ricouer identidade pessoal

Upload: diogo-marques

Post on 25-Feb-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    1/14

    MARCOSJOSALVESLISBOA

    Pontifcia Universidade Catlicade Campinas (PUC-Campinas)marcoslisboa@puc-campinas.

    edu.br

    ResumoO presente artigo examina os conceitos de identidadenarrativa e de alteridade na obra de Paul Ricoeur. A questo daidentidade narrativa abordada ele, inicialmente, em Tempo enarrativae retomada em Si-mesmo como outro. a resposta questo quem voc? e implica, necessariamente, a narrativada vida porque a pessoa o que ela fez e o que ela sofreu, e na tarefa de complexicao da noo de sujeito que est, demodo decisivo, a compreenso da alteridade ou do outro. O ou-tro, no entanto, na tradio metafsica recusado e esquecidoda Antiguidade Contemporaneidade. Por essa razo, o presen-te texto objetiva examinar a questo da narrativa e da identida-de pessoal, em Ricoeur, no quadro de uma meditao sobre aalteridade luz de uma anlise hermenutico-fenomenolgicaricoeuriana nas obras Tempo e narrativa, Osi-mesmo como umoutroe Do texto ao.

    Palavras-chave , , -, .

    Abstract This paper discusses the concept of Narrative Identityand Otherness in the work of Paul Ricoeur. The concept of nar-rative identity is initially approached by Ricoeur in Time and nar-rativeand then reviewed in Oneself as another. It is the answerto the question: Who are you?. The answer to such questionnecessarily implies the narrative of life since the person is whathe/she did and suered. The eort to deepen the notion ofsubject is absolutely decisive to a proper understanding of theOther and of Otherness itself. The Other, however, in the

    metaphysical tradition, is rejected and forgotten from ancient tocontemporary philosophy. Therefore, this paper aims to exam-ine this question of narrative and personal identity in Ricoeursthought, as part of a meditation on otherness guided by Ricoeurhermeneutic phenomenological analysis in his books Time andNarrative, Oneself as Anotherand From the text to action.Keywords , , , .

    O CONCEITODEIDENTIDADENARRATIVAEAALTERIDADENAOBRADEPAULRICOEUR:APROXIMAES

    The concept of narrative identity and otherness in

    Paul Ricoeur work: approaches

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    2/14

    100Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    Introduo

    Dada a densidade e complexidade doprojeto losco ricoeuriano, estareexo objetiva, de modo sucinto,examina o conceito de identidade narrativa e

    sua relao com o de alteridade nas obras deRicoeur, Tempo e narrativa, Osi-mesmo comoum outroe Do texto ao. Assim, a estruturadesta anlise limita-se a estes conceitos, suasvinculaes e implicaes ticas.

    O termo identidade aqui tomado nosentido de uma categoria da prtica, isto ,tica. Dizer a identidade de um indivduo oude uma comunidade responder questoquem fez tal ao?, ou, quem o seu agen-te, o seu autor? Essa questo respondida,

    primeiro, nomeando-se algum, isto , desig-nando-o por um nome prprio. Mas qual osuporte da permanncia do nome prprio?O que justica considerar o sujeito da ao,assim designado por seu nome, como o mes-mo ao longo de toda uma vida e que se es-tende do nascimento morte? A resposta spode ser narrativa. A identidade do quemapenas, portanto, uma identidade narrativa(RICOEUR, 1997, p. 425). O conceito de identi-dade narrativa passa, obrigatoriamente, peladiscusso da relao entre identidade idem eidentidade ipse na obra Soi-Mme comme unautre (RICOEUR, 1990).

    A discusso inicial acerca da noo dosi-mesmo, em Ricoeur, isto , a proposiode uma soluo ao problema do cogito car-tesiano e do anticogito nietzshiano, apontapara a necessidade imperativa de reconhecera importncia do outro de si-mesmo nesseprocesso de complexicao da noo de su-

    jeito. Este reconhecimento est circunscrito especicidade do ramo da tica, uma vezque implica mediao por elementos que su-gerem a presena do outro, a saber: os sm-bolos da cultura, a histria narrativa de si oude co, pelas representaes, pelas aes,pela linguagem, as relaes interpessoais ouinstitucionais, ou pelo desejo.

    No entanto, a tradio metafsica temrecusado a noo de alteridade nos termos doidealismo, da ps-fenomenologia ou do estru-

    turalismo. O outro sucumbe s contribuiesloscas de Descartes e Nietzsche, impli-cando uma ciso, separao, um vazio entreos termos o mesmo e o outro. Deste modo,como j dissemos anteriormente, a presentereexo objetiva examinar os conceitos deidentidade, em especial, a identidade narra-tiva na constituio de uma identidade ticavinculada alteridade.

    Identidade narrativa e identidadetica

    Por identidade, Aristteles arma naMetafsica:

    com efeito, aquelas coisas cuja ma-

    tria uma, ou em espcie ou emnmero, so chamadas de idnti-cas, e tambm aquelas cuja subs-tncia uma. Por conseguinte, evidente que a identidade , dequalquer modo, uma unidade, sejaporque esta se rera a uma nicacoisa considerada duas, por exem-plo, quando se diz que a coisa idntica a si mesma, visto que setoma uma coisa como duas. (ARIS-

    TTELES, 2005,p. 217-219).

    Esta denio importante para o de-senvolvimento do projeto tico-losco em-preendido por Ricoeur, que, em suas obrasTemps et rcit (RICOEUR, 1985)1 e Soi-mmecomme um autre (RICOEUR, 1990)2 pretendeconferir um signicado forte para o conceitode identidade.

    Segundo Dartigues, em Ricoeur, a

    identidade narrativa implica a narrao deuma vida que indica o contexto das aes esituaes a partir do qual podemos identi-car a pessoa. A pessoa o que ela faz e o que

    1 Para a realizao deste trabalho recorremos traduo em portugus de Roberto Leal Ferreira(RICOEUR, 1997).

    2 Para a realizao deste trabalho recorremos traduo para o portugus de Lucy Moreira Csar(RICOEUR, 1994).

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    3/14

    101Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    sofreu (DARTIGUES, 1997, p.19).3 Podemos,pois, caracterizar, em primeiro lugar, a iden-tidade pessoal como aquilo que nos faz reco-nhecer o indivduo como sendo ele prprio apartir de um conjunto de traos que o individu-alizam, isto , por meio de caractersticas fsi-cas, psicolgicas ou, ainda, por seu carter, suandole, sua disposio interior (vontade), suasvirtudes, motivos, intenes e por suas aesnum determinado contexto histrico-cultural.No entanto, esta uma caracterizao prviado conceito de identidade que padece da faltade articulao entre o carter descritivo, pres-critivo e histrico da identidade e que o pre-sente trabalho pretende examinar.

