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QUANDO CLIO SE APAIXONOU POR HERMES: PAUL RICOEUR E AS PRÁTICAS HISTORIOGRÁFICAS Eduardo Gusmão de Quadros Resumo: A hermenêutica percorreu um caminho tortuoso na história das Ciências Humanas. Dos primórdios teológicos, ganhou a reflexão filosófica e, então, foi aplicada aos fundamentos da metodologia histórica. Um autor que articula esses três campos é Paul Ricoeur. Esse artigo analisa o diálogo deste pensador com a historiografia. Palavras-chave: hermenêutica, epistemologia, historiografia WHEN CLIO FALLING LOVE TO HERMES: PAUL RICOEUR AND HISTORIOGRAPHICAL PRACTICES Abstract: The hermeneutic traverse awkward paths in human science history. It arises theological, pass to philosophical reflections and then was applied in epistemological investigations of History. Paul Ricoeur was a thinker that joints these three areas. We analyze in this text how He dialogued with historiographical theories. Word-keys: hermeneutic, epistemology, historiography Doutor em História pela UNB. Professor da Universidade Estadual de Goiás. 1

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QUANDO CLIO SE APAIXONOU POR HERMES: PAUL RICOEUR E AS PRÁTICAS

HISTORIOGRÁFICAS

Eduardo Gusmão de Quadros

Resumo: A hermenêutica percorreu um caminho tortuoso na história das Ciências

Humanas. Dos primórdios teológicos, ganhou a reflexão filosófica e, então, foi aplicada aos

fundamentos da metodologia histórica. Um autor que articula esses três campos é Paul

Ricoeur. Esse artigo analisa o diálogo deste pensador com a historiografia.

Palavras-chave: hermenêutica, epistemologia, historiografia

WHEN CLIO FALLING LOVE TO HERMES: PAUL RICOEUR AND

HISTORIOGRAPHICAL PRACTICES

Abstract: The hermeneutic traverse awkward paths in human science history. It arises

theological, pass to philosophical reflections and then was applied in epistemological

investigations of History. Paul Ricoeur was a thinker that joints these three areas. We

analyze in this text how He dialogued with historiographical theories.

Word-keys: hermeneutic, epistemology, historiography

“As causas em história, como de resto em

qualquer outro domínio, não se postulam.

Investigam-se...” Marc Bloch

Com esta frase termina o manuscrito inconcluso de Marc Bloch sobre o trabalho do

historiador. A ênfase no caráter investigativo do conhecimento histórico decorre de Bloch

considerá-lo científico, ainda que criticasse o positivismo. A história seria uma “ciência na

infância” (s.d.:19), mas uma ciência verdadeira.

Todo conhecimento científico é caracterizado por seu objeto e seu método. O objeto

da história, a obra de Bloch delimita logo no primeiro capitulo: “os homens no tempo”

(id.:29). O método, isso é um pouco mais complicado. Uma coisa Marc Bloch diz com

Doutor em História pela UNB. Professor da Universidade Estadual de Goiás.

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clareza: o modelo das ciências da natureza não precisam ser impostos às ciências humanas

(id.:22). Por isso, os historiadores têm uma palavra dominando e iluminando seus estudos,

o termo “compreender” (id.:125).

Esta compreensão ocorre de maneira dinâmica. Do presente os pesquisadores

tentam compreender o passado para conhecer melhor a seu próprio tempo (id.:39). Mas, por

outro lado, o tempo do pesquisador também se projeta, “fabrica” uma imagem do passado.

Isto ocorre porque só o atingimos através dos “vestígios” conservados (id.:52). Rompendo

com os padrões da escola metódica vigentes em sua época, Bloch afirma que o historiador

não deve apenas descrever, ele deve reinterpretar e “forçar” suas fontes a falar (id.:60).

O companheiro de Marc Bloch na revista Annales d’histoire economique et sociale,

Lucien Febvre, sintetizou este principio com uma frase lapidar: o historiador cria seus fatos

(1977:24). Não é que ele seja como um mágico retirando um coelho da cartola. Os eventos

não saem de sua imaginação. Mas é através das questões propostas aos documentos que o

passado vai sendo reconstruído. Elaborar um fato, define ele, “é fornecer uma resposta a

uma pergunta”. (id.:25).

