAL

Lucia Maria Sá Antunes Costa PROURB- Programa de Pós-graduação em Urbanismo FAUjUFR] Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Paisagismo

CooRDENAÇÃO EDITORIAL

Marta Mosley Editora Viana & Mosley

CAPA E PROJETO GRÁFICO

Leonardo Ventapane Patrícia Façanha Rafael Cazes

IMAGEM DA CAPA

Leonardo Venta pane- still de vídeo

DIAGRAMAÇÃO E ARTE FINAL

Larissa Averbug Rafael Secim

REVISÃO DE TEXTO

Lilian Dias

APOIO

~APERJ

ViANA & MOSLEY Editora

Av. Ataulfo de Paiva, 1.079 I sala 704

Leblon- Rio de Janeiro

CEP: 22440-034

Diretor Comercial: Richard Mosley

Te! I Fax: 21-2540-8571

E-mail: [email protected]

www.vmeditora.com.br

prourb~ Programa de Pós-graduação em Urbanismo FAUIUFRJ

Av. Reitor Pedro Calmon, sln-Prédio da FAU- Reitoria- 5• andar- sala 521

Cidade Universitária- Rio de Janeiro, R) - 21941.590

Coordenação: Prof. Denise Barcellos Pinheiro Machado

Te!: (55.21) 2598-1990

Fax: (55.21) 2598-1991 e-mail: [email protected]

www.fau. ufrj. br lprourb

Rios e paisagens urbanas em cidades brasileiras I Lúcia Maria Sá Antunes Costa (org.).- Rio de Janeiro :

Viana & Mosley: Ed. PROURB, 2oo6.

192 p.: i!.; 20 x 24 em.

Inclui bibliografia.

ISBN 85-88721-38-4-

r. Arquitetura paisagística. 2. Urbanismo.

3· Cidades e vilas - Brasil. 4- Rios.

I. Costa, Lúcia Maria Sá Antunes.

II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de

Pós-Graduação em Urbanismo.

CDD: 7n

RIO DE RO

PROURB - FAU- UFRJ

2006

Page 3: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Entre a paisagem o rio fluía

como uma espada de líquido espesso.

A cidade é fecundada_ por aquela espada

que se derrama

"O Cão sem Plumas"

João Cabral de Melo Neto

Page 4: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

ÍNDICE

RIOS URBANOS E O DESENHO DA PAISAGEM

Lucia Maria Sá Antunes Costa 9

VIVER ÀS MARGENS DOS RIOS: UMA ANÁLISE DA SITUAÇÃO

DOS MORADORES DA fAVELA PARQUE UNIDOS DE ACARI

Ana Lucia Britto e Victor Andrade Carneiro da Silva 17

MAPEAMENTO AMBIENTAL E PAISAGÍSTICO DE BACIAS HIDROGRÁFICAS URBANAS:

ESTUDO DE CASO DO RIO CARIOCA

Mônica Bahia Schlee, Ana Luiza Coelho Netto e Kenneth Tamminga 33

A PAISAGEM DA BORDA: UMA ESTRATÉGIA PARA

A CONDUÇÃO DAS ÁGUAS, DA BIODIVERSIDADE E DAS PESSOAS

Paulo Renato Mesquita Pellegrino, Paula Pinto Guedes, Fernanda Cunha Pirillo e Sávio Almeida Fernandes 57

A FLUVIALIDADE EM RIOS PAULISTAS

Jorge Hajime Oseki e Adriano Ricardo Estevam 77

RIBEIRÃO PRETO: OS VALORES NATURAIS E CULTURAIS DE SUAS PAISAGEM URBANAS

Alessandra Soares Ghilardi e Cristiane Rose de Siqueira Duarte 95

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAS PAISAGENS DO RIO CAPIBARIBE NA CIDADE DO RECIFE

Vera Mayrink I2I

o RIO SANHAUÁ E A CIDADE DE JOÃO PESSOA

Flaviana Vieira Raynaud I4/

A PAISAGEM DO RIO RIO ITAJAÍ-AÇU NA CIDADE DE BLUMENAU

Soraia Loechelt Porath e Sonia Afonso r63

BELÉM, CIDADE DAS ÁGUAS GRANDES

Cristóvão Fernandes Duarte I77

Page 5: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

RIOS URBANOS E O DESENHO DA PAISAGEM

INTRODUÇÃO

Existem muitas maneiras de falarmos sobre cidades. Elas são uma das materializações mais complexas da inteligência e da imaginação huma­nas, e portanto apresentam múltiplas possibili­dades de abordagem2

• Este livro fala de algumas cidades brasileiras a partir da paisagem de seus rios urbanos. Em cada capítulo, os autores bus­cam observar uma cidade tendo seus rios como ponto de partida, trazendo questionamentos, indagações e observações que ampliam o nosso entendimento sobre os valores e significados dos rios urbanos no Brasil.

O livro tem como objetivo principal a divulgação de um conjunto representativo de estudos sobre rios urbanos em cidades brasileiras, enfocando as relações entre rios, cidades e suas populações sob diferentes perspectivas. Os capítulos apresentados buscam reunir fundamentos e métodos em Paisagismo, Arquitetura e Urbanismo que possam contribuir para a valorização dos recursos hídricos em ambientes urbanos, reconhecendo ainda o enfoque interdisciplinar inerente ao tema.

Lucia Maria Sá Antunes Costa

Paisagem, país foito de pensamento da paisagem, na criativa distância espacitempo,

à margem de gravuras, documentos, quando as coisas existem com violência

mais do que existimos: nos povoam e nos olham, nos fixam. Contemplados,

submissos, delas somos pasto, somos a paisagem da paisagem. Carlos Drummond de Andrade1

As contribuições dos autores se dão a partir de alguns desdobramentos principais. Inicialmente, explorando e conectando diferentes possibilidades de leitura da paisagem fluvial urbana, como plane­jamento ambiental, ecologia da paisagem, estudos culturais, história das cidades e fenomenologia, demonstram a riqueza da abordagem interdisci­plinar nos estudos sobre a paisagem. Segundo, e a partir destas conexões, contribuem para o enten­dimento do conceito de paisagem- com ênfase na paisagem fluvial urbana- enquanto um processo, que participa ativamente na construção de nossa visão de mundo3. E finalmente, ao iluminar os rios como foco principal de uma leitura da paisagem da cidade, ressaltam a imagem poética trazida por Carlos Drummond de Andrade: os rios, enquanto paisagem, "nos povoam e nos olham, nos fixam''. _

RlDS E PAW~lGENS URBANH~L 9

Page 6: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

RIOS URBANOS

O menino tinha certeza de que havia nascido no dia

em que viu o rio. (. .. )

O menino amou o rio pois acreditou que o rio havia

também nascido no dia em que ele o viu. Ziraldo

4

Como as cidades habitam os rios?

É muito antiga a relação de intimidade que se estabelece entre rios e cidades brasileiras. Muitas das cidades coloniais surgiram inicialmente às margens dos rios - mesmo aquelas situadas em baias ou à beira-mar5• É, portanto, a partir de rios - grandes, médios, ou ainda pequenos cursos d'água- que muitos núcleos urbanos brasileiros vão surgir. Os rios tinham muito a oferecer, além de água: controle do território, alimentos, possibilidade de circulação de pessoas e bens, energia hidráulica, lazer, entre tantos outros. E desta forma as paisagens fluviais foram paulatinamente se transformando também em paisagens urbanas.

A complexidade das relações entre rios e cida­des brasileiras são abordadas ao longo dos capítu­los a partir de suas congruências e contradições. Veremos que rios são importantes corredores bio­lógicos que permitem a presença e a circulação da flora e fauna no interior das cidades. Veremos também que eles são espaços livres públicos de grande valor social, propiciando oportunidades de convívio coletivo e lazer que atendem aos mais diversos interesses. E veremos também que olhar para as relações entre cidades e rios a partir de sua bacia hidrográfica nos permite expandir e entrela­çar suas dimensões culturais e ambientais.

Esta relação de intimidade entre rios e cidades brasileiras, entretanto, não tem se dado sem con­flitos. Veremos que os rios tem tido suas margens ocupadas por habitações informais ou irregulares,

e suas águas transformadas em coletores de lixo e de esgoto doméstico e industrial. Ao longo dos anos, cidades e rios tem travado muitos embates, principalmente através de enchentes periódicas. Cidades invadindo as águas, e águas invadindo as cidades - situações pendulares, cíclicas, geradas a partir de antigos conflitos entre os sistemas da cultura e os sistemas da natureza.

Seja cruzando a cidade ou passando ao lar­go dela, é muito difícil para um rio, principal­mente os pequenos rios e córregos, atravessar um tecido urbano. A base desta dificuldade se situa, de um modo geral, principalmente numa visão dos rios enquanto estrutura de saneamen­to e drenagem urbanas. Os conflitos entre pro­cessos fluviais e processos de urbanização tem sido de um modo geral enfrentados através de drásticas alterações na estrutura ambiental dos rios, onde, em situações extremas, chega-se ao desaparecimento completo dos cursos d'água da

. b 6 paisagem ur ana . Certamente estas questões não se dão apenas

entre os rios das cidades brasileiras7. Sabemos

que idéias, modelos e gestos projetuais circulam internacionalmente, e as experiências relaciona­das às inserções paisagísticas dos rios urbanos não seriam uma exceção. Porém, enquanto alguns dos valores atribuídos aos rios podem ser observa­dos em muitas outras cidades ao redor do mundo, outros são mais específicos, e se relacionam com a história e a cultura do lugar.

Voltamos, então, à questão: como as cidades habitam os rios? Habitar é construir, como ar­gumenta Norbeg-Schulz a partir de Heidegger, é tornar-se um com a paisagem e com os atri­butos do lugar8

. É quando a intervenção huma­na, no seu processo de construção, e portanto de transformação de mundo, revela e valoriza ainda mais os significados e os atributos da paisagem, tornando-os visíveis. Por este enfoque, muito de nossos rios ainda estão por ser habitados. Não te­mos olhado para eles como o menino na estória

10 _ f<IOS E PAISAGENS URBANAS

de Ziraldo que, ao olhar para o rio, descobriu-o, descobrindo também a si mesmo.

Reconhecer o rio como paisagem, portanto, é habitar o rio.

Desenho da paisagem

Cada cidade, em seu habitat paisagístico, estabelece um ambiente ecológico e cultural único

em si mesmo (. .. ) 9

Lawrence Halprin

Paisagem e cidade estão destinadas a uma per­manente relação de cumplicidade. Em um texto seminal, o arquiteto paisagista Lawrence Halprin argumenta que as cidades mais interessantes são aquelas que deixam esta cumplicidade transpa­recerw. A nossa experiência da paisagem urbana se enriquece quando a complexidade do sítio pai­sagístico se faz presente na forma e no desenho da cidaden.

Já sabemos da importância da água desenhando a paisagem, em suas diversas escalas. Neste con­texto, a compreensão do papel dos cursos d'água é de fundamental importância. Os rios, córregos e riachos são os caminhos das águas doces que buscam um nível mais baixo de repouso. E des­ta forma vão desenhando seu percurso em linha ao sabor da topografia, conectando montanhas e planícies, florestas e mares, conectando enfim di­ferentes fisionomias paisagísticas.

O rio é assim uma estrutura viva, e portanto mutante. É principalmente uma estrutura fluida, que pela sua própria natureza se expande e se re­trai, no seu ritmo e tempo próprios. Ocupa tanto um leito menor quanto um leito maior, em fun­ção do volume sazonal de suas águas. Ao fluir, seu percurso vai riscando linhas na paisagem, como um pincel de água desenhando meandros, arcos e curvas. O rio traz o sentido de uma maleabilidade primordial no desenho da paisagem.

Esta maleabilidade deve encontrar uma corres­pondência no desenho da paisagem urbana, para que o rio possa vibrar na cidade. Portanto, é básico considerar propostas projetuais a partir das quais o tecido urbano que tem o privilégio de receber um curso d'água possa participar desta qualidade, que é um dos atributos da paisagem fluvial.

Por este motivo, já sabemos que não é mais aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu leito vivo com calhas de concreto, e substituir suas margens vegetadas por vias asfaltadas, como uma alternativa de projeto para sua inserção na paisa­gem urbana. Estas propostas, que tinham como uma de suas bases conceituais a busca do controle das enchentes urbanas, são muito criticadas não só pela fragilidade sócio-ambiental no resultado final do projeto, como também pela pouca eficiên­cia no controle destas mesmas enchentes'2

No adensamento do espaço construído, os rios trazem uma outra importante contribuição para a experiência urbana: como espaços livres de edifi­cações, ampliam a possibilidade de fruição da pai­sagem da cidade. O que se pode ver de um rio? Ele nos permite ver uma água que corre, o céu, as nu­vens, as estrelas. Ele nos traz a perspectiva de um horizonte longínquo, ou o desejo do outro lado da margem, ou mesmo ainda sua fabular "terceira margem'', como nos conta Guimarães Rosa'3.

O desenho da paisagem fluvial urbana na esca­la do pedestre que favorece esta fruição inclui pos­sibilidades de caminhar ao longo do rio e de ter acesso físico à água. Permite ainda atravessar para a outra margem, onde as pontes que trazem um outro ritmo ao seu percurso são também como terraços que nos permitem observar os horizon­tes urbanos estando sobre a água. E já discutimos anteriormente como visibilidade e acesso público aos rios urbanos e suas margens, além de conec- _ tividade com os demais corpos d'água que com­põem a rede hidrográfica, são critérios de desenho importantes para valorizar sua dimensão ambien­tal e cultural'4 .

Desenhar a paisagem urbana a partir das águas dos rios que cruzam ou bordeiam a cidade é, por-

Page 7: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

l

tanto, um desafio e uma oportunidade privilegia­da. Os autores que contribuem para este livro, em­bora tragam abordagens distintas para diferentes cidades brasileiras, apresentam muitos pontos em comum. Entre estes, deixam claro que compreen­der o rio urbano como paisagem é também dar à ele um valor ambiental e cultural que avança na idéia de uma peça de saneamento e drenagem. É reconhecer que rio urbano e cidade são paisagens mutantes e com destinos entrelaçados.

Cidades brasileiras

Ao apresentar um breve conteúdo das contri­buições dos autores separadamente, é preciso também ressaltar outro aspecto da relevância do conjunto destes textos. Sua leitura vai nos reve­lando lentamente o grande valor do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico que representa a paisagem fluvial urbana nas cidades no Brasil.

Ana Lucia Britto e Victor Silva iniciam a dis­cussão sobre rios e paisagem urbana em cidades brasileiras, apresentando uma situação que se dá não apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas também em muitas outras cidades no Brasil: a apropriação das faixas marginais de proteção por ocupações irregulares e favelas. Os autores dis­cutem relação entre pobreza e riscos ambientais apresentando a complexidade dos elos que se es­tabelecem entre o rio Acari e sua população ribei­rinha: inundações, lixo, esgoto, mau cheiro, do­enças. Argumentam que a situação só irá mudar quando forem tomadas medidas que reconheçam o rio e sua várzea inundável como uma única uni­dade ambiental. E ressaltam que a recuperação dos recursos hídricos precisa estar necessaria­mente atrelada a uma política habitacional para população de baixa renda.

Ainda com o enfoque na cidade do Rio de Ja­neiro, Monica Schlee, Ana Luiza Coelho Neto e

Kenneth Tamminga apresentam um diagnóstico a partir do mapeamento sócio-ambiental do rio de maior importância histórica para a cidade: o rio Carioca, hoje parcialmente oculto da paisagem urbana. Ressaltando a importância da bacia hidro­gráfica como recorte para análises ambientais e paisagísticas, os autores propõem uma metodolo­gia de caráter interdisciplinar para avaliar a trans­formação da paisagem ao longo da bacia e seus efeitos na qualidade ambiental urbana local. Os re­sultados encontrados apontam que, quanto maior a transformação da paisagem conforme os padrões de urbanização existente, mais intensos e negati­vos são os efeitos da qualidade ambiental local.

A bacia hidrográfica é também o ponto de par­tida do capítulo apresentado por Paulo Pellegrino, Paula Guedes, Fernanda Pirillo e Sávio Fernandes para o córrego Bananal, pertencente à bacia do rio Cabuçu de Baixo, no município de São Paulo. Eles discutem um programa de recuperação ambiental e da paisagem, visando principalmente a redução ou eliminação das inundações. Os autores salien­tam o importante papel dos espaços abertos urba­nos, livres de edificações, para a exploração de um novo paradigma para a drenagem das águas, que alia a melhoria da qualidade de vida urbana à me­lhoria das condições ambientais. A metodologia utilizada para a apresentação de uma proposta de infra-estrutura verde inclui o planejamento am­biental, ecologia da paisagem, corredores verdes urbanos, e alagados construídos.

Para uma avaliação das paisagens fluviais da ci­dade de São Paulo, Jorge Oseki e Adriano Estevam trazem o conceito de mediância. Partindo de uma breve descrição do sítio paisagístico da cidade e dos processos de urbanização que desembocaram na inserção paisagística de seus rios e córregos, os autores discutem as propostas de cunho higie­nista, as fases de canalizações e das avenidas de fundo de vale, e as experiências dos reservatórios de amortecimento nas bacias hidrográficas urba­nas, discutindo com detalhes as propostas para a sub-bacia do rio Aricanduva. Os autores ressaltam a gradativa perda da relação entre a cidade e seus

'12 _FHDS PAISAGENS tmBANAS

rios urbanos e argumentam sobre a importância de se propor uma nova apropriação social para as paisagens fluviais urbanas, superando a visão quantitativa das engenharias.

Uma ênfase no valor social dos rios, principal­mente como espaços livres públicos de lazer, é uma das questões discutidas por Alessandra Ghilardi e Cristiane Duarte no estudo sobre o Ribeirão Preto, principal rio na cidade de mesmo nome situada no estado de São Paulo. Neste capítulo, as autoras fazem uma apresentação da evolução urbana da cidade, ressaltando as diferentes intervenções e projetos visando a inserção do rio no tecido urba­no. Mostram que o rio vai perdendo importância à medida que as intervenções sobre seu curso vão acontecendo, visando conter as enchentes perió­dicas. Ao avaliar os diferentes usos ao longo do Ribeirão Preto, concluem argumentando que o lazer é um dos valores mais importantes que a po­pulação local atribui ao rio, apesar de sua situação ambiental degradada.

A partir de uma outra perspectiva, V era Mayrink apresenta o rio Capibaribe, na cidade do Recife, através das representações de sua paisagem retratadas em mapas, poemas, relatos de viajantes e outros documentos, desde sua fundação até os dias de hoje. Reconhecendo o rio enquanto paisagem cultural, a autora argumenta que os diferentes grupos sociais, a partir de sua maneira de ver o mundo, nos trazem várias representações da paisagem do Capibaribe, contribuindo assim para um melhor entendimento das relações entre a população e o rio. Aponta a importância do rio na fundação da cidade, constituindo um dos elementos mais marcantes de sua paisagem urbana. Finalizando, a autora pergunta, a partir de uma relação contraditória com o rio, qual tem sido o significado do rio Capibaribe para a população do Recife.

Flaviana Raynaud nos traz também uma avalia­ção de um rio de importância histórica, local de fundação da cidade: o rio Sanhauá, em João Pes­soa. Olhando para o trecho do rio no bairro de Va­radouro, local de fundação da cidade, a autora nos

mostra como, a partir do momento em que foram abertas as relações viárias de João Pessoa com o mar, a cidade foi aos poucos de desvinculando do rio. Desta forma, o local, antes uma viva e impor­tante área de comércio, foi tornando-se esquecido e desvalorizado. A paisagem ribeirinha foi sendo ocupada por comunidades carentes, e as edifica­ções históricas foram recebendo novos usos. A au­tora ressalta que este processo de abandono resul­tou numa degradação ambiental e urbanística com grandes prejuízos para a cidade como um todo.

O rio Itajaí-Açu e sua participação fundamen­tal na construção da paisagem pública da cidade de Blumenau, em Santa Catarina, é a contribui­ção trazida por Soraia Porath e Sonia Afonso. As autoras destacam a importância da navegabilida­de fluvial e acesso à água para a escolha do sítio de implantação da cidade, fundada por imigran­tes alemães. A partir de então, a cidade vai se es­truturar a partir da topografia e do rio. Os lotes são demarcados em relação ao rio, para permitir acesso à água. Avaliando as grandes e sucessivas enchentes, as autoras também argumentam que a bacia hidrográfica deve ser o principal recorte de análises ambientais, e ressaltam a importân­cia de um desenho da paisagem urbana que au­mente o contato da população com as margens dos rios, de modo a valorizá-las.

E finalmente, o livro apresenta a leitura de Cris­tóvão Duarte sobre a paisagem líquida da cidade de Belém do Pará, situada na foz do rio Amazo­nas, numa estratégica posição de posse e controle daquela parte do território brasileiro. O autor nos mostra que, ao patrimônio edificado de Belém, junta-se na construção de sua paisagem cultural a imensidão das águas que a cercam e a emoldu­ram, e que também deságuam sobre ela em chu­vas torrenciais que comandam a vida cotidiana da cidade. Tantos rios, tanta água, que ele argumenta -que água e cidade se misturam em constante es­tado de transição. E, para avançar nesta imagem, Cristóvão nos fala de uma Belém submersa e re­nascente a partir de uma chuva que diariamente renova a paisagem mutante da cidade.

H!DS PAISf4GENS UmlANAS~ 13

Page 8: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

HoRIZONTEs

Esta paisagem? Não existe. Existe espaço

vacante, a semear de paisagem retrospectiva somos a paisagem da

paisagem. Carlos Drummond de Andrade''

Esperamos que este livro seja um indutor de novos encaminhamentos e debates em torno da inserção paisagística e urbanística dos rios urba­nos em cidades brasileiras. Os capítulos que se se­guem não apenas discutem experiências passadas e suas repercussões na paisagem, mas principal­mente sugerem caminhos a serem experimenta­dos na busca do nosso relacionamento com pai-

sagens fluviais urbanas. Neste sentido, podemos dizer que este é um livro otimista, que traz uma visão prospectiva, destacando o quanto ainda há por fazer para que possamos apreender a riqueza do sítio paisagístico a partir do desenho da pai­sagem. Como nos lembra o poeta Carlos Drum-

d d A d d . . ,r6

mon e n ra e: "a paisagem vai ser . Para o sonhador de paisagens, desenhar com a

água é sempre uma aventura transformadora, traz a dinâmica de um devir. Este livro portanto espera abrir novas janelas, sugerir aberturas metodológi­cas de projeto paisagístico e urbanístico, provocar novos horizontes. A água, na sua mutante primor­dialidade, permite múltiplos desenhos.

Figura 1 -foto Carlos Murad

NoTAS

r- A ANDRADE, Carlos D. de. "Paisagem: como se faz''. In As

Impurezas do Branco, Rio de janeiro: José Olympio Ed., 1974,

pg46.

2- Ver LYNCH, Kevin. Good City Form. Mass.: The MIT Press,

!980.

3- Ver CORNER, )ames (ed) Recovering Landscape: essays in

Contemporary Landscape Architecture. New York: Princeton

Architectural Press, 1999;

4- ZIRALDO. Menino do Rio Doce. São Paulo: Companhia das

Letrinhas, 1996, sjp.

5- Ver, por exemplo, REIS, Nestor G. Imagens de Vilas e

Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSPjFAPESP, 2000.

6- Ver, por exemplo, BARTALINI, Vladimir. "Os córregos

ocultos e a rede de espaços públicos urbanos". In Revista do

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da

FAUUSP, W r6, 2004, pp. 82-96.

7- Ver, por exemplo, MANN, Roy. Rivers in the City. New York:

Praeger Publishers, 1973: PENNING-ROWSELL, Edmund

& BURGESS, jaquelin. "River landscapes: changing the

concrete overcoat?" In Landscape Research, Vol. 22, N°I, 1997,

pp. 5 a n; ou ainda RILEY, Ann L. Restoring Streams in Cities: a

guide for planners, policymakers and citizens. Washington D.C.:

Island Press, 1998.

8- NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius Loci: Towards a

Phenomenology of Architecture. New York: Rizzoli, 1980.

9- HALPRIN, Lawrence. "The collective perception of cities:

we reflect our urban landscapes". In Taylor, L. (ed) Urban

Open Spaces. Londres: Academy Ed., 1981, pp-4-6.

IO· Ibid.

n-Este argumento, inicialmente levantado pelo arquiteto

paisagista McHARG, Ian. Design with Nature. Washington

D.C: The Conservation Foundation, 1967, foi posteriormente

retomado e elaborado por outros arquitetos paisagistas. Ver,

por exemplo, SPIRN, A.W. The Granite Garden: urban nature

and human design. New York: Basic Books, 1984, ou ainda

HOUGH, M. Cities and Natural Processes. London: Routledge,

1995·

12- Ver RILEY, Op.cit.

13- GUIMARÃES ROSA, João. Primeiras Estórias. Rio de

janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1988.

14- Estas questões foram discutidas, considerando o contexto

brasileiro, em COSTA, L.M.S.A. e MONTEIRO, Patrícia M.

"Rios urbanos e valores ambientais" In: Del Rio, V.; Duarte,

C. R. e Rheingantz, P.A. (org) Projeto do lugar: colaboração

entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de janeiro: Contra

Capa, 2002, pp. 291-298, e ainda em COSTA, L.M.S.A. "A

paisagem em movimento". In Pinheiro Machado, D.B. (org)

Sobre Urbanismo. Rio de janeiro: Viana & Mosley f PROURB,

2006, p. 154·163.

15- ANDRADE, Carlos D. de. Op.cit., pg. 46.

r6- Ibid, p-46.

RIOS E PAISAGENS URBANAS_ 15

Page 9: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

VIVER ÀS MARGENS DOS RIOS: , -UMA ANALISE DA SITUAÇAO DOS MORADORES

DA FAVELA PARQUE UNIDOS DE AcARI

Os rios são elementos de fundamental impor­tância na paisagem do Rio de Janeiro. Porém, no processo de crescimento urbano da cidade, sua importância foi menosprezada. Dos 250 rios exis­tentes, poucos são visíveis. O processo de ocupa­ção urbana da cidade fez com que a maior parte deles fosse canalizada e coberta, desaparecendo da paisagem visível, e, aos poucos, da memória dos habitantes do Rio de Janeiro.

O tratamento dado aos rios pelas obras tradi­cionais de engenharia hidráulica, através de reti­ficações e canalizações, além de mudar sua fisio­nomia e retirar sua visibilidade, fez com que eles se transformassem em um sistema de drenagem subterrâneo, cuja função inicial seria a de evitar enchentes e facilitar a ocupação urbana de um território com amplas terras de baixada, sujeitas a inundações no período de chuvas mais fortes. Com nascentes nas montanhas, mas correndo em áreas de baixada, os rios apresentavam uma velocidade baixa de escoamento da água, fazendo com que as terras das faixas marginais permane­cessem alagadas por longos períodos de tempo. O sistema de canalização adotado buscava direcionar e conduzir as águas das enchentes o mais rápido possível rio abaixo, esperando assim controlar o problema. Hoje se reconhece que essas obras, em­bora proporcionem melhorias locais em épocas de enchentes mais freqüentes, muitas vezes transfe-

Ana Lucia Britto Victor Andrade Carneiro da Silva

rem o problema para jusante e agravam significa­tivamente a situação das enchentes excepcionais.

Por outro lado, as obras de saneamento, ao lon­go de várias décadas, priorizaram a construção de sistemas de coleta de esgotos e relegaram a segun­do plano a questão do tratamento destas águas usadas. Os rios eram usados indiscriminadamen­te como receptáculo destes esgotos não tratados, em uma concepção de saneamento que desconsi­derava as conseqüências nefastas da poluição dos corpos hídricos urbanos para o meio ambiente e para a qualidade de vida da população da cidade.

A poluição dos rios e os riscos freqüentes de enchentes fizeram com que, até muito recente­mente, grande parte das áreas ribeirinhas fosse considerada espaço desvalorizado, desprezado pelos processos formais de urbanização, transfor­mando-se em paisagem residual, sujeita a ocupa­ções irregulares.

De fato, um dos graves problemas sócio-am­bientais que a cidade hoje precisa enfrentar, asso­ciado às inundações, é a ocupação irregular da fai­xa marginal dos rios, principal causa de seu asso- _ reamento e, conseqüentemente, das inundações. No município do Rio de Janeiro, a lei prevê que seja preservada a distância mínima de quinze me­tros de cada lado do espelho d'água, para que a na­tureza seja preservada. Como aponta a equipe da extinta Fundação Rio Águas, hoje Subsecretaria de

Page 10: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

I I

Águas Municipais, na revista Rio-Águas, em ma­téria onde tece comentários a respeito do Progra­ma de Proteção das FNAs, (faixas non aedíficandi), esta delimitação de faixas, em alguns casos muito extensa, inviabiliza qualquer tipo de ocupação re­gular ao longo das mesmas. Isto provoca o desin­teresse dos proprietários de terrenos, que acabam ficando abandonados e sujeitos a invasões e ocu­pações irregulares, atingindo níveis alarmantes no município do Rio. A Superintendência Estadu­al de Rios e Lagoas (SERLA) calcula que existam hoje na cidade cerca de 25 mil construções irregu­lares dentro da faixa marginal de proteção de 30 metros ao longo de rios, canais e lagoas.

Como mostra Maricato (2003), no Rio de Ja­neiro, como em outras metrópoles brasileiras, a invasão de terras é uma regra e não uma exceção, sendo esta ditada pela falta de alternativas. O pro­blema é grave e de difícil solução, pois está direta­mente ligado à situação pobreza em que vive parte importante da população carioca, que não conse­gue aceder à moradia dentro do mercado formal de habitação, e à inexistência de políticas de pro­visão de habitação popular para a população de baixa renda.

Estas políticas, visando ampliar o acesso legal e regular destes moradores da cidade à habitação com infra-estrutura adequada, são essenciais para evitar a ocupação irregular das margens dos rios. A legislação de proteção da faixa marginal e as políticas de ordenamento do solo urbano são ino­perantes se não vierem associadas às políticas de provisão de habitação.

Assim, é preciso enfrentar uma situação onde, o que do ponto de vista ambiental é identificado como problema, do ponto de vista de parte dos mo­radores da cidade é percebido como solução. Toda­via, esta solução implica para estes moradores em uma série de riscos, decorrentes das enchentes e do convívio diário com as águas poluídas, pois na maior parte das vezes os esgotos domésticos e o lixo destas ocupações são despejados diretamente nos rios. Neste trabalho, nos propomos a refletir sobre as situações de risco ambiental a que estão

expostas as populações de baixa renda que vivem em ocupações irregulares e favelas nas margens dos rios que cortam o município do Rio de Janeiro, apresentando um estudo de caso da Favela Parque Unidos de Acari, situada às margens do rio Acari no bairro da Pavuna, AP3 (Área de Planejamento 3), do município do Rio de Janeiro.

Esta reflexão se insere no âmbito da pesquisa "Desigualdades Sócio-Ambientais e Risco Am­bientar' desenvolvida por uma equipe de professo­res e pesquisadores do PROURB (Ana Lucia Brit­to e Victor Andrade Carneiro da Silva) e do IPPUR (Luciana Correa do Lago e Adauto Lucio Cardo­so). Nesta pesquisa, foram realizados estudos de caso sobre diferentes áreas de habitação popular na região metropolitana do Rio de Janeiro. Esses estudos tinham, entre os diferentes objetivos es­pecíficos às três pesquisas, avaliar condições de acesso a serviços de saneamento, problemas am­bientais e situações de risco ambiental. A pesquisa de campo referente ao estudo aqui apresentado foi realizada entre outubro e novembro de 2004. Fo­ram feitas diversas visitas à área Parque Unidos de Acari, e a equipe de bolsistas de iniciação cien­tífica aplicou 79 questionários domiciliares. Além destas informações, foram utilizados neste traba­lho os estudos e diagnósticos elaborados por pes­quisadores no âmbito do projeto de urbanização da área, produzidos pelo escritório de arquitetura Arqui Traço. '

Na pesquisa aqui apresentada, compreendemos por risco ambiental a existência de uma maior pro­babilidade de ocorrência de desastres que afetem a integridade física, a saúde ou os vínculos sociais da população em determinadas porções do terri­tório. O fato de que determinadas áreas estejam em situação de risco ambiental é uma decorrência da interação entre processos ambientais (carac­terísticas geofísicas do sítio, clima, pluviosidade, etc.), processos econômicos (existência de indús­trias poluidoras ou de equipamentos ou infra-es­truturas sujeitas a acidentes) e processos sociais (características da população, como renda, escola­ridade, etc.). Entendemos que o risco ambiental

não se distribui de forma aleatória, mas obedece aos padrões de desigualdade e segregação social que marcam a estruturação das cidades. Ou seja, são as populações situadas nos níveis inferiores da escala da estratificação social, por características de renda, escolaridade, cor e gênero, que residem ou utilizam os territórios de maior risco ambien­tal, como a população das favelas, o que as coloca numa situação que denominamos de vulnerabili­dade sócio-ambiental, onde se sobrepõem vulnera­bilidades sociais à exposição a riscos ambientais.

Todavia, dentro de uma estratégia de sobrevi­vência, uma parcela destes moradores vivencia esta exposição aos riscos ambientais como parte integrante de seu cotidiano, criando mecanismos para conviver com eles, a ponto de, muitas vezes, não identificá-los mais enquanto risco, como ob­servamos no caso de Parque Unidos de Acari.

A ÁREA DE ESTUDO: O TERRITÓRIO DA BACIA

DO RIO AcARI

Localizado na parte noroeste da bacia hidro­gráfica da Baía de Guanabara o rio Acari compõe uma das sub-bacias desta macro-bacia (sub-bacia Pavuna- Acari) (Fig.I). O rio Acari possui 8300 metros de extensão e uma área de drenagem de cerca de 107 Km\ e drena áreas de 8 bairros: Ma­rechal Hermes, Guadalupe, Pavuna, Coelho Neto, Irajá, Acari, Parque Columbia e Jardim América, formando uma planície aluvionar. Tem sua foz no rio São João de Meriti, no bairro de Jardim Améri­ca. Um de seus principais afluentes é o rio Tingui, cuja foz se encontra no trecho final do rio Acari, na travessia do mesmo com a estrada Camboatá no bairro de Deodoro, quando ele passa a ser de­nominado rio Sapopemba.

O território da bacia hidrográfica do rio Acari corresponde ao que foi designado no Plano Dire­tor de Esgotamento de Sanitário da Região Metro­politana do Rio de Janeiro de 1994 como bacia do

RHJS

Figura 1 - Foto área do Rio Acari

Acari. O plano indica que, na maior parte da ba­cia, os efluentes são lançados nas galerias fluviais e encaminhados para os córregos e para o rio Aca­ri, que tem a qualidade das suas águas bastante comprometida, sendo classificado na categoria 4 pelo CONAMA (Conselho Nacional do Meio Am­biente, que significa o grau mais alto de compro­metimento das águas, que tem seus usos restritos à navegação, harmonia paisagística e outros usos menos exigentes.

Apenas em uma pequena área da bacia existe rede de esgotamento e tratamento dos efluentes em duas estações: ETE (Estação de Tramamento _ de Esgoto) Realengo e ETE Acari. Esta área cor­responde a parte do bairro de Realengo e de Padre Miguel e aos bairros de Vila Militar, Magalhães Bastos e Deodoro. Os outros bairros que com­põem a planície aluvional do rio Acari são despro­vidos de redes de esgotamento. Esta área deveria

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ser atendida pelo Sistema Pavuna, projetado pelo Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que inclui estação de tratamento (ETE Pavuna) e redes de coleta. A ETE Pavuna foi construída, mas opera abaixo da sua capacidade, pois até de 2oo6 apenas 23% dos coletores haviam sido instalados.

De fato, não foram realizadas intervenções im­portantes para ampliação da rede de esgotamento existente na bacia. O mesmo ocorre com a rede de drenagem. As obras realizadas de esgotamento e drenagem se inseriram dentro dos programas Favela Bairro e Bairrinho da prefeitura, voltados para urbanização de favelas, e de outros progra­mas também da prefeitura como Rio-Cidade, Rio Comunidade e o programa de regularização de lo­teamentos. Em 2005, no âmbito do Favela-Bairro estavam sendo realizadas intervenções na área do Complexo de Acari (Vila Esperança, Parque Prole­tário Acari, Vila Rica de Irajá) e havia sido concluí­da a intervenção na comunidade de Fazenda Bota­fogo. O bairro de Acari sofreu intervenção do Rio Comunidade, e os bairros de Marechal Hermes e Pavuna do Rio-Cidade.

A bacia do rio Acari foi objeto de um projeto básico de macrodrenagem e de um projeto de canalização elaborado em 1991 e modificado em I997· Mesmo assim, o problema das inundações permanece concentrado no rio, segundo a SERLA um dos mais problemáticos do município, com 27 pontos de inundação. A área de inundação das en­chentes em 2006 na bacia do Acari atingiu uma população de mais de 5o.ooo habitantes. Além do assoreamento, que afeta seis trechos de rios da ba­cia como o Piraquê, o Catarino e o próprio Acari, há problemas ocasionados por pontes e travessias de pedestres, construídas pelos próprios morado­res, que impedem o escoamento das águas e acu­mulam lixo; é o caso das pontes das ruas Recife, Manuas e da avenida Marechal Alencastro Guima­rães, todas sobre o rio Acari 2 .Constatamos que as obras hidráulicas realizadas não trouxeram solu­ção para o problema das inundações, que ainda são recorrentes na época de chuvas intensas. Hoje as principais ações da prefeitura e da SERLA com

relação ao rio Acari é a limpeza e dragagem, para minimizar o problema que tem como causa prin­cipal a ocupação irregular de suas margens.

Seu curso atravessa a zona norte do município do Rio de Janeiro, na região identificada como AP3, sendo a área marcada por um número importante de favelas e ocupações irregulares (Fig. 2e 3). Segun­do análise realizada por Silva, com base em dados do IBGE relativos à renda, escolaridade e acessos a serviços de saneamento (abastecimento de água, es­gotamento sanitário e coleta de lixo) esta é uma área de alta vulnerabilidade sócio-ambiental, onde se as­sociam pobreza, precárias condições de saneamento e exposição a riscos ambientais. (Silva, 2oo6)

É na AP3 que se concentra o maior número de favelas do município (312 favelas). Segundo infor­mações da prefeitura do Rio de Janeiro, em 2000, aproximadamente 544·737 dos habitantes da AP3 viviam em favelas, o correspondente a 23,1% do total da população da área. Levando em conta que a população de favela, em 1991, correspon­dia a 480.524 habitantes (ou 20,7%), houve um acréscimo dessa população na ordem de 13,4% no período I99I/2ooo. Enquanto isso, no mesmo in­tervalo, a AP viu crescer sua população total em 1,5%. A AP3 possui um total de 4-9n lotes distri­buídos em 768.r8r m 2

, com 74,7% destes, ou seja, 3.667 lotes, edificados em loteamentos irregula­res inscritos no Núcleo de Regularização de Lotea­mentos. Além do grande número de favelas, com alta densidade de ocupação do espaço, a região apresenta um expressivo esvaziamento econômi­co que se caracteriza pelo abandono de terrenos e instalações onde havia uso industrial ou galpões, notadamente ao longo da avenida Brasil. A AP3 é ainda caracterizada pela carência de áreas verdes (menos de r mz por habitante), de espaços cultu­rais e esportivos, de lazer, de contemplação.

Uma parte importante das ocupações irregula­res localiza-se às margens de rios, como o rio Aca­ri. Neste rio, segundo estudo da Secretaria Muni­cipal de Meio Ambiente, no trecho entre a nascen­te no rio São João de Meriti e a avenida Automóvel Clube, o maior problema são as ocupações irregu-

BAÍA DE SEPETIBA

lares das margens, com casas construídas pratica­mente dentro d'água. É neste trecho, na margem esquerda, que se localiza a comunidade Parque Unidos de Acari, objeto deste trabalho. Na mar­gem direita está o bairro de Parque Columbia. No trecho entre a avenida Automóvel Clube e a aveni­da Brasil, o rio está canalizado, com 6o metros de largura de acordo com o cadastro da SERLA. De acordo com o estudo da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, neste trecho, o canal serve como bacia de sedimentação de sólidos e detritos, o que exige dragagens permanentes (SMAC, 2006). No trecho seguinte, entre a avenida Brasil e a estrada João Paulo, em Honório Gurgel, as margens direi­ta e esquerda estão parcialmente ocupadas pelas comunidades de Parque Bela Vista e Almirante Tamandaré. No trecho entre a estrada João Paulo, em Deodoro, até a rua Luis Coutinho Cavalcante, em Guadalupe, a margem esquerda está ocupada com edificações, algumas de baixo, outras de bom padrão construtivo. Na margem direita, existe uma área livre, possível de ser usada para reassen­tamento de população.

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OCEANO ATLÂNTICO

Figura 2 - Mapa das APs com a localização do Rio Acari

Fonte: Acervo Grupo de Pesquisa Britto, PROURB

As margens do rio Acari encontram-se assorea­das ou erodidas. A presença de casas nas margens dificulta o trabalho de dragagem feito rotineira­mente pela SERLA e pela Rio-Águas, da prefeitu­ra, pois o leito não pode ser aprofundado como deveria porque os barracos na margem correm o risco de desabar. Além disso, a intensificação do processo de ocupação irregular das margens do rio, transformou partes do Acari em um esgoto a céu aberto. Pouco valorizado na paisagem local, o rio recebe grande quantidade de resíduos, tais como entulhos, galhada e lixo.

Emrelaçãoàfaixamarginaldeproteçãodosrios,a revista Rio-Águas apresenta uma matéria onde tece comentários a respeito do Programa de Pro­teção das FNAs. Esta matéria informa que, para cursos d'água perenes e com vazão igual ou superi- _ ora rom3fs no município do Rio de Janeiro, a faixa mínima determinada pela legislação vigente é de 15 m para cada bordo (Rio Águas, 2002). Porém, o projeto de canalização do rio Acari anotou uma fai­xa de ro m para cada lado da borda do canal, onde foi prevista uma via com o nome de avenida Canal.

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A coMUNIDADE PARQUE UNIDOS DE AcARI

A comunidade Parque Unidos do Acari é uma área residencial localizada próximo à grande área industrial situada na margem esquerda do rio Aca­ri, enquadrada como Zona Industrial 2. Ela ocupa a área entre a ma Embaú e o rio Acari, sendo re­cortada pela Linha Verde. No entorno imediato, está localizada a avenida Automóvel Clube e a es­tação de metrô Fazenda BotafogojAcari. Na escala metropolitana, Parque Unidos de Acari localiza-se entre a avenida Brasil e a rodovia Presidente Du­tra, dois importantes eixos rodoviários da região metropolitana do Rio de Janeiro No entorno, há outras ocupações irregulares localizadas nos bair­ros de Acari e Irajá (Parque Proletário Acari, Par­que União, Vila Esperança, Vila Rica de Irajá), e Pavuna (Pedreira, Fazenda Botafogo e Parque Co­lúmbia). A denominação Acari é usada para o bair­ro, em função do rio que passa nas proximidades da região, hoje chamada de Complexo de Acari - que na verdade é a junção do Conjunto Ama­relinho, constmído no final dos anos 50 na beira da avenida Brasil, e mais três localidades: Parque Proletário de Acari, Coroado e Vila Esperança. O Complexo de Acari iniciou seu processo de ocu-

Figura 3 - Mapa da Favelas do Entorno

pação no ano de 1946 e atualmente possui uma população de cerca de 42 mil habitantes. Hoje apresenta um dos maiores índices de pobreza no estado do Rio de Janeiro. A comunidade aqui estu­dada, Parque Unidos de Acari, está fora do Com­plexo, como mostra a figura a seguir.

A população de Parque Unidos de Acari tem re­gistrado um crescimento expressivo nos últimos dez anos, pois, de acordo com o censo de 1991 possuía 418 unidades habitacionais. Já na época da elaboração de uma proposta do programa de urbanização Favela-Bairro para a área, os dados indicavam 650 domicílios (dados do edital). O le­vantamento realizado pela equipe da Arqui-Traço indicou a existência de r.o3r domicílios.

Segundo dados censitários IBGE de 2000, Par­que Unidos de Acari é uma comunidade de baixa renda, onde os chefes de família têm remuneração média de r salário mínimo e meio. Consta que pre­dominam moradores com faixa de renda de até 500 reais (68%). Existe uma parcela muito pequena de moradores com empregos fixos. Entre as empre­sas empregadoras destacam-se a Casas Bahia, na ma Embaú e o Ponto Frio, em Irajá. Há também o

FAVElAS

Favelas Pq Un1dos deAcari

relato de que algumas pessoas da comunidade tra­balham no CEASA, situado próximo dali. A maior parte dos chefes de família garante o sustento fami­liar com atividades informais como biscates (guar­dadores de carros, camelôs e catadores de material para reciclagem como papéis, ferro velho e garra­fas). Constatou-se, ainda, na pesquisa de campo, a importância dos programas sociais oficiais ou de igrejas locais que distribuem cestas básicas. Algu­mas famílias vivem exclusivamente destes e de ou­tros donativos, sendo que alguns poucos entrevis­tados têm acesso ao cheque cidadão do governo do estado. A situação sócio-econômica é caracterizada também pela baixa escolaridade, que limita as pos­sibilidades de uma melhor inserção no mercado de trabalho. A escolaridade média destes chefes de fa­mília chega a cinco anos de atividade escolar, sem completar o ciclo fundamental.

Estando assentada próximo ao morro da Con­ceição e ao morro da Pavuna, e sendo limitada ao sul pelo rio Acari, a comunidade apresenta uma topografia variada, com uma encosta na parte cen­tral e uma área mais plana junto ao rio. Os taludes das margens do rio Acari, junto à comunidade, encontram-se com solo exposto e vegetação rala, constituindo num ponto de lançamento de lixo; entulhojaterro. O lançamento desses detritos pro­voca mobilizações recorrentes do talude em épo­cas chuvosas, assoreando o rio a jusante. Na parte oeste da comunidade existe uma grande elevação resultado do acúmulo irregular de entulho em va­zadouro clandestino.

Na década de 50, o morro da Ferraria (ma Em­baú) e terras próximas foram loteadas e vendidas. Foi o início da ocupação residencial e da pequena favela conhecida como "Corta Rabd' na encosta do morro da Ferraria próximo ao brejo.

A década de 6o marcou o crescimento da favela impulsionado pelo desenvolvimento do parque in­dustrial de Fazenda Botafogo atraindo migrantes do Norte Fluminense.

Durante a década de 70, áreas próximas às mar­gens do rio Acari passaram a servir de vazadouro de lixo, a Lixeira de Acari. O despejo de lixo próxi­mo ao brejo da favela Corta Rabo acabou alterando o leito do rio que, na segunda metade da década de 70, foi oficialmente retificado. (Figs. 4, 5 e 6).

Figuras 4, 5 e 6 - Mapa histórico, elaborado por

Flavia Royse.

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Figura 7 - Barracos sob a Linha Verde,

Acervo Grupo de Pesquisa Britto, PROURB.

O aterro de lixo criou solo para a expansão da favela, onde foi construído um campo de futebol (1978) e também novos barracos. Estes barracos foram vendidos pelo Sr. Souza, primeiro presiden­te da Associação de Moradores criada em r98o e que mudou o nome da favela Corta Rabo para Par­que Unidos de Acari. Observa-se, portanto, que parte da ocupação se deu sobre um solo frágil, com a camada superior do terreno constituída de material de aterro e entulho.

A Linha Verde, inaugurada em 1974, separou a comunidade em duas partes e criou uma cisão espacial entre elas (Fig. 7).

O projeto da Linha Verde criou uma ponte so­bre o rio Acari, proporcionando um acesso mais rápido até a rua Automóvel Clube. Para a cons­trução da Linha Verde, foi necessário fazer novas obras de movimento de terra, gerando uma rearti­culação dos barracos da favela. A encosta "central", conhecida como morro da Ferraria, foi cortada na época da execução da Linha Verde, e não foram feitos no corte remanescente a contenção e o sis­tema de drenagem adequados, nem foi plantado algum tipo de vegetação que auxiliasse na prote­ção da encosta. A parte superior foi densamente ocupada e apresenta árvores de grande porte loca­lizadas no limite do corte e que se projetam sobre as casas edificadas na parte baixa. Essa parte baixa também apresenta um grande número de casas

Figura 8 - Vazadouro,

Acervo Grupo de Pesquisa Britto, PROURB.

junto ao "barranco", e no caminho do que seria a drenagem "naturaY' do terreno. Nessa encosta, há risco de deslizamentos

Como outras favelas do município do Rio de Ja­neiro, Parque Unidos de Acari apresenta uma forte heterogeneidade interna, com áreas de ocupação mais antiga já consolidadas e de ocupação mais re­centes extremamente precárias. Na década de 8o, a favela se expandiu para as margens do rio Acari e sob os viadutos da Linha Verde, onde foram cons­truídos novos barracos em situação de risco.

O período registrou uma piora das condições econômicas dos moradores em função da falência de inúmeras indústrias como Formiplac, princi­pal empregadora da região. No caso das moradias construídas ao longo da Linha Verde, não há afas­tamento frontal.

No final da década de 8o, parte do terreno da antiga Olaria, então desocupado, começou a ser utilizada como vazadouro clandestino de entulho. Com quinze anos de funcionamento, o vazadouro conforma uma montanha de entulho de aproxi­madamente ro metros de altura, que continua a crescer e se projetar em direção à Linha Verde. O vazadouro clandestino de entulho é fonte de re­cursos para diversas famílias (Fig. 8).

Nos anos 90, foi criada uma nova área de expan­são da comunidade em área contígua a este vaza­douro, conhecida como Terra Nostra (Fig. 9 e 10).

Figura 9 - Mapa histórico com a localização de Terra Nostra, elaborado por Flavia Royse.

A ocupação se deu a partir da migração interna de moradores mais pobres da comunidade para essa área, principalmente com as desocupações geradas pela construção da Linha Verde. Mora­dores que foram removidos da área para a cons­trução da via, migraram para o mangue, situado próximo ao local de intervenção.

Esta área possui hoje cerca de 150 barracos, construídos com materiais precários, e é desprovi­da de saneamento; a maior parte dos moradores não possui qualquer tipo de renda, e subsiste ca­tando entulho, ou com apoio de programas sociais que distribuem cestas básicas. Segundo relatos dos moradores da área, parte das casas é atingida quan­do as águas do rio Acari sobem com as chuvas.

Em levantamento realizado para o diagnóstico do programa Favela-Bairro, foram identificados na comunidade três setores com diferentes padrões de ocupação. O primeiro é denominado setor Parque Unidos, ou Beira-Rio, delimitado pelo rio Acari que conforma o eixo referencial da comuni­dade no sentido leste-oeste, reafirmado pela rua Padre Lima, que é paralela ao rio. A estrutura de lotes característica do setor foi sendo conformada de maneira não planejada, com acesso às edifica­ções por becos e travessas com traçado irregular e alta densidade de edificações. No setor Parque Unidos, embora existam algumas casas de ma­deira, o padrão construtivo da maioria das casas é de alvenaria e grande parte delas não apresenta

revestimento. Neste setor, as melhores casas estão localizadas ao longo da rua Projetada e no largo da Associação.

O setor Parque Unidos apresenta três eixos principais: Linha Verde, rua Padre Lima e rua Pro­jetada. Este setor tem o campo de futebol Beira Rio, importante área livre interna em uma ocupa­ção de alta densidade.

O campo do "Beira Rid', na parte central da co­munidade, abriga os campeonatos que mobilizam times do entorno, como o do Ceasa, o "Sensação do Nordeste", o do "Ferro Velho" e o "Flor do Em Cima da Hora" - os dois últimos, times do local, cujos fundadores ajudam a manter esse campo. Segundo entrevistas com os moradores, o campo de futebol se situa numa área deprimida, o que faz as águas da chuva convergirem para ele, drenando-as, o que colabora com as pessoas que vivem no seu en­torno. Somente quando ele é saturado, a água passa a atingir os moradores das suas proximidades.

Nesta área há o maior contato da população com rio. As casas estão localizadas à margem do rio Acari, que corre paralelamente à rua Padre Lima, sendo que as casas têm a frente para a rua e os fundos para o rio. Não existem limites entre o rio e as casas. Os lotes têm como limite o leito do rio. Esta parte posterior das casas é usada muitas vezes como depósito de objetos sem uso, de lixo e entulho.

Figura 1 O -Terra Nostra,

Acervo Grupo de Pesquisa Britto, PROURB.

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Figura 11 - Casas na margem do rio,

Acervo Grupo de Pesquisa Britto, PROURB.

E DSC é o trecho mais sujeito a inundações, que ocorrem em épocas de chuvas fortes, quando o rio Acari extravasa seu leito, chegando a inundar até o campo de futebol. Algumas casas, para se proteger das enchentes, passaram por reformas, tendo sido soerguidas sobre pilotis; outras apre­sentam a tipologia de palafita, ou então uma ver­são simplificada de porão com o objetivo de impe­dir o alagamento do interior das casas.

O segundo setor- Em baú tem como elemen­tos marcantes: a própria encosta do morro da Fer­raria, fator determinante na paisagem do setor; a rua Embaú, importante eixo viário do entorno imediato, que funciona como principal eixo do se­tor e determina o limite da comunidade; e o lote­amento projetado em r942 no morro da Ferraria onde foram planejadas vilas perpendiculares à rua Embaú. Vale ressaltar uma característica peculiar do setor Em baú: a maioria das ruas são sem saída, dando um caráter privado aos becos e travessas da comunidade. O setor Embaú apresenta o padrão construtivo de melhor qualidade, com uma signi-

ficativa quantidade de residências de alvenaria e com revestimento externo. Este setor, nos trechos da rua Embaú e da rua Projetada é conhecido pe­los moradores como a "Zona Sul da comunidade", pois segundo eles, é habitado por pessoas com maior poder aquisitivo. Mesmo assim, podemos constatar que não há sistema de drenagem na comunidade e muitas casas possuem pequenas trincheiras de cimento nas portas de entrada, para impedir a entrada da água em dias de chuva. Se­gundo moradores, a água chega a atingir um me­tro de altura próximo à rua projetada.

O setor Terra Nostra, de mais recente ocupação, não possui uma estrutura formalizada, e os acrés­cimos e modificações nos barracos de madeira são registrados com freqüência.

Segundo informações do presidente da associa­ção de moradores, a "Terra Nostra" seria uma área de ocupação "provisória" para aqueles (as) que, por algum motivo, passassem por necessidades extremas de moradia e tivessem algum tipo de re­lação com a associação de moradores, no sentido de obter indicação e permissão para assentar-se ali. Desta forma, várias das unidades existentes não seriam de posse dos moradores, mas mora­dias provisórias, nas quais as pessoas permanece­riam até a superação das dificuldades pelas quais passam. Assim, segundo uma espécie de pacto estabelecido, não é permitido que os moradores edifiquem com alvenaria o local. Melhorias reali­zadas nas moradias ficam por conta dos morado­res. Tivemos informação, também, de que, embo­ra as pessoas autorizadas a morar nas casas tem­porariamente não precisassem pagar nenhuma forma de aluguel, deveriam contribuir com algum dinheiro para os que deixam a moradia no mo­mento da ocupação, como forma de compensar as benfeitorias realizadas.

O setor apresenta um beco principal com traça­do extremamente irregular que conecta os barra­cos de madeira. A área oeste do setor é delimitada pelo vazadouro clandestino de entulho em terreno pertencente à Pulmman, pelo rio Acari e pela Li­nha Verde. O vazadouro clandestino já apresenta

uma elevação de cerca de ro m de altura, decor­rente do acúmulo irregular de material de aterro. Junto ao vazadouro existe um depósito de ferro velho, do qual o vice-presidente da associação de moradores é um dos proprietários.

O setor sofre com as inundações freqüentes. O rio Acari, neste trecho, é bastante poluído, exala mau cheiro, e suas margens são tomadas por ha­bitações precárias, algumas com estrutura seme­lhante à de palafitas. Para passar entre as casas nas pequenas ruelas, a população coloca, perma­nentemente, tábuas que servem como caminho sobre a lama

Esse trecho pode ser considerado área de risco, levando-se em conta que não houve um planeja­mento para sua ocupação como aterro, nem foram realizadas obras de contenção para o armazena­mento do material. Além disso, não há controle da procedência e nem da forma como foi e continua sendo depositado o material no local. Sendo as­sim, pode haver deslizamentos ou contaminação, dependendo do tipo de material que foi usado no aterro (Figs. n e r2). O setor Terra Nostra é o ex­tremo oposto do Embaú, por apresentar uma he­gemonia de edificações de madeira e sucata com alta vulnerabilidade, constituindo uma situação de alta precariedade ambiental e de risco.

A comunidade de Parque Unidos possui redes de abastecimento de água operadas pela CEDAE Companhia Estadual de Águas e Esgotos). Na al­tura da rua Embaú, foi executado um ramal com diâmetro de 300 mm, que se desenvolve ao longo desta via, e atende ao setor morro da Ferraria. Pró­ximo à Linha Verde, os moradores, juntamente com a CEDAE, instalaram um ramal secundário de 75 mm para atender ao setor Parque Unidos. Na Linha Verde, o ramal de 75 mm segue no di­âmetro de 2"-PVC. As moradias são atendidas por ramais secundários que percorrem todas as ruas dos setores Embaú e Parque Unidos. A área nordeste da comunidade se encontra urbanizada e, desta forma, a região ribeirinha ao rio Acari, junto à rua Leão Cordado, é atendida por rede de água executada durante a urbanização. Todavia,

o abastecimento da grande maioria das residên­cias é realizado por meio de ligações domiciliares precárias e clandestinas na rede oficial. Existem redes executadas pelos moradores para atender os becos. Não há sistema de medição de água e controle de perdas através da instalação de micro­medidores (hidrômetros) nas moradias, e de ma­cro-medição nas redes principais. Na maioria dos domicílios pesquisados (59%) o abastecimento se dá através de ligações clandestinas na rede oficial, não havendo pagamento de conta de água.

Durante uma das visitas de campo, havia um enorme vazamento jorrando água em uma das ca­nalizações da CEDAE que atravessa a comunidade.

O setor denominado Terra Nostra é atendido por uma rede muito precária pendurada sob a estrutura da ponte sobre o rio Acari. Esta linha, construída pelos moradores, é proveniente da rede que alimentava a desativada fábrica de gelo seco, com diâmetro de roo mm, ramal da 2" linha da av. Automóvel Clube, localizada na margem sul do rio Acari. As ruas do setor Terra Nostra não são pavimentadas, e a rede que alimenta a comu­nidade se encontra aparente, com canos rachados

Figura 12- Casas na margem do rio, Acervo Grupo de

Pesquisa Britto, PROURB.

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que passam por dentro do esgoto e da lama con­taminada. Não há ligação formal de água para nenhum domicílio desse setor. O diagnóstico re­alizado para o Favela-Bairro, indica que, segundo informações obtidas junto à associação dos mo­radores, o sistema de abastecimento de água não atende satisfatoriamente a comunidade, com for­necimento fraco em alguns períodos do ano. Nas entrevistas que realizamos, apenas no setor Terra Nostra foram levantados problemas com relação à qualidade do abastecimento.

