rio de imagens_relato de viagens dos romÂnticos brasileiros_sussekind ph

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    F L O R A S S S E K I N D

    PALAVRASLOUCAS, ORELHAS

    MOUCASOs relatosde viagemdos romnticosbrasileiros

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    dominante, de outro. Isto : na literatura deviagem produzida pelos escritoresoitocentistas nesse perodo de consolidao

    da fico romntica brasileira. Especialmen-te em algumas expedies imaginrias ouhumorsticas que, parecendo orientar-se se-gundo a retrica caracterstica ao gnero,servem, na verdade, de duplos crticos dosrelatos propriamente ditos. Como osExcertosdas Memrias e Viagens do Coronel Bonifciode Amarante, publicados com notas e adi-es pelo Tenente Tibrcio de Amarante(1848), de Arajo Porto-Alegre, a Carta aomeu Amigo Dr. Cndido Borges Monteiro(1833) e o Episdio da Infernal Comdia ouda Minha Viagem ao Inferno (1836), de Gon-alves de Magalhes,A Carteira de Meu Tio(1855) eMemrias do Sobrinho de Meu Tio(1867-68), de Joaquim Manuel de Macedo.

    EFEITO DE LISTA

    Mas se, nesses contra-relatos, h umaampliao do discurso narratorial, no foi essaa norma geral nos exerccios romnticos nognero. Nada mais breve, objetivo, por exem-

    plo, do que oDirio da Viagem ao Rio Negro,de Gonalves Dias.

    Trata-se do registro de uma das expedi-es pela Amaznia de que o poeta partici-pou em 1861, enquanto os demais membrosda Comisso Cientfica de Explorao dasProvncias do Norte, na qual chefiava a seode etnografia, voltavam para a Corte. Gon-alves Dias viajaria, ento, pelos rios Ama-zonas, Madeira e Negro. E faria o dirio de-talhado dessa ltima excurso, de 55 dias,pelo Rio Negro, iniciada em 15 de agosto econcluda em 5 de outubro.

    Nesse dirio quase nada transparece dentimo, comenta Lcia Miguel Pereira, res-ponsvel pela sua divulgao em 1943. Neleo explorador como que se substitui ao ho-mem (3). Coletam-se, com cuidado, mas semmaiores interpolaes, horrios exatos, dis-tncias, itinerrios, povoados, vistas, varia-es atmosfricas, expresses indgenas.Como se tais indicaes se sucedessem dire-tamente, passassem pelo texto, obedientes

    apenas a uma ordem cronolgico-geogrficaestrita. E, por vezes, no fosse a primeira

    FLORA SSSEKIND pesquisadora doInstituto Casa de Rui

    Barbosa, do Rio deJaneiro, e autora,entre outros livros, deCinematgrafo dasLetras(Companhiadas Letras).

    1 E. H. Gombrich, Mditationssur un Cheval de Bois oules Origines de la FormeArtistique, in Mditationssur un Cheval de Bois etAutres Essais sur la Thoriede Lart, ditions W, Mcon,p. 15.

    2 D. J. Gonalves de Maga-

    lhes, A Confederao dosTamoios, 2aedio, Rio deJaneiro, Livraria de B. L.Garnier, 1864, pp. 110-1.

    3 Lcia Miguel-Pereira, A Vi-da de Gonalves Dias, Riode Janeiro, Jos Olympio,1943, pp. 295-6.

    4 Antnio Gonalves Dias,Dirio da Viagem ao RioNegro, inLcia Miguel-Pe-reira, A Vida de GonalvesDias, op. cit., p. 410.

    5 Idem, ibidem, pp. 410-1.

    6 Idem, ibidem, pp. 414-5.

    7 Philippe Hamon, Introduc-

    t ion l Analyse duDescriptif, Paris, Hachette,1981, p. 7.

    R

    etomando a frase inicial de um en-saio bastante conhecido de ErnstGombrich O tema deste artigo

    um cavalo de pau dos mais co-muns (1) em torno de listas, runas, fron-teiras, mas sobretudo de alguns cavalos, tiose percursos imaginrios que se tratar aquidas formas e funes dos relatos de viagemdos romnticos brasileiros e de sua contribui-o peculiar para a experincia narrativaoitocentista. Inclusive para o esboo de umaconscincia crtica do gnero que praticam, nomomento mesmo em que a presena, na litera-tura brasileira, das viagens ilustradas e expedi-es cientficas desdobra-se numa coleo detipos, topoipaisagsticos, conexes geogrfi-cas, e, em especial, na fixao de um ponto demira (calcado no do viajante naturalista) paraum narrador de fico em formao.

    Fixao por via a rigor paradoxal, umaespcie de avesso retrico seu a capacidadedescritiva que serve de suporte a essenarrador. No de estranhar, nesse sentido,que, emA Confederao dos Tamoios (1856),se interrompa, subitamente, no quarto canto,no somente a descrio de floresta espessa,

    grandiosa, mas todo o fio narrativo do poe-ma, para o narrador ceder lugar a uma vozautoral que, meio de fora, dirige-se aos ar-tistas da Europa encanecida e, em seguida, aArajo Porto-Alegre, reclamando maravi-lhas darte inspiradas neste Paraso (2).

    Exigncia de quadros naturais locais quelevaria o prprio Porto-Alegre, num dosmuitos desvios e interrupes de que se com-pe o seu prlogo ao Episdio da InfernalComdia(1836), de Gonalves de Magalhes,a deter-se num demorado panorama areo doRio de Janeiro, a partir do topo do Po deAcar, passando das colinas do Castelo, deSanto Antnio, So Bento, Conceio, SoDiogo, das torres do Carmo, da Candelria,do campo de Santana, do cais do PasseioPblico, dos chafarizes do Largo do Rocio ede Santa Rita, ao Saco do Alferes, ao Largodo Pao e Ilha das Cobras, para s depoisdessa minuciosa descrio narrar-se a primei-ra apario demonaca do livro.

    Razo de ser descritiva para o narrativo,

    de um lado; hipertrofia da voz do narradorexatamente onde o descritivo deveria ser o

    R

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    pessoa do plural em que so feitos os regis-tros do percurso, a impresso dominante se-ria mesmo a de uma quase ausncia donarrador.

    No dirio de Gonalves Dias, o que mais sev, na verdade, so indicaes de dia, hora eminuto, seguidas de mnima informao (par-timos, largamos, paramos, chegamos) e de umnome de lugar (Stio do Simeo, Povoao daVelha do Carmo, Igarap do Cosme, Ponta doCastanhal, Barcelos, Santa Isabel, e assim pordiante) do itinerrio. Convertendo-se muitasdas notas em simples catalogao. Como a das4,30' do dia 22 de setembro de 1861: Par-timos. 1 paneiro de farinha, ovos, carne deporco (4). Como a das 10,10' do dia 24 domesmo ms: Igarap do Taburunia/ Turirepecuma/ Iurupari roca/ Macarabi/ Cauaburi/Parana/ Manacopuru/ Castanheira/ Abad/Stio do Comet (5). Ou como a sucesso dereceitas medicinais registrada no dia 27: Parafebres: Folhas de tamarindo cozidas; toma-sea infuso quando a febre vai passando. Depois[palavra ilegvel] ponche e abafa-se para suar;Quando h inflamao do bao, aplica-sesobre a parte emplastro de sucuba (leite) pol-vilhado com excremento de Jacar (almscar);

    Para desarranjo de barriga de mulher murtado campo em banhos, cozimento de folhas,

    U tensl i os I ndgenas, l i tografi a do Reise in Brasilien..., de Spix e Mart i us (M uni que, 1823-31) , Bi bli oteca Nacional,RJ

    tronco e razes (uma murta que s tem flor,sem frutos); Curando do peito Capim decolnia em infuso com uma folha de Pagamorioba, acar e um ovo batido sobre o qualse deita o ch fervendo (6).