    A problemtica da identicao pessoal

    ou coletiva implica uma questo de fundo queorientar este trabalho, a saber: o pronomerelativo quem. Desvendar este quem acarre-ta, necessariamente, o exame da importnciados conceitos de ascripo e deimputao, deque trataremos adiante.

    A primeira referncia noo de iden-ticao, realizada por Ricoeur nos primei-ros estudos de Soi-mme comme un autre,aparece quando ele percorre o itinerrio dalosoa analtica. Em outras palavras, o pen-

    sador francs aborda as aporias da linguagemno processo de identicao dos indivduos.Ricoeur arma que a linguagem comportamontagens especcas que nos orientam paradesignar indivduos (RICOEUR, 1994a, p.40).Esta abordagem denominada descritiva.

    A segunda aproximao relativa ao temaque nos propusemos estudar, a identidade, de cunho prescritivo. Isto quer dizer que nobasta tratar o problema da identidade somen-

    te no plano lgico e epistemolgico da an-lise do discurso e da ao. de fundamentalimportncia, portanto, relacionar o autor e aao. Diz Ricoeur quea algum prescritoagir em conformidade com esta ou aquela re-gra de ao (ibid., p.121).

    3 implique le rcit de la vie qui indique le contexte desactions et situations partir duquel nous pouvonsidentiier la persone. La persone est ce quelle fait et cequelle a subi. Traduo de Constana Marcondes Csar.

    Na busca da identidade pessoal, a narra-tiva constitui objeto de reexo no quinto e nosexto estudo de Soi-mme comme un autre (Aidentidade pessoal e a identidade narrativa; O sie a identidade narrativa). No curso desta anli-se, retomada a discusso da dimenso tem-poral, tanto do sujeito quanto de sua ao, quej estava implicada em Temps et Rcit.

    Diz Ricoeur sobre o exame da importn-cia do conceito de identidade:

    abordagens indiretas da reexoproposta pela losoa analtica,pelo exame da primeira determi-nao da ipseidade atravs doconfronto com a mesmidade e da

    segunda determinao da ipseida-de pela dialtica com a alteridade.(ibid., p.347).

    Em outras palavras, as trs problemti-cas que compem a obra Soi-mme comme unautre fundamentam a hermenutica do si.

    A identidade narrativa elabora uma res-posta s questes quem voc? e quemsou eu?. Para Ricoeur, este um aspectoimportante do problema hermenutico e de

    sua circunscrio no debate tico contempo-rneo que neste artigo ser apenas sugerido.

    No exame do conceito de identidade,deparamos-nos, segundo Ricoeur, com seusdois usos4na lngua latina: ideme ipse.O termoidem, no caso, nominativo masculino, o pro-nome demonstrativo que se traduz por mesmo.Por sua vez, o termo ipse empregado para re-forar o pronome demonstrativo no caso aci-ma. Em outras palavras, idemserve para identi-

    car, para dizer que igual, ao passo que ipsereforativo; por exemplo: idem rex (mesmo reie no outro)e ipse rex (o prprio rei).5

    4 A identidade como mesmidade, em latim idem;ingls: sameness; alemo: Gleichheit. A identidadecomo ipseidade, por sua vez, em latim ipse; emingls: selfood; alemo: Selbstheit (cf. RICOEUR,1994, p. 140).

    5 Cabe ressaltar que o pronome de terceira pessoa nopossui nominativo, na gramtica latina. Neste caso,o pronome demonstrativo exerce esta funo. Cf.NAPOLEO M. DE ALMEIDA. Gramtica Latina, p. 163.

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    4/14

    102Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    Colocando de lado as questes refe-rentes semntica dos termos, a identidadeidem signica, ao mesmo tempo, unicidadee similitude, que representam valor num-ricoe qualitativo. Ambos os termos no im-plicam, diretamente, a derrelio do tempoe, consequentemente, so critrios poucoconsistentes para reidenticar a coisa ou apessoa. A fragilidade deste critrio de simili-tudesugere uma terceira noo e, concomi-tantemente, outro critrio de identidade: acontinuidade ininterrupta.

    Este terceiro sentido do conceito deidentidade caracteriza-se como o itinerrio deum ser do nascimento inelutvel condiode sua existncia, a morte, e, por introduzir

    a diferena, o distanciamento e, tambm, oquarto signicado da identidade mesmidade:a permanncia no tempo.

    O quarto sentido da identidade idem,a permanncia no tempo, arma Ricoeur,revela uma descontinuidade em relao sdeterminaes anteriores (unidade, similitu-de, numrica) porque estas no implicam aquesto do tempo.

    A identidade, para nosso autor, umprincpio de permanncia no tempo. Esta per-

    manncia, porm, deixa-se ligar noo desubstncia,6substrato imutvel.Diz Ricoeur:

    a ideia de estrutura, oposta deacontecimento, responde a essecritrio de identidade, por maisforte que possa ser administrado;ela conrma o carter relacionalda identidade que no aparecia naantiga frmula da substncia mas

    que Kant restabelece, classicandoa substncia entre as categorias derelao, como condio de possibi-lidade de pensar a mudana comochegando a alguma coisa que nomuda. (RICOEUR, 1994, p. 142.).

    6 Ricoeur examina a contribuio losca de Kantsobre a formulao do conceito de substncia(Beharrlichkeit) como categoria de relao. cf.RICOEUR, 1994, p. 142.

    A partir desta determinao surgem osverdadeiros obstculos compreenso doconceito de identidade porque a ipseida-de, o si,parece recobrir o mesmo espao desentido7 (RICOEUR, 1988d, p. 297). Almdisso, esta noo no a mesma da mesmi-

    dadeporque seu desenvolvimento passa, ne-cessariamente, pela resposta do si questoquem?, citada anteriormente, no plano daao: Quem fez isto? Quem fez aquilo?Quem o autor desta ou daquela ao?

    atribuio de uma ao a um agenteou a seu autor, Ricoeur denomina ascripo.8Este termo sugere outro conceito caro obraricoeuriana, como bem examinou Olivier Mon-gin (cf. DANESE, 1993, p. 32 et seq.): atesta-o,que pode receber a signicao moral de

    imputao. O verbo imputar derivado dostermos latinos putaree imputatio,e signica,segundo nosso autor em O justo (1995e), queimputar uma ao a algum atribu-la comosendo o seu verdadeiro autor, coloc-la, porassim dizer, na sua conta, e tornar esse algumresponsvel por ela (RICOEUR, 1995e, p. 38).