Como visto anteriormente, a região não dispõe de sistema de coleta de esgotos. Conforme dados do cadastro da CEDAE, o entorno da comunidade é caracterizado por loteamentos particulares. Exis­tem loteamentos que utilizam fossas, e outros que são desprovidos de sistema de coleta de esgotos. O efiuente das fossas e o esgoto "in natura" são encaminhados para as redes de drenagem execu­tadas nas ruas dos loteamentos, e lançados no rio Acari. A comunidade Parque Unidos é totalmente desprovida de redes formais para coleta de esgoto sanitário. A maioria dos moradores executou re­des coletoras improvisadas nos becos e na Linha Verde, com tubos em anéis de concreto com os di­âmetros variando de 200 mm e po mm e caixas de passagem em alvenaria. Estas redes se desen­volvem em determinados trechos sob as residên­cias correndo o risco de serem obstruídas, e sem condições de recuperação. Destaca-se ainda o fato de existirem várias casas geminadas e aglomera­das, o que prejudica a delimitação da rede pública com a ligação domiciliar. As residências lançam o esgoto "in natura" no sistema de drenagem pre­visto para a comunidade, ou diretamente no rio Acari. Foi verificada, em diversos locais da comu­nidade, a existência de rasgos no pavimento para a instalação de tubos de esgoto.

A situação é mais precária no setor Terra Nos­tra, onde foi executada pelos moradores uma rede destinada à coleta de águas pluviais e esgoto sani­tário. Em alguns trechos desta rede, o esgoto é en­caminhado a céu aberto, no meio de amontoados de lixo. Este fato permite que, em épocas de chuva

intensa, ocorra o afloramento e estagnação dessas águas servidas em diversos trechos da rede, tra­zendo problemas de toda natureza, acompanha­dos de mau cheiro e mau aspecto, além de facilitar a proliferação de ratos e outros vetores transmis­sores de doenças. Durante as entrevistas e as visi­tas de campo, o forte cheiro de esgoto foi relatado pelos pesquisadores.

"tinha um cheiro muito forte que fazia arder os olhos e os moradores dali não sentiam nada e nem co­mentavam do cheiro, apenas reclamavam dos insetos e ratos, que estão até mesmo dentro de casa."

De fato, o principal problema relacionado à precariedade do sistema de coleta de esgoto, iden­tificado nas entrevistas com os moradores, foi a proliferação de insetos e ratos.

As redes de esgoto executadas pelos moradores são utilizadas também para captação de águas plu­viais, por meio de ralos instalados ao longo dos becos. Em algumas áreas, estas redes passam por baixo de várias residências, para permitir o lança­mento do esgoto no rio. Segundo informações ob­tidas junto aos moradores, não foram executadas fossas nas residências.

Apesar do governo estadual, sob a gerência da SERLA, ter contratado a dragagem do rio Acari, segundo os moradores em alguns períodos o rio fica assoreado. Este fato provoca, em épocas de chuva intensa, inundações em algumas regiões às margens do rio. Como as redes de drenagem que coletam também esgoto desembocam no rio, acontece o inevitável: o retorno do esgoto às resi­dências.

As moradias existentes ribeirinhas ao rio Acari lançam o esgoto diretamente no rio, por meio de tubulações penduradas nas paredes, caracterizan­do que na maioria das residências não há caixas separadoras de gordura, peça indispensável para viabilizar qualquer tratamento de esgoto.

Um dos principais problemas enfrentados pela comunidade são as inundações. Dos domicílios pesquisaclos, 78% afirmaram sofrer com as inun-

dações. Foram realizados pela SERLA serviços de dragagem do rio Acari (Contrato 043/98). Segun­do a associação de moradores, após a realização destes servips, a situação melhorou. Porém, como a dragagem do rio não é executada regularmente, nos períodos de chuva intensa o rio extravasa seu leito e inunda as regiões ribeirinhas, neste caso a área ocupada pela comunidade Parque Unidos de Acari. Na área da comunidade, segundo os proje­tos analisados na Rio Águas e dados levantados em campo para o diagnóstico do programa Favela Bairro, só foram executadas redes de drenagem nas ruas Embaú, Projetada e nas ruas da área ur­banizada localizada no nordeste da comunidade. As águas pluviais são enc:;minhadas ao rio Acari por meio das redes de drenagem existentes cons­truídas pelos moradores. Estas redes são em geral constituídas por tubos de concreto com diâmetros variando entre 40 em e 150 em, e PV's com espa­çamento de cerca 40 m. A captação é realizada por meio de caixas de ralo nos dois lados das ruas. O estado geral das redes não é satisfatório, pois foi verificado que a maioria dos ralos estão assorea­dos e com lixo.

No cruzamento das ruas Embaú e Projetada foi executada uma bateria de ralos. Na travessa de Lima e rua Padre Lima, e em vários becos, foram cons­truídos pelos moradores redes provisórias para co­leta de esgoto que também são utilizadas indevida­mente para o transporte de águas pluviais e obvia­mente não atendem a nenhum dos dois sistemas.

Um dos problemas que contribui para o agrava­mento das enchentes é a presença de lixo deposita­do em vários pontos da comunidade. Existe coleta regular de lixo em Parque Unidos, executada pela COMLURB (Companhia Municipal de Limpeza Urbana). A coleta de lixo é realizada três vezes por semana das TOOh às r5:2oh, nas ruas principais: Linha Verde, nas ruas Padre Lima, Projetada e Embaú, e nas travessas Padre Lima, União, Bom Jardim e Embaú. A con:unidade possui garis co­munitários que realizam a varredura e limpeza geral das áreas públicas. Os garis comunitários têm seu apoio funcionando na associação de mo-

radores. Este sistema, no entanto, parece não ser suficiente pois existe grande quantidade de lixo acumulado nas margens do rio Acari, principal­mente próximo à ponte da Linha Verde. De fato, nas áreas de mais difícil acesso, a coleta de lixo não é realizada. Segundo uma moradora de Terra N ostra, todos os moradores desta região levam o lixo doméstico para o terreno ao longo do leito do rio, para onde é dirigido todo o esgoto local; isto é relatado de forma natural, já que, segundo ela, é feito há anos. Ela informou ainda que doenças como dengue, cólera, leptospirose, ascaridíase e diarréias já apareceram em sua família. Apesar da existência de diversos depósitos irregulares e do vazadouro clandestino de entulho em terreno pertencente à empresa Pulmman (no limite oeste da comunidade) alguns moradores afirmaram nas entrevistas que não existem depósitos de lixo na comunidade. Outros moradores entrevistados de­monstraram a consciência da necessidade de pre­servação do rio Acari, e consideram as pessoas mal informadas por continuarem jogando lixo no rio.

Os MORADORES E O RIO ACARI

O trecho da comunidade aterrado próximo ao rio Acari, identificado como Parque Unidos ou Beira Rio, apresenta um grande número de habi­tações. Muitas delas são palafitas que estão locali­zadas na faixa de inundação do rio. Há, portanto, o risco recorrente de inundações. Todavia, são os fundos dos lotes que estão em contato com o rio; pode-se afirmar que, em termos de estrutura físi­ca, a comunidade está de costas para o rio.

As precárias condições de saneamento, associa­das ao risco de inundações, fazem com que a relação -da comunidade de Parque Unidos de Acari com o rio Acari seja extremamente complexa. As entrevis­tas revelaram que, para muitos, o rio é visto como uma fonte de problemas, em conseqüência das inundações que já foram extremamentefreqüentes.

Page 16: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Na pesquisa de campo, a maior parte dos mo­radores assinalou que a área sofre com as inun­dações, sendo este, juntamente com a os riscos ligados à violência, os principais problemas apon­tados pelos moradores do bairro. Alguns aponta­ram como principal problema a poluição do rio, reconhecendo que ela decorre do despejo de lixo nas águas e da inexistência de sistemas adequa­dos de coleta e tratamento de esgotos, fazendo com que, em determinadas épocas, o rio exale um cheiro forte de esgoto.

É interessante notar que as casas ribeirinhas se estruturam com a parte de fundos para o rio, com a sala e as partes mais nobres voltadas para a rua, o que denota o pouco valor dado a este im­portante elemento da paisagem. Outros morado­res, sobretudo os mais antigos, lembram de um rio não poluído, onde era possível nadar e pescar, atividades que hoje são pouco freqüentes devido à alta contaminação das águas; estes moradores re­conhecem a necessidade de buscar soluções para os problemas de inundação e poluição.

A melhoria do sistema de esgotamento aparece entre as reivindicações de alguns moradores. To­davia, as principais reivindicações dos entrevista­dos em Parque Unidos de Acari estão vinculadas a serviços relacionados ao trabalho, como creches e melhor acesso aos transportes. De fato, a situação de pobreza em que vive a maior parte dos mora­dores, a questão da violência relacionada ao tráfico de drogas, e a premência da garantia da subsistên­cia cotidiana indicam que os problemas relativos à qualidade do ambiente são considerados secun­dários. Mesmo reconhecendo que a qualidade do ambiente é precária, as entrevistas mostram que a comunidade, apesar de já densamente ocupada, continua em expansão, com famílias recém-insta­ladas. A escolha do local se faz através de família ou amigos que já moravam na área, e da localização, que facilita as possibilidades de acesso ao trabalho.

A proposta de urbanização para a área dentro do programa Favela-Bairro de 2003 implicava várias ações que, segundo a equipe técnica do es­critório Arqui-Traço, responsável pela sua elabora-

ção, tinham um custo financeiro muito elevado. A proposta envolvia a construção de casas para o reassentamento da população ribeirinha na área onde hoje existe o vazadouro de lixo. Este deveria ser desativado e a área devidamente adequada à construção de habitações para a população do se­tor Terra Nostra e do setor Parque UnidosjBeira Rio. Alegando que os custos eram muito elevados, a prefeitura não chegou a desenvolver a proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os rios são atributos importantes da paisagem da cidade e podem propiciar uma situação privile­giada aos seus habitantes, particularmente àqueles que vivem na sua proximidade. Eles podem usu­fruir dos recursos hídricos, e de um habitat rico, com grande variedade de características biológicas (espécies vegetais, de pássaros e outros pequenos animais) e geomorfológicas (Penning - Rowsell & Burgess, 1997 e Costa e Medeiros, 2002). Por outro lado, as paisagens dos rios são elementos de contemplação, podem ter efeitos relaxantes e estimulantes, através do fluxo das suas águas e da vegetação das suas margens, assim como podem ser um lugar para atividades esportivas e de lazer. Neste sentido, os rios podem ser percebidos como amenidades urbanas.

Diferentemente de outras áreas onde os rios são elemento de contemplação e lazer, constituin­do-se em uma amenidade ambiental que valoriza a paisagem e o espaço de vida cotidiana para aque­les que habitam suas margens, em Parque Uni­dos de Acari e em grande parte da zona norte do Rio de Janeiro, os rios são ameaças à segurança e integridade física dos habitantes ribeirinhos, que temem as enchentes, enfrentam o rnau cheiro e o contato com as águas poluídas.

Refletindo sobre os caminhos para transformar esta situação, podemos relacionar algumas medi­das no âmbito da sub-bacia do Rio Acari, e outras

medidas, de caráter local, voltadas para as particu­laridades de Parque Unidos de Acari, que seriam necessárias para reduzir os riscos e melhorar as condições ambientais e de habitabilidade para a população que vive nas margens do rio. Estas me­didas partem do princípio de que o rio e sua vár­zea são uma unidade.

Uma primeira medida a ser aplicada no âmbito da sub-bacia seria a construção das redes de esgoto previstas, e a complementação do Sistema Pavuna, que reduziria o lançamento de esgotos não tratados no rio. Uma outra medida seria a dragagem do rio Acari a ser realizada com a freqüência adequada e baseada em estudos hidrológicos e hidráulicos. Se­ria necessária a delimitação de áreas polder, previs­tas para o armazenamento das águas de enchente e o aumento da largura do canal, assim como a delimitação de logradouros públicos nas margens do rio, com o uso de pavimentação permeável que permita que a água da chuva se infiltre no solo.

Observamos que a maior parte dos autores que discute a preservação e valorização paisagística dos rios urbanos ressaltam a visibilidade e o acesso público como importantes estratégias de melhoria ambiental de rios urbanos. Neste sentido, seriam importantes intervenções que possibilitassem ca­minhadas ao longo de suas margens e permitis­sem o acesso público à água. No caso do rio Acari, esta é uma estratégia importante, pois hoje, em di­ferentes trechos, inclusive no trecho que margeia a comunidade de Parque Unidos de Acari, o rio fica oculto da paisagem por estar como fundo de lote.

No caso específico de Parque Unidos de Acari, fa­zem-se necessários a remoção e o reassentamento da população que vive na área sujeita à inundação, bem como da que vive na área de risco junto à Linha Verde. Esta proposta, que já estava presente na in­tervenção do programa Favela-Bairro, elaborado pelo escritório Arqui-Traço, e não chegou a ser executada, está contida na proposta de reabilitação integrada do rio Acari, elaborada pela Secretaria Municipal de Meio-Ambiente. Segundo este estudo, não apenas na área de Parque Unidos de Acari, mas também em outros trechos ao longo do rio, deveria haver remo­ções das habitações construídas na faixa marginal.

O projeto exige um volume de recursos finan­ceiros importante, pois implica na construção de novas habitações para grande parte das famílias removidas. Como as casas apresentam, na maioria dos casos, baixo padrão construtivo, a indenização por benfeitoria implicaria no pagamento de um valor muito baixo, o que inviabilizaria o realoja­mento das famílias cujas casas fossem removidas. Isso demonstra de forma extremamente objetiva que a política de proteção da faixa marginal e de recuperação dos recursos hídricos têm que estar necessariamente integradas a uma política públi­ca de provisão de habitação para a população de baixa renda. Somente a possibilidade de acesso à habitação dentro do mercado formal poderá evitar que a população de baixa renda venha ocupar irre­gularmente as áreas ribeirinhas.

A criação de áreas de lazer e parque lineares nas áreas de várzea ao longo das margens liberadas, com tratamento paisagístico e implantação de equipamentos seria um passo importante para impedir a invasão da área por novas habitações. As áreas de lazer, das quais a região da AP3 é extremamente carente, permitiram o estabelecimento de uma nova relação entre os moradores, grande parte deles de comunidades carentes, e o rio. Neste sentido, faz-se necessária também a recuperação da mata ciliar e das áreas de mangue, que vão atuar no sentido de minimizar a erosão e a sedimentação. O plantio de árvores e a recuperação da vegetação poderiam ser acompanhados da implantação de caminhos para bicicletas e pedestres, e lugares de descanso e contemplação da água.

A região, mesmo com a retirada da população ri­beirinha, continuará marcada pela presença de fa­velas, e por isso é imprescindível a implantação de um programa de coleta de lixo adequado a este tipo de ocupação, para que as áreas liberadas e recupe- _ radas não se tornem depósitos de lixo. Estes progra­mas devem envolver a capacitação dos garis comu­nitários, e a utilização de equipamentos de peque­no porte, capazes de percorrer ruas e vielas estrei­tas. Seria interessante conceber sistemas de com­pra de lixo, como os existentes em outras cidades.

Page 17: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

NoTAS

r- Nos referimos aos estudos elaborado por Victor Carneiro da

Silva e Tatiana Dahmer Pereira.

2- Informação do Jornal o Globo de r6(o2(2oo6, pp.r6.

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MAPEAMENTO AMBIENTAL E PAISAGÍSTICO

DE BACIAS HIDROGRÁFICAS URBANAS:

EsTuDo DE cAso Do Rio CARIOCA

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta um diagnóstico das condições ambientais e paisagísticas da bacia do Rio Carioca, no Rio de Janeiro, embasado por uma abordagem transdisciplinar que integra análises históricas, biológicas, urbanísticas e de ecologia da paisagem, através de mapeamento geo-referen­ciado que reúne indicadores tais como qualidade da água, evolução do uso do solo e cobertura vege­tal (análises temporais de 1972 e 1999), dinâmi­ca populacional (análises temporais relativas aos censos IBGE de 1991 e 2000), unidades de con­servação, configuração da fronteira floresta-malha urbana e correlação entre o sistema viário local e o adensamento construtivo, organizados coletiva­mente ao longo de um perfil topográfico longitu­dinal síntese.

O Rio Carioca foi, ao longo do tempo, teste­munha e agente transformador da paisagem do Rio de Janeiro. O processo de transformação da paisagem que ocorreu nesta bacia reflete bastante bem a tensão existente entre a estruturação urba­na carioca e a natureza tropical. Primeira fonte de abastecimento d'água para seus habitantes, o Carioca foi vetor de ocupação humana em direção às encostas e indutor na preservação da floresta Atlântica carioca.

Mônica Bahia Schlee Ana Luiza Coelho Netto

Kenneth Tamminga

Este estudo procura demonstrar as vantagens da utilização de bacias hidrográficas como recorte espacial em análises ambientais e paisagísticas, com aplicação direta no planejamento e gestão de cidades. O mapeamento ambiental e paisagístico de bacias hidrográficas apresenta-se como um ins­trumento eficaz para auxiliar planejadores, gesto­res e membros da comunidade no planejamento, preservação e na reabilitação de ambientes situa­dos às margens e nos raios de abrangência de cor­pos d'água urbanos.

O processo de urbanização levado a cabo no Rio de Janeiro a partir do século XVI promoveu alterações radicais no sistema ambiental local, dei­xando profundas marcas em seus corpos d'água. Córregos, rios, lagoas e baías cariocas refletem os impactos causados por padrões de desenho, uso e desenvolvimento urbanos culturalmente aceitos e postos em prática ao longo do tempo. O Rio Ca­rioca foi escolhido como objeto de estudo devido a sua importância histórica para a cidade do Rio de · Janeiro e por tratar-se de elemento representativo da bio-região na qual se insere.

O rio ainda vivo nasce na Serra da Carioca, lo­calizada a nordeste do Maciço da Tijuca, dentro dos limites do Parque do Nacional da Floresta da

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Figura 1 -Delimitação da bacia e traçado atual do Rio Carioca, SCHLEE 2002, sobre Ortofoto Armazem de Dados/IPP-PCRJ

Tijuca. Este primeiro trecho do rio ainda conserva parte significativa das suas características geomor­fológicas originais. Ao deixar o parque, o Carioca cruza uma área favelizada, densamente ocupada pela Comunidade Guararapes e, logo após, ressur­ge canalizado a céu aberto em meio a uma área residencial de padrão elevado, na confluência en­tre os bairros de Santa Teresa e Cosme Velho, na porção média do rio. Depois disso, percorre o fun­do do vale até a planície costeira, completamente submerso na densa matriz urbana até alcançar o Parque do Flamengo, onde segue confinado em uma galeria de cintura, recentemente encoberta pelo poder público municipal, até desaguar na Baía de Guanabara.

O recorte espacial utilizado neste estudo - bacia hidrográfica- apresenta vantagens na análise, ava­liação e no tratamento da paisagem em contextos urbanos. Trata-se de um sistema natural delimita­do no espaço pela topografia, a qual define a área de convergência de fluxos d'água, de sedimentos e de elementos solúveis que convergem para uma saída comum (Coelho Netto, 2oor). A bacia hidro­gráfica configura-se como uma unidade geomor­fológica que conforma um anfiteatro natural onde

as especificidades geo-ecológicas e os problemas ambientais decorrentes da inadequação dos pa­drões urbanísticos adotados nas cidades brasilei­ras tendem a estar circunscritos. A idéia da adoção de bacias hidrográficas como unidade de planeja­mento ambiental já está amplamente difundida e fundamentada r, mas esta prática no planejamento e gestão de cidades ainda é insipiente.

A bacia do Carioca é uma pequena sub­bacia que deságua na Baía da Guanabara, com aproximadamente oito kmz de extensão territorial e vazão total medida em tempo seco de 575 Ljs (Fundação para a Engenharia do Meio Ambiente - FEEMA, marçoj2oor). Apresenta uma confor­mação geomorfológica característica do litoral sudeste brasileiro (Figura r e Mapa r): uma planície costeira com cotas até 5m acima do nível do mar; uma planície interior que se estende até a cota 25 aproximadamente; encostas suaves entre 25 e 6o m acima do nível do mar; um trecho de encostas bastante íngremes entre 6o e 430 m aproximadamente, que compreende o degrau estrutural (zona de ruptura de gradiente) e um vale suspenso, que se situa entre 430 e s6s m acima do nível do mar.

o objetivo deste estudo é avaliar a transforma­ção da paisagem ao lo~go da bacia. hidrográ~ca do Rio Carioca e seus efeitos na quahdade ambiental urbana local. O diagnóstico das condições am­bientais e paisagísticas da bacia do Carioca foi fei­to a partir de uma série de avaliações em campo, embasadas por uma abordagem transdisciplinar que integra análises históricas, biológicas, urba­nísticas e de ecologia da paisagem2

• Este capítulo oferece uma síntese visual e gráfica das avaliações e análises que compõem este estudo.

BREVE HISTÓRICO DAS TRANSFORMAÇÕES DA

PAISAGEM NO VALE DO Rro CARIOCA

O Rio Carioca constituiu-se, ao longo da histó­ria da cidade, como elemento ambiental e paisa­gístico importante na apropriação e controle des­te trecho do território carioca. Principal fonte de abastecimento d'água da cidade do Rio de Janeiro até meados do século XIX, funcionou como vetor de expansão urbana em direção as encostas do vale do Carioca ao longo do caminho das suas águas desde o século XVII. Inversamente, exerceu papel relevante como agente indutor da regeneração da floresta Atlântica nas encostas do Maciço da Tiju­ca, em mais de um momento da sua história.

Mapa 1 - Geomorfologia local, modificado de Asmus e Ferrari, 1978

Planície costeira (O a 5 ml

Planície interior (5 a 25 ml

Encostas suaves (25 a 60 m]

Degrau estrutural (60 a 430 ml

Vale suspenso (430 a 565 ml

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O Carioca chegou a ter todo o seu curso con­servado por atos legislativos, que vigoraram entre o início do século XVII até a metade do século XVIII, com o objetivo de proteger suas águas para consumo da população carioca (Cavalcanti 1997). O processo de transformação do rio iniciou-se com o término das obras do primeiro aqueduto da cidade. A partir de meados do século XVIII, este aqueduto passou a captar efetivamente a maior parte das águas do alto Carioca, criando um braço artificial para distribuí-las em fontes públicas lo­calizadas nas principais praças da área central da cidade (Cavalcanti 1997, Abreu 1992, Magalhães Correa 1939). Desde então, o rio foi dividido em dois. As nascentes continuaram protegidas, pois

sua integridade era necessana para garantir o abastecimento da cidade. O restante do rio foi so­frendo gradativas alterações na sua forma, função e na qualidade de suas águas (Mapa 2).

Se o rio conseguiu manter parte do seu trajeto protegido, a floresta que encobria as encostas do vale sofreu graves perdas neste período. Entre fins dos séculos XVIII e XIX, grande parte das encos­tas do Maciço da Tijuca foi desmatada, seja devido à extração de lenha, seja devido à disseminação do cultivo do café nas encostas do maciço, afetando até mesmo os mananciais aí existentes (Abreu 1992, Magalhães Correa 1936).

O aumento progressivo da necessidade de abas­tecimento d'água devido ao crescimento contínuo

Mapa 2 - Evolução paisagística do Rio Carioca. Fonte: Presente estudo, a partir de Barreiros, 1965

O Rio Carioca é dividido em dois a partir de meados do século XVIII

Trecho preservado junto às cabeceiras

Principal estrutura de captação, conhecida como Mãe d·água

Trecho preservado até meados do século XIX, ao longo do braço artificial que transpôs a bacia

Trecho do traçado original, gradativamente canalizado e esquecido

Aterro ao longo da orla da Baía da Guanabara a partir do início do século XX

da população carioca ao longo do século . XIX, agravado pelas freqüentes inun~ações na ndade e a aceleração de processos erosrvos nas encostas do Maciço da Tijuca, levou o governo imperial a estabelecer um programa de reflorestamento e desapropriar fazendas de café localizadas nas en­costas mais íngremes do maciço para proteger as nascentes e cabeceiras dos seus principais rios. A recomposição da floresta da Tijuca deu origem ao Parque Nacional da Tijuca, no qual estão localiza­das as nascentes do Carioca (GEOHECO-UFRJ/ SMAC-PCRJ 2000, Heynemann 1995, Abreu 1992, Cesar e Oliveira 1992). .

Desde então, a floresta nas encostas do vale fm aos poucos se recompondo, mas o rio não teve a mesma sorte. Canalizado a céu aberto desde sua porção média até a foz, a partir de meados do sé­culo XIX, foi enterrado em galerias subterrâneas no início do século XX, que o conduzem, à mar­gem da vida da cidade, até a Baía da Guanabara.

A aceleração do processo de ocupação urbana em direção às encostas nesta bacia se deu a partir de 1870, com a implantação do sistema de bondes. Este processo se consolidou com a abertura dos eixos transversais de circulação viária para ligação entre as zonas norte e sul da cidade. O corte dos morros Azul e Mundo Novo, entre as décadas de 19ro e 1920, a execução do aterro da orla da baía para implantação do Parque do Flamengo ao lon­go do anel viário formado por vias expressas entre as décadas de 1950 e 1960 e a abertura dos túneis Santa Bárbara e Rebouças, entre as décadas de 1960 a 1970, atuaram localmente como indutores do adensamento construtivo, simultaneamente ao processo de verticalização da arquitetura formal, promovido com o apoio da legislação edilícia es­tabelecida a partir do final da década de 1930 (De­creto 6oooj1937). Paralelamente, e não por acaso, a ocupação informal se consolidou no mesmo pe­ríodo, avançando progressivamente sobre as en­costas da bacia.

O eixo longitudinal de ocupação do vale, que se estruturou ao longo do trajeto do Rio Carioca a partir do século XVII, sofreu um grande impacto

com a implantação destes três grandes corredores viários, acelerando o processo de avanço e super­posição da malha urbana sobre a floresta local.

A preocupação com a questão ambiental come­çou a atingir a população do vale do Rio Carioca a partir do início dos anos 1980. Organizações não governamentais locais atuaram na época em ini­ciativas pontuais de reflorestamento das encostas e arborização das ruas do vale, e pressionaram o poder público municipal a desistir da abertura de um novo eixo viário e a desobstruir as galerias subterrâneas do Rio Carioca, devido ao despejo de resíduos sólidos no canal do rio e nas galerias de drenagem que deságuam nele. Entretanto, a pres­são da comunidade pela melhoria das condições ambientais do Carioca traduziu-se, na visão do poder público municipal, na construção de uma galeria de cintura em 1992, que alterou mais uma vez o curso do Carioca, deslocando sua foz da Praia do Flamengo, com a intenção de dar fim à língua-negra que desaguava na praia.

As leis preservacionistas estabelecidas pelo po­der municipal a partir de 1984, com a criação de seis Áreas de Proteção Ambiental e Cultural (APAs e APACs) na bacia do Carioca, funcionaram como instrumentos de proteção ao patrimônio cultural e natural, contendo a ocupação desenfreada das áreas formais nas encostas do vale. No entanto, a ocupação informal continuou a crescer. Em âmbi­to federal, já se encontravam protegidos o Parque Nacional da Tijuca (1961) e o Parque do Flamengo (1965). O reinício do programa municipal de re­florestamento para toda a cidade a partir de 1986 voltou a ter um impacto positivo nas encostas do vale, a exemplo do que aconteceu no final do sécu­lo XIX, contribuindo para desacelerar a perda da floresta nessa bacia, conforme sugerem os dados que serão apresentados a seguir nesse estudo.

Em 2002;, foi instalada uma estação de trata­mento primário de esgotos pelo poder público es­tadual junto a sua foz. Este equipamento até hoje não entrou em pleno funcionamento. Em 2004, o trecho final do rio junto à sua foz, dentro dos limites do Parque do Flamengo, foi encoberto por

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Figura 2 - Recobrimento do leito do Rio Carioca com um deck de madeira implantado junto à foz

pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em 2004. SCHLEE, Mônica Bahia, setembro 2005

um deck de madeira em uma intervenção da Pre­feitura da Cidade do Rio de Janeiro, obstruindo o contato visual da população com o rio e tomando ainda mais difícil qualquer contato físico com as suas águas (Figura 2).

METODOLOGIA

AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES AMBIENTAIS E

PAISAGÍSTICAS AO LONGO DO RIO CARIOCA

Mapeamento de Indicadores

O diagnóstico apresentado neste estudo integra resultados das análises do inventário pa­ra avaliação visual das condições ambientais de rios tropicais urbanos e do mapeamento geo­referenciado de indicadores biológicos, urbanos e de ecologia da paisagem, tais como qualidade da água, evolução do uso do solo e cobertura vegetal (análises temporais de 1972, 1984, 1996 e 1999), a dinâmica populacional (análises temporais

relativas aos censos IBGE 1991 e 2ooo), as unidades de conservação, a configuração da fronteira floresta-malha urbana e a correlação entre o sistema viário local e a verticalização da arquitetura formal.

Os resultados das avaliações em campo e das demais análises de dados secundários foram ta­bulados e mapeados usando o ArcView G IS sof. tware (Environmental Systems Research Institute 1999) a partir da base cadastral elaborada pelo Instituto de Urbanismo Pereira Passos, nas esca­las noooo e 1:2ooo (Armazém de Dados- PCRJ/ IPP 1999) , e organizados coletivamente ao longo de um perfil longitudinal-síntese (representação gráfica modificada de Coutinho 2001), de modo a facilitar a comunicação do diagnóstico e das ações recomendadas a cidadãos e administradores pú­blicos (Schlee 2002).

QUALIDADE DA ÁGUA

o diagnóstico da qualidade das águas do Rio Ca­rioca foi realizada através de avaliações biológicas e bioquímicas. Estas avaliações foram realizadas, ao longo de 2001, em cada um dos seguintes trechos do Rio Carioca: Parque Nacional da Tijuca, Favela Gua­rarapes, Largo do Boticário e Parque do Flamengo.

A aplicação de indicadores biológicos, através da avaliação dos níveis de tolerância da biota aquá­tica (macro-invertebrados) à poluição, foi correla­cionada com uma verificação temporal da presen­ça de coliformes fecais, indicadores bioquímicas comumente empregados na avaliação da qualida­de da água. Este procedimento possibilitou avaliar possíveis perdas em relação aos habitats e ameaças à biodiversidade, além de aferir o nível de poluição por esgoto doméstico em cada trecho estudado.

Em termos de abundância da fauna aquática, as análises demonstraram que o número de macro­invertebrados nas cabeceiras do Rio Carioca equi­vale a apenas I/3 do número de macro-invertebra­dos no rio de referência no trecho utilizado como parâmetro de qualidade (nascente do Rio Iconha, na Serra dos Órgãos). A fauna aquática do Rio Ca­rioca em seu trecho mais preservado concentra-se principalmente junto aos nichos de folhas e ma­téria orgânica acumuladas. No rio de referência, a ocorrência é melhor distribuída entre os três habi­tats - folhas, pedras e areia.

Os indicadores biológicos sugerem que o gra­diente de degradação no Rio Carioca começa já no Parque Nacional da Tijuca, onde 23% dos organis­mos J encontrados são sensíveis à poluição, 15% toleram níveis intermediários de poluição e 62% são tolerantes à poluição por esgoto doméstico. A degradação aumenta significativamente no trecho que percorre a Favela Guararapes, onde 0,1% dos organismos encontrados são sensíveis à poluição, 5,3% toleram níveis intermediários de poluição e 94,6% são tolerantes à poluição por esgoto domés­tico; e atinge um nível crítico a partir do Largo do Boticário, onde 1oo% dos organismos encontra­dos são tolerantes à poluição por esgoto doméstico.

RIOS

As coletas de amostras de água foram também realizadas nos quatro trechos identificados acima, em janeiro de 2001. Estas amostras foram então correlacionadas com dados pré-existentes dispo­nibilizados pela Fundação para a Engenharia do Meio Ambiente - FEEMA (1991) e Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro -CEDAE (1994) referentes aos seguintes trechos estudados: Parque Nacional da Tijuca (FEEMA 1991), Largo do Boticário (FEEMA 1991) e Parque do Flamengo (FEEMA 1991 e CEDAE 1994). A Ta­bela r revela a progressiva degradação do rio devi­do ao despejo de esgoto sanitário entre as décadas de 1990 e 2000 e demonstra a enorme variação de qualidade da água entre a cabeceira e a foz que o Carioca apresenta ainda hoje (Tabela r).

A correlação entre os resultados das análises biológicas e bioquímicas revelou que existe um enorme contraste em termos de qualidade da água do Carioca entre a área das nascentes e a sua foz. Já as avaliações biológicas demonstraram que a biota aquática e a diversidade de habitats encon­tram-se sob algum impacto mesmo nas cabeceiras do rio. A análise dos dados bioquímicos no perío­do entre 1991 e 2001 indicou um progressivo de­clínio da qualidade da água do Carioca ao longo da última década.

Uso DO SOLO E COBERTURA VEGETAL

(1972, 1984, 1996, 1999)

O mapeamento do uso do solo e da cobertura vegetal registra a evolução dos fragmentos paisa­gísticos em períodos determinados, possibilitan­do avaliar as transformações ocorridas em quais-_ quer unidades de paisagem. A evolução histórica do uso do solo e cobertura vegetal foi elaborada a partir de estudos prévios realizados pela Pre­feitura do Rio de Janeiro (PCRJJSMAC 2ooo) e pelo Laboratório de Geo-Hidroecologia (GEOHE­CO-UFRJJSMAC-PCRJ 2ooo). O presente estudo

Page 21: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

TABELA 1. RIO CARIOCA: AVALIAÇÃO BIOQUIMÍCA DE QUALIDADE DA AGUA

Fonte: FEEMA (1991, 2001) e presente estudo (2001)

Trechos avaliados

Par Na Tijuca

Jul-Ago Jan 1991 2001

(FEEMA) (p.s.f)

DBO (mgfl)

}O 2.0

OD > 6.o 8.6-9.2 (mgfl)

Coli- até 200 formes (ideal) Fecais até 8oo 0-34 150 NMP( (satisfató· rooml rio)

PRAIA DO fLAMENGO

Favela Guararapes

Jul-Ago Jan 1991 2001

(FEEMA) (p.s.f.)

1.200-3-000

AVALIAÇÃO BIOQUÍMICA DE QUALIDADE DA ÁGUA

Fonte: FEEMA (1991, 2001) e CEDAE (1994)

Valores Máximos Parâmetros (Resolução CONAMA 1991

20(I986 e 27I(2ooo) (FEEMA)

DBO (mgfl)

}O 20-50

OD >6.o !.6-2.0 (mgfl)

Coliformes fecais até 200 (ideal)/

(NMP(Iüoml) até 8oo (satisfatório) r6o.ooo-1.6oo.ooo

para contato humano

Largo do Boticário

Jul-Ago Jan 1991 2001

(FEEMA) (p.s.t:)

2.0-3-6

7·8-8.8

Praia do Flamengo

Jul-Ago 1991

(FEEMA)

20-50

!.6-2.0

Mar 2001

(FEEMA)

8o

0-4

16.ooo- 3000- 16o.ooo- > 50o.ooo 24oo.ooo r.6oo.ooo 16.ooo.ooo

1994 2001 (CEDAE) (FEEMA)

40-60 8o

0.2-0.9 0-4

900.000-4-300.000 > r6.ooo.ooo

aplicou a metodologia desenvolvida por Coelho Netto no trabalho Estudos de Qualidade Ambien­tal do Geoecossistema do Maciço da Tijuca (GEO­HECO-UFRJfSMAC-PCRJ zooo), adequando-a para o contexto da bacia do Rio Carioca, uma vez que o estudo anterior abrangia apenas o domínio das encostas do Maciço da Tijuca (a partir de 40m acima do nível do mar). Estes mapas foram revi­sados através de novos exames de fotos aéreas de 1972, 1984, 1996. As condições referentes ao ano de 1999 foram avaliadas através do exame das or­tofotos de 1999 (Armazém de Dados/ IPP-PCRJ) e da checagem em campo realizada em zoor.

Mapa 3- Uso do solo e cobertura vegetal, 1972

Parque do Flamengo

Malha urbana alta densidade 31%

Malha urbana baixa densidade 16%

Capim colonião 2,5%

De acordo com os dados gerados por este estu­do, 58% da área total da bacia do Rio Carioca ainda possui algum tipo de cobertura vegetal, porém a qualidade da cobertura vegetal não é homogênea. Uma parte significativa da área coberta com vege­tação apresenta algum tipo de alteração. A análise do uso do solo e da cobertura vegetal ao longo do tempo indicou um progressivo avanço da malha urbana sobre a floresta no período analisado. En­tre 1972 e 1999, uma significativa redução da área de floresta tropical teve lugar nas encostas do alto Carioca, em resposta à pressão urbana exercida, tanto pelos assentamentos formais quanto pelos

Comunidades pioneiras e floresta secundária inicial15%

Floresta secundária tardia 9,5%

Floresta climax 19%

Page 22: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Parque do Flamengo

Malha urbana alta densidade 40%

Malha urbana baixa densidade 9%

Capim colonião 1,5%

assentamentos informais, e à ocorrência de in­cêndios. Os fragmentos de florestas em avançado estágio de desenvolvimento (Floresta Secundária Tardia ejou Clímax Local) decresceram em área de 28% em 1972 para 23% em 1999 (Mapas 3 e 4).

Porém, os dados do presente estudo indicam que a progressiva perda da floresta nesta bacia vem sofrendo uma desaceleração nos últimos anos. O processo de retração da floresta, que che­gou a atingir 16.093 m 2 jano entre 1972 e 1984, ar­refeceu para 14.378 m 2 jano entre 1984 e 1996, di­minuindo para 6.308 m 2 jano entre 1996 e 1999. Enquanto as áreas cobertas por florestas em avan­çado estágio de desenvolvimento apresentaram uma diminuição na velocidade do seu processo de declínio, tanto as áreas cobertas por formações

Comunidades pioneiras e floresta secundária inicial 22,5%

Floresta secundária tardia 8,5%

Floresta climax 14,5%

Mapa 4- Uso do solo e cobertura vegetal, 1999

pioneiras, quanto às florestas em estágio secundá­rio de desenvolvimento aumentaram em tamanho entre 1984 e 1999, indicando uma desaceleração da taxa de retração da floresta tropical local (Tabela 2 e Gráficos de perda de floresta 1972/1999).

A correlação destes dados com a análise históri­ca sugere que três fatores interconectados podem ter contribuído para a desaceleração do processo de retração da floresta: a ação dos movimentos so­ciais organizados na conscientização ambiental e sua participação nos esforços de reflorestamento que tiveram lugar no vale do Rio Carioca no início dos anos 1990, a promulgação pelo governo mu­nicipal de leis ambientais a partir de 1984, com a criação de áreas de proteção ambiental, e o iní­cio do programa municipal de reflorestamento a

partir de 1986. Porém, o desenvolvimento urbano continua a avançar sobre as encostas do vale, no entorno do Parque Nacional da Tijuca, como será demonstrado a seguir.

DINÂMICA POPULACIONAL

A análise da dinâmica populacional da bacia do Rio Carioca demonstra que a maioria dos bairros que a integram perderam população no período de 1991 a 2000. Já a população favelizada aumen­tou significativamente no mesmo período (Mapa 5 e Tabela 3). Enquanto a população total dos bair­ros Laranjeiras e Cosme Velho decresceu 6,79% e 1,6o%, respectivamente, no período de 1991 a 2000, a população favelizada que habita estes bair­ros cresceu em média mais de 25% no mesmo pe­ríodo (PCRJ-IPP 2000, IPP/Armazém de Dados­Morei). Júlio Otoni, Guararapes e Vila Cândido, favelas localizadas dentro dos limites dos bairros Laranjeiras e Cosme Velho, foram as que mais cresceram, apresentando variação populacional acima de 35%. As favelas Guararapes, Vila Cândido e Cerro-Corá, todas localizadas no bairro de Cosme Velho, encontram-se em processo de conurbação.

TABELA2

Uso DO SOLO E COBERTURA VEGETAL

Fonte: GEOHECO-UFRJ/SMAC-PCRJ 2000 e presente estudo 2001

Cobertura 1972 1984 vegetal mz % mz %

Floresta Atlântica local 2029420 28.55 1836299 25.80 preservada

Perda de floresta 193121 preservada

Taxa de retração 16093

2,2 N

E 2,0 ~

co -c 1,8 co > ..... (\)

1,6 U1 (\) .....

a.. 1,4 co ..... Vl (\)

1,2 ..... o

ü:: 1,0

20000

õ ~ 15000

--N

E o 10000

ICO U• co ..... .... (\)

5000 c:::

1996

mz

1663764

172535

14378

HIU~; PAIS?1GENS URBANAS_ 43

1970 1980 1990 2000 Ano

1972/1984 1984/1996 1996/1999

Período em anos

Gráficos de perda de floresta

1999

% mz %

23·37 1644841 2p6

18923

6308

Page 23: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

TABELA 3. DINÂMICA POPULACIONAL DA BACIA DO RIO CARIOCA

PoPULAÇÃO ToTAL

<t: 1-I-l o o 1-I-l o OI~ o <t: l<t: <t:

<t: o~

~ co o~

Vi~ Vi~ z.:O ~~ z.:O o O::: o,. H

00 1-I-l '" ~2

0\ 1-I-l '" S' o-E- 0\ o-E-BAIRROS H

Glória !4033 IIS-3 9365 77-0

Catete 28n6 5IL5 23720 43L5

Flamengo 6868o 396·3 55839 322.2

Laranjeiras 57608 319-4 49533 274-6

CosmeVelho 7346 139-4 7345 139-4

Santa Teresa 5°9°7 228.2 44554 199·7

Alto da Boa Vista ro88s 270·7 I0084 250.8

POPULAÇÃO fAVELIZADA

<t: 1-I-l o o 1-I-l o 016 Q <t: l<t: ' <t:

<t: o~

~ co o~

Vi~ Vi~ z? -~ z? o O::: o,. H

00 1-I-l '" ~2

0\ 1-I-l '" BAIRROS 0\ o-E- 0\ o-E-H H

Morro dos Prazeres 44°9

Morro Azul 922

Júlio Otoni 306

Vila Pereira da Silva 993

Tavares Bastos 1446

Vila Santo Amaro 20!7

Vila Cândido + n87 Guararapes

Cerro-Corá 8or

Vila Imaculada Conceição

<t: o o~ OI~ o l<t: 8 v;:S:x: u ::s~e. o O::: o,. <r: o <t:O' o >o.. E::.- "'

•49·84% !0098

- r8.s3% 2!724

-23.00% 51939

-!6.30% 4638!

-o.or% 7229

- !4-26% 4II45

·7·94% 8254

<t: o o~ OI~ o l<t: 8 u v;:S:><: ::s~e. o O::: o,. <r: o <t:O' o >o,. E::.- "'

3528

!2!3

541

IOII

u6r

735+II07= 1842

!0!2

<t: 1-I-l o o~ o OI~ o <t: l<t: 8 o~ v;:S:><: Vi~ :::~e. z? O::: o,. <r: 1-I-l '" ~2~ o-E-

89.0 p6%

319·0 ·9,!9%

324.0 ·7·51%

r86.o -6,79%

8r.o -r,6o%

8o.o -8,28%

}O -22,!7%

<t: 1-I-l o o~ o 01~ 0 <t: l<t: 8 o~ v;:S:X: Vi~ :::~e. z? O::: o,. <r: 1-I-l '" ~2~ o-E-

•24·97%

23·99%

43-44%

q8%

·59·95%

3s.6o%

20,85%

Ocupação formal

{variação populacional IBGE 1991-2000)

Alto da Boa Vista { -22,17%)

Santa Teresa {-8,28%)

Cosme Velho {-1,60%)

Laranjeiras {-6,79%)

Ocupação informal

{variação populacional IBGE 1991-2000]

0 Flamengo {-7,51%)

+ + + Catete {-9,19%)

Glória {7,26%)

Bacia do Rio Carioca {17%]

O Júlio Otoni {43,44%)

Guararapes {35,60%]

Mapa 5 - Dinâmica populacional

A maioria das favelas encontradas no vale do Carioca, coincidentemente as que mais cresceram, localizam-se entre 6o e 200 m acima do nível do mar. Porém as encostas do vale também são habi­tadas por classes sociais de alto poder aquisitivo. Como demonstrado por estudos anteriores sobre o Maciço da Tijuca e confirmado neste estudo, o padrão de desenvolvimento urbano ao longo das

encostas do vale do Rio Carioca é caracterizado pela co-existência de favelas e lotes de grandes dimensões, concernentes com a legislação urba­nística vigente, demonstrando que o desenvolvi-­mento urbano formal e a presença de loteamen­tos destinados a classes sociais médias e altas não inibem a expansão de favelas nas suas imediações (GEOHECO-UFRJ/SMAC-PCRJ 2ooo).

Page 24: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Áreas favelizadas

Faixa 1: crescimento populacional acelerado e retração da floresta

Faixa 2: declínio do sub-bosque, incêndios e desmoronamentos eventuais

Faixa 3: despejo de lixo e modificações nas linhas de drenagem natural

APARU do Alto da Boa Vista

CONDIÇÕES DA FLORESTA: A FRONTEIRA ENTRE A

FLORESTA E A MALHA URBANA

Baseado em recentes estudos de ecologia da paisagem (Swenson and Franklin 2000, Forman I995· Laurence I99I), foram identificadas três principais faixas de fronteira entre a floresta e a malha urbana, que ameaçam a integridade da ve­getação do Parque Nacional da Tijuca (Mapa 6). Estas faixas correspondem a áreas de borda no entorno do Parque Nacional da Tijuca e aos eixos de penetração no parque, que se encontram atual­mente sob múltiplos impactos devido à sua inter­face com a matriz urbana.

Mapa 6 - Fronteira Floresta x Malha Urbana

Na borda mais externa (faixa situada entre 6o e 200 m acima do nível do mar), o crescimento populacional e a retração da floresta têm sido mais dinâmicos. É nesta faixa que estão localizadas a maioria das favelas do vale. Na faixa interna de fronteira (faixa de wom de largura acima do eixo viário situado a 200 m acima do nível do mar, Rua Almirante Alexandrino) verificou-se o declínio do sub-bosque, ocorrências ocasionais de incêndios na vegetação remanescente e desmoronamentos par­ciais a cada evento de chuva de maior intensidade.

Figura 3- A.Crescimento populacional acelerado e retração da floresta; B. Declínio do sub-bosque, incêndios

e desmoronamentos eventuais e C. Despejo de lixo e modificações nas linhas de drenagem natural ao longo

das margens das vias de penetração do Parque Nacional da Tijuca. Fotos: SCHLEE, Mônica Bahia, abril2002

TABELA4

LEGISLAÇÃO EnníciA

Fonte: PCRJ/Código de Obras 2000

Ano

1937

Decreto

Decreto 6ooo de 07 jo1(1937• artigo rr

1946

11947 Decreto 8547 de 22fo6fr946 Decreto 9002 de I3/II/I947

Decreto de 2o(o4(I970

Decreto 322 de 03(03(1976, artigos 8o, 81 e 82

Decreto 3155 de 21/07(1981, artigo 5

Critérios e observações

Para vias com até IO m de largura

Para vias com mais de 10m de largura (altura edificação =dobro da largura da via)

Legislação específica para algumas ruas dos bairros Catete e Flamengo

Substituído pelo decreto 322 em

Para edificações até a cota 50 m

Para edificações nos limites das divisas até a cota m

Número de pavimentos

4 a 6 pavimentos ou altura máxima 21m

10 pavimentos ou altura máxima som

Até 18 pavimentos

Até 15 pavimentos

Até

Page 25: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Nas bordas dos eixos de penetração ao parque (faixas de 30 m ao longo das margens das estra­das) foram observadas modificações nas linhas de drenagem natural, enclaves de espécies exóticas e ocorrências de despejo ilegal de lixo (FIGURA 3).

SISTEMA VIÁRIO E VERTICALIZAÇÃO DA

ARQUITETURA FORMAL

O sistema viário na bacia do Rio Carioca é ca­racterizado pela presença de grandes eixos trans­versais ao vale e um eixo longitudinal principal que percorre o fundo do vale da planície às suas encostas. São eles: o corredor viário na orla da Baía da Guanabara, formado pelas vias expressas ao longo do Parque do Flamengo; a Rua Pinheiro Machado, corredor viário interno de grande movi­mento diário, localizado ainda na planície do vale, que dá seqüência ao túnel Santa Bárbara em dire­ção a Botafogo; o corredor formado pelo complexo viário do túnel Rebouças, localizado acima da cota so; e o corredor tronco longitudinal, formado pe­las ruas Cosme Velho e das Laranjeiras, que liga os demais à principal praça do vale, o Largo do Machado e, mais adiante, à orla da baía. A cor­relação entre os traçados dos principais eixos de circulação viária e o processo de verticalização da arquitetura formal no vale do Carioca permite per­ceber que a abertura destes eixos contribuiu para o adensamento construtivo e, conseqüentemente, para o adensamento populacional do vale entre as décadas de I940 a I98o.

O processo de verticalização nesta área inicia­se com a promulgação do decreto 6ooo de 07 joi/1937, que institucionalizou o edifício de apartamentos como um novo tipo de habitação multi-familiar na cidade. Segundo Vaz (1994), esta tipologia passou a ser associada pelos agen­tes da especulação imobiliária ao conforto, à modernidade e, principalmente, a um novo sím­bolo de status social. A construção de edifícios

com 10 pavimentos ou mais, dependendo da largura das vias, deu início à febre construtiva que teve lugar no vale do Carioca a partir dos anos 1940.

O decreto 322 de 03/03/1976 regulamentou o gabarito de r8 pavimentos (independente da situa­ção da edificação no lote) até a cota 50 m acima do nível do mar. O decreto 3155 de 07/21/1981 defi­niu a altura de 15 pavimentos para edificações nos limites das divisas e 23 pavimentos para edifica­ções afastadas das divisas até a cota 50 m acima do nível do mar (ver Tabela 4). O impacto causado pelo processo desenfreado de verticalização da ar­quitetura formal sobre a infra-estrutura urbana foi muito grande. Redes de drenagem, esgotamento sanitário e o sistema de transporte local não acom­panharam o ritmo das construções formais e nem dos assentamentos informais. A paisagem local também sofreu uma transformação radical em conseqüência deste processo.

RESULTADOS

Fragmentos paisagísticos observados

Cinco fragmentos paisagísticos foram identifi­cados a partir da correlação dos dados apresenta­dos -<este estudo4 (Mapa 7). O primeiro refere-se à área onde foi implantado o Parque do Flamengo, resultado de aterro realizado na orla da Baía da Guanabara entre as segundas metades das déca­das de 1950 e 1960 (Mapa 7, tipo A). O segundo corresponde à área da planície localizada entre a orla da baía e o corredor formado pelo Túnel Santa Bárbara e Rua Pinheiro Machado (Mapa 7, tipo B), onde a massa edificada é altamente verticalizada, com predomínio de edifícios com gabarito supe­rior a 12 pavimentos, formando um tecido urbano compacto e muito denso (acima de 300 habfha, ver Tabela 3- Dinâmica populacional e 4- Legisla­ção edilícia).

Traçado atual do Rio Carioca 1500M

Tipo de ocupação A: Parque do Flamengo

Tipo de ocupação 8: densidade aproximada acima de 300 hab/ha

Tipo de ocupação C: densidade aproximada acima de 180 hab/ha

Tipo de ocupação 0: densidade aproximada 80 hab/ha

• Tipo de ocupação E: Parque Nacional da Tijuca (porção íntegra)

Mapa 7- Fragmentos Paisagísticos

O terceiro fragmento corresponde à área entre este último corredor e o eixo formado pelo com­plexo viário de acesso ao Túnel Rebouças (Mapa 7, tipo C). Neste trecho a verticalização mais intensa ocorre ao longo do corredor longitudinal, identi­ficado pela legislação como centro de bairro, com predomínio de edifícios de 6 a 12 pavimentos, tor­nando-se mais rarefeita à medida que a ocupação atinge as encostas laterais do vale, onde há dois enclaves de favelas (Júlio Otoni e Vila Pereira da Silva}. A densidade do bairro de Laranjeiras cor­responde a r86 habfha (Tabela 3 e 4).

O quarto fragmento corresponde à área com­preendida entre este último eixo (corredor Rebou­ças) e a faixa interna de fronteira floresta-malha urbana, à roo m de largura acima da Rua Almi­rante Alexandrino (Mapa 7, tipo D). Apresenta um tecido urbano rarefeito, com predomínio de lotes com maiores dimensões e edificações de até 4 pavimentos, juntamente com ocupações irregu­lares (Guararapes, Vila Cândido, Vila Imaculada Conceição e Cerro-Corá). A densidade dos bairros de Santa Teresa e Cosme Velho é da ordem de 8o habfha (ver Tabela 3 e 4). O quinto fragmento

RIDS E PAlSf'lGENS URBANélS_49

Page 26: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

TABELA 5. RECOMENDAÇÕES PARA O MANEJO DA PAISAGEM NA BACIA DO RIO CARIOCA

Fonte: SCHLEE 2002

Rio Carioca

Trecho

Parque Nacional da Tijuca

Favela Guararapes

Largo do Boticário à foz do Rio Carioca

Valor Avaliação

Excelente

5·52 Regular

Pobre

(Mapa 7, tipo E) corresponde à porção íntegra do Parque Nacional da Tijuca, acima da faixa interna de fronteira floresta-malha urbana identificada, sem ocupações formais ou informais.

PADRÕES AMBIENTAIS E RECOMENDAÇÕES PARA O

MANEJO DA PAISAGEM LOCAL

Através do diagnostico sócio-ambiental aplica­do neste estudo, foi possível estabelecer quatro padrões ambientais ao longo do vale do Rio Cario­ca (Mapa 8), que se correlacionam em sua maior parte, aos fragmentos paisagísticos previamente descritos. O trecho que percorre a floresta, carac­terizado por águas balneáveis, composição vegetal em avançado estágio de desenvolvimento e uma comunidade biológica que, apesar de afetada pela pressão urbana, manteve-se preservada, foi iden­tificado como padrão L Este trecho compreende a porção inicial do rio, que percorre o Parque Nacio-

Ação recomendada

Conservação com recomposição pontual das condições do solo e vegetação nas encostas e da biota aquática no leito do rio, e monitoramento constante para evitar futuros impactos.

Alterações morfológicas e ecológicas se fazem necessárias, com a restauração das condições das margens onde couber, da água, da vegetação ripária e da biota aquática.

Completa reestruturação urbanística e restauração ecológica.

nal da Tijuca até a principal estrutura de captação, conhecida como Mãe D'Água, localizada a 200m acima do nível do mar. Neste segmento, o moni­toramento das condições biofísicas para proteção das condições existentes e o restabelecimento de determinadas condições ecológicas já se fazem necessários, como por exemplo, a retirada de uma caixa de captação aparentemente abandonada que, em tempo de estiagem severa, desvia o curso do rio, comprometendo o habitat da biota aquática ao longo de um trecho com declive acentuado em meio ao degrau estrutural.

Para o trecho intermediário, que atravessa a co­munidade Guararapes e, logo a seguir, uma área de alto padrão residencial até o acesso ao Túnel Rebouças, entre 6o e zoom acima do nível do mar, foi estabelecido o padrão 2. No trecho que corresponde à Favela Guararapes, a poluição por despejo de resíduos sólidos e líquidos e as alte­rações morfológicas, ainda que em parte do seg­mento, já alteraram a configuração do leito do rio e o habitat da biota aquática, cujo estado de degradação é evidente. No entanto, ambas as aná-

50 .. fUDS Pn!SAGENS lJRflflNf4S

Traçado atual do Rio Carioca

Padrão 1: águas balneáveis, composição vegetal em avançado estágio de desenvolvimento e uma comunidade biológica que, apesar de afetada pela pressão urbana e alterações isoladas, manteve-se preservada

Padrão 2: configuração do leito do rio e habitat da biota aquática alterados devido à poluição por despejos sólidos e líquidos, mas o rio ainda pode ser visto e sentido, ocupação integrada ao rio

Padrão 3: configuração do leito do rio e habitat da biota aquática alterados e bastante degradados devido à poluição por despejos líquidos, alteração morfológica (canalização a céu aberto I, ocupação dissociada do rio

Padrão 4: poluição elevadíssima, ocorrências de obstrução de fluxo e ausência quase total de biota aquática, rio submerso na malha urbana, ocupação ignora totalmente o rio

Mapa 8- Padrões ambientais

lises bioquímicas e biológicas demonstraram que, mesmo necessitando de alterações morfológicas e ecológicas (principalmente em relação ao despejo de esgotos), este trecho ainda pode ser recupera­do, especialmente na porção superior da favela, onde a configuração do leito do rio ainda não foi alterada. Neste trecho, a ocupação, mesmo sendo informal, integra-se ao rio (as moradias voltam-se para o Carioca e o caminho principal que percorre a favela chama-se Via Carioca). O rio pode ser vis-

to, escutado e seu odor pode ainda ser sentido no dia-a-dia pela comunidade.

A qualidade da água do Rio Carioca atinge um nível crítico a partir do Largo do Boticário, para o qual foi definido o padrão 3, que corresponde à porção canalizada a céu aberto do Carioca, ainda perceptível pela população. Neste trecho, que se estende do Largo do Boticário ao terminal de ôni­bus do Cosme Velho, a ocupação formal deu as costas para o rio. Mesmo no espaço público jun-

RIOS E PAISAGENS URBANAS_ 51

Page 27: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

to ao terminal, o rio quase não é mais acessível visualmente. Ao visitante desinformado, ele pode passar desapercebido devido às altas muretas de concreto e às paredes de pedra que o confinam. A biota aquática se encontra severamente com­prometida e a poluição é bastante elevada devido às ligações clandestinas de esgoto na rede de dre­nagem, que se tornam mais freqüentes à medida que o rio se esconde sob a malha urbana. A partir daí, o padrão de qualidade decai drasticamente em direção a sua foz.

Para a porção totalmente submersa do rio foi estabelecido o padrão 4- O segmento final do rio é caracterizado por índices de poluição elevadíssi­mos, ocorrências de obstrução de fluxo, prolifera­ção de ligações clandestinas de esgoto na rede de drenagem e, conseqüentemente, pela quase total ausência de biota aquática. É também o trecho que percorre a área do vale mais densamente ocupada. Nele, as intervenções terão um custo muito mais alto, e os programas de recuperação serão muito mais difíceis de serem encampados pela socieda­de, uma vez que o rio não é mais percebido nem mais faz parte da sua vida cotidiana.

CONCLUSÕES E DESDOBRAMENTOS DESTE ESTUDO

A correlação entre os parâmetros estudados revelou os efeitos drásticos dos processos de de­senvolvimento urbano ainda em uso na cidade do Rio de Janeiro e permitiram identificar gradientes contrastantes de qualidade ambiental ao longo do perfil longitudinal do Rio Carioca. As intervenções humanas no vale do Rio Carioca induziram a um continuum de transformação que cresce em in­tensidade desde o alto Carioca, atualmente ainda preservado dentro dos limites do Parque Nacional da Tijuca, em direção ao baixo Carioca, enterrado sob a densa matriz urbana, e à sua foz, às mar­gens da Baía da Guanabara. Inversamente, e não por acaso, o continuum de qualidade do ambiente

descreve uma trajetória oposta. Quanto maior a transformação na paisagem, conforme os padrões de urbanização existente, mais intensos e negati­vos os efeitos na qualidade ambiental local.