    Se, como observa Philippe Hamon na suaIntroduction lAnalyse du Descriptif, a lista a forma simples a que tende muitas vezeso enunciado descritivo (7), exatamente a

    esse extremo de objetivao que tende o rela-to de Gonalves Dias. Inclusive nas

    C. J. M art in,

    V i sta da Baa

    de Guanabara

    Tomada da Prai a

    do Russel, leo

    sobre tela (1850) ,

    col eo Ser gi o

    Fadel, Ri o

    de Janei r o

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    brevssimas descries de lugares. Como aque se encontra nas notas referentes ao dia 19de agosto: 4 h. da manh Chegamos a

    Tomar Partimos de Tomar s 8 h. 35' damanh. A Igreja sem janelas e sem fechadura os santos e alguns pobres paramentos fe-chados na sacristia. O professor no tem alu-nos. tudo misria e destruio. O Diretordos ndios de Marin est no Par no dei-xou quem fizesse as suas vezes (8). Contri-buindo a srie de travesses para acentuar oefeito de lista, a no-relao propositadaentre as anotaes, e o restrito interesse dopoeta, nesse relato, pela criao de entrechosou de uma unificao narrativa mais vasta.

    H, porm, algumas pequenas histrias,como a dos desentendimentos entre o coman-dante do Forte de So Gabriel e o vigrio ediretor de ndios local, como a da tormentaperto do stio de Auanauac, como a doJurupari, cuja viso por uma mulher acarreta-ria sua morte imediata para evitar mau agou-ro. E no faltam tambm alguns comentriosde cunho nitidamente pessoal. Exemplos: logono comeo do relato, a crtica (em francs, nodirio, acautelando-se contra a curiosidade

    alheia) ao comportamento do mdicoCanavarro, companheiro de expedio, quese julgava merecedor de um barco exclusivo;o tom condenatrio com que se refere aossargentos dos trabalhadores, em Abad, aseu ver senhores de faca e cutelo, que seaproveitam dos servios dos ndios a troco dedarem alguns quando preciso para serviopblico (9); o carinho, pelo contrrio, comque elogia demoradamente, numa anotaode Ponta do Remo, a gente pobre brasileira:Farinha discrio, e haver gente para tudo!Peixe seco j uma fortuna carne, isso vemdo cu. o mximo que pedem. E esse mxi-mo no ainda a mnima parte de qualquermiservel que nos vem da Europa (10).

    Ou, ainda, a exaltao, na ilha deJucuruaru, em 26 de setembro, diante de umpr-do-sol como poucas vezes me tem Deusconcedido presenciar. O que o leva, dessavez, a alongar-se na descrio e a uma suces-so de exclamaes: Quem resiste a umacena destas? Suicdio! Mas que importa!

    Quero tomar banho neste lugar. Ao menos nomeu livro de notas quero deixar uma pgina

    de lembrana deste mgico panorama (11).nfase explicvel quando se pensa no papelfundamental da natureza na sua obra potica,

    inesperada, porm, diante do tom expositivo,metdico, adotado no dirio.Mas Gonalves Dias se resguardaria a de

    maiores subjetivaes da vista ou do relato.No toa que foge, por exemplo, a um temato caro aos romnticos como o das runas.Freqente inclusive na sua poesia. Basta lem-brar a comparao da saudade romnticadonzela/ De roupas alvejantes/ Nas runas decastelo levantado, em A Saudade, ou adescrio do afeto como esttua erguida entrerunas, em Urge o Tempo. Ao contrrio,no relato da viagem pelo Rio Negro, descar-taria claramente, em nota do dia 25 de agosto,a tentao de enobrecer, por meio de umpaisagismo meditativo, por meio da imagemdas runas, o abandono local:

    2,40' Chegamos a Parauari reuniode umas 6 palhoas, ou mais, e igreja aban-donada. Goiabeiras por entre as matas. La-ranjeiras e limeiras cobertas de parasitas,mas ainda carregadas de frutos excelen-

    tes. Mamoeiros cujos frutos apodrecemno cho. Runas de grandes cidades ouedifcios ainda so monumentos, runasde palhoas, taperas, onde em dois diastudo desaparece debaixo da grama [pala-vra ilegvel] casas que caem antes que asportas de esteira tenham tempo de apo-drecer, que se feche o estreito caminho doroado, so as verdadeiras runas. Abiosno mato. Nem tivemos nimo para jantar.Largamos daqui s 4,5' da tarde (12).

    Trecho que parece dialogar criticamente,por exemplo, com a agradvel surpresa rela-tada por Nicolau Dreys, na suaNotcia Des-critiva da Provncia do Rio Grande de S.Pedro do Sul, ao se defrontar com fragmen-tos de vasilhas, peas de moeda de cobre,restos empoeirados (13) de uma vila aban-donada, runas, sinais de historicidadeonde julgava encontrar s natureza, em ter-ritrio, a seu ver, recm-surgido do nada,como o brasileiro. Da, de um lado, a expli-

    cao natural para a presena de tais restos(areias invasoras), de outro, uma quase

    8 Antnio Gonalves Dias,Dirio da Viagem ao RioNegro, op. cit., p. 386.

    9 Idem, ibidem, p. 388.

    10 Idem, ibidem, p. 399.

    11 Idem, ibidem, p. 413.

    12 Idem, ibidem, p. 389. Sobreas runas do novo, lem-bre-se, com relao a umperodo posterior da hist-ria do pas, a tese dedoutoramento Trem Fan-tasma apresentada porFrancisco Foot Hardman USP em 1986.

    13 Nicolau Dreys, Notcia Des-critiva da Provncia do RioGrande de S. Pedro do Sul,Porto Alegre, Ed. da Biblio-teca Rio-Grandense, 1927,pp. 110-1.

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    estetizao (Cousa admirvel!) imediata.Porque, se esses restos ganham interesse

    aos olhos de Dreys, pela aparente seme-lhana com runas de outro gnero, por umasbita monumentalizao do cenrio natural.Para Gonalves Dias, ao contrrio, essas ru-

    nas do que sequer tem tempo de envelhecer que seriam as verdadeiras. E longe de setornarem objeto de admirao, funcionam, noseu dirio, como registro de misria e des-truio.