A influência de Dilthey sobre os dois parece óbvia1. Marc Bloch estudou na

Alemanha (1908 em Leipzig, 1909 em Berlim). Respirou os ares da renovação do

historicismo, época em que Weber, Simmel e Troeltesch estavam produzindo. Já Febvre

conhecera a Alemanha como capitão do exército francês, na Primeira Grande Guerra

(MASTROGREGORI, 1998:20). As referências a Dilthey em sua obra são escassas, porém

a presença é certa. Gerard Noiriel demonstra isto através das biografias, tão caras a Febvre,

e na oposição feita ao objetivismo da escola durkheiniana. No seu lugar, o co-fundador dos

Annales propusera uma espécie de “subjetivismo hermenêutico” (NOIRIEL,1989:1443).

Quando Fernand Braudel sucedeu Lucien Febvre na direção da revista, a abordagem

hermenêutica foi sendo abandonada. Os parâmetros “objetivos” impuseram-se nas ciências

humanas. A problemática inicial do Mediterrâneo tem a marca ainda de Febvre, é verdade.

A questão da qual Braudel partiu foi a relação entre um personagem e seu contexto. No

entanto, a reposta diverge completamente das biografias febvrianas. Filipe II termina

desaparecendo diante das grandes durações, que “sempre” vencem (1983:625). 1 Jose Carlos Reis afirma que o método compreensivo de ambos seria mais influência de Weber que de Dilthey (1996:80). Não podemos entender como ele consegue distinguir claramente dois autores alemães que tem tanto em comum. Alem disso, o trabalho de formulação dos tipos ideais weberianos não está tão presente na obra dos referidos historiadores.

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Argutamente, o próprio Febvre percebeu esse desvio, comentando o livro de Braudel em

um artigo intitulado “Caminhando para uma outra história” (1977:199-228; grifo nosso).

A expressão “história-problema”, da primeira geração dos Annales, continuou a ser

utilizada (cf.FURET,s/d), sem permanecer, entretanto, com toda sua carga epistêmica. Os

“problemas” passaram a ser conceitos objetivos como os ciclos econômicos, as curvas de

crescimento populacional, as estruturas sociais ou mentais, tudo isso imerso em

“movimentos” seculares. Chegou-se até a propor o paradoxo de uma “história imóvel”

(cf.DOSSE,1992:231). A busca deste “pensamento cientificista, racionalista e a-histórico”,

indica Goldmann, relaciona-se intimamente com a volta do crescimento capitalista-

burocrático na Europa pós Segunda Guerra (1988:7).

Foi a crise dos parâmetros normais das ciências2 humanas - ou seja, dos paradigmas

estruturalistas e marxistas, durante os anos oitenta - que levou-as a procurar novos

caminhos. Uma rica tradição mais ou menos esquecida era a abordagem hermenêutica. A

questão do sentido voltou então a ser um problema importante neste processo de

“rehumanização” dos estudos sociais e históricos, como aponta Dosse (1995).

Com a elaboração deste texto, visamos abordar um dos caminhos possíveis desta

renovação, a hermenêutica histórica3 elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur.

Deixamos claro, entretanto, que não somos filósofos e não pretendemos expor o

pensamento deste autor. Apenas retiramos de suas obras algumas idéias e conceitos que

consideramos importantes para a construção de uma prática historiográfica4 relevante ao

momento atual.

1 – Da periferia para o centro

Nos manuais de introdução aos estudos históricos publicados no Brasil, a

hermenêutica costuma aparecer pouco. Trata-se dela quando o tema é a “crítica interna” do

documento. Jean Glenisson, por exemplo, afirma que a hermenêutica nos deve garantir a

2 O conceito de ciência normal, proposto por Tomas Kuhn (1978:24), remete ao processo de institucionalização de certas teorias e métodos, tornando-se um habitus da comunidade científica. Isto impede a renovação e abafa as perspectivas críticas.3 Assim denominamos o projeto hermenêutico de Ricoeur por ser processual, pela ênfase na referência ao mundo social, na narrativa e na ação.4 Por práticas historiográficas entendemos as formas relativamente padronizadas de objetivação do saber histórico por meio da escrita.

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“boa compreensão do pensamento profundo de seu autor” (1977:173). Já Ciro Flamarion

Cardoso diz que ela nos levaria a “apreender o conteúdo exato e o sentido de um texto”

(1992:59). Mas como obter a “boa compreensão” e o “sentido exato” de um documento? A

hermenêutica se reduziria a isso? Se esta é uma das operações básicas do conhecimento

histórico, não seria relevante uma abordagem mais aprofundada? O que seria interpretação

em História? Pretendemos discutir estas questões no decorrer deste artigo, primeiramente

retomando, mesmo que de maneira rápida, a história do pensamento hermenêutico. Nossa

hipótese é que ela ocupa, na verdade, uma posição central nos procedimentos

historiográficos.