Como ocorreu na cidade como um todo, o de­senvolvimento urbano no vale do Rio Carioca le­vou a uma progressiva perda da floresta tropical, que contribuiu para intensificar deslizamentos nas encostas (Coelho Netto 1999, GEOHECO­UFRJJSMAC-PCRJ 2ooo, Abreu e Coelho Netto in: Abreu 1992).

Porém, os dados do presente estudo indicam que a progressiva perda da floresta nesta bacia vem sofrendo uma desaceleração nos últimos anos. Tal qual ocorreu no final do século XIX, esses resulta­dos sugerem que as intervenções humanas podem ser ativamente restauradoras e, ao mesmo tempo, preventivas, ao invés de apenas destrutivas. Em conseqüência das ações implementadas localmen­te durante as décadas finais dos séculos XIX e XX, a floresta tropical ainda mantém-se razoavelmen­te preservada na porção superior da bacia, apesar da forte pressão exercida pelo crescimento urbano no entorno ao Parque Nacional da Tijuca.

A experiência local durante as décadas de r98o e I990 demonstrou que ações conjuntas co­munidade-administração pública podem ter efeitos positivos sobre o ambiente urbano. Inver­samente, as intervenções públicas levadas a cabo pelas administrações estaduais e municipais mais recentemente junto à foz do Carioca demons­tram que os rios urbanos cariocas ainda são con­siderados como problemas e obstáculos a serem transpostos e seus atributos cênicos e ecológicos dificilmente são considerados pelo poder público como elementos de valorização da paisagem urba­na carioca.

O desenvolvimento urbano continua a avançar sobre as encostas do vale, como acontece em todas as encostas do Maciço da Tijuca. Indicadores bio­lógicos e de ecologia da paisagem demonstram que o processo de transformação da paisagem vem ocorrendo com especial intensidade na área que compreende o degrau estrutural (onde o decli-

52 ~RIOS PAISAGENS

ve é muito acentuado), entre os bairros de Santa Teresa e Cosme Velho. Este trecho vem sofrendo r. rtes impactos e se degradando rapidamente !O ' nas últimas décadas. E aí que se encontram os mais contrastantes níveis sociais encontrados

nesta bacia. o padrão de desenvolvimento urbano nesta

área é caracterizado pela co-existência de parcela­mentos regulares para classes de alto poder aqui­sitivo e assentamentos irregulares ocupados por comunidades de baixa renda. É nesta área onde a retração da floresta tem sido mais dinâmica, pro­duzindo impactos como a fragmentação do habitat da fauna endêmica e o declínio da biota aquática em termos de riqueza de espécies e de biomassa.

Ainda que progressos significativos tenham sido alavancados pela comunidade local e pelo po­der público em direção à construção de uma cons­ciência coletiva dos valores históricos, culturais e ambientais, o Rio Carioca e seu vale continuam a sofrer os mesmos problemas sociais e ambientais que assolam a cidade como um todo e que tendem a aprofundar-se se futuras abordagens de plane­jamento e gestão do ambiente urbano continua­rem a seguir os mesmos padrões. Uma solução ambientalmente responsável para a regeneração do Rio Carioca ao longo de todo o seu curso ainda não foi levada a cabo. Essas são importantes lições a serem aprendidas e aplicadas na gestão da paisa­gem de outras sub-bacias da cidade.

Como desdobramento deste estudo, estão em construção mapeamentos sócio-ambientais das bacias hidrográficas que compõem a Área de Pla­nejamento I da cidade do Rio de Janeiro, utilizan­do metodologia semelhante, com a agregação de outros indicadores. Alguns elencados com a parti­cipação da comunidade local organizada, com vis­tas a possibilitar a avaliação de aspectos conside­rados relevantes para a melhoria da qualidade de vida. Outros, devido a disponibilização de novos dados pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro a partir de 2002.

São eles: dinâmica social (espacialização dos estratos sociais, áreas atendidas por programas

sociais, situação da criminalidade); áreas reflores­tadas; áreas atendidas por infraestrutura (abaste­cimento d' água, coleta de lixo, drenagem, esgo­tamento sanitário e sistema transporte); equipa­mentos públicos (creches, escolas, espaços livres públicos (praças, mirantes, jardins e parques), equipamentos culturais, unidades policiais, uni­dades de saúde e estruturas de captação de água); interface político-administrativa (divisão admi­nistrativa, abrangência de atuação dos diversos órgãos que atuam nas sub-bacias) e legislação ur­bana (zoneamento e grau de proteção dos imóveis de valor cultural significativo).

Ao mapear as demais bacias que compõem a Área de Planejamento I da cidade do Rio de Janei­ro, a meta é incorporar a prática de levantamento, medição e análise de parâmetros biofísicos e de ecologia da paisagem, correlacionando-os a parâ­metros urbanísticos e sócio-demográficos, na ava­liação da qualidade ambiental urbana carioca.

A adoção do mapeamento sócio-ambiental como instrumento inclusivo de diagnóstico, pla­nejamento, reestruturação e gestão, utilizada nes­te estudo, pode servir como um precedente no de­senvolvimento de novas e dinâmicas abordagens aplicadas à regeneração da paisagem em contextos tropicais urbanos. A abordagem transdisciplinar aplicada neste estudo pode vir a ser transferível, com alguns ajustes, para outras áreas da cidade, ou mesmo, para outros ambientes tropicais.

E Pt-1IS~1GENS URBPlNAS,"_53

Page 28: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

NoTAS

r- Tanto a Resolução CONAMA (Conselho Nacional do

Meio Ambiente) oor(r986, quanto a Lei 9433/1997, que

regulamentou a Política e o Sistema Nacional de Recursos

Hídricos, estabeleceram a bacia hidrográfica como área de

planejamento e gestão ambientais.

2- Este capítulo foi escrito a partir do trabalho desenvolvido na

minha dissertação de Mestrado em Arquitetura da Paisagem,

intitulada Landscape change along the Carioca River, in Rio de

janeiro, Brazi!, defendida na Pensylvania State University

em 2002, sob orientação dos professores que assinam a co­

autoria dos artigos.

3 - As espécies identificadas como sensíveis à poluição

pertencem às taxa Ephemeroptera, Plecoptera, Trichoptera

e Coleoptera. As espécies tolerantes a níveis intermediários

de poluição pertencem às taxa Decapoda (Crustacea),

Trichoptera, Odonata, Hemiptera, Diptera, Coleoptera

(Insecta) e Pelecypoda (Bivalvia). As espécies tolerantes

a níveis maiores de poluição pertencem às taxa Diptera

(Simulidae y Chironomidae), Gastropoda (Mollusca) e

Oligochaeta (Annelida).

4 - O mapa 9 foi elaborado com base em pesquisas de campo

conduzidas ao longo do curso do Rio Carioca entre maio e

setembro de 2001, no exame dos mapas de evolução do uso

do solo no período de 1972 a 1999, e na correlação entre a

legislação edilícia, relativa a gabarito das edificações, e na

configuração do sistema viário local.

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Page 29: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

A PAISAGEM DA BORDA: , - ,

UMA ESTRATEGIA PARA A CONDUÇAO DAS AGUAS, DA

BIODIVERSIDADE E DAS PESSOAS

INTRODUÇÃO

Em 2003, com a condição inicial de contribuir­mos com aspectos referentes à caracterização da vegetação e ao paisagismo urbano, integramos um grupo de pesquisadores em águas urbanas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Formada por professores, pesquisadores e estu­dantes de diversos departamentos, destacando-se o Departamento de Engenharia Hidráulica e Sani­tária, e de outras unidades da USP, além de con­sultores externos, esta equipe vinha de um projeto anterior de criação de um "Sistema de Suporte à Decisãd' (SSD). Esse sistema tinha como objetivo o gerenciamento da água urbana e contava com representantes das áreas de hidrologia, qualidade da água, transporte de sedimentos, planejamento urbano, ecologia, além de especialistas em siste­mas de informações geográficas e desenvolvimen­to de software.

O seu estudo de caso, a bacia do rio Cabuçu de Baixo, situada integralmente no município de São Paulo, se tornou o objeto de um plano visando en­frentar prioritariamente os problemas relativos a inundações, contaminação de recursos hídricos, degradação do solo e saúde pública.

Entretanto, esse objetivo inicial, no processo de desenvolvimento do plano, acabou sendo am· pliado, englobando aspectos de planejamento am-

Paulo Renato Mesquita Pellegrino Paula Pinto Guedes

Fernanda Cunha Pirillo Sávio Almeida Fernandes

biental e arquitetura paisagística. Nossa contribui­ção específica de arquitetos paisagistas e bióloga ao Plano de Bacia Urbana se deu com a aplicação de conceitos de ecologia, conservação e recupera­ção ambiental, e, neste sentido, desenvolvemos o material que apresentamos aqui como um progra­ma de recuperação ambiental e da paisagem.

O conjunto de princípios que utilizamos como base para os procedimentos de pesquisa que rea­lizamos no âmbito deste projeto e as proposições que ajudamos a delinear para as intervenções es­tratégicas indicadas no plano são o cerne deste capítulo.

O objetivo geral do Plano de Bacia Urbana era buscar proposições para interceder na redução ej ou eliminação das inundações que afetam trechos desta bacia, atuando como modelo para outras ba­cias urbanas detentoras de problemas semelhan­tes. O nosso interesse em participar desta equipe multidisciplinar se deu pela oportunidade de tes­tarmos com especialistas em tecnologias aplicadas _ à infra-estrutura urbana, especialmente de hidro­logia e hidráulica, o papel que os espaços abertos urbanos, livres de edificações e vegetados, podem desempenhar para o atendimento desse objetivo, entre outros.

f~ IOS PAISHGENS Uf\Bf1N0-1S -~57

Page 30: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

UM TRECHO NA BORDA DA RESERVA DA BIOSFERA

DO CINTURÃO VERDE DA CIDADE DE SÃO PAULO

A área de estudo localiza-se no extremo norte da cidade de São Paulo, e está inserida na porção da região metropolitana abrangida pela bacia hi­drográfica do Alto Tietê, aproximadamente entre as latitudes 23° 30' 36" e 23° 24' 42" sul, e as lon­gitudes 46° 42' 21" e 46° 38' so" oeste.

Verifica-se que ao longo das margens do córre­go Bananal existem muitas áreas com ocupação irregular, notadamente favelas. Do ponto de vista hidrológico, ocorre na área da bacia um reservató­rio de regulação de vazões ("Piscinão do BananaY') com o objetivo de redução das enchentes no local.

Processos desordenados e muitas vezes caóti­cos de urbanização estabeleceram-se a partir da região central e no entorno do córrego até o sul da bacia, à medida que o relevo e as declividades se tornam mais brandos.

A porção norte da bacia, detentora das mais al­tas declividades, é formada por vegetação florestal, cuja maior parte se encontra preservada pela exis­tência do Parque Estadual da Cantareira. Esta área de mata atlântica constitui a maior reserva flores­tal localizada em uma área urbana do planeta, e é abarcada pela Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo.

Estas características condicionam o uso e ocu­pação do solo, sendo que atualmente a sub-bacia do córrego Bananal possui cerca de 50% de urba­nização e so% de vegetação.

As reservas da biosfera têm por objetivo a ges­tão correta dos recursos naturais e a busca do desenvolvimento sustentável através da pesqui­sa científica, da conservação, da biodiversidade, da promoção social e da integração dos diversos agentes que atuam no seu interior e entorno.

A região abrangida pela Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo faz parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, e abarca vá­rios municípios incluindo toda região metropolita­na de São Paulo- RMSP. Ocupando um território de cerca de r.6oo.ooo ha, contém aproximadamen-

te 19 milhões de habitantes, o que representa uma densidade demográfica superior a 1.100 habjkm2

Distintamente de outras reservas da biosfera baseadas exclusivamente na conservação de áreas naturais preservadas, com pouca ou nenhuma in­terferência humana, a manutenção da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde só poderá ser perpetu­ada se forem efetuadas medidas que conciliem a preservação de uma região altamente afetada pe­los problemas inerentes aos de uma megacidade como São Paulo, quarta maior região metropolita­na do mundo. Acredita-se que este trabalho pode­rá contribuir com várias propostas e metodologias pioneiras no contexto da RMSP e da RBCVSP.

ÜS ESPAÇOS LIVRES COMO UMA

INFRA-ESTRUTURA VERDE

Sabe-se que os processos de desmatamento com a de retirada da vegetação original, o reafei­çoamento topográfico para a implantação de vias e edificações, a impermeabilização do solo e a im­plantação de obras de drenagem convencionais modificam hidrologicamente uma bacia hidro­gráfica aumentando a velocidade de escoamento das águas para o seu curso principal, contribuindo para o agravamento das inundações e a poluição difusa das águas. Contudo, reduções significativas da cobertura vegetal são intrínsecas ao estabele­cimento das áreas urbanas, proporcionalmente à ampliação dos processos de impermeabilização do solo. Este aparente paradoxo constitui a questão principal que decidimos enfrentar neste trabalho, com o objetivo de testar outros modelos de plane· jamento ambiental e do desenvolvimento urbano, e para proposição de espaços livres capazes de aliar a manutenção e f ou recuperação de fragmentos de vegetação com os demais usos urbanos.

58. R!DS E PAISAGENS URBANAS

Dentro desse contexto, a criação de uma assim chamada infra-estrutura verde na sub-bacia do córrego Bananal, pertencente à bacia do rio Ca­buçu de Baixo e aqui adotado como área piloto, permitiu a exploração de um novo paradigma para a drenagem das águas, que aliasse a melhoria da qualidade de vida urbana com a recuperação dos ecossistemas locais.

Apesar dos ambientes urbanos ou suburba­nos e a biodiversidade ainda serem vistos como mutuamente exclusivos, alguns trabalhos de pla­nejamento urbano mais recentes reconhecem os serviços ecológicos que a manutenção da biodi­versidade no ambiente urbano pode trazer tanto para uma maior sustentabilidade dos fragmentos remanescentes no interior das zonas urbanizadas, como para áreas naturais em suas áreas de influ­ência (Hellmund & Smith, 1993). Nestes traba­lhos, as áreas de vegetação em sítios urbanos são vistas como grandes desafios de manejo para os planejadores preocupados com a biodiversidade, e não apenas como terrenos baldios biologicamente pouco significativos, de pouca importância sócio­econômica ou meramente justificados para o lazer humano.

Este interesse pela biodiversidade em áreas ur­banas iniciou-se a partir da década de 90 e, ape­sar do maior foco dos estudos ecológicos ser os ambientes altamente conservados, tem aumenta­do rapidamente o número de pesquisadores que trabalham na manutenção da biodiversidade nas cidades e nas paisagens suburbanas (Soulé, 1991). A conservação urbana, que teve um menor inte­resse para os pesquisadores e conservacionistas nos anos 1960 e 1970, se tornou um movimento maior e sua importância tende a aumentar pro­gressivamente com a ampliação da concentração populacional em áreas urbanas e os inúmeros pro­blemas decorrentes (Heywood, 1995). Assim, as abordagens próprias da Biologia da Conservação, que tratam comumente da seleção de áreas com prioridade de conservação e do uso de corredores, etc. têm sido estendidas levando-se em considera­ção o estudo de áreas urbanas (Soulé et alii, 1991).

Paralelamente, um dos principais desafios dos pesquisadores que trabalham nas áreas de conser­vação e preservação ambiental é a mensuração da natureza e da taxa de fragmentação dos ambientes pelo homem e a determinação das suas implica­ções na redução da diversidade biológica. Porém, a quase totalidade dos trabalhos também se res­tringe às áreas bem preservadas, onde a ativida­de humana é pequena. Pouca importância ain­da é dada aos fragmentos florestais urbanos, ou próximos das cidades (Morellato & Leitão Filho, 1995). É necessário o desenvolvimento de pesqui­sas sobre a utilização dos conceitos e critérios da Ecologia da Paisagem associados aos urbanísticos, como a que propomos aqui, a fim de criar novas abordagens que visem conciliar a manutenção de fragmentos de vegetação ou de ecossistemas natu­rais à ocupação humana.

Do mesmo modo, a idéia de uma infra-estru­tura verde, agregando corredores verdes urbanos ( Grecnways), alagados construídos ( constructed we­tlands), reflorestamentos de encostas e ruas verdes, entre outras intervenções de baixo impacto e incor­porando melhores práticas de manejo das águas, poderá fornecer importantes contribuições para um desenho ecologicamente mais eficiente da cida­de, reforçando o papel crucial dos espaços livres ve­getados para uma maior sustentabilidade urbana.

Um sistema de espaços livres que agregasse todos esses elementos, que aqui denominamos de infra-estrutura verde, oferece condições de ir além das funções que um urbanismo e um plane­jamento urbano mais convencional reservam para estes espaços, ou seja, o do atendimento daquelas funções relacionadas à circulação e acessibilidade, ou de permanência como contemplação e recre­ação, estando aí uma das origens da percepção eminentemente estética ou funcionalista que ain: da hoje restringe a prática do projeto dos espaços livres em nosso meio, naquilo que é conhecido como paisagismo. Assim, na escala e nas condi­ções dadas para este estudo, assumimos que es­tes espaços podem exercer várias outras funções, como conectar fragmentos de vegetação, conduzir

RIOS E PAISr1GENS URBANAS. 59

Page 31: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

as águas com segurança, oferecer melhorias mi­cro-climáticas, atender os usos relacionados à mo­radia, trabalho, educação e lazer, garantindo uma maior segurança social, acomodar as funções das demais infra-estruturas urbanas como transpor­te e abastecimento, além de atender os objetivos mais tradicionais de recreação e melhorias am­bientais e estéticas.

O sistema paisagístico proposto cria um quadro de referência para que o desenvolvimento urbano e os projetos específicos dos diversos setores se­jam embasados nos sistemas naturais atuantes na região e no caráter único da paisagem local; por­tanto, o que procuramos foi o estabelecimento de um contínuo "naturaY' de espaços vegetados (ditos verdes) de usos diversificados, que cumprissem as funções múltiplas de:

• Proteção e controle da densidade das áreas edi­ficadas, contribuindo para o conforto ambiental e a saúde pública;

• Contribuição para a qualidade das águas ur­banas, com a conformação de um sistema de drenagem que propicie uma maior retenção, filtragem e sedimentação dos resíduos difusos que seriam lançados diretamente nos canais principais;

• Conservação dos espaços rurais de produção; • Recreação e lazer: educação ambiental, estudo

do meio, interpretação; • Proteção e conservação dos fragmentos de vege­

tação de mata atlântica em áreas urbanas, que, além de contribuir significativamente como os objetivos mencionados acima, também servirão como zona tampão ou de amortecimento para restringir o avanço da ocupação humana sobre o Parque Estadual da Cantareira.

Visando assegurar:

• A adequada fluidez da drenagem hídrica e at­mosférica;

• A diversidade biológica dos ecossistemas e sua sustentabilidade.

Os setores propostos para ter sua estrutura urbana consolidada e qualificada, bem como as áreas previstas para ocupação pela população a ser relocada das áreas de risco deverão atender as seguintes diretrizes:

• Preservar espaços abertos, usos rurais, debele­za cênica e áreas ambientalmente relevantes;

• Tirar vantagem do projeto de edificações com­pactas;

• Criar uma variedade de escolha e de oportuni-dades de habitação;

• Integrar diferentes tipos de uso do solo; • Criar vizinhanças mais "caminháveis"; • Prover variedade nos meios de transporte;

Fomentar espaços distintos, atraentes, com um forte significado de lugar;

• Fortalecer e dirigir o crescimento para as áreas já construídas e ocupadas;

• Prever zonas de transição entre as áreas já ocu­padas, a ocupar, as áreas florestais e as áreas legalmente protegidas.

Denomina-se infra-estrutura verde, portanto, o conjunto de espaços abertos ou áreas verdes que ligam o meio urbano ao campo vizinho. Estes es­paços não construídos, seja em razão de seu estado inicial, seja em função de um manejo, situam-se no interior e nas proximidades dos setores reser­vados à construção, sendo predominantemente vegetados e bastante diversificados quanto as suas dimensões, exercendo as múltiplas funções de:

• Manter, criar e enriquecer os habitats e proteger a diversidade de espécies;

• Proteger os recursos hídricos e ajudar no ma­nejo das águas pluviais, reduzindo a exposição dos moradores às áreas de risco de inundação;

• Contribuir para a melhoria do microclima lo­cal, bem como, pelo efeito acumulativo, influir no conjunto do espaço urbano metropolitano;

• Reduzir os problemas de saúde pública pelo controle do contato com solo e água contami­nados, 'Jem como pela promoção de atividades

físicas, e redução do estresse pelo oferecimento de espaços para contemplação, interação social e expressão cultural;

• Criar um retorno financeiro de longo alcance em termos de valor das propriedades, investi­mentos urbanos e, finalmente, no aumento da base fiscal municipal;

• Oferecer uma alternativa menos custosa que a de uma infra-estrutura urbana tradicional,

• cujo valor aumenta ao invés de diminuir com o tempo.

Este novo enfoque avança sobre os existentes de redes verdes e de sistemas de espaços livres, por aplicar o conceito de procl. ção e de oferecimento de recursos básicos para a sustentação dos espaços urbanizados que os espaços não edificados podem desempenhar, do mesmo modo que encontramos o conceito de infra-estrutura no abastecimento de água, no viário ou na distribuição de energia. São as grandes redes que estruturam os espaços da cidade e que de certa maneira contribuem para a definição de padrões de habitação, qualidade de vida, saneamento, saúde pública, etc.

O aspecto diferencial desta abordagem é que as áreas livres verdes devem ser entendidas como parte da infra-estrutura urbana, e não simples­mente consideradas em função de seus aspectos estéticos. Na realidade, as áreas verdes propostas articulam o tecido deste trecho da cidade com o sistema viário e as edificações, abrigando as fun­ções já referidas e as tradicionalmente emprega­das como lazer, recreação e contemplação.

A vegetação, o solo, o reafeiçoamento topográ­fico e as estruturas de apoio, quando combinadas com outros equipamentos urbanos e redes de sustentação, fazem parte de soluções tecnológi­cas aplicadas ao desenho da paisagem para várias situações sócio-ambientais, como tão duramente expressas neste setor da cidade.

Este programa prevê, por exemplo, enfrentar parte do grande problema da poluição difusa ori­ginada pelas superfícies pavimentadas das ruas, calçadas e áreas de estacionamentos através de

"ruas verdes". São implantados tratamentos espe­cíficos na, áreas residuais ao longo das vias: va­letas verdes, alagados construídos e demais solu­ções de tratamento das superfícies que recebem e conduzem as águas pluviais no lugar das galerias de águas pluviais tradicionais. Por esta alternati­va, a água das chuvas poderia ser captada e limpa através da vegetação, para depois se infiltrar no solo ou ser encaminhada ao córrego (minimizan­do a necessidade de um sistema subterrâneo de captação de águas pluviais).

ÜS PRINCÍPIOS APLICADOS EM UM PROCESSO DE

AVALIAÇÃO E PLANEJAMENTO

Para o atendimento desses objetivos dentro da realidade ambiental encontrada, e tendo ao mesmo tempo de atender aos objetivos específi­cos do plano de bacia urbana no qual se insere, foram adotadas abordagens multidisciplinares provenientes principalmente da geografia, eco­logia, arquitetura e urbanismo, com a utilização e integração dos conceitos de planejamento am­biental, ecologia da paisagem, corredores verdes (greenways) e alagados construídos ( constructed wetlands). Esses princípios foram utilizados para a definição das intervenções aqui descritas, e serão rapidamente apresentados a seguir.

Planejamento ambiental

Atualmente no Brasil, os conceitos sobre plane­jamento ambiental ou da paisagem confundem-se erroneamente com os próprios de projetos paisa­gísticos. Nestes trabalhos, em geral, a destinação ou definição dos usos é feita sem a consideração de aspectos teóricos e metodológicos de planeja­mento ambiental e sem a incorporação de aspec­tos ecológicos. Nesse contexto, são reservados a "áreas verdes" os espaços não incorporados pelos

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projetos em lotes ou sistema viário, e que não ser­viriam para outros usos, seja pela legislação ou por dificuldades técnicas e econômicas para sua comercialização.

Um dos pesquisadores pioneiros na área de planejamento ambiental foi o arquiteto paisagis­ta Ian McHarg, que lançou em 1969, Design with Nature, a obra seminal que veio marcar uma pos­tura frente à avaliação e incorporação dos valores ecológicos nos planos e projetos. O método expos­to por McHarg há quase quarenta anos continua válido, sendo porém, infelizmente, ainda muitas vezes desconsiderado pelos planejadores, urba­nistas e arquitetos que acabam por utilizar apenas critérios sócio-econômicos, desconsiderando a base natural e as relações ecológicas que as novas estruturas projetadas passam a definir com ela.

Baseados nestes conceitos elaborados inicial­mente por McHarg, e posteriormente desenvolvi­dos pela ecologia da paisagem, foi que aplicamos às unidades paisagísticas identificadas de acordo com as características apresentadas pela área de estudo, um processo de avaliação das suas capaci­dades e adequações aos processos de recuperação das bases naturais e da consolidação da urbaniza­ção em trecho da bacia selecionado.

Ecologia da paisagem

A noção de "landschaft'' (paisagem) dominou toda a geografia germânica desde a metade do século XIX. Mas foi somente no final da década de 3c que o termo "ecologia da paisagem" (Lan­dschaftsokologie) foi criado pelo geógrafo e eco­logista alemão Carl Troll, inspirado na observação de fotografias aéreas, em 1937. Segundo Troll: "De lados completamente diferentes, da ciência da ve­getação florestal e da interpretação biológica de fotos aéreas e da geografia como ciência da paisa­gem e ecologia, todos os métodos das ciências na­turais encontram-se aqui" (Troll, 1939 [tradução] apud Scheiber, 1990). E a definiu como: "o estudo de uma complexa rede de causa e efeito entre as

comunidades vivas (biocenoses) e as condições ambientais preponderantes em seções específicas da paisagem. Isto se torna aparente numa classi­ficação do espaço natural em diferentes ordens de tamanho'' (Troll, 1968 apud Scheiber, 1990).

Na Europa, a ecologia da paisagem é bastante utilizada no planejamento do uso das terras e em tomadas de decisão (Vink, 1983). Na Tchecoslová­quia, estudos no nível de paisagem servem como base na determinação regional da capacidade de uso das terras (Ruzicka et al, 1988 apud Turner & Gardner, 1989).

A ecologia da paisagem enfatiza grandes áreas e os efeitos ecológicos dos padrões espaciais dos ecossistemas. O que a distingue é a consideração da estrutura espacial destes, que freqüentemente nos estudos ecológicos tradicionais são assumidos como sistemas espacialmente homogêneos (Tur­ner & Gardner, 1989). Os estudos ecossistêmicos enfocam a integração vertical dos objetos dentro de um sistema e seus modelos geram poucas informações relevantes sobre as interações espa­ciais, como por exemplo, entre unidades de paisa­gem ou categorias de uso da terra adjacentes.

Talvez seja de Risser (1990) a definição mais simples e precisa desta nova ciência, definindo-a como o estudo de processos naturais e humanos que operam dentro de áreas geograficamente he­terogêneas de dimensões variáveis entre poucos e muitos quilômetros quadrados.

Numa outra definição, Forman & Godron (1986) concebem a ecologia das paisagens como:

"O estudo da estrutura, função e mudança numa área heterogênea de terra composta de ecossistemas interagindo". Esta ciência considera especificamente: o desenvolvimento e a dinâmica da heterogeneidade espacial, as interações e tro­cas entre paisagens heterogêneas, a influência da heterogeneidade espacial em processos bióticos e abióticos, e o manejo da heterogeneidade espacial (Turner, 1989).

Outros aspectos relevantes que o estudo das paisagens detém sobre trabalhos convencionais em ecologia são a noção das escalas e a relevância

62 _H![)S PAISAGENS UR8AN!~S

da investigação dos fatores humanos que inter­vêm sobre as respectivas áreas ou paisagens.

Sob uma ótica mais pragmática, pode-se consi­derar a paisagem como um conjunto interativo de manchas, corredores e matrizes, e a Ecologia da Paisagem como a ciência que estuda os processos de fragmentação, isolamento e conectividade re­alizados pelo homem nos ecossistemas naturais para investigar a influência de padrões espaciais sobre os processos ecológicos.

Os processos de fragmentação causam a rup­tura na continuidade dos ecossistemas naturais, gerando dois efeitos distintos e inter-relacionados: diminuição da área e redução da conectividade entre eles. Estes processos restringem, ainda, as possibilidades de recolonização e aumentam os riscos de extinção local das espécies em diferentes graus, dependendo da estrutura espacial resultan­te, e ameaçam de forma direta a manutenção da biodiversidade (Soulé, 1991).

A conectividade (Tischendorf & Fahrig, 2ooo) é a capacidade de uma paisagem facilitar fluxos entre os seus elementos bióticos. São elementos de conectividade: os corredores, a permeabilidade da matriz, os stepping stones, a proximidade (per­colação) entre as manchas ou fragmentos de ecos­sistemas naturais. Estes conceitos aplicados serão descritos a seguir.

Corredores correspondem a estruturas lineares da paisagem que diferem das unidades vizinhas e que ligam pelo menos dois fragmentos de ecos­sistemas naturais anteriormente unidos (Beier & Noss, 1998).

São características dos corredores:

• facilitar fluxos hídricos e biológicos na paisa­gem;

• reduzir os riscos de extinção local e favorecer as recolonizações, aumentando a sobrevivência das populações;

• atuar como suplemento de habitat na paisa­gem;

refúgio para a fauna quando ocorrem perturba­ções; facilitar a propagação de algumas perturbações, tais como o fogo ou certas doenças.

Outro conceito da ecologia da paisagem que en­contramos grande potencial de aplicação em nos­sa área de estudo foi o de stepping stones (pontos de ligação, trampolins ecológicos, caminho das pedras), estas pequenas áreas de habitat dispersas pela matriz (no nosso caso as áreas urbanizadas ou em processo de urbanização) que facilitam o movimento das espécies em uma determinada paisagem, possibilitando um aumento na taxa de recolonização dos habitats favorecendo a chegada de animais e sementes. Sua eficácia depende da resistência da matriz aos fluxos e da densidade; assim, no caso da área de interferência do córre­go Bananal, a matriz formada pelas áreas urbanas apresenta áreas de não-habitat para as espécies vegetais e animais de interesse à conservação, com as manchas correspondendo aos fragmentos florestais existentes e aos que estão previstos para sofrerem processos de recuperação.

Portanto, para a ampliação da conectividade entre estas manchas prevê-se a criação de uma área de vegetação recomposta a partir do plantio de espécies nativas, que formará um importante corredor ecológico com o objetivo de conectar os ecossistemas naturais presentes na paisagem da área de intervenção. Esta área deverá formar o Parque Linear do Bananal, onde se prevê a retirada da urbanização marginal e a recuperação das áreas de mata ciliar. Ainda, para ampliar o transporte de sementes, pólen, plântulas e animais entre as manchas de vegetação em foco, planejou-se a criação de stepping stones que corresponderão a pequenas praças ou áreas de lazer arborizadas com espécies nativas e predominantemente zoocóricas (que possuem sementes disseminadas por animais).

RIOS E PAISAGENS URBf1Nf~S- 63

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Corredores verdes urbanos (Greenways)

Os corredores verdes ou greenways, do iglês (Fris­chenbmder & Pellegrino, 2004), têm função eco­lógica definida pelos conceitos de "ecologia da pai­sagem". Contudo, é necessário estabelecer outras relações para esses elementos lineares, ampliando sua importância sócio-econômica e tornando-os mais compatíveis aos usos urbanos.

De modo geral, os corredores verdes urbanos são elementos lineares que servem como conexão entre um fragmento verde e outro, e que integram equipamentos e outras funções importantes para a cidade.

Entre as funções básicas dos corredores verdes urbanos estão:

• Manutenção da biodiversidade: tem como obje­tivo permitir a movimentação das espécies ani­mais e vegetais, garantindo assim a continuida­de das espécies. Em São Paulo, os corredores podem ampliar a movimentação e a dissemi­nação de animais (aves e pequenos animais) e vegetais (principalmente sementes);

• Proteção dos cursos d'água: tem como objeti­vo preservar a qualidade da água e recuperar as áreas com interesse para drenagem, principal­mente as várzeas e fundos de vale;

• Criação e incremento de espaços para recreação e cultura: tem a função de abrigar áreas de la­zer e priorizar o uso de transportes alternativos não poluentes. Podem incorporar elementos culturais importantes para a população, conec­tando-os e permitindo um percurso cultural e recreativo pela cidade.

Os corredores podem se configurar na sub-ba­cia do Bananal através dos seguintes elementos:

• mas arborizadas: vias que recebem tratamen­to paisagístico e servem de interligação entre áreas verdes. Devem funcionar como marcos visuais, proporcionando a possibilidade de um percurso pelas áreas verdes da cidade;

parques lineares: faixas destinadas ao lazer e à prática de esportes. Devem contar com equipa­mentos esportivos e recreativos como quadras, playgrounds, ciclovias, etc.

• faixas de preservação de cursos d'água: têm como objetivo recuperar e conservar a vegeta­ção marginal dos rios e córregos;

• faixas lindeiras a linhas de transmissão: ele­mentos já lineares existentes na cidade que po­dem receber tratamento paisagístico;

• áreas revegetadas ao longo de vias: espaços li­vres com potencial para aproveitamento junto às grandes vias de circulação, como por exem­plo a principal via de fundo de vale da bacia, a avenida Inajar de Souza.

Pode-se avaliar as vantagens de um corredor verde como parte de uma estrutura que integre funções ecológicas e urbanas para a sub-bacia do Bananal através dos seguintes critérios:

- Fatores climáticos e de qualidade do ar A existência de vegetação urbana é responsável

pela melhoria microclimática e do conforto tér­mico mediante fatores como o aumento da umi­dade e sombreamento, redução da temperatura e proteção contra ventos. A qualidade do ar tam­bém é significativamente melhorada por meio da interceptação das partículas e absorção de gases poluentes pelas plantas. Outro fator considerável do <:feito das plantas sobre o aumento da quali­dade de vida urbana é relacionado à redução da poluição sonora.

- Fatores biológicos A incorporação de um sistema de corredores

verdes tornaria mais fácil a movimentação de ani· mais e vegetais de uma área verde até a outra, per­mitindo que o habitat de certas espécies não seja exclusivo de uma determinada área e facilitando a recuperação ambiental destas áreas. A movimen­tação permitiria que parte das espécies se dissemi· nasse pelas áreas verdes da cidade, diminuindo as possibilidades de extinção local.

• Fatores hidrológicos Os rios fazem parte de um sistema complexo

formado por uma série de elementos como solo, energia, água, que expressam sua dinâmica natural nos cursos d'água. As alterações artificiais advindas dos projetos de engenharia alteram essa dinâmica, de modo que os rios não conseguem mais cumprir suas funções naturais.

A retificação e canalização do rio com muros de concreto fazem com que a relação entre rio e as margens inundáveis seja interrompida, aumen­tando a vazão de água e conseqüentemente contri­buindo para a ocorrência de enchentes a jusante.

A existência de corredores verdes permite, por exemplo, a reintegração dos rios à paisagem me­tropolitana, preservando os córregos ainda em es­tado natural efou melhorando a situação dos rios canalizados. Podem ser incorporados aos cursos d'água equipamentos de uso da população, áreas de recreação e áreas de preservação.

- Fatores culturais, de educação ambiental e lazer A existência de um sistema de parques e corre­

dores integrados deverá facilitar o acesso da popu­lação a equipamentos esportivos e recreativos. A desconcentração das áreas de lazer permite uma melhor apropriação das mesmas, gerando tam­bém uma maior oferta de espaços livres. Essas áreas de recreação devem proporcionar também outras possibilidades de locomoção pela cidade, incorporando ciclovias e pistas para caminhada.

Além disso, prevê-se a existência de roteiros culturais e de educação ambiental. Em locais com interesse ecológico-educacional podem ser desen­volvidas parcerias com escolas e universidades, de modo a promover roteiros educativos. Estão previstos roteiros de educação ambiental junto às áreas dos piscinões e wetlands, além de trilhas in­terpretativas em locais específicos na mata.

Alagados construídos ( Constructed Wetlands)

De um modo geral, na natureza, as áreas ala­gáveis são locais onde os níveis da água subter­rânea estão próximos à superfície, criando uma camada rasa de água sobre o solo por um período suficiente para manter o solo saturado ao longo do ano e uma vegetação característica. Estas áre­as abrangem uma grande variedade de ambientes naturais que oferecem as condições ideais para o estabelecimento de plantas macrófitas aquáticas como as representadas pelos gêneros Typha, Pis­tia e Eichornia, e Montrichardia. Exemplo destes ambientes são os brejos, pântanos, banhados, pe­quenos lagos superficiais e regiões litorâneas de lagos e lagunas.

Uma característica típica destas áreas é o alto teor de matéria orgânica acumulada no solo e nos sedimentos, dada a grande produtividade do sis­tema. As macrófitas aquáticas são as principais responsáveis pela produção de matéria orgânica, tornando-se uma fonte de alimento importan­te para uma série de animais. Além disso, outro fator relevante deve-se à capacidade deste tipo de vegetação de absorver nitrogênio, fósforo, metais pesados, bactérias e outros materiais contaminan­tes, o que faz com que tenham um grande valor como depurador natural, sendo ainda capazes de regularizar os fluxos d'água, amortecer enchentes e controlar a erosão.

Devido a estas características, os alagados cons­truídos nada mais são que uma simulação de um alagado natural, com a diferença que seus compo­nentes (regime hidrológico, vegetação, substrato, etc.) são controlados para garantir um ou mais objetivos.

O objetivo principal da implantação destas áre­as é a melhoria da qualidade da água, pela remo­ção de sedimentos, nutrientes, cargas orgânicas e demais fontes de poluição difusa superficial, podendo ser utilizado também para o controle de cheias e como reposição de fragmentos de vegeta­ção natural suprimidos indevidamente.

Page 34: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Assim como nas áreas naturais, o processo de remoção de poluentes se dá por três mecanismos: físicos (sedimentação, filtração, absorção, reten­ção), químicos (resultantes das interações quími­cas com outros componentes dos alagados) e bio­lógicos (realizados pelos vegetais).

A eficiência de um sistema de alagados cons­truídos pode variar muito dependendo do projeto, concentração dos nutrientes, hidrologia, solo, cli­ma e qualidade de manutenção; contudo, há que se garantir um fluxo contínuo de água.

De um modo geral, a remoção dos componen­tes é eficiente da seguinte maneira:

• matéria orgânica : remoção moderada a alta • metais : remoção moderada a alta • fósforo: remoção baixa a moderada • nitrogênio: remoção baixa • bactérias: remoção moderada a alta

A quantidade de remoção também está direta­mente relacionada ao tempo em que a água per­manece no sistema e à distância que ela percorre (France, 2003).

Os alagados construídos podem ser utilizados para tratamento da água isoladamente ou em conjunto com outros sistemas convencionais. Representam custos menores de implantação e manutenção, principalmente visando o tratamen­to da poluição difusa carreada das águas pluviais; assim, a sua eficiência é ampliada quando o seu uso é feito concomitantemente com os sistemas de tratamento de esgoto.

O tamanho do wetland depende do tipo de solu­ção projetual e da área disponível, podendo variar desde lagoas extensas até versões mais compactas. Na sub-bacia do Bananal existem áreas propícias para a implantação de soluções deste tipo. De acordo com France, 2003, o custo médio para im­plantação de uma área de alagados gira em torno de U$ 24.ooo por hectare.

O uso desse sistema é consideravelmente inte­ressante em caso de intervenções pontuais, pois a água pode ser tratada localmente sem a necessida-

de de transporte até uma estação de tratamento. Apesar de ser uma tecnologia relativamente

mais nova (no Brasil a primeira área de alagados construídos foi feita em 1982 em Piracicaba por Salati e Rodrigues ) não são necessários equipa­mentos ou técnicas complexas para sua constru­ção e manutenção. Isso porque todo o processo de tratamento da água baseia-se em energias reno­váveis como a energia solar e a energia cinética, sendo a vegetação e os microorganismos os verda­deiros responsáveis pelo processo.

A população diretamente beneficiada pelo sis­tema pode ser incentivada a participar dos traba­lhos de manutenção, fortalecendo associações de moradores e disseminando o conhecimento sobre o tratamento da água. Outros sistemas reque­rem mão-de-obra mais especializada e controle constante, havendo grande gasto de energia. De maneira indireta, ao se optar por um sistema de alagados, contribui-se para a redução do uso de matérias-primas não-renováveis.

Outra grande vantagem de um sistema de ala­gados é sua função ecológica. Funcionalmente, estes sistemas atraem uma grande quantidade de animais, que utilizam a vegetação para se alimen· tar, acasalar e habitar.

Além disso, por se tratar de um ambiente natu· ralizado, os alagados possuem ainda outras fun­ções, podendo atuar como centros educacionais ejou recreativos, se incorporados painéis explica­tivos, trilhas, plataformas, etc. Na verdade, se bem estruturada, uma área de alagados construídos pode tornar-se um verdadeiro parque, reunindo áreas verdes, caminhos interpretativos, mirantes e demais equipamentos.

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METODOLOGIA PARA CRIAÇÃO DO MAPA-SÍNTESE:

A SÍNTESE DOS DADOS E O DELINEAMENTO DA

INFRA-ESTRUTURA VERDE

Para a elaboração do mapa-síntese do PRAP, utilizou-se a metodologia proposta por McHarg em 1969, adaptada aos conhecimentos científicos atuais e à tecnologia digital. O autor propõe que os processos de planejamento/zoneamento sejam baseados na vocação intrínseca das terras, a partir da definição de critérios de aptidão e do estabe­lecimento de zonas pela sobreposição de mapas temáticos.

Assim sendo, o mapa-síntese foi elaborado a partir de uma base cartográfica digital formada por um mosaico de fotografias aéreas ortorretificadas e uma série de mapas produzidos especificamente para este projeto. Todos estes produtos cartográfi­cos foram sobrepostos e trabalhados digitalmente por meio do SIG (Sistema de Informações Geo­gráficas) Are View 3.2.

Para o delineamento da proposta foram cruza­das as seguintes informações espaciais: • Áreas de inundação com tempo de retorno de

fUOS

LEGENDA

Are as sem Rede Esgoto e Agua

Mancha 25anos-Corumbe

Drenagem

Dec!ívidade(> 30%)

Vegetação

25 anos, considerando a nova bacia de detenção (piscinão Corumbé) proposta pelo Plano de Ba­cia Urbana

• Área atendida por rede de abastecimento de água

• Áreas com declividade superior a 30% • Mapeamento da vegetação atual e áreas de solo

exposto: onde as categorias de vegetação natu­ral utilizadas foram definidas considerando o disposto no art. 6°, do Decreto n° 750, de IO de fevereiro de 1993 e a Resolução CONAMA n° ro, de 10 de outubro de I993 e regulamenta­ções para o Estado de São Paulo, a partir da de­finição de vegetação primária e secundária nos estágios pioneiro, inicial, médio e avançado de · regeneração de mata atlântica e complementa­ções posteriores.

• Linhas de drenagem • Topografia, a partir de curvas de nível com in­

tervalo de 5 metros

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LEGENDA

Drenagem

Caminhos Verdes

Faixa da linha de transmissão (Eietropaulo)

Intervenção paisagística em condomínio particular

Intervenção paisagística em conjuntos habitacionais

: Parque Bananal- área de lazer e recreação

Parque Corumbé - Área de lazer e recreação

• ,.. Meters o 87,5175 350 525 700

Parque Corumbé- Área de lazer/recreação e equipamento urbano

Parque Linear do Bananal- Faixa 1

Parque Linear do Bananal - Faixa 2

Urbanização densa

Urbanização pouco densa

Wetland

Área de Manutenção intensa do Piscinão

_: Área de Manutenção ocasional do Piscinao- wetlands e áreas de recreaçao

Áreas de recuperação da vegetação (declividades acentuadas e sem abastecimento)

Áreas de uso rural: culturas, pasto. reflorestamento homogêneo comercial

Buffer_of_Drenagern

Figura 2- Plano de recuperação ambiental e da paisagem, foto Fernanda Pirillo

A partir da espacialização dessas informações foram aplicados os princípios de planejamento, ecologia da paisagem, corredores verdes e alaga­dos construídos para o estabelecimento de uma possível infra-estrutura verde para este setor da bacia, no qual estabeleceu-se como premissas os seguintes pontos:

Relocação da população em área de risco de inundação para tempo de retorno de 25 anos; Relocação da população situada em locais de alta declividade e sem rede de abastecimento de água;

• Criação de zonas de transição entre as áreas flo­restais e a malha urbana.

• Criação de áreas de adensamento populacional; • Delimitação de faixas com diferentes intensida­

des de manutenção nos piscinões; • Conexão de remanescentes de vegetação atra­

vés de corredores verdes.

De maneira geral, as áreas de intervenção propos­tas abrangem toda a bacia do Cabuçu; porém, para a aplicação da metodologia aqui descrita optou-se por considerar uma área mais restrita. Esta foi definida principalmente a partir dos seguintes critérios:

• Possibilidade de conexão entre o piscinão do Bananal, já existente, e o piscinão Corumbé, previsto pelo Plano de Bacia Urbana;

• Localização entre a área do Parque Estadual da Cantareira e a área de expansão urbana, configu­rando uma zona de amortecimento ou tampão;

• Contemplar o maior número de fragmentos de vegetação nativa, ou áreas passíveis de recupe­ração da vegetaçã" natural;

• Englobar a mancha de inundação para um pe­ríodo de retorno de 25 anos, nas áreas lindeiras a esse trecho do córrego do Bananal.

Assim, definiu-se uma área de intervenção longitudinalmente, entre as áreas envoltórias aos piscinões, e transversalmente, desde os limites do parque ao norte até a faixa da linha de transmissão ao sul.

Figura 3 - Rua verde- antes, foto Paulo Pellegrino

Figura 4- Rua verde- depois, desenho Savío A. Fernandes

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Figura 5- Wetlands- antes, foto JB Brandão

Figura 6- Wetlands- depois, desenho Savio A. Fernandes

APRESENTAÇÃO DE UMA INFRA-ESTRUTURA VERDE

NA SUB· BACIA DO BANANAL

Todo o sistema foi projetado a partir da inter­ligação entre corredores e manchas de vegetação, associados aos fragmentos florestais existentes, e com a incorporação de novas propostas urbanísti­cas e de usos múltiplos.

Para os corredores, são aproveitados os ele­mentos lineares já existentes na região, ou seja, as ruas, rios e linhas de alta tensão.

A escolha das ruas verdes prioriza as linhas de drenagem e a localização das manchas de vegeta­ção. A utilização dessas ruas como corredores ver­des é interessante não somente pelo aspecto agra­dável da arborização viária, mas principalmente pela possibilidade de adaptação de estruturas para retenção e infiltração de águas pluviais, minimi­zando o aporte de águas nos rios e o controle da poluição difusa.

Pretende-se, portanto, combater as enchentes urbanas não somente no leito do rio, mas em todo o sistema, com a utilização de tecnologias econô­micas de longo prazo. Estima-se que, num primei­ro momento, existam 1700 metros lineares poten­ciais de caminhos verdes nesse setor da bacia.

Outros espaços lineares que merecem aten­ção na cidade são as faixas de proteção das linhas de alta tensão. Por questões de segurança, não é possível habitar essas áreas ou implantar equipa­mentos urbanos. Entretanto, algumas atividades podem ser desenvolvidas. Sugere-se a criação de viveiros e hortas como fonte geradora de renda para a comunidade local e como forma de impedir a ocupação indevida dessas áreas de risco. Estima­se que, para essa faixa de transmissão, a área a ser tratada seja de 12,5 ha.

O corredor central do sistema articulador dos demais espaços conforma-se no Parque Linear do Bananal, ao longo do córrego de mesmo nome.

Este parque será estruturado em duas faixas longitudinais. A primeira faixa é delimitada pelo limite da cota de inundação para um tempo de re­torno de 25 anos. Nesta área está prevista a recu-

peração da mata ciliar que fará a estabilização das margens e encostas, a filtragem de material pro­veniente do escoamento superficial, a regulação térmica do córrego e a criação de condições favo­ráveis para o fluxo gênico entre as populações ani­mais e vegetais, conectando a vegetação ciliar aos fragmentos florestais existentes e recuperados.

Na faixa I será implantada, ainda, uma área de wetlands, para exemplificar o tratamento da polui­ção difusa a partir de uma concepção paisagísti­ca. Sabe-se que seu impacto na despoluição do córrego do Bananal é bastante limitado, mas tem grande significado educacional e estratégico, visto que se trata de uma área livre passível de invasões, próxima aos núcleos urbanos.

Apesar da função prioritariamente ecológica dessa faixa, é necessário garantir sua manutenção num período inicial de consolidação, para impe­dir a reocupação dessas áreas e o desenvolvimento da vegetação. Deve ser enfatizada a importância educativa e social desta área para divulgação da importância dos ecossistemas nativos e para re­dução dos riscos urbanos. A implantação da faixa I do Parque Linear portanto, é a prioridade des­se plano, visto que não somente contribui para a redução das enchentes como elimina as situações de risco criadas pela ocupação ilegal das margens. Está prevista para sua implantação a relocação de aproximadamente 750 pessoas que habitam ile­galmente essa faixa.

A população que reside em situações precárias e de risco às margens do córrego será deslocada para outras áreas dentro da sub-bacia, por meio da verticalização de algumas áreas e da ocupação de espaços livres não-vegetados. Propõe-se a substi­tuição das edificações das quadras lindeiras a esse parque por edifícios de apartamentos de 4 a 8 pa­vimentos de acordo com os parâmetros adotados para conjuntos habitacionais em áreas de interes­se social, ressalvando-se algumas diretrizes arqui­tetônicas que garantam a integração e o aproveita­mento da paisagem a ser criada.

Este desejado aumento de densidade nessa orla garantiria a efetivação dos limites da área

Figura 7- Piscinão Bananal- antes, foto Paulo Pellegrino

Figura 8- Parque Bananal - depois, desenho Savio A. Fernand'

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urbanizada, através do controle exercido pelos próprios moradores, interessados na valorização do seu espaço cotidiano. Este seria igualmente enriquecido se fossem adotadas edificações de usos múltiplos, integrando comércio e serviços no térreo.

A Faixa 2, imediatamente limítrofe à anterior, compreende as áreas não-alagáveis para esse tempo de retorno. Na margem direita, o seu limite é definido pelas ruas existentes em toda a sua extensão. Já na margem oposta, de urbanização não consolidada, os limites foram definidos pela incorporação das áreas de risco (declividades acima de 30% e outras áreas de risco de erosão). Estão previstos aí usos mais variados, caracterizando um parque urbano com quadras esportivas, pistas de corrida, áreas de lazer, etc. Também será necessária a relocação de cerca de rso famílias.

A possibilidade de relocação da população afe­tada não precisa ser necessariamente atendida na área da sub-bacia, ainda que esta possa compor­tála em um desenho mais eficaz como o propos­to. Sabe-se que esta pressão de ocupação sobre as áreas periféricas é produzida em grande parte em decorrência do esvaziamento da área central, mais valorizada do ponto de vista sócio-econômico, o que ocasiona a expulsão da população de baixa renda.

Para valorizar as áreas adjacentes às bacias de detenção mencionadas e ao mesmo tempo res­guardar as áreas de mata, são propostos dois gran­des parques urbanos: o Parque Bananal (5.5 ha) e o Parque Corumbé (4.5 ha). Além de consolidar o sistema formado pelo Parque Linear, essas duas grandes áreas servem como áreas de conservação ambiental para os fragmentos florestais existen­tes, bem como para reduzir a exposição da popu-

Figura 9- Visão geral do Parque Corumbé/Parque Linear do Bananal e entorno -antes

lação humana do entorno às áreas de manutenção intensiva dos piscinões.

A utilização do entorno dos "piscinões" como áreas de lazer cria novas possibilidades na cida­de e contribui para a compreensão das soluções convencionais de engenharia hidráulica adotadas para a resolução dos problemas de drenagem ur­bana em nossa realidade.

Assim, em ambos os parques foram defini­dos níveis de acessibilidade, com base nas cotas nos tempos de retorno das inundações. As áreas constantemente alagadas e com solos potencial­mente contaminados são de acesso restrito ex­clusivamente para manutenção, enquanto que áreas de alagamento eventual, com característi­cas de alagados naturais, podem ser acessadas por meio de plataformas elevadas. As áreas do perímetro englobadas nestes parques serão tra­tadas como parques de lazer e conservação de

uso público. A idéia geral, contudo, é evidenciar o papel das bacias de detenção e deixar visível o resultado do lixo jogado atualmente nos cór­regos, contribuindo para um processo de cons­cientização ambiental.

Está prevista ainda a recuperação de cerca de 4,2 ha de áreas em estágio inicial de regeneração, de modo a garantir a continuidade e estabilidade dos fragmentos. Nestes projetos de recomposição será dada preferência a espécies nativas, escolhi­das levando-se em consideração seu estágio su­cessional e suas características ecológicas, entre outros itens.

Ainda no intuito de criar zonas de amorteci­mento e estabelecer parâmetros sustentáveis para a urbanização da área, são feitas intervenções pai­sagísticas nos loteamentos existentes e definidos determinados índices urbanísticos a serem segui­dos para novos empreendimentos.

Figura 10- Visão geral do Parque Corumbé/Parque Linear do Bananal e entorno- depois, foto Savio A. Fernandes

Page 38: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

r I i í

Nas áreas a serem reurbanizadas (Jardim Da­masceno e outras) está prevista a adoção de índi­ces urbanísticos de baixa e média densidade. A urbanização de média densidade prevê áreas ver­ticalizadas envoltas por áreas verdes, com vegeta­ção ornamental nativa. E para as áreas de densi­dade baixa, a configuração de pólos concentrando as edificações e demais estruturas urbanas, tais como o sistema viário. Entre esses pólos man­têm-se ou criam-se áreas florestais. Esse desenho da paisagem deverá conter o avanço irregular da urbanização e criar zonas de transição entre a área urbana e as naturais.

CoNcLusÃo

Como resultado, constatamos que na sub-bacia do córrego Bananal, área piloto escolhida para o detalhamento do Plano de Bacia, é possível ain­da se manter e desenvolver uma infra-estrutura verde com a dimensão e importância da aqui pro­posta. Esta infra-estrutura baseia-se em conceitos paisagísticos e ecológicos, de modo a integrar o conjunto dos espaços ainda não edificados ou a serem desocupados em um único sistema, que permeia todas as escalas destes espaços: do entor· no das edificações ao parque estadual, num todo coerente e legível, otimizando as diversas funções exercidas por suas partes.

Conforme anteriormente mencionado, atual­mente pouca importância é dada aos fragmentos florestais urbanos, ou próximos das cidades. Um dos principais objetivos deste plano é desenvolver uma metodologia que vise o estabelecimento de processos de planejamento capazes de conciliar a manutenção de fragmentos de vegetação nativa,

Figura 12- Visão geral do sistema- depois, foto Savio A. Fernandes

natural ou recuperada, com a ocupação humana. Com os exemplos aqui delineados, procura-se

mostrar uma alternativa de como manter abertos, ou abrir os fundos de vale e conectar parte de uma das mais importantes estruturas verdes da cidade, a serra da Cantareira, aos espaços livres limítrofes, dando sentido e organização a uma estrutura ver­de de dimensão metropolitana, visando à recupe­ração e integração dos espaços ainda naturais com os já urbanizados.

Como parte do Plano de Bacia Urbana, este programa de recuperação ambiental e da paisa­gem avança além do nível da estética paisagística, procurando fomentar uma sustentabilidade só­cio-ambiental através da indicação de projetos de parques, de espaços abertos urbanos e rurais, bem como de áreas legalmente protegidas que confor­mam a implantação de uma infra-estrutura verde.

Especificamente, seu foco se dá na restauração e preservação do ambiente natural e na melhoria da qualidade do espaço aberto público urbano.

O plano geral aqui delineado apresenta um sis­tema de parques e áreas verdes associado aos siste­mas de drenagem c tratamento natural das águas em um trecho da bacia. Posteriormente, este es­quema mais amplo aqui desenvolvido poderá ser dividido em projetos específicos a serem adapta­dos aos planos regionais das subprefeituras e em seus detalhamentos, atendendo diversos horizon­tes de implantação; sua complementação confor­maria a rede ambiental e hídrica que está expressa como uma das metas do PDE para 2oro.

Os critérios adotados neste plano deverão ser utilizados como diretrizes para todos os novos projetos na bacia, especialmente aqueles que en­volvem os espaços abertos vinculados à circulação de pedestres, conexões viárias, equipamentos ur­banos e áreas de recreação e lazer.

O resultado esperado será uma sucessiva trans­formação dos espaços públicos locais, com a estmtu­ração de uma nova paisagem urbana que qualifique e reorganize este trecho da periferia de São Paulo.

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A FLUVIALIDADE EM RIOS PAULISTAs'

As preocupações que norteiam este texto nasce­ram da observação de rios em São Paulo, iniciada de forma sistematizada em 1992 2 , tendo por objeto o rio Pinheiros. O Pinheiros atravessa o quadrante sul-sudoeste da cidade de São Paulo - uma locali­zação privilegiada do ponto de vista da alta renda de seus moradores, os bairros residenciais de elite (os assim chamados "jardins") e uma nova zona de empreendimentos imobiliários comerciais de alto luxo e sedes de empresas multinacionais e, portanto, poderia apresentar alguma qualidade paisagística. Este rio, entretanto, permaneceu por décadas um canal de esgotos a céu aberto ladeado por duas vias expressas de trânsito intenso e uma linha de trens de subúrbio, em flagrante contraste com a imponência dos edifícios que são construí­dos às suas margens.

Esta situação não se resume apenas a este rio. Na verdade todos os rios que fazem parte da bacia do Alto Tietê, dentro da região metropolitana da Grande São Paulo, os rios Tamanduateí, Cotia, Ca­buçu, Baquirivu-guaçu, Aricanduva, além do Tietê e do Pinheiros, vêm sendo, com raríssimas exce­ções, ignorados tanto pelos governos municipais e estaduais, como por engenheiros, urbanistas e paisagistas responsáveis pela proteção das paisa­gens fluviais urbanas.

Um estudo mais aprofundado foi feito na épo­ca, procurando identificar as razões deste descaso

Jorge Hajime Oseki Adriano Ricardo Estevam

com os rios, talvez os únicos patrimônios ambien­tais que restam na cidade de São Paulo, e entender por que, dentre as capitais brasileiras, esta cidade se comporta de maneira diferenciada em relação à valorização de sua paisagem urbana, e em particu­lar, de sua paisagem fluvial.

Para a maioria dos entrevistados na pesquisa (cerca de rooo pessoas), que moravam ou traba­lhavam junto ao rio Pinheiros, este rio não existia, nem como presença, nem como representação, podendo ser tamponado e transformado em uma via expressa.

Isto nos leva a (re)pensar as relações complexas entre espaço social e natureza, isto é entre socie­dade e paisagem.

Toda tentativa de qualificar o uso e a apropria­ção social de "espaços naturais" traz consigo gran­des dificuldades como, por exemplo, a de qual se­ria o estatuto da natureza primeira dentro de uma teoria social do espaço.

Natureza e espaço têm em comum o fato de serem imediação e mediação, mas são totalidades que se abrem para possibilidades diferentes.