    NO H OLHOS QUE CHEGUEM

    Outro texto que parece se opor, indireta-mente, nesse sentido, ao de Gonalves Dias, aViagem de Regresso de Mato Grosso Corte(1867), do Visconde de Taunay. A, no relatoreferente ao dia 2 de julho, trata-se, tambm,de runas, as de uma tapera importante, cons-tando de casas arruinadas e de um lindssimolaranjal, cuja histria se sabe, mas cujo efeito,na narrativa, diverso da admirao de Dreys edo desnimo de Gonalves Dias, de imediatasentimentalizao da vista:

    Essa fazenda pertencera a um coletor etinha sido abandonada por ocasio da pri-so do seu proprietrio, o qual fora levado

    de Santana a Cuiab em ferros por crimeprovado de prevaricao e desvio de di-

    nheiros pblicos. O aspecto de runas sempre melanclico; estas mais do queoutras quaisquer, pois com presteza po-voaram-se de fantasmas criados nas nar-rativas dos tropeiros, que fogem de talpouso, no s por causas extraordinrias

    como pelas cobras venenosas que j tmmatado a a mais de um imprudente (14).

    H uma perceptvel ambigidade de tomno trecho de Taunay. Se, de um lado, subli-nham-se a melancolia e os fantasmas, de ou-tro, desqualifica-se o antigo proprietrio esoma-se um medo bem concreto, de cobrasvenenosas, sensao de desalento provocadapelo abandono da fazenda. Prosaizaosugerida, mas deixada de lado, em seguida,

    diante da acumulao de motivos a mais demelancolia: a deteriorao de uma pitorescacapelinha, por haver morrido quem a cons-trura com grande custo e perseverana (15),o aspecto desgostoso, desgrenhado, da vivado dono da Fazenda do Vo, a viso do cre-psculo perto do Pouso das Perdizes, a des-coberta da sepultura de um oficial das forasde Mato Grosso, acometido de paralisia. Eseria junto a ela que os viajantes acabariampor passar a noite. Transformando-se, assim,as observaes finais referentes ao dia 3 de

    julho em variaes em torno do tema da tran-sitoriedade da vida: Ao lado do morto des-

    14 Alfredo dEscragnolle Tau-nay, Viagem de Regressode Mato Grosso Corte,in Viagens de Outrora, SoPaulo, Melhoramentos,1921, p. 54.

    15 Idem, ibidem.

    J. Needham e

    Wi ll iam Ouseley,

    Runa de Capela

    em So Gonalo

    (Bahia), l i t ografi a

    colorida do li vro de

    Ouseley Views in

    South Ameri ca...

    (L ondres, 1852),

    Biblioteca

    do I EB-USP

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    cansaram os vivos; companheiros de umanoite, frumos transitrio o sono que ele temeterno (16).

    H, na verdade, melancolia quase tpicanos quadros da natureza de Taunay. Com fre-qncia associada a descries do crepscu-lo. Como na primeira seo de Inocncia,quando parece que a solido alarga os seuslimites a essa hora do dia e se aperta deinexplicvel receio o corao (17) ou nocomentrio sobre A Tarde, includo emCus e Terras do Brasil, em que a ela se as-sociam uma ansiedade que tem o seu qu devoluptuoso, um esmorecimento de foras, umquebrantamento desanimado de quem buscaprolongar um gozo e no pode (18).

    Melancolia inerente ao entardecer, mas,de certo modo, ao prprio exerccio descriti-vo em geral. Como chama a ateno em ATarde: Mas como descrev-la, se nela malpousam os nossos olhos? (19). Ou quandose toma a Aurora como motivo: O espet-culo h pouco sereno e melanclico, trans-forma-se agora: deslumbrante. Para tantono h olhos que cheguem (20). No s pa-rece impossvel registrar aquilo que s o

    que passa, como o simples desejo de fixaode um lugar, viso ou momento do dia japontaria para a certeza de sua perda. Este oobjeto de reflexo que acompanha passo apasso o texto sobre O Rio Aquidauana, masque, por vezes, ocupa o primeiro plano dorelato: que a rpida contemplao de ta-manhos primores nos trazia a certeza de queos admirvamos pela primeira e ltima vez ede pronto nos incutia a saudade de logo per-dermos aquilo que ainda estava debaixo dosnossos olhos (21).

    Se as notas referentes aos dias 2 e 3 dejulho de 1867, naViagem de Regresso de MatoGrosso Corte, parecem retomar, ento,motivo especialmente caro a Taunay, propor-cionam, por outro lado, situao privilegiadapara que se observe como, mantida adominncia do descritivo, sedimentam-senexos narrativos em seus textos.

    A um primeiro olhar, seria possvel atri-buir apenas ao seu narrador tal funo. Por-que se, de um lado, comporta-se de modo

    extremamente metdico, registrando o coti-diano das expedies, inventariando cenas e

    tipos, quadros da natureza, itinerrios,objetos e bichos, e mantendo uma certa dis-tncia expositiva (da o emprego freqente

    de uma terceira pessoa hipottica nas descri-es: o viajante), de outro lado, empreendealguns exerccios de aproximao, entreme-ando episdios curiosos aos relatos. Como aqueda de um dos visitantes da Gruta deTapiruu num sumidouro de cerca de quatrometros; como a histria do viajante que ficoutempo demais numa banheira com guas ter-mais em As Caldas da Imperatriz e, depois,nem conseguiu se mover sozinho; como ashistrias de sucuris, de O Rio Aquidauana,e o relato de como Floriano Alves dos Santos,companheiro de viagem de Taunay, conse-guira, certa vez, escapar de uma delas.

    Voltando, porm, ao modo como se fixanota melanclica nas observaes referentesa 2 e 3 de julho da Viagem de Regresso deMato Grosso Corte, no um tipo espec-fico de figurao do narrador que a prolonga.Isso resultado, na verdade, de um acmulode dados descontnuos (a tapera em runas, acapela abandonada, o desalento de uma vi-va, o entardecer, a sepultura de um comba-

    tente), mas dotados de potencial emotivo se-melhante. De uma narratividade, uma cone-xo obtida paradoxalmente por uma srie depequenas descries independentes.

    FRONTEIRAS

    E se as runas de uma fazenda abandonadaaproximavam esse dirio da volta Corte dode Gonalves Dias sobre a viagem pelo RioNegro, outro tipo de runas, as de Miranda,aproxima, pelos quadros de guerra,A Retiradada Laguna (1871), de Taunay, da Caxias, queentre runas se lastima/ Que to tarde viesse oforte Lima, daMemria Histrica e Docu-mentada da Provncia do Maranho desde1839 at 1840, de Gonalves de Magalhes.