A problematização da interpretação e a construção de sua técnica constituiu-se nos

primórdios do cristianismo. Se antes já haviam textos considerados sagrados, o nascimento

da Teologia – ou seja, de um conhecimento religioso respaldado pela filosofia,

particularmente a helênica – translocou o modus operandi da fé judaica para um livro.

Antes do cristianismo, a religião de Israel fundamentava-se em uma interpretação dos

processos históricos a partir de determinadas intervenções de Deus (RAD,1973). A

canonização dos escritos que formaram o Antigo e o Novo Testamentos trouxeram para os

textos reunidos na Bíblia a referência básica para o conhecimento do divino5.

Sem pretender retomar aqui os debates surgidos desde essa época em torno das

técnicas interpretativas, nos interessa destacar a relação básica entre texto e verdade ou, em

termos religiosos, escritura e revelação. Este princípio percorreu o mundo intelectual por

séculos, sendo a base utilizada para a fundamentação científica da História.

Na Alemanha do século XIX, a Escola Metódica tentou romper com o que

considerava uma “história filosófica”, marcada pelas opiniões e próxima da literatura.

Leopold von Ranke foi o historiador modelo nesses esforços. O objetivo do historiador,

ensinava, seria narrar o passado como realmente aconteceu a partir de um conjunto de

documentos confiáveis. Esses documentos revelariam os eventos históricos. Ora, já se

notou, com propriedade, a íntima relação entre a fé pessoal de Ranke e suas obras6. Peter

Gay até o chamou, com ironia, de “monge” da Ordem Histórica (1990:73). Antes, porém,

5 Ressaltamos que cânon na língua grega significa o padrão pelo qual se mede.6 Sérgio Buarque de Holanda, no seu ensaio sobre Ranke, afirma que ele adaptara o método critico dos estudos bíblicos para a critica documental (HOLANDA,1979:17). A relação entre o protestantismo e as obras de Ranke foi explorada por Gay (1990:77-93).

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de aprofundarmos neste esforço de cientificar o conhecimento histórico, devemos abordar

as idéias de Schleiermacher.

Friedrich Schleiermacher foi um importante teólogo e pastor dessa época. Para

garantir a participação da Teologia na recém organizada Universidade de Berlim, ele teve

de tentar fundamentar cientificamente o método teológico. Foi durante os cursos ali

proferidos, que Schleiermacher ampliou as técnicas interpretativas e exegéticas do texto

bíblico, chegando a uma teoria geral da compreensão. A hermenêutica, ele ensinava em

1829, deveria possibilitar toda “compreensão do discurso estranho” (1999:26).

Para isso, deveriam ser considerados com profundidade os aspectos gramaticais e

lingüísticos de um texto. A principal característica dessa hermenêutica geral, todavia,

localiza-se na tentativa de atingir a mente do escritor. Em suas próprias palavras, a

hermenêutica seria “a arte de descobrir os pensamentos de um autor” (id.:30). Note-se o uso

do termo “arte” na assertiva. Schleiermacher fazia parte do movimento romântico alemão,

concebendo que a interpretação deveria combinar regras metodológicas com um aspecto

“divinatório”. As intenções do autor seriam atingidas somente pela intuição do intérprete

(id.:42).

Leopold von Ranke também fora professor na Universidade de Berlim. Mas

pertencendo a uma geração posterior àquela de Schleiermacher, buscou superar o traço

intuitivo e idealista do método interpretativo. É como se ele quisesse desfazer-se da “arte”

na investigação e ficasse somente com as regras metodológicas. Mas princípios comuns

entre os dois professores podem também ser encontrados. A ênfase no específico, por

exemplo, considerada por Meinecke (1982) a característica maior do movimento

historicista. Shleiermacher ensinava que quanto mais difícil apreender as articulações

gerais, mais se deveria procurar seus traços no particular (1999:52). Conforme Ranke, seria

exatamente no particular que seria encontrado o geral (apud.HOLANDA,1979:146).

A história “metódica” praticada por Ranke e congêneres, ressaltando a heurística, a

crítica dos documentos e a objetividade dos fatos ficou próxima do Positivismo. Com este

termo, caracterizamos o forte movimento no meio intelectual transnacional que visava

edificar uma ciência plena, verdadeira e absoluta, base do progresso humano. Para atingir

tal meta, o pressuposto era que o sujeito do conhecimento deveria ser “apagado”. Por isso

que, para Habermas, o positivismo assinala o fim da epistemologia (1987:89). Sem sujeito,

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o ato de conhecer fica estranhamente reduzido ao método e aos dados empíricos. O fato, a

realidade, o documento “falariam” por si mesmos.

