o problema da identidade pessoal segundo hume

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Dissertação de Mestrado em Filosofia da Mente acerca do Problema da Identidade Pessoal em Hume. Edno G SIqueira

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fffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff C?MARA DE PESQUISA E P?S-GRADUA??O

ffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff PROGRAMA DE P?S-GRADUA??O EM COGNI??O E LINGUAGEM

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O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL SEGUNDO HUMEEDNO GONALVES SIQUEIRA

CAMPOS DOS GOYTACAZES 2007

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O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL SEGUNDO HUMEEDNO GONALVES SIQUEIRA

Projeto de Dissertao apresentado ao programa de PsGraduao em Cognio e Linguagem do Centro de Cincias do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Cognio e Linguagem, na rea de concentrao em Filosofia da Mente. Orientador: Prof. Dr. Dario Alves Teixeira Filho

CAMPOS DOS GOYTACAZES 2007

O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL SEGUNDO HUMEEDNO GONALVES SIQUEIRA Projeto de Dissertao apresentado ao programa de Ps-Graduao em Cognio e Linguagem do Centro de Cincias do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Cognio e Linguagem, na rea de concentrao em Filosofia da Mente. Aprovado em ____ de ___________ de 2007.

COMISSO EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Jos Nicolao Julio UFRRJ ______________________________________________ Profa. Dra. Paula Mousinho Martins CCH/UENF ______________________________________________ Prof. Dr. Julio Csar Ramos Esteves CCH/UENF ______________________________________________ Prof. Dr. Jos Nicolao Julio UFRRJ _________________________________________ Prof. Dr. Drio Alves Teixeira Filho CCH/UENF Orientador

Agradeo ao Professor Drio Alves Teixeira Filho, meu orientador, exemplo de dedicao e seriedade no trato com os problemas filosficos. Agradeo tambm a minha famlia pelo apoio a meus projetos. Aos meus amigos e alunos, pelo apoio constante.

O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL SEGUNDO HUME

RESUMO

A doutrina oficial de David Hume (1711-1776) sobre a identidade pessoal, nomeadamente, sua clebre bundle theorie, fundamentalmente, e quase exclusivamente, enunciada e defendida no Livro I, sobretudo na Parte IV, seo VI, intitulada Da Identidade Pessoal, de sua obra magna A Treatise of Human Nature (1739-40). A teoria da identidade pessoal proposta a por Hume deixa-se resumir na tese geral de que a idia de um Self consiste na idia do mero mltiplo de percepes sucessivas unificadas associativamente, de modo que a idia de um eu ou de pessoa no designa algo de distinto dessa mera unidade associativa, no designa seno, nos termos de Hume, a heap or collection of different perceptions, united together by certain relations (Hume, 1978, I, IV, 2, p.207). Essa formulao de Hume repercute ainda nas muitas e hoje quase majoritrias concepes anti-realistas acerca do eu. O objetivo geral da presente pesquisa consiste em expor e esclarecer essa teoria de Hume sobre a natureza e a gnese da idia de eu ou de identidade pessoal tal como proposta em sua obra magna A Treatise of Human Nature. Nosso objetivo especifico o de chegar a identificar e a reconstruir os principais argumentos, bem como, por fim, a avaliar os mritos e fraquezas desses principais argumentos de um filosofo sem dvida genial em favor de uma teoria que, a despeito de ganhar cada vez mais crdito, to original que resvala na implausibilidade.

Palavras-chave: percepes, mente, substncia, identidade pessoal.

AbstractThe official doctrine of David Hume (1711-1776) about personal identity, namely, his notorious bundle theory, is fundamentally, and almost exclusively, enunciated and defended at Book I, over all at Part IV, section VI, entitled Of Personal Identity, from his masterpiece of art, A Treatise of Human Nature (1739-40). The personal identity theory there proposed by Hume, make itself resumed in the general thesis that the idea of I is consisted of an idea of a mere multiple of successive perceptions unified associatively, in such a way that the idea of I or person does not designate anything else and distinct than this mere associative unite. It does not designate, in Hume's own terms, a heap or collection of different perceptions, united together by certain relations (Hume, 1978, I, IV, 2, p.207). This way of posing the problem still sounds at the many, and nowadays almost majority, of anti-realistic conceptions concerning I. The general objective of the present research is both to expose and try to enlighten that Hume's theory about the nature and genesis of the idea of I as such as proposed in his magnificent work A Treatise of Human Nature. Our specific objective is to come to identify and rebuild the main arguments, as well as, at the end, to evaluate merits and weaknesses getting, is so original that comes to break into implausibility. of these arguments from a philosopher, by no doubts, ingenious towards a theory that, albeit the credit it has been

Keywords: percetions, mind, substance, personal identity.

SUMRIO INTRODUO GERAL .........................................................................................................01 a) Em que consiste o problema da identidade pessoal .............................................................01 b) O contexto histrico-sistemtico desse problema ................................................................02 c) A relevncia da posio de Hume ........................................................................................03 d) Objetivo, tese geral e estrutura do trabalho .........................................................................06 CAPTULO 1. A TEORIA DAS IDIAS ...............................................................................11 1.1. A presena do princpio atomista de anlise na teoria das idias......................................15 1.2. O princpio empirista de significao ...............................................................................26 1.3. O carter problemtico das idias complexas....................................................................34 CAPTULO 2. A IDIA COMPLEXA DE SUBSTNCIA ...................................................41 2.1. O contedo da idia de substncia ....................................................................................43 2.2. Princpio de unificao da substncia: a noo de identidade ..........................................50 2.3. A gnese causal das idias de substncia fsica e mental: as transies fceis da imaginao................................................................................................................................ 58 CAPTULO 3. A CONCEPO HUMEANA DE IDENTIDADE PESSOAL E SEUS PROBLEMAS ......................................................................................................................... 69 3.1. A concepo humeana de eu .............................................................................................70 3.2. O problema da no observabilidade do eu: conscincia de si nointrospectiva ..............75 3.3. O problema da individuao de colees de percepes: pressuposio de uma mente pessoal ...................................................................................................................................... 81 3.4. O problema da atribuio de operaes mentais a colees de percepes: pressuposio de um eu no-

emprico..............................................................................................................87 CONSIDEREAES FINAIS ............................................................................................... 93 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................... 100 NOTAS.................................................................................................................................. 103

Abreviaturas:

Utilizamos Tratado, tanto para indicar o original em ingls, quanto para faz-lo em referncia traduo para o portugus. Contudo, para diferenciar tais obras, bem como para fazer-lhes referncias, servimo-nos do texto original em ingls, identificado aqui por HUME, 1978 (HUME, David. A Treatise of Human Nature. edited by L. A. Selby-Bigge. Oxford at the Claredon Press, Oxford, 1978) e da traduo para o portugus, identificada por HUME, 2001 (HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Servio de Educao e Bolsas - Fundao Calouste Gulbenkian. Ed. Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001). Os textos traduzidos em portugus encontram-se seguidos dos textos originais em ingls, dispostos, em sua maioria, ao final desta dissertao na seo Notas. Nesta mesma seo encontram-se ainda, alguns textos dos comentadores em sua forma original, pois optamos por traduzi-los (os textos dos comentadores citados como apoio de nossa argumentao) para tornar mais fluente a leitura de nosso trabalho, inserindo em nota o original para consulta, seja em notas de rodap (frases e excertos) seja na seo Notas (textos). Indicamos em negrito os caracteres (nmeros arbicos) que indicam o material encontrado na seo Notas.

INTRODUO GERAL

Mas, abandonando a questo acerca do que pode ser e do que no pode ser, em favor daquela outra questo acerca do que efetivamente . (HUME, 2001, p.279).

O objetivo geral da presente dissertao consiste em expor e esclarecer a teoria de David Hume (1711-1776) sobre a natureza da identidade pessoal e a gnese da idia de eu. Nosso objetivo especifico o de chegar a reconstruir, bem como a avaliar os principais argumentos desse filosofo sem dvida genial em favor de uma teoria sem dvida original sobre um problema central nas pesquisas sobre a natureza da mente. Na verdade, o problema da identidade pessoal, quando formulado expressamente, no constitui apenas um tema tcnico de estudiosos especializados, mas antes algo de interesse geral, como o denuncia nossa crena, completamente bsica e em grande medida tcita, de que permanecemos fundamentalmente os mesmos atravs das inmeras mudanas pelas quais passamos eventualmente ao longo da nossa vida e tambm as expectativas, bem difundidas, de sobrevivermos a nossa morte corporal. Quando se formula o problema da identidade pessoal v-se que, nessas crenas e expectativas to ordinrias, esto em jogo as relaes entre a pessoa e o tempo (a permanncia da identidade pessoal atravs do tempo) e entre a pessoa e seu corpo (a permanncia da identidade pessoal na ausncia de uma identidade corporal). Tambm acreditamos que nossas respostas afetivas e morais aos eventos do mundo, bem como aos eventos de nossa vida, esto relacionados nossa identidade pessoal. Nossa responsabilidade por nossas aes e a imputao de responsabilidade aos outros que so expressas em nossa prtica de elogiar ou censurar suas aes parecem precisar supor uma continuidade de uma entidade unitria ou pessoa que tem um conjunto de memrias, habilidades e disposies que constituem seu carter e personalidade. O problema da identidade pessoal parece, assim, dizer respeito a algo de central para nossas crenas, expectativas, atitudes e prticas as mais ordinrias. Mas, afinal, em que consiste o problema da identidade pessoal? O problema da identidade pessoal se deixa, em geral, organizar em torno de distintas questes: (i) a questo ontolgica acerca do que faz com que algum exista como o mesmo atravs de mudanas qualitativas e, mais basicamente, atravs de simples mudanas de tempo; (ii) a questo epistemolgica acerca do que conta como evidncia necessria e/ou suficiente para o reconhecimento ou conhecimento de que algum o