Nos projetos urbanísticos atuais, servindo-se de técnicas aperfeiçoadas, tudo é produzido: o ar, a luz, a água e o próprio solo. Tudo é factí­cio, a natureza desaparece, permanecendo como símbolo: é "reproduzida". O espaço urbano é recriado a partir das capacidades produtivas,

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destacando-se do natural, esgotando-o e anu­lando-o. Este espaço natural, por sua vez, antes um abundante repositório de bens naturais (de valores de uso) infinitos, se torna um bem raro e esta raridade se espacializa. Agora se tratam de raridades em termos de matérias-primas ou de fontes de energia localizadas em apenas algu­mas parcelas do globo3•

Segundo Lefebvre4 "na cidade e pela cidade a natureza dá lugar à natureza segunda" através da violência, do terror, da agressão e até mesmo da destruição da natureza, engendra-se o espaço mundial. Este espaço social tende a extrapolar a imediação, mas o espaço anterior (que perma­nece imediato) não desaparece por completo, há sobrevivências da natureza primeira no seio da natureza segunda, no construído. As qualidades espaciais têm uma gênese e uma sobrevivência so­bre uma base espacial anterior que lhes serve de fundamento. A natureza, mesmo partida e separa­da, localizada, permanece o fundamento último, irredutível do espaço sociaiS.

PAISAGENS FLUVIAIS E MEDIÂNCIA

Recuando no tempo, Augustin Berque conside­ra a paisagem como tendo sido descoberta na Chi­na, pela primeira vez na história da humanidade, no século IV de nossa era. Há em chinês várias palavras representando nuances em torno do sig­nificado de paisagem, mas o termo mais genérico seria "shanshui'', cuja tradução livre seria "monta-

h ' 6, n as e aguas . No Ocidente, a palavra e a noção surgem na Eu­

ropa, a partir do Renascimento, em decorrência de uma prática contemplativa em relação à nature­za que passa a ser efetuada de forma sistemática, mas que é fruto de transformações espaciais con­cretas importantes (isto é, datadas e localizadas) que acontecem no campo e nas cidades, levadas a cabo por oligarquias urbanas italianas. O melhor

exemplo desse duplo processo é a paisagem tos­cana. Nesta região, uma elite de comerciantes e banqueiros seguindo um plano pré-concebido e um projeto, modela "o país jaqui no sentido de região, paysj e a paisagemjpaysagej"7.

Desde o princípio, portanto, ainda na opinião de Berque, a paisagem ocidental terá esta ambi­güidade de significados, se referindo tanto ao meio ambiente em sua forma intrínseca, quanto a sua representação do ponto de vista de um sujeito. A partir do Renascimento "a Europa, doze séculos após a China, se tornará por sua vez uma civili­zação paisagista"8

. Mas enquanto na China, a pai­sagem é, ao mesmo tempo, uma representação e uma presença, no Ocidente já cindido entre teoria e prática (ou seja, entre pensar e fazer), a paisagem também significará um "dilaceramento da nature­za". A modernidade européia divide a paisagem em dois modos incompatíveis: de um lado através dos sentidos (a arte), de outro, pela razão (a ciência)9.

Mas "se há uma paisagemjpaysagej, foram os camponeses jpaysansj que a modelaram, portanto, as comunidades aldeãs"10

• Como todas as obras, as paisagens foram modeladas pelo trabalho hu­mano ao longo da história. A descrição (ou leitura) das paisagens é, então, necessária, mas não sufi­ciente. Para compreendê-las é preciso expô-las, explicar sua gênese no tempo, já que a paisagem é uma realidade que se concretiza através de uma praxis desenvolvida no tempo e engendrada pelo tempo. É preciso superar as descrições geográficas do espaço-natureza e caminhar em direção a um estudo dos ritmos naturais, da inscrição no espaço dos gestos humanos, de uma natureza transfor­mada pela prática socialn.

Para François Béguin12 haveria três interpreta­ções significativas da paisagem: a dos artistas, a dos geógrafos e a dos arquitetos.

No primeiro caso, a pintura paisagística re­nascentista dá à noção de paisagem seu primeiro significado. A partir do século XIX, através do Im­pressionismo, a pintura paisagística se aliará à lite­ratura e conhecerá um impulso formidável, haven­do um reforço recíproco entre ilustração e texto'3•

A pintura está longe de possuir apenas um ca­ráter subjetivo, refletindo estados transitórios da alma do artista, ela é capaz de apreender realidades complexas em sua totalidade, ainda que de uma maneira efêmera. Consegue, assim, revelar aspec­tos singulares (temporais) de espaços e situações, consistindo em um meio privilegiado de explora­ção do real porque permite documentar, através dos sentidos, e esclarecer algumas mediações que nos religam aos fatos (ao real). A percepção capta potencialidades virtuais em imagens reais de coi­sas reais. Em relação às paisagens, a arte poderia servir como testemunho, mas também ajudaria a explorar devires possíveis para o mundo que nos cerca, tornando patentes processos que se encon­tram ainda latentes'4.

A visão da Geografia nos instrui sobre realidades físicas, econômicas e técnicas expressas pelas paisagens. No interior desta ciência, entretanto, a palavra paisagem compreende desde uma acepção imprecisa (e meramente visual) ainda que fértil em possibilidades de aplicação prática, até o conceito rigoroso de "geossistema" (ou seja, a paisagem-objeto da ciência da paisagem soviética) que se reduz ao resultado de um overlay de representações espaciais que condensaria dados técnicos: uma representação-síntese de um sistema material bio-fisico-químico'5, cujo rigor acaba por comprometer sua aplicação em projetos paisagísticos, onde a interação intersubjetiva é fundamental.

Mesmo Von Humboldt considera importan­te examinar as variações aparentes da anatomia terrestre, da mesma forma como os pintores en­xergavam as paisagens. As paisagens foram, no século XVIII, meios para geógrafos e geólogos apreenderem unidades espaciais (regiões), onde relevo, hidrografia e vegetação poderiam ser con­siderados globalmente e de forma integrada.

No século XIX, Vidal de La Blache e Demange­on ampliaram esta visão procurando encontrar as causas que explicassem a fisionomia de uma dada região. Entre elas, em primeiro lugar, estariam as geológicas e as climáticas, mas estas logo se reve-

lariam insuficientes para explicar uma paisagem. Se a natureza das terras e a localização das fontes de energia e de matéria-prima induziriam modos de ocupação e exploração do meio, haveria outros fatores intervenientes importantes, como a cultu­ra e a história'6.

Em seguida se invocou a ordem técnico-econô­mica como a verdadeira explicadora da região (ex­pressa pela paisagem) porque esta seria moldada em primeira instância, no capitalismo, por razões econômicas gerais que determinariam e financia­riam as opções de ocupação.

Com a mundialização dos mercados, a gene­ralização das redes de trocas e a circulação exa­cerbada de mercadorias, pessoas e capitais pelo território, as paisagens começam a perder seu va­lor informativo tornando-se resíduos de regiões naturais entre regiões econômicas de um mundo globalizado.

Ainda segundo Béguin'7, a paisagem perma­neceria como uma espécie de memória onde se registraria e totalizaria a história das atitudes do homem em relação à terra, o rosto que a superfí­cie terrestre oferece à observação, composto por um mosaico de traços de sistemas há muito aban­donados, em meio a testemunhos do estado atual da ocupação dos solos.

Para a visão da arquitetura, os edifícios são ele­mentos centrais na definição das paisagens. Na tradição da pintura paisagística pitoresca do sé­culo XVIII, há já uma combinação estranha entre meio natural e edifícios construídos pelo homem. Trata-se, em geral, de uma arquitetura rústica, campestre, onde, por vezes, ruínas da Antigüida­de clássica ajudam a compor as telas, dando-lhes um caráter melancólico'8.

No século XIX, começam a despertar interesse as arquiteturas regionais, tendo como conseqüên­cia as várias pesquisas geográficas e etnográficas sobre os patrimônios arquitetônicos regionais. Nesta relação entre construções e paisagens, pode­se, primeiro, inferir uma qualidade intrínseca das construções em caracterizar regiões, climas e tra­dições, já que são também "produzidas" historica-

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mente pelo meio e se enraízam na terra. Segundo, paradoxalmente, nelas está também sempre pre­sente uma sensação de atemporalidade, de valor seguro dos edifícios, contrapondo-se à variabilida­de do meio natural.

Ruskin insistia na necessidade de se conce­ber edifícios levando em consideração seu efeito sobre a paisagem, pois não haveria construções neutras. Estas ou enriqueceriam ou deteriora­riam a paisagem19

.

Esta posição só foi perseguida no Movimento Moderno de Arquitetura, por Frank Lloyd Wright, cujo testemunho principal continua a ser a casa de Edgar J. Kaufmann em Bear Run, na Pensilvâ­nia, a Fallingwater (a casa da cascata) de I935· Para além das utopias futuristas e expressionistas com suas paisagens-máquina no espaço moderno, a arquitetura moderna seguiu a tendência majori­tária representada por Le Corbusier e a Bauhaus de se produzirem industrialmente os espaços (cidades e campos), o que conduziu, no segundo pós-guerra, ao espaço homogeneizado, fragmen­tado e hierarquizado, característico do modo de produção estatista 20

Para a análise da paisagem de rios no Japão moderno, Berque propõe a noção-indicador de "mediância", vaga, mas de grande importância para o paisagismo, que segundo ele, seria capaz de apreender os descompassos entre sociedade e meio-ambiente.

Se considerarmos a paisagem como metáfora de uma sociedade, o problema que se coloca para Berque é como explicar a pouca qualidade das paisagens urbanas japonesas - em comparação às cidades européias, por exemplo - frente ao oti­mismo da identidade coletiva japonesa como país líder tanto em crescimento econômico como em avanço tecnológico.

Esta noção trataria de uma "racionalidade me­sológica" (isto é uma racionalidade relativa à apro­priação humana do meio natural) das paisagens, duplamente determinada, pois a paisagem é um meio (entre sociedade, espaço e natureza), mas guarda um sentido simbólico.

"No ecúmeno, jisto é, no conjunto dos meios hu­manos,/ as coisas só existem enquanto sua relação com os sujeitos humanos lhes imprime um sentido que é uma mediância (ou seja, o sentido de uma socieda­de com seu ambiente exterior). Na paisagem, que é a expressão sensível desta mediância, este "como ser" é um "ver como", que desdobra as formas materiais em jàrmas simbólicas" 21

A mediância deve ser considerada em seus três momentos, pois ela é ao mesmo tempo tendência, isto é, o sentido da evolução de um meio físico; sensibilidade comum, ou seja, uma mediação en­tre sujeito e objeto ou entre indivíduos e grupos, e uma significação subjetiva ou inter-subjetiva22

Tais aspectos seriam os principais reveladores de uma paisagem.

Expor a história da relação entre rios e cidades seria então tentar compreender-lhes a mediância, ou auferir um valor a ela. Haveria segundo ele, cida­des com baixa mediância como a cidade de Tôkyô, e com alta mediância, como é o caso de Paris.

Trataremos, a título de ilustração, de percorrer o destino de uma parte dos rios urbanos no sítio de São Paulo, iniciando com uma breve descrição deste sítio que serve de base para a aglomeração metropolitana, e um rápido histórico do proces­so de urbanização e dos vários projetos técnicos de engenharia elaborados para as calhas de seus principais rios.

ESTUDO DO SÍTIO

URBANO DA CIDADE DE SÃO PAULO

Caracterização geomorfológica da bacia do Alto Tietê

Segundo Delmar Mattes23, os traços geomorfo­

lógicos da bacia do Alto Tietê são caracterizados pela presença de dois compartimentos nitidamen·

te diferenciados: de um lado, a bacia sedimentar de São Paulo composta essencialmente por relevos suavizados, contendo colinas e espigões tabulares com níveis escalonados, de outro, o seu entorno rnais acidentado e muito mais abrangente em ex­tensão de área, constituído por rochas cristalinas pré-cambrianas.

No conjunto, o relevo é bastante heterogêneo, com uma enorme variedade de unidades, desde as

amplas e extensas planícies aluvionares do Tietê e do Pinheiros, até formas bastante acidentadas, compostas por montanhas.

A área dos terrenos sedimentares conforma as denominadas Colinas de São Paulo. Estas, jun­tamente com a Morraria de Embu, constituem o Planalto Paulistano · zona geomorfológica predo­minante em toda a bacia do Alto Tietê, ocupando cerca de 6o% de sua área, distribuída predomi-

Figura 1 -Rio Tietê, traçado original. Mapa da SARA f 1928

Figura 2- Rio Tietê, no mesmo local, após retificação em 1990

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nantemente entre as altitudes de 715 e 9oom (Co­missão da bacia do Alto Tietêj2ooo). As colinas de São Paulo se desenvolvem tanto sobre os se­dimentos da bacia de São Paulo como nas áreas pré-cambrianas mais próximas, enquanto que a morraria de Embu ocupa os terrenos cristalinos ao sul, leste e oeste. As duas subunidades possuem padrões de relevo distintos: enquanto nas colinas de São Paulo predominam sistemas de colinas e pequenas áreas de morrotes, situadas entre as al­timetrias de 700 e 83om, na morraria de Embu predominam morrotes, colinas e morros, que os­cilam entre as cotas de 8oo e rooom.

Nas demais porções da bacia também há formas mais acidentadas, destacando-se especialmente morrotes, morros e serras. No setor setentrional da bacia (na subzona da serraria de São Roque, por exemplo) são encontrados sistemas monta­nhosos (as Serras Alongadas) com declividades médias altas e amplitudes locais acima de 3oom.

A rede de drenagem - cujo principal rio coletor é o Tietê e seus principais afluentes, os rios Pi­nheiros e o Tamanduateí- é acompanhada de pla­nícies aluviais bastante desenvolvidas nos cursos d'água maiores, na forma de terrenos baixos, mais ou menos planos ao longo de suas margens. Pla­nícies menores podem ser encontradas, de forma dispersa, ao longo da rede da drenagem regional, integrando as feições geomorfológicas que com­põem o relevo da bacia do Alto Tietê.

Aziz Nacib Ab'Saber24 classifica a geomorfo­logia do sítio suporte da região metropolitana de São Paulo em 8 situações típicas:

(r) Altas colinas de topo aplainado do espigão cen­tral (Av. Paulista, Av. Domingos de Morais);

(2) Altas colinas de rebordos dos espigões centrais (colinas do Sumaré, da Aclimação);

(3) Patamares e rampas suaves escalonados dos flancos do espigão central perpendiculares ao eixo do divisor Tietê-Pinheiros (Lins de Vascon­celos, Liberdade, Brig. Luis Antonio, Consola­ção, Angélica, Cardoso de Almeida, Pompéia);

(4) Colinas tabulares de nível intermediário dis-

postas de 15 a 25m acima das planícies de inundação do Tietê e Pinheiros (Praça. da Re­pública, Santa Ifigênia, Campos Elísios, Jardim Europa- cotas 740 a 745 m)

(5) Baixas colinas terraceadas contígüas aos pri­meiros terraços fluviais (Itaim, Pq. São Jorge -cotas 730 a 735m)

(6) Terraços fluviais de baixadas relativamente enxutas. (Áreas típicas: Brás, Pari, Canindé, Presidente Altino, Jardim América, Pinheiros, Vila Nova Conceição, Itaim, Santo Amaro e Lapa -724 a 73om);

(7) Planícies de inundação, formadas por aluviões recentes, sujeitas a inundações periódicas, zo­nas largas e contíguas (722 a 724m)

(8) Planícies de inundação, formadas por aluviões recentes, sujeitas a enchentes anuais, zonas de banhados marginais e meandros abandonados (718 a 722m).

O rio Tietê possui uma extensa e ampla faixa aluvial disposta no sentido leste-oeste, que pode ser observada na planta de São Paulo. Ainda se­gundo Aziz Ab'Saber (em depoimento dado no li Concurso das Águas) 25 , a proporção mais usual entre tamanho do rio e sua planície é rfr8. Em São Paulo, essa proporção chegava a rj4o, sendo que a quase totalidade das planícies está recoberta pela mancha urbana

26.

As soleiras rochosas

As planícies da capital têm sua gênese relacio­nada às atividades erosivas desenvolvidas após o enchimento da bacia sedimentar, iniciadas no iní­cio do Pleistoceno ou do Holoceno. Seguindo uma evolução global, teria ocorrido o encaixamento do rio após a formação de patamares intermediários entre as cotas 745 e 75om, isto é, entre as antigas planícies fluviais. Os avanços dos processos ero­sivos que promoveram o encaixamento do Tietê acabaram atingindo as rochas do embasamento cristalino; as soleiras rochosas tiveram, então,

uma influência marcante no desenvolvimento da morfologia da região, controlando o entalhamento da drenagem e a extensão das planícies aluviais.

A rede de drenagem

A rede hidrográfica da bacia do Alto Tietê nasce nas vertentes continentais cristalinas da Serra do Mar e segue em direção ao Planalto Paulistano, condicionada pelo efeito de algumas soleiras ro­chosas, em especial a soleira granítica de Barueri, limite físico responsável pela formação da bacia sedimentar de São Paulo.

Os afluentes de maior área de contribuição para o Tietê são o Aricanduva, o Tamanduateí e o Pinheiros pela margem esquerda, e o Baquirivu­Guaçu, o Cabuçu de Cima e o Juqueri, pela mar­gem direita.

Predominam na bacia os padrões dendríticos e paralelos, para os afluentes. Podemos notar o padrão paralelo nos córregos Aricanduva, Tatua­pé, Tamanduateí, Anhangabaú, Pacaembu e Água Branca. O padrão dendrítico, é mais comum em porções de rochas cristalinas e pode ser encontra­do no Baquirivu-Guaçu, Cabuçu de Cima e Cabu­çu de Baixo.

O rio Tietê, entre Guarulhos e Osasco, possuía originalmente, através de seus meandros, 46.po metros de extensão e, após sucessivas canalizações, passou a ter apenas 26.ooo metros (Fig. r e 2).

Várzeas: Planícies aluviais e terraços fluviais re­lativamente enxutos

O termo várzea (várzea de inundação) corres­ponde às planícies aluviais sujeitas a inundações anuais e aos terraços fluviais relativamente enxu­tos, submetidos a inundações menos freqüentes e localizados em posições mais elevadas dos fundos achatados dos vales.

São resultantes da esculturação morfológica do sistema de drenagem do Tietê e de seus afluentes

sobre a bacia sedimentar de São Paulo. As planí­cies aluviais são encontradas junto às margens dos rios e córregos, e estão por isso sujeitas a inunda­ções periódicas.

Os terraços fluviais relativamente enxutos acompanham de forma descontínua as principais baixadas dos rios, são levemente inclinados e en­contram-se a poucos metros (3 a 7 metros, segun­do Ab'Saber) acima das planícies de inundação.

No trecho entre Penha e Os asco podemos ob­servar duas planícies de inundação distintas27

,

uma entre 719 e 722m, sujeita a inundações anu­ais e outra entre 722 e 724 m, sujeita apenas a grandes cheias.

A drenagem meândrica do Tietê, com suas extensas e amplas planícies aluviais excepcional­mente contínuas, tinha larguras que oscilavam entre 1,5 a 2,0 km28

, e se estendiam por mais de 6o km, desde a confluência com o rio Paraitin­ga até a soleira de Barueri. A várzea do Pinheiros, bastante semelhante, possuía 20 km de extensão e largura entre r e 1,5 km.

As planícies aluviais do Tietê possuíam (e ainda possuem a montante da barragem da Penha) um cinturão meândrico envolvendo o canal, de largura entre 200 e 400 me abrigando pântanos, áreas bre­josas, lagos em ferradura e meandros em desuso.

Processos de erodibilidade e sedimentação

Segundo o geólogo Arnaldo Kutner29, a bacia

do Alto Tietê apresenta um elevado potencial de produção de detritos sólidos. O elevado poten­cial de erodibilidade da região é proveniente dos efeitos de conformação geomorfológica, além das grandes espessuras e da estruturação dos solos constituintes. Acresça-se a tais condições naturais, a ação antrópica de ocupação urbana, que envol- -veu grande volume de desmatamentos e terrapla­nagens, não se observando normas básicas para a preservação dos solos. Isto nos dá uma idéia do estado preocupante em que se encontra o proces-so de sedimentação na cidade de São Paulo.

RIOS E PAISAGENS URBANAS .• 83

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Um dos aspectos mais destrutivos da ocupação ocorre durante as obras de implantação de lotea­mentos (em sua maior parte, irregulares). A remo­ção dos horizontes superficiais dos solos residuais, e a exposição dos horizontes inferiores, geralmen­te mais friáveis e erodíveis, potencializa este pro­cesso de acúmulo de material nos corpos d'água.

O processo de ocupação urbana implicou tam­bém na produção de lixo e entulho que são lança­dos diretamente nas encostas e nos cursos d'água. Estes detritos são então captados pela rede hidro­gráfica e carreados rapidamente para jusante, as­soreando os cursos d'água nos trechos de menor velocidade e profundidade.

Para Kutner, o intenso assoreamento verificado no lago da barragem da Penha, após cerca de 4 ou 5 anos, quando esta entrou em operação, consti­tui um bom exemplo da intensidade com que este processo pode se desenvolver.

BREVE HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO E DAS INTERVENÇÕES

EM FUNDO DE VALE NA CIDADE DE SÃO PAULO

Os jesuítas fundaram a vila de São Paulo de Pi­ratininga no século XVI, em uma colina situada entre os rios Tamanduateí e o Anhangabaú. Do Pátio do Colégio, marco zero da cidade, já podiam ser avistadas as amplas planícies descampadas do Tamanduateí e Tietê, rios que se constituirão por muito tempo em limites físicos da cidade ao nor­te e a leste. A própria cidade deve a sua condição de centro de uma região pobre pelo fato de estar situada próxima a rios (ao contrário de sua rival Santo André da Borda do Campo, a primeira vila do planalto)30

.

No século XVII, toda a capitania passa por um processo de decadência, já que a atividade da Colônia se volta para a extração das minas e há uma queda geral na atividade agrícola. O desen­volvimento de São Paulo, até o fim século XVIII, é impulsionado apenas pela função de entreposto

comercial que a cidade exerce entre o interior e o Porto de Santos3'.

O século XIX marca um período de reorganiza­ção econômica no Brasil, com a introdução da agti­cultura de exportação (açúcar e café). A cultura de cana se concentra em região tributária da capital, mas, em relação ao café, São Paulo perderá momen­taneamente a hegemonia econômica para o Rio de Janeiro. Isto até meados do século XIX, quando a terra roxa, e não mais o vale de Paraíba, atrairá as fazendas de café para o oeste da província.

A partir da produção café, uma rede de estra­das de ferro (e posteriormente de estradas de ro­dagem) se desenhará na carta do estado de São Paulo "como uma vasta mão espalmada32

". Isto possibilitará a São Paulo, como o lugar central de um sistema hidrológico (isto é, um sistema de co­municações), que viabilizou até agora a coloniza­ção, manter sua supremacia, pois comandará uma extensa região, além de permitir, pela sua topogra­fia, um acesso relativamente fácil ao litoral. Estes rios, o curso encachoeirado do Tietê, e o desnível da Serra do Mar, fornecerão ainda a força hidráuli­ca que permitirá seu desenvolvimento urbano-in­dustrial nos séculos XIX e XX.

A fase higienista

Um crescimento comedido daria lugar a uma ex­plosão demográfica observada nas primeiras déca­das do século XX; fala-se inclusive em uma terceira fundação da cidade33 . De fato, a população paulis­tana que em r874 era de 23.253 habitantes, passou a 579.033 habitantes em 192034, caracterizando um surto de crescimento urbano sem precedentes. Acresça-se a isto a r" Guerra Mundial, que fez com que aumentasse enormemente o número de imi­grantes da Europa e posteriormente do Japão35.

A crise de 1929 mudou o foco da economia da cafeicultura para as indústrias urbanas e o adven­to da ferrovia estimulou a tendência da cidade a ocupar as planícies circundantes. Se a implanta­ção das estradas de ferro e de indústrias na sua

extensão, junto ao leito dos rios, potencializou a aparição de vilas operárias, por outro lado, o fe­nomenal incremento populacional provocou uma conurbação da cidade com esses novos pólos de crescimento. As chácaras que envolviam a área central aos poucos foram sendo loteadas, configu­rando este "mosaicd' de loteamentos com diferen­tes desenhos viários, característicos da cidade.

As grandes cheias ocorridas durante o século XIX, bem como o déficit na coleta de esgotos (presente até hoje) foram causadores de diversas epidemias, sendo que a maior delas se deu em r855, quando a cidade sofreu um grave surto de cólera.

Deste fato decorre a característica principal da primeira fase das intervenções nos cursos d'água paulistas, denominada de "fase higienista". Entre meados do século XIX e a década de 1920, foram retificados diversos trechos do Tamanduateí e do Tietê, visando, sobretudo, o saneamento e o controle das enchentes (e das epidemias) na cidade 36 (Fig. 3).

A fase das canalizações e das avenidas de fundo de vale

A expansão da mancha urbana pressionou a ocupação das planícies. Os grandes planos que nortearam a produção do espaço da cidade de­terminariam a ocupação destes novos espaços. O Plano de Avenidas, apresentado por Prestes Maia em 1929, introduziu o conceito de "cidade efi­ciente"37, sugerindo um sistema radioconcêntrico de vias arteriais par::: resolver o iminente colapso da circulação de transportes na cidade, através de um conjunto de túneis, viadutos e avenidas de talvegue (Fig. 4).

O caráter rodoviário dos Planos Moses (1950) e Sagmacs (1957), contratados pela prefeitura de São Paulo, reafirmaria a necessidade destas ave­nidas de fundo de vale, consolidada na publicação do Plano Urbanístico Básico em 1969, que reco­mendava o uso dos vales como suporte das ave-

nidas, em função do baixo custo e da topografia suave. As várzeas deixariam de ser os "fundos" da cidade, isto é espaços antes utilizados para recrea­ção, pesca, plantação de hortas e lavagem de rou­pas. A implantação das avenidas de fundo de vale representava importante mudança nas referências espaciais da cidade, unindo loteamentos antes separados por córregos e trazendo uma grande quantidade de pessoas e mercadorias circulando por estas modernas vias. Tais avenidas passaram a abrigar usos diversos, depósitos, estabelecimentos comerciais e de serviços, pela situação estratégica que ocupavam.

A conjugação de canais e vias marginais tor­nou-se a prática urbanística recorrente para ocu­pação das várzeas na cidade de São Paulo. O bi­nômio saneamento/vias públicas enraizou-se na administração municipal e metropolitana como maneira eficiente do poder público resolver vários problemas simultaneamente. Posteriormente, isto ainda foi associado a programas de relocação habi­tacional de populações invasoras das margens de rios, o que possibilitava à administração pública marcar presença, "saneandd', ambientalmente e socialmente, vários setores da cidade com conse­qüente dividendos políticos.

Destaca-se, na década de 70, a retificação dos rios e a implantação nas maiores várzeas paulista­nas das vias marginais ao rio Tietê e Pinheiros, e a retificação-canalização do rio Tamanduateí para a construção, sobre ele, da avenida do Estado.

Em meados da década de 8o, o PROCAV (Pro­grama de Canalização de Córregos, Implantação de Vias e Recuperação Social e Ambiental de Fun­dos de Vale), implantado pela PMSP a partir de 1987, representa o auge das intervenções de ca­nais entre vias de fundo de vale.

Apesar das inegáveis melhorias (algumas certa-_ mente discutíveis) quanto ao saneamento, à habi­tação e ao tráfego, esse programa trouxe consigo vários problemas intrínsecos, como por exemplo, a supressão das várzeas dos rios e a impermeabi­lização de suas áreas verdes, com a conseqüente intensificação das enchentes.

Page 44: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Figura 3- Projeto da Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê, Saturnino Brito, 1924/25

A fase de reservação

O aumento da recorrência das enchentes, es­pecialmente nas grandes planícies do Tietê, do Pirajuçara, do Tamanduateí e do Aricanduva, de­monstrou as falhas do modelo anterior de ocupa­ção das várzeas através de canalizações rápidas de córregos. Tal modelo tornou as enchentes mais freqüentes, além de transpô-las para jusante, não resolvendo na essência o problema das inunda­ções, que se resume em reduzir o déficit de áreas de armazenamento de águas nas cheias, onde es­tas foram suprimidas pela ocupação.

Em 1992, é inaugurado o primeiro reservatório de amortecimento de cheias em São Paulo, sob a praça Charles Miller, no Pacaembu, que ficou conhecido como "piscinão". Este reservatório introduziu um novo conceito de drenagem urbana, o da sustenta­bilidade das bacias quanto ao amortecimento das cheias, evitando-se o seu impacto a jusante.

A partir desta experiência bem sucedida, a Prefei­tura de São Paulo, o Comitê da bacia do Alto Tietê e o Departamento de Águas e Energia Elétrica passaram a orientar a implantação de reservatórios de amorte­cimento em várias bacias: do Tamanduateí, do Ari­canduva, do Pirajussara e do Cabuçu de Baixo.

Entre 1998 e 2002, o DAEE (Departamento de Águas e Esgotos do Estado de São Paulo) contrata o consórcio Enger-Promon-CKC para executar um estudo que analisasse a bacia do Alto Tietê segun­do as perspectivas de expansão da mancha urbana metropolitana, o Plano Diretor de Macrodrenagem da bacia do Alto Tietê.

Este plano definiu as premissas básicas para as principais sub-bacias afluentes ao Tietê, conside· rando as características da calha aprofundada de· pois das obras serem concluídas, e o volume dos reservatórios já existentes.

86 _RIOS E PAISAGENS URBANAS

I"Ut<OO !XI CAMA\. 56,0

<:ANAL 00 TieTÊ

42,80 224,0

Figura 4- Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo de Prestes Maia (19301: Retificação do Rio Tietê

O plano restringia os impactos à jusante de cada bacia, estabelecendo vazões de restrição para cada sub-bacia, ou seja, vazões máximas que poderiam ser despejadas pelos afluentes. Também orientava a localização dos reservatórios, através de um es­tudo de áreas públicas disponíveis ou, em última instância, desapropriáveis a baixo custo.

Ü CASO DA SuB-BACIA DO RIO ARICANDUVA38

Intervenções e perspectivas

As intervenções na sub-bacia do Aricanduva re­fletem o padrão de urbanização praticado nas vár­zeas da Grande São Paulo desde o fim do século

XIX e de forma mais aguda nas décadas de 70 e 8o, ou seja, a utilização das canalizações rápidas e vias em fundos de vale.

O estudo da (sub)bacia do Aricanduva é inte­ressante por ter sido a primeira a ser objeto de um estudo de macrodrenagem urbana no Brasil, a partir de meados da década de 90. Nesta sub­bacia, foram estudadas soluções para equacionar as enchentes, problema criado basicamente pela impermeabilização do solo e pela eliminação das várzeas dos rios, causado pelas canalizações rápi­das de corpos d'água.

A cultura das canalizações e vias marginais

As retificações sanitaristas que ocorreram fre­qüentemente nas primeiras décadas do século XX nos rios Tietê e Tamanduateí eliminaram seus

RlDS E PAISAGENS URBANAS_ 87

Page 45: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

meandros naturai" e as características originais de suas várzeas. Mesmo depois das primeiras evidên­cias de piora da qualidade da água, os meandros e as matas ciliares continuaram a ser vistos, parado­xalmente, como problemas e não como soluções. As freqüentes inundações - intrínsecas às caracte­rísticas morfológicas do suporte físico-hidrológico da cidade - e o crescente despejo de esgotos nas águas induziram a soluções de "obras de melho­ria", cujo objetivo era escoar as águas para longe, e o mais rápido possível.

Essa prática continuou com os grandes planos que referendaram a produção do espaço na cida­de. O Plano de Avenidas, apresentado por Prestes Maia em 1929, introduziu a necessidade das ave­nidas de fundo de vale, o que foi posteriormente consolidado na publicação do PUB, em 1969. Na década de 70, há a retificação e a implantação das Marginais no rio Tietê e Pinheiros e a canalização global do Tamanduateí.

A partir de 1987, a cnaçao do PROCAV da PMSP reafirmaria este padrão de intervenções com canais velozes e vias de fundo de vale.

As primeiras obras de canalização e seus efeitos

As obras de canalização e melhorias hidráulicas na (sub)-bacia do Aricanduva iniciam-se na década de 70, com a canalização do trecho da sua foz até as imediações da avenida Radial Leste. Entre 1976 e 1984, a EMURB (Empresa Metropolitana de Urba­nização) realiza obras de implantação de vias mar­ginais e a canalização em gabião do rio até a avenida Afonso de Sampaio e Souza. O metrô continuará as obras até a avenida Ragheb Chohfi, entre 1987 e 1988. Deste ponto até as cabeceiras, as intervenções se restringem à retificação de alguns sub-trechos, mantendo-se em geral a calha natural do rio.

Figura 5 - Reservatório Rincão - Bacia do Aricanduva - 2002, Foto Adriano Estevam

Os afluentes também sofreram canalizações, como foi o caso do córrego Rincão (na década de

7o, pela Prefeitura Municipal de São Paulo e pos­teriormente, pelo metrô e pela PMSP em conjun­to, em 1985) e seu afluente, o córrego Gamelinha, no início da década de 1990.

Os principais afluentes do rio Aricanduva pela margem esquerda, ou seja, os córregos Taboão, Inhumas e Machados, passaram a ser objeto de intervenção do PROCAV a partir de 1995, quando foram iniciadas as obras de canalização em seu cur­so inferior.

Com a gradual mudança do comportamento hidrológico da sub-bacia devido, principalmente, à redução dos tempos de concentração e conse­qüente aumento dos picos de vazão e dos pontos de alagamento, as inundações passaram a ter uma periodicidade praticamente anual, sendo provoca­das em sua maior parte, por chuvas com duração entre 30 e 120 minutos.

Este cenário foi sendo agravado ano após ano, o que resultou nas graves ocorrências verificadas todos os verões, acarretando enormes prejuízos, tanto às populações ribeirinhas, com grandes per­das materiais e riscos à saúde pública, quanto aos usuários da avenida Aricanduva e suas transver­sais, das avenidas Radial Leste e Itaquera, totali­zando uma enorme área afetada.

Em certos eventos, as inundações chegaram a prejudicar até mesmo o tráfego dos trens do me­trô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Me­tropolitanos), pois estes cruzam o córrego Arican­duva, paralelamente à avenida Radial Leste.

Os primeiros reservatórios nas cabeceiras e as melhorias na foz

Devido a estes sérios problemas de inundação, em meados da década de 1990, a Prefeitura Mu-

Figura 6- Bacia do Alto Tietê: Sub-bacia do Aricanduva. Elaboração Adriano Estevam, a partir do IPT. s/ escala

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RIOS E P~1ISf1CENS URBnNnfL 89

LEGENDA

Pontos de inundação

Mancha urbana

Page 46: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

nicipal de São Paulo, juntamente com a realização de obras de melhoria na canalização existente no trecho inferior, iniciou a implantação de reserva­tórios de amortecimento de cheias, os "piscinões", no terço superior da bacia (denominado de Alto Aricanduva). Foi planejada a implantação de cinco reservatórios de detenção, sendo três ao longo do curso superior, e os outros nos córregos Limoeiro e Caaguassu, afluentes da margem esquerda do Aricanduva. Foram ainda previstas obras de me­lhoria hidráulica no canal do Aricanduva, como o alteamento de pontes e a remoção de lajes de co­bertura nas proximidades da foz.

A implantação deste programa sofreu diversas interrupções, tendo sido finalizado pela PMSP/ SIURB (Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana), com a conclusão dos reservatórios Ari­canduva 2 e Aricanduva 3- O reservatório Aricandu­va r e os reservatórios Limoeiro (RLir) e Caaguaçu (RCAr) já haviam sido concluídos anteriormente.

Figura 7 -Obras na calha do rio Tietê- 2005, Foto Adriano Estevam

Os cinco piscinões somaram cerca de L40o.ooo m3 à capacidade inicial de reservação. Para uma chu­va de recorrência de r o anos, no final do tr·echo, na se­ção efluente do reservatório Aricanduva 3 (RAR3). os picos de cheia calculados foram reduzidos de r6sm3f s para 24m3 js, com a presença dos reservatórios.

Essas obras foram concluídas no final de 1998, antecedendo o período chuvoso 98/99.

O programa de implantação deste conjunto de reservatórios do Alto Aricanduva foi pioneiro no país, para o controle integrado de enchentes em sub-bacias urbanas (Figs. 5· 6 e 7).

CoNSIDERAÇÕEs FINAIS

Através desse breve recuo histórico, tentamos descrever o processo de perda gradativa da relação entre a cidade e seus rios, rios estes que foram res­ponsáveis pela sua própria condição de primeira metrópole brasileira.

Até a década de p, segundo Caio Prado Jr.39

São Paulo era uma cidade de ladeiras e viadutos. Devido a sua topografia e hidrologia, "a cidade acabará com um verdadeiro sistema completo de vias públicas suspensas o que lhe emprestará um caráter talvez único no mundo40

". Ainda segundo Caio Prado, "os antigos cursos d'água, sumidos em canalizações subterrâneas ou represados em leitos de cimento e pedra, estarão ainda aí, seja no acidentado da topografia por eles esculpida, seja no traçado das ruas e avenidas, cujas linhas mes­tras serão sempre estas grandes vias que acom­panham, como as velhas estradas do São Paulo quinhentista, os espigões, ou o fundo dos vales, saltando por pontes as escarpas mais abruptas ou varando-as por túneis"41

.

Atualmente, os principais afluentes do Tietê na região central de São Paulo estão canalizados ou tamponados. Isto tem causado vários problemas durante a época de chuvas de verão, tais como ala­gamentos generalizados das vias em fundo de vale

que causam enormes congestionamentos com re­percussões negativas na economia da cidade e pre­juízos à saúde pública das populações ribeirinhas, onde as águas já estão contaminadas. Para atenu­ar estes efeitos negativos foram tomadas duas me­didas principais pelas atuais administrações esta­dual e municipal: o aprofundamento da calha do rio Tietê e a construção de vários reservatórios de contenção de águas em córregos e rios tributários. Estas intervenções dão uma nova feição à cidade. Pelo bem e pelo mal.

Justamente no Japão, sobretudo em Tóquio, a cidad~ de baixa mediância de Berque42

, Tôkyô-la­Laide", a partir da década de 70 foram projetados os primeiros rios-parque aquafílicos (shinsui) no distrito de Edogawa, que a princípio se constituí­ram em parques lineares sobre córregos com o in­tuito de refamiliarizar as crianças com a presença da água. Antigos córregos foram destamponados ejou renaturados para que se pudesse restabelecer neles a fauna e flora originais. Nas primeiras expe­riências, entretanto, só se pretendeu a despoluição dos rios e um tratamento paisagístico adequado. Na década seguinte, foi introduzido para os rios urbanos um desenho ecológico, com uma nova ótica sobre o ambiente natural das vias fluviais, preocu­pada com as determinantes ecológicas do desenho paisagístico. Como exemplo, temos na cidade de Yokohama, os rios Itachigawa43 e Izumigawa. Esta tendência tem caracterizado a recente restauração de rios urbanos no Japão.

Em relação às paisagens fluviais paulistas, também é chegado o momento de superar a intervenção puramente quantitativa da engenharia e caminhar em direção à criação de espaços que, além de resolver problemas viários e de saneamento básico, consigam propor uma nova apropriação social para estas áreas, levando em conta a estética e a dimensão ecológica, cultural e afetiva que está sempre contida nas paisagens fluviais urbanas.

Figura 8- Rio ltachigawa em Yokohama, antes da restauração

Figura 9- Rio ltachígawa restaurado, 1980. Acervo Napplac/FAUUSP

Page 47: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

NoTAs

r- Veja-se noção de fluvialidade em Oseki, j .H. "La fluvialité des

fleuves urbains" in Ostrowetsky, S. ed. Lugares, d 'un continent

l 'autre ... perception et production des espaces publics, L'Harmattan,

Paris, 2001 e Oseki, ).H. "A Fluvialidade no Rio Pinheiros: um

projeto de estudd', revista Pós n. 8, dez 2000, FAUUSP

2- Em uma pesquisa desenvolvida na FAUUSP, dentro do

NAPPLAC, da qual participaram, entre outros, os profs.drs.

Lucrécia D. Ferrara, Marlene Picarelli, Maria Ângela F. P.

Leite, Yvonne M.M. Mautner e Paulo M. Pellegrino.

3- Cf. Lefebvre, H. La Production de I: Espace, Paris, Anthropos,

1986, p. 350 e 379-80.

4- Lefebvre, H., La Pensée Marxiste et la Ville, Paris, Tournai,

Casterman, l978, p. 8r.

5- Lefebvre, H, La Production de !'Espace, op. cit., p 265-7

6- Berque, Augustin. "Â f Origine du Paysage" in Les Camets

du Paysage n°1, printemps, Actes SudjENSP,1998

7- Cf. Lefebvre, H. De fÉtat, t IV, Paris: UGÉ jro-18, 1978, p

285 e 410

8- CfBerque, A., op.cit., p 135

9- Berque, idem, p 137-8

ro- Lefebvre, H La Production de !'Espace, op. cit., p 137

n- Idem, p139

12- Béguin, François Le Paysage, DominosjFlammarion, Paris,

1995

13- No nosso caso conviria ressaltar o papel das pinturas dos

viajantes europeus nas expedições exploratórias científicas no

mesmo século, que nos deram uma primeira imagem (ainda

que talvez eurocêntrica) de nós mesmos, em nosso espaço.

14- Cf. Béguin, op.cit

15- Veja-se Rougerie e Beroutchachvili, 1991.

r6- Berque, op. cit.

17- Béguin, idem

r8- Béguin, ibidem

19- Béguin, ibidem

20- Cf. Lefebvre, La Production de l' Espace, op. cit.,1974

21- Cf Berque, Augustin "La forme de Tokyo: parler du

paysage, c'est le fàire" in Lígeia n. 19-20, oct. 96, juin 97·

22- Berque, A "Le sens de la riviêre: nature et simulacres à

Tôkyô, fin de siêcle" in Berque, A org. La Ma!trise de la Ville:

urbanité française, urbanité nippone Études japonaises 2, Paris:

Éd. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1994

23- Mattes, D. "O espaço das águas: as várzeas de inundação

na cidade de São Pauld', Dissertação de Mestrado, FAUUSP,

São Paulo, 2001

24- Ab'Saber, Aziz Nacib, Geomo1jologia do Sítio Urbano de São

Paulo- Tese de Doutorado- FFLCH/ USP- São Paulo, 1956

25- Cf. II Concurso das Águas: "Concurso Público Nacional

de Idéias para o Melhor Aproveitamento das Âguas da

Região Metropolitana de São Pauld', PMSP, Consórcio

Intermunicipal das bacias do Alto Tamanduateíf Billings,

SBPC, São Paulo, 1992

26- Almeida identifica quatro tipos básicos de relevo, baseando-se

na constituição litológica do Planalto Paulistano: Serras e Morros

Isolados (sustentados por granitos), Morros e Cristas Quartzísticas,

Morros Alongados, Colirws e Cristas Monoclinais (mantidas por

filitos, micaxistos e gnaisses micáceos) e Espigões Ramijicados e

Colinas Amplas (sustentados por rochas sedimentares da bacia

de São Paulo). Cf.Almeida, F.F.A.- Fundamentos Geológicos do

Relevo Paulista, Instituto Geográfico e Geológico do Estado de

São Paulo. Vol. 41, 1964, pp.168

27- Cf. Ab' Sáber, Aziz Nacib, op.cit.

28- Cf. Ab'Saber, Aziz Nacib, 1978

29- Arnaldo Sérgio Kutner participou como geólogo do

Plano Diretor de Macrodrenagem da bacia do Alto Tietê,

desenvolvido pelo Consórcio Enger-Promon-CKC para 0

DAEE - Departamento de Âguas e Energia Elétrica do Estado

de São Paulo.

30- "Combinam-se de tal forma rede hidrográfica e relevo,

ambos determinantes da expansão demográfica paulista,

para darem a São Paulo a primazia do cenh·o do povoamento

do planaltd' Prado j r. Caio A cidade de São Paulo: geografia e

história, São Paulo, Brasiliense, 1983

31- Prado )r., Caio, op. cit.

32- Frase de Teodoro Sampaio, citado por Prado )r, C., op. cit.,

P·47

33- Em duas décadas, a população dobra (1872 a 1890) para,

na década seguinte, quadruplicar. Segundo Ernani da Silva

Bruno "de um burgo de estudantes a cidade se transforma

em metrópole do café", citado por Matos, Odilon Nogueira

"A cidade de São Paulo no século XIX", in Revista da História,

SP, (21/22):89-125, jan-jul, 1955.

34- Langenbuch, jurgen Richard, A Estruturação da Grande

São Paulo- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

-Rio de janeiro, 1971

35- Veja-se "A abolição da escravatura e a grande imigração

(1886j88)" em Martins,). S., O Cativeiro da Terra, LECH, São Paulo, 1979

36- Veja-se Brito, Saturnino de "Defesa contra Inundações"

in Obras Completas 23 vols., vol. XIX, Ministério da Educação

e Saúde, Imprensa Nacional, Rio de janeiro 1943-44

37· Cf. Villaça, F., 2001

38- Esta bacia será objeto de estudo da dissertação de

mestrado de Adriano Estevam.

39- Prado )r., C., op. cit. p. 77

40- Idem

41- Ibidem

42- Berque, A. Daruma, 1998

'Tóquio-a- Feia

43- A reforma do rio ltachi, na cidade de Yokohama (r982),

revelou as formas naturais do rio. Este rio atravessa uma

área residencial em Yokohama; trata-se, portanto, de um rio

urbano com cerca de 18m de largura e 3m de profundidade.

Foram utilizados materiais naturais, para conservar a

aparência original e não foram construídas proteções nas

margens do rio, abaixo do nível d'água. Na linha marginal à

água foi feito um aterro de curvas brandas, e no canal embaixo

da água, foram fincadas estacas de madeira para a formação

de poços e correntezas, com a finalidade de se reconstituir o

ecossistema primitivo. Veja-se Shimatani, Y., op. cit.

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E CULTURAIS DE SUAS PAISAGENS URBANAS

Alessandra Soares Ghilardi, Cristiane Rose de Siqueira Duarte

"( .. .)As águas risonhas, os riachos irônicos, as cascatas ruidosamente alegres encontram-se nas mais variadas paisagens literárias.

Esses rios, esses chilreios são, ao que parece, a linguagem pueril da natureza" (Bachelard, 1998:;5)

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Dialética- São Paulo: Hucitec, 1996

A paisagem urbana, estudada nas últimas dé­cadas por autores de disciplinas variadas, tem sido abordada de forma cada vez mais integral. Os processos naturais e sociais de um determi­nado lugar estão sendo pensados de forma con­junta, resultando numa visão mais ecológica da paisagem urbana. Além disso, o espaço da cidade passa a ser estudado através da experiência huma­na, ressaltando os valores e significados que cada grupo de pessoas tem com o espaço e a natureza. Esta visão permitiu o reconhecimento dos rios urbanos como paisagens culturais (Hough r995, Penning -Rowsel & Burgess, 1997).

Com o intuito de compreender a dinâmica das paisagens ribeiras urbanas, buscamos revelar a importância dos valores ambientais, estéticos, so­ciais e culturais existentes nos seus espaços livres públicos. Tais valores vêm sendo descartados pelas ações das administrações públicas, principalmen­te quando os espaços livres envolvem os peque­nos rios. O ribeirão Preto, como exemplo de um processo de degradação gerado principalmente a partir do descaso do poder público com o sistema natural, foi o nosso estudo de caso. Cientes de sua grande importância para o patrimônio histórico e paisagístico da cidade que leva seu nome- Ribei­rão Preto (Fig. or) -procuramos compreender a

H1DS

Figura 01 - O ribeirão Preto canalizado na Baixada do Centro da ci­

dade, Av. Jerônimo Gonçalves, 1997, Foto Alessandra S. Ghilardi.

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dinâmica de suas paisagens, tanto pela influência das ações públicas ao longo da evolução histórica da cidade como pela experiência cotidiana atual da população ribeirinha.

Este capítulo apresenta alguns resultados de uma pesquisa que se baseou na utilização de mé­todos quantitativos e qualitativos (Zeizel, 1984; en­tre outros), estruturados a partir de duas etapas: o levantamento de documentos históricos e material iconográfico, e a pesquisa de campo. A primeira etapa buscou, além da literatura existente, regis­tros documentais primários, plantas cadastrais, planos diretores, projetos e fotografias (atuais e an­tigas), ou seja, todo material que elucidasse prin­cipalmente as diversas ações do poder público que influenciaram a estruturação urbana da área de estudo, conseqüentemente o uso e a apropriação do ribeirão Preto e seu entorno. Na segunda etapa metodológica, a pesquisa de campo, estudamos o comportamento dos usuários ribeirinhos atuais e buscamos compreender as relações que estes man­têm com os espaços do entorno do ribeirão, nossa área de estudo, através de questionários', entrevis­tas2 e observação de uso e comportamento3•

A metodologia que está na base do presente tra­balho nos permitiu compreender melhor a relação riojcidade, tanto nos aspectos físicos e paisagísti­cos, como na questão social e cultural dos habi­tantes em relação à área proposta para o estudo. Vimos que, apesar de o ribeirão passar pelo centro histórico da cidade (Fig. oz), alvo de diversas revi­talizações, não existe nenhuma intervenção efeti­va que proponha a integração e a valorização deste elemento da natureza com a estrutura urbana e cultural da cidade. Este estudo se propõe a contri­buir para o preenchimento desta lacuna.

Deste modo, com o intuito de compreender o papel social que os rios urbanos vêm exercendo ao longo do processo evolutivo das cidades, vamos analisar as formas pelas quais a presença do ribei­rão Preto tem sido conduzida nas administrações públicas ao longo do tempo, bem como identifi­car os significados e valores atribuídos ao ribeirão pela população atual dos diferentes lugares exis-

tentes ao longo da área de estudo. Os resultados do trabalho reforçaram nossa convicção de que 0 ribeirão Preto é mais do que um canal de água po­luída, e possui, além do valor histórico, presença fundamental na paisagem da cidade, sendo poten­cialmente capaz de produzir a interação adequada entre o meio natural, o meio (social) urbano e as pessoas, como já foi demonstrado em inúmeras outras paisagens ribeiras urbanas.

Autores de diversas disciplinas vêm estudando a presença da paisagem natural nas cidades não só do ponto de vista ecológico, mas principalmente através da experiência humana com estes espaços. Lynch (1978) já comentava que a importância so­cial de um espaço traduz o "sentido do lugar", pois considera os valores e experiências adquiridas pe­las pessoas, ou seja, além das qualidades físicas de um ambiente, considera os significados derivados do processo cultural. No entanto, o autor obser­va que muitos profissionais ainda pensam maisc nos aspectos físicos dos lugares e esquecem que uma das principais características do ambiente a ser construído é a qualidade de interação entre as pessoas e o lugar. Veremos adiante que esta obser­vação se confirma nas ações públicas que envolve­ram a evolução urbana do ribeirão Preto.

Cada vez mais os projetos de intervenção am­biental estão procurando unir a especificidade de cada lugar às relações entre seus elementos cons­truídos, naturais e culturais. Estudar a cidade na perspectiva dos usuários representou o reconhe­cimento de que cada indivíduo tem uma diferente percepção da natureza e da paisagem, o reconhe­cimento das questões culturais nos diversos cam­pos que trabalham com a paisagem. Estudar a pai­sagem como um meio da interação direta entre as pessoas de um grupo social e o espaço é reconhe­cê-la como Paisagem Cultural, que Groth (199Tor) define como a paisagem onde as pessoas "estabcle· cem suas identidades, articulam suas relações sociais, e obtêm os significados culturais".

Trazendo estas questões para as relações enc tre rios, cidades e população, Penning-Rowsel & Burgess (1997) verificaram que os rios possuem

96~f-HOS Pf4ISAGENS URBnNAS

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Figura 02 - Bacia hidrográfica do ribeirão Preto ressaltando

o município com o anel viário que contém a malha urbana, e a

área de estudo demarcada.

Base: Mapa Hidrográfico do Município de Ribeirão Preto. Fon­

te: Plano Diretor de Macro drenagem do Município de Ribeirão

Preto, mar/2002.

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diferentes significados para diferentes grupos de pessoas, por estarem intimamente relacionados com suas culturas. Contudo, várias características da paisagem ribeira são apreciadas pela maioria das pessoas. Como afirmam os autores, a água em movimento, determinados sons e cheiros, e pequenos animais que vivem às margens dos rios, trazem o prazer de se estar próximo à natureza. Deste modo, os rios e toda a paisagem que os en­volve podem contribuir para o bem-estar da popu­lação nos seus espaços livres urbanos.

Os rios urbanos, quando valorizados como re­curso natural nos espaços livres públicos da cida­de, atraem as pessoas e, deste modo, são capazes de dar suporte a uma vida pública, portanto ao seu próprio espaço público (Carr et al 1995), e ainda contribuir para aumentar o "sentido do lugar". Se­guindo este viés, acreditamos que os temas su­geridos podem enfatizar, promover e revelar, os valores sociais e culturais existentes na Paisagem dos Rios Urbanos. Neste trabalho, especificamen­te, daremos ênfase ao tema que acreditamos que mais valoriza o potencial das paisagens ribeiras nas cidades: o uso das margens pelas diversas for­mas de lazer.

Manning (1997) defende que a paisagem ribei­ra deva ser manipulada de acordo com o seu valor estético, mas principalmente recreativo. A questão do lazer como uso dos espaços livres é um valor que historicamente está intrínseco a este elemento natural, pois suas águas e margens estão sempre relacionadas aos banhos de sol, pesca, canoagem e contemplação. As águas urbanas são utilizadas de diversas maneiras, sendo um dos melhores exem­plos a oportunidade de criar um cenário panorâ­mico atraente com facilidades recreacionais ao ar livre e um espaço confortável para o descanso dos habitantes urbanos (Carr et al 1995).

Desta forma, analisaremos o papel social que o ribeirão Preto vem exercendo no seu processo evolutivo urbano, desde a origem da cidade até a formação das diferentes paisagens que se configu­raram hoje no trecho que corta a cidade de Ribei­rão Preto, nossa área de estudo. Por fim, identifi-

caremos os valores e significados que permane­cem na relação das pessoas com rio, apesar de sua paisagem fragmentada, fortificando-o ainda como uma identidade única na cidade.

EvoLUÇÃO URBANA DO RIBEIRÃO PRETO

Da origem da cidade à estruturação da paisa­gem urbana

"Muitas cidades devem sua localização, seu crescimento histórico e a distribuição da

população, bem como o caráter de seus edifícios, ruas e parques às características diferenciadas do

seu ambiente natural". (SPIRN, 199P7)

Assim aconteceu com a cidade de Ribeirão Pre­to. O ribeirão, que leva o mesmo nome da cidade, como parte do meio ambiente natural, foi funda­mental para a origem da cidade, servindo como referência para a implantação e demarcação ini­cial do centro urbano. Sua importância continuou nas primeiras décadas do processo evolutivo da cidade, estruturando espacialmente e socialmente a paisagem urbana.

A origem do povoado de Ribeirão Preto foi de­terminada em I856, quando a doação de terras de fazendeiros da região para a construção da Igreja Matriz foi reconhecida por um juiz do Estado. A área doada foi demarcada em um único quinhão no ponto mais alto entre o ribeirão Preto e o córre­go do Retiro, garantindo para o edifício religioso um destaque na paisagem (Cione, 1989), local hoje considerado o marco zero da cidade. A demo· ra para a construção da capela não impediu a for­mação do povoado que passou a ser reconhecido pelo seu nome: São Sebastião de Ribeirão Preto. Seus primeiros arruamentos foram executados or· togonalmente aos dois pequenos rios. Com o cres-

Figura 03- O tecido inicial da cidade foi traçado num eixo perpendicular ao ribeirão Preto a partir da Igreja Matriz [mapa 1). O

crescimento da cidade limitou-se as margens do ribeirão Preto (mapa 2). Base: Planta esquemática da Vila de São Sebastião

de Ribeirão Preto, 1874 e Planta da cidade de Ribeirão Preto de 1884. Fonte: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.

cimento da vila, suas ruas se prolongaram até as margens do ribeirão Preto e do córrego Retiro sem alterar o traçado original na forma de grelha. Ca­sas passaram a ser construídas nas proximidades do leito, e as águas do ribeirão a ser utilizadas para a lavagem de roupas. Neste primeiro período, o ri­beirão Preto também era usado para o escoamento dos dejetos do Matadouro que se localizava próxi­mo à foz do córrego do Retiro (Pinto, 2ooo).

Deste modo, observamos que o povoado de Ri­beirão Preto interagia diretamente com o ribeirão, não somente pelo seu valor de uso, mas também na sua relação com o desenho urbano, à medida que as ruas, mesmo com um traçado reticulado, posicionavam-se num eixo imaginário perpendi­cular a ele e limitavam-se às margens do seu vale alagado, impondo-se como referência inicial do traçado e limite para o crescimento da cidade até o final do século XIX (Fig. 03).

Além disso, observamos que o fato da vila es­tar localizada entre o ribeirão Preto e o córrego do Retiro, e os rios Pardo e Mogiguaçu, tinha tanta importância que, em r879, a vila passou a ser de­nominada oficialmente de 'Entre Rios'. Curiosa­mente, segundo Cione (r989), este também foi o primeiro nome dado a esta região pelos indí­genas: 'Ipamerim'. No entanto, a impopularidade do nome 'Entre Rios' fez com que dois anos mais tarde fosse restabelecido o antigo nome de Ribei­rão Preto4.

A partir de r876, a constatação da fertilidade da terra roxa da região e de seu potencial para a cul­tura do café em larga escala foram fundamentais para a chegada da estrada de ferro à cidade, cujo traçado seguia as margens do ribeirão. Este fato provocou mudanças profundas tanto na estrutura fundiária como na estrutura urbana da vila. A es­tação da Companhia Mogiana, implantada além

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do ribeirão com relação ao núcleo original, trouxe uma nova relação urbanística para a cidade. Ape­sar de o lugar ter sido considerado inadequado para os vereadores da época, por ser "maleitoso" e sofrer inundações que "impedem a passagem para fora do leito"5, a Companhia não cedeu aos pedidos de mudança de local, o que resultou na construção da primeira ponte da cidade sobre o ri­beirão Preto, possibilitando sua transposição pelo tecido urbano.

A localização da estação além do ribeirão e a consolidação da cidade como importante centro cafeicultor na última década do século XIX, de­terminou um novo rumo ao desenvolvimento da cidade, tanto na questão econômica como urba­nística. Entre as primeiras intervenções urbanas realizadas, está a retificação do ribeirão no trecho limítrofe à área urbana da época, e o aterro dos meandros remanescentes do seu antigo traçado. O ribeirão Preto, como elemento natural, passou a perder importância quando começou a ser retifi­cado. O importante, na época, era a possibilidade de expansão da malha urbana, o que o pântano, formado pelos meandros do ribeirão, impedia.