    Assim, visto que o mesmoou a mesmida-dese sobrepe ao siou ipseidade, insistimos,no somente sobre a distino gramatical,epistemolgica e lgica do conceito de iden-

    tidade que decorrem da anlise da obra donosso autor, mas, principalmente, ontolgicaque separa idemde ipse. Desta forma, Ricoeurconcorda com Heidegger:

    por dizer que a questo da Selbstheitpertence esfera de problemas re-levantes, assim, da entidade que eledenomina Daseine que se caracterizapela capacidade de se interrogar so-bre seu prprio modo de sere, assimsendo, se reportar ao ser enquantoser.9(RICOEUR, 1988d, p. 298).

    7 Do original: [...] lipsit, le soi, parat couvrir lemme espace de sens. (traduo nossa)

    8 O termo ascripo Ricoeur toma emprestado deHart (1948).

    9 Do original: [...] pour dire que la question de laSelbstheit appartient la sphre de problmesrelevant de la sorte dentit quil appelle Dasein etquil caractrise par la capacit de sinterroger sur sonpropre mode dtre et ainsi de se rapporter ltre emtant qutre. (Traduo nossa)

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    5/14

    103Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    Por Daseintambm podemos entendero ser que existe compreendendo.

    A Selbstheit, ou ipseidade, ento, coin-cide com o ser que existe compreendendo, oDasein,assim como as categorias, no sentidokantiano, devem ser pensadas em relaodas Vorhanden e Zurhanden, ou a mesmida-de. Segundo Ricoeur, o exame destes concei-tos heideggerianos revela a distino entreideme ipse.

    O ponto de interseo entre o sie o mes-moest na permanncia no tempo. Nesta re-gio, do lado ascripoprevalece o conceitode carter, e, do outro, o da imputao,cujaprimazia da noo de delidade a si, ou a ex-presso Selbstndigkeit10,de Heidegger.

    Reconhecemos a diculdade da ques-to, mas, para elucid-la, a anlise ricoeurianaapresenta dois modelos de permanncia notempoque devem ser compreendidos quan-do nos referimos a ns mesmos: o cartere apalavra dada.

    O que Ricoeur entende por carter? Paranosso autor, o carter outro modelo de per-manncia no tempo, no qual as identidadesideme ipseno se distinguem uma da outra.

    Na losoa moral de Aristteles, o ter-

    mo ethosdesigna o carter como disposioadquirida (ecsis=echein) pelo hbito. Esteconceito, por sua vez, implica a dimenso dotempo e coloca em questo a imutabilidadedo carter.(RICOEUR, 1990, p. 150). Des-te modo, para Aristteles, o hbito confereuma signicao histrica ao carter porquetransforma a conduta do homem por meio dacontinuidade de outras aes praticadas nohorizonte de uma vida inteira (RICOEUR,

    1994a, passim). No entanto, a inovao pro-movida pelo hbito abolida quando sedi-mentada, isto , quando se torna capacidadeadquirida (durvel).

    nesta relao dialtica, entre inovaoe sedimentao no processo de formao docarter, que a identidade idemrecobre a iden-tidade ipse. Assim, meu carter sou eu, eu

    10 O conceito de Selbstndigkeitcomo delidade a si mesmoencontra-se em Temps et Rcit(RICOEUR, 1988.).

    mesmo, ipse; mas que se anuncia como idem(RICOEUR, 1994a, p.146).

    Ricoeur, portanto, entende o cartercomo estabilidade, como o signo distintivocom o que reconhecemos uma pessoa, identi-camo-la como a mesma (1994a, p.146-147).Por essa razo, no carter convergem todasas noes da mesmidade que abordamos an-teriormente, a saber: identidade numrica,identidade qualitativa, continuidade ininter-rupta e permanncia no tempo.

    O outro problema abordado em Soi--mme comme un autre o da dissociao deidem e ipse por meio de outra noo de per-manncia no tempo: a manuteno de si. Esteconceito estar implicado na relao dialtica

    entre o si e a alteridade, o outro de si, medi-da que este si permanecer el s suas promes-sas, palavra dada.

    Ento, possvel consolidar uma relaodialtica entre a identidade narrativa repre-sentada pelo sujeito na busca de si e identida-de tica como ponto de referncia.

    A hermenutica do si e a alteridadePara Ricoeur h, portanto, duas proble-

    mticas pertinentes noo de identidade: a

    equivocidade das duas interpretaes de per-manncia no tempo, ou seja, a coincidnciaentre idem e ipse, ou ainda, o quem recobertopelo qu e o ipse dissociado do idem; e a no-o de identidade narrativa como resoluodas aporias da identidade pessoal que, a par-tir de agora, explicitaremos.

    A problemtica da identidade pessoal,segundo Ricoeur, passa, obrigatoriamente,pela considerao da articulao da dimen-

    so temporal da existncia humana (1994a,p.146.), ou seja, pela considerao do contex-to histrico no qual est inserido o sujeito daao, da linguagem, da responsabilidade e danarrao. A importncia da teoria narrativaadotada por nosso autor consiste em equi-distar o ato de descrever e o de prescrever e,consequentemente, em ampliar o conceitode identidade pessoal pela mediao da iden-tidade narrativa. Ricoeur diz:

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    6/14

    104Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    A teoria narrativa no poderia exer-cer essa mediao, isto , ser maisque um segmento intercalado nasucesso discreta de nossos estu-dos, se no pudesse ser mostrado,de um lado, que o campo prticocoberto pela teoria narrativa maisvasto que o campo coberto pelasemntica e pela pragmtica dasfrases de ao, por outro lado, queas aes organizadas em narrativaapresentam traos que s podemser elaborados tematicamente noquadro conceitual de uma tica.

    (1994a, p. 139).11

    Alm da distino entre ideme ipse, nos-so autor insiste sobre a necessidade de passarpela abordagem da losoa analtica, sem aqual no poderia sustentar seu apeloontolgi-co do conceito de identidade pessoal. Tal exi-gncia est nas reexes acerca dos critrioselaborados, principalmente por Derek Part eseus predecessores (Hume e Locke) quanto objetividade e a substancialidade do eu.

    Part entende a identidade como mes-midade com a excluso expressa de toda a

    distino entre mesmidade e ipseidade, e,portanto, de toda a dialtica narrativa ououtra entre mesmidade e ipseidade (1994a,p.156).