mesmo atravs de mudanas qualitativas e, mais basicamente, atravs de simples mudanas de tempo; (iii) a questo semntica ou conceitual acerca da adequada anlise dos constituintes e da estrutura da prpria idia de identidade pessoal ou eu, (iv) a questo psicolgica ou causal concernente explicao da gnese da idia de eu. Essas questes no so independentes e, na verdade, no incomum, por exemplo, conceber a questo semntica ou conceitual como sendo um modo de encaminhar a questo ontolgica acerca da natureza prpria da identidade pessoal, assim como conceber a questo psicolgica ou causal como um modo de encaminhar a questo epistemolgica acerca das condies de acesso a algo tal como uma pessoa. Em grande medida o presente trabalho, por razes que ficaro claras na seqncia, se concentrar sobre os aspectos conceituais e psicolgicos da questo da identidade pessoal. Historicamente, o problema da identidade pessoal foi delimitado pela primeira vez enquanto tal por Locke1; como o comentador H. Noonan2 observa espirituosamente, pelo menos esse tema um acerca do qual os trabalhos filosficos no constituem notas de rodap obra de Plato, mas sim de Locke. O problema se colocou quando o termo "pessoa" foi concebido por Locke como sendo um termo funcional, isto , como um termo que se aplica ao que quer que tenha certas capacidades ou que exera certas funes e, portanto, no como designando simplesmente algum tipo de substncia, seja material ou imaterial. A motivao de Locke nesse ponto parece dizer respeito ao fato de que conceber a pessoa em termos de substncia no garantiria nenhum critrio seguro de reidentificao da pessoa, donde decorreria, se no absurdos, ento pelo menos certas implausibilidades. Locke comea por perguntar o que significado por Scrates ou por o mesmo homem individual (what is meant by Socrates, or the same individual Man) e pondera que (1), por um lado, responder simplesmente que se quer designar com isso a mesma substncia pensante individual e imaterial (the same individual, immaterial, thinking Substance) acarretar que tem de ser admitido como possvel que um homem nascido de diferentes mulheres e em pocas bem diferentes pode ser o mesmo homem (it must be allowed possible that a Man born of a different Women, and in distant times, may be the same Man) em razo de se supor, ento, uma irrelevncia do organismo animal particular para identificar a pessoa em questo e que (2), por outro lado, responder simplesmente1 Para o que se segue cf. LOCKE, J. Essay Concerning Human Understanding; Livro II, captulo 27. London. Oxford: Claredon Press, 1979. 2 NOONAN, 1989, p.30.

que se designa com isso ou o mesmo organismo animal (...) ou o mesmo esprito imaterial unido ao mesmo organismo animal (or the same Animal (...) or the same immaterial Spirit united to the same Animal) acarretar que Scrates nesta vida e depois dela no pode ser de modo algum o mesmo homem (Socrates in this Life, and after it cannot be the same Man any way) em razo de se supor, ento, a dependncia de um certo organismo animal particular para identificar a pessoa em questo. Essas dificuldades mostram, segundo Locke, que a identidade pessoal consistiria em nada mais que na conscincia (it is impossible to make personal identity to consist in any thing but consciousness)3. Isso, portanto, revelaria que o critrio de identidade buscado seria dependente do ponto de vista do prprio sujeito da experincia. Talvez por considerar que, do ponto de vista da primeira pessoa, a memria sobretudo aquela concernente s idias pessoais formadas acerca de eventos testemunhados ou concernentes s vivncias pessoais relativas s prprias experincias e aes seria o fator crucial para a conscincia da identidade pessoal atravs do tempo, o prprio Locke enfatizar a memria como condio da identidade pessoal e dar assim uma base para as abordagens subseqentes do tema. Assim, no interesse de especificar critrios de aplicao correta do conceito de pessoa, vale dizer, critrios de reidentificao de algo como sendo a mesma pessoa, instituiu-se com Locke um outro nvel de considerao da mente e do eu e, a partir da, se instaura o debate acerca dos fatores constitutivos da identidade pessoal atravs da sucesso dos dados de conscincia. Nesse debate, uma das posies que mais se destaca, certamente por sua posio extremada, se deixa resumir na tese central de que o dado sem sujeito4. Tal posio pode ser encontrada tanto na tradio analtico-lingstica (o Russell atomista5, Ryle, etc.) quanto na tradio continental (o Husserl das Investigaes Lgicas, Sartre, Deleuze, etc.), de maneira que no se pode negligenciar sua persistente e difusa presena na discusso sobre a mente e o eu6. Reconhecidamente, tal posio remonta a Hume e, mais especificamente, a sua concepo de mente e de eu como um agregado ou coleo de diferentes percepes (a bundle or collection of different perceptions). Isso deve ser3 Para as passagens citadas cf. especificamente LOCKE, idem, 21, p.343. 4 "The given is subjectless", como afirmou Carnap (apud CHISHOLM, Roderick M. The direct awareness of the self In: Person and Object; A Metaphysical Study. London. Routledge, 2002). 5 Russell afirma: o ato ou o sujeito esquematicamente conveniente, mas no pode ser descoberto empiricamente (On proposition. In: idem, Logic and Knowledge, p.305). 6 Em reconhecimento a isso, essa doutrina j mereceu ser batizada com um nome prprio: the noownership or no-subject doctrine of the self (STRAWSON, 2002, p.95)

suficiente para justificar nosso presente estudo, que se prope no s a expor e esclarecer a verso primitiva, por assim dizer, dessa posio sem dvida extremada em filosofia da mente, mas, sobretudo que se prope a identificar, a reconstruir e, por fim, a avaliar os mritos e fraquezas dos argumentos que seu principal patrono pde aduzir em favor dessa concepo. Hume considerado um dos maiores filsofos da poca moderna. Seu trabalho , em geral, caracterizado como o ponto alto da tradio empirista dominante na filosofia britnica que remonta a Guilherme de Ockham, Bacon, Hobbes, Locke e Berkeley. Hume destacou-se nessa tradio no s pela sua aguda percepo de novos problemas e por suas concepes originais, mas tambm pelo estilo literrio, influenciado pelo seu notvel conhecimento das humanidades, com o qual produzia obras acessveis tambm aos leitores no acadmicos. A esfera de interesse de Hume ampla, pois envolve a epistemologia e a filosofia moral, a teoria poltica e a economia, a histria e o estudo da religio, mas em todos os seus estudos o fundamento se encontra sempre em certa concepo da natureza humana. No por acaso, a obra filosfica fundamental de Hume se intitula A Treatise of Human Nature (doravante, apenas Tratado) e inclui aquele que nosso foco aqui, sua teoria da mente e do eu como um agregado de percepes. Um dos pilares da filosofia moderna a distino entre o que podemos conhecer de maneira direta, vale dizer, os dados presentes nossa mente, e o que podemos conhecer apenas de maneira indireta ou por meio dos dados imediatos da nossa mente, vale dizer, as supostas coisas e suas qualidades fora de nossa mente. No Essay Concerning Human Understanding, Locke fez uso dotermo idia para designar esses dados imediatos da mente, em suas palavras, para designar seja o que for que consista no objeto do entendimento quando 7 um homem pensa (livro I, captulo I, 8) , concebendo o termo pensar aqui como uma designao genrica para toda e qualquer operao mental, de modo que ele inclui entre as idias no s os dados ou objetos do pensamento em sentido estritamente intelectual, mas tambm todos os dados da percepo, 8 memria, imaginao, etc. Hume repreende Locke pela sua terminologia, mas no por sua doutrina , isto , ele assume que as operaes mentais tm seus objetos imediatos, que ele prefere designar pelo termo genrico de percepo e que apenas so idias quando so dados do pensamento em sentido mais

7 Essas idias ou so idias de sensao, na medida em que tm sua gnese na experincia devida ao efeito dos objetos externos sobre os rgos dos sentidos, ou so idias de reflexo, na medida em que so produtos da operao de representar o que ocorre na mente (STROUD, 1991, pp.17-18). 8 Emprego aqui os termos impresso e idia num sentido diferente do que usual e espero que me seja permitida esta liberdade. Assim, talvez at restitua a palavra idia ao seu sentido original, do qual Locke a tinha afastado fazendo-a designar todas as nossas percepes. Quanto ao termo impresso, no quereria que julgassem que o emprego para exprimir o modo como as nossas impresses vivas se produzem na alma, mas para designar apenas as prprias percepes, para as quais no existe termo prprio nem em ingls, nem em qualquer outra lngua minha conhecida (HUME, 2001, p.30).

estrito ou ordinrio, mas no quando se trata de dados dos sentidos (concernentes s sensaes ou s paixes e emoes) que ele chama ento de impresso (impresses de sensao ou, no caso das paixes e emoes, impresses de reflexo). Se, porm, fazemos meno no ttulo do primeiro captulo de nosso trabalho no teoria humeana das percepes, mas sua teoria das idias no s porque nosso foco se encontra na anlise da idia de substncia (a que dedicamos o segundo captulo) e, particularmente, a de substncia anmica ou pessoal (a que dedicamos o terceiro captulo), mas tambm porque a teoria de Hume est nela mesma dirigida para explicar as idias sua origem, composio, abstrao, conexo (HUME, 1978, p.1) , e isso a partir de dados mais 9 originrios, nomeadamente, as impresses, que, na teoria, so muito mais assumidos do que propriamente explicados ou esclarecidos .

No Livro I do Tratado, intitulado Sobre o Entendimento, Hume apresenta sua teoria das idias, em captulos dedicados anlise dos tipos de percepes e da sua origem (Parte I), das idias de espao e de tempo (Parte II), do conhecimento e da probabilidade (parte III) e defesa do ceticismo frente a outros sistemas filosficos (Parte IV); nessa ltima parte do livro I que se encontra a seo intitulada Sobre a Identidade Pessoal, na qual Hume defende expressamente sua tambm clebre concepo ctica do eu como um agregado de percepes (HUME, 1978, p. 251). O livro II do Tratado, intitulado Sobre as Paixes, dar continuidade anlise dos tipos de percepes e da sua origem, agora se dedicando quelas percepes que so impresses secundrias ou reflexivas, numa palavra, que so paixes (ibidem, p.275). O fato de a seo dedicada identidade pessoal encontrarse na ltima parte do Livro I parece no ser meramente contingente, mas antes parece ter uma razo sistemtica. A concepo proposta por Hume de identidade pessoal parece constituir a aplicao final das anlises desenvolvidas ao longo do primeiro livro a uma noo que ser central para a anlise das paixes indiretas no segundo livro, as quais se caracterizam por ter o eu como objeto10. A noo humeana de identidade pessoal parece, assim, ser o elo na passagem do primeiro para o segundo livro, cumprindo importante papel naquela completa seqncia de raciocnios que Hume pretendeu que fosse seu Tratado. Como veremos, Hume pretende poder concluir que a mente humana consiste meramente em (...) um monte ou uma coleo de percepes diferentes, unidas umas s 9Quanto a isso podemos ler no Tratado: as impresses emergem na alma originalmente de causas desconhecidas (HUME, 1978, p.7). 10 Com respeito ao tema da identidade pessoal, cabe observar que, no Tratado, ela admite uma dupla abordagem, pois o prprio Hume observa que temos de distinguir entre a identidade pessoal no que diz respeito ao nosso pensamento ou imaginao e no que diz respeito s nossas paixes ou preocupao que temos por ns mesmos (HUME, 2001, p.301). Nossas, exposies, anlises e avaliaes crticas na presente dissertao esto voltadas exclusivamente para a concepo de Hume da identidade pessoal no que diz respeito ao nosso pensamento ou imaginao, concepo esta que constitui, por assim dizer, a doutrina oficial de Hume sobre o eu. Apenas nas consideraes finais deste trabalho, teremos oportunidade de pelo menos indicar qual o papel que a abordagem da identidade pessoal no que diz respeito s paixes poderia ter no desenvolvimento de uma concepo mais integral do eu.