As retificações do ribeirão Preto faziam com que suas águas transbordassem e inundassem as áreas próximas, formando terrenos alagadiços nos meandros do antigo traçado do ribeirão que permaneciam esburacados e propensos à prolife­ração dos mosquitos transmissores de diversas moléstias, como a febre amarela. A primeira re­tificação do ribeirão Preto, como verificamos, não resolveu os problemas de inundação que natural­mente já existiam. E as questões de salubridade com relação às áreas ribeiras, verificadas no Có­digo de Posturas de 1889, apenas alertavam so­bre a existência de chiqueiros nas proximidades dos ribeirões: "É prohibido fazer-se chiqueiros nos leitos dos córregos ou ribeirões, de modo a perturbar o livre curso e asseio da água, quando haja morado­res águas "abaixo. "6

As discussões no poder público até a década de 1890, de acordo com os relatórios da prefei­tura neste período, estavam relacionadas prin-

cipalmente aos conceitos de higiene e limpeza, ao defenderem a salubridade pública. Porém, na entrada do novo século, emergia a questão do em­belezamento da cidade. Com relação às áreas ri­beiras, a resposta a esta questão foi a canalização dos trechos retificados. Mais do que isto, a reti­ficação e canalização do ribeirão Preto facilitaram a transposição do rio pela cidade, resultando em seu crescimento rápido para além do núcleo origi­nal, pois várias pontes foram construídas unindo as duas margens. Além disso, voltou os principais acontecimentos sociais, políticos e econômicos da cidade para a marginal do ribeirão Preto (Cione, 1989). Tanto a ferrovia Mogiana quanto a cafei­cultura foram responsáveis pelo desenvolvimento da cidade, em especial da baixada do ribeirão. A marginal passou, assim, a ser vista como símbolo do progresso urbano e o 'cartão postar da cidade.

A cidade, além de ultrapassar o ribeirão Preto, cresceu ao longo das terras que o margeiam. A estrada de ferro trazia à vila muitos imigrantes, obrigando a abertura de novas ruas. Com a neces­sidade de numerar as casas, estruturou-se a cida­de a partir dos rios que a atravessavam:

Todas as casas de cada rua devem ser numeradas de uma a outra extremidade, por duas séries de nu­meros, sendo a de numeras pares do lado esquerdo e a dos numeras ímpares do lado direito partindo dos cor­regos, ou dos prolongamentos das ruas além delles7

Outra preocupação foi a preservação da moral e dos bons costumes, ressaltada na questão dos banhos nos rios: "É prohibido tomar banhos nos rios e carregas da cidade e povoações do município sem se estar vestido de modo a não offinder o pudor'.z. Acreditamos, portanto, que o banho nos rios fosse uma prática comum, visto que o novo código de posturas impôs regras para ele.

A vinda de imigrantes a Ribeirão Preto foi in­centivada pela criação do Núcleo Colonial Senador Antônio Prado, em 1887. Sua grande contn foi a expansão urbana do município ao longo da várzea do ribeirão. A divisão do Núcleo em sede e

100 _RIOS E PAISAGENS URBANAS

mais quatro seções coincidia com o limite natu­ral do rio que cortava o núcleo ao meio. O ribeirão passou também a gerar energia mecânica para os diversos moinhos de fubá que começaram funcio­nar com a emancipação do Núcleo. A multiplica­ção das chácaras, como vimos, trouxe novos usos para as águas do ribeirão Preto.

Além disso, o desenvolvimento de novos bair­ros dava indícios da divisão social que se estabe­leceria na cidade. As classes baixas da população cresciam para o norte da cidade nos lotes rurais do antigo núcleo colonial, devido ao baixo valor comercial das terras na baixada do ribeirão Preto. Enquanto isso, as classes mais abastadas cresciam para o sudeste, a partir do núcleo original. A divi­são social da cidade também foi percebida quando o Código de Posturas de 1921 dividiu a cidade em três distritos para definir taxas e benefícios de di­ferentes valores. O ribeirão e o córrego do Retiro foram referências na divisão dos distritos9. Obser­vamos, desta forma, que o ribeirão Preto passou a ser identificado como um elemento estruturador da morfologia urbana, e mais do que isto, ele foi (e ainda é) uma referência à divisão de bairros e classes sociais que se configurou na cidade.

Esta estrutura urbana foi acentuada no pro­cesso de industrialização, como veremos adiante, onde o núcleo colonial foi responsável pelas con­dições ideais ao surgimento das primeiras indús­trias que se instalaram ao longo do ribeirão Preto. Geiger (1963), ao estudar a rede urbana brasileira, observou a freqüente localização das indústrias e bairros operários ao longo dos vales, por onde pas­sam as ferrovias, devido à facilidade da presença de água corrente e transporte para a instalação de grandes estabelecimentos industriais.

Verificamos, finalmente, que a Estrada de Ferro da Mogiana, em Ribeirão Preto, não só permitiu que a malha urbana ultrapassasse o limite imposto pelo ribeirão, como impulsionou o crescimento da cidade ao longo dele. Seus trilhos implantados paralelamente ao rio chamaram a atenção para os terrenos marginais de custo inferior em relação ao centro urbano, possibilitando a instalação

dos imigrantes e trabalhadores que chegaram à cidade (Silva, 2002). Esta condição, fundamental à expansão da paisagem urbana, alterou significativamente a sua estrutura morfológica urbana inicial, que passou a ser estruturada no eixo do ribeirão Preto.

Do embelezamento ao desprezo urbano

Vimos que o desenvolvimento da cidade tomou um novo rumo, não só na questão econômica, como também na urbanística. Contudo, o ribeirão Preto, como elemento natural, passou a perder importância quando começou a ser retificado e canalizado. Apesar das primeiras retificações do ribeirão terem como principal objetivo a expan­são da malha urbana para além de suas águas, acreditava-se que elas possibilitariam também que as áreas ribeiras deixassem de ser insalubres, prevenindo futuras epidemias. Porém, tais medi­das não foram suficientes e a cidade passou pela primeira vez por uma epidemia de febre amarela e malária no ano de 1903. Este fato comprovou, mais uma vez, que os serviços de retificação não cumprem o papel neles depositado pelo poder pú­blico de 'controlar' as águas do rio, bem como de evitar uma epidemia.

As classes sociais em ascensão estabeleciam-se na 'cidade' (núcleo urbano original), onde a salu­bridade e o conforto resultavam dos melhoramen­tos urbanos, medidas que foram negligenciadas nas áreas periféricas. Deste modo, a elite distan­ciou-se das chácaras ribeirinhas, dos córregos e das habitações populares em bairros onde o cal­çamento, a água encanada e a captação de esgoto eram praticamente inexistentes. Somente na dé­cada de 20 é que os lotes rurais efetivamente re­ceberam melhoramentos, como galerias de águas pluviais e esgotos, guias e calçamento, mudando o modo de vida da população periférica. Contudo, a cidade nesta época possuía todas as galerias de esgoto conectadas e desaguando no ribeirão Preto e seus afluentes. As decorrentes péssimas condi-

RIOS E PAISAGENS lJRBf\NAS_ 101

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ções de salubridade dos rios foram alertadas pela alteração do Código de Posturas de 1921, que pas­sou a proibir os banhos nos rios da cidade:

É prohibido tomar banhos nos rios e córregos da cidade e povoações do município. Quando sqa de­signado local próprio para banhos, jogos ou esportes nauticos, as pessoas que nelles tomarem parte deverão estar vestidos com roupas apropriadas, de modo a não offinder o pudor. (art. 2 59)

Enquanto isso, o ribeirão Preto adquiria um novo uso: a empresa de Força e Luz forneceu energia elétrica aos edifícios públicos e privados através da primeira usina hidrelétrica de Ribeirão Preto, construída no seu leito, logo abaixo da foz do córrego do Retiro (ClONE, 1989). A usina fun­cionava com águas desviadas através de um canal construído especialmente para alimentá-las. Além desta, encontramos um projeto de 1912 de outra usina hidrelétrica que também usava a água do ribeirão, próxima à estação ferroviária de Santa Te­reza localizada ao sul da cidade.

Além desses melhoramentos, no início da dé­cada de 1910, foram construídas mais de vinte pontes sobre os rios da cidade10

• As pontes, como observa GEIGER (1963), são os pontos ao longo dos rios onde a mancha urbana avança ocupando os vales aterrados, além de impulsionar a urbaniza­ção para áreas além deles. Em função de todas estas obras, a cidade entra na década de 1920 com diversos melhoramentos realizados para deixar a cidade limpa e salubre. Apesar das tentativas de arborizar a cidade desde o início do século, mui­to pouco havia sido realizado até então. Com o enriquecimento do município, principalmente devido à produção do café, a preocupação com os aspectos paisagísticos tornou-se prioridade, voltando-se os investimentos neste momento às obras de embelezamento.

O ribeirão Preto, na avenida marginal Jerônimo Gonçalves, aberta desde o início do século, foi sen­do canalizado com pedras até a confluência com o córrego do Retiro. Juntamente com o parapeito

feito de balaústres, recebeu em 1927 as Palmeiras Imperiais (fig.o1), que se tornaram a marca regis­trada da avenida. As palmeiras, segundo REZENDE (2003), são muito mais que belas, são suntuosas elegantes e, sobretudo, não significam apenas em~ belezar e modernizar as cidades, elas constituem um símbolo que cria o cenário do poder, uma ima­gem que produz uma identificação com o imagi­nário oficial do Império. E esta foi exatamente a conotação que o poder público da cidade quis apresentar aos visitantes de Ribeirão Preto que desembarcavam na estação da Mogiana, principal via de chegada de celebridades e políticos. O lugar, que simbolizava a "entrada" da cidade, deveria ser um cenário grandioso que demonstrasse o perfil do poder econômico da cidade. A paisagem do ri­beirão Preto, principalmente na avenida Jerônimo Gonçalves, representou mais do que um cenário aprazível; representou a interação direta entre as pessoas de um grupo social com o espaço, uma paisagem cultural.

Apesar de todas as benfeitorias realizadas para o embelezamento da cidade, o ano de 1927 foi marcado por uma das mais graves enchentes da história da cídade.

( ... ) parte da nossa Cidade foi castigada por uma enchente do Ribeirão Preto, o carrego que atravessa a parte baixa da Cidade.( ... ) Os seus habitantes, na maioria pobres e operarias, tiveram os seus lares in­vadidos pela agua e viram destruidos quasi todos os

• 11 seus movefs.

Verificamos assim que as ações do poder públi­co estão na maioria das vezes voltadas para a ima­gem da cidade e ignorando muitas vezes os reais problemas urbanos. Pontes foram construídas e reconstruídas devido à destruição causada pela en­chente de 1927. No entanto, não se chegou ao cer­ne do problema da enchente, a pensá-lo como um fenômeno natural dos rios na época das chuvas, que precisam de espaço às suas margens para a sua natural inundação. Continuaram acreditando que a retificação e a canalização eram indispensá-

102 .. RIOS E PAISAGENS URBANAS

veis ao saneamento do ribeirão, e principalmente estavam preocupados com o embelezamento de urna das partes mais importantes da cidade.

Por tudo isso, outras retificações do ribeirão fo­ram realizadas no ano de 1929, e discursos de que a cidade baixa estaria livre das inundações com es­tas obras continuaram a acontecer:

Um dos problemas serias que preocupava todas as administrações do Município eram as constantes enchentes do carrego Ribeirão Preto, ( ... ) resolvemos dar solução immediata e definitiva a este problema, e assim fizemos obras de vulto rectijicando o Ribeirão Preto ( ... ), estando hoje ( ... ) toda a parte baixa da cidade livre completamente das calamitosas e periodi­cas innundaçõeS. 12

De todo modo, a avenida Jerônimo Gonçalves, marginal do ribeirão Preto, foi sempre pioneira em receber os melhoramentos e embelezamentos realizados no centro urbano: a primeira retificação, a primeira canalização e foi uma das primeiras a ter suas vias calçadas e arborizadas. A avenida marginal assistiu a construção de um complexo de atividades comerciais que tiveram início com o Mercado Municípal, em 1901, dando impulso econômico à avenida e à própria cidade, tornando­se o símbolo de progresso da cidade. Deste modo, a cidade de Ribeirão desenvolveu-se não somente pela qualidade do solo, mas porque se formou um mercado interno de consumo, possibilitando o desenvolvimento do setor industrial. Produtos que a importação não supria ou eram de custo alto passaram a ser produzidos localmente, e a instalação das indústrias ocorreu às margens do ribeirão Preto.

A cidade passou a ser alvo de investimentos. O grande marco para a marginal foi a inauguração da Cervejaria Antártica em 19rr e da Cervejaria Paulista no ano seguinte (CloNE, 1989), dando grande impulso à economia industrial e comercial (Fig. 04). A marginal não só foi o marco da ascensão econômica, como também social da cidade. Em frente à Estação da Mogiana

aconteciam as principais comemorações e debates populares. A Baixada do Centro foi formada por um complexo significativo de elementos construídos que, juntamente com a Estação da Mogiana, por onde pessoas ilustres chegavam, fizeram da margem do ribeirão Preto um local de recepção e comemoração.

A maioria do comércio e das indústrias locali­zava-se no antigo núcleo colonial, boa parte nas áreas de várzeas às margens do ribeirão Preto. Es­tes terrenos apresentavam baixo valor comercial e estavam próximos aos recursos hídricos para o fornecimento de energia elétrica e despejo dos dejetos, além de desfrutar da proximidade da es­trada de ferro, que transportava sua mercadoria e matéria-prima. É interessante notar que as terras localizadas nas várzeas do ribeirão Preto foram abandonadas pelos agricultores no final do século XIX, por apresentarem terrenos desfavoráveis ao plantio do café, mas tornaram-se locais ideais para o desenvolvimento da indústria (SILVA, 2002).

Os principais fatores que levaram a marginal do ribeirão Preto a atingir seu auge foram os mesmos que levaram à sua decadência: a Estrada de Ferro da Mogiana e a produção cafeeira. Em meados da década de 30, a produção do café nacional assis­tiu o seu declínio. Ribeirão Preto neste período não dependia exclusivamente do plantio de café. A queda do café trouxe o aumento da população urbana, o que favoreceu o desenvolvimento da in­dústria na cidade devido à abundâncía de mão-de­obra. E as indústrias voltaram-se para o mercado interno da cidade, com mercadorias de consumo não-duráveis.

Até a década de 50, instalaram-se indústrias de grande porte na cidade, como as Indústrias Reuni­das Francisco Matarazzo que ocuparm um grande lote às margens do ribeirão Preto e mais três indús­trias de menor porte que também se instalaram ao longo do ribeirão: Indústria de Bebidas Gino Alpes, Frigorífico Morandi e Cerâmica São Luiz (SILVA, 2002)

Durante a década de 1940, o município experi­mentou a retomada do crescimento econômico e

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Figura 04 - Localização das lndustrias de grande porte que se instalaram às margens do ribeirão Preto até a

metade do século XX. 1-Cervejaria Antártica; 2-Cervejaria Paulista; 3-Cerâmica São Luiz; 4-Bebidas Gino Alpes;

5-Frigorífico Morandi; 6-lndustrias Matarazzo I Ciane. Base: Planta Cadastral e fotos aerofotogramétricas de

Ribeirão Preto. Fonte: Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental- Cadastro Técnico de Obras.

o aparecimento de diversos problemas urbanísti­cos com o aumento populacional. Ribeirão Preto passou quase um século sem um plano geral que envolvesse ou contemplasse a cidade como um todo. A preocupação da municipalidade concen­trava-se, até então, em sanear, melhorar e embele­zar o centro urbano, intervindo esporadicamente em pequenos trechos isolados no resto da cidade, e apenas quando extremamente necessário.

Além disso, a 'vocação industriaf a jusante do ribeirão se consolidou com as fábricas que se ins­talaram. Toda a área do ribeirão ao norte da cidade, que pertencia ao antigo núcleo colonial, foi povo­ada por imigrantes da lavoura, que vieram traba­lhar tanto na indústria como no comércio e nos serviços, formando-se os bairros de classe social baixa, que permanece até os dias de hoje. O de­senvolvimento da cidade, mais especificamente a marginal do ribeirão Preto, trouxe consigo um

certo desprezo com o rio, revelado principalmen­te pela falta de comprometimento com a quali­dade de suas águas, alvo de despejo dos esgotos domésticos e dos resíduos das fábricas. A cidade, então, foi progressivamente "dando as costas" ao ribeirão, fazendo com que sua importância sim­bólica, como referência da origem e estruturação da cidade, e seus valores de elemento natural e de uso, como o banho e a pesca, além de seu valor paisagístico, diminuíssem.

As tentativas de revalorização

Diante do cenário de renovação metropolitana que Ribeirão Preto preparava-se para entrar na década de 40, tomou-se inevitável o planejamen­to da cidade como um todo, e os planos urbanos passaram a direcionar o crescimento da cidade.

Ribeirão recebe seu Primeiro Plano Diretor'3 em 1945, desenvolvido pelo engenheiro e urbanista José Oliveira Reis, nativo da cidade. Através do memorial do plano escrito por Reis (r945) '4 e do seu próprio esquema projetual, verificamos a im­portância dada aos rios, principalmente como ele­mento estruturador do sistema viário e das áreas verdes na cidade. O principal elemento condutor da proposta de implantação das áreas verdes públi­cas foram os espaços livres das várzeas dos cursos d'água que atravessam a cidade, através da criação de parques lineares. REis (1945:04) enfatizou que o reflorestamento destas áreas deveria ser um dos primeiros pontos a serem estudados e executados na cidade:

( ... ) Estas faixas de vegetação na zona de expansão da cidade e em geral ao longo das várzeas, visam por outro lado manter uniforme o regime dos rios, bem como fazer o saneamento da baixada, com o mínimo de despesas. ( ... ).Os espaços verdes ao longo dos rios permitirão a criação dos parkways, que, além de faci­litarem as ligações de zonas, possibilitarão o estabele­cimento de centros esportivos e de recreação ativa no seu percurso, valorizando a região, tornando-a, além disso, mais atraente.

Enquanto isso, o sistema viário apresentado na proposta de Reis (1945) constitui-se por avenidas radiais e perímetraís. A perimetral externa teria como guia o ribeirão Preto e o córrego do Tanquinho, seu afluente. A função desta perimetral era estabelecer comunicação entre os bairros, mas principalmen­te, como afirmou Reis (r945:sjp) "dtifinír de modo claro o perímetro urbano ( ... ) impedindo o desenvol­vimento desordenado e nocivo à cidade". Verificamos então, que o ribeirão Preto, além de conduzir as áreas verdes do plano da cidade, foi um dos ele­mentos usados para estruturar o sistema viário, bem como definir os limites urbanos.

Neste primeiro plano diretor, observamos que a preocupação com as áreas verdes, praças e par­ques esteve diretamente ligada ao sistema viário. As "praças de circulação" 15 orientariam o tráfego

no cruzamento de duas vias, e os "parques lineares" seguiriam as vias marginais dos córregos criando os "Parkways". Apesar deste plano nunca ter sido posto em prática, a prioridade do sistema viário sobre a paisagem natural refletiu-se nas ações pú­blicas realizadas posteriormente.

Nos dez anos que sucederam ao primeiro plano diretor, não houve preocupação alguma na preser­vação das áreas de várzeas, apesar das ressalvas feitas por Reis. Hough (1995) enfatiza que a aná­lise do meio ambiente deve ser o primeiro estágio de um plano geral, mostrando claramente que a balança hidrológica mantida é a chave do plane­jamento para adaptar a forma urbana à influência desse processo natural. Certamente, Oliveira Reis entendia esse processo, pois, em uma conferência realizada na cidade no ano 1955, alertou o municí­pio para a necessidade de iniciar os estudos de pla­nejamento a nível regional. REIS (r955:os) voltou a insistir em um aspecto que já dizia fundamental de ser posto em prática:

( ... ) os parkways ao longo dos córregos e nas zo­nas baixas inundáveis e desvalorizadas deveriam ser objeto de séria cogitação da Municipalidade, país o benefício, a economia, a salubridade que essas áreas proporcionam à população, justificam plenamente as despesas que a Prefeitura teria com a sua aquisição e transformação em parques.

Entretanto, mais cinco anos se passaram e qua­se nada foi colocado em prática, quando o arquite­to urbanista Vicari (r96o) contribuiu para o plano diretor original propondo que, quando as linhas ferroviárias da Cia Mogiana que seguem o ribei­rão Preto fossem retiradas, como fora proposto por Reis (1945), deveriam ser substituídas por uma grande área arborizada destinada a residências, parques e recintos culturais e desportivos. Acredi­tamos que esta proposta foi bastante significativa e impulsionou o atual uso da área: praças, rodovi­ária e um parque ecológico. Contudo, ao falar dos fundos de vales, Vicari (r96o) incentivou apenas a construção de avenidas marginais, deixando de

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lado os parques lineares citados no plano original de Reis (1945), e ainda os designou como diretri­zes das canalizações sanitárias.

Durante quase duas décadas, a cidade de Ribei­rão Preto esteve à mercê do crescimento urbano espontâneo. Neste período, não encontramos ne­nhum plano que envolvesse toda a cidade. Con­tudo, a idéia de criar avenidas marginais aos seus rios não foi abandonada, sendo retomada e desen­volvida no Plano de Ação Imediata de Trânsito e Transporte (PAITT), em junho de 1978'6, ratifi­cando a importância do sistema viário nos planos da cidade. Desde o primeiro plano diretor, o com­plexo viário sobrepôs-se às demais questões que envolvem a cidade, e o P AITT foi a condecoração de todo este pensamento. Os fundos de vale foram novamente reservados para compor as vias arte­riais da cidade, proposta herdada do plano diretor de Reis, com a diferença que os parques lineares, que também seguiriam os rios, não foram leva­dos em conta. A abertura destas vias de circulação local serviria, segundo o PAITT (1978:sjp), para coibir a invasão indevida dos fundos de vales. No entanto, a ausência de ações efetivas nos anos que se seguiram permitiu o contínuo loteamento e povoamento das áreas marginais do ribeirão em diversos trechos da cidade.

Quando a cidade foi assolada por uma grande enchente, em 1983, o governo municipal pela pri­meira vez solicitou ao DAEE'7 o desenvolvimento de um projeto que solucionasse o problema das inundações. O projeto, entregue dois anos depois, propôs duas barragens ao longo do ribeirão Preto, a montante do centro da cidade, que também nunca foram executadas. Este projeto, entregue em 1985, serviu de base para o Plano Diretor de Macrodre­nagem desenvolvido em 2002'8, o qual comenta­remos posteriormente.

O município de Ribeirão Preto finalmente ga­nhou um plano diretor completo em 199519

, que ainda está em vigor na cidade. O plano, de forma geral, preocupou-se com a imagem da cidade, ob­jetivando a melhor qualidade do meio ambiente, ao pensar na organização e produção do espaço

físico da cidade, do ambiente natural ao construí­do. Bem mais completo que o primeiro plano, este propõe, entre outras coisas, estimular a ocupação dos vazios urbanos, promover a recuperação de áreas públicas, e especialmente garantir a pre­servação e valorização do patrimônio natural e do patrimônio histórico cultural representativo e sig­nificativo da memória urbana (e rural). Este plano diretor ainda ressalta a proposta de formação de parques lineares para atividades culturais e de la­zer, utilizando os fundos de vales como parte das Zonas de Proteção Máxima (ZPM) 20

, recordando o plano proposto por Reis. Observamos, no entan­to, que a desapropriação destas áreas de proteção não tem ocorrido. A falta de verba para a desapro­priação é continuamente uma justificativa para a sua não realização. No entanto, acreditamos que é muito mais uma questão de prioridade do go­verno. Além disso, as áreas de fundo de vales, que incluem principalmente as áreas marginais do ri­beirão Preto, fazem parte de programas distintos dentro do plano diretor que procuram renovar e melhorar vários lugares e aspectos urbanos da cidade de Ribeirão. Notamos, assim, que a des­centralização das questões que envolvem as áreas ribeiras da cidade talvez seja a razão da falta de ações efetivas para melhorar estas paisagens.

Cinqüenta anos se passaram desde o primeiro plano diretor desenvolvido por Oliveira Reis, mas a idéia dos rios urbanos apenas constituírem uma referência para o sistema viário persiste na cida­de de Ribeirão Preto. Os fundos de vale também estão presentes no sistema viário do plano diretor de 199521

• Parte do complexo viário sugerido para os fundos de vale foi recentemente construído, do qual destacamos a Via Expressa Norte (Fig.o5), que segue o ribeirão Preto do centro da cidade até o anel viário ao norte. Mais uma vez prevaleceu a construção da via que exclui a participação de pes­soas, resultando na ausência de atividades sociais neste espaço livre ribeiro.

Finalmente, um plano de ação proposto em 2001 pela prefeitura municipal incentivou a cria· ção dos parque lineares nas áreas de várzeas que

encontravam-se em grande parte degradadas. Se­gundo este plano, o seu reflorestamento tornou-se urna ação necessária e urgente, e as matas cilia­res assumiram um papel importante, não só na preservação de recursos hídricos e proteção do solo, mas também como corredor ecológico para a dispersão da fauna e flora. Contudo, observamos que, apesar de existir desde 1995 uma política municipal de conservação e preservação do meio ambiente e, mais especificamente, a revitalização das áreas marginais fazer parte do plano de 2001 como um meio de determinar um novo ambiente e uma nova paisagem à cidade, atualmente ainda cogitam-se apenas "projetos" de recuperação, mas quase nada efetivamente está sendo realizado.

As vias marginais expressas construídas ao lon­go do ribeirão Preto não solucionaram o problema das enchentes, como foi justificado pelo PAITT. Em 23 de fevereiro de 2002, todo o entorno do ri­beirão foi atingido por uma nova enchente que co­locou a cidade em estado de calamidade pública.

Verificamos assim que o ribeirão Preto, ao lado dos outros córregos da cidade, freqüentemente foi alvo de projetos de intervenções nos planos designados a resolver os vários conflitos urbanos existentes em toda a região. Apesar dos diversos valores destes rios urbanos serem apresentados, principalmente no plano diretor de 1995, como lazer ativo e contemplativo, preservação ambien­tal, e de valor histórico na área central, nada foi

Figura 05- Avenidas Expressas construídas ao longo do vale do ribeirão Preto em 1996 ao norte da cidade. Mais uma

vez prevaleceu a via em detrimento de uma área de lazer aos habitantes. Ao fundo estão os antigos galpões da industria

Matarazzo em estado de abandono. Foto de Alessandra S. Ghilardi.

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feito na prática para a valorização destes aspectos. E, para completar, o único projeto concretizado foi o das avenidas marginais na via expressa Norte, acentuando nossa proposição de que a estrutura viária da cidade está sempre, ou quase sempre em posição prioritária.

De qualquer forma, o ribeirão Preto e seus córregos não saíram da mira dos planos das administrações públicas, provavelmente pela impossibilidade de esconder os problemas causados à cidade e à população pelas ações indevidas ao longo da história, como a urbanização das áreas ribeiras.

A enchente, conseqüência desta urbanização, tornou-se um dos principais problemas a serem resolvidos atualmente na cidade, e o Plano Dire­tor de Macrodrenagem, apresentado no início de 2002, tornou-se a base para a solução. Observa­mos que as medidas pontuais realizadas durante a evolução urbana mostraram-se insuficientes, daí a importância deste estudo integrado envolvendo medidas estruturais de caráter institucional, pre­servacionista e de educação ambiental. As propos­tas deste plano têm o seu mérito por ter estudado de modo sistemático os rios da cidade e por rea­firmar o inevitável controle dos impactos urbanís­ticos no sistema de macrodrenagem. No entanto, peca por não levar em conta o potencial paisagísti­co e social dos espaços ribeiros dentro da cidade.

Observamos que falta uma interação multidisciplinar nos projetos de intervenção da cidade. Os projetos técnicos não interagem com as questões paisagísticas e sociais, como o inverso também não acontece. Os planos e projetos, de um modo geral, ao longo da história perceberam os fundos de vales como uma ameaça de enchente ou como referência para o desenvolvimento do sistema viário. As propostas de parques lineares, por exemplo, que valorizam o potencial ecológico e cultural das paisagens ribeiras e permearam vários planos na evolução urbana do ribeirão Preto, em nenhum momento foram colocados em prática. A valorização do potencial paisagístico e principalmente social que envolve a área do

ribeirão Preto, também faz parte do complexo urbano, mas continua a ser negligenciada pelas ações do poder público.

Ü RIBEIRÃO PRETO HOJE

Paisagem em fragmentos

'A cidade quer definir-se por meio de contradições, quer estalar"

(Wim Wenders, 1994:90).

A falta de uma interação maior entre as diver­sas áreas que trabalham com os rios urbanos, somando propostas que conciliem objetivos de engenharia com sensibilidade ecológica e com valores sociais presentes nos espaços ribeiros, im­pede soluções com resultados satisfatórios, desco­nectando cada vez mais o ribeirão Preto da vida das pessoas. Observamos que, conseqüentemente, as diversas intervenções realizadas no processo de desenvolvimento da cidade resultaram em dife­rentes paisagens ao longo do ribeirão e, principal­mente, influenciaram as relações existentes entre as pessoas e seus espaços.

Fazendo uma análise atual ao longo da área de estudo, foi possível definir semanticamente cinco fragmentos paisagísticos do ribeirão Preto onde nossa pesquisa revelou suas peculiaridades físicas e formas de apropriação e uso distintas. A estes fragmentos, denominamos a partir do trecho ur­bano mais a montante: Vila Guiomar, Baixada da Vila Virgínia, Baixada do Centro, Cerâmica São Luiz e Via Norte (Fig. o6).

Verificamos que a paisagem denominada Vila Guiomar é caracterizada pela presença da água do ribeirão Preto e da mata ciliar, ainda bastante pre­servada (ver fig.o9). A forte presença da natureza promove o afeto das pessoas por este lugar revelado por nossos informantes através de adjetivos como

Figura 06- Área de estudo dividida nos seus cinco Fragmentos paisagísticos: 1- Vila Guiomar, 2- Baixada da Vila Virgínia,

3- Baixada do Centro, 4- Cerâmica São Luiz e 5- Via Norte. Planta Figura-fundo da área de estudo. Base: planta cadastral

de Ribeirão Preto, Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental- Cadastro Técnico de Obras.

'tranquilidade', 'ar puro' e 'lugar gostoso' de se viver. No entanto, esta mesma natureza também cola­bora para o sentimento de insegurança de alguns usuários, na medida em que o rio traz a enchente, e a mata do seu entorno pode "esconder bandidos e ações ilícitas". A natureza representando este contraste de tranqüilidade e insegurança para a co­munidade não é uma particularidade deste lugar, e sim urna das principais características que os rios urbanos apresentam atualmente em algumas cida­des brasileiras (Costa e Monteiro 2002).

Na paisagem da Baixada da Vila Virgínia, por sua vez, observamos que as pessoas têm um con­tato mais íntimo com o ribeirão, o que as torna participantes efetivas da vida ribeira. Ressalta­mos aqui o predomínio da ocupação residencial, com casas dispostas de frente para o rio, onde as margens do ribeirão Preto são apropriadas pelos moradores, que as transformam em verdadeiros jardins de suas casas (Fig. 07). Seus usuários, em comparação às demais paisagens, são aqueles que

mais se mobilizam para cuidar do meio ambiente e do entorno de seu bairro (GHILARDI ET AL, 2004-

b). Confirmamos, assim, urna questão defendida por HoucH (1995), de que a visibilidade dos pro­cessos naturais é urna estratégia que promove a consciência e a responsabilidade ambiental.

Enquanto isso, na Baixada do Centro onde o ri­beirão Preto está canalizado (ver fig.or) e sua paisa­gem se caracteriza por elementos antigos que aju­dam a contar a história da cidade, as pessoas não demonstram estar atentas ao rio, expressando, na maioria dos casos, uma grande indiferença para com ele. Muitos dos entrevistados sequer sabiam o nome do rio que por ali passava, ignorando que ele dá nome à própria cidade! Vimos que o fato _ do rio se apresentar canalizado pode trazer gran­de apatia aos espaços livres públicos, privando sua população de uma experiência satisfatória com a paisagem urbana.

A paisagem denominada Cerâmica São Luiz constitui o lugar por onde o ribeirão Preto passa ex-

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clusivamente por terrenos particulares, não existe acesso público às suas margens, estando o ribeirão escondido do habitante comut :1. Neste lugar, o ri­beirão faz duas curvas acentuadas, definidas pelo processo de urbanização, perdendo a principal ca­racterística de um curso d'água: a fluidez contínua, principalmente no seu caráter visual. Apesar do rio permanecer oculto dos olhos do habitante comum, consideramos a importância deste lugar pelo fato de ser um grande espaço livre às margens do ribei­rão que mantém suas características de um espaço natural, diferenciando-o da cidade que o engloba.

Já a Via Norte compreende a paisagem de maior extensão e largura da área de estudo. No entanto, é o lugar de menor fluxo e presença de pessoas (excluindo-se a paisagem anteriormente descrita, onde não existe acesso ao público). Esta paisagem do ribeirão Preto é caracterizada pelas avenidas expressas (ver fig.o5). Mesmo tendo áreas livres próximas às suas águas, o desenho urbano deste lugar não colabora para uma maior apropriação humana. Este local não apresenta o que Carr et al (199s:3o) apontam como caráter fundamental do espaço público - ser um espaço dinâmico - e sua

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estrutura física não contempla a escala humana afetando "a natureza da vida pública". Constatamos que o isolamento do entorno do rio pelas avenidas impedem a criação de experiências sensoriais que contribuiriam para maior sentimento de afeto e permitiriam o estabelecimento de processos de moldagem do lugar (Duarte 1993).

O ribeirão Preto, deste modo, atravessa a cidade construindo múltiplas paisagens que se forma· ram ao longo da sua evolução urbana. Conside­rando estas paisagens juntamente com as diferen· tes percepções e comportamentos dos usuários atuais que delas usufruem, foi possível ressaltar os valores e significados comuns que permeiam todo o percurso do rio, fortificando-o como urna identidade única para os usuários ribeiros e co­nectando-o na similaridade de outros rios urbanos já estudados na literatura. Como observamos em diversos estudos, os espaços públicos urbanos, de forma geral, não podem simplesmente respo~der a questões formais estéticas, ou mesmo amb1en· tais; eles devem estabelecer um social e promover o bem-estar das pessoas. modo, analisamos alguns temas que ~-~"""'1'

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destas paisagens, e pudemos ressaltar os valores e significados atribuídos ao rio pela população, que contribuem para a sociabilização de seus espaços livres urbanos. Destacaremos no capítulo a seguir a questão do lazer.

Lazer: o valor uníssono do ribeirão

O lazer está inseparavelmente ligado a 1ma· gem do ribeirão Preto, tanto na memória como na contemplação do presente e na possibilidade da utilização de suas águas e seu entorno no futuro. Além disso, observamos, na evolução urbana do ribeirão, que o lazer sempre apareceu nos ideais públicos de implantação dos parques lineares, embora jamais tenham sido concretizados. O lazer, muito mais que inerente às margens e às águas do rio, é uma necessidade requerida pelos usuários ao longo de toda a área de estudo. O va­lor recreacional, bem como o estético, jamais pode ser excluído de qualquer uso ou tratamento dado a um rio (Manning 1997), principalmente se este for um rio urbano. Mais do que isto, as margens do ribeirão Preto, como um espaço livre público, devem ser reconhecidas como espaços comunitá­rios, possíveis para a recreação e relaxamento. Tais valores foram reconhecidos pelos usuários de toda área de estudo:

O rio serve para isto mesmo, você ter um lugar para sentar, conversar com alguém, pescar, tomar ba­nho. Acho importante sim, uma cidade seca é muito ruim. Ribeirão é muito seco, e o único rio que nós temos é sujo ...

(moradora.- maioj2003, Vila Guiomar)

A maioria das pessoas (72%) não reconheceu ~ .. ~u""'-'HJld área de lazer existente ao longo do ribei­

Preto, bem como suas margens, propriamen­quase não foram percebidas como área verde

existente. As poucas pessoas que reconheceram áreas que formalmente foram concebidas

o lazer como os clubes particulares, o Parque

Ecológico, as praças e rotatórias, que se encon­tram em sua maioria na Baixada do Centro. No entanto, poucas pessoas (28%) que citaram estes espaços os conhecem ou os freqüentam. Tais áre­as não condizem com o uso e a ocupação do en­torno, o que nos mostra que grandes áreas livres nem sempre são a solução para o meio urbano se não existirem meios que provoquem uma relação de apropriação. Carr et al (1995) observam que a preocupação com o apelo visual muitas vezes en­cobre os significados dos espaços livres públicos, na medida em que muitas vezes segue modelos inapropriados para a cultura local, encobrindo, conseqüentemente, a possibilidade de apropria­ção. Estas áreas resultaram da mudança de uso do lugar. As praças, que antes eram os jardins da Es­tação da Mogiana, hoje perderam a sua finalidade e a conseqüente apropriação dos usuários; o pátio de manobras, que hoje forma o parque ecológico, não é usado, pois não existe nenhum elemento de atração para a cidade e a maioria dos usuários que estão no seu entorno imediato apenas trabalha no local. A rotatória, ponto antigo dos circos e local para jogar bola, foi urbanizada com um jardim e perdeu seu valor de uso para os usuários. Desig­ners que seguem um conceito abstrato ou um esti­lo formal particular podem criar ambientes hostis, sem nenhuma proposta social: "quando projetos não estabelecem um entendimento social, eles podem ceder nas certezas relativas da geometria, na preftrên­cia das vagas aparências de uso e significado" (Carr et al, 1995:r8).

Contudo, dos usuários que freqüentam estas áreas de lazer, 62% o fazem para caminhar, le­var crianças para brincar, conversar, andar de bi­cicleta, passear e fazer piquenique. Além disso, independentemente de conhecer ou não áreas de lazer ao longo do ribeirão Preto, a maioria das . pessoas que responderam ao questionário (59%) praticam alguma atividade de lazer fora de casa, sendo a principal atividade jogar bola, seguida por passear, pescar, nadar, correr, conversar e andar de bicicleta. Deste modo, com tantas atividades de lazer exercidas ao ar livre e em grupo, pode-

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Figura OB - A grande maioria dos usuários reconheceu como áreas de lazer ao longo do ribeirão Preto apenas aquelas já concebidas

para isto, existente principalmente na Baixada do Centro. No entanto, poucos dos que reconheceram utilizam tais espaços para o lazer.

Base: planta cadastral de Ribeirão Preto. Fonte: Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental- Cadastro Técnico de Obras.

mos destacar que os espaços livres públicos têm um papel importante na vida social da população, criando oportunidades de convívio em conjunto. O ribeirão Preto, como um espaço livre, também pode ampliar o valor social que já vem cumprindo, através de um maior incentivo ao lazer (Fig. o8).

Os próprios usuários comentaram que estes espaços deveriam ser promovidos para realmente serem utilizados como forma de lazer. Nas análi­ses dos questionários e entrevistas, s8% dos usuá­rios visualizaram a possibilidade de um dia virem a utilizar os espaços ribeiros de alguma forma. A possibilidade de utilizar o ribeirão como recreação, presente nos lugares por onde ele passa na cida­de, aponta para a potencialidade de criar áreas de lazer nos espaços públicos ao longo de seu curso. O valor de lazer das áreas livres que cercam o ri­beirão Preto é acentuado ao se imaginar suas águas limpas. As principais formas de utilização do rio

para lazer citadas foram a pesca e o banho, segui­das pela contemplação da paisagem ribeira.

Poderia ter um lugar, por exemplo, para ler um livro, (. .. ). Pode estar de baixo da tua árvore num banco confortável se sentindo seguro, porque você vai estar despreocupado, lendo um livro, né? Seria bom né, ouvindo a sua música, vendo uma paisagem bonita. (. .. )

(empresário- maioj2003- Baixada do Centro)

Ao contrário da maioria dos usuários da área de estudo que vislumbraram a possibilidade de vir a usar as águas do ribeirão, os usuários da Baixada do Centro, onde o ribeirão encontra-se num canal de pedras, pouco manifestaram o desejo de usá-las de alguma forma, pois a maioria não visualizou a possibilidade dela vir a ser limpa algum dia. Além disso, as pessoas nem sequer sabem que o rio aín-

Figura 09 - Crianças sempre utilizam as margens do ribeirão

Preto para recreação, sendo a pesca uma das principais ativi­

dades (Vila Guiomarl. Foto de Alessandra S. Ghilardi.

da é usado para a pesca, para elas esta é uma ativi­dade do passado. A canalização dos rios urbanos, além de tirar a vitalidade possível de suas margens, tira muitas vezes a capacidade das pessoas de idea­lizarem uma área de lazer no seu entorno.

Mesmo não vislumbrando a recreação direta com o ribeirão, várias outras formas de lazer emer­giram para os espaços públicos que ainda existem no seu trecho canalizado. O espaço público deve também improvisar atrações e performance que contemple um dos aspectos que Carr et al (1995) definiram como sendo uma das necessidades dos usuários, o contato passivo, a possibilidade das pes­soas participarem de um espaço público apenas assistindo. Aspecto que também improvisa a ima­gem pública de áreas centrais da cidade.

As áreas de lazer não são somente uma pos­sibilidade de criar espaços sociais às margens do ribeirão Preto possibilitando meios para a sua apropriação; são também a principal necessidade requerida pelos usuários de toda a área de estudo. A natureza existente na Vila Guiomar (ver fig.o9), a proximidade das pessoas com o rio na Baixada da Vila Virgínia (ver fig.o7), as seringueiras em­belezando o seu curso na Baixada do Centro (ver fig.w) e o grande espaço livre existente às suas margens na Via Norte (ver fig.o5) torna evidente, na percepção dos usuários, a possibilidade de todo o espaço livre que envolve o ribeirão vir a se tor-

nar uma grande área de lazer. Acreditamos que a necessidade de áreas para o lazer nestes lugares é bastante relevante porque a maioria das pessoas (6o%) que usam seus espaços livres é residente, à exceção da Vila Guiomar que extrapola a média, com 83% dos usuários. As principais inquietações dos usuários são a falta de áreas recreativas como quadras de futebol e vôlei, praças para passear e descansar, e uma melhor infra-estrutura no entor­no do rio com bancos e possibilidade de acessá-lo facilmente para tomar banho, pescar ou simples­mente usufruir de uma área arborizada e florida com pequenos animais às margens do rio.

Se ele fosse tratado poderia chegar mais perto, colocar uns bancos embaixo das árvores e poderia passar umas horas observando o rio.

(usuário- fevj2003, Via Norte)

O rio serve para muitas coisas, ( ... ) se a água fosse limpa ... daria peixe ... é uma recreação para as pesso­as pescarem, tomarem banho, então, era um canto a mais de recreação em Ribeirão Preto.

(usuário- maioj2003, Baixada do Centro)

Com estes depoimentos, percebemos que os usuários gostariam que toda a margem do ribeirão fosse trabalhada com vistas a se tornar um lugar aprazível de passeio e recreação, principalmente

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com árvores e infra-estrutura para utilização do rio. A presença de elementos da natureza tem especial significado para as pessoas. Em áreas urbanas, elementos como água, árvores e verde em geral são valorizados por pessoas que usam os espaços livres, fato que se reflete na utilização destes elementos nos diversos projetos de espaços urbanos atuais (Carr et al 1995).

Seja como for, a importância do ribeirão Preto para os usuários de toda a área de estudo está

presente em 84% dos depoimentos. Após tratar do ribeirão como valor de lazer, percebemos que ele está intimamente associado ao seu intrínseco valor ecológico. Mais do que o lazer recreativo, o rio apresenta a possibilidade de um lazer contemplativo e bastante aprazível através da fruição dos elementos naturais presentes numa paisagem ribeira, obrigando a paisagem urbana, geralmente fechada, a se abrir e a respirar uma paisagem natural.

Figura 1 o_ As seringueiras plantadas ao longo do ribeirão Preto no seu trecho canalizado (Baixada do Centro] ainda recriam

um ambiente bucólico de beleza natural citado por vários usuários da área de estudo. Foto de Alessandra S. Ghilardi.

Tudo tem importância. Vivemos em um monte de pedras, a única coisa que tem de natural é o rio e um pouco de mato com terra em volta.

(usuário- fevj2003, Via Expressa Norte)

Diante disso, o rio torna-se o protagonista desta paisagem natural esteticamente bonita e valiosa­mente ecológica nos centros urbanos, ressaltada pela própria questão vital que a sua água propor­ciona aos outros elementos da natureza, à cidade e às próprias pessoas. A importância da água como elemento essencial à vida, possibilitando a ameni­zação do clima quente da cidade, juntamente com a presença de áreas verdes existentes no seu entor­no, foi pronunciada por vários usuários:

Não sei se o ar aqui é tão bom, fresco, por causa da arborização ou (. . .) pelo o rio passar aí, uma corrente de água pode ajudar a refrescar ( ... ) Se você mora nas imediações ... é pegar um filho à tardinha, no domin­go, levar para ele ver a água correr(. . .). Eu acho que tudo isto é importante para a cidade.

(usuário- maioj2003- Cerâmica São Luiz)

Os rios nos centros urbanos, segundo Costa, (2002:sjp) " ... são verdadeiros corredores biológicos por onde a natureza chega e pulsa no tecido urba­no". O entorno do ribeirão Preto, não estando mais degradado e suas águas não mais poluídas, pos­sibilitaria o desenvolvimento de uma diversidade de vegetação e o conseqüente fornecimento de um habitat natural para pequenos animais, além dos peixes presentes no rio. O desenvolvimento da fauna e da flora ao longo da cidade emergiu nos depoimentos de praticamente todos os usu­ários entrevistados no entorno do ribeirão Preto, reforçando o valor ecológico da sua presença na cidade:

( ... ) o pessoal joga coisa, contrariando a natureza, contrariando os animais ( ... ).Já imaginou esse rio com a água limpinha, mais animais teríamos recebi­do, não só garças, como outros animais silvestres.

(usuário- maioj2003, Baixada da Vila Virgínia).

A presença do corredor biológico nos centros urbanos, além de trazer os sentimentos de tran­qüilidade e sossego dos lugares bucólicos como o campo, acentua a afetividade com o espaço ribei­ro. A importância do ribeirão Preto e dos diversos elementos que identificam a presença da natureza na área de estudo é sempre retratada pela afeição ao lugar. Nas áreas onde o ribeirão Preto se apre­senta fisicamente de forma mais natural, onde ele não está canalizado entre dois paredões é inevitá­vel a citação da palavra natureza ou dos elementos que pertencem a ela como a 'água', o 'ar', o 'tempo fresco', e as 'árvores', para descrever os motivos que levam o apreço ao lugar. Animais são freqüente­mente lembrados no entorno do ribeirão: flamin­gos, capivaras, cágados e garças.

Mesmo com o valor biológico do ribeirão Preto ressaltado na pesquisa empírica, ele está encober­to por diversas ações degradantes, como a presen­ça de lixo e esgoto no seu leito, como verificamos anteriormente. Estas ações têm levado os usuários a uma certa rejeição à presença do ribeirão, trans­formando-o muitas vezes numa paisagem com um caráter residual (Costa 2002). Deste modo, criar áreas de lazer recreativas e contemplativas ao longo do ribeirão Preto, gerando uma paisagem natural linear atravessando a área urbana, estaria contribuindo para melhorar as condições do uso e apropriação já recorrente em diversos espaços às suas margens, mas principalmente estaria criando oportunidades de prover uma melhor qualidade de vida aos diferentes grupos de usuários localiza­dos às suas margens, bem como para a população da cidade inteira.

O lazer em um ambiente natural, além de pro­porcionar bem-estar às pessoas, é uma maneira de socialização dos habitantes de uma comunidade, pois muitas das atividades de recreação e de espor- _ te, que podem ser promovidas neste espaço, são desenvolvidas em grupo. Os parques lineares pro­movem a criação de espaços mais democráticos, devido à possibilidade de diversificação dos usos, bem como conectam diversos bairros e áreas livres existentes ao longo de seu trajeto, distribuindo me-

RIOS E PA!Si'IGENS URBANAS_ 115

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lhor o lazer e a natureza por toda a cidade, e prin­cipalmente investindo no papel social dos espaços livres existentes no entorno do ribeirão Preto.

CoNSIDERAÇÕEs FINAIS

A pesquisa que embasou este trabalho revelou que o ribeirão Preto não foi considerado como foco e ponto de partida do planejamento e desenho da paisagem urbana no seu processo evolutivo. As benfeitorias realizadas no seu leito durante a evo­lução urbana tinham, em sua maioria, preocupa­ções visuais referentes à imagem da cidade. negli­genciando questões paisagísticas, que ressaltam o valor natural, social e cultural existente no espaço ribeirinho. O ribeirão assistiu, assim, a uma frag­mentação semântica dos espaços que percorrem em sua passagem pela cidade, o que impossibili­tou a revelação do grande potencial das paisagens ribeiras nos centros urbanos, a interação da natu­reza (e tudo que ela representa) com as pessoas.

No entanto, ao compreender a evolução urba­na do ribeirão Preto e a conseqüente formação das múltiplas paisagens, resultado do tratamento for­mal diferenciado dado a cada fragmento da área de estudo ao longo da história da cidade, pudemos identificar as peculiaridades naturais e culturais presentes em cada uma, características que influí­ram no modo como as pessoas de cada lugar usam e se apropriam de seus espaços livres atualmente.

Nossa pesquisa veio se juntar a outros trabalhos que têm confirmado que os rios urbanos, quando valorizados como um recurso natural nos espa­ços livres públicos da cidade, atraem as pessoas e, deste modo, são capazes de dar suporte a uma vida pública, e contribuir para aumentar o pa­pel social do entorno ribeiro. Seguindo este viés, acreditamos que se a questão do lazer for levada em consideração nos processos de planejamento e desenho da cidade, pode promover e revelar os

valores sociais e culturais existentes na paisagem dos rios urbanos.

Assim, observamos que, apesar de não ser um elemento representativo na cidade como uma en­tidade única, pela própria fragmentação formal de sua paisagem, o ribeirão Preto ainda é parti­cipante efetivo da vida de muitas pessoas. A aná­lise das experiências dos usuários nos mostrou que diversos valores tornaram a importância dos espaços ribeirinhos à cidade mais evidentes e tão representativos como outras paisagens ribeiras. Acreditamos que o projeto paisagístico que consi­dera tanto os processos naturais quanto os valores de cada grupo de usuários surge como uma das formas de requalificar e valorizar o ribeirão Preto para a cidade, aumentando a possibilidade de uso e apropriação, além de potencializar os valores de­positados nele, podendo, acima de tudo, promo­ver a conservação da paisagem natural ribeira e assim desvendar à cidade as múltiplas paisagens que hoje se encontram invisíveis para a maioria da população ribeirão pretana.

116 _RIOS E PAISAGENS URBANAS

NoTAS

r· O questionário foi aplicado na população que reside,

trabalha ou freqüenta a área de estudo, objetivando identificar

0 perfil dos usuários e as suas relações com o ribeirão.

2· As entrevistas foram divididas em dois grupos distintos:

profissionais de instituições que trabalham com a área de

estudo, como representantes da Secretaria de Planejamento

e Gestão Ambiental, do Conselho do Patrimônio Histórico

e do Meio Ambiente do município de Ribeirão Preto, e um

pequeno número de moradores e comerciantes significativos

ao longo do ribeirão Preto, identificando as suas experiências,

necessidades e anseios, bem como os elementos e espaços

que consideram significativos.

3· A observação de campo foi registrada através de anotações,

mapeamentos e fotografias, identificando os diferentes grupos

de usuários e os diferentes usos e apropriações desses espaços.

4· _Ribeirão Preto- Memória Fotográfica. Ribeirão Preto:

Ed. Colégio Ltda., sjd

5· In Ata da Câmara Municipal apud CloNE (r987=r87·I88)

6- Artigo 66- Cap.III Higiene e Salubridade Pública

Código de Posturas- o3jagoj1889- da Câmara Municipal

do Ribeirão Preto, p.655.

7· Artigo 20 -Câmara Municipal do Ribeirão Preto Código de

Posturas - 1902, p.15.

8- Artigo 225- Câmara Municipal do Ribeirão Preto Código

de Posturas- 1902, p.88.

9· O Primeiro Distrito compreendeu o quadrilátero do núcleo

original da cidade, situado entre os dois rios já citados. O

Segundo Distrito compreendeu os bairros próximos a área

central: parte da Vila Tibério, além do ribeirão Preto, e o

atual Campos Elíseos, além do córrego do Retiro. O Terceiro

Distrito referia-se a todas as outras áreas que não pertenciam

aos dois primeiros, dentre elas estavam os bairros que

formavam as regiões operárias e ocupavam as várzeas da

cidade: República, Vila Virgínia, Barracão, às margens do

ribeirão Preto; Retiro próximo ao córrego do Retiro; e o recém

formado bairro do Tanquinho, às margens do córrego do

Tanquinho outro afluente do ribeirão.

10- Segundo o relatório do prefeito apresentado a Câmara

Municipal em 15 de janeiro de 1920.

II· In Relatório apresentado a Câmara Municipal pelo seu

presidente Camillo de Mattos em janeiro de 1928, pg. 6-7.

12· In Relatório apresentado a Câmara Municipal em sessão

de 15 de jan. de 1930 pelo prefeito Dr. Joaquim Camillo de M.

Mattos (p.o9)

13- É clara a influência do plano Agache, plano diretor para a

cidade do Rio de Janeiro, onde Reis trabalhou como assistente

do arquiteto Alfred Agache (1927-1930).

14- Intitulado "Observações e Notas Explicativas do esquema

do Plano Diretor de Ribeirão Preto- Rio de janeiro 04jsetj1945

-José Oliveira Reis".

15- Projetadas para serem implantadas nos cruzamentos das

vias radiais com as perimetrais criadas por Reis (1945)

16- Plano desenvolvido pela CODERP (Companhia de

Desenvolvimento e Econômico de Ribeirão Preto)

17- Departamento de Águas e Energia Elétrica.

18- Plano desenvolvido pelo escritório Hidrostudio

Engenharia da cidade de São Paulo, a pedido do governo

municipal de Ribeirão Preto.

19· Este Plano Diretor foi coordenado pelo Secretário de

Planejamento e Desenvolvimento, Isac Jorge Filho, durante o

governo do prefeito Antônio Pallocci.

20· Item I do art. 42.0 do Plano Diretor de 1995, de acordo

com o zoneamento ambiental- Zona de Proteção Máxima

(ZPM): abrangendo as planícies aluvionares (várzeas);

margens de rios córregos, lagoas, reservatórios artificiais

e nascentes, nas larguras previstas pelo código Florestal

(Lei Federal n. 0 4-771/65 alterada pela a Lei n. 0 7803/89)

RIOS E PRISAGENS URBRNRS_ 117

Page 60: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

e Resolução n. o 04/85 do Conselho Nacional do Meio

Ambiente (CONAMA); áreas de preservação permanente que

ocorram no Município, de acordo com o código florestal.

21- Segundo o artigo 25 do Plano Diretor de 1995 foram

definidos hierarquicamente em três tipos de vias: Via Arterial

-Via Expressa de Fundo de Vale- destinada a alta velocidade

e proibida ao o trânsito de pedestres; Via Principal Avenidas

Parques - destinada à circulação geral de velocidade média;

e Vias Secundárias - Parques Lineares de Fundo de Vale

-destinada à circulação local com via marginal contínua ou

interrompida, para acesso local.

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Page 61: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAS PAISAGENS DO

RIO CAPIBARIBE NA CIDADE DO RECIFE

INTRODUÇÃO

O enfoque deste trabalho é a formação históri­ca de um recorte da paisagem do rio Capibaribe, situado na cidade do Recife. Nosso olhar se de­bruçará sobre uma paisagem cultural, pois ela foi apropriada e transformada pela ação do homem, expressando diferentes valores culturais. Para en­tender o processo da formação desta paisagem, foram interpretadas as formas como alguns gru­pos culturais se apropriaram das margens do rio Capibaribe na cidade do Recife e confeccionaram as suas paisagens, e como esses grupos represen­taram/representam essas paisagens e os significa­dos que o rio teve ou tem para eles. Este trabalho visa contribuir para a reflexão sobre a necessidade de requalificar as águas do rio Capibaribe e revita­lizar as suas margens, pois só assim esse bem úni­co, representado como o símbolo que identifica a cidade do Recife, poderá voltar a ser usufruído pe­los habitantes desta cidade e pelos turistas como lazer ativo e contemplativo.

O processo de formação das paisagens do rio Capibaribe, na cidade do Recife, teve início com a fundação desta cidade no período colonial, no sé­culo XVI, pois esse rio (mapa I) contribuiu como elemento marcante na sua construção e estrutu­ração, estando tão intimamente vinculado à sua

Vera Mayrínck Melo

história, que a inter-relação de ambos não ocorre apenas, segundo Chacon (1959:9), como "uma unidade geográfica, histórica, econômica e sociológi­ca, mas também sentimental e poética".

As transformações decorrentes da ação do ho­mem sobre esse elemento natural e suas margens, num processo de construção social ao longo da história, resultaram nas paisagens atuais repletas de diversas camadas de significados. Para enten­dermos as paisagens originadas desse processo histórico, é necessário situá-las dentro do seu con­texto natural, social e cultural, assim como na sua ancestralidade (Baker 1992:2). Durante todo esse processo, tais paisagens inspiraram as mais diver­sas representações, revelando a multiplicidade de significados que delas emanam. É nesse contexto que, através das representações retratadas em ma­pas, crônicas, poesias, romances, relatos de viajan­tes, litografias, fotografias e pinturas, poderemos detectar os significados que tiveram, ao longo de_ diferentes períodos históricos, as paisagens do rio Capibaribe na cidade do Recife, tanto para os que a construíram, vivenciaram e usufruíram, como para os viajantes que as contemplaram, admira­ram e exploraram.

Page 62: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

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Mapa 1: Bacias Hidrográficas do Recife. Fonte: Atlas Ambiental do Recife, 2000, P· 52

......... Limite do município do Recife

Limite de bairros ~ Principais vias

Aeroporto

..+ Aeroclube

:f!P. Terminal Integrado de Passageiros

* Farol

Porto

SÉcuLOs XVI A XVIII - FoRMAÇÃO DAS

PAISAGENS DO RIO CAPIBARIBE SEGUNDO A

"MANEIRA DE VER" Dos CoLONIZADORES

As primeiras paisagens observadas pelos por­tugueses, que aportaram no sítio do Recife no sé­culo XVI, ou seja, as paisagens gravadas no olhar daqueles que a reinventaram na sua representa­ção (Oramas 1999:218), olhar nada ingênuo do colonizador que perscruta a terra incógnita, com­punha-se de "C'roas e bancos de areia, cordões lito­râneos arenosos e restingas, associados a pântanos de água salobra, manguezais, lagamares, esteiras e cam­boas," resultado dos estuários dos "rios Capibaribe, Beberibe e "Tejipió" (Lins 1982:101).

Esta paisagem, com características fisiográficas únicas, contendo componentes de caráter for­temente aquoso, era o que caracterizava o sítio que daria origem à cidade do Recife Como observou Oliveira (1942:38), "no Reci:fo, o que não é água,Joi água, ou lembra a água, sendo essa a razão porque a crismaram de 'cidade anjfbia"'. (. .. ) "Por toda a parte, revivem as lembranças que as águas desaparecidas deixaram".