    Em Reasons and persons (1986, p. 210),Partdefende que nossa identidade no oque importa.(PARFIT apud RICOEUR, 1994a,p156.) Em outras palavras, a concepo deidentidade uma iluso porque existem ape-nas padres de atividades neurais, ou, como

    diz o autor, a existncia de uma pessoa con-siste exatamente na existncia de um crebro

    11 La thorie narrative ne saurait exercer cettemditation, cest--dire tre plus quun segmentintercal dans la suite discrte de nos tudes, silne pouvait tre montr, dune part, que le champpratique couvert par la thorie narrative est plus vastque celui couvert par la smantique et la pragmatiquedes phrases dactions, dautre part, que les actionsorganises en rcit prsentent des traits qui nepeuvent tre labors thmatiquement que dans lecadre dune thique.

    e de um corpo e na ocorrncia de uma sriede acontecimentos fsicos e mentais ligadosentre eles (PARFIT apud RICOEUR, 1994a. P.157). Ou seja, este autor adota uma posio co-mum ao empirismo clssico comprometendoa qualidade de mediao da identidade narra-tiva entre identidade ideme ipse,que a deencontrar uma substncia estvel do conceito.

    Segundo Ricoeur, podemos nos apro-ximar desta noo de substncia a partir dascontribuies loscas de Aristteles sobrea Tragdia e, principalmente,do conceito deenredo. O enredo, na narrativa, sintetiza osacontecimentos. Esta sntese, nosso autor adene como conito do heterogneo (RI-COEUR, 1994, passim).

    O enredo tem um carter de trama,tessitura na qual a histria de uma vida estmarcada por diversos e constantes eventos. Apropsito do enredo, Dartigues diz que con-siste em estabelecer uma concordncia entredois acontecimentos discordantes, a fazer en-trar numa congurao nica delimitada porum comeo e um m os acontecimentos queso golpes teatrais ou inverso de situaes(DARTIGUES, 1997, p. 24).

    Consequentemente, nesta dialtica en-

    tre discordncia e concordncia, revela-se ocarter essencialmente tico da narrao, re-ferindo-se s pessoas como agentes histricos.

    [] partilha do regime da identi-dade dinmica prpria da histrianarrada. A narrativa constri a iden-tidade da personagem, que se podechamar de sua identidade narrativa,construindo a da histria narrada.

    a identidade da histria que consti-tui a unidade da personagem. (RI-COEUR, 1994a, p.176 ).

    Podemos dizer que a congurao des-te carter durvel da personagem d-se poruma dinmica prpria ao enredo.

    A narrao dos acontecimentos, na qualesto as pessoas, pe em relao dialticaidentidades idem e ipse. De um lado est ocarter, representado pela mesmidade, sin-

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    7/14

    105Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    nimo de estabilidade, constncia, imutabili-dade; de outro, a ipseidade, como livre ma-nuteno de si, ou delidade a si, inovao,imprevisibilidade, deciso tica.

    O locus privilegiado da identidade narra-tiva aparece, ento, como a articulao entreo carter (mesmidade) e a livre manutenode si (ipseidade).

    Esta articulao assinala a circunscrioda identidade narrativa no debate tico. Apropsito da tragdia, Aristteles examina aimportncia da relao entre a ao, o agentee a narrativa. Diz o Estagirita:

    A tragdia representao (m-mesis) de uma ao e se executa

    mediante personagens que agem eque diversamente se apresentam,conforme o prprio carter e pen-samento (porque segundo estasdiferenas de carter e pensamen-to que qualicamos as aes), davem por conseqncia serem duasas causas naturais que determinamas aes: pensamento e carter; e por suas aes que so felizes ouno. (ARISTOTELES, ano 1991, p.251)

    O carter constitutivo da identidadeconfere um valor moral s aes. Estas, porsua vez, refratam em si a livre manuteno desi e sedimentam-se no carter. Assim, nestadialtica, o carter, de um lado, e a decisotica, de outro, renovam-se e atualizam-se,recproca e permanentemente, tal como oprocesso de constituio do hbitoque Aris-tteles atribui virtude.

    A identidade narrativa tem a funo demediar a relao entre duas classes de narra-tiva: histria e co literria. Reconhece-se,ento, a coeso de uma vida12(Zusammenhangdes Lebens) quando narrada.

    A congurao narrativa tem ressonn-cia em um contexto mais amplo: o da vidaconcreta e cotidiana. Diz Ricoeur que o tra-jeto da aplicao da literatura vida, o qual

    12 Ricoeur toma emprestado este termo de Dilthey.

    nos transportamos e transpomos na exegesede ns mesmos, esta dialtica entre idem eipse13(RICOEUR, 1988d, p. 303).

    Portanto, a tarefa vital da hermenuticado si articular a narrao ctcia ou histricana qual nos identicamos como reexos doque ns prprios somos e fazemos. Como dizProust, em la recherche du temps perdu:

    No sero, acho, meus leitores, masos prprios leitores de si mesmos,sendo meu livro uma espcie dessaslentes de aumento, como aquelasque o ptico de Combray ofereciaa um comprador; meu livro, graasao qual eu lhes fornecerei o meio delerem a si mesmos. (PROUST apudDARTIGUES, 1997, p. 30).14

    A narrao um processo de identi-cao do indivduo e da comunidade, e aquiinsistimos sobre seu vnculo com a identidadetica, porque no uma identidade acabada,isto , o si que se descobre por meio danarrao deve tomar uma deciso tica, nopode apoiar-se apenas em si mesmo. Esta de-ciso tica corresponde ao termo que Arist-

    teles denominava escolha (proiresis). Deneo Estagirita a noo de escolha como umdesejo deliberado que se refere a coisas quedependem de ns. (ARISTTELES, 1973, III,5, 1113a 10).

    Para Ricoeur, a vida verdadeira,caracte-rizada como o resultado da busca de sentido,unidade e coerncia das aes individuais pormeio da narrativa, deve se desdobrar em dire-o intersubjetividade e para as relaes so-ciais: Visar vida boa com e para o outro em

    instituies justas (RICOEUR, 1994a, p.211).Voltaremos ao assunto adiante.

    13 Do original: Sur le trajet da lapplication de lalittrature la vie, ce que nous transportons ettransposon dans lexgse de nous-mme, cest cettedialectique de lipseet de lidem. (Traduo nossa)

    14 Ils ne seraint pas, selon moi, mes lecteurs, mais lespropres lecteurs deux-mmes, mon livre ntant quunesorte de ces verres grossissants comme ceux quetendait un acheteur lopticien de Combray; mon livre,grce auquel je leur fournirais le moyen de lireen eux-mmes. (Traduo de Constana Marcondes Csar).

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    8/14

    106Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    As filosofias da subjetividadeAs anlises de Ricoeur decorrem da as-

    pirao de construir uma hermenutica do si.No entanto, para a constituio de um sujeitotico e congurao desta proposta herme-

    nutica, nosso autor examina o confronto en-tre as losoas do sujeito. Estas losoas dosujeito, ou losoas do cogito, estudadas porele, so as de Descartes e Nietzsche.