    Afastando-se, de sada, porm, tais rela-tos pelos tipos de combate de que tratam. Ode Gonalves de Magalhes procura historiara Balaiada, luta provincial, interna ao Imp-rio. O de Taunay, a Guerra do Paraguai, umconfronto externo, com pas limtrofe. Nos

    dois casos, porm, uma das preocupaescentrais no s do confronto, como de sua

    16 Idem, ibidem, p. 56.

    17 Idem, Inocncia,3aedio,Rio de Janeiro/So Paulo,Laemmert & Cia. Ed., 1896,p. 28.

    18 Idem, Cus e Terras doBrasil, 8aedio, So Pau-lo, Melhoramentos, p. 65.

    19 Idem, ibidem, p. 63.

    20 Idem, ibidem, p. 43.

    21 Idem, O Rio Aquidauana,in Viagens de Outrora, op.cit., p. 9.

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    Por vezes o modo mesmo de observaroutras terras parece servir de recurso de de-marcao, de singularizao do pas de ori-

    gem. interessante, nesse sentido, comoVarnhagen, por exemplo, numa breve descri-o de sua passagem pela Rssia, pela Suciae pela Dinamarca, enquanto delegado brasi-leiro e membro da comisso permanente doCongresso Estatstico de So Petersburgo,retorna, quando possvel, paisagem brasi-leira. Como termo de comparao ao falar,por exemplo, das fortalezas ilhadas que de-fendem Copenhague, a seu ver semelhan-tes nossa Rasa, com a diferena de seremcriadas pela arte desde os fundamentos (27).Como elemento a ser transformado da oprojeto de alguma altssima ponte, do morrode So Bento ilha das Cobras (28), inspi-

    rado nas pontes admirveis de Estocolmo.Ou como objeto inesperado de uma visita aomuseu de Etnografia de Copenhague, no qualse depara com ndios, negros, com frutos deum cajueiro, e porquinhos-da-ndia presen-tes nos grandes quadros a leo do pintor A.Eckhout, feitos no Brasil de 1641 a 1643, osquais so das primeiras pinturas executadasna Amrica daprs nature (29). Retornosanalgicos ou pictricos ao territrio brasi-leiro, em meio paisagem do norte da Euro-pa, bastante diversos da demarcao cruentade limites relatada por Taunay ou Gonalvesde Magalhes. De que particularmenteexemplar o trecho final do sexto captulo deA Retirada da Laguna, de Taunay:

    [...] de repente partiu de muitos lados aum tempo o grito: A fronteira!. Da emi-

    narrativa, com a questo das fronteiras.No sempre, no entanto, via testemunho

    de combates, que se figuram fronteiras nas

    narrativas de viagem. Gonalves Dias, porexemplo, percorre fortalezas em desintegra-o tanto do lado brasileiro, quanto dovenezuelano, na sua viagem pela Amaznia.Que os espanhis no tm fortaleza do ladode l, seno uma arruinada com que se noimportam hoje, e est caindo em runas (22),registra em 8 de setembro de 1861. E, no diaseguinte, sobre o que restava da fortaleza dosportugueses em Marabitanas: hoje dela sse tem o terraplano ou assento, os quartis pordetrs e seis peas de ferro (23). Auxiliados,todavia, por um igarap, situado atrs da po-voao, espcie de barreira, de furo naturalanti-invases. Barreira com a qual no conta-

    ria a regio prxima e pantanosa do forte deCocu, onde o inimigo poderia vir encober-to e atacar por terra (24), sem defesa.Fortes, serras, rios, pntanos e invases ape-nas hipotticas (j que no parecia haver in-vases da Venezuela a temer) (25), por meiodos quais se vai construindo, de modo incru-ento, nesse relato, quadro arquitetnico-na-tural de fronteira para o Imprio ao norte.

    Por vezes de longe, de fora, que se tentamvisualizar limites. Como na descrio cmico-epistolar de sua primeira viagem a Paris, em-preendida por Gonalves de Magalhes naCarta ao Meu Amigo Dr. Cndido BorgesMonteiro. A, medida que o navio se afasta, que se procura definir o horizonte da p-tria: Cabia aqui a pintura da imensa cadeia

    de montes, que em forma de enormssimo gi-gante guarda a barra da nossa terra (26).

    22 Antnio Gonalves Dias,Dirio da Viagem ao RioNegro, op. cit., p. 404.

    23 Idem, ibidem, p. 405.

    24 Idem, ibidem, p. 406.

    25 Idem, ibidem, p. 405.

    26 Domingos Jos Gonalvesde Magalhes, Carta aoMeu Amigo Dr. CndidoBorges Monteiro, in Poe-sias Avulsas, Rio de Janei-ro, B. L. Garnier, 1864, p.335.

    27 Francisco Adolfo de Var-nhagen, Em Servio aoNorte da Europa, Estocol-mo, P. A. Norstedt & Srer,1874, p. 5.

    28 Idem, ibidem, pp. 6-7.

    29 Idem, ibidem, p. 6.

    Sunqua, t r echo

    de Panorama do

    Rio de Janei r o,

    leo sobr e tela,

    col eo Pau lo Geyer,

    Rio de Janei r o

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    nncia em que se achavam, viam efetiva-mente a mata sombria do Apa, limite dasduas naes.

    Foi esse um momento solene, e essa umaemoo a que ningum pde escapar, ofi-ciais e soldados. Ver a fronteira que de-mandvamos impressionou a todos, comose fora uma surpresa. E era realmente novapara todos. Alguns podiam t-la visto j,mas com olhos de caador ou de campeiropara quem todo terreno o mesmo; a morparte s ouvira falar dela vagamente, e agoraa fronteira estava ali, diante de ns, comoponto de encontro dos dous povos arma-dos, como um campo de combate (30).

    No de estranhar que se dramatize par-ticularmente esse momento em que se reali-za, via narrativa, operao fundamental poltica imperial: a definio geogrfica,territorial, de nao a rigor ainda inexistente.Ali onde se defrontam com os paraguaios,onde se opem foras rivais, parece possvelfigurar uma imagem concreta, coesa, de Bra-sil. Da a solenidade, o carter de fecho deouro de um captulo atribudo por Taunay a

    essa descrio da fronteira paraguaia. bem mais difcil, para Magalhes, o tra-

    balho de demarcao. No s por se tratar deguerra civil ou pelos precrios laos entre asprovncias e o Estado imperial quela altura,mas, como expe em diversas ocasies, pelaerrncia caracterstica aos rebeldes. Como osrebeldes no defendiam ponto algum, comen-ta, no tinham acampamentos fixos, e fugiti-vos se apinhavam para os lados menos explo-rados, caindo sobre as fazendas para se refaze-

    rem do necessrio (31). Da a dificuldade dedefinir possveis nmeros, fronteiras para oconflito ou de mapear a regio por meio dele.J dissemos que nenhum mapa havia do pes-soal das nossas foras, mas por um clculoaproximativo calculava-se em quatro a cincomil homens; e menos se podia saber o exatonmero dos rebeldes (32), assinala, ainda,Gonalves de Magalhes no seu relato.

    Da encerr-lo, de modo triunfal, exata-mente com o mapeamento da provncia doMaranho. Relatado na voz de Caxias: man-

    dei organizar e corrigir o mapa da provnciacom os fragmentos que obtive de mos parti-

    culares, fiz melhorar a planta desta cidade[So Lus], e mandei levantar a de Caxiascom suas novas fortificaes e os mapas dos

    rios Itapucuru e Miarim (33).Mapeamento que seria reiterado em lin-

    guagem potica por Gonalves de Magalhesna Ode ao Pacificador do Maranho. O Ilmo.e Exmo. Sr. Coronel Luiz Alves de Lima , de1841. A, ao realar-lhe os feitos, vai, aomesmo tempo, recompondo o itinerrio daslutas travadas no Maranho e a topografiabsica da regio. Ei-lo j no Munim, L serestaura o Brejo!, Ei-lo na Vargem Gran-de!, Ei-lo em Viana!, Ei-lo emCaxias! (34): multiplicam-se os topnimosnuma espcie de sntese geogrfica do con-fronto e do poema. Associando-se, assim,decisivamente, na ode, como na MemriaHistrica e Documentada da Provncia doMaranho desde 1839 at 1840, relato, exer-ccio cartogrfico e consolidao imperial.