Estas concepções marcaram profundamente as práticas historiográficas. É comum,

por exemplo, ao pretenderem abordar as teorias da história, os historiadores acabarem

tratando muito mais de métodos. Diz-se que a maioria não gosta de “filosofia”, de

abstrações. Mas isso não é questão de gosto pessoal. O positivismo que recebemos de

herança pretende realmente imunizar as ciências contra a filosofia (HABERMAS, id.:90).

Resta-nos o empirismo enquanto pseudo-teoria7, e com isso prosseguem os trabalhos

baseados em um ingênuo realismo8.

Na concepção positivista, a ciência seria una. William Dilthey, que aderira ao

positivismo em sua juventude (FREUND,1977:88), contrapôs-se na maturidade a tal

concepção. Dedicou-se, então, a elaborar um projeto epistemológico específico para

“ciências do espírito”. Seu projeto, lançado em 1883, tem como eixo a recuperação e a

ampliação da hermenêutica.

Toda ciência, conforme Dilthey, partiria da experiência (1978:5). As ciências

naturais fariam as suas de forma controlável, mensurável, sendo reproduzíveis em

laboratórios. As ciências humanas seriam bem diferentes, interessando-se pelo lado oposto:

as experiências subjetivas. Este é seu objeto: as vivências. Como os humanos são seres

históricos, estando em constante mudança, o caminho correto para estudá-los não é

buscando leis, mas a profunda compreensão.

Isto não quer dizer que não possam haver generalizações nas ciências

hermenêuticas. Elas têm por objetivo conhecer a experiência singular, entretanto este

conhecimento só torna-se possível pela abstração (id.:37). Daí a importância das biografias

para Dilthey. Os indivíduos seriam as unidades psicofísicas e de sentido fundamentais

(id.:42). Depois deles, viriam os povos (id.:49).

É importante destacar o peso que Dilthey confere à presença do pesquisador na

produção do conhecimento. Segundo ele, não existe nada imediatamente dado, pois os

“dados” são produzidos também por meio de operações lógicas (id.:403). As teorias que

nos guiam fazem “recortes na massa terrivelmente complexa dos fatos”, de forma a atingir 7 A palavra teoria origina-se de theoros, que implica na participação ativa do observador em um ato celebrativo. Para esta origem etimológica ver Gadamer (1997:206).8 Peter Burke denuncia que até um passado recente, os historiadores desconsideravam a realidade como algo mediatizado por construções e representações (1992:26).

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sua inteligibilidade (id.:85). Há ainda uma “pensabilidade” pertinente a cada época e a cada

cientista, escapando-lhe sempre aos investigadores as causas últimas (id.:381).

Faltou explicitar o que Dilthey entende por compreensão. Primeiramente, é bom

deixar claro que, como lembra Freund, a distância entre a explicação das ciências naturais e

a compreensão das ciências humanas não é tão grande como geralmente se diz, inexistindo

“um limite bem definido” (1977:100). Ou seja, na verdade, quando se estudam os seres

humanos, buscar compreendê-los é também tentar explicá-los. Porém, como fazê-lo?

Dilthey responde que seria através das capacidades da imaginação. Ou seja, ao retomar a

hermenêutica de Schleiermacher e colocá-la como fundamento das ciências humanas, ele

acabara carregando junto o idealismo. Tal concepção, em historia, foi claramente defendida

por Collingwood:

...o historiador de política ou de problemas militares, tendo presente um relato de certas ações praticadas por Julio César, tenta compreender estas ações, isto é, descobrir que pensamentos desenrolados na mente de César o levaram a praticá-las. Isto acarreta como conseqüência o facto de o historiador conjecturar para si a situação em que César pensava acerca dessa situação, assim como as possibilidades de resolve-la. A história do pensamento, e portanto de toda a historia, é a constituição, na mente do historiador, do pensamento passado. (s.d.: 268)

O conhecimento da história da humanidade, segundo ainda o idealismo de Dilthey,

levaria ao conhecimento de si mesmo, à reflexão sobre finitude histórica de todo ser

humano. Foi este o aspecto explorado por Martin Heidegger, provocando uma guinada

ontológica na hermenêutica. A atitude de compreender passou a constituir o ser (1988:187).

Ser e Tempo, lançada por Heidegger em 1927, foi dedicada a Edmund Husserl. Este

matemático-filósofo tentou superar as teorias relativistas, como a proposta por Dilthey ou

por Nietzsche, através de um novo método: a fenomenologia. A ênfase recaía nos objetos,

nos “fenômenos”, e não naquele que conhece. O sujeito do conhecimento, por sinal, deveria

ser reduzido ao máximo para que a “coisa” aparecesse (a epochè). Contudo, ele não era

exatamente um racionalista, pois considerava a intuição a forma principal do conhecer9.