outras por certas relaes (HUME, 2001, p.252). E sobre aquilo a que chamamos de eu, Hume dir que ele consiste naquela sucesso de idias e impresses relacionadas, das quais temos recordao e conscincia ntimas (HUME, 2001, p.329), a tal ponto que, diz Hume, atrevo-me a afirmar do resto dos homens que cada um deles no passa de um feixe ou coleo de diferentes percepes que se sucedem umas s outras com inconcebvel rapidez e que esto em perptuo fluxo e movimento. (HUME, 2001, p.301). Essas asseres retm os resultados, doravante clebres, das anlises de Hume sobre a mente e a identidade pessoal. Contudo, no Apndice ao Tratado, publicado (ao final do Livro III) s um ano mais tarde do livro I, o prprio Hume com o mesmo ardor que a defendera renega sua concepo ao declarar-se completamente insatisfeito com o tratamento que dera ao tpico da identidade pessoal, confessando achar o tema um inextrincvel labirinto e no saber como corrigir suas antigas opinies ou como lhes dar consistncia. Hume est longe de ser claro acerca do que ele acha objetvel em sua antiga concepo. Mas o fato que ele no a retomar expressamente em suas obras posteriores e que no h um consenso mnimo entre os intrpretes acerca do exato contedo e sentido dessa sua autocrtica. Isso explica porque nos ateremos apenas ao texto do Tratado. Hume pretendeu que os mais destacados problemas das cincias e da filosofia s poderiam ser adequadamente encaminhados por uma filosofia que se dedicasse ao conhecimento da natureza humana, constituindo-se, assim, em uma efetiva cincia do homem (HUME, 1978, p.xvi). Na parte introdutria do Tratado o qual tem por subttulo: uma tentativa de introduzir o mtodo experimental do raciocnio em assuntos morais l-se que, no af das cincias e da metafsica de explicarem os princpios ltimos da nossa experincia, elas nos tm imposto apenas suas conjecturas e hipteses e que, ao contrrio, a cincia do homem bem conduzida deve evitar esse erro e proceder sempre de modo anlogo s cincias naturais, isto , com base na observao e experimentao para chegar a formular princpios da natureza humana, cada vez mais gerais e em menor nmero, fundados sobre a autoridade mesma da experincia (ibidem, p.xviii). Nesse esprito, essa pretendida "nova cincia" da mente assume que a mente uma regio de fenmenos (pensamentos, paixes, vontades) que parte da ordem natural tal como concebida na fsica de Newton, de tal modo que ela deve ser descrita em termos de partculas (no caso, percepes) e campos de fora (no caso, foras associativas). "Mente"

seria, assim, apenas uma cmoda abreviatura para falar de nexos associativos entre percepes. Esta parece ser a assuno fundamental de Hume que condicionar (j antes de qualquer argumentao especfica) sua tomada de posio acerca da identidade pessoal. Essa assuno fundamental de Hume no expressa, porm, uma mera extenso mente da nova viso newtoniana da natureza, mas antes, como argumentaremos, resulta da aplicao sistemtica do que chamaremos de princpio atomista de anlise e que pode ser axiomatizado no dito humeano de que o que distinguvel separvel, bem como da aplicao do princpio empirista de significao, da decorrente, de que conexes pretensamente necessrias ou unidades pretensamente objetivas no tm contedo seno enquanto produtos contingentes da experincia, na medida em que os dados per se (as percepes) no dependem de qualquer relao para com outros dados e, portanto, apenas a experincia em sua regularidade (conjunes constantes plus lembrana destas conjunes constantes) poderia servir de base para supor nexos e relaes contingentes entre os dados. Sendo assim, qualquer unidade pessoal da mente e, na verdade, qualquer unidade ou um dado simples, uma impresso original o que Hume negar em razo de nenhuma impresso satisfazer o requerimento de ser auto-idntica intertemporalmente, de modo que no teramos evidncia emprica de um eu ou redutvel multiplicidade de dados que a constitui realmente, de modo que toda a questo se reduz apenas, a saber, como, a despeito disso, chegamos a formar, na experincia, a crena em um eu idntico. Nesse sentido, nos propomos a examinar como exatamente esse princpio atomista e, derivadamente, seu princpio empirista, chegam a impor a Hume um fenomenalismo integral cuja verso ontolgica diria: s h percepes, e a verso epistemolgica diria: toda unidade um mero nexo associativo contingente, de modo que, sendo conseqente, cabe apenas dizer que o eu no uma noo bsica na explicao da natureza da mente, mas antes uma fico a ser explicada geneticamente a partir da natureza atmica e associativa da mente. A fora desses princpios no condicionamento da posio de Hume pode ser observada no momento mesmo de formulao da prpria questo acerca da relao das percepes para com algo tal como um eu: Elas so todas diferentes, distinguveis e separveis umas das outras; podem considerar-se separadamente e podem existir separadamente; no necessitam de nada para lhes sustentar a existncia. De que maneira, portanto, pertencem ao eu e que conexo tm com ele? (HUME, 2001, p.300)i.

Assim formulada a questo, que outra resposta ela admitir seno a bundle theory? Cabe registrar aqui duas observaes finais. No incomum os intrpretes fazerem a ressalva de que, nessa teoria, no se trata tanto de negar a existncia de um eu, mas antes de esclarecer que ele no consiste em uma entidade distinta e independente das percepes associadas e que seria ainda responsvel pela prpria unidade das percepes, mas antes que ele consiste em uma entidade complexa que se reduz a suas partes. A isso se pode reagir por afirmar que uma entidade com tal natureza no o que se intenciona com a noo de eu e que, de fato, se no se est negando a a existncia de um eu, ento se est revisando drasticamente essa noo e se comprometendo com a concepo (de inspirao newtoniana) de que todas as propriedades que cremos caber a um eu (destacadamente, a propriedade intencional de representar ou de pensar em algo como sendo tal e tal) cabe s percepes em um nvel pr-pessoal (as percepes sem mais produzem, atraem, influenciam, etc. umas as outras). Como veremos, Hume permite-se falar (e, na verdade, precisar recorrer noo de) operaes, propenses e disposies da mente, o que prima facie se coaduna mal com seu atomismo e fenomenalismo integral11. Alguma caridade hermenutica dever ser admitida, se no quisermos ver isso como a inconsistncia de pressupor um agente psquico unitrio no momento mesmo em que ele pretende explicar a identidade do eu como um epifenmeno resultante das "atraes" entre as prprias percepes. Parece que se deve tolerar, at um julgamento final do mrito da bundle theory, que Hume fale, no limite da plausibilidade, que o mero agregado de percepes faz certas coisas (como, por exemplo, confunde seqncias distintas de percepes) ou tem certas propenses e disposies. Por fim, cabe observar que o problema da identidade pessoal primeiro mencionado por Hume no contexto de sua crtica de uma prova da realidade externa tendo por base os sentidos, enfim, de uma prova emprica da objetividade da experincia ou da existncia de11 Pode-se nesse ponto identificar uma eventual dificuldade: Como compatibilizar a pretensa iseno ontolgica da mera anlise gentica das idias e os compromissos ontolgicos assumidos acerca da mente e de suas qualidades? Bem, cabe dizer, de sada, que a iseno ontolgica diz respeito existncia ou no de objetos correspondentes s percepes e independentes delas, mas no diz respeito existncia das prprias percepes que valem e vigoram enquanto dados imediatos de conscincia. Por outro lado, pertinente perguntar se tais percepes seja quanto a sua existncia ou quanto a sua identificabilidade e cognoscibilidade estariam em uma relao de dependncia para com propenses ou capacidade mentais e, enfim, para com um sujeito distinto dessas qualidades mentais. Esse ser um dos pontos que discutiremos no terceiro captulo desta dissertao, quando nos ocuparmos com avaliao da consistncia e validade da concepo associacionista de eu defendida por Hume.

objetos externos. Segundo Hume, tal prova emprica da objetividade ou do mundo externo pressuporia que pudssemos comparar, segundo a faculdade dos sentidos, os objetos e ns mesmos para ento observarmos que os objetos so distintos de ns, externos a ns e independentes de ns mesmos; mas, diz Hume, a dificuldade est, ento, em saber em que medida ns mesmos somos objetos de nossos sentidos. Nesse contexto, Hume introduz o problema da identidade pessoal como sendo o problema da observabilidade do eu e antecipa sua concluso ctica a esse respeito:No h dvida de que no h em filosofia questo mais difcil de compreender do que a referente identidade e natureza do princpio de unidade que constitui uma pessoa. Longe de sermos capazes de decidir esta questo apenas pelos nossos sentidos, temos de recorrer metafsica mais profunda para lhe dar uma resposta satisfatria; e, na vida corrente, evidente que estas idias do eu e da pessoa nunca so muito fixas nem determinadas. , pois absurdo pensar que os sentidos podem jamais distinguir entre ns prprios e os objetos exteriores (HUME, 2001, p.233)ii.

Hume claro: a prpria questo difcil de compreender, a mera determinao da questo requer consideraes metafsicas, a conscincia de si como pessoa ou self apenas uma vaga idia do senso comum que no encontra lastro nas impresses sensveis. Como comum observar em relao a muitos enunciados categricos do Tratado, podemos sempre encontrar outros pronunciamentos de Hume que destoam francamente deste seu sumrio veredicto, tal como, por exemplo, o seguinte: evidente que a idia, ou melhor, a impresso de ns prprios, nos est sempre intimamente presente e que a nossa conscincia nos d uma concepo to viva da nossa prpria pessoa, que no possvel imaginar que qualquer coisa possa ultrapass-la neste ponto (HUME, 2001, p.373)iii.