Entre esses elementos fisiográficos aquosos, formados pelos rios, o mais evidente, na planície do Recife, é o rio Capibaribe (Oliveira 1942:43). Esse rio tem suas nascentes nas lagoas do Araçá, das Estacas e do Angu, na Serra do Jacarará, e ao descer a serra, vai percorrendo, através dos seus meandros, os 253 quilômetros que o separam da sua foz, no litoral do Recife. Nesse percurso, ele vai refletindo uma grande diversidade de paisa­gens, através dos 44 municípios que atravessa e, na cidade do Recife, ele se divide em dois braços: um que vai para o sul e toma o nome de braço morto do Capibaribe, e outro que segue para o norte, continuando com o mesmo nome. Antes de desaguar no mar, suas águas abraçam ilhas e coroas que ele ajudou a formar.

Esse conjunto de elementos fisiográficos contri­buiu para a fundação do "Reci:fo de Areia", primeiro povoado localizado na extremidade sul do istmo de areia, "mistura ainda incerta de terra e de água"

(Castro sjd:34), que se alongava das encostas de Olínda, paralelamente aos arrecifes. Eis como re­presentou Carlos Pena, no seu poema "O Início",l a ocupação do "Povo" pelo colonizador português:

"No ponto onde o mar se extingue e as areias se levantam cavaram seus alicerces na surda sombra da terra e levantaram seus muros do frio sono das pedras. Depois armaram seus flancos: Trinta bandeiras azuis Plantadas no litoral"

No entanto, além das questões fisiográficas, contribuiu para a formação desse povoado, entre outros fatores, o cultural, que influenciou sua es­colha, fundação e desenvolvimento pelos coloni­zadores. Nesse sentido é que devemos entender a "maneira de ver" do colonizador português, que, ao chegar a esse sítio, escolheu a colina de Marim, que depois passou a se chamar Olinda, como sede do seu domínio. Esta escolha foi feita por um povo que, vindo de um país montanhoso, preferiu ocu­par as colinas, dominando do alto as planícies e as águas. Isso ocorreu tanto como estratégia de de­fesa, já utilizada na Idade Média, como pelo fator cultural, pois, para esse colonizador, apesar da pla­nície apresentar várzeas fecundas, com água em abundância e vegetação frondosa, ela era encharca­Ja e, assim, pouco propícia a um assentamento ur­bano por não parecer saudável (Castro sjd:6o-61).

Como em Olinda não havia um ancoradouro tão seguro quanto aquele que ficava a uma lé­gua de distância, localizado no "Reci:fo de Areia", foi escolhido como porto o "Povo". Assim surgiu o povoado do Recife, inicialmente em forma de_ porto. Este porto, que tinha capacidade para abri­gar embarcações de grande porte, era de grande importância, pois tinha como principal atividade a exportação de açúcar, produto de grande valor no mercado europeu e que constituía, naquele perío­do, a maior riqueza da colônia.

Page 63: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

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Para dar suporte às atividades portuárias, se­ria necessária a construção de algumas instala­ções. Inicialmente, o "Povo", localizado no istmo de areia, atualmente uma ilha, possuía a "largura do istmo, variável entre 30 e 6o passos" (Cavalcanti 1977=61), onde estavam instalados "alguns arma­zéns em que os mercadores agasalhavam os açucares e outras mercadorias", algumas casas para abrigar "alguns pescadores e oficiais da ribeira",4 e posterior­mente foi construída uma ermida dedicada a São Frei Bento Gonçalves, também chamada pelos portugueses de Santelmo.

O povoado do Recife foi documentado pelos portugueses, em 1631, através do mapa de J. Tei­xeira Albernaz 5 (mapa 2), embora os registros ico­nográficos do Recife e de Olinda, elaborados pelos portugueses nos séculos XVI e XVII, tenham sido

muito restritos.6 O mapeamento não se restrin­ge apenas a registrar graficamente um terreno mas, como "produto cultural", representa també~ o ato de trilhar, perscrutar e experienciar (Lima 2ooo:29). Assim, a interpretação desses "códigos simbólicos" informará o significado contido na pai­sagem para aqueles que "a fizeram, a alteraram, (e) a mantiveram( ... ) (Cosgrove 1998:ro9).

A fundação do porto e seu desenvolvimento como atividade econômica só foram possíveis em virtude da produção de açúcar pelos engenhos estabelecidos nas várzeas dos rios: "na várzea do baixo Capibaribe e do baixo Beberibe, na planície do Recife, possuidora de excelentes solos de cana e situ­ada à pequena distância do nódulo da colonização" (Melo 1978:49).

Mapa 2. Porto e Barra de Pernambuco, 1631. Fonte: MENEZES, J.L. (1999, p.88)

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Os rios tiveram um papel fundamental para a produção do açúcar, pois eram responsáveis pela fertilidade dos solos de aluvião onde se implan­taram os engenhos, forneciam suas águas para rnoer a cana, abasteciam os engenhos e eram utili­zados como via fluvial, para o transporte do açúcar ao porto, onde seria comercializado e exportado.7 O porto, os rios e os engenhos foram fatores deter­minantes na formação e estruturação da cidade do Recife, pois representavam o suporte para as ativi­dades econômicas, baseadas na exploração agríco­la, assim como contribuíram para a formação da sociedade existente naquele período.

O povoamento do Recife foi sendo feito ao lon­go do século XVI e no início do século XVII, pro­longando-se da freguesia de São Pedro Gonçalves, núcleo inicial, para a ilha em frente ao istmo, do outro lado do rio, chamada de Antônio Vaz, onde foi fundado o convento de Santo Antônio. No en­tanto, esse povoamento também ocorreu no sen­tido contrário, "igualmente importante - economi­camente importante - que vem do interior no sentido do porto.( ... ) àquele movimento que tinha por origem os engenhos de açúcar, desde meados do século XVI estabelecidos à margem do rio Capibaribe" (Mello 1992:265-266).

Os engenhos situados na "Várzea do Capibari­be", na segunda metade do século XVI, já tinham tomado um grande impulso, tornando-se a princi­pal área produtora de açúcar, devido a certas van­tagens, como: "uberdade do solo, abundancia d'água para as moagens, e mattas para a extração de lenha e madeira" (Costa r9os:VII). Devido à existência desses engenhos, foram-se formando núcleos de povoações em seus entornvs, constituídos por uma numerosa população multicultural, consti­tuída por brancos e negros, senhores e escravos, numa convivência, em geral, conflitante, baseada na relação escravocrata.

Enquanto esses núcleos eram "centros de grande atividade, ( ... ) verdadeiras zonas de riqueza e pros­peridade" (Costa 1944:129), o núcleo central em r63o era um simples bairro portuário, com ruas estreitas e irregulares, dependente de Olinda até

no abastecimento d'água para o seu consumo, o qual "os nobres de Olinda deviam atravessar pisando em ponta de pé, receando os alagados e os mangues" (Mello 1987=35).

Entretanto, o porto, considerado o mais impor­tante da América portuguesa devido ao movimen­to de exportação de carga tão valiosa como o açú­car, despertou o interesse dos Países Baixos, que, com o financiamento e o apoio de embarcações da Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa tipicamente mercantilista, criada em 1621, invadi­ram-no em 1630. A paisagem que se apresentava aos olhos dos holandeses que chegaram a Pernam­buco era a vila de Olinda, o núcleo portuário, na freguesia de S. Pedro Gonçalves, "as águas do delta, o verde dos manguezais, a vegetação nativa dos mor­ros que circundavam a planície e, mais ao interior, os engenhos de açúcar com os seus canaviais sa.frejando no massapê das várzeas do Beberibe, do Jiquiá, do Pirapama e do Capibaribe" (Silva 1992:12).

Essas paisagens foram sendo socialmente cons­truídas, a partir de várias ações do colonizador por­tuguês e dos nativos, que, de forma intencional, foram transformando a natureza, tentando do­mesticá-la, visando satisfazer as necessidades ma­teriais e político-sociais desses grupos culturais.

O olhar do colonizador holandês que ocupou a colônia de Pernambuco era diferente do olhar do colonizador português, por pertencerem a gru­pos culturais distintos, apesar de ambos terem o mesmo interesse de observar, visando ocupar, controlar e explorar. Nesse sentido, a nova "manei­ra de ver" do colonizador holandês influenciou na preferência do núcleo do Recife como sede do seu domínio. Isto ocorreu como resultado de fatores estratégico-militares e mercantis, pois, segundo os holandeses, a cidade de Olinda, devido à irre­gularidade do seu sítio, só "poderia ser fortificada mediante grandes despesas e uma força militar muito­considerável ( ... ) mas o Recife, ( ... ) é considerado ca­paz de ser traniformado num lugar inexpugnável" (Mello 1976:9).

Assim, instalando-se junto ao porto, também estariam em segurança seus navios e os carrega-

Page 64: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

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Figura 1: T'Recif de Pernambuco por Joannes de Laet. Povoação do Recife em 1635. Fonte: MELLO, J.A (1999 p.53)

mentos de açúcar. Um outro fator na escolha da localização da cidade foi o cultural, ditado pela ex­periência de um povo que tinha o domínio sobre as águas no seu país de origem, a Holanda, cujo sítio, recortado pela água, assemelhava-se ao do Recife. Neste contexto, os holandeses se estabele­ceram no Recife e incendiaram a Vila de Olinda, sede da capitania de Pernambuco, em r63r, por ser considerada uma ameaça à segurança. Diante disso, a população de Olinda teve que se alojar no Recife, havendo um adensamento nesse núcleo.

Com a expansão do Recife, iniciou-se a ocu­pação da ilha de Antônio Vaz. Podemos observar como Recife era edificado, em r635, através da gravura com o título " Recife de Pernambuco", onde aparecem edificações de dois pavimentos, o sobra­do "magro, esguio" e "alto", havendo uma tendência à verticalização, devido à escassez de solo firme

(figura r). Têm início, nesse período, os aterros dos man-

gues e alagados, dos lados do mar e do rio, visando a ampliação da terra firme, principiando o alarga­mento do estreito istmo de areia. Assim, desde sua gênese, as históricas paisagens do Recife, formadas de alagados, mangues, camboas, ilhas

126

e coroas, entremeadas pelas águas dos seus rios, passaram por um processo de mutação decorrente da ação dos grupos culturais. Esse processo foi re­presentado no poema "Soneto", de Francisco José Sales8, na segunda metade do século XVIII:

"Muito tempo não há, que o mar cobria Este mesmo lugar, onde hoje estamos; Ainda que agora a areia que pisamos Mal seca está das águas que vert.:)( ... )"

O conde João Maurício de N assau, ao chegar a Pernambuco, em r637, instalou-se na ilha de Antônio Vaz, onde construiu a cidade Maurí­cia, "Mauritzstaadt" para os holandeses. Devido ao costume de lidar com a água no seu país de origem, os holandeses procuraram usá-la corno proteção militar, contribuindo para isso a locali­zação da ilha de Antônio Vaz, estrategicamente entre os rios Capibaribe e Beberibe. Outros fato­res importantes na localização dessa cidade eram a proximidade do porto, situado em frente à ilha

(Castro sjd:ro8). O fato de a ilha de Antônio Vaz ter uma parte

do seu solo pantanoso e coberto de mangues não

constituiu problema para um povo que dominava a técnica de construir em solos abaixo do nível do rnar. Assim, seguindo o projeto proposto pelo ar­quiteto Pieter Post,9 o conde Maurício de Nassau mandou aterrar mangues e alagados, construir diques e abrir canais, geometricamente traçados, visando facilitar o fluxo fluvial, evitando, assim, as inundações, de forma a "impor à água a marca da vontade humana" (Castro sjd:r22). Aproveitando a existência de um braço de rio que cortava a ilha em toda a sua extensão, foi construído um largo canal, onde "entravam canoas, batéis e barcas para o serviço dos moradores" (Calado r985:rn). Posterior­mente, foram construídas sobre os canais pontes de madeira para a travessia dos pedestres, com altura suficiente para o tráfego dos barcos, sendo as habitações distribuídas às margens desses ca-

nais, ao "modo de Holanda" (Calado 1985). "Não era bem uma Veneza ... ", como se referiria ao Recife o poeta Gonçalves Dias, no século XIX, em sua "Dedicatória aos Pernambucanos""'o (. .. ) mas uma Amsterdam com seus palácios, seus fortes, suas ruas beira-rio" (Cavalcanti I97TI52):

"Salve, terra formosa, oh Pernambuco, Veneza Americana, transportada, boiando sobre as águas! Amigo gênio te formou na Europa, gênio melhor te despertou sorrindo à sombra dos coqueiros".

Com relação à organização urbana, encontrava­se presente uma nova concepção de cidade, como podemos ver no mapa 3, apresentado por Johan

Mapa 3: Mapa de Recife, do livro de Johan NIEUHOF, 1703. Fonte: MENEZES, J.L. (1999 P. 1021.

Page 65: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Figura 2: Palácio de Friburgum. Gravura em cobre

de 1647. Fonte: LAGO, B& P.l1999 p. 266)

Figura 3: Palácio d Boa Vista. Gravura em cobre

de 1647.Fonte: LAGO, B& P.l1999 p. 266)

Nieuhof, em 1703, no qual consta um projeto de criação da cidade Maurícia. Essa concepção tinha como base os preceitos que, desde o Renascimen­to, vinham orientando os urbanistas, tendo como diretriz o traçado racional e geométrico da cidade. Assim, a geometria da cidade formal e regular ho­landesa prevaleceu, em oposição à irregularidade da cidade informal portuguesa, e com isso "( ... ) 0

primeiro choque de culturas vem se dar na nova forma de conceber o núcleo urbano" (Menezes 1999:89).

Além do plano urbano, Nassau dedicou atenção aos edifícios monumentais, construindo dois pa­lácios. Mais uma vez, a relação com a água, resul­tante da sua referência cultural, foi determinante na escolha da localização desses palácios. O palá­cio de Friburgo ou das Torres (figura 2) moradia oficial de N assau, foi construído na porção norte da ilha de Antônio Vaz, em frente à foz do rio Ca­pibaribe, representando um marco na paisagem, com as suas duas torres. Esse palácio teve como influência arquitetônica o renascimento italiano. O outro palácio, o da Boa Vista, (figura 3) residên­cia de verão de Nassau, ficava situado do lado oeste da cidade, também voltado para o rio Capibaribe.

Tendo em vista o desenvolvimento da cidade Maurícia, o conde Maurício de Nassau mandou construir uma ponte, ligando-a ao Recife, cen­tro comercial da colônia. Ao mesmo tempo, foi construída a ponte da Boa Vista que ligava a ci­dade Maurícia ao continente.n Assim, as pontes foram-se constituindo em marcos na paisagem do Recife, inspirando, ao longo da história, as mais diversas representações, tornando-se oRe­cife e suas pontes o símbolo mais manifesto da cidade. Conforme Freyre (1961:52), são elas que fazem o Recife ter uma fisionomia única entre as cidades brasileiras.

Os holandeses, ao se retirarem, devastaram grande parte do tecido urbano da cidade Maurí­cia, que, mesmo assim, continuou a ser a princi· pal cidade da colônia. A ilha de Antônio Vaz foi reocupada pelos luso-brasileiros e reconstruída à maneira portuguesa, com ruas estreitas e largas, os canais aterrados e as fortificações destruídas,

128 _ f·HDS Pf-HSAGENS URBf:1NnS

mas permanecendo nos arruamentos a ordenação regular holandesa (Menezes 1988:63).

Nesse contexto, o Recife prosseguiu desenvol­vendo-se, e a sua paisagem já não era a daquele povoado do início do século, antes da ocupação holandesa, pois, mesmo com a transferência ofi­cial da capital para Olinda, que foi reedificada, os portugueses continuaram a utilizar o Recife como centro comercial e sede do governo. Com relação à ocupação rural, os engenhos, com suas casas­grandes, senzalas, capelas e com seus núcleos populacionais, formando um conjunto ligado pelo rio, permaneceram marcando a paisagem.

Até o fim do séc. XVII, não foram ocupadas, na ilha de Antônio Vaz, as áreas de mangues e alaga­dos voltadas para o continente, a Boa Vista. No sé­culo XVIII, essas áreas foram aterradas, visando a criação de novas quadras onde foram construídas habitações, assim como foi sendo feita a ocupação do continente, ao longo da via originada a partir da construção da ponte da Boa Vista construída pelos holandeses (Melo 1978:55). O crescimento da po­voação da Boa Vista foi-se dando com a constru­ção de casas esparsas ao longo do rio Capibaribe, como também de sítios, chácaras e pomares.

Assim, as diretrizes no crescimento da cidade foram seguindo as águas dos rios em direção aos núcleos de povoações dos engenhos, ou seja, em busca dos caminhos naturais das águas. Como ressalta Castro (sjd:134), mais uma vez a presença das águas do mar e dos rios influenciava os ca­minhos que direcionariam a expansão da cidade do Recife, sobretudo os rios "( ... ) dirigindo a sua localização, a sua evolução e a sua direção, enfim, a sua colonização urbana da paisagem".

Nesse contexto é que alguns engenhos locali­zados na "Várzea do Capibaribe", numa extensão que vai da Boa Vista até a Várzea, foram sendo gradativamente retalhados em sítios e chácaras. A maioria dos engenhos que passaram por essa transformação no final desse século, estavam situ­ados na margem esquerda do rio Capibaribe. Isso foi ocorrendo porque os proprietários dos enge­nhos foram-se endividando, devido à crise na pro-

dução açucareira, e foram vendendo as suas terras (Mello 1992:195-196).

Segundo Mello (1992:199), a expansão do Reci­fe seguindo o curso dos rios também ocorreu em virtude de o transporte fluvial, principalmente a canoa, desde o século XVI fazer a comunicação en­tre o Recife e O linda, o Recife e a cidade Maurícia e o Recife e os engenhos da "Várzea do Capibaribe". A canoa era utilizada para diversos tipos de trans­porte: de pessoas, de água para beber e de material de construção, tornando a comunicação entre os núcleos de povoações distantes e o centro urbano mais fácil e mais rápida. E ainda ressalta Freyre (1961:69), referindo-se às condições precárias das estradas de ligação com os subúrbios e a vantagem do transporte de canoa pelos rios: "Preftria-se a sua água aos caminhos cheios de poeira e de lama por onde nos tempos mais antigos os carros-de-boi se ar­rastavam aos solavancos de um engenho a outro e no século XIX os cabriolés pulavam, as molas morrendo de raiva e de cansaço no fim da primeira légua".

O século XVIII não teve a mesma riqueza de informação iconográfica do século XVII, embora, através do relato de Loreto Couto, Iz um cronista da época, possamos verificar como era represen­tada a paisagem do Recife naquele período: "O caudaloso rio Capibaribe dilatando por este valle suas cristalinas correntes, parece que compassivo de sua sede quer sair a regalo. Occupa o centro deste ameno valle, em que se achão já fundadas mil cento e trese moradas de casa de pedra e cal, e muitas dellas de dous sobrados,feitas ao estilo moderno".

No início do século XVIII, em 1721, o Recife passou à categoria de Vila, contribuindo ainda mais para o seu desenvolvimento. Assim, no final do século XVIII, Recife possuía quase 2o.ooo ha­bitantes, que ocupavam tanto as partes mais eleva­das do núcleo do Recife e da ilha de Santo Antônio, evitando as inundações, como o continente, cujas áreas de manguezais, ao longo do rio Capibaribe, foram sendo gradativamente aterradas para dar lugar a habitações (Gomes 1997 96-97).

Assim, a calha do rio foi-se estreitando, com o aterro dos manguezais em ambas as margens,

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na ilha e no continente, e as enchentes foram-se sucedendo, com o rio querendo resgatar o seu leito original. A cidade foi-se construindo paula­tinamente sobre as áreas de mangues e alagados, conforme relata o poema de Carlos Pena Filho, no século XIX, ao se referir à cidade do Recife:

Hoje, serena, flutua, metade roubada ao mar, metade à imaginação, pois é dos sonhos dos homens que uma cidade se inventa".

No século XIX, com a abertura dos portos a ou­tras nações, a construção dessas paisagens passou a ter uma outra dimensão, como resultado das ex­pressões culturais ocorridas nesse período.

SÉcuLo XIx- Os RElATos DOS VIAJANTES

REPRESENTANDO A PAISAGEM DO RIO CAPIBARIBE

O século XIX foi um período marcado por gran­des transformações na paisagem do Recife, tanto urbana como em seus arredores. Isso ocorreu a partir da abertura dos portos às nações amigas, em 18o8, integrando o Brasil no circuito do co­mércio internacional, rompendo assim o mono­pólio comercial com Portugal. IJ

Nesse período, houve a instalação de agentes do comércio internacional, principalmente ingleses, passando a haver um revigoramento do comércio da cidade. No entanto, os viajantes estrangeiros de diversas nacionalidades que à cidade chegaram não tinham apenas interesses comerciais, financeiros ou industriais, mas também científicos e artísticos.

Muitos desses viajantes eram artistas ama­dores, colecionadores e naturalistas, vindo em expedições financiadas por instituições de seus países de origem, com o intuito de observarem e fornecerem informações para que os europeus, a partir das "maneiras de ver" desses observadores,

formulassem uma imagem "típica" da paisagem dos trópicos (Lima 2000:12).

Assim, é a partir do relato dos viajantes que desembarcaram no Recife nesse período, que po­deremos interpretar os significados da paisagem da cidade do Recife e do rio Capibaribe para eles, através das representações contidas em seus di­ários e anotações. Esses relatos devem ser lidos como registros "simbólicos" de grande valor, repre­sentando o ato desses viajantes de trilhar os terre­nos, observar as paisagens e descrevê-las.

Logo após a abertura dos portos, em 1809, che­gou ao Recife, vindo da Inglaterra, Henry Koster/4 publicando, em 1816, Travels in Brazil (1992:82-85). Segundo o seu relato, a organização urbana da "( ... ) vila de Santo Antônio do Recife, comumente chamada Pernambuco, ( ... ), consiste em três bairros ligados por uma ponte ( ... ). Recife, colocada precisa-mente sobre o arrecife, ( ... ), (é) o primeiro bairro da cidade ... composto de casas de tijolos, com três, quatro e mesmo cinco andares.

A ponte que leva a S. Antônio tem uma estrada empedrada nas extremidades. Em cada ponta há uma capelinha ( ... ) . A ponte é formada parte de arcos de pedra, parte de madeira ( ... ) e ladeada de pequenas lojas que a tornam tão estreita que dois carros não passam um perto do outro.

S. Antônio, o bairro central, é composto inteira­mente de casas altas e de ruas largas, ( ... ). É o prin­cipal bairro da cidade. A ponte que liga S. Antônio a Boa Vista é construída inteiramente de madeira. Não tem lojas, mas é igualmente estreita. A rua principal de Boa Vista, erguida em terreno antigamente batido no preamar, é formosa e larga .. O rio Capibaribe, tão famoso na história pernambucana, deságua num ca­nal entre S. Antônio e Boa Vista, depois de ter corrido numa certa distância, ( ... )a leste e oeste( ... )."

A expansão da cidade foi sendo feita do continente, da Boa Vista, em direção ao interior, como podemos verificar no relato de Koster (1978:38-39): "Passamos Boa Vista e seguimos por um apertado caminho arenoso, ( ... ) dos lados estão as numerosas residências de verão dos abastados habitantes da cidade."

130 .. f<IOS Pf'l!SAGENS lJf<BANAS

Continuando a trilhar o seu caminho, Koster vislumbrou o rio Capibaribe e, situando-se nas suas margens, observou: 'A vista é excessivamente encantadora, casas, árvores, jardins de cada banda. O rio Jaz a curva adiante e parece perder-se no meio da mata. As canoas indo docemente descem com a maré, ( ... ) e tudo reunido forma um espetáculo delicioso. O rio Capibaribe é navegável todo o ano até Apicucos, a meia légua além do Monteiro( ... )."

Koster observou também um outro aspecto do rio, que amedronta: as cheias. "O rio transborda para suas margens na estação das chuvas e, às ve­zes, com grande violência. As terras através das quais ele passa são extremamente baixas nessa região, e a inundação é muito temida por estender-se longe e lar­gamente. As choupanas de palha, situadas nas bor­das, são sempre carregadas e todos os arredores ficam debaixo d'água." As cheias do Capibaribe eram uma constante na relação do rio com a cidade, causando em seus habitantes um sentimento de medo. Durante o P~culo XIX, há informações de cheias que ocorreram em 1854, r869 e r894-

Desde o final do século XVIII, começaram a surgir na margem esquerda das "Várzeas do Capibaribe", sítios e chácaras que se foram mul­tiplicando no século XIX, modificando o tipo de ocupação nos arredores do Recife. No entanto, ainda existiam nesse período grandes extensões de matas pertencentes a engenhos que ainda não tinham sido loteados para casas de campo (Mello 1992:197). Na margem direita do rio, nos engenhos com seus núcleos habitacionais também localizados nas "Várzeas do Capibaribe", esse processo foi-se dando de forma mais lenta, caracterizando um tipo de ocupação diferente da ocorrida na margem esquerda, com a diversificação dessas paisagens.

Assim, foram-se instituindo os arrabaldes nes­ses núcleos habitacionais rurais, tendo de início um caráter sazonal, pois esses sítios e chácaras eram habitados no verão, visando-se o tratamento das doenças e o deleite proporcionado pelos ba­nhos de rio. Esses banhos eram compartilhados por todos os habitantes, "( ... )ricos e pobres, jovens

e velhos, estrangeiros e nativos", conforme constatou o inglês Waterton, que esteve em Pernambuco em fins de 1816. I5

Em 1816, também desembarcou no Recife o francês Tollenare '6 que, nas suas "Notas Domini­cais" (1978: 20), relatou suas impressões sobre a cidade do Recife, a partir da sua "maneira de ver". Referindo-se à parte urbana do Recife, teceu co­mentários sobre os três principais bairros daque­le período. O bairro do Recife além de ser o mais movimentado, era o que se apresentava "( .. .)mais mal edificado e o menos asseado".

Nos arrabaldes, como os sítios e chácaras pos­suíam grandes terrenos, enterravam-se o lixo e os esgotos nos quintais, quando não eram atirados nos rios ou mangues. No entanto, na área urba­na, principalmente no bairro do Recife, por haver espaços exíguos e ausência de quintais, o lixo era atirado à maré pelos escravos, a água servida joga­da na rua e os dejetos eram carregados em barris pelos escravos, para serem despejados no rio Ca­pibaribe (Sette 1978:247).

Assim, podemos constatar que, já nesse perí­odo, existia a prática cultural de considerar o rio como ponto de despejo, ficando clara a relação es­tabelecida pelos habitantes da cidade com o rio Ca­pibaribe, uma relação contraditória, de admiração e desrespeito, que permanece até os dias atuais.

Tollenare (1978: 34) também se referiu à exis­tência de "cabanas" onde residia a população mais pobre. O aparecimento desses aglomerados onde habitava a população mais pobre teve início com a instituição da liberdade de alguns escravos ne­gros, os "negros livres", e com a extinção de alguns engenhos. Como ressalta Freyre (2ooo:2n), "( ... ) os casebres e mucambos foram-se levantando, rastei­ros, pelas partes baixas e imundas da cidade. Pelos mangues, pelas lamas, pelos alagadiços ( ... ) ".

Outro aspecto da cidade que chamou a atenção de Tollenare foi a ponte entre a ilha de Santo An­tônio e a Boa Vista. Segundo a sua descrição, "( ... ) a ponte ( ... ) serve de passeio durante as belas noites deste clima; é guarnecida de bancos; o panorama que dali se descortina é encantador; ao norte vê-se a cidade

RIOS P~UEf-iGENS 131

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e os pitorescos oiteiros de Olinda; ao sul o rio Capiba­ribe, o aterro dos Afogados e também o oceano. Ca­noas indígenas, escavadas num só tronco de árvores, conduzidas por negros nus e munidos de compridas varas, cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio; (. .. ). "

Nesse período, as duas pontes existentes conti­nuavam sendo as mesmas que foram construídas no período nassoviano. Foram várias as represen­tações sobre as pontes do Recife feitas pelos via­jantes, através dos seus relatos, assim como as re­presentações dos moradores da cidade, através das iconografias e poesias, demonstrando como estão vinculados ao Recife seus rios e suas pontes, como no poema de Ledo Ivo (r98poo), que declara:

''limar mulheres, várias, amar cidades, só uma - Recife e assim mesmo com as suas pontes e os seus rios que cantam. E seus jardins leves como sonâmbulo E suas esquinas que desdobram o sonho de Nassau".

Os arredores do Recife foram relatados por Tol­lenare (1978) de forma prazerosa, enriquecidos com detalhes: "Há em volta da cidade do Recife lin­das casas de campo, onde a gente abastada reside de novembro até o começo da quaresma; as mais notá­veis estão situadas nas risonhas margens do Capibari­be; a classe média dos habitantes principia também a erguer ali as suas casinhas muito alegres".

Quando comenta o prazer estimulado pelo ba­nho revela, que "é nas margens do Capibaribe que cumpre ver famílias inteiras mergulhando no rio e nele passando parte do dia, abrigadas do sol sob pe­quenos telheiros de folhas de palmeira; cada casa tem o seu, perto do qual há um pequeno biombo de folha­gem para se vestir e despir". No entanto, Tollenare (1978) não se limitou a tecer comentários sobre os banhos de rio, também ressaltou a qualidade da água do rio Capibaribe, constatando que ''li limpe­za das águas permite ver um fundo de areia pura, que toma um colorido, verde esmeralda escuro, do reflexo da folhagem'.

Outro viajante que esteve no Recife entre r8r9 e r82r foi o inglês James Henderson 17• Esse inglês também destacou alguns aspectos do percurso da Boa Vista, indo em direção aos arredores do Reci­fe. Entre a Boa Vista e a Ponte D'Uchoa, observou elegantes casas brancas, aparentando um "excelen­te estado de conservação. Segundo ele, ''li cada cem jardas, lugares como esse são encontrados, (. .. ),onde o rio se alarga e apresenta um cenário muito agradá­vel, com a estrada indo por uma curta distância ao longo de sua margem".

Assim, mesmo que o percurso para os arra­baldes fosse feito pelas estradas de terra, vislum­brava-se, em vários momentos, a paisagem do rio Capibaribe e das suas margens, num prenúncio de que o rio no futuro prosseguiria banhando os 21 bairros da cidade, estando sempre presente na sua paisagem.

Para Henderson, também foi muito agradável o passeio por esses arredores feito pelo rio Capi­baribe "(. .. ) cujas margens sinuosas são orladas por casas e cabanas brancas, algumas com ótima aparên­cia, (. .. ), cada uma com sua casa de banhos bastante rústica, feita com palha de coqueiro".

Essas casas, construídas com a frente para o rio, cada uma possuindo um cais de atracamento, com as escadas descendo para dar acesso às cano· as e aos botes, constituíam o perfil de ocupação da margem esquerda do rio, característico desses arredores no século XIX, como podemos ver nas paisagens retratadas na figura 4· Nos arredores cidade, na margem direita do rio, o perfil de ocu· pação marcante continuava a ser as extensas áreas de matas e os engenhos.

A escritora inglesa e artista amadora Graham, rs desembarcou da fragata Doris Recife, em r82r e, apesar de a cidade estar estado de guerra, visando a independência, não deixou de observar a cidade e seus selecionando os elementos que essa paisagem, segundo a sua "maneira de atribuindo-lhes significado.

O olhar do viajante que observa a paisagem, sando posteriormente narrá-la através de

Figura 4: Parte de Passagem da Madalena. Litogravura de Luis Schlappriz, meados do século XIX.

Fonte: Fundação Joaquim Nabuco. Setor de Iconográfica.

ções, não é desprovido de ambigüidade. Curvier I9

dizia ser importante para esse tipo de observador a liberdade de observar a natureza e, ao mes­

mo tempo, controlá-la, para não ser surpreendido ela. No entanto, existia também o momento

reJ1otnenolóf!lOD, que compreendia aquilo que era e visto pelo sujeito. Foi nessa direção que

deu o relato de Maria Graham. Ao atravessar a entre a ilha de Santo Antônio e a Boa Vis-

ela ressaltou que não poderia haver "( ... )nada belo no gênero do que o vivo panorama verde,

o largo rio sinuoso ( .. ). A vegetação é deliciosa os olhos ingleses. Não tenho dúvidas que os pra-

planos e os rios que fluem vagarosamente atra­particularmente os holandeses, fundadores do

(Graham 1992: 126).

Com relação à defesa, ela comentou que, ape­sar de a cidade não ser murada, estava cercada por rios largos, com fluxo d'água rápido, e por estuá­rios. Assim, só seria possível o acesso ao Recife e a Santo Antônio através dos aterros, "(. .. ) mas a melhor defesa é o pântano na boca do Capibaribe que se inunda na preamar, e que se estende até quase o Be­beribe". E ainda, sobre o Capibaribe: 'ílpós cavalgar através do pântano, ( ... ), chegamos à corrente prin­cipal do Capibaribe, profunda, larga e muito rápida; -suas margens são íngremes e a água lindamente clara: as margens são guarnecidas de casas de campo, ador­nadas de pomares e jardins. (Graham 1992:I3J).

As experiências dos viajantes não eram divul­gadas apenas através dos livros publicados, mas também em relatórios oficiais, jornais, revistas e

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l

,I

Figura 5: Cais do Capibaribe- Rua da Aurora., 1911. (Cartão postal do Recife, aquarela!. Fonte: MAIOR, M. & SILVA, l.. (1992, p, 234}

palestras para as comunidades científicas, missio­nárias ou filantrópicas, entre outras. Nesse sen­tido, ressalta Lima (2oor:48), "( ... ) a autoridade daquele que falava ou escrevia, mesclava-se ao projeto colonizador ou imperialista; a legitimidade do discur­so era garantida pelo papel civilizador do autor, fosse ele missionário, hidrógrafo, naturalista, ou artista."

Foi nessa direção que ocorreu o relato do mis­sionário americano, Daniel Kidder (r972), que es­teve no Brasil durante o período de r836-37 e de r84o-42, visitando o Nordeste, para divulgar sua religião. 20 De acordo com Kidder, a população do Recife ficava em torno de sessenta mil habitantes. Com relação ao núcleo urbano do Recife, Santo Antônio era o bairro mais bonito, segundo a sua "maneira de ver", tendo, em frente ao arsenal do exército, um cais à margem do rio, construído recentemente. "junto à muralha colocaram bancos

(. .. ) para o público. É muito agradável sentar-se af pela manhã ou à noite(. .. )" (Kidder 197279).

O cais era um dos elementos muito presentes nas imagens do Recife, representado na iconogra­fia do século XIX, porque havia uma movimenta­ção fluvial muito intensa, de canoas, jangadas, bar­cos a vela (Fig 5). Os pintores da época retratavam os transeuntes parados observando a fluência do rio. No núcleo urbano, o rio predomina na paisa­gem até os dias atuais, como também predomina­va nas paisagens dos arrabaldes naquele período. Como enfatiza Sette (1978:57), "Os cais do Recife revestem-se, (. .. ) , de um encanto e de uma sedução ex­perimentada, ao que se vê das velhas gravuras, desde as mais distantes gerações que os palmilharam'.

Continuando seu relato, Kidder comentou que o bairro da Boa Vista era ocupado principalmente por residências e casas de campo. No entanto, al-

guns edifícios de vulto destinados a fins comerciais situavam-se em frente ao rio. Esse já era o prenún­cio dos edifícios que foram sendo construídos defronte ao rio, com as vias e os cais localizados às suas margens; hoje só existe parte desse belo conjunto arquitetônico. A imagem desse conjunto foi sendo representada, ao longo do tempo, através da iconografia, e atualmente é uma das imagens mais presentes nos cartões-postais.

Ao se dirigir aos arrabaldes, ele ressaltou que as suas paisagens apresentavam um cenário diversifi­cado e agradável, apesar de as estradas serem sujas, malcheirosas e esburacadas. Visitou o Poço da Pa­nela e o Monteiro, arrabaldes situados na margem esquerda do rio Capibaribe, e a Madalena e a Vár­zea, localidades da margem direita, onde caminhou por "uma esplêndida estrada nova, margeada por es­plêndidos canaviais e a cavaleiro de magnijico panora­ma" até o rio, atravessando-o de canoa para a Ponte d'Uchoa por uma "passagem' (Kidder r972:8o).

A ligação entre os engenhos e o ancoradouro das canoas era feita através de "passagens", que co­meçaram a ser abertas a partir da implantação dos primeiros engenhos na "Várzea do Capibaribe". Como as pontes construídas no século XX foram as da Torre e a da BR-ror, não existindo outras no percurso de dez quilômetros ao longo do sinuoso rio Capibaribe, ainda hoje permanecem algumas dessas "passagens", que dão acesso aos barcos que fazem a travessia de pedestres ligando as duas margens do rio, conservando na paisagem um as­pecto rural (Rocha r96B4-35).

,As primeiras mudanças relevantes ocorri­das na cidade passaram a ser implementadas na gestão de Francisco do Rego Barros, o conde da Boa Vista, que governou Pernambuco entre r837 e r845. Tendo estudado na França, o governador convidou para participar da sua administração téc­nicos e trabalhadores franceses, coordenados por Louis Vauthier, visando dar um caráter "moderno" à organização urbana da cidade.

Nesse contexto, as propostas de urbanização da cidade foram sendo implementadas, segundo uma "maneira de ver" européia, mudando os há-

bitos e costumes da cidade. Nesse sentido, foram construídos às margens do rio Capibaribe, na área urbana, o palácio do Governo, a penitenciária, o teatro Santa Isabel, assim como foram criados passeios públicos, praças e jardins ribeirinhos, incluindo alguns trechos da rua da Aurora e da rua do Sol (Mesquita r998:27). E assim o rio foi-se impondo à cidade construída, sem permitir que ela se fechasse a ele, constituindo-se o elemento marcante da paisagem urbana.

Vauthier, ao chegar ao Recife, declarou-se en­cantado com as "margens do Capibaribe, agrestes e belas". 2

' Quando dirigiu a Companhia de Obras Públicas, formulou um relatório propondo um sistema de navegação fluvial, comunicando as diversas partes da cidade às localidades vizinhas, uma vez que a mesma era cortada por rios que se dirigiam até algumas cidades do interior. Ele tam­bém sugeriu a canalização de alguns trechos do Capibaribe e recomendou precaução nas mudan­ças de percurso dos rios, que poderiam prejudicar as futuras retificações (Chacon I959:46-8o).

Com relação aos serviços de infra-estrutura, foi planejado o abastecimento de água potável, e a iluminação pública passou a ser a gás. Foram construídas as pontes da Madalena, de Afogados, de Jaboatão, a ponte pênsil da Caxangá, e foram reformadas a do Recife e a da Boa Vista. Ainda nesse período, começaram a ser feitos grandes investimentos no sistema viário, tanto no núcleo urbano, com a abertura de grandes vias visando o embelezamento da cidade e o fluxo de veículos, como na melhoria dos caminhos existentes e na abertura de estradas, facilitando o acesso aos ar­redores da cidade, possibilitando que algumas fa­mílias passassem a residir e não apenas veranear nos subúrbios.

Esse conjunto de reformas implementadas na administração de Rego Barros deu à cidade uma outra dimensão, como podemos constatar no rela­to de Ave-Lallemant/2 em r859. Ao chegar a Per­nambuco, ele constatou ser "uma cidade inteira­mente comercial", com uma população de roo.ooo habitantes. 'Ao longo das encantadoras lagunas e no

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meio da cidade, já começaram a desenvolver-se certa distinção e beleza nas casas e edifícios públicos recém­construídos, que um dia farão desta cidade, que sur­ge das águas, uma das mais bonitas do mundo, que nada tem a invt:jar, nem mesmo de Hamburgo com sua magnífica bacia de Alster. De fato, a vista das diversas pontes para todos os lados, sobretudo para o norte onde pompeia a velha Olinda, é indizivelmente bela. Com todos esses elementos, é Pernambuco a ver­dadeira cidade do fUturo do Brasil".

Muitos dos viajantes que estiveram na cida­de do Recife a compararam a cidades européias, sobretudo àquelas em cuja paisagem a água, as pontes e os canais eram um elemento marcante, como Hamburgo, Amsterdã e Veneza. Assim, a paisagem da cidade do Recife foi sendo represen­tada por aqueles que a descreveram e a reinven­taram, pelos viajantes, através dos seus relatos, e pelos habitantes dessa cidade, através das poesias, crônicas e demais produções literárias.

Dom Pedro IV3 ao visitar o Recife em r859, imagina a cidade como Veneza, ao observar que "(. .. ) as casas iluminadas sobre os rios que contornam a ilha de Santo Antônio, (. .. ), dão-lhe o aspecto do que imagino será Veneza".

O Recife também foi comparado a um pedaço da Holanda por Teresa, princesa da Baviera,24 que esteve na cidade em r888. Segundo seu relato, "Recife e Santo Antônio causou-nos uma impressão muito agradável. Em lugar algum, em todo o país, os vestígios da ocupação holandes.: conservam-se de for­ma tão clara como aqui; (. .. ). É como se um pedaço da Holanda tivesse sido transplantado para o Brasil (. .. ). Casas estreitas e altas, com telhados inclinados (a pique) permitem-nos supor que nos achamos no Norte germânico".

Alguns habitantes representaram o Recife, durante o século XX, recorrendo a comparações com Amsterdã e Veneza. O cientista social Josué de Castro (1992:34), ao se referir à formação da cidade do Recife, ressaltou: "Foi nesses bancos de solo ainda mal consolidados - mistura ainda incerta de terra e de água - que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade an.fivia, como Amsterdã e

Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro d'água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros, flutuando esqueci­do à flor das águas".

Joaquim Nabuco,Z5 ao representar a cidade do Recife, comparou as suas diferenças e similari­dades com Veneza, em uma carta publicada n'O Paiz, no final do século XIX. De acordo com a sua "maneira de ver", "O Recife é com efeito uma Veneza (. .. ) não pelos palácios de mármore do grande canal, que mostram, (. .. ), a mais bela fase da arquitetura da Renascença, não por essa praça de S. Marcos, que só tem uma rival no mundo, não pela tradição de más­caras e barcarolas, doges e pintores, de amor e style­te, de cárcere e carnaval, que flutua sobre as lagunas (. .. ).O Recife não tem nada disso, mas como Veneza é uma cidade que sai da água e que nela se reflete, é uma cidade que sente a palpitação do oceano no mais profUndo dos seus recantos ( ... ). Melhor porém do que em Veneza, os canais do Recife são rios, a ci­dade sai da água doce e não da maresia das lagunas, o seu horizonte é amplo e descoberto, as suas pontes são compridas como terraços suspensos sobre a água, e o oceano vem se quebrar diante dela em um lençol de espumas por sobre o extenso recife que a guarda como trincheira, genuflexório f"

Ainda no final da primeira década do século XIX, foram instituídos como normas locais, de­terminados espaços para o despejo dos dejetos, assim como das águas servidas. Essas normas vie­ram atender às reclamações estampadas nos jor­nais da época, com relação ao mal-estar causado por esses despejos que eram feitos no rio, em lo­cais próximos às estações de passageiros dos trens e das maxambombas, (Sette 1981:248). Apesar de os locais de despejo terem sido mudados, os de­jetos continuaram sendo jogados ao longo do rio Capibaribe, e somente algum tempo depois é que. foi proibido fazer despejos em qualquer sítio onde o rio passasse.

Com o crescimento da cidade e o seu sarnento, as condições higiênicas foram-se teriorando, principalmente devido à falta de sistema de eliminação dos dejetos e das

servidas. Nesse contexto, quando a situação já tinha atingido graves proporções, diante do de­sencadeamento das epidemias de febre amarela e cólera morbus, respectivamente em r85o e r855, é que foi contratada uma empresa para explorar os serviços de coleta de lixo, escoamento de águas servidas e esgoto. As águas servidas continuaram sendo escoadas para o rio através de canalização. A Companhia Recife Draynage, passou a ser res­ponsável pelo sistema de esgotamento sanitário e das águas servidas.

Na segunda metade do século XIX, continua­riam a ser implementadas as propostas urbanas visando "modernizar" a cidade do Recife. Nesse período, o Brasil procurava se inserir no processo de expansão mundial do capitalismo, o que acar­retou profundas mudanças na economia nacional e, em conseqüência, na economia local. As reper­cussões dessas mudanças vão se dar sobretudo nas cidades, com investimentos na modernização da infra-estrutura urbana. Nesse período, o Recife era o pólo comercial da região e não tinha somen­te a função portuária, embora esta ainda fosse a dominante. Segundo Lubambo (1991:29), o Reci­fe "(. .. )já não era apenas o 'Porto', era a 'Cidade'".

Nesse contexto é que foram sendo direcionadas as reformas urbanas, com a remodelação do porto do Recife, que começou a ser implementada no início do século XX, e os investimentos no siste­ma viário. As vias foram sendo abertas, conver­gindo para o porto e seguindo o curso dos princi­pais rios, com uma distribuição radioconcêntrica, característica marcante na forma de expansão da cidade, ligando-a ao interior, facilitando, assim, a comercialização dos produtos de subsistência que abasteciam a cidade.

Era transportado também por essas vias, o açú­car trazido das usinas localizadas no interior, que começaram a substituir os engenhos bangüês a partir de r884- De acordo com Andrade (1966:84), com as usinas, os rios perderam as funções que ti­nham ao tempo dos engenhos, "como fonte de ener­gia, (e) como força motriz", e começou o processo de poluição, pois os usineiros passaram a lançar

nos mesmos a calda da cana, que eles supunham não ter nenhuma serventia, prejudicando até a população que morava nos arredores dessas des­tilarias. A partir daí, as relações entre o homem e a água começaram a modificar-se drasticamente, pois, até então, mesmo que não houvesse o devido respeito a esses recursos hídricos, o homem não os poluía na mesma proporção que passou a fazer com o advento das usinas.

Por essas estradas também foram chegando os escravos libertos, que até então estavam ligados à agricultura de exportação e que, devido às mo­dificações nas relações sociais de trabalho, com a criação do trabalho assalariado, vieram para os centros urbanos, sobrevivendo às custas de bis­cates e outros serviços (Barrreto 1994=44). Essa maioria pobre e livre, sem ter onde morar, foi ocu­pando as áreas menos valorizadas nos mangues e alagados, às margens dos rios, e aí construindo os seus mocambos, nos monturos que ia aterrando. (Lubambo 1999:54).

Paralelamente às aberturas das vias, os meios de transportes foram sendo inovados, com a cria­ção dos trens e das maxambombas, que tiveram um papel muito importante na expansão da ci­dade, ligando o centro urbano ao interior e aos arrabaldes que surgiam (Gomes I99TI03)- A pri­meira maxambomba, cuja linha ia até Apipucos, foi inaugurada em r866, contribuindo para uma grande transformação na ocupação do solo dos ar­rabaldes.

Com a abertura das estradas e a comodidade dos meios de comunicação, as casas passaram a ser construídas com a frente para essas vias, ape­sar de não serem abandonados os acessos ao rio, pois ele ainda oferecia a vantagem do transporte de canoa e do banho como lazer ou higiene. No entanto, o lado da estrada foi paulatinamente se impondo como o lado nobre, com a frente das ca­sas se voltando para ela e o lado do rio foi se tor­nando os fundos das casas. Esse contexto também se verificou em outras cidades brasileiras que, durante o processo de urbanização, passaram a negar os rios, dando-lhes as costas, iniciando-se

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I '' I I ' 1

l

uma ruptura progressiva entre o homem e esses elementos hídricos.

No final do século XIX, a cidade do Recife já não tinha feições tão provincianas como no início do século. Como ressalta Menezes (1978 b:26o), "O século XIX será, na verdade, o grande século do Recife. Veremos o seu crescimento, mas também assistiremos o seu caminhar lento para a destruição que se processará nos seus últimos anos com as obras do porto".

As reformas urbanas visando a dar à cidade uma fisionomia "moderna", de acordo com os pre­ceitos urbanos adotados nessa época, foram im­plementadas de acordo com a "moda" européia. Nesse contexto, essa "maneira de ver" buscou criar "novas paisagens" urbanas, centradas na abertura de vias, prédios e monumentos.

SÉC. XX- DEGRADAÇÃO DAS PAISAGENS

DO RIO CAPIBARIBE

As reformas urbanas que, desde o século XIX, visavam dar à cidade ares de "modernidade", conti­nuariam a ser viabilizadas no século XX. Segundo Rezende (199T3I), "passados os tempos da colônia e do Império, consumada a abolição da escravatura e proclamada a tão sonhada República, o Recife entra­va no século XX acreditando nos sinais do progresso".

Nesse sentido, além de serem iniciadas as re­formas das instalações do porto, o que se planeja­va era investir na sua transformação urbana, pau­tada no traçado da cidade e numa ação higieniza­dora. Assim, a paisagem do Recife passou a ser forjada a partir da "maneira de ver modernizante" imposta pelas elites, visando o embelezamento da cidade. Nessa direção, o bairro do Recife passou a ser palco da destruição de uma parte do seu teci­do urbano, tendo como justificativa a renovação do porto. As duas avenidas abertas, a Rio Branco e a Marquês de Olinda, ligavam o porto às pon­tes, ou seja, o mar ao rio, visando criar perspecti-

vas monumentais, de acordo com as concepções de Haussman.

O crescente adensamento populacional no Re­cife faria com que a saúde pública se tornasse uma questão fundamental nas ações de modernização dessa cidade, pois se encontrava em uma situação crítica. Eram feitas denúncias nos jornais da épo­ca, assim como diagnósticos sanitários, mostran­do os níveis de insalubridade que a cidade tinha alcançado. Diante desse quadro, o poder público percebeu que a questão da higiene estava levan­do a cidade a uma situação de ingovernabilidade e, assim, seria necessário que se buscassem so­luções visando o enfrentamento do problema de saúde pública. Essa causa passou a ser abraçada por médicos, higienistas, autoridades governa­mentais e intelectuais (Rezende 199T44l·

Com o intuito de solucionar essa questão, foram formalizados Planos de Saneamento e Políticas sanitaristas conduzidos pelo paulista Saturnino de Brito, que, em 1908, foi convidado a assumir a Repartição de Obras Públicas. A reforma de Brito, pautada no higienismo e no esteticismo, apontou alguns problemas como prioritários na resolução da questão sanitária, entre eles o dessecamento e a drenagem dos pântanos, pois, sob a perspectiva higienista, os pântanos e os manguezais eram considerados insalubres e focos de miasmas. Nesse sentido, os pântanos foram aterrados e transformados em parques, visando o embelezamento da cidade. Foram ressaltados também como causa da precariedade da higiene pública, as condições de moradia de grande parte da população recifense que habitava a beira dos mangues, além dos mocambos, visíveis na paisagem, que expressavam a condição de miséria da cidade, indo de encontro aos padrões de estética e beleza que se pretendiam alcançar.

A mudança nas relações de trabalho no inte­rior, a partir de 1930, promovida pela indústria açucareira, resultou na expulsão dos trabalhado· res para a cidade em busca de emprego (Barreto 1994:58). Devido à baixa qualificação profissional desses trabalhadores, a única opção na cidade era

138 _f-H OS F'f.HSAGENS URBANí:tS

sobreviver de biscates e ocupar áreas sem nenhu­ma infra-estrutura, localizadas, em sua maioria, à beira dos manguezais. Assim, as áreas pobres foram-se expandindo pela cidade e ocupando aos poucos as áreas alagáveis de mangues e de várzeas do "baixo curso do Capibaribe" (Melo 1978:29). Foi nesse contexto que a histórica "Várzea do Capiba­ribe" começou a ser compartilhada por pobres e ricos, e os contrastes entre os palacetes e os mo­cambos passaram a constituir uma característica das paisagens do rio Capibaribe nos subúrbios ali localizados.

Esses contrastes inspiraram crônicas, poesias e artigos de jornal que, nesse século começaram a surgir, denunciando e lamentando a degradação das paisagens do rio Capibaribe. Para Josué de Castro (1992: 258), "O Recife, cidade dos rios, das pontes e das antigas residências palacianas, é também a cidade dos mocambos -das choças, casebres de bar­ro batido a sopapo, com telhados de capim, de palha de folhas de flandres ( ... )".

As paisagens do rio também se apresentavam degradadas, como resultado da poluição causada pelas usinas, que jogavam as suas caldas, ou vi­nhoto, no rio, causando um grande impacto no meio fluvial. O lançamento do vinhoto das desti­larias, nos períodos em que o volume d'água dos rios era reduzido, causava grandes danos à fauna ictiológica, tendo repercussões nas condições sa­nitárias das regiões atravessadas pelos rios (An­drade 1989:34).

No século XX, a partir da década de 20, os ba­nhos de mar e o uso da praia com a finalidade te­rapêutica, de recreação e de lazer se tornaram cor­riqueiros, com os veraneios passando a ser feitos, principalmente na praia de Boa Viagem, zona sul da cidade. E, assim, a água nobre, que antes era a do rio, passou a ser a do mar.

A partir desse período, as paisagens do rio Capi­baribe, no trecho que envolve o conjunto de bair­ros localizados na antiga "Várzea do Capibaribe", passaram a ser produzidas pelos grupos sociais não dominantes, os "excluídos", sendo os mocam­bos parte destas paisagens. Como os grupos so-

dais dominantes perderam o interesse por deixar sua marca nessas paisagens, de acordo com a sua "maneira de ver", elas passaram a ser esquecidas. Enquanto no centro do Recife, as paisagens do rio Capibaribe, cortado por pontes e com edifícios im­ponentes às suas margens, viraram cartão postal, as paisagens nesse conjunto de bairros passaram a ser visíveis apenas para o observador que as vis­lumbrava em suas margens ou que fazia o percur­so pelo rio. Foi através desse percurso, retratado em sua memória, que João Cabral de Melo Neto representou as paisagens do Capibaribe, no seu poema "O cão sem plumas".26

"I I Paisagem do Capibaribe"

'/l cidade é passada pelo rio como uma rua passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.

Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa. (. .. ) Sabia dos caranguejos de lodo e ftrrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. (. .. ) Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, Abre-se em flores pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespas como um negro. (. .. )

RIOS P(l!Sf1GENS URBANAS_ D9

Page 71: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada de roupa suja e abafada) por onde veio se arrastando. Algo da estagnação dos palácios cariados, comidos de mofo e erva-de-passarinho. Algo de estagnação das árvores obesas pingando os mil açúcares (. .. ) Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?

As usinas não só degradaram as águas do rio, como produziram um impacto ecológico da maior gravidade. Isso porque, ao expandir a área cultivada de cana, as usinas derrubavam as matas ainda preservadas, muitas delas em terre­nos de encostas, provocando erosão e o entulha­mento dos vales, o que repercutia nos rios, que se enchiam de sedimentos transportados pelas enxurradas, tornando-se cada vez menos profun­dos e mais largos. A destruição das matas ainda provocava alteração nos regimes dos rios (Andra­de 1966:34). Esses fatores, juntamente com os aterros que foram sendo feitos às margens do rio Capibaribe, desde o século XVII, foram responsá­veis pelos grandes danos causados à população, resultado das cheias que se sucederam como um fenômeno cíclico. Durante o século XX, foram registradas várias cheias, a mais catastrófica de todas em 1975. Assim, o rio Capibaribe algumas vezes "perdeu a paciência" e deixou a população do Recife amedrontada, ao procurar retornar ao seu leito original, atingindo principalmente

140

os pobres, que perdiam seus mocambos (Silva 1992:67)-

Foi a partir da década de 1930 que a paisagem da cidade começou a ser moldada segundo a "ma­neira de ver" dos urbanistas. Foram vários os urba­nistas contratados para elaborar planos urbanos, visando remodelar a cidade, tendo como perspec­tiva sua "modernização", pautada num saber técni­co e racional. Entre esses planos, alguns previam o tratamento das margens do Capibaribe, como a proposta de Fernando Almeida, em 1932, que previa mudar o traçado urbano da cidade com a implantação de parques no entorno do rio Capi­baribe e ao longo das grandes avenidas (Barreto 1994:68).

Em 1942, foi convidado o urbanista Ulhôa Cin­tra, diretor de obras da prefeitura de São Paulo, para elaborar o plano de remodelação e expansão da cidade do Recife, juntamente com uma comis­são. A sua proposta procurou aproveitar algumas diretrizes existentes em planos anteriores e consi­derar as condições físicas existentes, de maneira que não fossem feitos grandes investimentos em aterros. Com relação ao rio Capibaribe, a proposta desse urbanista foi valorizá-lo, sugerindo que fos­se implantado um parque linear até Dois Irmãos, seguindo o seu curso até o ponto em que o rio flete a noventa graus, (Baltar 2ooo:121). Tanto a proposta de Ulhôa Cintra, como a de Fernando Almeida, com respeito ao rio Capibaribe não fo­ram realizadas.

A cidade do Recife, que se configurava como centro de atração de imigrantes, continuou expan­dindo-se, incorporando mangues e alagados, para abrigar a população que, em 1950, era de 534.468 habitantes. Os serviços de abastecimento d'água, coleta de lixo e saneamento não atendiam a 30% da população, e ainda existia um grande déficit habitacional: 55% das habitações do Recife, nesse período, eram mocambos (Barreto 199473).

A precariedade nos serviços de saneamento fazia o rio Capibaribe degradar-se cada vez mais; além do vinhoto das usinas, passaram a ser lança­dos no rio os esgotos domésticos, sem nenhum

tratamento, pois desde a década de vinte do sécu­lo XX, houve uma pequena expansão, seguida de estagnação, dos investimentos no saneamento da cidade"7

• Na década de 90, há apenas 30% de rede de esgotamento sanitário. 2s

O quadro de degradação que apresenta o rio Capib~r,ib: tem sido alvo de denúncias na impren­sa penodiCa e em outras publicações literárias, como aponta Chacon (op.cit.:roo), desde 1847. Apesar desse contexto, o rio ainda continua a ins­pirar poetas e intelectuais, como Josué de Castro (1992 257-258}, que, apesar de ter denunciado a miséria em que vive a população que ocupa as áre­as alagadas às margens dos rios, também mostrou a contribuição dos rios na formação da paisagem do Recife:

"Este ar~ este solo onde assenta a cidade do Recife, e donde a ndade tira toda a vida de sua fisionomia, são eftitos exclusivos dos rios que a banham. Do Ca­pibaribe e do Beberibe. Por toda a cidade eles correm em zigue-zague, passando ali, acolá, debaixo duma ponte, dando um ar de doçura à cidade. Cidade de paisagem doce, em pleno nordeste ardusto ( ... ).

Recife _( ... ) é, un: dom dos seus rios (. . .). Rios que deram ongem a ndade e foram importantes fatores de sua história. Rios nativistas, ( .. .), que ajudaram a expulsar da pátria o invasor holandês. Rios valentes aos. quais o caboclo do Nordeste empresta em sua Jan: tas~a, uma alma impetuosa e violenta, de quem nasce predestinado à aventura ( .. .).