9 Na obra A idéia de fenomenologia, escrita em 1907, Husserl chega a definir razão como “um conhecimento intuitivo” que visa atingir “o menos possível de entendimento, mas o mais possível de intuição pura” (2000:92). Trataremos aqui somente deste “primeiro” Husserl, o que lançou as bases da fenomenologia.

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Outro aspecto importante do método de Husserl está na ênfase da relacionalidade de todo

saber. O verdadeiro entendimento surgiria nas conexões, conforme escreveu (2000:106).

Martin Heidegger tentou aplicar tal método ao estudo do ser, particularmente na

primeira parte de sua obra. Mas Heidegger também sofrera a influencia da onda

nietzschiana que correu a Republica de Weimar. O pensamento de Nietzsche pode ser

considerado como uma absolutizaçao da hermenêutica10. Foi através dela que ele

desenvolveu seu combate contra o positivismo. Na obra Para alem do Bem e do Mal há um

aforismo que sintetiza este combate: “Não existem fatos, somente interpretações”11.

Além de tudo isso, Martin Heidegger foi um pensador profundamente original. Com

suas reflexões as questões ligadas a existência humana tomaram uma nova dimensão.

Problematizar o ser, ele ensina, leva à pergunta pelo sentido (HEIDEGGER,1988:49). Seria

possível captá-lo? A resposta dada é afirmativa. Porém, isso só seria possível dentro de um

“círculo hermenêutico”. Com esta metáfora do círculo, Heidegger explorou a

relacionalidade de todo e qualquer conhecimento. A compreensão, destino do ser, dá-se em

forma de abertura para a significância (id.:198).

A ação de compreender está correlacionada com a de interpretar. A interpretação,

ele define, é a elaboração das “possibilidades projetadas na compreensão” (id.:204). Ocorre

sempre uma projeção do ser, assim como a interpretação é realizada sob uma pré-visão. Na

filosofia heideggeriana, o conhecer se dá de forma dinâmica e interativa; a metáfora do

círculo é ao mesmo tempo didática e complexa.

A historiografia, acusou Heidegger, pretende produzir um conhecimento

independente do observador (id.:210). Os Historiadores se iludem. Não se pode evitar o

“círculo” da compreensão, pois ele pertence à própria estrutura do sentido (id.:ibid.). Desta

tentativa de fuga, Hans-Georg Gadamer partiu para construir uma nova abordagem

hermenêutica das ciências humanas12.

10 Esta é a leitura, por exemplo, de Foucault (1997). Nos abstemos de discutir aqui se sua leitura de Nietzsche estaria correta.11 Seguimos aqui a tradução americana, conforme citada por Ansell-Pearson (1997:48). Na edição brasileira a frase é: “Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (NIETZSCHE,1998:73). Neste mesmo livro pode-se conferir os ataques que fez à concepção positivista do conhecimento (id.:115seq).12 No prefácio à segunda edição de Verdade e método, com o intuito de responder a alguns críticos, ele afirma que não queria propor uma teoria para as ciências humanas, mas apenas um método filosófico. Todavia, diz que seu método realmente pode ter conseqüências mais gerais (1997:14).

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A filosofia feita por Gadamer confere grande importância à História. Sua linguagem

também é menos hermética que a heideggeriana. De modo estranho, todavia, sua principal

obra, Verdade e Método, inicia abordando a estética, a experiência com a arte. Isto decorre,

a nosso ver, da sua preocupação em primeiro pensar a experiência singular, que é o objeto

do conhecimento histórico (1997:41).

Na segunda parte do livro, é que Gadamer trata mais especificamente das “ciências

do espírito”, como costuma chamar. Os historiadores trabalham com a interpretação dos

textos, afirma, mas não visam os próprios textos, tendo como “horizonte” o extratextual

(id.: 499). Existe um “outro” entre as linhas do documento. Articular a própria experiência

com a deste outrem constitui o ato de compreensão. Na ótica gadameriana, ela surge

quando há “fusão de horizontes” (id.:457).

Este acesso aos outros, contudo, não ocorre de forma livre, já estando pré-

determinada pela tradição. A ênfase na tradição, na pré-compreensão ou no pré-conceito,

como ele diz, caracteriza a hermenêutica gadameriana. Partimos sempre do já sabido

(id.:527). O “horizonte do perguntar” pelo outro está delimitado antes (id.:544). Na estética,

a pessoa acabaria absorvido pelo objeto; na historia, pela tradição. A linguagem, tema da

ultima parte do livro, precede o sujeito em muito, cabendo mais o adaptar-se do que o

transformá-la.