Aqui, a conscincia de si apresentada no como uma vaga idia, mas como uma vvida impresso que cada um tem de si mesmo. Isto parece suficiente para nos fazer reconhecer que a questo da identidade pessoal no tanto uma questo abstrusa quanto uma questo complexa a requerer ainda at mesmo uma adequada formulao, o que tentaremos aqui atravs da exposio e discusso da concepo de identidade pessoal formulada por Hume. Para tanto, nossa dissertao se desenvolver segundo a seguinte estrutura. No primeiro captulo, apresentaremos a teoria das idias de Hume, que, por seu carter atomista e empirista, constituir a base para sua reduo no apenas das coisas e suas propriedades a percepes, mas tambm para a reduo da mente a um mltiplo associativo

de percepes. No segundo captulo, discutiremos a crtica que Hume, guiado por seu atomismo e empirismo, empreende da idia genrica de substncia, no interesse de esclarecer sua tese de que o nico contedo cognitivo determinado de uma tal idia consistiria na noo de mera coleo de percepes distintas e independentes. No terceiro captulo, exporemos as conseqncias de sua teoria das idias e de sua crtica da noo de substncia para sua concepo da identidade pessoal como uma fico que tem o carter de um auto-engano sistemtico explicvel por razes psicolgicas. Ainda nesse captulo final, deveremos, ento, nos perguntar se uma tal concepo pode valer como adequada interpretao do prprio fenmeno da unidade pessoal da mente; com isso, teremos oportunidade de destacar e discutir algumas dificuldades que a concepo de Hume da identidade pessoal deve ter de enfrentar.

CAPTULO 1 A TEORIA DAS IDIASNo temos idias perfeitas de nada seno das percepes (HUME, 2001, p.280).

INTRODUO GERALSe levarmos em conta a maneira direta, sumria e pouco argumentada como Hume expe, na primeira parte do livro I do Tratado, as noes bsicas de sua teoria, tentador concordar com a afirmao de Barry Stroud (STROUD, 1991, p.17) de que a teoria das idias de Hume , em certa medida, tomada de emprstimo, sem maiores crticas, dos seus antecessores modernos e que ela representa antes a afirmao do que eram para Hume verdades j estabelecidas sobre a mente. Nesse sentido, a preocupao central na primeira parte do livro I do Tratado pareceria ser a de simplesmente dispor os elementos gerais que mais tarde sero empregados, ainda neste livro I, em sua anlise do entendimento, sobretudo na anlise das noes de causalidade e de substncia. Nosso propsito especfico no presente captulo no s o de apresentar de maneira sistemtica esses elementos tericos que esto na base da crtica ctica de Hume, sobretudo, idia de identidade pessoal, mas tambm, se formos bem sucedidos, o de mostrar como essa base terica no , na verdade, simplesmente herdada s cegas e apenas empregada inusitadamente de maneira ctica. Antes, Hume a deriva, de maneira conseqente, de certos princpios gerais que, estes sim, tem um valor quase axiomtico para Hume. Esses princpios so, a nosso ver, cinco:

(1) Princpio representacionista, segundo o qual s temos acesso direto exclusivamente aos dados imediatos da conscincia12:Podemos notar que todos os filsofos aceitam, sendo, alm disso, bastante evidente por si, que nada realmente presente ao esprito a no ser as suas percepes ou impresses e idias, e que os objetos exteriores se nos tornam conhecidos apenas mediante as percepes iv por eles ocasionadas.(HUME, 2001, p.101) .

(2) Princpio epistmico de existncia, segundo o qual o que pode ser conhecido de maneira clara e distinta pode existir tal como concebido e s o que 13 assim conhecido pode ser afirmado existir com certeza :

12 Poder-se-ia pretender reconhecer nesse ponto a seguinte dificuldade: Em funo do prprio princpio representacionista, como Hume pode ainda falar das percepes como ocasionadas, alis, como causadas por objetos externos? Quanto a isso cabe observar que Hume no precisa negar a existncia de causas externas das percepes e, assim, interditar-se de falar das percepes como ocasionadas, visto que ele antes est comprometido com a negao da possibilidade de conhecer tais causas externas enquanto realidades independentes das percepes, de modo que, para Hume, nossa idia de objeto externo, bem concebida, no pode ser mais do que a idia de percepes tomadas em certas relaes: O mais longe que podemos ir nocaminho dos objetos exteriores, considerados especificamente diferentes das nossas percepes, formar deles uma idia relativa, sem pretender compreender os objetos relacionados. Falando de modo geral, no os supomos especificamente diferentes; apenas lhes atribumos diferentes relaes, conexes e duraes (HUME, 2001, p.101). Por isso, Hume pode considerar essa questo quanto s causas das percepes, mais especificamente, das impresses, como uma questo que no cabe a ele decidir em sua tentativa tanto de mostrar o carter absurdo da idia de um objeto independente, quanto de descrever a gnese intramental da idia de objeto externo: Quanto s impresses que resultam dos sentidos, sua causa ltima , na minha opinio, completamente inexplicvel pela razo humana, e ser sempre impossvel decidir com certeza se elas resultam imediatamente do objeto ou se so produzidas pelo poder criativo da mente ou se so derivadas do autor do nosso ser. De qualquer modo, uma tal questo nem relevante para nosso presente propsito. Podemos extrair inferncias a partir da coerncia de nossas percepes, sejam elas verdadeiras ou falsas, sejam elas representaes apropriadas da natureza ou meras iluses dos sentidos (HUME, Tratado, livro I, parte III, seo V).

13 quase dispensvel dizer que, assim como o princpio anterior, tambm esse princpio j reconhecido remonta a Descartes, Princpios, I, 43: certo, porm, que jamais viremos a tomar o falso pelo verdadeiro se dermos assentimento somente quilo que percebemos clara e distintamente (...) Isso est de tal sorte impresso pela natureza nos nimos de todos [ns] que, todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que no seja verdadeiro. Para a definio de clareza e distino cf. Princpios, I, 45 (traduo coordenada por Guido de Almeida, Ed. UFRJ, 2002).

Tudo o que se concebe claramente pode existir; e tudo o que se concebe claramente de certa maneira pode existir dessa mesma v maneira. Este um princpio que j foi reconhecido.(HUME, 2001, p.280) .

(3) Princpio idealista, segundo o qual (pace Descartes)

14

apenas a familiaridade ou apreenso direta de dados imediatos de conscincia enquanto tais uma

forma de conhecimento claro e distinto e, assim, seguro ou dotado de certeza:

vi No temos idias perfeitas de nada seno das percepes (HUME, 2001, p.280) .

(4) Princpio atomista, segundo o qual os dados distintos so existentes simples independentes:

Tudo o que distinto distinguvel; e tudo o que distinguvel separvel pelo pensamento ou imaginao. Todas as percepes so distintas. So, portanto, distinguveis e separveis, podem conceber-se como existindo separadamente e podem existir separadamente, vii sem contradio ou absurdo (HUME, 2001, p.725) .

(5) Princpio empirista, segundo o qual uma idia s inteligvel e vlida, caso se possa faz-la remontar a percepes sensveis ou impresses simples da qual ela seria derivada:

No se pode compreender perfeitamente uma idia sem remontar sua origem e sem examinar a impresso original donde ela provm (HUME, 2001, p.109)viii.Esses princpios esto, sem dvida, em uma estreita relao entre si e possvel reconhecer certas relaes de dependncia entre eles. Contudo, o que deveremos enfatizar na seqncia do presente captulo que o mais caracterstico de Hume o princpio atomista que, combinado com os trs primeiros, no s impe o princpio empirista em uma acepo bem estrita, mas, sobretudo, acarreta todas as conseqncias cticas que, pelo menos no caso da 15 identidade pessoal, parecem deixar perplexo o prprio Hume . O princpio (3), numa palavra, o idealismo subjetivo de um Berkeley, introduz uma drstica restrio no que pode ser conhecido em conformidade com os princpios cartesianos (1) e (2). A introduo do princpio (4) por parte de Hume radicalizar essa restrio, na medida em que (pace toda filosofia moderna) ele impe entender a distino fundamental da filosofia da conscincia entre o mental e o no-mental como uma distino entre, por um lado, os dados imediatos de conscincia enquanto percepes simples e discretas e, por outro lado, qualquer pretenso subsistente independente de ser um dado

14 Poder-se-ia pretender ver aqui uma dificuldade: Como justificar a afirmao de que este princpio idealista seria anti-cartesiano? Embora Descartes assuma que no podemos conhecer qualquer objeto a no ser atravs de nossas idias dos objetos (princpio representacionista), ele tambm assume que (i) idias e objetos so coisas essencialmente diferentes e que, (ii) sob certas condies, os objetos podem ser afigurados nas idias exatamente tal como eles so em si mesmos e, assim, que podemos ter conhecimento claro e distinto de realidades independentes das idias. Bem, o princpio idealista deve ser entendido aqui como uma negao de (i) e (ii), visto que, contra (ii), restringe o conhecimento claro e distinto, que nos possvel, nossa familiaridade com nossas prprias idias enquanto tais e, assim, contra (i), no admite como legtima a afirmao de que objetos so realidades distintas e independentes das idias. 15 Poder-se-ia objetar nesse ponto que, em sua exposio, o prprio Hume no reconhece o carter derivado do princpio empirista, mas antes oapresenta como o primeiro princpio que eu estabeleo na cincia da natureza humana (HUME, 1978, p.7). Cabe ao restante do presente captulo responder a essa objeo por mostrar

Como uma antecipao de nossa idia central, podemos dizer que, na medida em que o princpio atomista garanta que as qualidades em geral so existentes independentes, ento s caber entender os contedos representacionais ou como sendo dados ltimos de qualidades sensoriais, isto , impresses concebveis em separado, ou como sendo produtos das relaes contingentes entre esses dados sensoriais na experincia.como, por assim dizer, na prtica, ao princpio atomista que Hume precisa recorrer, em ltima instncia, para a justificao de suas teses mais relevantes.

imediato de conscincia, vale dizer, quaisquer substncias. Isso o faz estender a dvida ctica at atingir no s as coisas fsicas (um suposto suporte de qualidades percebidas existindo independentemente de ser percebido), vale dizer, as substncias materiais ou corpos, mas tambm substncias at ento no questionadas, tais como, e mais relevantemente, a alma ou eu (um suposto existente contnuo atravs de todas as percepes da mente enquanto sujeito idntico dessas percepes possudas por ele e das quais ele seria distinto e independente). O ponto dessa radicalizao operada por Hume consiste em que se ter de enfrentar a dificuldade de justificar a prpria referncia a uma mente una individual, visto que s se tem familiaridade perceptiva direta com qualidades mentais (com o que tem o carter de dado imediato de conscincia ou de percepo) e, assim, uma familiaridade com a mente una individual seria, absurdamente, como se a conscincia de si fosse a conscincia de uma qualidade mental e, assim, como se a mente fosse a uma qualidade da mente 16 . Desse modo, a idia de uma mente una individual, enfim, a idia de eu no poderia ser

mais do que a idia do prprio agregado dessas qualidades mentais, alis, de percepes ou dados conscientes. Como j se disse, a tese de Hume sobre a identidade pessoal, que comearemos a discutir apenas no prximo captulo, , falando metaforicamente, a de que a mente no como o fio contnuo de um colar de contas, mas apenas como a prpria interligao dos elos de uma corrente. Antes, no presente captulo, apresentaremos a teoria das idias de Hume que constituir a base para sua reduo no apenas das coisas e suas propriedades a percepes, mas tambm para a reduo da mente a percepes, concebendo assim um fenomenalismo integral nunca visto antes, uma teoria da mente sem eu, um inusitado ceticismo acerca da identidade pessoal.