    Para Ricoeur, segundo Danese,

    O prefcio de Soi-Mme comme unautrerepresenta o confronto entreDescartes e Nietzsche sobre o esta-tuto do sujeito e prepara a interro-gao do sique deve distinguir-se

    tanto do Cogito Exaltado quantodo Sujeito Derrotado.15 (DANESE,1993, p. 36).

    Ricoeur, com relao ao cogito, insistesobre o vnculo entre o carter hiperblico e aambio de um fundamento ltimo na segun-da meditao de Descartes: a radicalidadedo projeto proporcional dvida que noexclui do regime da opinio nem o senso co-mum, nem a cincia, seja matemtica ou fsicae tambm a tradio losca (RICOEUR,1994a, p.15).

    Desta dvida, procede a hiptese dognio maligno que coincide com a gura dogrande enganador. Diz Ricoeur que atravsda dvida eu me conveno de que nada foi,mas o que eu quero encontrar uma coisaque seja certa e verdadeira (1994a, p.16).

    A frmula cogito ergo sumexprime, por-tanto, a certeza do eu cartesiano por meio

    de expresses como eu duvido, eu sou,associada ao pensar; o duvidar, por sua vez,prescinde do eu sou, ou seja, para duvidar preciso ser.

    15 Do original: [...] lapertura di Soi-mme comme umautre rappresenta um confronto tra Descartes eNietzsche, che porta sullo statuto del soggetto eprepara linterrogazione del s, che deve distiguersitanto dal cogito eccessivo che da um soggwettoscontto. (traduo nossa)

    Este eu puro pensamento, isto , aidentidade do sujeito, em Descartes, est des-provida da dimenso temporal compreendidapela narrao e das guras do sujeito que nor-teiam as reexes em Soi-mme comme unautre, a saber: o sujeito da responsabilidade,da interlocuo, da narrao e da histria. ,em sntese, uma subjetividade hipostasiada,um eu desancorado (para emprestar umaexpresso do nosso autor) porque se colocacomo reexo sobre a prpria dvida. Diz Ri-coeur que o sujeito que medita aparece semrelao com o que chamamos locutor, agen-te, personagem da narrao, sujeito da impu-tao moral etc. (1994a, p.18).

    Da se conclui que esta proposio, eu

    existo pensando, uma verdade sem valorobjetivo. uma verdade colocada por si mes-ma e da qual, supomos, derivariam todas as ou-tras verdades, tais como Deus, corpo, matria,a matemtica e outras. Todavia, na Terceira me-ditao esta ordo cognoscendi destruda pelainstituio de uma ordo essendi, isto , Deus averdade divinae primeira. O cogito, ento, per-de seu carter absoluto. Como bem examinouMartial Geroult (apud RICOEUR, 1990, p.19),esta verdade divina elimina a fonte da dvida

    hiperblica, o gnio maligno.A crtica de Nietzsche, mostrada por

    Ricoeur, aparentemente contrape-se am-bio cartesiana do cogito, assim formuladanos Fragmentos nachlass(1882-1884; apud RI-COEUR, 1994a, p.24). Todavia, Nietzsche noescapa dvida que procede da indistinoentre a mentira e a verdade a propsito desua crtica aos valores tradicionais.

    Nestas condies, o anticogito no

    o inverso do cogito cartesiano, mas a des-truio da prpria questo qual se conside-ra que o cogitotraga uma resposta absoluta(1994a, p.25).

    Para Nietzsche a linguagem gurativa,diz Ricoeur. Assim, no existem fatos, somen-te interpretaes da realidade e estas sempreesto sujeitas aos riscos das iluses.

    A hermenutica do si, proposta por Ri-coeur, distingue-se, tanto do projeto carte-siano do cogito exaltadoquanto do sujeito fe-

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    9/14

    107Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    ridodo modelo interpretativo da suspeita deNietzsche. A distino passa pelo exame doconceito de atestao e de sua relao com ode testemunho.16

    A atestao,segundo nosso autor :

    uma espcie de certeza qual ahermenutica pode pretender nosomente a respeito da exaltaoepistmica do cogito, a partir deDescartes, mas a respeito da hu-milhao em Nietzsche e seus su-cessores. A atestaoparece exigirmenos que uma e mais que a outra.(1994a, p.33).

    Assim, este conceito permanece equi-

    distante da imediatez autofundante do cogitocartesiano e do trabalho de suspeita propostopor Nietzsche e exprime, no ser humano, a ca-pacidade de narrar, falar e responsabilizar-sepor seus atos.

    Ricoeur entende por atestao a ar-mao do sicomo testemunho, ou seja, o sique se manifesta na relao com o mesmoena dialtica com o outro de si. No entanto, adimenso ontolgica do si, como dissemos,

    ser tratada convenientemente no captulosobre as implicaes ticas do conceito deidentidade narrativa, luz das contribuiesde Aristteles, Spinoza e Heidegger examina-das por nosso autor.

    Nesta primeira abordagem do concei-to de identidade narrativa conclumos que ocogitocriticado por Ricoeur pe em questoo primado do sujeito e sua pretenso de au-tossucincia. Transcender o eu sempreconserv-lo e, ao mesmo tempo, suspend-lo

    enquanto instncia suprema17 (JERVOLINOapud DANESE, 1993, p. 49).

    Podemos inferir que a articulao entredescrever, prescrever e narrar est entrete-cida na trplice dialtica entre reexo e -

    16 Ricoeur toma emprestado este conceito de JeanNabert, nos primeiros estudos de Soi-mme commeun autre.

    17 Do original: Transcendere lio sempre ritenerlo eallo stesso tempo sospenderlo in quanto instanzasuprema. (traduo nossa)

    losoa analtica, entre as identidades idem eipse e entre o si e o outro de si. Alm disso, ascrticas ao cogito, subjetividade hipostasia-da, traduzem-se na eliminao das iluses daconscincia, conante em si mesma, mascara-da pela linguagem do desejo, ou daquilo queo sujeito pensa ser ou conhecer.

    Estas crticas tm por exigncia a deci-frao do sujeito, ou seja, o processo de in-terpretao torna possvel a manifestao doser autntico, da prioridade do existir sobreo pensar, do mundo vivido ou o no ditorepresentado pela intencionalidade anterior busca de conhecimento objetivo. Da Ricoeurarmar que:

    Uma losoa reexiva que tendointeiramente assumido as corre-es e as instrues da psicanlisee da semiologia, toma um caminholongo e indireto de uma interpreta-o dos signos, privados e pblicos,psquicos e culturais, onde se ex-primem o desejo de ser e o esforopara existir que nos constituem.(RICOEUR, 1978, p. 223).