O Capibaribe que vem de mais longe, ( .. .), desce aos francos por cima das pedras, encontrando cida­des e povoações, contando simbolicamente todas as peripécias da vida do sertão. Ora num tom humilde quando é tempo de seca e de necessidade ( ... ). Or; num tom de pabulagem, transbordando das mar­gens a opulência das suas águas ruidosas, relatando a abundância das terras onde as chuvas ftrtilizan­t:s se derramaram copiosamente. Na descida vão as aguas refletindo sempre paisagens diferentes" (Castro 1992:257}-

Através das representações, desde o século XVII, pôde ser constatada a importância desse rio na formação das paisagens do Recife e a relação

q_ue foi sendo estabelecida entre os habitantes da nda~e ,e.o seu rio, pois a "História do Capibaribe é a H~stona do Recife" (Chacon 1959:roo). É nesse contexto. que este autor questiona: "Por que, então, a~ a~t~nd~des o desprezam tanto com a sua negli­genna. Dnxam-no sujo, coberto de lama, assoreado". ~ntretanto, cabe acrescentar: será que só as auto­ndades o desprezam ou a própria população, na sua relação contraditória com o rio? Qual tem sido o significado desse rio para a população do Recife? Ess_a população não tem desenvolvido uma relação de mtegração com o rio e a água no seu cotidia­no. Será que existem possibilidades de mudança nessa relação? Ou o rio Capibaribe continuará sendo representado por sua presença nem sem­pre poética na cidade e como símbolo da cidade do Recife, juntamente com suas pontes, mas sem o aproveitamento de todas as potencialidades que ele oferece?

Page 72: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

NoTAS

r- Cidade flúvio-marinha, capital do Estado de Pernambuco,

está situada entre 8°o4'oo" de latitude sul e 43°52'oo" de

latitude oeste (Gomes:r99T58).

2· Segundo Melo (1978:66), o reconhecimento da superfície

líquida no sítio primitivo do Recife, assim como da

importância da água na sua configuração são referência

comum daqueles autores que tratam das origens do Recife

e da sua fisionomia urbana. Dentre esses, são citados:

Valdemar de Oliveira (1942), Aderbal Jurema (1952), Antônio

Bezerra Baltar (2ooo), Josué de Castro (sjd,1954), Mário

Sette (1978), Olímpio Costa Júnior (1944), Rachel Caldas Lins

(1982), Tadeu Rocha (1959), Vasconcelos Sobrinho (1937),

Gilberto Freyre (2ooo).

3- Carlos Pena apud Chacon (1959:122).

4- Gabriel Soares de Souza, op. cit. p. 19.

5- Segundo Mello (1976:170), a cartografia portuguesa, até o

século XVII, era essencialmente costeira, atendo-se pouco aos

registros do interior das terras e à topografia urbana. Assim, é

surpreendente que, neste mapa, de acordo com Mello, esteja

representado um arruamento no bairro de São Frei Pedro

Gonçalves, e algumas ruas que não constam em um mapa

holandês de 1637. Ao que parece, essa anomalia no traçado

urbano é engano do cartógrafo português.

6- Silva, L.(1988). Nota do Editor. In: Atlas Histórico

Cartográfico do Recife. (Org.) Menezes, J. L. Recife,

FUNDAJjMassanganajPCRjURBjDPSH.

7· Os engenhos de açúcar, num período em que não

havia estradas que facilitassem o escoamento do produto,

localizavam-se próximos de rios navegáveis e da costa

(Andrade:1984:66).

8- Francisco José Sales apud (Gomes:199776).

9· Hoje se questiona a estada de Pieter Post no Brasil.

No entanto, graças a ele ou a outro engenheiro- como o

engenheiro Pistor ou Marcgrave -, a capital foi iniciada,

com a assistência do conde, de acordo com a concepção

norte-européia (Mello:198T84). Esse plano urbanístico foi

considerado um dos primeiros nas Américas.

ro- Gonçalves Dias (1983=63) In: Presença Poética do Recijé:

crítica e antologia poética. (Org.) Coutinho, E. Rio de Janeiro,

Livraria José Olympio Editora( Fundarpe.

II- Essas foram as pontes mais importantes, não só porque

ligavam o Recife a Maurícia e esta ao continente, como por

terem maior extensão. No entanto, havia os pontilhões sobre

os canais da cidade Maurícia.

12- Loreto Couto apud Chacon (1959:78).

13· Até então, o Recife estava vinculado aos interesses da

metrópole portuguesa. No entanto, foi-se rebelando contra

o "pacto colonial" e abrindo o seu porto para o desembarque

das idéias liberais européias.

14- Henry Koster veio ao Recife para tratamento de uma

tuberculose, permanecendo aqui por um longo tempo. Sendo

bom observador e anotando o que via: os costumes, o povo, os

detalhes da cidade, publicou em Londres, em 1816, ''Travels in

Brazil" (Maior & silva:199278).

15· Apud Mello (1992 :197).

16- Tollenare permaneceu no Recife nos anos de 1816

e1817, dedicando-se ao comércio de algodão, embora fosse

interessado em botânica, costumando escrever suas notas ao~

domingos (Maior & Silva: op.cit.: 90).

17- Autor do livro sobre o Brasil ·~ history ofthe Brazi!:

comprising its geography, commerce, colonization, aborígina!

inhabitants" (1992: I05·II9)-

18- Maria Graham veio ao Recife acompanhando seu

o capitão Thomas Graham, comandante da fragata Doris.

(Maior & Silva: op.cit.: 122).

142 _Rim; Pí~lSAGENS Uf<BANAS

19- Apud Lima (op.cit.: 46).

20· Em 1845. publicou nos Estados Unidos o livro "Brazil

and the brazilians portrayed in historical aMd d 't. k h » escn we s etc es.

A obra sobre o Brasil mais conhecida nos Estados Un'd d

I OS,

ten o alcançado um grande sucesso (M · & s·l .

149)-awr 1 va: op.crt.:

21· Apud Chacon (op.cit.:8o).

22-Apud Cavalcanti (op.cit.:271.272).

23· Apud Auler (1975=361).

25· Apud Gomes (1997= 9 o).

26- Melo,]. C. (r965.:16r).

27· Os últimos investimentos no saneamento da cidade foram feitos por Saturnino Brito, em 1908.

28- Atlas Ambiental do Recife (2000:103_1041

_

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Page 74: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

0 RIO SANHAUÁ E A CIDADE DE JOÃO PESSOA

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta uma discussão sobre a importância dos rios urbanos e dos espaços livres públicos na estruturação das cidades, compreen­dendo a paisagem e a forma urbana como produto da experiência de seus usuários. Neste sentido, di­rige um olhar específico sobre o rio Sanhauá, loca­lizado na cidade de João Pessoa- PB e sobre os es­paços livres que se estabelecem às suas margens e no entorno do bairro do Varadouro, local original de fundação da cidade. O caminho percorrido por este rio, ao longo da nossa área de estudo, com­preende trechos de ocupação irregular de suas margens, através da implantação das habitações de comunidades carentes sobre o manguezal, e diversos outros obstáculos que contribuem para o isolamento e segregação dessa paisagem. Reco­nhecendo seu potencial ambiental, paisagístico e cultural, esta pesquisa tem como objetivo compre­ender as dinâmicas dos processos de desenvolvi­mento desta área a fim de fornecer subsídios para elaboração de propostas que valorizem esta área ribeirinha, a conservação do seu ecossistema e a redescoberta de uma paisagem oculta da cidade.

A construção da paisagem urbana, compreendi­da aqui como um processo dinâmico de combina­ção entre sistemas naturais e urbanos, é analisada neste capítulo a partir da compreensão da impor-

Flavíana Vieira Raynaud

tância da presença dos rios 1 nas cidades. No que diz respeito à inserção destas águas no meio ur­bano, destaca-se com freqüência a ausência de po­líticas públicas que promovam sua valorização, o que contribui para configurá-las como os recursos mais intensivamente utilizados e mais freqüen­temente agredidos em todo o mundo. Os vários estudos sobre a importância dos valores ambien­tais e as várias conferências internacionais sobre o meio ambiente, realizados a partir da década de 6o, conduziram ao reconhecimento da fragilidade dos sistemas naturais e dirigiram um maior enfo­que sobre a necessidade de sua conservação e inte­gração à vida das cidades (Mann, 1973). A partir de então, tem-se observado o incremento de estudos e projetos que valorizam a questão do equilíbrio entre os sistemas naturais e humanos na constru­ção da paisagem urbana, questionando o desenho urbano convencional predominante nas cidades contemporâneas e as dificuldades de interação entre esses sistemas (Hough, 1995). Os espaços_ livres públicos, compreendidos como centros de cultura e natureza nas cidades, se constituem em elementos fundamentais para o estudo destas pai­sagens. Neste sentido, várias pesquisas têm pro­curado demonstrar a importância da análise da experiência humana nestes espaços para a com-

RIOS PfHSAGENS URB(lNfiS~ 14 7

Page 75: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

I I '~

preensão dos valores e significados atribuídos a estas paisagens, levando em consideração a diversidade dos grupos sociais e a forma como interagem e apropriam-se destas áreas.

Esta pesquisa caracteriza-se pelo seu caráter multidisciplinar e estrutura-se a partir de duas abordagens teóricas (Costa, 1993; Costa e Mon­teiro, 2000). A primeira refere-se ao estudo dos rios urbanos como forma de compreender a dinâmica do processo natural na formação da paisagem urbana e sua importância na cons­trução dos valores ambientais, paisagísticos, culturais e estéticos destas paisagens (Hough, 1995; Manning, 1997). A segunda refere-se às relações entre paisagem natural e humana nos espaços livres, em particular nos espaços livres localizados ao longo desses cursos de água. Destaca-se aqui a importância dos processos

de planejamento e projeto que considerem aspec­tos ambientais e sociais na construção da paisagem (Lynch, r96o; Carr et al,r992; Penning-Rowsel e Burgess, 1997;Marcus e Francis,1998).

Os procedimentos metodológicos utilizados para realização desta pesquisa tiveram como obje­tivo coletar dados quantitativos e qualitativos que contribuíssem para a discussão destas relações aplicadas à cidade de João Pessoa, sua população e suas águas. Estes procedimentos estruturaram. se a partir de uma primeira etapa de pesquisa do­cumental e iconográfica, e de uma segunda etapa referente à pesquisa de campo propriamente dita. O cruzamento entre elas possibilitou a análise do processo evolutivo da área e das diferentes formas de estruturação do seu espaço urbano e natural a partir da compreensão das dimensões sociais e culturais que os conduziram.

Figura 1 -Vista aérea do bairro do Varadouro - 1994, Foto Gustavo Moura

Ü VARADOURO E O RIO SANHAUÁ

A associação destas duas dimensões de análise -ambiental e cultural- permite uma compreensão do processo de construção da paisagem do Varadouro2

e, mais especialmente, das relações que se estabele­ceram entre o rio Sanhauá e seu entorno. Localiza­da no centro histórico da cidade de João Pessoa, às margens do rio Sanhauá, este bairro abriga o local de fundação da cidade - a porta de entrada para as primeiras embarcações portuguesas, em fins do sé­culo XVI. O bairro do Varadouro, um dos principais centros comerciais da cidade, foi responsável pelo

estabelecimento da comunicação funcional, visual e simbólica da cidade com as águas do Sanhauá, contribuindo para que a cidade de João Pessoa per­manecesse durante três séculos e meio "presa" ao rio e "de costas" para o mar. No entanto, o processo de intensificação da urbanização em direção ao lito­ral alterou completamente a relação entre a cidade e este curso d'água e conduziu ao processo contí­nuo de desvalorização e abandono das atividades locais, as quais foram praticamente extintas a partir da segunda metade do século XX (Fig. r e 2).

Figura 2 - Mapa de caracterização da área de estudo e entorno.

Mangue Tecido urbano Via férrea

Aterro I ocupação irregular -Praças Município de Bayeus

O Rodoviária E) Quartal de Polícia E) Estação Ferroviária 0 Estação de Esgoto I SAELPA

0 Antigo Tesouro Provincial @Antiga Alfandega O Hotel Globo (l)lgreja de S. Pedro Gonçalo

O Ponte de Sanhauá

Page 76: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Figura 3a e 3b - Vista da Favela Porto do Capim e edificações

do centro histórico de João Pessoa, a partir do Rio Sanhauá,

Foto Mariana Vieira

A atual ausência de comunicação entre esse conjunto histórico e o rio Sanhauá evidencia um processo de urbanização que desvalorizou a pre­sença das águas na estruturação da cidade. Apesar da tradição histórica e paisagística da cidade com seus rios urbanos, estes não foram ainda efetiva­mente integrados à vida urbana. O rio Sanhauá com seus oito quilômetros de extensão compõe o estuário do Paraíba do Norte, um dos maiores rios do estado e situa-se na linha divisória entre os municípios de João Pessoa e Bayeux. No tre­cho percorrido pelo rio Sanhauá ao longo do bair­ro do Varadouro, verifica-se a ocupação irregular das suas margens através da implantação de edi­ficações das comunidades carentes (denominadas favelas Porto do Capim(Fig. 3a e 3b), Vila Nassau e Vilas da Ilha do Bispo) e a área do antigo depósi­to de lixo a céu aberto, conhecido como "lixão do Roger"3, desativado a partir do ano de 2003. Na sua margem oposta, onde situa-se o município de Bayeux, a área ainda é pouco urbanizada, coberta por um vasto manguezal.

Nossa análise compreende a área do bairro do Varadouro que se estende por aproximadamente um quilômetro ao longo do rio Sanhauá e os es­paços livres localizados em seu entorno. Esta área, seccionada longitudinalmente pela presença da via férrea, conforma duas áreas com característi· cas distintas. O trecho localizado às margens do rio Sanhauá (a oeste da via férrea) caracteriza-se pela situação de abandono e pela dificuldade de acesso e comunicação com o tecido urbano adja­cente; a área oposta (localizada a leste da via fér­rea), comunica-se diretamente com o tecido ur· bano e destaca-se pelo aspecto de fragmentação morfológica, devido às sucessivas intervenções viárias, apresentando dificuldades quanto a sua leitura, apreensão e apropriação. Os espaços li· vres públicos localizados nessa área, em especial as praças, apresentam-se desarticuladas entre si, gerando espaços onde se desenvolvem poucas atividades coletivas. Paralelamente ao processo de ocupação desordenada dessa área, verifica-se também a perda sucessiva de sua cobertura vege·

150 o. RlflS E PAHJAGENfl Uf18ANAS

tal. As margens do rio Sanhauá, protegidas pela legislação como zona especial de preservação na­tural, é recoberta por um expressivo manguezal­elemento de ligação entre os ambientes terrestres e ribeirinhos, considerado como uma verdadeira floresta de beira-rio com influência marinha- que tem sido alvo de fortes agressões, o que explica a fragmentação da grande faixa vegetal que deveria emoldurar as margens deste rio. Neste processo de degradação incluem-se não apenas os man­guezais, mas todos os demais componentes que compõem o equilíbrio deste ecossistema. Enfim, esta pesquisa pretende compreender e analisar o processo de construção dessa paisagem, destaca­da pelos valores históricos, ambientais e paisagís­ticos aqui brevemente apresentados, realçando a importância de sua integração à dinâmica urbana através da recomposição de seu ecossistema e da valorização de suas águas urbanas.

Ü VARADOURO: EVOLUÇÃO DE UMA PAISAGEM

Durante aproximadamente 350 anos, o rio Sa­nhauá, localizado no bairro do Varadouro, repre­sentou a porta principal da cidade de João Pessoa e os primeiros séculos da existência da cidade es­tiveram associados aos acontecimentos que trans­correram às margens dessas águas ou em seu en­torno. É possível recorrer à trajetória do rio para compreender o processo de estruturação dessa área e a evolução na forma de percepção e apro­priação pela população. O bairro do Varadouro, tendo preservado até os dias de hoje muitas carac­terísticas do seu traçado original, sofreu diversas transformações, tais como a construção da via fér­rea ao longo do rio, a transferência do porto oficial da cidade para o município vizinho de Cabedelo, a ocupação das áreas ribeirinhas e as sucessivas in­tervenções viárias que seccionaram seus espaços públicos. A compreensão dos vários acontecimen· tos que transcorreram às margens do Sanhauá é

fundamental para a construção do panorama que conduziu o processo de ocupação e fundação da cidade em meados do século XVI, até a estrutura­ção de sua configuração urbana atual.

Como marco da primeira ocupação desse espa­ço, destaca-se o estabelecimento das moradias dos povos indígenas às margens do Sanhauá- indício de um ordenamento do espaço selvagem que estes povos encontraram ao longo das águas. A chegada das expedições portuguesas através deste mesmo rio, em 1579, é marcada pelo deslumbramento em relação ao sítio descoberto e os relatos dos viajan­tes traduzem o forte encantamento despertado por esse lugar. É importante lembrar que nesse mes· mo período haviam sido fundadas duas das mais antigas cidades do Brasil Salvador (1549) e Rio do Janeiro (1565) -e que anos mais tarde, em 04 de novembro de 1585, outra expedição portuguesa desembarcaria no local, confirmando o desejo de fundar uma cidade no alto da colina, às margens desse mesmo rio.

"Procurando melhor lugar para plantar a cidade, escolhe o alto de uma colina, tendo o rio Sanhauá aos pés, a dezoito quilômetros da foz do Parahiba, defron­te do sítio em que João Tavares havia anteriormente feito paz com Piragibe" (Pinto,19o8 op cit Mene­zes,1985 sjp).

A ocupação portuguesa foi então responsável por uma estruturação urbana mais ordenada e formal desse espaço. Preocupados com questões de segurança e defesa, os portugueses utiliza­ram-se da situação geográfica privilegiada deste sítio e implantaram a cidade na porção mais alta, liberando a porção ribeirinha para instalação de edificações de apoio às atividades do cais do Va­radouro, como as oficinas náuticas, fortes, paióis, armazéns e edificações para o alojamento de ofi· dais e soldados encarregados da defesa da cidade. Uma análise do sistema de arruamento dessas duas áreas demonstra a implantação de um sis­tema ortogonal de ruas na porção mais alta em contraposição à implantação irregular e orgânica

RIOS E PAISAGENS URBANAS_ 151

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da porção mais baixa. As margens do Sanhauá representavam não apenas o lugar de encontro dos marinheiros, mas também o espaço da troca de mercadorias e informações, o espaço das cele­brações e dos eventos sociais da cidade (Menezes, 1985; Aguiar, 1989,1992).

No início do século XVII, a cidade de João Pes­soa, até então pouco desenvolvida e denominada Felipéia de Nossa Senhora das Neves, assistiu a chegada da expedição holandesa por esse mes­mo braço do rio Paraíba4 . A população local, no entanto, reagiu contrariamente à nova forma de dominação holandesa, protestando através da des­truição de armazéns e depósitos localizados às margens do Sanhauá. Apesar das reações locais, o governo holandês, especialmente o governo de Maurício de Nassau (1637-1644), trouxe ao Nor­deste o brilho da cultura holandesa. Nesta época, a paisagem do Varadouro -com suas águas, edifi­cações e seus habitantes: índios, negros e mulatos - inspirou a maior parte dos relatos e ilustrações, como mapas e pinturas realizadas por visitantes e artistas holandeses5 (Melo, 1997).

Os portugueses voltaram a lutar pelo controle destas terras e conseguiram vencer e expulsar os holandeses, encerrando vinte anos de dominação holandesa. A cidade, a partir de então denominada de Parayba6

, passou a receber maior atenção por parte da coroa portuguesa, e vários melhoramen­tos urbanos começaram a ser realizados. O cais do Varadouro, localizado às n,drgens do Sanhauá, continuou sendo durante muito tempo o marco principal de vida pública, não apenas pelo movi­mento provocado pelo embarque e desembarque de mercadorias, mas pelas diversas relações so­ciais que ali se estabeleciam (Rodriguez,1994). Apesar da importância deste comércio fluvial, os projetos relacionados à criação de um porto neste local nunca vieram a ser concretizados.

Em fins do século XIX, vários melhoramentos foram responsáveis por transformações importan­tes na estrutura da cidade, entre eles a construção da linha férrea (1875) e a inauguração do ferro car­ril puxado a burro (1883). Mais tarde, a construção

da estação ferroviária Great Western (1894), pos­te~i~rmente :ubstituída pela .estação atual (1943), f01 mstalada as margens do no Sanhauá no bairro do Varadouro. Sua localização representava um ponto intermediário entre as cidades do interior do estado e o município de Cabedelo, onde fun­cionava (e ainda funciona) o porto de Cabedelo (Melo, 1993). Os governos das primeiras décadas do século XX, por sua vez, foram responsáveis pe­los impulsos decisivos para o desenvolvimento da cidade. O abastecimento de água (1912), a ener­gia elétrica substituindo os bondes de burro pelo serviço de carris (1913), e mais tarde a pequena revolução urbanística (1916-1920) modificaram 0

aspecto colonial da cidade (Melo, 1993). As reali­zações de estruturação urbana mais representati­vas deste período foram: a urbanização da lagoa Solon de Lucena, hoje transformada em parque público com mesmo nome (1920), a implantação do sistema de saneamento da cidade (1924), e o surgimento de novos bairros na direção do litoral, que marcaram de forma decisiva o desenvolvi­mento urbano da capital.

Assim como acontecia no Rio de Janeiro, onde o prefeito Pereira Passos remodelava a cidade através da abertura da Avenida Central (1906) - obras que no Brasil soavam como ecos da Paris do Barão de Haussmann - na cidade da Paraíba, o governo reformista de João Pessoa (1928-30) construía a avenida Epitácio Pessoa, com cinco quilômetros de comprimento, partindo da praça da Independência, no centro da cidade, em dire­ção à praia de Tambaú (Menezes, 1985). A pavi­mentação dessa avenida em 1954 contribuiu para o fortalecimento da praia como principal atividade de lazer da população (Lavieri e Lavieri,1999:4o). Mais de trezentos anos após sua fundação, a cida­de alcançou o mar:

"não tivemos pressa em atingir o oceano, porque nosso caminhar, partindo do rio, foi cheio de dificul­dades e percalços"

(Aguíar,1992:282).

"Os 350 anos comprimidos entre a colina e o rio, apertando a largura das ruas e das casas, expandem-se, numa fração desse tempo, em áreas muitas vezes supe­riores ao núcleo original. O centro é abandonado pela população residente, que se distrib~i, confo~e. pode, para os bairros elegantes que marge1am a Eprtacw Pes­soa ou para os tabuleiros do sul e sudeste, rapidamente convertidos em conjuntos residenciais com população dez vezes superior à de toda JP dos anos 50."

(Rodrígues,I99r:r8)

A transferência do porto oficial da cidade para

0 povoado vizinho de Cabedelo e o conseqüente esvaziamento das atividades sociais conduziu à desvalorização dessa área. Apesar do processo gradativo de abandono, algumas atividades ligadas ao armazenamento e comércio de produtos agrícolas vindos do interior ainda se mantiveram na área até meados do século XX. Estas atividades representavam um dos poucos atrativos da área que, com a intensificação dos processos de urbanização, foram perdendo importância e desapareceram a partir da segunda metade deste mesmo século.

"João Pessoa demorou três séculos e meio presa ao rio e de costas para o mar. Rio que alguns traduziam como mau, imprestável, pouco piscoso, e outros viam, pelas mesmas raízes, como braço de mar ou água que com o mar se confunde. De qualquer modo, veio do rio o nome da terra. Foi nele que navegaram o ín­dio, o colonizador fidalgo ou degredado, as armas, os mantimentos, os materiais de construção, inclusive as pedras trazidas do Rio de Janeiro para calçar a rua da Direita, além de outros importados menos gros­seiros. Suas águas mansas coalhadas de lama foram portadoras do açúcar, do fumo, de todas as cabotagens atraídas para uma das capitanias mais prósperas do começo do século XVII."

(Rodrígues,1993 In Melo e Rodrigues,r993:r88)

Abandonada, essa área passou a ser apropriada pela população de baixa renda que, através da inva­são das margens do rio Sanhauá, originou as fave-

las Porto do Capim e Vila Nassau. O assentamento destas comunidades ao longo desta área conforma uma ocupação de risco, uma vez que suas habita­ções estruturam-se a partir de aterros ilegais sobre o mangue. Essa ocupação indevida das margens do rio Sanhauá representa uma contribuição con­siderável para a degradação deste meio ambiente, tanto no que diz respeito à poluição das águas e do seu entorno, como também pela destruição da sua vegetação ribeirinha. Do ponto de vista de seu impacto na leitura da paisagem, é impor­tante destacar que estas ocupações constituem-se em obstáculos que impedem completamente o acesso físico e visual às águas, sendo apenas pos­sível perceber sua presença através dos quintais dessas habitações - aterros encharcados de lama e depósitos de lixo sem qualquer infra-estrutura de saneamento local. Algumas destas habitações, construídas no local onde anteriormente existia o cais do Varadouro, escondem em seus interiores os antigos atracadouros de ferro ainda fincados nos seus locais de origem (Fig. 4a e 4b).

"O mar que em três séculos e meio tinha o povo passado longe e ao largo, agora se transforma no gran­de centro de interesses e lazer. O rio, que foi rota de sagas, de riquezas, desce hoje solitário, o desprezo as­soreando mais que a lama e o mangue"

(Rodrigues, 199I:I9r)

Por outro lado, a utilização das edificações históricas para o desenvolvimento de atividades comerciais de grande porte, como é o caso de gal­pões de oficinas mecânicas, marcenarias e mar­morarias, tem se mostrado incompatível com a tipologia existente no local e conduzido a altera­ções grosseiras desse patrimônio edificado. Os espaços livres públicos do entorno têm também sofrido diversas agressões, como as intervenções no sistema viário que acarretaram a fragmenta­ção de sua área livre, a cessão indevida de seu uso a interesses particulares, ou a ausência de manu­tenção e fiscalização da área pelos poderes públi­cos competentes.

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O privilégio da inserção natural de um curso de água no meio urbano, revelado no caso específico do bairro do Varadouro através de suas extraordi­nárias características paisagísticas, da possibilida­de de sua fruição contemplativa e, sobretudo, atra­vés do reconhecimento de sua importância para o estabelecimento do equilíbrio das qualidades ambientais desse meio, não tem sido considerado nas práticas administrativas, através da proteção e valorização dessas áreas. Esta breve retrospectiva aponta uma progressiva desestruturação da rela­ção desta paisagem com suas águas e, conseqüen­temente, a desconexão desta área com seu entor­no. Assim como aconteceu em muitas cidades, a cidade de João Pessoa

"deu as costas para o rio que lhe serviu de nasce­douro, encantou-se com o canto das ondas"

(Almeida et ai. apud por Honorato, r999:ror).

Figura 4b- Antigos armazéns (atuais depósitos de madeireiras) e casas da favela localizados ao longo da Rua Porto do

Capim, às margens do Rio Sanhauá, Foto Mariana Vieira

Ü VARADOURO, HOJE

Com a intenção de compreender a dinâmica das diversas relações que se estabelecem entre cidade e rio, selecionamos seis subáreas de análise segun­do as características específicas de cada localidade. A faixa de um quilômetro e trezentos metros de extensão (r,3km), disposta paralelamente às mar­gens do Sanhauá, é atualmente protegida como zona especial de preservação histórica e ambien­tal; no entanto, apresenta características bastante diferenciadas tanto no que diz respeito ao estado de conservação de suas edificações, do seu traçado urbano e de sua estrutura natural, como também variadas formas de percepção e apropriação pela população local. As áreas estabelecidas são as se­guintes: Porto do Capim, Praça rs de Novembro, Praça Alvaro Machado, Praça Napoleão Laureano, Estação Ferroviária e Terminal Rodoviário.

O Porto do Capim corresponde ao conjunto urbano que abriga as edificações históricas e os antigos armazéns portuários. Localizada entre a via férrea e o rio Sanhauá, esta área não estabelece comunicação direta com o rio nem com o tecido urbano adjacente. O principal acesso de veículos e pedestres ao Porto do Capim se dá em uma pas­sagem sobre essa linha de ferro, atualmente sem nenhuma proteção ou ordenamento de fluxos. Há poucos anos, um muro de alvenaria com altura de aproximadamente três metros (atualmente subs­tituído por gradis) se estendia por todo o percur­so dessa via, acentuando ainda mais o caráter de segregação da área. Como comentado anterior­mente, a ocupação das margens ribeirinhas pelas favelas Porto do Capim e Vila Nassau constituem­se em significativas barreiras físicas e visuais ao rio, confinando-o aos quintais construídos sobre os mangues. Estas ocupações, estruturadas ini­cialmente a partir de associações de pescadores, estão estabelecidas na área há mais de cinqüenta anos, o que caracteriza a construção de um forte vínculo físico e social destas comunidades com este espaço. Embora a remoção desta população

seja necessária, deve-se observar a necessidade do assentamento destas comunidades nas proximi­dades desta área, com a qual mantêm relações de trabalho e subsistência.

O conjunto urbano situado a leste da via férrea apresenta uma seqüência de três praças- praça rs de Novembro, praça Alvaro Machado e praça Na­poleão Laureano- que são atualmente fragmentos de espaços livres, desconexas entre si e em relação ao tecido urbano que as circunda. Em função de modificações na estruturação viária do bairro do Varadouro, a praça rs de Novembro foi completa­mente segmentada, restringindo-se atualmente a dois pequenos canteiros em meio a uma via de trá­fego intenso de veículos. A superfkie que restou em torno das edificações serve atualmente como pátio de manobra e estacionamento. Com área de aproximadamente soom2

, esta praça estrutura-se através de edificações que abrigam usos residen­ciais e comerciais e cujas implantações valorizam a presença do rio. Apesar da preservação destas edificações, a atual conformação desse espaço ur­bano não estabelece nenhuma relação com o rio, e a avenida Sanhauá, margeando o rio, funciona como limite final da cidade.

A praça vizinha - praça Álvaro Machado -apresenta uma apropriação indevida do seu espa­ço livre, sendo atualmente ocupada por um pos­to de gasolina que ocupa praticamente toda sua drea. Destaca-se como bastante relevante a forma de implantação das edificações que conformam essa praça, que com suas fachadas principais orientadas em direção do rio, revelam a impor­tância da presença dessas águas na construção da paisagem urbana. Infelizmente, a atual forma de ocupação das atividades comerciais estrutu-ra barreiras visuais que impedem a valorização _ desse conjunto e de sua conexão com o entorno. Nesta praça, encontra-se ainda uma edificação histórica que atualmente abriga a central eleva­tória da companhia de esgoto do município de João Pessoa (CAGEPA), responsável pelo moni-

Page 79: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

toramento do esgotamento sanitário da área e a edificação que abrigou o antigo hotel Luso-Bra­sileiro, atualmente abandonado. A apropriação ilegal destes espaços livres públicos representa um grande prejuízo para a cidade, não apenas do ponto de vista urbano, mas também do ponto de vista ambiental.

A praça Napoleão Laureano, localizada em frente à estação ferroviária, apresenta o espaço livre público de maiores dimensões da área em estudo (6.ooo m 2

) e encontra-se subdividida em três grandes áreas desarticuladas entre si. O mo­vimento das pessoas foi praticamente afastado dessas três praças, transformando-as em lugares de passagem, ausentes de significado para sua população. Embora próximas umas das outras, a fragmentação morfológica deste espaço e o desor­denamento do sistema viário dificultam sua inte­gração. O que poderia configurar uma seqüência de praças conectadas entre si, torna-se um grande espaço vazio e compartimentado. Por estas razões, optamos por estudá-las associadamente, buscando compreender de que forma a comunicação dessas paisagens pode ser restabelecida.

A Estação Ferroviária, localizada a oeste da avenida Sanhauá, representa um dos equipa­mentos urbanos que impactam a dinâmica desta área, transportando diariamente não apenas car­gas, mas também passageiros, trabalhadores de bairros mais carentes e dos municípios vizinhos que integram a região metropolitana de João Pessoa (Bayeux, Cabedelo, Conde, João Pessoa e Santa Rita). O atual trajeto realizado pelo trem segue paralelamente à linha do rio e revela, ao mesmo tempo, trechos de paisagens bem pre­servados e outros em situação de extrema degra­dação. Além deste grupo de trabalhadores que utilizam o trem como meio de transporte, pou­cas pessoas aventuram-se neste passeio. Os va­gões oferecem pouco conforto e a contemplação da paisagem é dificultada pela própria estrutura da ferrovia, onde a implantação dos assentos e a tipologia das janelas não valorizam a contempla­ção da paisagem.

A implantação do Terminal Rodoviário no bair­ro do Varadouro representou, na época de sua construção, a intenção de contribuir para a re­versão do quadro de degradação deste bairro. O terreno de cinco hectares escolhido para sua cons­trução foi anteriormente ocupado por habitações desordenadas e oficinas irregulares, construídas em aterros sobre o mangue. Com a implantação do projeto, estas construções foram relocadas para uma área próxima, que passou a constituir-se no "distrito mecânico" da cidade. Depois de aterrada a área, a rodoviária foi construída neste lugar, no ano de 1981, e teve como objetivo principal a re­valorização deste trecho abandonado da cidade. A construção da rodoviária criou um novo dina­mismo para a área, mas o contato com o rio foi novamente desprezado. O acesso principal de em­barque e desembarque de passageiros localiza-se na fachada leste; o trecho oeste, que se volta para o rio, permanece sem nenhum movimento de pes­soas. As calçadas localizadas ao longo da avenida Sanhauá estão quase sempre vazias e a área apre­senta um aspecto de insegurança.

RIO SANHAUÁ:

DIMENSÕES ESPACIAIS E PERCEPTIVAS

O rio Sanhauá representa um dos quatro "bra­ços" que alimentam, pela margem direita, o estu­ário do rio Paraíba7. Partindo da ponte Sanhauá no Varadouro, as águas desse rio misturam-se com o mar, vinte e dois quilômetros adiante, onde sua desembocadura apresenta cerca de dois quilômetros e duzentos metros de largura (Mar­celino, zooo), o que faz com que muitos mora­dores locais o apelidem de "maré". No entanto, independentemente de suas características geo­gráficas ou dos seus ciclos hidrológicos, as águas do Sanhauá assumem uma presença de rio no contexto desta paisagem. Isto se deve não apenas à generosidade das suas dimensões, mas princi-

palmente ao impacto visual que imprime a este trecho da cidade (Fig.5, 6a e 6b).

Apesar de sua importância para a cidade, esse rio encontra-se atualmente abandonado e suas águas extremamente poluídas. Nessa pesquisa buscamos identificar os valores e significados atri­buídos ao rio, a fim de compreender como ele tem sido percebido e utilizado pela população. Com este objetivo, elaboramos questionários e entre­vistas e conversamos com os diversos usuários da área, abordando, entre outros temas, questões específicas relativas à presença do rio naquela pai­sagem. As noções de denominação, valor históri­co, visibilidade, acessibilidade, uso, porte, entre outras, foram contempladas.

No levantamento realizado, a maioria dos usuá­rios afirmou reconhecer visualmente o rio, apesar das diversas barreiras existentes e já comentadas anteriormente. Embora seja possível arriscar-se por entre os corredores e quintais da favela, o aces-

so físico ao rio não é formalizado em nenhum tre­cho dessa área. A ponte Sanhauá, definida como um dos limites da área de estudo, representa a única possibilidade de cruzamento de pedestre nesse trecho e conecta o município de João Pessoa ao município de Bayeux, tendo anteriormente ser­vido para circulação de automóveis, ligando a cida­de aos municípios vizinhos. A grande maioria dos usuários entrevistados afirmou não utilizar o rio e destacou atividades de lazer e transporte que po­deriam ser viabilizadas através dele. Alguns exem­plos são a pesca, o banho de rio, passeios de barco, transporte através de balsas para Lucena e Cabe­dela, barcos para pescarias em ilhas próximas, etc. Os usuários do Porto do Capim - moradores das favelas e funcionários dos estabelecimen­tos comerciais desta área representam o grupo que estabelece relações mais próximas com o rio, destacando sua utilização através de passeios de barco e pescarias. Estes mesmos 'moradores, no

Figura 5 -Vista do Rio Sanhauá e da ocupação irregular de suas margens. Fotografia: Mariana Vieira

Page 80: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

Figura 6a -Vista do Rio Sanhauá a partir do terraço do antigo

Hotel Globo. Em primeiro plano, os telhados das edificações do

Porto do Capim, Foto Mariana Vieira

Figura 6b -Vista do Rio Sanhauá a partir da torre da Igreja de

São Pedro Gonçalves. Em primeiro plano, o Largo de São Pedro

Gonçalves e o Hotel Globo à direita. Fotografia: Mariana Vieira

entanto, revelaram a preocupação com a poluição dos peixes e a necessidade de controlar o acesso de crianças a essas áreas. A situação de abandono e o isolamento visual do rio impedem a compreensão dessa paisagem como um conjunto de inter-rela­ções naturais e urbanas. Alguns trechos destes co­mentários destacam essa percepção: "Muita gente vive dele, mas para os moradores da cidade, acho que não tem importância não" , ou ainda: "O rio faz par­te do Varadouro, mas para as pessoas que não moram aqui, acho que não tem importância, eles nem sabem que o rio existe!"

O valor histórico do bairro do Varadouro, ca­racterizado pelo lugar de surgimento da cidade de João Pessoa e pela sua importância no processo evolutivo da cidade, é reconhecido por grande par­te dos usuários entrevistados. No nosso levanta­mento, frases como, "a cidade começou aqui ( ... )", "o porto era aqui ( ... )", foram diversas vezes regis­tradas. Os vestígios do passado, ainda presentes na área, fornecem aos usuários algumas dicas para o entendimento do processo de evolução da­quele trecho da cidade, como é o caso da presença dos antigos atracadouros do porto, das correntes de ferro recentemente descobertas nas obras de saneamento do local e da antiga ponte Sanhauá. A maioria dos usuários demonstra conhecimento sobre a origem portuária e comercial dessa área da cidade, e alguns deles reconhece:-.-. o fato de que ela abrigou um intenso movimento comercial no passado, como demonstra o depoimento a seguir:

"Através desse rio surgiu João Pessoa".

Do ponto de vista da valorização da área, os usuários entrevistados ressaltaram aspectos rela­tivos à presença da natureza - o rio, o mangue e a vegetação local - e do centro tradicional, de forma mais abrangente. As facilidades oferecidas pelo comércio local foram freqüentemente cita· das, assim como a proximidade da área em rela· ção ao centro da cidade. Identificamos as princi· pais razões que explicam a relevância atribuída à localização da área pelos moradores locais. A

primeira vantagem diz respeito à economia com gastos relativos ao transporte local, uma vez que a área localiza-se muito próxima dos principais serviços necessários à comunidade, e os deslo­camentos para lugares mais distantes (em geral, praias ou viagens a municípios vizinhos) podem ser realizados através dos serviços rodoviários e ferroviários do bairro. Outra referência importan­te trata da possibilidade de surgirem oportunida­des de emprego ou trabalhos eventuais (biscates) nos estabelecimentos comerciais, oficinas e ma­deireiras, localizados nas proximidades, o quere­presenta um auxílio significativo para o sustento dessas famílias.

Destaca-se ainda o aspecto relativo à tranqüi­lidade do bairro e de sua vizinhança. Esse reco­nhecimento de segurança da área apontado pelos moradores não é, no entanto, compartilhado pe­los demais grupos de usuários da área. Na opi­nião dos usuários não moradores, a dificuldade de acesso físico e visual e as diversas barreiras estabelecem uma relação de insegurança que representa um forte obstáculo para a utilização dos espaços livres dessa área. Torna-se claro que os moradores, por possuírem maior intimidade com o local, desenvolvem uma percepção dife­rente a respeito dessa questão. A degradação do espaço físico é apontada como um dos princi­pais problemas da área, tanto do ponto de vista de sua infra-estrutura como da manutenção das edificações e monumentos históricos. Os usu­ários entrevistados alternam posicionamentos de reivindicação e pessimismo através de suas percepções a respeito da desvalorização da área, como demonstram os trechos de seus discursos selecionados a seguir:

"Está chegando o fim, não existe mais futuro para essa área, a praia é melhor"; "Acho que isso aqui já morreu";

"A cidade está crescendo para outro lado e é muito diflcil trazer algo de bom para cá".

Por tratar-se de uma área de preservação histó­rica, a manutenção das edificações torna-se uma questão ainda mais complexa. Os proprietários queixam-se da dificuldade de cumprir as especi­ficações estabelecidas pela legislação de preser­vação, e os prejuízos para a área se acumulam. Acrescenta-se, ainda, a ausência de uma política pública que contemple a valorização do centro his­tórico da cidade, o que contribui para ocupação e estruturação indevida dos seus espaços livres.

CoNSIDERAÇÕES FINAIS

Como procuramos demonstrar, a cidade de João Pessoa tem o privilégio de contar com a pre­sença de um significativo curso de água no seu perímetro urbano, mais especificamente ao longo de extensa faixa de seu sítio histórico - berço do nascimento da cidade. Associam-se à presença da água nesse meio, valores ambientais, paisagísticos e simbólicos fundamentais para o fortalecimento da identidade da cidade e conseqüentemente da requalificação de sua dinâmica urbana e valoriza­ção das noções de cidadania.

A situação de atual degradação dessa área, discutida nessa pesquisa, representa mais um exemplo da ausência de reconhecimento dos valores ambientais no processo de estruturação urbana. A valorização dos recursos naturais nas cidades, neste caso os rios urbanos, tem sido alvo de vários estudos que argumentam, entre outros aspectos, a necessidade de considerá-los como elementos fundamentais nos processos de plane­jamento e de desenho urbano, através da promo­ção de acessibilidade física e visual às suas águas. No caso do rio Sanhauá, a ocupação irregular de suas margens, a poluição de suas águas, a degra­dação de sua vegetação ribeirinha, a ocupação indevida das edificações do entorno e o proces­so desordenado de planejamento viário geraram grandes prejuízos de ordem ambiental, cultural

Page 81: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

l

e paisagística para esse espaço e para a cidade de uma forma geral.

Os desafios ambientais e a necessidade de pre­servação e valorização da diversidade natural nas cidades fazem das águas urbanas, em seus vários formatos, um recurso de significativa importância para as cidades contemporâneas. Essa pesquisa aponta para a possibilidade de requalificação am­biental e urbana desse lugar a partir do seu rio e das infinitas relações que podem ser estabelecidas entre sistemas naturais e urbanos.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é parte da dissertação de Mestra­do, Águas Ocultas: o rio Sanhauá e a cidade de João Pessoa, desenvolvida no PROURB-FAUjUFRJ, com bolsa CAPES, a quem agradecemos o apoio.

NoTAS

1· ·~ água, na verdade, constítui·se num dos mais poderosos

recursos do mundo da simbologia e, particularmente, da

psicologia (Défert,1972 op cit Castello,1996:28). Obviamente,

isolar um dos componentes naturais do ambiente . o rio - é um

meio operacional de isolar um dos componentes de um sistema

para tentar compreender seu papel neste sistema, justificando·

se a ênfase como mero instrumento de análíse para melhor

compreensão do todo do sistema urbano." (Needham,1977 op cit

Castello, 1996:28).

2- Este bairro compreende grande área do centro histórico da

cidade e seu nome "lhe veio por haver no passado, à margem

do rio, estaleiros para consertos e construções de veleiros. Hoje

a denominação é popular e estende-se da ponte do Sanhauá

ao Zumbi." (Medeiros, 1959: 267 j268, op cit Albuquerque,

r983:o8)

3- O lixão do Roger correspondia a uma área de I7 hectares,

uma verdadeira cratera de poluição às margens do rio. Sua

desativação deve-se à construção do aterro sanitário da área

metropolitana de João Pessoa e à elaboração de um projeto

para implantação, no futuro, de um parque público nesta área.

4- Após a vitória dos holandeses, este povoado passa a

denominar-se Frederica, em homenagem ao príncipe

holandês chamado Guilherme Frederico de Orange-Nassau

s- Entre eles destacam-se os trabalhos de Frans Poste Albert

Eckout.

6- ( ... ) Paraíba ( ... )é uma palavra bárbara, ou melhor brasaica,

significando um mar corrompido, uma água má, outrossim um

porto mau para se entrar, e(. .. ), quer dizer um porto sinuoso,

cuja entrada é má; pois Pará quer dizer rio ou porto com curva,

e iba significa mau. Donde se segue que esse rio, o maior dessa

região, tira o seu nome da boca ou entrada sinuosa que tem, e por

sua vez a região tira o seu nome do rio, que se chama Paraíba.

(Herckmans, 1982:10) Até a década de 30, a cidade ficou

conhecida por "Parahyba", tendo somente sido denominada

"João Pessoa", após a morte do governador de mesmo nome,

representando até hoje a denominação oficial desta cidade

(Lavieri e Lavieri,1999).

7- "O estuário do rio Paraíba do Norte tem uma extensão total

de 380 quilômetros, desde o planalto da Borborema, onde tem

sua nascente, até a foz em Cabedelo. Sua bacia hidrográfica

drena uma área de 14-397,35 Km2 e intercepta 37 municípios"

(Gualberto, 1977 op cit Marcelino,2ooo:29). Está dividida em

três compmtimentos: bacia do alto Paraíba, com 114,5 quilômetros

e extensão, bacia do médio Paraíba, com 155,5 quilômetros

e bacia do baixo Paraíba, com 110 quilômetros. Sua porção

estuarina recebe as águas de 8 tributários: pela margem esquerda,

os rios Portinha, Tiriri, da Ribeira e da Guia e, pela margem

direita, os rios Sanhauá, Paroeira, Tambiá e Mandacaru."

(Marcelino,2ooo:29)

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162 -~.RIOS E PAISACENr-J UF~Bí.)NHS

A PAISAGEM DO Rro ITAJAÍ-Açu

NA CIDADE DE BLUMENAujSC

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento de importantes cidades fundamenta-se em peculiaridades do sítio físico e da paisagem, ou seja, de algumas condições ou acidentes geográficos relevantes como rios ou montanhas. Desde os primórdios das civilizações, por uma questão de sobrevivência e utilidade, os rios serviram como fonte de recursos e meio de circulação. Dessa forma, se manifestaram as pro­babilidades de agrupamento, de construção, e o desenvolvimento de uma consciência que lhes or­denou e orientou.

Como diz Costa (2002), "sob o aspecto físico e da forma urbana, os rios são geralmente como espinhas dorsais das cidades por onde passam. Eles estruturam o tecido urbano que lhe é adjacente, tornando-se mui­tas vezes eixos de desenvolvimento do desenho da ci­dade". Os rios delimitam a configuração urbana e, em alguns casos, servem como divisa de bairros, municípios e até países.

O presente texto mostra os resultados de um estudo de caso, desenvolvido dentro da linha de pesquisa Desenho Urbano e Paisagem do Progra­ma de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanis­mo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Como objeto de estudo, temos a presença do rio Itajaí-Açu na cidade de Blumenau, pelo fato deste ser um dos rios mais expressivos do estado

RIOS

Soraia Loechelt Porath Sonia Afonso

de Santa Catarina. Concentramos-nos em um tre­cho do rio e nas áreas onde a cidade passou pelas maiores transformações na sua configuração es­pacial. Para compreendermos a dinâmica urbana e ambiental, mostramos como diferentes elemen­tos de uma paisagem são alterados ou persistem ao longo do desenvolvimento da cidade.

O desenvolvimento da cidade de Blumenau teve o seu início com a escolha do sítio e o plane­jamento original condicionados pela navegabilida­de fluvial e pelo acesso à água, ou seja, não para os interesses da cidade que se formaria, mas para a necessidade de uma colônia agrícola de origem alemã. A partir do rio e da topografia local a cida­de se estruturou e cresceu. O rio Itajaí-Açu então configurou um corredor, uma via de conexão en­tre diferentes realidades ambientais e culturais.

Linearmente, ao longo dos fundos de vale, o crescimento da cidade surgiu a partir do Stadtplatz (Praça da cidade), localizado entre a foz do ribeirão Garcia e a foz do ribeirão da Velha. Mesmo após inúmeras enchentes e enxurradas, a cidade conti­nuou a se desenvolver nos fundos de vale, com os fundos de lote voltados para os cursos d'água e a ocupar áreas facilmente inundáveis. O rio Itajaí­Açu foi responsável por incontáveis prejuízos para o assentamento urbano próximo de suas margens.

Page 83: Rios e Paisagens Urbanas Em Cidades Brasileiras

1

A pesquisa mostra que a cidade de Blumenau que conhecemos hoje foi moldada através dos anos por uma série de agentes e fatores cujas ações sobre o rio e suas margens se sobrepuse­ram, gerando a atual paisagem urbana. Segundo Costa (2002), "( ... ) os diferentes tratamentos, usos e apropriações dos rios urbanos em diferentes cidades nos mostram as especificidades culturais de muitos outros valores, com uma repercussão direta na quali­dade da paisagem".

Partindo da cidade como um complexo produto cultural de uma sociedade, que reflete a contribui­ção de várias gerações sobre o meio é que sele­cionamos as transformações ocorridas no trecho navegável do rio Itajaí-Açu e suas margens, na ci­dade de Blumenau, iniciando pela sua fundação como colônia, em 1850, para então avançar até os nossos dias.

Esperamos que o leitor possa percorrer com interesse essas páginas e encontrar aqui informa­ções que lhe sejam úteis e que contribuam para a reflexão sobre a paisagem de rios urbanos.

A TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM

DE BLUMENAU

Em 2 de setembro de r8so, Hermann Bruno Otto Blumenau, juntamente com mais 17 imi­grantes alemães, fundou a cidade de Blumenau. O sítio escolhido para a implantação da colônia foi o último trecho navegável do rio Itajaí-Açu. Des­tacamos que nessa época não se estruturou um centro histórico homogêneo e concentrado pelo fato das casas, construídas em lotes coloniais, es­tarem distantes de cem a duzentos metros umas das outras.

Na colônia particular, em algumas das primei­ras construções, foi utilizada a técnica construtiva enxaimel, na qual a madeira assume a função es­trutural e a alvenaria de tijolos é apenas emprega­da para o fechamento dos vãos. Essa técnica foi

introduzida no sul do Brasil pelos imigrantes ale­mães que vieram colonizar Santa Catarina e o Rio Grande do Sul no século XIX.

À medida que os novos imigrantes chegavam à Colônia, iam sendo demarcados lotes urbanos e rurais ao longo das picadas já abertas. As picadas seguiam os cursos dos rios, ribeirões e riachos dos fundos de vale.

Os lotes coloniais foram então traçados de for­ma a que todos pudessem ter o acesso a água, tan­to para utilização na irrigação e consumo domés­tico, quanto para transporte. A ligação com a água e com os primeiros caminhos, juntamente com a topografia acidentada da cidade, gerou lotes estrei­tos e compridos, paralelos entre si e perpendicu­lares tanto ao rio, quanto ao caminho e às curvas de nível.

Segundo Deeke (1995, p. 198), "a topografia obrigou o colonizador a adotar o sistema de lotes, pois o terreno de Blumenau é montanhoso e só apresenta áreas planas nas margens dos rios". Essa caracterís­tica foi determinante para a conformação dos lotes com frente (testada) estreita para a estrada, princi­palmente junto ao vale do rio, e os fundos tão ex­tensos que se confrontavam, nas linhas divisoras de água, com lotes de outros vales. Essa forma de divisão de lotes marcou profundamente a estrutu­:a fundiária e conseqüentemente as malhas urba­nas de Blumenau e de outras cidades de origem alemã, tanto do Vale do Itajaí, como do estado de Santa Catarina.

A economia da colônia, ao final da primeira dé­cada de existência, era baseada na agricultura. O primeiro registro cartográfico, elaborado em 1864, mostra o parcelamento do solo perpendicular aos cursos d'água na área navegável do rio Itajaí-Açu e também os primeiros caminhos paralelos ao leito dos rios que, mais tarde, irão se transformar nas estradas principais da cidade.

Destacamos aqui a preocupação dos colonizado­res em mapear os cursos d'água que, no decorrer da história, passam a aparecer em segundo plano nos mapas da cidade, confirmando o que diz Costa et al (2002) nos seus estudos sobre os rios cariocas.

164 ~"tU OS E PniSAGENB URBANAS

No Centro da cidade de Blumenau (Stadtplatz) observamos o traçado do ribeirão Bom Retiro (entre o ribeirão Garcia e o ribeirão da Velha) e de vários afluentes que nos próximos mapas irão desaparecer devido à urbanização da área. O se­gundo mapa da colônia foi elaborado em 1872, mostrando o início da divisão dos lotes coloniais na margem direita do rio Itajaí-Açu. Assim como no mapa de 1864, os cursos d'água continuam em amplo destaque indicando sua importância para a cidade.

A partir de 188o, os irmãos Hermann e Bru­no Hering fundaram a indústria têxtil Hering, a primeira do Brasil, localizada na rua XV de No­vembro, e próxima ao rio Itajaí-Açu. Sempre ins­taladas próximas aos cursos d'água, as indústrias iniciaram um novo processo na cidade, quebran­do o ciclo de manufatura diretamente ligado ao setor primário.

A primeira grande ponte sobre o rio Itajaí-Açu foi a Lauro Muller, popularmente conhecida como Ponte do Salto, cujas obras começaram em 1896 e foram concluídas somente 17 anos depois, em 1913- Neste período, começavam a surgir no mu­nicípio novos e grandes edifícios, erguidos por comerciantes que principiavam a acumular fortu­na com os negócios de importação e exportação através do escoamento de mercadorias pelo rio Itajaí-Açu.

Em 4 de fevereiro de 188o, Blumenau foi eleva­da à condição de município. Porém, essa conquis­ta política se concretizou apenas em 1883, devido a uma enchente que ocorreu em 188o atingindo a cota de 17,10 metros- o nível médio do leito do rio Itajaí-Açu em Blumenau é de apenas 6 metros acima do nível do mar.

O contínuo desenvolvimento econômico impul­sionou os empreendedores locais a criar mais al­ternativas de transporte fluvial, fazendo surgir o re­bocador Jan (1890), os vapores Blumenau I (1895), Santa Catarina (1906) e Richard Paul (19ro).

Em 1900, foi elaborado o terceiro mapa da ci­dade de Blumenau, já com a área central densa­mente dividida, assumindo a configuração de ci-

dade no lugar da Colônia Blumenau. Nessa época, a rua XV de Novembro, apelidada de Wurststrasse (rua da Lingüiça), teve seu sinuoso traçado par­cialmente retificado.

No ano de 1903, circulou o primeiro veículo a motor, fazendo com que aos poucos houvesse a re­tificação dos antigos caminhos coloniais e a aber­tura de vias mais retilíneas.

A infra-estrutura básica acompanhava o cres­cimento da cidade, surgindo os primeiros passos para a instalação de luz elétrica e água encanada. A partir daí o povoamento tomou impulso trans­formando-se numa cidade em constante e contí­nuo processo de transformação de sua paisagem: em 1909, Blumenau passou a ter um sistema de iluminação pública; em 1913, com o objetivo de melhorar o transporte de produtos, entrou em operação o primeiro barco com motor a combus­tão, fazendo a ligação entre Blumenau e Itajaí; e no ano seguinte, em 1914, surgiu o primeiro ôni­bus da cidade.

Em 1931 foi inaugurada a ponte metálica da Es­trada de Ferro (hoje denominada ponte Aldo de Andrade, conhecida como ponte da Prefeitura) sobre o rio Itajaí-Açu, na foz do ribeirão da Velha, ligando o Centro com a Ponta Aguda. Frotscher (2ooo, p. 59) afirma que "após a conclusão das obras da ponte, alguns operários construíram suas ca­sas ali e, aos poucos, os casebres foram se somando a outros fazendo surgir a favela Farroupilha".

A Primeira Guerra, por um lado, trouxe prospe­ridade ao setor industrial de Blumenau; por outro, fez a população sofrer pelo fato de ser composta, em sua maioria, por alemães ou descendentes diretos deles. As retaliações começaram a chegar em Blumenau a partir da década de 1930. Caresia (2000, p. 172) diz que a Campanha de Nacionali­zação ocorreu a partir de 1938 com o advento do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937) e a partir daí, "todos os periódicos deveriam ser editados em português e o alemão era proibido também nas ruas, escolas, igrejas e nos clubes".

Em relação à paisagem, segundo Siebert (1999, p. 71), "este período se traduziu pelo mascaramento

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das construções em enxaimel, que foram rebocadas. As ruas com nomes alemães foram renominadas, através de decreto, com denominações de origem bra­sileira. A herança cultural foi negada, e seu resgate hoje ainda é um trabalho delicado, de superação do doloroso trauma da nacionalização". Neste período, segundo Caresia (2ooo, p. 177), "a cidade passou a sofrer mudanças significativas em sua estrutura urba­na, aproximando a cidade aos grandes centros urba­nos, com a construção de pontes, rodovias, ferrovias, aeroportos e com a expansão da telefonia".

A primeira estação de tratamento de água de Blumenau foi inaugurada em 1943. Construída em área livre de enchente, no morro da Boa Vista, passou a atender às regiões centrais do município. Do morro da Boa Vista, segundo Frotscher (2ooo, p. 57), poderia ser avistada "a estação ferroviária (. .. ), as edificações ao longo da mesma rua, o cauda­loso rio cortando a cidade ao meio, deixando de um lado o Centro, e de outro, a Ponta Aguda( ... ). Entre o trecho da Itoupava Norte e o Centro, apenas a majes­tosa Ponte de Ferro ligava as duas margens do rio."

Após quase um século, o rio Itajaí-Açu estava deixando de ser a principal porta de entrada e saí­da de mercadorias e passageiros em Blumenau. O movimento de cargas e pessoas no porto da praça Hercílio Luz (atual Biergarten), na foz do ribeirão Garcia, era cada vez menor. As estradas e a ferro­via passaram a concentrar a maior parte do tráfego e as constantes e viagens dos vapores Progresso e Blumenau, ligando a cidade de Itajaí, começavam a fazer parte do passado (Santiago, 2001, p. 145).

Em 1950, foi concluída mais uma ponte da es­trada de ferro ligando a Ponta Aguda à rua Itajaí. Construída na forma de arcos, denominada atual­mente ponte Eng. Antonio Vitorino Ávila Filho, a ponte ficou conhecida como ponte dos Arcos. Era mais um passo à definitiva ligação ferroviária en­tre Blumenau e a cidade de Itajaí.

Nessa época, a população do campo ainda era maior do que a urbana, mas já havia um crescente êxodo rural onde os colonos estavam deixando o interior em busca de melhores condições de vida na cidade.

Apesar de já existirem quatro pontes sobre o rio Itajaí-Açu ligando as duas margens, a ocupa­ção ainda se dava quase que exclusivamente na margem direita. Na margem esquerda, a ocupa­ção limitava-se às proximidades do rio Itajaí-Açu. Ainda em 1957, surgiu no cenário da cidade a pon­te Adolfo Konder, conhecida como ponte da Mo­ellmann, ligando o Centro à Ponta Aguda. Nesse mesmo ano, desapareceu um de seus maiores re­ferenciais urbanos, que, durante toda a primeira metade do século XX, dominou a cena do Centro da cidade: o Hotel Holetz foi posto abaixo dando lugar ao Grande Hotel Blumenau com 14 pavi­mentos, inaugurado em 1962. Ainda em 1957, ocorreram três enchentes em três meses e a maior delas, em agosto, inundou 2/3 da área edificada do município.

Em 1963, outro edifício foi inaugurado desta­cando-se no cenário urbano até os dias atuais: o edifício Visconde de Mauá.

O prefeito Carlos Curt Zadrozny criou em 1967 a Comissão Municipal de Turismo, criando ro­teiros e atrações para os turistas que visitassem a cidade. Segundo Santiago (2001, p. 142), "para incentivar os brasileiros a visitar a cidade, a comissão criou em 1968, uma campanha publicitária que ti­nha como tema 'Adivinhe que país é esse?', trazendo sempre como ilustrações imagens de Blumenau que a mostravam como um pedaço da Europa no Brasil".