16

Cf. ALLAIRE: The Attack on Substance: Descartes to Hume. In TWEYMAN, S. (ed.): David Hume. Critical Assessments; Vol.III. London. Routledge, 1995, pp.73-76.

1.1. O PRINCPIO ATOMISTA DE ANLISE

NA TEORIA DAS IDIAS

Todas as idias distintas so separveis (HUME, 2001, p.122); Todas as nossas percepes distintas so existncias distintas (HUME, 2001, p.727).

Na primeira parte do Tratado, na exposio da doutrina das impresses e idias, podemos ver atuar enquanto uma espcie de axioma um princpio de anlise que, a nosso ver, determinante das principais concepes humeanas acerca da mente nessa obra, sobretudo daquela concepo ctica acerca da identidade pessoal que ser nosso tema principal no presente trabalho. Temos em vista aqui o que chamaremos de princpio atomista de anlise, um princpio que Hume apenas eventualmente formula e que ele quase nunca se sente na obrigao de defender por meio de argumentos expressos, embora ele seja responsvel, como argumentaremos, por tudo o que h de mais caracterstico nas posies de Hume. Por toda parte, mesmo quando usa um vocabulrio que menciona coisas, qualidades, relaes, corpos, etc., Hume fala nica e to somente de percepes, posto j ter feito, de sada, algumas assunes que ele s eventualmente enuncia, a saber: (i) que objetos e seus atributos s nos so dados indiretamente por meio de dados imediatos da conscincia, nomeadamente, por meio de percepes, (ii) que s o que dado claro e distintamente pode existir com certeza e (iii) que s percepes so dadas clara e distintamente e, assim, s percepes existem. Em tudo isso se v a presena da filosofia da conscincia moderna, mas no vemos ainda o prprio Hume com seu fenomenalismo integral, segundo o qual percepes so nelas mesmas existentes discretos, irredutveis uns aos outros e independentes de tudo o mais, at mesmo de um suposto sujeito percipiente, pois para tanto ser preciso ainda introduzir precisamente o seu princpio atomista. Esperamos poder chegar, na seqncia, a explicitar a operao desse princpio atravs de um comentrio exposio de Hume de sua teoria das idias. Hume comea sua exposio por simplesmente afirmar uma taxonomia geral das percepes da mente. As percepes so ou impresses (percepes vvidas sentidas) ou idias (plidas imagens no pensamento). Quanto a sua origem, as impresses so ou impresses de sensao (modificaes sensoriais da mente segundo causas desconhecidas: ou dados sensoriais ou impresses de prazer e dor) ou impresses de reflexo (modificaes da mente derivadas simplesmente de outras impresses ou tambm da conjuno de impresses com idias, tais como as emoes calmas ou as emoes

violentas, isto , as paixes17), enquanto as idias so ou idias da memria (imagens remanescentes diretas das impresses) ou idias da imaginao (imagens formadas indiretamente por decomposio e por recombinao de imagens antecedentes). Quanto a sua natureza, tanto impresses quanto idias so ou complexas (envolvendo em si outras impresses e/ou idias distintas) ou simples (no envolvendo em si nada que seja distinto dela prpria). Esse modo direto e categrico de introduzir as noes centrais de sua anlise da mente (no primeiro livro, trata-se da anlise to somente do entendimento) pode induzirnos a supor que Hume estaria simplesmente reafirmando sem maiores anlises certas noes bsicas que seriam completamente ordinrias, se no para nosso modo de pensar natural, pelo menos para o pensamento filosfico de sua poca. Nada teramos a ganhar dessa suposio para a compreenso da teoria humeana, como tampouco para a nossa avaliao dela. Na verdade, Hume pretende poder obter tudo isso por considerao reflexiva da sua prpria experincia e espera que seu leitor chegue aos mesmos resultados por considerar a experincia de si prprio. Quando ele generaliza suas concluses para alm dos seus prprios dados de conscincia, Hume s vezes recorre a frmulas precavidas tais como: atrevo-me a afirmar do resto dos homens... (HUME, primeiro aspecto que atrai o meu olhar ... (HUME, experincia constante... (HUME,2001, 2001,

p.301). Ao apontar para as

evidncias em favor de sua anlise, Hume recorre invariavelmente a frmulas tais como o2001,

p.30), verifico mediante uma

p.32), etc., e pretende extrair desses pretensos fatos

introspectivos certas conseqncias inevitveis determinando a correta concepo da natureza da mente. A quem questiona tais fatos, diz Hume, no conheo outro meio de o convencer, seno pedir-lhe que apresente um contra-exemplo (HUME, 2001, p.31). Nesse esprito, a observao inicial de que parte Hume (aquele primeiro aspecto que atrai seu olhar) a de que impresses (o que sentimos) e idias (o que pensamos) se mostram constantemente com uma correspondncia tal entre si que cabe concluir por uma duplicidade das percepes: todas as percepes so duplas e aparecem tanto como impresses quanto como idias (HUME, 1978, p.2). Hume pretende com isso apenas afirmar sua constatao de uma semelhana perfeita ou igualdade entre impresses e idias: todas as nossas idias e impresses so semelhantes (HUME, 1978, p.3). Contudo, uma17 Cf. HUME, 1978, p.275, onde a distino em questo formulada em termos de impresses originrias e impresses secundrias. Quanto s paixes, elas ainda se deixaro classificar (HUME, 1978, p.276) como sendo ou diretas ("as arise from immediately good or evil, from pain or pleasure) ou indiretas ("such as proceed from the same principle, but by the conjunction of other qualities").

vez que ele constata tambm casos em que no temos idias exatamente correspondentes a certas impresses (a impresso formada pela viso dos mltiplos aspectos de uma cidade ao passear por ela no encontra correspondncia em uma idia em que se afigure exatamente todos esses aspectos vistos), nem impresses para certas idias (a idia fictcia de uma cidade com muros e paredes de pedras preciosas e ruas pavimentadas de ouro no tem correspondncia em impresses), ele se v obrigado a restringir a tese da duplicidade ou correspondncia de impresses e idias. Hume acredita poder fazer isso ao observar tambm que, por um lado, os casos onde no h correspondncia so aqueles em que esto em jogo uma multiplicidade de impresses ou idias combinadas e que, por outro lado, quanto menos complexa ou mais simples for a impresso ou idia maior tambm sua correspondncia, de modo que se faz pertinente introduzir a distino (lockeana) entre percepes (impresses e idias) simples e complexas. Nesse sentido, a tese da correspondncia entre impresses e idias pode ser restringida to somente ao caso das impresses e idias simples. Ocuparemos-nos no restante da presente seo apenas com esta ltima tese acerca da distino entre percepes simples e complexas e to somente na seo seguinte voltaremos a tratar detidamente das teses acerca da correspondncia e mera diferena de grau entre impresso e idia, e isso no contexto de nossa anlise da tese empirista de que idias apenas so inteligveis e vlidas se derivam de impresses. O critrio de simplicidade que Hume emprega parece inicialmente determinar uma noo meramente relativa de simples e complexo, no sentido de que bastariam poder ser distinguidos elementos constituintes na percepo de um objeto para que essa percepo de objeto fosse considerada como complexa e, em contrapartida, para que seus constituintes fossem considerados como elemento mais simples. isso, pelo menos, que parece sugerir o seguinte exemplo de Hume:Embora uma cor particular, um sabor e um odor sejam qualidades conjuntamente unidas desta maa, fcil perceber que no se confundem, mas podem pelo menos se distinguir umas das outras.(HUME, 2001, p.30)ix.

Contudo, esse critrio no pode ser o de Hume, pois ele tambm ergue a pretenso de que, por exemplo, uma cor (ou um som) seja um caso de impresso absolutamente simples, embora, segundo o critrio de simplicidade que se acabou de formular, a cor deveria poder ser identificada como complexa, uma vez que podemos distinguir nela outros constituintes, tais como: o matiz, a luminosidade e a saturao da cor, mas tambm a figura delineada

pela cor (ou a altura, a intensidade e o timbre em um som, mas tambm sua direo espacial). Esses elementos poderiam ser tomados como elementos constitutivos j que eles podem ser distinguidos (e, por princpio, mesmo esses elementos poderiam, por sua vez, vir a serem identificados como complexos, caso encontrssemos neles ainda outros elementos distinguveis). Contudo, Hume no parece se dar conta dessas dificuldades, porquanto ele no argumenta prontamente em favor de seu critrio de simplicidade. De todo modo, est claro que o problema com o critrio de simplicidade, que formulamos inicialmente, encontra-se na noo de ser distinguvel que ocorre nele, embora no tenhamos ainda clareza sobre o que Hume tem em vista ao falar em distinguibilidade de uma percepo. A noo de ser distinguvel ser determinada por Hume atravs do recurso noo de ser separvel, vale dizer, ser determinada por certo princpio de separabilidade que, de sada, se deixa enunciar de maneira bastante direta e que Hume pretende poder justificar diretamente:Temos observado que quaisquer objetos que so diferentes so distinguveis e quaisquer objetos que so distinguveis so separveis pelo pensamento e imaginao (HUME, 1978, p.18)x.