    A identidade narrativa corresponde, en-to, a uma nova formulao ou na complexi-cao da noo de sujeito. Objetiva-se, nosomente substituir um cogitopor outro, car-tesiano ou nietzscheano, mas trata-se de umahermenutica do si pela mediao dos smbo-los da cultura, pelas relaes interpessoais einstitucionais, ou seja, por uma via longa.

    Concluso

    Reforamos, aqui, a tese deste traba-lho: a de reetir acerca das implicaes ti-cas norteadas pelo desenvolvimento do con-ceito de identidade narrativa, sua vinculao noo de alteridade, no conjunto das obrasde Paul Ricoeur.

    Nosso autor congruente em sua loso-a, na qual o processo de decifrao do serdo homem de fundamental importncia nodebate tico-losco contemporneo.

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    10/14

    108Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    A noo de identidade narrativa, comovisto, tem um longo itinerrio a percorrer por-que, alm das diversas aporias e ambiguida-des que o acompanham, nosso autor adota orecurso da via longa. Esta a condio paradesvelar o ser do homem na experincia vivi-da, em sua historicidade e em seu devir.

    Este mtodo da via longa designadocomo a funo mediadora dos signos e obrasda cultura exercida neste processo de decifra-o do ser humano. Ao contrrio, evidente-mente, da imediatez do eu da conscinciapleiteada pelo cogitocartesiano, isto , de umasubjetividade desancorada que convergepara a separao entre o mesmo e o outro.

    H uma forma mais direta de tratar as

    diferentes asseres referentes ao conceitode identidade pessoal e narrativa e de pr emrelevo sua estreita relao para com a alterida-de e o contexto mais amplo das relaes insti-tucionais: atravs das respostas formuladas questo quem?. Em outros termos, me-diante a capacidade de o sujeito poder desig-nar-se a si mesmo nas diversas dimenses im-plicadas no uso da linguagem, a saber: Quem o autor da narrativa?; Quem o autor dodiscurso?; Quem o autor de tal ao?.

    Designar-se a si mesmo como autorevidencia o carter de atribuio de direitose deveres a que este indivduo est sujeito.Signica a avaliao das aes prprias ou deoutrem no quadro das exigncias ticas e mo-rais, isto , aes boas e/ou obrigatrias.Em outras palavras, ainda, signica identicaro responsvel pela ao, no apenas no senti-do de imputao, mas no de cuidado, termoque Ricoeur toma emprestado de Hans Jonas.

    Nestes termos, esta discusso traz tonaoutras questes e conceitos ampliados e per-tinentes reexo ricoeuriana, mas no abor-dados aqui diretamente. So os conceitos deresponsabilidade, da reciprocidade entre aoe sofrimento humanos e de phronsis.

    So termos caros reexo da vida so-cial e poltica, carentes de uma fundamenta-o ltima da tica. Evidentemente, o vaziotico que caracteriza, de certo modo, a con-temporaneidade e determina o comporta-

    mento humano uma ameaa constante prpria existncia do ser do homem.

    Podemos inferir que esta ameaa he-rana de um idealismo exacerbado da frmulacogito ergo sum.Esta citao pode designar, anosso ver, uma inverso de valores, defesa doindividualismo e da impessoalidade, e acen-tua, de modo decisivo, a fragilidade do regimedemocrtico.

    As consequncias so reconhecidas naforma de violncia moral, que Ricoeur carac-teriza por expressar a impossibilidade de o su-jeito agir segundo os critrios estabelecidospela tica e pela moral.

    Somos forados a admitir que a impos-sibilidade de o homem exercer sua ao e,

    desta forma, visar a vida boa, implica oseu sofrimento. Da mesma forma, a impos-sibilidade de usar a palavra, ipso facto, podeexpressar uma concepo reduzida da reali-dade circundante. Assim, este sujeito tolhi-do em seu pensar, agir e falar estar mer-c apenas da proposta de ser e existir quesua interpretao permitiu-lhe vislumbrar.Em outras palavras, sem esclarecimento, atomada de conscincia da explorao e daviolncia a que submetido no suciente

    para permitir uma ao, ou, pelo menos, re-agir de outro modo em determinadas situa-es, ou reconhecer-se a si mesmo medianteo outro, o outro como a si-mesmo.

    Por outro lado, esse sofrimento podecaracterizar-se pela impossibilidade de agirdiante do conito entre os objetivos pessoaise as promessas oferecidas pelo mundo, daresponsabilidade, do compromisso ou da res-posta ao outro: Eis-me aqui. As promessas

    do mundo so, alis, mais abrangentes do queo homem pode realizar. preciso ampliar seus horizontes por

    meio da questo da identidade narrativa.O exame do conceito de identidade

    narrativa a que nos propomos, nas obras deRicoeur, Temps et rcite Soi-mme comme unautre,sugere outros temas, como o da rees-truturao e complexicao da noo de su-jeito, da constituio e da hermenutica do sie, em ltima instncia, de sua dimenso tica.

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    11/14

    109Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    Em primeiro lugar, a hermenutica do si,segundo Ricoeur, encontra-se a igual distn-cia entre a apologia do cogitoe sua destitui-o (RICOEUR, 1994a, p.14-15).

    A identidade pessoal, como vimos, no a conscincia imediata do cogitocartesiano,

    do eu imediatamente dado e evidente. Ali-s, a mediao dos signos e das obras da cul-tura, da crtica das iluses do sujeito, do des-vio da reexo pela anlise, tanto da teoriada linguagem, do texto, da ao e da histriacomplexicam a noo de sujeito.

    Em segundo lugar, podemos armar queRicoeur inscreve-se na tradio losca con-tempornea que assinala uma crtica da subje-tividade ao estabelecer a relao entre ticae hermenutica. Na obra Soi-mme comme un

    autre, nosso autor examina o confronto entreo cogitoexaltado de Descartes e o cogitofe-rido de Nietzsche, colocando a hermenuticado si a igual distncia dessas duas posies.

    O exame da questo do cogito im-portante porque o ponto de partida para areconstituio da noo de sujeito tico, ouseja, uma nova concepo de homem e, tam-bm, de uma nova racionalidade. Consiste,ainda, em

    pr em questo, de diversos mo-dos, as certezas do cogito; consis-te em mostrar, por diferentes vias,que a conscincia de si no podemais identicar-se com a certezaimediata do eu, com a presena ea transparncia imediata do eua simesmo. (CSAR, 1998, p. 53).