Em 1968, o barco Blumenau II inaugurou uma viagem pelas águas do rio Itajaí-Açu. Era mais uma iniciativa para incentivar o crescente movimento turístico na cidade. No mesmo ano, o aspecto urbano do município sofreu uma gran­de modificação com o surgimento da avenida Beira-Rio, construída paralelamente à rua XV de Novembro e impermeabilizando grande parte da área da margem direita do rio Itajaí-Açu no Centro de Blumenau.

Para Siebert (1999, p. 8o), "a construção de uma avenida na beira do rio foi uma mudança de paradig­ma para a época, pois a cidade sempre cresceu de cos­tas para os rios, com os fundos das casas aproveitan­do os cursos d'água como coletores de esgoto. A visão

166 ~.f~IDS PRISAGENg URBmi{iS

panorâmica do rio proporcionada pela Beira-Rio, de alto impacto paisagístico, tomou-se marca registrada de Blumenau, um dos seus referenciais mais fortes do imaginário coletivo".

Apesar da impermeabilização e da extinção da mata ciliar nesse trecho, podemos dizer que, com a construção da avenida Beira-Rio, a cidade pas­sou a ter um olhar mais atento ao rio Itajaí-Açu. Nesse trecho, as construções voltaram-se para o rio, era permitido o acesso, o contato, o olhar e, assim, houve a valorização do rio. Nessa área, o rio não foi mais tratado como fundo de lote, ape­sar de ainda ser tratado como local de despejos pela população.

Blumenau havia iniciado os anos de 1970 com crescimento notável na economia. A industriali­zação também provocou o fenômeno da urbani­zação. O perfil urbano de Blumenau passou por uma verticalização, causada pela construção de diversos edifícios. A cidade viu surgir novas ruas e pontes e seu comércio acompanhou o crescimen­to da economia local através da diversificação de produtos comercializados.

No decorrer da elaboração dos mapas da cida­de, verificamos cada vez mais o desenvolvimento do ambiente urbano sobre o ambiente natural. Os cursos d'água foram desaparecendo em grande quantidade desde os primeiros registros cartográ­ficos da cidade. Houve a canalização do ribeirão Bom Retiro e de muitos outros córregos, mostran­do a prioridade do sistema viário em detrimento do fluvial.

Em 1977, foi instituído o primeiro Plano Dire­tor Físico-Territorial da cidade de Blumenau, tra­zendo preocupações com os aspectos tradicionais da comunidade e com a preservação e valorização da paisagem (Lei Municipal n. 0 2.235, de 05 de maio de 1977, Capítulo VIII, Art. 24 e 25).

Entretanto, o maior equívoco desse plano diretor refere-se às enchentes. O plano proibiu edificações apenas abaixo da cota de ro,oo metros em relação ao nível do mar. Por este motivo, uma grande ex­tensão de área inundável foi ocupada nas proximi­dades dos rios e ribeirões. Este período de intensa

urbanização e crescimento acelerado irá transfor­mar as enchentes em grandes calamidades.

Como afirma Siebert (2ooo, p. 122-3), "no Plano Diretor de 1977 não havia limite máximo de altura (gabarito) para as edificações, podendo-se construir tantos pavimentos quanto permitisse o uso conjugado do coeficiente de aproveitamento e a taxa de constru­ção". Isso resultou no adensamento do Centro da cidade, num sistema viário sobrecarregado e na supervalorização de uma área já valorizada por sua centralidade.

Também em 1977, a paisagem de Blumenau passou por graves alterações. A Lei de Incentivo Fiscal (Lei Municipal n. 0 2.262/77), que tornou isento o imposto predial à construção e reforma de edificações em estilo germânico, transformou a área central da cidade dando-lhe um forte apelo turístico. A chamada febre do enxaimel gerou um fachadismo sem sinceridade estrutural com a apli­cação de madeirinhas cruzadas que proliferaram pela cidade em réplicas de construções medievais européias. A cultura alemã, sufocada pela nacio­nalização, apelou para o pastiche no fachadismo, procurando imitar o enxaimel (Figura r).

Figura 1 -A réplica da Prefeitura de Michelstadt [Alema­

nha) tornou-se símbolo da cidade, foto Soraia L. Porath.

RIOS E PP.ISf.lGENS URBANAS~ 167

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Esta época foi profundamente marcada pelas grandes e sucessivas enchentes. Em 1983 ocor­reram 12 inundações. A maior delas, em julho, chegou a 15,34 metros e atingiu cerca de 70% do parque industrial e 90% do comércio. Com a ci­dade destruída houve o aumento do desemprego, a diminuição do poder aquisitivo da população e uma brusca reversão do processo de instalação e expansão de empresas. As enchentes, segundo Siebert (1999, p. 95), "provocaram uma modificação profunda no modelo de urbanização de Blumenau".

Em 1984, a história das enchentes se repetiu. A cidade ainda não havia se recuperado totalmen­te das cheias do ano anterior quando as chuvas fizeram os rios subirem novamente em agosto, atingindo 15.46 metros acima do seu nível nor­mal. Nas palavras de Frotscher (2ooo, p. 188), "pe­las ruas vazaram as águas do rio, cobrindo a cidade com um mar de água barrenta. Durante quinze dias, a cidade ficou à mercê das águas do rio Itajaí-Açu. (. .. ) Com a degradação do meio ambiente e da ur­banização- em 1980 a percentagem de urbanização em Blumenau era de 90% - as enchentes transfor­maram-se em azar ambiental de grande impacto no vale do Itajaí". Segundo Flores (1997, p. ro8), "a catástrofe ocorrendo num momento recessivo para a economia brasileira, aumentou as dificuldades para a reconstrução da cidade. Isso foz com que a alterna­tiva econômica proporcionada pelo turismo fosse vista como uma das mais viáveis para a região atingida pelas enchentes".

A fórmula encontrada pelo prefeito Dalto dos Reis e pelo secretário de Turismo Antônio Nunes foi a realização, entre os dias 5 e 14 de outubro daquele ano, da primeira edição da Oktoberfest. A festa elevou o ânimo dos habitantes, atraiu milha­res de turistas e dinamizou o setor do turismo.

Em 1989, o Plano Diretor de Blumenau foi revisado e aprovado na administração do prefei­to Vilson Pedro Kleinubing. As maiores contri­buições deste plano diretor para o espaço urbano foram: a preocupação com a circulação viária; a definição de um macrozoneamento que tentou direcionar a expansão urbana; a redução dos ín-

dices urbanísticos da área central, visando evitar o adensamento excessivo do local; a proibição do uso residencial abaixo da cota de 12 metros; a de­finição de eixos industriais ao longo das rodovias de acesso; e a preservação do patrimônio histórico e do meio ambiente.

Depois das enchentes que marcaram a história da cidade e da revisão do Plano Diretor realizada em 1989, o modelo de urbanização foi modifica­do profundamente. Uma verticalização acelerada foi induzida pela pressão imobiliária nas áreas atingidas e os morros foram sendo gradativamen­te ocupados, o que alterou a paisagem da área central de Blumenau.

A segunda revisão do plano diretor ocorreu em 1996, na administração do prefeito Renato de Mello Vianna e sancionado em 1997, na adminis­tração do prefeito Décio N ery de Lima. Essa revisão foi ampla e longamente discutida pelo conselho deliberativo do recém-criado Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Blumenau (IPPUB) e entidades comunitárias.

A maior contribuição desse plano foi a criação das ZRU (Zonas Recreacionais Urbanas) que, lo­calizadas em fundos de vale e áreas inundáveis, têm o objetivo de implantar parques e áreas de lazer, e ao mesmo tempo preservar estas áreas da urbanização. Porém, o zoneamento mostra um traçado viário paralelo ao leito do rio Itajaí-Açu na margem direita, onde está prevista a continuação da avenida Beira-Rio. Ao ser executado esse proje­to, haverá o que já ocorreu na abertura dessa via: uma grande impermeabilização do solo com de­gradação da mata ciliar, alteração do leito do rio, e, como conseqüência desses atos, teremos uma maior urbanização nas margens do rio Itajaí-Açu.

Ao longo do desenvolvimento da cidade de Blumenau, pudemos observar a transformação da sua paisagem e vimos que a cidade sofre as conseqüências da urbanização dos fundos de vale quando ocorre o fenômeno das enchentes. Blume­nau cresceu invadindo várzeas, canalizando rios, cobrindo de asfalto a terra que podia absorver as águas e, como conseqüência, acelerou a chegada

das águas aos lugares mais altos. Infelizmente, basta chover o suficiente para que a cidade revi­va as cenas dramáticas das grandes enchentes de 1983 e 1984-

Esse período mostrou que as vias estão hoje aprisionadas entre rios e montanhas num vale es­treito e íngreme, com grande impermeabilização do solo e ausência de mata ciliar na margem direi­ta do rio Itajaí-Açu devido à construção da avenida Beira-Rio. Houve uma preocupação com a arbori­zação urbana nas vias principais, mas, em relação aos marcos referenciais, muito pouco foi alterado na paisagem desde 1984 devido à consolidação dessa área.

Blumenau é, em 2oo6, uma cidade de aproximadamente 26o.ooo habitantes que, fundada como colônia particular em r8so, logo partiu da agricultura de subsistência para a transformação do excedente em produtos artesanais, inicialmente, e industrializados, em um segundo estágio, até se tornar o terceiro pólo da indústria têxtil e do vestuário do país, bem como forte centro turístico.

O rio Itajaí-Açu faz parte da bacia hidrográfica de mesmo nome, que possui aproximadamente 15. 50okm2 distribuídaem4 7municípios (Figura2). O rio Itajaí-Açu pode ser dividido, nos seus 200 quilômetros, em três setores principais, segundo suas características naturais: Alto, Médio e Baixo Vales do Itajaí.

A cidade situa-se aos 26°55'26" de latitude sul e aos 49°03'22" de longitude oeste, a uma distân­cia de 140 km por meio rodoviário da capital do estado, Florianópolis, e tem como limite os mu­nicípios de Luiz Alves e Gaspar a leste, Indaial e Pomerode a oeste, Jaraguá do Sul e Massaran­duba ao norte, e Guabiruba, Botuverá e Indaial ao sul.

A área total do município é de 510,3km2, sendo

192km2 de área urbana e 318,3km2 de área rural, com altitude média na área urbana de 21 metros. Integra-se na Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (AMMVI), composta de 14 municípios, cujo centro polarizador é Blumenau.

RHJH

Vimos até aqui todos os fatos ao longo da história que levaram à paisagem atual das áreas adjacentes ao trecho navegável do rio Itajaí-Açu, evidenciando o Centro da cidade de Blumenau. Observamos que a paisagem está num constan­te processo de transformação e que em particular nas áreas urbanas e em margem de rios, há um caráter extremamente dinâmico dessas transfor­mações, com intensidades variáveis, em função das características de cada contexto. Notamos que na cidade ocorreram mudanças em termos de eco­nomia, política, relações sociais e também no âm­bito espacial, com adaptação às novas exigências e características da sociedade.

Rios Principais Serras Represas principais

- Bacia hidrográfica do Rio ltajaí-Açu

Figura 2 -Bacia hidrográfica do rio ltajaí-Açu. Fonte: Universidade de Blumenau/lnstituto de Pesquisas Ambientais- Elaboração: Soraia L. Porath

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A PAISAGEM ATUAL DO RIO ITAJAÍ·AÇU

No caso do rio Itajaí-Açu, em Blumenau, po­demos observar que muitos cursos d'água trans­formaram-se em limites, e que a topografia teve influência no nome dos bairros (Figura 3). Por exemplo, no bairro Ponta Aguda, a sinuosidade do rio Itajaí-Açu configura uma ponta acentuada de terra que deu origem ao seu nome; no bairro Boa Vista, o morro com o mesmo nome permite a possibilidade de uma visão completa do Centro da cidade; no bairro Itoupava Seca, a palavra Itoupa­va tem origem no tupi-guarani, que significa cor­redeiras, e a palavra Seca se refere ao afloramento de pedras do rio Itajaí-Açu em época de estiagem; o bairro Vorstadt tem origem alemã e significa en­tradajantes da cidade (Blumenau, 1996).

Alexander (1980) e Afonso (1995) comentam que, em muitas cidades, as estradas, vias expres­sas e indústrias, assim como outras construções, bloqueiam as margens dos rios de tal maneira que resultam em inacessibilidade ao rio pela po­pulação. Infelizmente essa afirmação também se aplica no caso de Blumenau, pois com exceção do Centro, são poucos os locais em que a população tem acesso visual ao rio Itajaí-Açu.

Damos ênfase a uma análise mais detalhada da paisagem do bairro Centro por mais alguns motivos: como vimos anteriormente, essa região localiza-se na área mais antiga da cidade, e sofreu as maiores transformações na paisagem desde a sua fundação; também pelo fato "das áreas urba­nas centrais constituírem amostragens mais represen­tativas e compreensivas da vida urbana, pela maior presença (intensidade) e simultaneidade de funções e usos" (Rodrigues, 1986, p.14), e porque "o centro situa-se em geral em volta do ponto de convergência das velhas estradas de acesso à cidade" (Lacaze, sji, p. 18).

O bairro Centro localiza-se na margem direita do rio Itajaí-Açu e tem como limites o rio Itajaí­Açu, o ribeirão da Velha, o ribeirão Garcia, vias principais e a topografia (Figura 4). Sua hidrogra­fia compreende também os ribeirões Garcia, Ve-

Figura 3- Mapa topográfico com destaque para a área navegável

do rio ltajaí-Açu e bairros adjacentes. Elaboração: Soraia L.

Porath, a partir de mapa da Prefeitura Municipal de Blumenau.

lha e Bom Retiro (hoje canalizado). Situa-se numa área completamente plana, nas chamadas planí­cies centrais da cidade. Grande parte do bairro é atingida pelas enchentes com prejuízos graves devido à urbanização próxima ao rio. Em relação à vegetação, podemos dizer que essa área possui ausência de vegetação nativa devido ao cultivo da agricultura na época colonial da cidade.

Quanto ao ambiente construído, o Centro pos­sui construções emblemáticas em grande núme­ro, tanto de patrimônios históricos, quanto de falso enxaimel. Em comparação a outros bairros, o Centro apresenta maior número de marcos re­ferenciais que se evidenciam na paisagem e uma maior verticalização com conseqüente imperme­abilização do solo. Atualmente, o Centro possui atividades de serviços e comércio, e cada vez me­nos pessoas residem nesse local. De acordo com o Censo 2ooo, o bairro possui uma população de r.612 habitantes.

A partir do eixo do rio Itajaí-Açu podemos obser­var diferentes paisagens: pontes, foz de ribeirões, águas residuárias (Figura 5), alto índice de im­permeabilização do solo, acesso ao rio (Figura 6), construções emblemáticas (Figura 7), praças que permitem avistar o rio, ruas paralelas ao leito do rio, edificações na faixa de preservação e verticali­zação das edificações (Figura 8).

Figura 4- Destaque do Centro da cidade com as edificações e a topografia.

Elaboração: Soraia L. Porath, a partir de mapa da Prefeitura Municipal de Blumenau.

Esse trecho do rio é navegável somente por em­barcações pequenas porque a laje de concreto da avenida Beira-Rio se estende até o ponto mais bai­xo do rio, e também porque há um grande número de rochas que afloram do rio mesmo no seu nível normal. Infelizmente, até hoje a cidade sofre as conseqüências da sua urbanização quando ocorre o fenômeno das enchentes (Figura 9).

Observando em campo os diferentes elementos que compõem a paisagem ao longo do rio Itajaí­Açu, foi possível identificar os pontos positivos e negativos de suas margens. Nas palavras de Fran­co (1997, p. 137) "todo o trabalho de planejamento inclui a leitura perceptiva da paisagem como indica­dora, não só dos pontos de maior signijicado visual, como também dos aspectos críticos de transformação do relevo; das condições de degradação dos solos e da cobertura vegetal; das características da ocupação ur-

bana; e, finalmente, na detecção de vocações paisa­gísticas, as quais se constituem no primeiro passo da criação de cenários de desenho ambiental". Portanto, se por um lado é possível chamar a atenção para áreas de grande valor paisagístico, que deverão ser ocupadas de forma planejada, aproveitando-se as características naturais do meio e preservando a mata ciliar, por outro, podemos alertar a população e os órgãos públicos sobre os efeitos negativos da urbanização em margens de rios e suas várzeas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que, com o desenvolvimento econômico e a concentração populacional crescente no Brasil,

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Figura 5- Águas residuárias, foto Soraia L. Porath

Figura 6- Acesso às águas do rio, Soraia L. Porath

Figura 7- A Prefeitura Municipal como construção

emblemática em falso enxaimel, foto Soraia L. Porath

o processo de urbanização ganha força e continua se expandindo para novas áreas. A mentalidade brasileira sobre o planejamento urbano cristalizou­se a partir da Constituição de 1988, quando a elaboração de Planos Diretores Urbanos para cidades com mais de 20 mil habitantes tornou-se obrigatória. Depois, o Estatuto das Cidades não só referendou esta exigência como apontou para uma visão holística sobre a urbanização e a sua interação com a natureza, tratando as cidades com uma dimensão humana e social. Entretanto, poucas cidades já possuem um plano para or­denar o seu crescimento e manter a qualidade da sua paisagem que, na maioria das vezes, é o seu maior atrativo.

No caso de Blumenau, a transformação das áre­as antes rurais em urbanas, trouxe como resulta­do o aumento da área impermeabilizada, que com outros fatores advindos da urbanização também contribuíram para o aumento na freqüência das enchentes. Porém, a cidade possui hoje um siste­ma de alerta contra enchentes desenvolvido pela Universidade Regional de Blumenau. A partir do nível dos rios, da previsão do tempo e da quanti­dade de chuvas, é possível prever inundações com até dez horas de antecedência e até calcular o nível da enchente que se aproxima.

A topografia acidentada fez com que a cidade se desenvolvesse junto aos rios e ribeirões e, nesse processo, o desmatamento visando a urbanização ocorreu de forma extensiva e impensada. Verifi­camos também que a cidade, por possuir grandes intervalos entre as enchentes que atingem um ní­vel mais elevado, termina por ocupar as várzeas e repetir um ciclo desastroso.

O Brasil possui inúmeras cidades com os mes­mos problemas que foram apontados no caso do rio Itajaí-Açu em Blumenau. Portanto, é inadmis­sível que os inúmeros prejuízos causados pelo fenômeno natural das enchentes nas áreas com densa urbanização ainda não tenha servido de alerta aos órgãos públicos no que tange à abertura de vias, construções e alterações das margens dos rios urbanos.

Afonso (1999) afirma que as divisões admi­nistrativas municipais não são competentes para enfrentar isoladamente questões que extrapolam suas fronteiras. De nada adianta um município ter uma atitude conservacionista em relação ao ambiente, se outros municípios próximos poluem as mesmas fontes de recursos. No caso de rios ur­banos, os Comitês de Bacias Hidrográficas são o fórum ideal para se discutir as questões urbano­ambientais, estabelecendo condições para o alcan­ce da sustentabilidade.

A consciência ambiental, o conhecimento téc­nico, e a vontade política de realizar obras adequa­das são fatores preponderantes na valorização dos rios urbanos. A caracterização ambiental pode ser um dos fatores determinantes na adoção de novas diretrizes urbanas, como por exemplo, a simples adoção da faixa non aedijicandi de um corpo d'água pode colaborar para a sua valorização.

Ressaltamos que a presente pesquisa não se opõe à urbanização, mas observamos a necessida­de de que este processo se desenvolva levando em consideração o ciclo hidrológico, a presença dos rios nos centros urbanos e suas várzeas. Com isto, será possível antever parte dos problemas, muitas vezes evitando-os e prevenindo-os, ou seja, a ocu­pação do espaço será realizada de maneira mais harmônica com o meio, respeitando os limites do ambiente e reduzindo os problemas e prejuízos causados pelo conflito entre as necessidades an­trópicas e a dinâmica ambiental.

Segundo Costa (2002), um bom planejamento resulta de ações de equipes multi e interdiscipli­nares (administradores, políticos, arquitetos, en­genheiros e profissionais das mais diferentes áre­as) preocupadas com a paisagem a planejar. Isso porque, no planejamento integrado, devem ser considerados todos os fatores: geológicos, biológi­cos e físicos de um ambiente, considerando suas ações conjuntas, além das estruturas socioeconô­micas que a compõem.

Afonso (1999, p. 73) afirma que "a reserva de terrenos para a criação de um sistema de espaços livres públicos (parques, praças, acessos e passeios inter-

conectados) a serem apropriados a curto, médio ou longo prazo, bem como a definição de espaços livres de uso privado (através das taxas de ocupação, índice de aproveitamento, recuos e afastamento) são condições básicas para a concretização do planejamento e desenho da paisagem urbana, visando a conservação ambiental em áreas planas ou inclinadas".

É necessário muita cautela nos projetos em torno de rios urbanos e em áreas de fundos de vale, como no caso do rio Itajaí-Açu e a cidade de Blumenau que se desenvolveu debruçada às suas margens. Mas, então, como proceder? O que fazer para que os rios não se tornem uma paisagem es­quecida e ignorada no desenvolvimento das cida­des às suas margens?

Como resposta a essas indagações, destacamos e recomendamos, tanto para o rio Itajaí-Açu em Blumenau quanto para outros rios urbanos que:

• O planejamento e projeto de rios urbanos devem ser realizados em escala regional, ou seja, a partir de bacias hidrográficas e por equipes interdisciplinares;

• A visibilidade e o acesso público são importantes critérios de projeto para valorização dos rios urbanos;

Figura 8- Edificações na faixa de preservação e verticalização,

foto Soraia L. Porath

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Figura 9- Vista para o Centro da cidade de Blumenau,

foto Soraia L. Porath.

• A legislação deve ser amplamente divulgada e fiscalizada;

• A mata ciliar deve ser preservada e, quando hou­ver recuperação de matas ciliares degradadas, deve-se implantar a vegetação adequada para cada região, segundo classificações de espe­cialistas (AFONSO, 2003);

• As extrações de areia devem ser realizadas somente na calha dos rios que suportam esta ação, e rigorosamente fiscalizadas;

• Deve-se evitar a impermeabilização das mar­gens dos rios;

• A construção de pontes permite a visibilidade ao rio e sua conseqüente valorização, além de permitir a ligação de suas margens;

• No caso de urbanização em fundos de vale, a faixa de preservação deve ser respeitada e, após essa área, as construções devem voltar-se para os rios e não tratá-los como fundo de lote e local de despejos;

• A construção de ruas e avenidas devem ser realizadas em áreas livres de enchente que permitem um certo distanciamento e ao mesmo tempo o contato visual com o rio;

• A criação de parques nas várzeas do rio permite que as enchentes invadam suas áreas, funcio­nando como uma faixa de proteção para a cidade;

• As ocupações das margens devem ser restritas, como por exemplo, equipamentos de lazer e recreação;

• Deve ser implantado um sistema de tratamento de efluentes nas diversas cidades da bacia hidrográfica;

• Deve-se incentivar a navegabilidade e o turismo fluvial.

Infelizmente sabemos que a realidade brasi­leira mostra-se oposta a tal nível de idealização e esses pressupostos dificilmente são aplicados nos rios em centros urbanos. Por esse motivo, eviden­ciamos que é fundamental que as cidades sejam planejadas de maneira que haja um maior contato da população com os rios e suas margens, e assim, uma maior conscientização de sua preservação pela população. Afinal, só se preserva a natureza e o meio físico quando se conhece a sua impor­tância, tanto pela beleza como pelo seu papel na sustentabilidade.

Esperamos que essa pesquisa sobre a paisagem de rios urbanos, através da análise da transformação da paisagem do rio Itajaí-Açu, possa servir de alerta para a população e para os órgãos públicos, no sentido de repr,1sar o desenho urbano no entorno dos rios. Além disso, que esse estudo possa contribuir para as próximas legislações, seja municipal, estadual ejou federal, no sentido de valorizar a paisagem dos rios e suas peculiaridades em diferentes regiões do país, e ainda instigar os novos pesquisadores para a questão dos rios urbanos.

AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa foi desenvolvida com auxílio do FUNPESQUISA e da CAPES, a quem agradece­mos o apoio financeiro.

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BEIÉM, ,

CIDADE DAS AGUAS GRANDES

DECIFRA· ME ENQUANTO TE DEVORO ...

Nada é simples quando se trata de falar da Amazônia. Seja qual for o tema ou aspecto a ser abordado, será preciso, antes de qualquer coisa, aceitar o fato de que estamos lidando com uma escala muito particular. Uma escala que nos faz pequenos diante de tudo que vemos; uma escala colossal, sobre-humana (a começar pelo tamanho dos insetos). Essa será a primeira e a mais funda­mental das descobertas.

Depois vem o vigor deste impulso vital que faz tudo brotar e rebrotar o tempo todo; o verde profundo das folhagens; a exuberância da floresta com suas árvores gigantescas; a branca intensida­de da luz equatorial que a tudo devassa e escalda; e, por fim, mas não por último, a imensidão das águas grandes ...

A água está em toda parte: elemento primor­dial e matéria-prima de todas as possibilidades de existência. Na Amazônia, no entanto, essa onipre­sença assume uma visibilidade absurda, quase ir­real, que nos transmuta em seres aquáticos. É ela, e sempre ela, que comanda a cena. Seja na forma do "rio-estrada" que rasga a floresta, serpenteando por dezenas, às vezes, centenas de quilômetros, seja na forma do "rio-mar" que se alarga até a linha do horizonte, ou, ainda, na forma da chuva tropi­cal que desaba, impiedosa, sobre nossas cabeças.

Cristovão Fernandes Duarte

"fintes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica".

Gaston Bachelard (1977, P·5)

Difícil evitar essa "pororoca" de adjetivos quan­do até os sentidos da percepção parecem insufi­cientemente dotados para dar conta da força extra­ordinária dos acontecimentos que sucedem à nos­sa volta. Por isso, somente depois de constatar e reconhecer os nossos limites é que estaremos mi­nimamente preparados para seguir em frente. Aí então poderemos, com tranqüilidade e aceitação, nos render aos seus mistérios e encantamentos. Diferentemente do enigma proposto pela antiga esfinge', na Amazônia, se deixar devorar é condi­ção indispensável à decifração.

As linhas a seguir discorrem sobre a experiência vivida por um "estrangeird' numa cidade ama­zônica. A cidade em questão é Belém do Pará e "estrangeiro" é como, em geral, os amazônidas denominam, coloquialmente, todos que vêm de fora, não importando aqui se o estrangeiro vem de dentro ou de fora do Brasil. Não se trata exatamente de uma atitude xenófoba, mas da constatação velada de que a Amazônia é mesmo um "outro lugar", longínquo e estranho. Quanto a mim, contudo, prefiro imaginar-me apenas como um viajante numa cidade que generosamente o acolheu (e enfeitiçou!), tentando, de espanto em espanto, ir decifrando aquilo mesmo que o devora.

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PAISAGEM I.ÍQUIDA

'!\ foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem:'.

Mário de Andrade (r983. p. 6!)

Belém do Pará ou, para fazer jus às suas origens históricas, Santa Maria de Belém do Grão-Pará, nasceu à beira de um complexo hídrico, formado pelo entrelaçamento de muitos rios e baías. Não se trata, portanto, simplesmente de um rio, mas de um mar de água doce. Não um rio que corta em duas a cidade, mas um verdadeiro wateifront fluvial que afasta a outra margem para além da linha do horizonte.

Figura 1 - Cidade submersa, foto Dirceu Maués

Afastada cerca de roo km da costa atlântica, a cidade pronuncia-se com a forma de um cotovelo entre o rio Guamá e a baía do Guajará. Mas isso ainda não é tudo. Contornando Belém, o rio Gua­má encontra o rio Acará e, ambos desembocam na baía do Guajará. A baía do Guajará, por sua vez, se junta, amistosa e tranqüilamente, à baía do Marajó, situada ao norte de Belém e a sudeste do arquipélago do Marajó. Além dos já mencionados

rio Guamá e rio Acará, a baía do Marajó recebe também (e principalmente), a importante contri­buição das águas do rio Pará, fartamente alimen­tado por um braço secundário do rio Amazonas2

(que vem do norte, através do Estreito de Breves) e pelo rio Tocantins (que vem do sul). É água que não acaba mais. E todo esse dulcíssimo aguacei­ro, pouco antes de inundar o oceano Atlântico e misturar-se com as águas salgadas3, compõe de modo espetacular a paisagem líquida que emol­dura Belém.

A bacia hidrográfica amazônica, a mais vasta do planeta, constitui uma rede excepcional de vias comunicantes e hierarquizadas, tendo como calha principal de escoamento o rio Amazonas. Desse modo, a localização de Belém representa, desde a sua fundação no início do século XVII, um ato de clarividência geopolítica: o controle sobre a foz e o curso do rio Amazonas significou imediatamente a posse virtual de todo o território setentrional da colônia.

Sua ligação com o mar propiciava uma inter­face direta entre o núcleo urbano e a metrópole portuguesa; a ligação com o rio propiciava a inter­face com o interior, dilatando seu raio de influên­cia sobre o território conquistado. A mobilidade franqueada pelo duplo acesso às vias naturais de circulação, fluvial e marítima, aumentava signifi­cativamente a eficiência dos sistemas defensivo e econômico, revelando uma sofisticada estratégia de planejamento do espaço a serviço dos propó­sitos da colonização. Belém surge, assim, como elo estratégico de ligação entre o rio e o mar. Esse será, sem dúvida, seu atributo vital e razão de ser de sua própria existência.

Sobre um promontório, descortinando a vista da baía do Guajará, construiu-se, a 6 de janeiro de r6r6, o forte do Presépio, marco de fundação da cidade. A um tempo circunscrevendo e confinan­do a cidade, suas paredes fortificadas permitiram os primeiros contatos entre as populações indíge­nas e os conquistadores europeus, e, em decorrên­cia, o reconhecimento mais apurado da própria re­gião. No momento seguinte, ao ultrapassar suas

fronteiras iniciais, a cidade terá no forte o ponto focal da ordenação geométrica do seu traçado e, na "sombra" de sua vizinhança imediata, a prote­ção e segurança necessárias à conformação de seu primeiro núcleo urbano4•

As feições da cidade colonial se consolidam no século XVIII, sob a administração do Marquês de Pombal, primeiro-ministro do rei D. José I, de Por­tugal. As igrejas mudam sua modesta roupagem de taipa-de-mão, sendo reconstruídas em pedra e cal. Erguem-se sobrados e edifícios públicos. A arquitetura oficial e religiosa assume proporções clássicas e escala monumental5, destacando-se do casario residencial e tendo o rio como pano­de-fundo. Entre os prédios mais significativos do setecentos e ainda existentes na Belém de hoje, incluem-se o Palácio dos Governadores (defronte à grande praça que se abre para o rio), as igrejas do Carmo, Santana, Mercês e Rosário, a Capela de São João Batista e o conjunto da Feliz Lusitânia (em torno da Praça da Sé), formado pelo Forte do Presépio (também reformado no séc. XVIII), a Igreja de Santo Alexandre e o Arcebispado (antigo Colégio dos Jesuítas, hoje transformado em Mu­seu de Arte Sacra), a Casa das Onze Janelas (anti­go Hospital Militar, hoje transformado em Museu de Arte Contemporânea) e a Igreja da Sé.

O perímetro da cidade correspondia, então, a uma estreita faixa de terra situada entre a orla e um grande pântano que, até o início do século XIX (quando foi aterrado), representava um obs­táculo natural à interiorização do núcleo urbano. Um igarapé cortando transversalmente a cidade se encarregava de fazer a ligação entre as águas do pântano e do rio. Junto à orla do rio, a foz do igarapé formava um ancoradouro natural, mais tarde transformado na doca do Ver-o-Peso, onde ainda hoje ancoram os barcos vindos do interior, carregados de produtos regionais para comercia- · lização. Nessa localização estratégica, se formou uma grande feira popular, talvez a mais antiga do país, cujo nome deriva da corruptela de "Casa do Haver-o-Pesd', onde era feita a pesagem e a tribu­tação dos gêneros trazidos para a capital.

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Com o ciclo econômico da borracha, a partir da segunda metade do século XIX, a antiga cidade colonial portuguesa adquire ares de cidade cosmopolita. A euforia dos novos tempos, decorrente do progresso industrial em marcha na Europa e Estados Unidos, exerceu grande influência na cidade, especialmente sobre a emergente burguesia da borracha7. Os ideais de conforto e saneamento urbano, financiados pelo saldo comercial favorável, deram origem a importantes melhoramentos urbanos e à reformulação da paisagem arquitetônica, em estrita observância ao novo receituário estilístico do Ecletismo. Inaugura-se o primeiro trecho da Estrada de Ferro Belém-Bragança (r884). Constroem-se chalés, palacetes e edifícios suntuosos. Entre as novas edificações, destacam-se o Grande Hotel e o Teatro da Paz (r878), destinados a receber as mais famosas companhias de ópera da Europa. Inaugura-se o Mercado de Peixe (r9or), junto à doca do Ver-o-Peso.

Marco da Arquitetura do Ferro e cartão pos­tal da cidade, o Mercado de Peixe, inteiramente construído em estrutura metálica importada da Inglaterra, se tornaria um dos símbolos mais im­portantes da paisagem de Belém. Com seus qua­tro torreões pontiagudos, sobressaindo por entre as barracas da feira do Ver-o-Peso, o prédio pare­ce flutuar sobre as águas do rio. Essa sensação é acentuada quando da cidade se avista o mercado, tendo em primeiro plano o movimento oscilante e pendular dos mastros e velames das embarcações ancoradas na doca do Ver-o-Peso.

Desta mescla entre a "Lisboa dos trópicos" (da segunda metade do século XVIII) e a "Paris na América" (da virada do século XIX para o XX), resultarão os traços mais característicos da paisa­gem arquitetônica da Belém contemporânea.

Ao contrário dos centros históricos de outras cidades brasileiras, em que reconhecemos con­juntos urbanísticos predominantemente datados de um mesmo período 8, o Centro Histórico de

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Belém apresenta um acervo edificado bastante diversificado que reúne muitos tempos na forma da cidade. Contudo, não obstante as alterações na forma urbana e o aparecimento de novas funções, as ligações entre cidade-porto-rio-mar permanece­ram e se consolidaram no processo de constitui­ção temporal diacrônica da imagem da cidade.

Significa dizer que a paisagem urbana de Belém apresenta uma unidade estética empiricamente re­conhecível, que se constitui em meio à diversidade. Temos, assim, a paisagem natural, decisivamente marcada pela presença abundante das águas, pela extraordinária luminosidade equatorial, pela exube­rância da vegetação amazônica, juntamente com a paisagem arquitetônica e humana, reunidas numa única idéia (imagem) de cidade.

Engana-se, porém, quem pretende enxergar água e cidade como coisas diferentes, separadas

uma da outra pela orla do rio. Um olhar mal acos­tumado com a secura de outras paisagens ou, tal­vez, o próprio olhar do arquiteto, adestrado pelo estudo das formas rígidas, talhadas a cinzel, in­corre muito facilmente no equívoco de desidratar a natureza úmida da cidade de Belém.

Mais do que emoldurar ou circunscrever a cida­de, as águas grandes misturam-se com ela a ponto de não se poder mais distinguir com segurança o que é água e o que é cidade. Será, portanto, a partir desse estado de permanente transição, que entre­laça simultaneamente processos de cristalização da água e dissolução da pedra, que se pretenderá aqui uma tentativa de decifração poética da forma da cidade de Belém.

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A CIDADE SUBMERSA

Visitando a cidade em julho de 1927, Mário de Andrade nos apresenta uma descrição, tão poética quanto precisa, da paisagem mutante de Belém:

"O céu está branco e reflete numa água totalmente branca, um branco feroz, desesperante, luminosíssi­mo, absurdo, que penetra pelos olhos, pelas narinas, poros, não se resiste, sinto que vou morre1~ misericór­dia! O melhor é ficar imóvel, nem falar. E a gente vai vivendo de uma outra vida, uma vida metálica, dura, sem entranhas. Não existo. Até que capto no ar uma esperança de brisa, é brisa sim. O céu branco se escu­renta em cinzas pesados de nuvens. Em cinco minutos o céu está completamente cinzento escuro e venta forte um vento agradável nascido das águas fUndas." 9

Duas estações se sucedem anualmente no Pará: a que chove todo dia e a que chove o dia todo. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas da tra­dução literal do regime das águas que evaporam e se precipitam sobre a cidade. A primeira trans­corre entre junho e novembro, e é associada ao verão; a segunda, correspondente ao inverno, vai de dezembro a maio. No inverno, assim chamado por apresentar dias menos quentes e céu quase sempre nublado, a chuva é miúda e demora mais a passar. No verão, os dias são sempre escaldantes e as águas da chuva desabam de uma só vez so­bre a cidade, concentradas em períodos de curta duração.

Ao contrário do que se verifica no Rio de Ja­neiro, um dia de chuva não é nunca para os be­lenenses um "dia feid'. Não se tem aqui o hábito carioca de maldizer os dias nublados. A chuva em Belém é um acontecimento corriqueiro e irreme­diavelmente presente na vida de todos os dias. O banho de chuva, aliás, continua sendo, nas tardes quentes de Belém, uma prática freqüente e muito apreciada pelas crianças.

Para o viajante desavisado, no entanto, faz-se necessário um paciente aprendizado até que ele venha a entender como as coisas ocorrem e passe,

também ele, a desejar sua benfazeja quota diária de umidade.

No verão, os dias amanhecem invariavelmente luminosos e quentes, transcorrendo como se nada mais, além daquela luz intensamente branca, pu­desse cair do céu. Em geral, pelo início da tarde, de uma hora para a outra, tudo se transforma. Um vento inesperado precede a mudança dos humo­res celestes. Nuvens carregadas se acumulam em fração de segundos. Começam os primeiros pin­gos. São pingos esparsos, mas grossos e velozes. Caem, certamente, de grande altura. Batem na pele com força, estatelam-se no chão, ruidosos. É

o sinal para que todos os transeuntes se abriguem o mais rapidamente possível. Na seqüência, des­pencará o aguaceiro. Já não há nada que se possa fazer, a não ser se abrigar. Mesmo os guarda-chu­vas são inócuos diante de tanta água. Aliás, em Belém não há o costume de usar guarda-chuvas, apenas sombrinhas para se proteger da inclemên­cia do sol.

A população, tranqüilamente abrigada debai­xo das marquises e até debaixo das frondosas (e espessas) copas das mangueiras, se prepara para receber do céu mais uma das muitas chuvas que já caíram e que ainda cairão sobre Belém.

Assim, um rio caudaloso desaba sobre a cidade. A partir daí, assiste-se a uma completa transfor­mação na paisagem local. A chuva de verão cons­titui, em Belém, um espetáculo da natureza, con­tracenado teatralmente pela cidade.

A cidade pára. Os carros param. O tempo pára. Ou, por outra, um tempo novo se instala, cancelan­do qualquer tipo de pressa. Todos os compromis­sos do dia encontram-se agora automaticamente adiados para depois da chuva. Ninguém pode nada contra a força daquela manifestação "trópi­co-amazônida-torrencial" encarnada na cidade.

A aproximação das pessoas, forçada pelas cir­cunstâncias, enseja conversas casuais debaixo das marquises das lojas. Comenta-se a chuva, contam­se casos, fala-se sobre a vida, sonha-se de olhos

abertos, enquanto se assiste a cidade ser impie­dosamente lavada. Há que se esperar, naquele intervalo em que os relógios deixam de controlar os tempos dos afazeres cotidianos, que a chuva­rada cesse e o céu se abra outra vez. Em geral, a chuva de verão não dura mais que dez ou quinze minutos.

De repente, um facho de luz irrompe por detrás do aguaceiro. A chuva ainda não acabou, mas o sinal luminoso é o anúncio de que o sol não tarda­rá a brilhar outra vez. Com a mesma rapidez que tudo começou, a chuva desaparece.

A cidade se recupera rapidamente. As pessoas vão deixando as marquises e seguem seu cami­nho. Debaixo das copas das árvores, onde até há pouco havia gente bem abrigada, começam pin­gos retardatários da chuva que passou. O céu já se abriu completamente, só as árvores continuam, por mais algum tempo, chovendo.

Nas platibandas dos sobrados, nas cumeeiras dos telhados, ou empoleirados nos postes, os uru­bus se expõem ao sol, abrindo as asas e eriçando suas penas, para acelerar o processo de secagem.

Com uma topografia extremamente plana, a ci­dade resiste excepcionalmente bem às chuvas de verão. Vista do avião, Belém parece boiar sobre um tapete estendido ao nível do mar (ou do rio). Du­rante a chuvarada, as ruas se alagam, os bueiros transbordam, mas em pouquíssimo tempo a água escoa e já se pode andar pelas ruas sem maiores problemas. Com a alma e o corpo lavados, Belém retoma, outra vez apressada, o ritmo comum de vida de uma grande cidade.

As exceções ficam por conta apenas dos perío­dos em que a chuva coincide com a maré alta, em geral no mês de maio, quando se verificam alguns transtornos mais significativos na cidade, decor­rentes do retardo no escoamento das águas plu­viais. Acrescente-se ainda que, nos últimos anos, algumas mangueiras centenárias (que fizeram Belém ficar conhecida como "a cidade das man­gueiras") não têm resistido com o mesmo vigor de outrora à ação das chuvas ro.

Figura 4- Paisagem renascente, foto Dirceu Maués

PEDRA MOlE EM ÁGUA DURA, TANTO BATE ATÉ QUE

SONHA ...

"Contemplar a água é escoar-se, é dissolver-se, é n~,oner."

Gaston Bachelard (r977. P-49)

Descrevendo a vida da cidade por volta de 1922,

quando ainda o trem de ferro percorria as suas ruas, o escritor Dalcídio Jurandir diz:

';4s chuvas desabaram, desmanchava-se a cidade no aguaceiro ( ... ) Varando o aguaceiro, o trem pas­sava, ruidoso e fumegante submarino ( ... ) E rompen­do o chuvaral, revezavam-se os apitos da Usina e do Utinga, os toques do quartel, muito distantes, como se marcassem um tempo extinto ou pedindo socorro na cidade que naufragava ( ... ) A cidade boiava na luz da manhã. Depois daquela semana d'água, as pesso­as, os animais, os trens passavam como se voltassem do fundo. Unta mulher passou, meio esverdeada: do limo da enchente? As samaumeiras de Nazaré tra­ziam um ar do dilúvio". 11

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Assistir Belém debaixo da chuva é testemu­nhar a cena mítica de uma cidade náufraga, que sucumbe, desmanchando-se diante dos nossos olhos.

Até o tempo se encolhe e se aquieta para assistir o espetáculo da chuva. Tal como o tempo sagrado, o tempo da chuva representa uma ruptura com relação ao tempo profano. Não há propriamente um fluir do tempo, mas a sua reintegração num mesmo e eterno presente mítíco primordial. Um "tempo extinto" que é, a cada chuva, revivido pela cidade. A repetição cíclica e ritualizada da chuva instaura na cidade um tempo circular e reversí­vel, indefinidamente recuperável. 12

Não seria, aliás, a palavra temporal, em sua conotação semântica de chuva forte, também uma alusão ao fato de que a chuva tem um tem­po próprio de duração? (Um tempo que não se confunde com o tempo cotidiano; um período de duração compreendido entre o início e o fim da chuva, cuja nitidez, em contraposição às demais temporalidades do cotidiano, é tão mais pronun­ciada quanto mais forte é a chuva).

Figura 5 - Paisagem líquida, foto Dirceu Maués

De qualquer modo, e isso é o que importa dizer, a chuva envolve e engaja a tudo e a todos na sua mágica duração intemporal. Diante do olhar in­crédulo do viajante, a população, já devidamente abrigada, contempla impassível o espetáculo que se desenrola na cidade. Não há um escasso traço de medo ou dúvida nos olhos daquela multidão, agora voltados para o céu. Há, isto sim, uma es­pécie de religiosidade primitiva que faz da chuva não uma ameaça, mas uma benção. A suposta im­pressão de impotência da cidade se desfaz, dando lugar a uma respeitosa resignação diante da pre­sença daquela força sobre-humana. Neste transe místico-vegetal'3, que é também espera e aceita­ção, os habitantes de Belém "sabem'' que nada de mal pode lhes acontecer. E, como que "possuída" por uma entidade divina que desce sobre a cida­de, Belém se entrega aos desígnios chuvosos da natureza.

O céu vira um rio de águas pesadas e o rio espe­lhao céu com suas negras e densas nuvens. Um véu espesso cobre a cidade. Cidade, rio e céu já não se distinguem mais. Enxerga-se pouco e, no

entanto, há muito que se ver. Os contornos per­dem definição, ao mesmo tempo em que as for­mas ganham inusitada mobilidade. Movem-se, serpenteiam, revelando a metamorfose de uma paisagem liquefeita.

Durante a chuvarada, que mobiliza tempo e espaço, o movimento da cidade é inteiramente comandado pela força das águas. Sem sair do lu­gar, casas e pessoas são "arrastadas" pela corren­teza onírica que se desprende do fluxo da maté­ria líquida e a ela se superpõe. Uma profusão de imagens vem à tona. Imagens sempre novas que jamais irão se repetir, mas que possuem no poder de dissolução das águas a sua matriz comum.

Com suas casas-navio e suas ruas-corrente­za, a cidade parece agora estar à deriva: prédios se dissolvem em brumas; telhados escorrem de improváveis cachoeiras, em quedas d'água de es­guichos mirabolantes; os bueiros transbordam em furiosos chafarizes improvisados; iluminado como um transatlântico, o Teatro da Paz lidera, va­garoso, aquela caótica procissão fluvial; as torres da Sé balançam, repicando o bronze amolecido dos sinos; o Mercado do Peixe baila, esguio e des­temido, ao som dos relâmpagos; o casario encolhe e se agiganta, numa fantasmagoria de sanfonas emudecidas ...

Já não se vê os urubus do Ver-o-Peso, nem se escuta os pássaros, que são muitos. Estão todos escondidos, desde os primeiros pingos, nos bura­cos secretos das copas das árvores. Quede a alga­zarra canora dos periquitos da velha samaumeira de Nazaré? Só depois que passar a chuva e o céu boiar outra vez.

A PAISAGEM RENASCENTE

'11 água anônima sabe todos os segredos." Gaston Bachelard (r997, p.9)

Depressa o viaJante entendeu que para par­ticipar do espetáculo cotidiano da metamorfose aquática de Belém é necessário se deixar, também, dissolver na paisagem que o envolve. A astúcia macia e feminina dos fluidos exige entrega incon­dicional. A água que molha e refresca a sua pele também penetra na intimidade do seu ser. Assim, como cúmplice e amante, o viajante entrega-se à sensualidade primitiva da água pura.

Murad, ao estudar o potencial das "imagens imaginais" da nossa experiência de contemplação da paisagem-mundo, diz:

"O dentro e fora trocam de lugar, existe um vai e vem em constante mutação e troca imagética (. . .) Neste momento não se trata de ver o exterior, mas sim de ver em profUndidade pelo esvaziamento de toda at­moifera concreta ( ... )contemplamos a paisagem que nos contempla e de um só golpe estamos contidos na imensidão desta imagem". '4

Mergulhar na profundidade sempre nova'5 da paisagem equivale a se deixar levar pelo fluxo que a tudo arrasta, passando a fazer parte dele. Ma­terialidade e imaginação, simultaneamente im­bricadas e fluidificadas, instituem uma zona de transição dialética entre a matéria do devaneio e o devaneio da matéria ' 6

.

São sonhos que têm como causa a matéria lí­quida: "(. . .) um encantamento não pelas imagens, mas pelas substâncias".'7 Para Bachelard, a valori­zação da matéria pelas forças imaginantes, para além do impulso de novidade, age igualmente no_ sentido do aprofundamento: "(. .. ) escavam o fUndo do ser; querem encontrar no ser, ao mesmo tempo, o

. . . "18 pnmawo e o eterno . O devaneio da água nos confronta com a maté­

ria primordial, a substância das substâncias, reavi­vando e atualizando no ser velhas formas mitoló-

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gicas19. Assim, tal como nos propõe Eliade, há que se considerar com atenção o simbolismo religioso das águas míticas:

'íl imersão na água simboliza o regresso ao pré­formal, a regeneração total, um novo nascimento, porque uma imersão equivale a uma dissolução das formas, a uma reintegração no modo indiferenciado da preexistência; e a emersão repete o gesto cosmogô­nico da manifestação formal". 20

A dissolução da paisagem na água desmasca­ra a ilusão da permanência das formas. A rigidez aparente dos fixos sucumbe diante da potência transformadora das águas, associada ao "estado fluídico do psiquismo imaginante".21 Como o rio de Heráclito, a cidade é, ela própria (e desde sempre), fluxo constante.

Tão logo encerrado o temporal, a cidade emer­ge renovada. Está tudo no mesmo lugar, mas a cidade já é outra. A cada chuva que passa, Belém se desfaz e se refaz. De aguaceiro em aguaceiro, a cidade ressurge com o corpo e a alma lavados. Purificada de seus pecados, redimida de suas ma­zelas. Pronta para recomeçar tudo de novo, como se acabada de nascer:

"Desintegrando toda a forma e abolindo toda a his­tória, as águas possuem esta virtude de purificação, de regeneração e de renascimento, porque o que é mergu­lhado nela 'morre' e, erguendo-se das águas, é seme­lhante a uma criança sem pecados e sem 'história', capaz de receber uma nova revelação e de começar uma nova vida ( ... )".22

A repetição ritual do batismo diluviano nos con­fronta, diariamente, com uma paisagem renascen­te, ao mesmo tempo em que a inscreve no ciclo dos processos de longa duração. A ruptura instaurada pelo tempo mítico da chuva pressupõe, como pano­de-fundo, a existência da temporalidade profana. Ao irromper no cotidiano vivido, o tempo sagrado anula momentaneamente a temporalidade profa­na, para em seguida recompô-la e (re)atualizá-la.

186

A chuva vem e vai, mas a paisagem de Belém não seca nunca. A água está sempre por todo lado, em cima, embaixo, dentro e fora. Com efeito, res­pirar Belém é hidratar o corpo e o espírito. Por isso, talvez, Belém seja tão maleável, tão suscetí­vel às deformações, às modelagens incessantes da imaginação.

Pouco a pouco, o viajante vai se desfazendo dos seus preconceitos, abandonando suas certezas. Já não se interessa pelas distinções absolutas, nem pela nitidez aparente dos contornos. Entre o ser e o não-ser, entre o possível e o impossível, entre o atual e o virtual, o viajante descobre o caminho do vir-a-ser.

Familiarizado com os caprichos da paisagem mutante que o envolve e tornado já parte do movi­mento que o arrasta, o viajante experimenta a sen­sação vertiginosa de viver em dois mundos simul­tâneos. Trata-se, a rigor, da transição entre o que já foi e o que ainda não é. O foco de sua atenção se volta, então, para esse movimento que, engloban­do os fixos e os fluxos, se encarrega de reinventar (e produzir) permanentemente o lugar.

Por fim, no verso do mapa que já se tornara para ele dispensável, o viajante anota a seguinte observação: entre a pedra dura e a água mole (dois estados igualmente provisórios da matéria) assis­te-se ao movimento (este sim duradouro e perene) de constituição daquilo que chamamos paisagem renascente de Belém.

NoTA DO AUTOR

As imagens foram gentilmente cedidas pelo premiado

fotógrafo Dirceu Manés, que registra Belém utilizando a

técnica pinhole e câmeras artesanais.

NoTAS

r."Decifra-me ou te devord'.

2.Em sua foz, o Amazonas se divide em dois braços: o braço norte é o mais largo e cm-responde ao verdadeiro estuário; o braço sul é conhecido pelos nomes de rio Pará e baía de Marajó. 3- De acordo com Varella, a gigantesca descarga da foz do rio Amazonas empurra o Atlântico equinocial a mais de ro milhas (cerca de 18,5 quilômetros) da costa brasileira. VARELLA, nome. In: Amazônia- o mundo das águas. São Paulo: Empresa das Artes, 2004, p.ro3 a XX.

4- DUARTE, Cristovão F. "São Luís e Belém: marcos inaugurais da conquista da Amazônia no período filipind'. In: Revista Oceanos, n. 41, Lisboa, janjmar 2000, pp. XX a XX.

5· É o tempo da atuação de Landi em Belém, como arquiteto­régio do Grão Pará. Antonio José Landi (1713-1791), nascido em Bolonha, onde foi professor de perspectiva no Instituto das Ciências de Bolonha e membro da Academia Clementina, chegou a Belém em 1753, como integrante da Comissão Demarcadora de Limites, tendo aí permanecido até a sua morte. Seus projetos constituem o paradigma mais expressivo da presença do iluminismo pombalino no Brasil­Colônia, abrangendo os mais importantes edifícios públicos, residenciais e religiosos da cidade.

6. Termo originário da língua tupi que significa rio pequeno.

7· DUARTE, Cristovão F. "Belém do Pará na virada do século XIX: modernidade no plano urbanístico de expansão da cidade". Dissertação de Mestrado em Urbanismo. PROURB f FAU- UFRJ, fevereiro de 1997, pp. 13-4-

8. Como, por exemplo, as cidades mineiras do ciclo do ouro, em que reconhecemos conjuntos urbanísticos homogêneos, datados do século XVI!I.

9· ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 18r.

ro. Não obstante o acervo constituído pelas mangueiras de Belém ser tombado como patrimônio cultural do Estado do Pará, sua conservação vem sendo ameaçada, sobretudo por podas mal feitas e pelas agressões das concessionárias dos serviços de infra-estrutura urbana.

11. JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Belém: EDUFPA; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2004, pp. ro8-9-

12. "Para o homem religioso ( ... ) a duração temporal profana é suscetível de ser 'parada' periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um tempo sagrado, não-histórico". Cf. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Edição Livros do Brasil, sjd, p. 84-

13. "Os sinais precursores da chuva despertam um devaneio especial, um devaneio muito vegetal ( ... ) Em certas horas o ser humano é uma planta que deseja a água do céu", Cf. BACHELARD, Gastou. In: A água e os sonhos, São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. r6r.

14· MURAD, Carlos A. et alii. "Poética da visão imaginai: as paisagens do olhar". In: Visão e visualização, IX Congresso Tberoamericano de Gráfica Digital- Sigradi, Lima, Peru, 2005.,

p. 577·

15. 'A profundidade é sempre nova". MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1969, p. 8o

r6. "De um modo geral, acreditamos que a psicologia das emoções estéticas ganharia com o estudo da zona dos devaneios materiais que antecedem à contemplação. Sonha-se antes de contemplar". Gastou Bachelard, op.cit., p. 5·

I7. Ibid, p. I35·

r8. Ibid., pp. r-3.

19. Ibid., pp. 140-r.

20. Mircea Eliade. Op.cit., p. 153.

21. BACHELARD, Gastou. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 5·

22. ELIADE, Mircea. Op.cit., p. 158.

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ADRIANO RicARDo EsTEVAM

Arquiteto e urbanista pela FAUUSP (Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo da Universidade de São Paulo). Hidrostudio

Engenharia, área de controle de enchentes, implantação de

parques lineares e recuperação de córregos.

ALESSANDRA SoARES GHILARDI

Arquiteta e urbanista, Mestre em Arquitetura pelo PROARQ­

FAUfUFRJ (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura

da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade

Federal do Rio de Janeiro).

ANA LUCIA BRITTO

Professora Adjunta do PROURB - Programa de Pós­

graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ (Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de

Janeiro), geógrafa, pesquisadora rC-CNPq, pesquisadora do

Observatório das Metrópoles.

ANA LUIZA COELHO NETTO

Professora Titular, pesquisadora rB-CNPq, geógrafa,

coordenadora do G EO H ECO /Laboratório de Geo-Hidroecologia

do Departamento de Geografia, IGEOfUFRJ (Instituto de

Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

CRISTIANE RosE DE SIQUEIRA DuARTE

Professora Titular, arquiteta e urbanista, pesquisadora rD­

CNPq, Coordenadora do Gmpo de Pesquisa AS C/ Arquitetura,

Subjetividade e Cultura do PROARQ-FAUfUFRJ (Programa de

SoBRE os AUTORES

Pós-Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade Federal do Rio de janeiro).

CRISTÓVÃO FERNANDES DUARTE

Professor Adjunto do PROURB- Programa de Pós-graduação

em Urbanismo da FAU/UFRJ (Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Arquiteto e urbanista, foi superintendente regional do IPHAN

até zoo3-

FERNANDA CuNHA PmnLo

Arquiteta e Urbanista pela FAUUSP (Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo da Universidade de São Paulo), e Analista

Ambiental do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

e dos Recursos Naturais Renováveis).

FLAVIANA VIEIRA RAYNAUD

Arquiteta e urbanista, Mestre pelo PROURB (Programa de

Pós-graduação em Urbanismo da FAUfUFR)) e doutoranda

do PROARQ (Programa de Pós-graduação em Arquitetura da

FAUfUFRJ).

JORGE HAJIME ÜSEKI

Arquiteto e urbanista, Professor doutor da FAUUSP (Faculdade -

de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo),

nas áreas de Economia da Construção e do Edifício e de

Tecnologia da Paisagem, coordenador cientifico do NAPPLAC.

FAUUSP (Núcleo de Apoio à Pesquisa Produção e Linguagem

do Ambiente).

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KENNETH TAMMINGA

Associate Professor, Graduate Ecology Program, Department

ofLandscape Architecture, The Pennsylvania State University

-PSU.

LuciA MARIA SÁ ANTUNES CosTA

Professora Titular, arquiteta paisagista, pesquisadora 2 CNPq,

coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Paisagismo do

PROURB Programa de Pós-graduação em Urbanismo

da FAUJUFRJ (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal do Rio de Janeiro).

MôNICA BAHIA ScHLEE

Urbanista e arquiteta-paisagista da Prefeitura da Cidade do

Rio de Janeiro/ SEDREPAHC; professora substituta EAUj

UFF; doutoranda do PROARQ-FAUJUFRJ (Programa de Pós­

Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

PAULO RENATO MESQUITA PELLEGRINO

Professor Doutor da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade de São Paulo), Departamento de

Projeto, Arquiteto Paisagista, Delegado ABAPJIFLA.

PAULA PINTO GuEDES

Bióloga, Mestre em Ecologia pelo Instituto de Biociências da

USP. Coordenadora de Meio Ambiente na CNEC Engenharia

S.A., São Paulo.

190~RIOE

SÁVIO ALMEIDA FERNANDES

Arquiteto e Urbanista pela FAUUSP.

SoNIA AFoNso

Professora Adjunta, arquiteta e urbanista, pesquisadora 2

CNPq, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Arquitetura, Paisagem e Espaços Urbanos do PósARQ (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

SoRAIA LoECHELT PoRATH

Arquiteta e Urbanista, Mestre pelo PósARQjUFSC

(Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

da Universidade Federal de Santa Catarina), pesquisadora do

Gmpo de Pesquisa Arquitetura, Paisagem e Espaços Urbanos.

VERA MAYRINK MELo

Professora Adjunta, arquiteta e urbanista, pesquisadora

do Laboratório da Paisagem do MDU (Mestrado em

Desenvolvimento Urbano) e do Departamento de Arquitetura

e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco.

VICTOR ANDRADE CARNEIRO DA SILVA

Arquiteto e urbanista, Doutor pelo PROURB - Programa de

Pós-graduação em Urbanismo da FAUjUFRJ (Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de

Janeiro), pesquisador da School of Architecture, Royal Danish

Academy ofFine Arts.

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