Se a tradição tem esta força tão grande, a operação de distanciamento,

extremamente necessária, torna-se comprometida. Gadamer escreve que “a distância é a

única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa”

(id.:446). Mas sua própria teoria cria obstáculos para atingí-la. Jurgen Habermas pretendeu

restabelecer este espaço de crítica.

A noção de interesse é a base lançada por Habermas para criticar o projeto da

hermenêutica. O que nos garante que o círculo hermenêutico não seria um círculo vicioso,

questiona? Ao enfatizar a força da tradição na compreensão, o circulo torna-se

demasiadamente “fechado”, o que levaria a excluir dados de verificação e correção

(1987:183). São interesses que orientam a compreensão, e eles nascem das condições de

reprodução e auto-constituição das sociedades humanas (id.:217).

O primeiro interesse seria o da própria conservação (id.:303). Com isso, Habermas

nos lembra que as atividades investigativas têm uma finalidade prática. Tanto as “ciências

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empírico-analíticas” quanto as “ciências hermenêuticas” servem de orientação às ações

(id.:217). Há, portanto, algo de “ideológico” em todo conhecimento. A crítica deve fazer

parte do processo de compreensão para evitar peremptoriamente as “distorções”. Pelo

termo crítica, ele refere-se ao trabalho aprofundado de auto-reflexão. Seu modelo para as

ciências localiza-se na hermenêutica psicanalítica, e por isso ele tece uma longa analise

sobre o método freudiano (id.:236-285). Esta filosofia reflexiva, que propõe a

“compreensão do si como sujeito das operações”, é o movimento do qual faz parte Paul

Ricoeur (1990:37).

2 – As categorias do trabalho histórico

Nosso percurso foi longo. Era importante para o melhor entendimento das idéias de

Paul Ricouer. Afinal, ele constrói seu pensamento dialogando com os autores referidos,

tendo também recuperado em seus trabalhos partes da história que abordamos (cf.1977a).

Nesta segunda parte, trataremos das categorias que embasam as práticas historiográficas,

conforme as concebe o pensador francês. Ao denominá-las de categorias, portanto, não

deixamos de dar um traço kantiano a esta noção, como se elas estivessem estruturando a

pesquisa e a redação das obras históricas.

Serão quatro os tópicos que trataremos. Primeiramente, abordaremos a questão da

linguagem e sua capacidade de atingir a realidade. Em seguida, a posição do investigador

na interpretação de suas fontes documentais. Em terceiro lugar, o agir e as representações

que possibilitariam o seu entendimento. Por fim, a reconstituição dos sujeitos no

conhecimento histórico.

2.1 – O instrumento lingüístico

Não deixa de ser interessante como após cerca de duzentos anos havendo esforços

para tornar a História uma ciência, ainda lhe falte uma reflexão mais aprofundada sobre a

linguagem. Podemos atribuir a essa falta de aprofundamento o grande impacto causado

pelas idéias de Hayden White. Foi a partir de sua obra Metahistoria – traduzida no Brasil

com a defasagem quase de vinte anos (1995) - que as possibilidades de atingir ou não a

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realidade tornaram-se uma discussão corrente13. Mas, como ele foi logo rotulado de “pós-

moderno”, isto dificultou uma melhor apreciação de suas críticas.

A tese básica do historiador americano vem expressa no título de um dos seus

textos. Ele considera “O texto histórico como artefato literário” (1994:97-116). Sendo a

historiografia uma forma de escrita, esta idéia poderia ser mais ou menos óbvia. Porém,

está subjacente em seu conceito de literatura uma grande distância entre o texto, o autor e o

mundo. Quem os afastaria seria o nível linguístico.

O ingrediente pós-moderno do pensamento de White é exatamente esta idéia de que

a linguagem torna-se uma prisão que nos impende de captar o mundo. O teórico da

literatura Northrop Frye, do qual parte, não considerava assim, mas White afirma que ele

não superou uma “mítica” oposição entre o mito e a história (id.:99). A coerência dada às

histórias narradas, conforme White, seria construída de forma semelhante a das antigas

narrativas míticas (id:72).