Um primeiro exemplo direto de Hume da aplicao desse princpio diz respeito precisamente sua pretenso de que, na percepo da ma, sua cor, aroma e gosto particulares seriam ao menos distinguveis (at least distinguishable, p.2) e, assim, o pensamento pode facilmente produzir uma separao (can easily produce a separation, p.10), no sentido de que e essa parece ser a interpretao mais pertinente inicialmente o pensamento pode conceber distintamente a idia da cor particular em questo em separado, vale dizer, sem conceber a idia ou do aroma ou do gosto particulares em questo, e vice versa. Assim formulado, o princpio parece enunciar to somente uma capacidade analtica do pensamento, um procedimento metdico com um valor cognitivo inestimvel, enfim, parece ser simplesmente um critrio epistmico de reconhecimento das partes constituintes e no-interdependentes18 de algum todo. Caso nos contentemos com essa determinao da noo de ser distinguvel, teremos18 No caso de partes interdependentes prprias a um todo, o princpio no se aplica; pense-se no todo chamado de casal: a parte marido no concebvel de maneira distinta independentemente da concepo da parte esposa. Aparentemente, essa seria uma interpretao possvel tambm para o caso, abordado na seqncia, de cor e figura, embora precisssemos, ento, conceber um todo no qual cor e figura seriam momentos interdependentes, o que conflitar com a pretenso atomista de Hume de dispensar qualquer sujeito necessrio de inerncia, de reduzir a flatus vocis toda aparente conexo de percepes, no caso, a conexo entre partes e destas com um certo todo.

um problema para entender Hume, pois ela no garante que a cor seja uma percepo simples, visto que, na percepo de algo colorido, no podemos identificar a cor separadamente, se no de seu matiz e intensidade19, ento pelo menos da figura. Contudo, Hume sustenta que no caso de uma cor e sua figura no se trata de constituintes distinguveis na percepo de algo colorido, a despeito de podermos mencion-los e falar deles como se o fossem:Assim, quando nos apresentado um globo de mrmore branco, apenas recebemos a impresso de uma cor branca distribuda numa certa forma, e no somos capazes de separar e distinguir a cor e a forma (HUME, 2001, p.54)xi.

Esse o caso de uma mera distino de razo, qual no precisa corresponder nada de efetivamente distinguvel e, assim, de diferente, na medida em que o que assim apenas racionalmente distinguvel, mas no realmente distinguvel, no concebvel um sem o outro, no concebvel separado e independentemente. Hume acredita que se ns podemos chegar a formar as idias abstratas da cor branca e da forma esfrica a partir, por exemplo, da percepo de um globo de mrmore branco apenas porque este comparado, por exemplo, com um globo de mrmore negro e com um cubo de mrmore branco e ns reconhecemos que, a cada vez, o globo de mrmore se encontra em diferentes relaes de semelhana sob distintos aspectos (ele semelhante ao globo de mrmore negro quanto forma e semelhante ao cubo de mrmore branco quanto cor), os quais aprendemos a abstrair apenas racionalmente e a combinar com certa palavra (branco, esfera) que, voltando a ocorrer, ser ento capaz de suscitar de novo sempre alguma percepo particular de branco com certa figura qualquer ou de uma figura esfrica com certa cor qualquer20.19 Na verdade, em sua crtica s idias abstratas (HUME, 2001, p.47), Hume argumentar que o grau de uma qualidade inseparvel da prpria qualidade (e.g. o comprimento determinado de uma linha inseparvel da linha, p.19), de modo que uma percepo em seu carter de dado particular de conscincia no distinguvel e separvel daquilo que faz dela exatamente uma percepo particular (a saber, seu grau) e no uma idia genrica (e.g. a impresso de uma cor s a impresso particular de uma cor particular, na medida em que a impresso desta cor exatamente com este matiz, com esta luminosidade, com esta saturao). O que parece ainda que podemos perguntar o seguinte: no , porm, tambm individuador de uma qualidade que ela seja qualidade inerente a isto e no quilo, vale dizer, qualidade de um indivduo e no de outro? O que faria, no caso da prpria qualidade, com que cores perfeitamente semelhantes em seu matiz, luminosidade e saturao no fossem numericamente a mesma cor e, no caso da percepo, que elas no fossem numericamente a mesma percepo, seno o serem elas cores de diferentes indivduos e percepes de diferentes sujeitos ou em diferentes momentos da conscincia de um mesmo sujeito? 20 No h dvida de que Hume concorda com Berkeley em sua negao de idias abstratas na acepo lockeana de imagens gerais, o que no exclui que Hume, diferentemente de Berkeley, pretenda ainda explicar geneticamente qual seria o contedo cognitivo dessas pretensas idias abstratas e avance assim na descrio do suposto mecanismo psicolgico que faria com que idias individuais, que so sempre imagens de objetos particulares, ao associarem-se a palavras gerais, possam funcionar como se fossem universais (HUME,

Chegamos assim a determinar certo sentido de ser distinguvel que poderia ser fixado na forma do que seria natural chamar de princpio de separabilidade epistmica: um A (brancura) e um B (esfericidade) so distinguveis no efetivamente, mas apenas racionalmente, caso se possa identificar A independentemente de se identificar B, ainda que no se possa identificar alguma instncia do tipo A (uma cor) sem identificar alguma instncia do tipo B (uma figura). Formulando mais concretamente, a brancura e a esfericidade so distinguveis apenas no sentido epistmico de que a brancura pode ser identificada independentemente de se identificar a esfericidade, e vice versa, na medida em que, afinal, a brancura pode ser identificada por relao a algo de no esfrico, mas talvez cbico, e a esfericidade pode ser identificada por relao a algo no branco, mas talvez negro, ainda que, em qualquer um desses casos, a identificao da cor requerer a identificao de alguma figura particular qualquer e a identificao da figura requerer a identificao de alguma cor particular qualquer, de modo que cor e figura no so realmente diferentes e distinguveis. Ora, essa determinao perfeitamente plausvel da noo de ser distinguvel em um sentido estritamente epistmico de separabilidade no , porm, tudo o que Hume tem em vista quando sustenta que uma cor, um sabor, um aroma so distinguveis enquanto percepes simples. De fato, Hume atribui uma fora muito maior a seu princpio de separabilidade ao entender a separao em questo como dizendo respeito ao modo de existncia das percepes: o que distinguvel separvel em pensamento e, diz Hume, pode ser concebido como existente em separado e pode existir separadamente sem qualquer contradio ou absurdidade (HUME, 1978, p.634)xii. Sob tal acepo, o princpio de separabilidade parece poder ainda ser entendido em pelo menos dois sentidos: (1) ele pode estar enunciando simplesmente que qualidades1978, p.20). Nesse ponto, as concepes de Berkeley e Hume se diferenciam em razo do primado que Hume concede s palavras nesse contexto, como bem esclarece Husserl: Diferentemente do que quer Hume, Berkeley no concede to somente ao nome geral o poder de fazer com que as representaes singulares acompanhantes sejam representantes das demais representaes singulares da mesma classe. De acordo com Berkeley, nomes gerais podem, por si s, sem correspondentes representaes singulares, funcionar como representantes, mas tambm as representaes singulares desacompanhadas de nomes podem funcionar assim e, por fim, pode ocorrer ambos simultaneamente, nesse caso, porm, no recai nenhum privilgio sobre o nome em sua ligao com o representante representativo. De qualquer modo, continua vigorando, contudo, o principal: a generalidade reside na representatividade, e esta concebida por Hume expressamente como subrogao, por parte de uma singularidade que aparece, das outras singularidades, que, tal como Berkeley se expressou, so psiquicamente sugeridas pela primeira ou, como Hume diz diretamente, so evocadas na memria (segunda Investigao Lgica, 32, p. 189-190 da edio Husserliana).

concebidas distintamente em separado existem separadamente em relao umas s outras (pode-se identificar o vermelho da ma em separado das idias do aroma e do gosto da ma, na medida em que podemos ter essa idia de vermelho ou efetuar sua identificao por relao, digamos, a uma bola de bilhar vermelha que no tem qualquer aroma ou gosto); (2) ou ele pode estar enunciando que uma qualidade concebvel distintamente por si e, assim, existindo separadamente de qualquer outra qualidade um existente absolutamente independente de qualquer outra coisa, enquanto uma unidade no s epistemicamente identificvel por si (qualitativamente distinta), mas tambm ontologicamente simples e discreta (numericamente distinta)21. Neste ltimo sentido, temos um princpio de separabilidade ontolgica que merece ser chamado, por razes bvias, de princpio atomista. Que Hume tem em vista justamente essa acepo ontolgica do princpio de separabilidade prova-o o fato de que ele ainda argumenta nos seguintes termos:De ambos estes princpios [sc. o princpio de que aquilo que claramente concebido pode existir tal como concebido e o princpio de que aquilo que diferente distinguvel e, assim, tambm separvel], concluo que, sendo todas as nossas percepes diferentes umas das outras, e diferentes de todas as outras coisas do universo, elas so tambm distintas e separveis e podem ser consideradas como existindo separadamente, bem como podem existir separadamente e no tm necessidade de nenhuma outra coisa para lhes servir de suporte existncia. (HUME, 2001, p.280)xiii.

De fato, esse princpio aquele que deve intervir decisivamente em todo o curso da anlise de Hume e deve determinar suas concluses cticas. Por exemplo, assume-se que a conexo causal entre B e C (um evento antecedente e um subseqente) no necessria, se o dado B concebvel distintamente e, assim, pode existir em separado do dado C, bem como entende-se que o vnculo de inerncia ou de incluso de algo D (uma qualidade) com um F (algum tipo de coisa) no um vnculo necessrio, se D distintamente concebvel e, assim, existe independentemente, enquanto F, por sua vez, sequer identificvel por si clara e distintamente, mas apenas por meio de D. Mas o que dizer desse princpio atomista, segundo o qual qualquer percepo distinta no tm necessidade de nenhuma outra coisa para lhes servir de suporte existncia e, assim, perfeitamente concebvel como a nica coisa existente em todo o universo? Uma expressiva reao de perplexidade j encontrou expresso nos seguintes termos:21 A diferena deve ser considerada antes como a negao de qualquer relao: considero-a mais como uma negao de relao do que como algo de real ou positivo. H duas espcies de diferena, conforme se ope identidade ou semelhana. A primeira chama-se diferena de nmero, e a segunda de gnero (HUME, 2001, p.44).