    O cogito, portanto, representante dovoluntrio, da inteno, da conscincia, ouseja, uma subjetividade hipostasiada ou,como nos diz Ricoeur, uma subjetividade de-sancorada.

    O cogito sinnimo de iluso, fal-sidade, mas este cogito da losoacartesiana foi demolido e humilha-do. O conhecimento imediato nomais indica a verdadeira naturezahumana, e tampouco a realidadeque o cerca. O homem no quemacredita ser. (LISBOA, 2000, p. 115).

    A insistncia sobre a questo do su-jeito deve-se exigncia de que ele possadar sentido sua ao e sua capacidade dearmar-se quando submetido s crticas e ssuspeitas, isto , o outro. A pretenso do co-gito como fundao ltima, ou posio do

    si, que caracteriza a reexo cartesiana, problemtica.

    A certeza do cogito, enunciada no Cogitoergo sum, deve sofrer um processo de decifra-o por meio da funo mediadora dos smbo-los, da cultura, dos mitos, do texto e da ao.

    Aqui, para Ricoeur a concepo de re-exo tem um alcance mais tico do queepistemolgico, isto , a reexo Eros e Co-natus, desejo e esforo. Em outras palavras,estes termos so o denominador comum

    desta compreenso calcada na existncia.Diz nosso lsofo que a reexo apropria-o do nosso esforo por existir e de nossodesejo de ser atravs das obras que atestameste esforo e este desejo (RICOEUR, 1978,p. 325).

    Ricoeur examina o problema da identi-dade narrativa em Temps et rcit, na qual ar-ma que:

    o si do conhecimento de si o fruto

    de uma vida examinada, segundoa palavra de Scrates na Apologia.Ora, uma vida examinada , emgrande parte, uma vida depurada,claricada pelos efeitos catrticosdas narrativas, tanto histricasquanto ctcias, veiculadas por nos-sacultura. A ipseidade, assim, a deum si institudo pelas obras da cul-tura que aplicou a ele prprio. (RI-COEUR, 1997, p.425).

    Em Soi-mme comme un autre, a ques-to retomada de modo mais amplo. o exa-me do sique se desdobra nas relaes inter-pessoais e nas relaes sociais reguladas pelajustia. Apesar da mediao da narrativa, o sino d conta da solicitao de uma ao emtermos ticos, a no ser que se desdobre. Diznosso autor que o sis pode ter estima por sise a vida for qualicada boa em cada uma dastrs esferas, nodevendo nenhuma ser privi-

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    12/14

    110Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    legiada em detrimento das outras18(DARTI-GUES, 1997, p. 32).

    Em outras palavras, o sujeito tico aquele que se reconhece como autor de suasaes e cuja existncia e implicaes estoentrelaadas nas vidas de outras pessoas que,por sua vez, constituem o tecido social e asinstituies. Essa interferncia de inspiraoaristotlica pode ser transferida, por exem-plo, para o contexto problemtico dos tem-pos modernos, contribuindo para uma ressig-nicao do mundo que conhecemos.

    A hermenutica do si o ponto de parti-da para o devido esclarecimento do conceitode identidade e, tambm, o de alteridade. Re-vela-se que sua equivocidade acarreta aporias

    cujas solues passam, segundo Ricoeur, peloexame da importncia da teoria narrativa.Aqui est o interesse tico-losco do

    conceito de identidade narrativa e sua vincu-lao noo de alteridade, a saber: median-te a narrativa, o sujeito da ao e do discursopode apropriar-se de sua identidade propria-mente tica que exprime a dialtica entre aidentidade ideme a identidade ipse.

    Estes termos articulam-se, ento, na rela-o entre o sujeito e o ato de narrar, isto , de

    um lado, na narrativa, temos a questo da per-manncia no tempo que constitui o grau maissignicativo do termo identidade em oposioao signicado de identidade ipse, entendida,por Ricoeur, como inovao, mutabilidade. Dolado do sujeito, a dialtica exprime-se na signi-cao da identidade idemcomo manutenodo carter, enquanto ipserevela-se pela manu-teno da promessa dada.

    Deste modo, a noo de sujeito tico

    implica esta relao dialtica entre estes doisusos do termo identidade. Alm disso, estemodelo narrativo permite ao sujeito seguir ahistria, os registros de sua ao transforma-dora no mundo, pela experincia e reconhe-cimento da alteridade, do outro, do diversode si em instituies justas, na busca de vive-

    18 Do original: le soi ne peut avoir esime pour lui-mmeque si la vie est qualiable de bonne dans chacune deces trois sphres, aucune ne devant tre privilgie audtriment des autres. (traduo nossa)

    rem juntos e no sofrimento. Esta experincianarrativa exprime, ento, a verdadeira iden-tidade da pessoa: a pessoa o que ela faze o que sofreu19 (DARTIGUES, 1997, p. 19). neste sentido que relao dialtica entre aequivocidade dos termos exprime, com vee-mncia, a conotao tica da obra de Ricoeur.

    Na anlise dos romances sobre o tem-po em Temps et rcit II (RICOEUR, 1984), porexemplo, encontramos a ideia do prprio lei-tor ser sujeito que complexica sua identida-de, experienciando novas possibilidades deser e existir mediante a inteligncia poticano imaginrio do texto.

    Desta forma, h um aprofundamentoda conscincia do indivduo em direo a uma

    apreenso mais rica do ser humano, que eleprprio e que os outros so. A apreenso,no imaginrio, de outros e novos modos deser, de realizar a existncia e, ainda, possibili-tar uma compreenso de si e do outro, da al-teridade em ns e fora de ns. o que sugereo ttulo da obra Soi-mme comme un autre.

    Este desdobramento no seria possvelsem considerao da dialtica entre idem eipse na narrativa e no sujeito da ao. A aotem, portanto, seu sentido ampliado no qua-

    dro tico que acabamos de descrever. Por-que, diante das exigncias ticas e morais dainteno vida verdadeira, a ao do homempode ser lida e interpretada como um texto,conforme as anlises ricoeurianas em Du tex-te laction (RICOEUR, 1986).

    A ao humana, no quadro de uma tica,transforma o mundo e d forma nossa exis-tncia. Isto, de alguma forma, nos conduz reexo sobre a relao entre tica e esttica,uma vez que esta dialtica pe em relevo os

    termos agir, transformar, o belo e o bom, ainscrio de sua obra no mundo (esta obra a prpria vida) e o conceito de felicidade queorienta a ao.

    As reexes de nosso autor implicam adiscusso de outros temas, como o da amiza-de, da democracia, ideologia, utopia e justia.No entanto, neste artigo, estas so apenassugeridas.