Apesar destes argumentos, e contrariando uma leitura simplista que circula de suas

obras, Hayden White não isolou completamente a narrativa da realidade. Destacamos duas

“pontes” que permaneceram. A primeira surge quando cruza a ideologia dos historiadores

com a forma de explicar. Ora, o “comprometimento ideológico” implica posições políticas

diante de uma sociedade que é real (id.:87-91). A segunda está na recuperação da idéia

aristotélica de narrativa enquanto produtora da inteligibilidade, ou, conforme suas próprias

palavras:

... considerada como um sistema de signos, a narrativa histórica aponta simultaneamente para duas direções: para os acontecimentos descritos na narrativa e para o tipo de estória ou mytos que o historiador escolheu para servir como ícone da estrutura dos acontecimentos. (...) Assim, a narrativa histórica serve de mediadora entre, de um lado, os acontecimentos nela relatados e, de outro, a estrutura de enredo pré-generica, convencionalmente usada em nossa cultura para dotar de sentido os acontecimentos e situações familiares. (id.:105).

Toda cultura, portanto, tem sua forma de significar os eventos, de apreendê-los e

contá-los aos outros. Paul Ricoeur sugere uma leitura seletiva das teses defendidas por

13 Baseando-se na revista History and Theory, Carl Schorske demonstra que White foi o autor mais debatido das duas últimas décadas (2000:252).

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Hayden White (1997:257)14, e em muitos pontos as duas análises irão se encontrar. A noção

de mytos, por exemplo, citada no parágrafo acima, consiste no ponto de partida do filósofo

francês para sua reflexão sobre o tempo e a narrativa. A palavra mytos na poética

aristotélica remete a formação da intriga e a seu efeito mimético, ou seja, de captação da

realidade (1994:56). Mimese não é, entretanto, copiar o real, mas uma “imitação criadora”,

uma representação cortada pela ficção (id.:76). Esta recriação se dá de três formas. A

Mimese I surge da apreensão imediata, na simbolização das ações (id.:91). A Mimese II

ocorre na produção de uma compreensibilidade através do estabelecimento de relações

(id.:103). A Mimese III pertence à esfera da comunicação, onde o ouvinte/leitor terá uma

nova noção do referente do discurso ou do mundo (id.:119).

O mundo, para Ricoeur, é o sentido último do discurso. Nas críticas que teceu ao

Estruturalismo, por exemplo, após abordar Saussure, Jackobson e Greimas, afirma que “as

unidades de significação extraídas pela análise estruturalista nada significam; são apenas

possibilidades combinatórias” (1978:67). Diferentemente, a teoria hermenêutica busca

interpretar a “articulação do lingüístico e do não-linguístico, da linguagem e da experiência

vivida” (id.:58).

O melhor modo de compreender a linguagem é através do modelo do diálogo. O

diálogo, aliás, seria para o pensador francês “a estrutura essencial do discurso”

(RICOEUR,1999:26). Ora, as análises apenas lingüísticas ou estruturalistas ignoram que o

discurso seja um ato, um acontecimento, onde sujeitos se comunicam (RICOEUR,1978:75).

Por mais engenhosos que pareçam, tais estudos são bastante limitados (id.:44)15.

A linguagem pode captar as experiências históricas? Sim e não. Conforme Ricoeur,

as experiências vividas permanecem em parte privadas. Porém, ao ocorrer sua significação

elas tornam-se públicas (1999:28). Isto é importante para os historiadores pois eles só

poderão conhecer as experiências do passado através de meios comunicacionais

compreensíveis socialmente.

A linguagem possui a “notável propriedade” de, ao mesmo tempo, reconstruir a

experiência e conservá-la (RICOEUR,1988:12). Não é necessário cair na teoria positivista

14 Fizemos uma discussão mais aprofundada do confronto entre essas duas perspectivas em outro trabalho (QUADROS, 2005).15 Ciro Flamarion Cardoso, numa fase pós-marxista, escreveu um livro para demonstrar a “riqueza” da semiótica textual (1997). Além dos problemas típicos do formalismo, denunciados por Ricoeur, sua abordagem cai no tecnicismo metodológico que Cardoso costumava acusar nos autores da Nova História.

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da linguagem enquanto “espelho” que reflete o real, e por outro lado, Ricouer discorda dos

céticos que defendem a impossibilidade de conhecer a realidade ou a experiência16. Diz ele

que, na verdade, a própria experiência com o real “pede para ser dita. Trazê-la à linguagem

não é transformá-la em outra coisa, mas ao articulá-la e desenvolvê-la, fazê-la tornar-se

própria” (1990:65).

O historiador irá posteriormente reconfigurar de outra forma as experiências

vividas, construindo intrigas, estabelecendo relações, conceitos e novos tipos de narrativas

(RICOEUR,1997:323). O significado atribuído às ações do passado podem ser novos, mas

guardam, numa boa pesquisa, certa proximidade com o que foi vivido outorora. Daí a

incessante busca de novos documentos, vestígios ou indícios do passado capazes de tornar

nosso um tempo que é outro17.