De fato, se tomarmos Hume ao p da letra, devemos tom-lo como querendo dizer que ele no veria nenhum absurdo na observao de Alice: Muito bem! Tenho visto freqentemente um gato sem sorriso, mas um sorriso sem um gato! Isso a coisa mais curiosa que eu j vi em toda minha vida (COOK apud NOONAN, 1989, p.86-7). Noonan explicita o ponto desta reao ao indicar o que lhe parece ser a falha no raciocnio de Hume: o fato de x ser distinto de y no pode acarretar que ele seja separvel de y, caso se entenda ser separvel como significando que x existe compatvel com y no existe, posto que, no nvel de generalidade em que o argumento de Hume pretende valer, o fato de x ser distinto de y no pode acarretar que x possa ser identificado independentemente de algum y. Assim, o amassado em um metal distinto do metal, na medida em que eles no apresentam mente o mesmo objeto, mas o amassado no distinguvel do metal a no ser no sentido de que eu poderia fazer algum entender a que amassado se refere tomando em considerao no metal, mas talvez argila e, de qualquer forma, tomando em considerao algum tipo de material no qual o amassado se encontra muito menos ele poderia existir como algo por si, como nico existente em todo o universo (NOONAN, 1989, p.87). Parece claro que a crtica aqui , fundamentalmente, a de que seria simplesmente ilegtima a simples transio sem mais do sentido epistmico para o sentido ontolgico de separabilidade, enfim, a de que o princpio atomista ainda requer algum argumento independente. Pode-se identificar apenas um momento em que Hume argumenta expressamente em favor de seu princpio atomista e mesmo assim em seu Apndice ao Tratado (HUME, 1978, pp.634-635): Quando observo esta mesa e aquela chamin, nada me est presente a no ser percepes particulares, que so de natureza igual a todas as outras percepes. Esta a doutrina dos filsofos. Mas esta mesa, que me est presente, e aquela chamin podem existir e existem separadamente. Esta a doutrina do vulgo e no implica contradio. No h pois contradio em estender a mesma doutrina a todas as percepes (HUME, 2001, p.725). Primeiramente, ele argumenta que, por um lado, j est estabelecido como doutrina dos filsofos que, no ato de perceber, por exemplo, uma mesa e uma chamin, apenas percepes particulares esto presentes mente e que, por outro lado, no se questiona de

ordinrio trata-se da doutrina do vulgo que, sem qualquer absurdidade, mesa e chamin existem separadamente, donde dever-se-ia concluir que tambm no se incorreria em absurdo por se estender essa caracterstica de ser separado a todas as percepes que so aquelas que efetivamente so dadas mente no ato de perceber a mesa e a chamin. Esse um bom argumento? Sem entrar no mrito das premissas, parece que a forma do argumento aqui falaciosa, pois se argumenta que uma caracterstica (= existir separadamente) do todo (= mesa e chamin enquanto percepes complexas) tambm uma caracterstica de cada uma de suas partes (= cada percepo identificvel distintamente na percepo da mesa e da chamin), como se, por exemplo, o fato de a seleo do Brasil e a da Argentina terem a caracterstica de serem rivais inconciliveis permitisse concluir que cada um dos jogadores de cada seleo tambm fosse rival inconcilivel, embora seja perfeitamente concebvel que alguns desses jogadores sejam amigos fraternos. Um segundo argumento de Hume o de que um pensamento inteligvel e consistente (intelligible or consistent) com respeito aos objetos o tambm, necessariamente, com respeito s percepes, posto que um pensamento s inteligvel ou consistente se as idias que o constituem so derivadas de percepes antecedentes. Ora, um tal pensamento com respeito aos objetos o de que objetos existem distintos e independentemente (objects exist distinct and independent), de modo que a inteligibilidade ou consistncia desse pensamento depende de suas idias constitutivas remontarem a percepes antecedentes, vale dizer, depende de ele ser vlido com respeito s percepes; logo, percepes existem distinta e independentemente. O argumento bom? Aqui mais difcil ver exatamente o ponto do argumento, at porque ele faz apelo a um princpio empirista de significao que ainda no discutimos. De todo modo, raciocinando por analogia, parece ser um pensamento inteligvel ou consistente o de que um globo de mrmore mais pesado que um alfinete. Mas de modo algum seria vlido, antes pelo contrrio, seria absurdo pensar como o impe a premissa de Hume de que o que vale para os objetos vale tambm para as percepes dos objetos22 que as percepes22 De modo mais plausvel, Hume, em outro contexto, argumentar, inversamente, que, em funo da dependncia de idias com respeito a impresses, o que vlido das impresses deve ser vlido das idias correspondentes: Ora uma vez que todas as idias se originam de impresses e no so seno cpias e representaes delas, tudo o que verdade acerca de umas, deve reconhecer-se como verdadeiro acerca das

a relevantes para a significatividade desse pensamento so elas prprias percepes mais ou menos pesadas entre si. Portanto, assim como o que vlido do todo no vale imediatamente com respeito s suas partes, tambm o que vlido acerca do objeto percebido no pode ser atribudo, sem absurdo, percepo que se tem do objeto. Que os argumentos no sejam bons permite concluir to somente que o princpio atomista est por ser justificado e, na verdade, o fato de Hume se ocupar to pouco em defend-lo e assumir simplesmente que no est em seu poder (Hume, 1978, p.636) renunciar a ele faz parecer que, aos olhos de Hume, a justificao para o princpio atomista se encontraria, antes de tudo, naquela que para Hume a mais forte das justificaes, a saber, se encontraria na evidncia do que lhe salta aos olhos (strikes my eyes), na evidncia introspectiva direta acessvel a cada um. Em suma, tal como descrita por Hume, a percepo clara e distinta a percepo de dados imediatos de qualidades e no de uma coisa qualquer que supostamente teria tais qualidades, de modo que o que existe com certeza so os dados imediatos de qualidades sem mais ou, numa palavra, so as percepes como existncias distintas: todas as nossas percepes distintas so existncias distintas (HUME,1978

, p.636). Adicionalmente, a

percepo clara e distinta de dados imediatos no , primariamente, sequer a percepo de mltiplos dados imediatos de qualidades, mas antes a percepo a cada vez simpliciter de um nico dado imediato atmico, cuja existncia no requer nem implica a existncia de qualquer outro dado ou, mais geralmente, de qualquer outro existente em relao com ele, visto que a mente nunca percebe qualquer conexo real entre existncias distintas (HUME,1978

, p.636). Obviamente, essa no nossa experincia ordinria, em que cada um cr perceber

coisas dotadas de propriedades e em certas relaes. Contudo, Hume no v isso como uma prova da falsidade de sua teoria, mas antes v como uma indicao de que a teoria nos deve ainda uma explicao de como, a partir simplesmente de percepes atmicas, chegamos a ter o tipo de experincia ordinria que, de fato, temos, vale dizer, nos deve uma explicao da gnese das idias complexas de substncia, de modo ou atributo, de relao, etc. a partir de percepes simples. A correta compreenso do tipo e do mtodo de explicao gentica intencionada por Hume depende, porm, da introduo de uma nova tese, nomeadamente,outras (HUME, 2001, p.48).

da tese empirista.

1.2. O PRINCPIO EMPIRISTA DE SIGNIFICAO

No se pode compreender perfeitamente uma idia sem remontar sua origem e examinar a impresso original donde ela provm (HUME, 2001, p.109).

Hume procede sua anlise atravs da inspeo de sua prpria mente e guiado pelo princpio atomista. Ele parte da diviso aparentemente exaustiva e exclusiva, segundo a qual todo e qualquer dado mental ou uma impresso ou uma idia23: Todas as percepes do esprito humano reduzem-se a duas espcies distintas que denominarei impresses e idias.(HUME, 2001, p.29)xiv. Um problema que deve ser mencionado quanto a isso o de que tal diviso parece no abranger tudo aquilo que o prprio Hume menciona no Tratado como pertencente ordem do mental, a saber, no abrange aquelas tendncias, propenses ou disposies da mente24. Isso importante, sobretudo, porque essas disposies ou propenses naturais da mente, muito operantes e pouco enfatizadas no incio da anlise de Hume, devem chegar cada vez mais a desempenhar um papel central em sua anlise gentica das idias que, aparentemente, se reduziria a tomar em conta to somente os tomos mentais na absoluta contingncia de suas ocorrncias e associaes. Caber-nos-, na prxima seo do presente captulo, fazer uma primeira avaliao desse ponto, embora to somente no terceiro captulo de avaliao crtica da sua teoria da mente estaremos em condio de discuti-lo expressamente. Seja como for, o que, segundo Hume, nos permite diferenciar uma impresso de23 Falando das impresses, mas tendo claramente em vista as percepes em geral, Hume afirma: By the term impression I would not be understood to express the manner, in which our lively perceptions are produced in the soul, but merely the perceptions themselves; for which there is no particular name in the English or any other language, that I know of. (HUME, 1978, p.2, nota 1). Ele parece mencionar aqui uma ambiguidade estado-objeto do termo percepo que poderia designar tanto a faculdade-processo de perceber, quanto, por assim dizer, o produto ao qual se chega por meio de tal faculdade-processo, vale dizer, o percebido; fazendo assim, Hume no deixa dvida de que seu uso do termo percepo ser para designar no o estado, mas sim (no esprito de Locke) o objeto mental, o dado presente mente. Hume esclarece, ento, que as impresses so todas as nossas sensaes, paixes e emoes, em sua primeira apario na alma (HUME, 1978, p.1). caracterstico do atomismo de Hume (e de seus embaraos) que ele tente passar sem a noo de ato na caracterizao do mental. 24 O Prof. Jlio Esteves fez-nos ver que a distino em questo pode ainda ser considerada como exaustiva se entendida, como a inteno de Hume, como aplicando-se aos contedos representacionais, pois as disposies mentais no tm, de fato, o carter de ser representao. Contudo, ainda acreditamos que se mantm o problema que pretendamos indicar, a saber, o de que o atomismo irrestrito de Hume com sua pretenso de recorrer exclusivamente s noes de percepo e de qualidade associativa de percepes na caracterizao da mente ter problemas em acomodar na sua concepo do que mental alguns elementos que, no entanto, se mostraro cada vez mais como centrais, a saber, precisamente as disposies e capacidades mentais de operar com representaes.