    Fora do terreno das expedies com finsmilitares, outro tipo de relato de viagem deromnticos brasileiros tambm parece ocu-par-se de questes de limites. Mas, nesse caso,ligadas considerao dos gneros do dis-

    curso literrio. Mais especificamente com-preenso do prprio relato de viagem, g-nero do qual textos como a carta a CndidoBorges Monteiro e a Infernal Comdia, deGonalves de Magalhes, os Excertos dasMemrias e Viagens do Coronel Bonifciode Amarante, de Arajo Porto-Alegre, e ACarteira de Meu Tioe sua continuao nasMemrias do Sobrinho de Meu Tio, deMacedo, funcionam como avessos cmicos.

    CONTRA-RELATOS

    A Carta ao Meu Amigo Dr. CndidoBorges Monteiro, de Gonalves de Maga-lhes, que parece tomar como modelo a CartaDirigida a Meu Amigo Joo de Deus PiresFerreira, em que lhe Descrevo a Minha Via-gem por Mar at Gnova (1790), de SousaCaldas, como j observou Antonio Candidoem O Discurso e a Cidade (35), relata, ora emprosa, ora em verso, mas sempre em tom joco-so, uma viagem martima do Rio de Janeiro a

    Paris em 1833. E se retoma diversos motivoscaractersticos das histrias do mar, como as

    30 Alfredo dEscragnolle Tau-nay, A Retirada da Laguna,traduo da 3aed. france-sa, Paris/Rio de Janeiro, H.Garnier, s/d, p. 45.

    31 Domingos Jos Gonalvesde Magalhes, MemriaHistrica e Documentadada Revoluo da Provnciado Maranho desde 1839at 1840, in Novos Estu-dosno23, maro de 1989,p. 40.

    32 Idem, ibidem.

    33 Luiz Alves de Lima. apudGonalves de Magalhes,Memria Histrica e Docu-mentada da Provncia doMaranho desde 1839 at1840, op. cit., p. 66.

    34 Domingos Jos Gonalvesde Magalhes, Ode ao Pa-cificador do Maranho. OIlmo. e Exmo. Sr. CoronelLuiz Alves de Lima,Maranho, Tipografia de I.J. Ferreira, Rua do Sol,1841, pp. 6-8.

    35 Cf. Antonio Candido, CartaMartima, in O Discurso e a

    Cidade, So Paulo, DuasCidades, 1993, em especi-al, pp. 221-2.

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    tempestades, figuras mitolgicas, calmarias, asolido no meio do oceano, ou os batismos dosque cruzam a linha do Equador, invariavel-

    mente para desmont-los de algum modo.Se parece ver uma corja de trites, quepensa descrever com palavras esdrxulas,/ eversos bem esquipticos, para, logo de-pois, sublinhar que se enganou: No soTrites, nem Netuno,/ So seis famosas ba-leias (36). Se a noite solitria convida omissivista a elevadas meditaes, para as-sim poetizando, bafejado pelo relento, emba-lado pelo navio (37) ir adormecendo prosai-camente. Se chama a ateno para a cerim-nia do batismo no mar para transform-laem comdia a bordo (38), com o fito nicode tirar dinheiro dos viajantes.

    Quanto ao perodo de calmaria, registra-do a princpio em versos, acaba por invadirliteralmente o texto, o narrador e seuinterlocutor potencial: l bocejando estesversos, e se dormires, no me darei por enfa-dado, porque tambm estou quase dormitan-do (39). E nem mesmo a tempestade de doisdias enfrentada no navio, cuja horrendamajestade parecia pedir uma descrio

    pomposa, escapa perspectiva humorstica.Anuncia-se, ento, diversas vezes, o relatodo temporal, mas apenas para interromp-lo,em seguida, pelos mais variados pretextos:desde a perda de um chapu do Chile neces-sidade de v-lo com vagar, para s depoisescrever. E, por fim, quando est para se ini-ciar a descrio Vou escrever a minha tem-pestade, enquanto a tenho na cabea (40) , avista-se terra e a exposio fica definitiva-mente interrompida: Ora graas a Deus queestamos no Canal da Mancha! (41).

    Tudo no navio, alis, submetido a incle-mente derriso: o beliche parece prateleira, opo, um bolo/ cor de tijolo, o caf suspeito/de favas feito, a sopa repugnante, o bulesujo, as lentilhas duras, os franguinhos ma-gros. E o prprio relato, apenas uma cartaescrita a bordo com o fim de matar o tempo (42).

    Trs anos depois, curiosamente no mes-mo ano do lanamento da revistaNiteri, omesmo Gonalves de Magalhes publica-ria outra viagem humorstica, outro texto

    com dico bastante diversa da dominanteem sua obra, o Episdio da Infernal Com-

    dia ou da Minha Viagem ao Inferno.Nesse caso, as brincadeiras comeam na

    folha de rosto, na indicao da tipografia res-

    ponsvel: Inferno, Rua do Fogo, canto da Ruado Sabo, 1836. E continuam no ocultamentoda autoria e na estruturao comicamente es-pecular do volume, no qual o prlogo, de Ara-jo Porto-Alegre, funciona, ele tambm, comouma viagem onrico-infernal, semelhana daque seria narrada na primeira seo Comome Achei no Inferno do relato de Maga-lhes. E como um comentrio, cheio de cortese desvios, do prprio processo de escrita dessahistria infernal.

    J o episdio de Gonalves de Magalhes, sobretudo, uma stira aos diplomatas re-presentantes do Imprio Brasileiro no exteri-or e aos mecanismos usuais de avaliao domrito intelectual. No Brasil, como sabes,qualquer zote um formado doutor seconceitua, Cuidam que no Brasil vale otalento,/ Que virtude, ou razo! Vejam queestrdios, Que o pedantismo no Brasil temsede, no Brasil moral grande asneira,/ Esem moral se pode at ser bispo (43): suce-dem-se os comentrios, deixando-se patente

    que a viagem pelo Inferno e a caricatura deum diplomata desqualificado para seu postoso, de fato, pretextos para se falar da vidaburocrtico-cultural do pas como uma esp-cie de mundo s avessas. Sobre o que, alis,no se deixa qualquer dvida. Coa terraInferno muito parecido, avisa, de sada,um dos demnios, cada nao tem seus re-presentantes (44). E exibe, para o viajante,do Brasil vrias cenas engraadas,/ toburlescas, que ao v-las todos riam (45).Dentre elas a vida e o fiel retrato de umdiplomata brasileiro, nos quais acaba por seconcentrar aInfernal Comdiade Gonalvesde Magalhes.