    19 Do original: La personne est ce quelle fait et cequelle a subi. (traduo nossa)

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    13/14

    111Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    Referncias

    ALMEIDA, NAPOLEO M. DE. Gramtica Latina. So Paulo: Saaiva, 1997

    ANTHROPOS, Revista de documentacin cientca de la cultura, Barcelona, n. 153, feb. 1994.

    ARISTTELES. tica a Nicmaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. So Paulo: Abril Cul-tural, 1973.

    ________. Metafsica. Traduo de Valentn Garcia Yebra. Madrid: Gredos, 1990.

    ________. Potica. Trad. Eudoro de Sousa. So Paulo: Abril cultural. 1991.

    BERTI, E.Aristteles no sculo XX. So Paulo: Loyola, 1997.

    BLEICHER, J. Hermenutica contempornea. Lisboa: Ed. 70, 1980.

    CSAR, C. M. Paul Ricoeur:ensaios. So Paulo: Paulus, 1998.

    DANESE, A. (Org.). Lio dellaltro.Confronto con Paul Ricoeur. Genova: Marietti, 1993.

    DARTIGUES, A. Paul Ricoeur et la question de lidentit narrative. Reexo, Campinas, n. 69,set./dez. 1997.

    FRANCO, S. G. Hermenutica e psicanlise na obra de Paul Ricoeur. So Paulo: Loyola, 1995.GUSDORF, G. Mito e metafsica. So Paulo: Convvio, 1974.

    HART, H. L. A. The ascriptions of responsability and rights. Proceedings of the Aristotelian Socie-ty, London, n. 49, 1948.

    JERVOLINO, D. Il cogito e lermeneutica; la questione del soggeto in Ricoeur. Genova: Marinetti, 1993.

    IHDE, D. Hermeneutic phenomenology the philosophy of Paul Ricoeur. Studies in phenomenology& existential philosophy. Evanston: Northwestern University, 1971.

    LISBOA, M. J. A. Razo hermenutica: fenomenologia, hermenutica e psicanlise. Revista Jur-dica, v. n. p. 115, 2000.

    PALMER, R. Hermenutica.Lisboa: Ed. 70, 1969.

    PARFIT, D. Reasons and persons. New York: Oxford University Press, 1986.

    REAGAN, C.; STEWART P. The philosophy of P. Ricoeur. An anthropology of his work. Boston:Beacon, 1978.

    ________. Studies in the philosophy of Paul Ricoeur. Athens, Ohio: Ohio University, 1979.

    REALE, G. O saber dos antigos. So Paulo: Loyola, 1999.

    RICOEUR, P. Gabriel Marcel et Karl Jaspers:philosophie du mystre e philosophie du paradoxe.Paris: Temps present, 1947.

    ________. Philosophie de la volont:I. Le volontaire et linvolontaire. Paris: Aubier. 1950.

    ________. Le conit des interprtations:essais dhermneutique. Paris: Seuil, 1969.

    ________. et al. As culturas e o tempo.Estudos reunidos pela Unesco. Petrpolis/So Paulo:Vozes/Edusp, 1975.

    ________. Da interpretao:ensaio sobre Freud. Traduo de H. Japiassu. Rio de Janeiro: Ima-go, 1977.

    ________. O conito das interpretaes:ensaios de hermenutica. Traduo de H. Japiassu. Riode Janeiro: Imago, 1978.

    ________. Finitud y culpabilidad. Traduo de C. Sanchez Gil. Madrid: Taurus, 1982.

    ________.A metfora viva. Traduo de J. Torres Costa e A. M. Magalhes. Porto: Rs, 1983.

    ________. Temps et rcit. v. I. Paris: Seuil, 1983.

  • 7/25/2019 ricouer identidade pessoal

    14/14

    112Impulso, Piracicaba 23(56), 99-112, jan.-abr. 2013 ISSN Impresso: 0103-7676 ISSN Eletrnico: 2236-9767

    DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n56p99-112

    ________. Temps et rcit. v. II. Paris: Seuil, 1984.

    ________. Temps et rcit. v. III. Paris: Seuil, 1985.

    ________. Du texte a laction:essais dhermneutique. Paris: Seuil, 1986a.

    ________. Do texto ao:ensaios de hermenutica II. Traduo de Alcino Cartaxo e Maria JosSarabando. Porto: Rs. 1986b.

    ________. Teoria da interpretao. O discurso e o excesso de signicao. Traduo de A. Mou-ro. Lisboa: Ed. 70, 1987. (Srie: Biblioteca de losoa).

    ________. Interpretao e ideologia. Traduo de H. Japiassu. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988a.

    ________. O discurso da ao. Traduo de A. Mouro. Lisboa: Ed. 70, 1988b. (Srie: Bibliotecade losoa).

    ________. O mal:um desao losoa e teologia. Traduo de M. P Ea de Almeida. Campi -nas: Papirus, 1988c.

    ________. Lidentit narrative. Esprit, Paris, n. 140-141, juil.-aut, 1988d.

    ________. Soi-mme comme un autre. Paris: Seuil, 1990.

    ________. Les mtamorphoses de la raison hermneutique. Paris: Cerf, 1991.________. O si mesmo como um outro. Traduo de Lucy Moreira Csar. Campinas: Papirus,1994a.

    ________. Tempo e narrativa I. Campinas: Papirus 1994b.

    ________. Leituras 1:Em torno ao poltico. So Paulo: Loyola, 1995a.

    ________. Leituras 2:A religio dos lsofos.So Paulo: Loyola,1995b.

    ________. Leituras 3:Nas fronteiras da losoa. So Paulo: Loyola, 1995c.

    ________. Tempo e narrativa II. Campinas: Papirus, 1995d.

    ________. O justo. Traduo de Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1995e.

    ________. Tempo e narrativa III. Traduo de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997.

    ________. et al. Grcia e mito. Traduo de R. Vieira. Lisboa: Gradiva, 1988.

    SILVA, M. L. P. F. da. A hermenutica do conito em Paul Ricoeur. Coimbra: Minerva, 1992.

    VANSINA, D. Bibliographie de Paul Ricoeur. Revue Philosophie, Louvain, n. 60, 1962.

    VERGNIRES, S. tica e poltica em Aristteles. Traduo de Constana Marcondes Csar. SoPaulo: Paulus, 1998.

    Dados do autor:

    MARCOS JOS ALVES LISBOA

    Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUC-Campinas)

    Mestre em Filosoa pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas

    Docente - Especializao em Direito Pblico com nfase em

    Direito Constitucional e Administrativo (PUC-Campinas)

    Recebido: 06/05/2012

    Aprovado: 25/04/2013