uma idia, so os diferentes graus de fora e nitidez com os quais cada um desses tipos de percepo se apresenta mente: A diferena entre estas reside nos graus de fora e vivacidade com que elas afetam a mente e abrem caminho para o nosso pensamento ou conscincia. (HUME, 2001, p.29)xv. Elas so diferentes apenas no grau, no na natureza. (HUME, 2001, p.31)xvi. Assim, uma impresso (sensao, emoo ou paixo), por um lado, e uma idia, por outro lado, possuem a mesma natureza, vale dizer, so percepes, o que equivale a dizer que no diferem em suas propriedades mais bsicas, isto , em suas qualidades genricas de serem dados particulares presentes mente. Poder-se-ia dizer que, assim, Hume naturaliza as idias, posto que, faz delas realidades mentais particulares que, ele ainda acrescentar, apenas representam particulares. Hume parece considerar a diviso das percepes em impresses e idias como sendo bvia o bastante para dispensar maiores comentrios, posto que a qualquer um , de pronto, evidente a diferena existente entre o que diz respeito impresso sentida e idia concebida: Cada um de per si facilmente entender a diferena entre o sentir e o pensar (HUME, 2001, p.29)xvii. Segundo esses critrios, as impresses so, ento, fortes e ntidas e as idias fracas e sem nitidez (idias so faint images). Essas qualificaes sugerem propriedades tanto concernentes percepo enquanto evento com certos graus de realidade (forte-fraco), como tambm percepo enquanto contedo de representao (ntido-no ntido). A nfase de Hume principalmente sobre o aspecto concernente ao evento perceptivo, isto , sua nfase sobre os graus de fora para distinguir impresso e idia pode, talvez, ser explicado pelo fato de que o critrio concernente ao contedo apenas um critrio relativo, pois que mesmo idias (pelo menos as simples e as no muito complexas) podem vir a se apresentar conscincia de maneira clara e distinta e, assim, com plena nitidez, tal como originalmente se d, de pronto, com as impresses. Contudo, tambm o critrio dos graus de fora relativo, pois, como o prprio Hume ressalta, so concebveis situaes (e.g. no sonho ou no delrio da demncia) em que uma idia seja to intensa quanto uma impresso ou, inversamente, situaes (talvez no caso de emoes calmas, tais como o sentimento do belo na contemplao esttica) em que impresses sejam to fracas quanto idias. Em resposta a esses possveis contra-exemplos, Hume no retira ou restringe seu critrio, mas antes simplesmente afirma que os graus de intensidade com que aqueles tipos de percepes se apresentam so facilmente discernveis no estado de viglia e sob condies normais da percepo, de modo que cada um poderia por si reconhecer a diferena que ele

pretende demarcar. Em introspeco e estabelecendo como independente aquilo que distinguvel Hume passa ao tpico da relao entre impresses e idias e afirma, ento, no s sua tese de que impresses e idias esto em correspondncia e so semelhantes, mas tambm, mais fortemente, sua tese de que impresses so primrias e todas as idias simples so delas derivadas: que todas as nossas idias simples no seu primeiro aparecimento derivam das impresses simples que lhes correspondem e que elas representam exatamente. (HUME, 2001, p.32)xviii. Na medida em que Hume defender ainda que as demais idias apenas chegam a formar-se, em ltima instncia, pela combinao de idias simples seja por fora da experincia natural de conjunes constantes entre elas, seja por fora da liberdade irrestrita da imaginao em efetuar decomposies e recombinaes no naturais de idias , podemos antecipar a forma integral de seu princpio empirista de significao nos seguintes termos: todo pensamento discursivo, enquanto constitudo por idias, apenas chega a ser significativo se suas idias constituintes remontam a impresses, seja de maneira direta, no caso de idias simples, seja de maneira indireta, no caso de idias complexas. Em conseqncia, Hume entende, ento, seu estudo da mente como um exame da gnese das idias a partir das impresses simples e erige as impresses em fonte de inteligibilidade e validade para qualquer idia: No se pode compreender perfeitamente uma idia sem remontar sua origem e examinar a impresso original donde ela provm (HUME, 2001, p.109). Este princpio empirista de significao que decorre, de maneira conseqente, de se conceber a mente atomisticamente e, assim, de s poder entender os contedos representacionais ou como sendo dados ltimos de impresses sensoriais concebveis em separado ou como sendo produto das relaes contingentes entre esses dados na experincia ser determinante, como veremos, na crtica humeana idia de substncia enquanto a idia obscura e indistinta de um mero algo que perduraria essencialmente imutvel e independente das qualidades que, na verdade, seriam os dados unicamente percebidos pela mente de maneira clara e distinta. Detenhamo-nos, ento, em examinar como Hume pretende estabelec-lo. Hume parte da observao de que:O primeiro aspecto que atrai o meu olhar a grande semelhana entre as nossas impresses e idias em todos os pontos, exceto no seu grau de fora e vivacidade. Umas parecem ser, de certo modo, reflexos das outras; de tal maneira que todas as percepes do esprito so duplas e aparecem quer como

impresses, quer como idias. (HUME, 2001, p.30)xix.

Esta relao de correspondncia25 entre impresses e idias (vlida sem mais, como j vimos, para o caso das percepes simples e apenas indiretamente para o caso das percepes complexas: como as idias complexas so formadas das simples, podemos afirmar de modo geral que essas duas espcies de percepo se correspondem exatamente; HUME, 2001, p.32)xx pode ser chamada de tese da correspondncia ou semelhana. Contudo, visto que semelhana uma relao simtrica, nada se decide a acerca de qualquer precedncia de um ou outro desses dois tipos de percepes. De todo modo, a prpria tese da correspondncia entre impresses e idias no de modo algum clara quando tomamos letra a pretenso de que correspondncia significa aqui semelhana, pois o que seria a semelhana entre a idia de vermelho e a sensao de vermelho, entre a idia de dor e a sensao de dor? Hume usar expressamente tal tipo de indagao para questionar que certas idias tenham qualquer lastro sensvel, tenham correspondncia com as impresses, mas ento ele se bater com idias aparentemente gerais ou abstratas, tais como esfericidade ou justia, mas tambm com idias de tipos, espcies ou categorias de entes, tais como as idias de coisas e pessoas, de atributos e relaes. Ora, a relao de semelhana no se torna mais clara e inteligvel apenas porque as idias em questo so no s eventos mentais particulares, mas tambm so contedos representacionais referidos a particulares. O modelo de correspondncia e semelhana entre impresses fortes e imagens ideativas fracas requer sim maior determinao e esclarecimento, embora o prprio Hume o considere bvio a qualquer um que se detenha a observar suas prprias percepes. Hume toma em conta a ordem de surgimento (the order of their first appearance; HUME, 1978, p.5) na mente para chegar a estabelecer a tese empirista de que idias simples (mas tambm, indiretamente, as complexas) sempre derivam causalmente de impresses simples enquanto so as remanescentes destas ltimas no pensamento; esta tese pode ser chamada de tese da precedncia ou da cpiaxxi. Enfim, a conjuno constante de25 Toda a impresso simples acompanhada por uma idia correspondente e toda idia simples por uma impresso correspondente. Desta conjuno constante de percepes semelhantes concluo imediatamente que existe uma forte conexo entre as nossas impresses e idias, e que a existncia de umas exerce influncia considervel sobre a existncia das outras. Uma tal conjuno constante, num to ilimitado nmero de casos, no pode nunca provir do acaso, provando claramente que h dependncia das impresses com relao s idias, ou das idias com relao s impresses (HUME, 2001, p.32); A conjuno constante das nossas percepes semelhantes prova convincente de que umas so causas das outras; e esta prioridade das impresses igualmente prova de que as nossas impresses so as causas das nossas idias, e no as nossas idias as causas das nossas impresses (HUME, 2001, p.32)

impresses e idias seria (j que sua constncia parece descartar que seja uma conjuno meramente acidental) uma evidncia da dependncia entre impresso e idia, sem ainda determinar uma assimetria nessa relao de dependncia, de modo que a tese da precedncia precisa ainda ser introduzida segundo consideraes adicionais que, na linha de anlise de Hume, no podem deixar de ser consideraes acerca do modo como impresses e idias aparecem a ns, assim, por apelo ao que nos aparece em nossa prpria experincia considerada da perspectiva da primeira pessoa, vale dizer, como produto de uma mera observao da prpria experincia. Embora no faa nenhuma enumerao exaustiva de casos e simplesmente apele intuio do leitor, Hume pondera, inicialmente, que algo que se produz to universalmente quanto essa correspondncia de impresses e idias (a conjuno constante que acontecem recorrentemente; a constant conjunction, in such an infinite number of instances; HUME, 1978, p.4) no seria obra do acaso, mas antes deveria revelar uma dependncia causal entre essas percepes, restando apenas estabelecer a prioridade de umas em relao s outras. Para que saibamos qual representa a causa e qual o efeito cabe descobrir qual surge primeiro na mente (their first appearance; HUME, 1978, p.5). Hume adota diferentes linhas argumentativas para estabelecer a precedncia das impresses: (i) diz que tal precedncia descoberta pela experincia constante (by constant experience; ibidem, p.5) e afirma que sempre (allways) a impresso precede idia e nunca (never) aparecem na ordem contrria; (ii) apela ao exemplo de como uma criana pode chegar a adquirir idias simples tais como a de vermelho ou a de amargo por apresentar a ela objetos que transmitam a ela essas impresses; (iii) considera o quo absurdo seria pretender suscitar uma impresso simples to somente por pensar nela, (iv) enquanto que, inversamente, a presena de qualquer impresso simples seria suficiente para produzir sua idia correspondente; (v) remete ao caso em que a falta da faculdade de ter certo tipo de impresso (quando, por exemplo, se nasce cego ou surdo) acarreta no apenas a falta de impresses do tipo em questo, mas tambm das idias correspondentes. Por tudo isso, Hume pretende poder concluir que toda idia simples, em sua primeira apario na mente, precedida por uma impresso simples, qual ela corresponde como um reflexo ou cpia (apenas sem o mesmo grau de vivacidade e nitidez). De sada, pode-se dizer, de maneira bem geral, que questionvel que meros fatos acerca da nossa experincia (o fato de que um cego que no tem impresso de cor no ter

idia de cor, o fato de que, via de regra, no encontramos ou produzimos uma idia simples que no esteja relacionada a qualquer impresso simples que percebemos antecedentemente, etc.) possam dar sustentao pretenso de uma precedncia temporal das impresses em relao a suas idias correspondentes; exemplos podem mostrar que algumas idias so precedidas por alguma percepo sensvel, mas isso no o mesmo que afirmar que cada idia simples sempre precedida na mente por sua impresso simples correspondente. Para tanto, como observa Stroud (Cf. HUME, 1978, pp.25-26), dever-se-ia ainda tomar em considerao aspectos gerais relativos prpria natureza da percepo e estabelecer as premissas de que quando algo visto, ouvido, etc., h necessariamente percepes presentes mente e de que as percepes presentes mente quando algo visto, ouvido, etc., no so mais do que impresses, vale dizer, dados qualitativos atmicos, maneira do que ser consagrado expressamente mais tarde na forma da teoria dos sensedata; premissas essas que dependeriam de consideraes mais detidas acerca da percepo que Hume chega, de fato, a mencionar (HUME, 1978, pp.210-211, 226-267), mas que, porm, no chega a discutir no contexto de uma argumentao em defesa dos fundamentos de sua teoria empirista das idias, mas antes as menciona como se fizesse observaes a respeito de fatos j bem conhecidos por experincia ou observao da vida humana (STROUD, 1991, pp.26-27). Enfim, Hume defende seu princpio da dependncia unilateral de idias com respeito s impresses adotando basicamente a seguinte linha de raciocnio: (A) para cada idia simples h uma impresso simples correspondente; ora, (B) cada idia