    Quanto aos Excertos das Memrias e Via-gens do Coronel Bonifcio de Amarante, deManuel de Arajo Porto-Alegre, teriam trsedies no intervalo de dez anos. A primeira,em 1848, na revistaris; a segunda, em livro,impresso, em 1852, na tipografia de Paula Brito;a terceira, no jornal A Marmota, em 1858.Aproveitando histrias, das mais diversas fon-

    tes, sobre a China, a Prsia, sobre experinciascom o magnetismo e o galvanismo, empreen-

    36 Domingos Jos Gonalvesde Magalhes, Carta aoMeu Amigo Dr. CndidoBorges Monteiro, op. cit.,p. 339.

    37 Idem, ibidem, p. 346.

    38 Idem, ibidem, p. 351.

    39 Idem, ibidem, p. 343.

    40 Idem, ibidem, p. 362.

    41 Idem, ibidem.

    42 Idem, ibidem, p. 359.

    43 Domingos Jos Gonalvesde Magalhes,Episdio daInfernal Comdia ou daMinha Viagem ao Inferno,Paris, Imprimerie deBeaut et Jubin, 1836, pp.50, 65 e 66.

    44 Idem, ibidem, p. 32.

    45 Idem, ibidem, p. 35.

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    de-se a uma breve compilao, dividida emcinco excertos (As Maravilhas doGalvanismo, Os Raios Engarrafados, O

    Magnetismo, Prodgios da Pintura Chine-sa, Maravilhas da Pintura Chinesa) eunificada em torno do Coronel Bonifcio deAmarante, que os teria relatado a partir de suasantigas lembranas de viagem.

    Da primeira publicao, em revista, sob opseudnimo de Noel, para as duas seguin-tes, sob a suposta edio de Tibrcio deAmarante, h modificaes significativas nos no modo de compilar as histrias, mas noprocesso de apropriao do gnero relato deviagem. Enquanto na primeira verso, porexemplo, quase todas as notas do editor gi-ram em torno da veracidade, que no lcitocontestar (46), dos casos singulares deBonifcio de Amarante, na segunda, em li-vro, brinca-se, com maior desenvoltura, como seu carter de memrias inventadas: dei-xemos de pregar aos peixinhos, que nos di-zem palavras loucas, orelhas moucas (47).

    Na primeira diz-se de Bonifcio que teriasido companheiro de armas de Napoleo eBolvar, na segunda comparado explicitamente

    ao Baro de Mnchhausen, com quem teriaestudado e viajado por algum tempo, e seu di-rio, em quatorze volumes in-folio, conside-rado igual Bblia em merecimento (48), umlivro que vale uma biblioteca inteira (49). Eque, nessa segunda publicao, passaria da res-ponsabilidade do compilador annimo da re-vistarispara a do sobrinho do Coronel, de cujocurrculo se destaca, j na folha de rosto, o fatode ser professor em Petpolis. Assim mesmo,sem r, chamando-se a ateno para o carterde peta das memrias.

    Ao mesmo tempo que se sublinha a peta,aumentam as referncias e crticas explcitasa coisas, no dos lugares visitados nas via-gens, mas da prpria terra de origem dosAmarante. O que se evidencia no encontro deTibrcio, em Pequim, com um sbio persa,velho amigo do tio, que discorre longamentesobre o Brasil, terra de macacos e de papa-gaios, qual faltaria o siso nacional. Da,a seu ver, imitar pouco o bom do velhomundo, falar-se mais do que se escreve,

    vestir-se europia vivendo-se na zona tr-rida, e, podendo ser uma nao livre, im-

    portar escravos e senhores (50). Na mesmalinha, comentrios sobre as maravilhas datelegrafia chinesa transformam-se em elogio

    centralizao, unificao imperial:

    Os liberais patriotas, que gritam contra acentralizao, sem saber o que ela , nem oque vale, ficariam de queixo cado vistados benefcios da telegrafia, que poupa tem-po e milhes, e planta num estado o belosonho da unidade de pensamento, fazendoda capital o crebro, e do imprio os mem-bros que se movem imediatamente (51).

    Justaposies da paisagem e da vida pol-tica locais aos personagens e vistas exticosreferidos nos relatos, que convertem, mesmoessas viagens de fantasia, em exerccios dedelimitao da nacionalidade e, por vezes, deafirmao poltica explcita do Imprio.

    Com a introduo do novo personagem,Tibrcio de Amarante, o que parece funda-mental, nas verses de 1852 e 1858 das me-mrias, o desdobramento dos excertos di-vulgados em 1848 em novas histrias e mai-ores comentrios aos casos contados por

    Bonifcio de Amarante. Somos dous agora,tio e sobrinho, Bonifcio e Tibrcio, afirmao ltimo, somos dous agora, Srs. Sabiches,e veremos se ainda se atrevem a duvidar (52).Duplicao literal, porque o sobrinho no selimita a compilar e anotar o que narradopelo tio, tornando-se, ele tambm, narradorde suas prprias experincias de viagem:

    [...] para poder lutar heroicamente pelaglria da famlia dos Amarante de Icara,pus-me a panos, sa pela barra fora, e vi-ajei trs anos consecutivos [...]. Andei portodos os lugares por onde andou, passeios mares que passou, e vi o que ele viu, emais ainda, porque vi que meu tio era ohomem mais modesto do mundo e umvaro de consumada prudncia. [...] edeixou margem uma parte sublime dassuas viagens e descobertas, que me pro-ponho de restituir e de comentar, para cabalinstruo da nossa gente que de tudo du-vida, e que tudo acredita (53).

    E se as histrias de Bonifcio de Amarante

    46 Manuel de Arajo Porto-Alegre (Noel), Extratos doDirio do Coronel Bonifciode Amarante, in ris, vol. I,

    Rio de Janeiro, Tipografiade L. A. Ferreira deMenezes, l848, p. 26.

    47 Idem (Tibrcio de Ama-rante), Excertos das Mem-rias e Viagens do CoronelBonifcio de Amarante,Riode Janeiro, Tipografia daEmpresa Dous de Dezem-bro, de Paula Brito, 1852,p. 19.

    48 A Marmota, 5/nov./1858.

    49 Idem, 9/nov./1858.

    50 Idem, ibidem.

    51 Idem, 3/dez./1858.

    52 Idem, 5/nov./1858.

    53 Idem, ibidem.

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    apontam sobretudo para o carter fantasiosode suas viagens, as interpolaes do sobri-nho, a duplicao dos narradores-viajantes, a

    nfase na descontinuidade dos relatos que-bram com a autoridade expositiva, com adominncia da descrio metdica, caracte-rsticas em especial aos registros de expedi-es cientficas, e projetam a figura mesmado narrador, e no as paisagens ou os costu-mes de que fala, ao primeiro plano dessesExcertos das Memrias e Viagens do Coro-nel Bonifcio de Amarante.

    Coisa semelhante ocorreria emA Cartei-ra de Meu Tioe nasMemrias do Sobrinhode Meu Tio, de Macedo. No toa, alis,dedica-se boa parte da introduo ao primei-ro livro a uma discusso sobre o eu. Dis-cusso que se, por um lado, chama a atenopara a centralidade da voz do narrador, desuas muitas digresses, nessas viagens pelaprpria terra, por outro, atribui a essa nfaseuma funo nitidamente crtica: Eu sigo aslies dos mestres. No pronome EUse resu-me atualmente toda poltica e toda moral: certo que estes conselhos devem ser pratica-dos, mas no confessados: bem sei, bem sei,

    isso assim [...] (54).Eu autodefinido, mais adiante, como

    aprendiz de poltico, como sobrinho de meutio, e mais nada. E, segundo diz, carinhosa-mente, o prprio tio, impostor e atrevido. Ecujo itinerrio pas adentro, para observ-lo everificar, a mando do tio, se a Constituio doImprio era, de fato, letra morta, pareciamarcado por desterritorializao semelhanteao seu propositado anonimato autoral. Dano ser possvel indicar sequer o ponto departida do sobrinho do tio com exatido,contrariando a exigncia caracterstica snarrativas de viagem de dados geogrficosprecisos: a casa de meu respeitvel tio umaespcie de velho castelo encantado, cuja situ-ao geogrfica no me possvel assinalarprecisamente (55).

    , pois, assim, sem dar nome aos lugarespercorridos o nome uma voz com que seencobrem as idias (56), diz, a certa altura,o narrador macediano que, emA Carteirade Meu Tio, exibem-se o descaso lei, o des-

    prezo s garantias do cidado e o desleixo daadministrao provincial. E emMemrias do

    Sobrinho de Meu Tiose fixa nas formas deacesso aos cargos pblicos, tendo em vistaidntico quadro poltico. Tudo isso em meio

    a diversas viagens pela prpria terra. No pri-meiro livro, a cavalo, e em companhia doCompadre Pacincia, homem incorruptvel,espcie de avesso de todos os que cruzam oseu caminho. No segundo, percursos interes-sados, ligados s tentativas do sobrinho-narrador de se firmar numa carreira poltica,que, no entanto, a todo momento, parece es-capar-lhe ao controle.

    Viagens, na verdade meio sem paisagem,e muito mais pela vida poltica do que por umterritrio propriamente dito, que, todavia, nodeixam de registrar vista a rigor pouco vari-ada (quer subam uns, quer subam outros, acousa anda, pouco mais ou menos, sempre domesmo modo) (57), e passvel de determi-nao, em sonhos: parecia-se com o Impriodo Brasil, como as duas mos de um mesmohomem (58). Geografia bastante prxima,portanto, do inferno de Gonalves de Ma-galhes e, por vezes, das terras longnquas vide os comentrios do sbio persa sobre oBrasil ou as possveis aplicaes imperiais da

    telegrafia chinesa descritas por Bonifcio eTibrcio de Amarante.

    Textos que se aproximam no s por essageografia implcita, ou pelo carter fantasiosoou humorstico de seus itinerrios, pelo tomsatrico ou pela amplificao da voz narratorial,mas por uma desmontagem semelhante dosrelatos de viagem e por um repertrio comum,de que se destacam aqui dois topoi: o cavalo eo tio. No s por sua freqncia, mas por figu-rarem respectivamente o prprio processo

    narrativo e, pelo avesso, a noo mesma deautoria no romantismo brasileiro.

    CAVALOS DE PAU

    A descrio da montaria , na verdade, qua-se obrigatria nos relatos de viagens por terra.Lembrem-se, nesse sentido, os elogios ao burroPaissandu nosDias de Guerra e de Serto, deTaunay, as proezas do corcel lituano nasAven-turas do Baro de Mnchhausen, ou a transfor-mao, na Viagem Roda do Meu Quarto, de

    Xavier de Maistre, de uma janela em cavalo. tambm como resultado de uma srie de

    54 Joaquim Manuel de Ma-cedo, A Carteira de MeuTio, Rio de Janeiro, Tipo-grafia da Emp. Dous de De-zembro, de Paula Brito,1855, 1o Folheto, p. 2.

    55 Idem, ibidem, p. 23.

    56 Idem, ibidem, p. 79.

    57 Idem, ibidem, p. 89.

    58 Idem, ibidem, 2oFolheto,p. 61.

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    transformaes que aparece uma montaria noPrlogo, de Arajo Porto-Alegre, ao epi-sdio infernal de Gonalves de Magalhes.

    Srie iniciada depois que Mata-Zombando,autor do prlogo, se v, em sonhos, no alto doPo de Acar, diante de um diabo. E este semetamorfoseia sucessivamente em papagaio,sabi, tucano, num rio cheio de tubares epeixinhos, de cujos ovos brotam raposas, ra-tos, cavalos, potros e, afinal, um burro. Eque burro to desavergonhado!, comentaMata-Zombando, que seria acordado por ele,Porque em lugar de andar como andam osburros, no; veio de revs como caranguejo,e sela-me um couce na boca do estmago, eas costelas rincharam com doresagudssimas (59).

    O que caracteriza esse burro nascido deum peixe? Um modo de andar: de revs. Einfluncia decisiva no andamento narrativo:interrompe um sonho e impele Mata-Zom-bando, acordando-o, leitura da InfernalComdia. Descontinuidade e reverso quemarcariam igualmente sobretudo Peo aPalavra, o prlogo ao texto de Magalhes.Nele Porto-Alegre ensaia, a princpio, o que

    chama de estilo de juiz de Paz, logo inter-rompido por alguns Fora! Fora!, A hist-ria outra, meus amigos! (60). Mas essa outrahistria se perde em reticncias. E, tendo emvista que os amados leitores esperam o re-sultado da obra, comea-se a contar um so-nho, cortado, por sua vez, pelo coice do bur-ro. Passa-se, ento, a falar de um outro prlo-go, o da prpriaInfernal Comdia. Isto : otexto se volta sobre si mesmo, j que ele oprlogo do livro em questo. E, como o burroque o derruba, seu movimento de revs.

    Montaria igualmente curiosa, presente nou-tro texto de Porto-Alegre, os Excertos das Me-mrias e Viagens do Coronel Bonifcio deAmarante, o cavalo morto e ressuscitado, numaexperincia cientfica, pelo Doutor Galvani, deque se utiliza muitas vezes o Coronel Bonifcioem passeios pelos arredores de Milo. O animalapareceria, alis, logo no primeiro dos cincoexcertos (As Maravilhas do Galvanismo), deque se compem as memrias.

    Quanto a esse cavalo galvanizado, o que

    parece distingui-lo , de um lado, a condiode defunto, de outro, o fato de ser movido de

    fora, por uma caixa e fios metlicos atados ssuas extremidades. De que modo figura, en-to, nesse caso, o texto a que pertence? Como

    ele, seu antigo proprietrio, o CoronelBonifcio est morto. E, como ele, tambm,teve suas notas de viagem divulgadas por aoexterna do sobrinho, que acrescenta a elas,ainda, alguns comentrios seus. , alis, essaoscilao entre as notas de Bonifcio e as deTibrcio, que as comentam e delas se separampor sinal tipogrfico previamente indicado aoleitor, que move a narrativa.

    J o sobrinho dos livros de Macedo trans-forma sua digresso sobre o cavalo ruo-quei-mado, emprestado pelo tio para sua viagem,numa espcie deportrait-chargedo animal:pescoo de ganso, cauda de carneiro, ossossalientes como espingardas, ancas que lem-bram uma ladeira, olhos de boi, uma pipa debarriga, ventas murchas. Alm disso, gluto,incapaz de rinchar e dar coice, de marchar etrotar. Ou, na sntese do narrador macediano:

    O cavalo do meu tio uma preguia-monstro com cascos nos ps, crinas nopescoo e cabea de trs palmos do foci-

    nho s orelhas: cavalinho que, se noanda para trs como o caranguejo, estpelo menos no caso da poltica do nossopas, pois que, suba quem subir, est sem-pre no mesmo lugar, ou no sai de umcrculo vicioso (61).

    Ao contrrio do burro que derruba o Mata-Zombando daInfernal Comdia, o ruo-quei-mado deA Carteira de Meu Tiono anda paratrs. Mas sugere narrativa situao igual-mente curiosa: a imobilidade. A rigor incom-patvel com o fato de tratar-se do relato deuma viagem pelo pas, tendo a Constituiocomo guia. Adequada, porm, quando sepensa que a sucesso de episdios do percur-so parece reduzir-se a um nico mote: desres-peita-se a Constituio no Brasil de 1855. Ouquando se pensa no andamento concntricodo livro. No achatamento de tudo que noseja a voz do narrador.

    Perguntamo-nos se este viajante algumavez chegar ao porto (62): o comentrio

    presente nasNoites de Outubro, de Nerval,parecendo caber, na medida, a esse narrador-

    59 Manuel de Arajo Porto-Alegre (Mata-Zombando),Peo a Palavra, in D. J.Gonalves de Magalhes,Episdio da Infernal Com-dia ou da Minha Viagem aoInferno, op. cit., p. 13.

    60 Idem, ibidem, p. 6.

    61 Joaquim Manuel de Ma-cedo, A Carteira de MeuTio, 1Folheto, p. 33.

    62 Grard de Nerval, As Noi-

    tes de Outubro, trad. Ant-nio Gonalves, Lisboa,Vega, s/d, p.18.

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    identidade autoral. Ou de Arajo Porto-Ale-gre ter trocado o compilador em terceirapessoa da primeira verso dos Excertos do

    Coronel Bonifcio Amarante, publicada narevistaris, pelo at ento inexistente Tenen-te Tibrcio de Amarante, sobrinho-narrador,o editor das suas obras, eu, ou no eu (64),como se autodefine, caricaturando Fichte,quando da edio em livro, em 1852.

    Eu, ou no eu que se aproxima da recusade autoria de que fala o Mata-Zombando doprlogo, ainda de 1836, de Porto-Alegre parao episdio infernal de Magalhes: Esta obrano tem autor, aquele que a lana no mundono mais que um taqugrafo que a apanhoudurante seu desenvolvimento (65). Ou danfase no prprio anonimato por parte do so-brinho-do-tio de Macedo: desafio a que medistingam e me reconheam no meio do formi-gueiro dos sobrinhos de seus tios que hoje emdia superabundam nas altas escalas sociais, enas mais brilhantes posies oficiais (66).

    Se o comentrio de Mata-Zombando lem-bra o conjunto de manuscritos achados, his-trias ouvidas de um outro, ou autores que sepassam por editores, to em voga no roman-

    tismo, como assinala Daniel Sangsue emLeRcit Excentrique (67), o que introduz asMemrias do Sobrinho de Meu Tiobusca, decerto modo, na prtica do apadrinhamento, arazo para essa recusa de um nome prpriopor parte de seu narrador.

    Recusa a dar o prprio nome, alegaode no-autoria, de um lado; expanso do dis-curso narratorial no interior da fico ro-mntica, de outro. Movimento oposto que-le com que se procura estabilizar, via relatos

    naturalistas, o ponto de mira do narrador,ainda na primeira metade do sculo, nosentido da formao de uma conscinciacrtica da experincia narrativa oitocentistaque tendem esses contra-relatos. Lembre-se, no entanto, que nem Gonalves de Maga-lhes, nem Arajo Porto-Alegre, nem Joa-quim Manuel de Macedo reforariam essanota reflexiva ao longo de sua obra. Caben-do a Machado de Assis essa tarefa. E umainteligente releitura das notas desses sobri-nhos de seus tios, de importncia decisiva

    na idealizao sobretudo das MemriasPstumas de Brs Cubas.

    viajante de Macedo, cujas digresses sobre-pem-se a qualquer itinerrio. No queA Car-teira de Meu Tioe asMemrias do Sobrinho

    de Meu Tioparecem dialogar diretamente comtoda uma srie de contra-relatos, marcadosexatamente pela nfase no narrador e pelaminimizao da histria propriamente dita,como Viagem Roda do Meu Quarto, deXavier de Maistre, Viagens na Minha Terra,de Almeida Garrett,As Noites de Outubro, deNerval, ou Viagem Roda do Meu Jardim, deAlphonse Karr.

    H, ento, nessas verses crticas do rela-to de viagem, produzidas no romantismo bra-sileiro por Gonalves de Magalhes, ArajoPorto-Alegre e Joaquim Manuel de Macedo,uma sucesso de imagens eqestres que pare-ce apontar diretamente para sua fonte: ohobby-horsedo Tristram Shandy, de Sterne.Em especial, talvez, para uma definio daprpria narrativa, via cavalinho de pau,dirigida ao leitor, j quase ao final do livro:[...] se bem vos lembrais, o meu cavalo debrinquedo no um animal malvolo; notem plo que seja, ou feies, de asno. uma pequena potranca folgaz que vos carre-

    ga neste momento [...] (63).E exatamente esse modo folgazo de

    carregar o leitor que o esttico ruo-queima-do de Macedo, o burro-caranguejo e o cavalogalvanizado dos textos de Porto-Alegre es-foram-se em figurar.

    Assim como os vrios no-autores e ossobrinhos-de-tios em torno dos quais se cons-troem esses contra-relatos. Nesse caso, po-rm, se funcionam como verses auto-irni-cas da imagem autoral, parecem apontar igual-

    mente, para certa conscincia, por parte dosescritores romnticos brasileiros, de sua res-trita autonomia intelectual e para ntida inse-gurana com relao prpria funo.

    O SOBRINHO DO TIO

    A figura pode ter sido tomada de emprs-timo a Diderot, Tpfer, ao prlogo de LesIllumins, de Nerval, ao tio de La Fe auxMiettes, de Nodier, ou ao prprio Tio Toby,de Sterne. A fonte no explicaria, no entanto,

    o fato de essas viagens crticas se iniciareminevitavelmente com discusses em torno da

    63 Laurence Sterne, A Vida eas Opinies do CavalheiroTristram Shandy, trad.Jos Paulo Paes, Rio deJaneiro, Nova Fronteira,1984, p. 564.

    64 A Marmota, 5/nov./1858.

    65 Manuel de Arajo Porto-Alegre (Mata-Zombando),Peo a Palavra, op. cit.,p. 16.

    66 Joaquim Manuel de Ma-cedo, Memrias do Sobri-nho de Meu Tio, Rio de Ja-neiro, Tip. Universal deLaemmert, 1867. Tomo I,p.xxix-xxx.

    67 Ver, sobre os manuscri-tos achados e sobre asnarrativas excntricasem geral, o trabalho deDaniel Sangsue, Le RcitExcentrique (Paris, JosCorti, 1987). Sobre a nar-rativa romanesca como um

    filho ilegtimo de que nose quer assumir a paterni-dade, cf. p. 53.