2.2 – Documento, fragmento

Jacques Le Goff escreveu um texto bem conhecido entre os historiadores chamado

“Documento/Monumento” (1994:535-553). Ele não trata simultaneamente dos dois

assuntos, mas logo de partida tenta conjugá-los. No século XIX, partindo da terminologia

jurídica, o termo documento remetia à idéia de prova, de algo objetivo; já a palavra

monumento indicava algo intencional, ligado ao poder. Mais tarde, prossegue Le Goff,

grande coleções documentais receberam o nome de “monumentos”. A “revolução

documental”, ocorrida no século vinte, acabou afastando os dois termos (id.:539).

Foi Michel Foucault quem melhor questionou esta separação. Nas primeiras páginas

da Arqueologia do saber, ele afirma que a história “transforma documentos em

monumentos” (1997:8). Com isso, este filósofo criticava uma visão do passado oficializada

e continuísta produzida por certa historiografia, bem como lembrava que os documentos

são conservados a partir de um conjunto de interesses. Eram “construções” semelhantes aos

monumentos.

16 Na historiografia há um acalorado debate sobre essa questão. Para exemplificar, Juan Scott defende não ser possível resgatarmos as experiências passadas por causa das deficiências da linguagem, enquanto Lynn Hunt afirma ser possível se tivermos um conceito menos “heróico” de verdade. Para uma resenha desta discussão cf.Buze (1995)17 Paul Ricouer fez uma reinterpretação bastante interessante do famoso principio de Ranke: “contar tal como se passou”. Este “tal como” introduz um elemento de “fingimento”, de imaginação e recriação, sem abandonar o primado da referência na prática historiográfica (1997:260).

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Le Goff comprou essa idéia: “o documento é monumento” (id.:548). Mas, de forma

distinta da de Foucault18, ele defende o dever do historiador em “desmontar, demolir esta

montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos

documentos-monumentos”. O meio de realizá-lo talvez fosse a chamada “crítica histórica”,

entretanto este historiador afirma que ela é incapaz (id.:ibid). Então, como fazê-lo? Ele

simplesmente não diz. O máximo que indica é o caminho, tentando construir uma “historia

total”, de “não isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte”

(id.:ibid.). Mas isso não conservaria a forma monumental do documento? Não havia uma

recomendação para destruí-los? E se os destruirmos, com que ficaremos?

Mais interessante é o pressuposto hermenêutico de Benjamin: “Nunca houve um

monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (1994:225). O

que ele chama de barbárie é a montanha de ruínas, mortos e fragmentos acumulados no dito

“progresso” da civilização (id.:226). Jacques Le Goff esforça-se para fugir da “história

monumental”19, mas, a nosso ver, não consegue. Propõe a “desconstrução” somente. Mais

relevante seria tentar encontrar o sangue derramado, as vidas esfaceladas sobre as quais se

ergueram grandes monumentos. Estas só conseguem deixar fragmentos de sua existência.

É dos fragmentos deixados pelas pessoas do passado que os historiadores irão

reconstituir um pouco do que foram. O pesquisador, portanto, terá de transformar os

fragmentos em vestígios, pistas para encontrá-las. Terá de ressignificar seus testemunhos.

Ricouer, como fizera Marc Bloch, utilizou a palavra vestígio para as fontes de

conhecimento do passado (RICOEUR, 1968:25/1997:200). Todavia, prefere explorar com

mais afinco a metáfora do rastro.

Primeiramente, pode-se recuperar a idéia indicada pela origem etimológica da

palavra documento. Le Goff informara que ela provém de docere, ensinar (1994:536). Os

documentos podem nos ensinar sobre seu tempo. Isso acontece quando o investigador

18 Foucault defende uma leitura “intrínseca” do documento, “não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ele (o historiador) o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries...” (id.:7).19 A história monumental é uma das três formas comuns de estudar o passado, segundo Nietzsche (1990). Ela reflete a imagem da classe dominante e perpetua seu poder. O “vício” deste tipo de historia é “enganar pela analogia, igualando as diferenças; desaparece a disparidade; restam apenas ‘efeitos de si’, imitáveis para sempre...”. Os comentários de Ricouer sobre o texto de Nietzsche encontram-se na conclusão de Tempo e Narrativa (1997:401-405).

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consegue lê-lo como um rastro deixado pelas pessoas. O documento, nessa perspectiva, é

um meio de conexão (1997:196).

Estamos impedidos de atingir, obviamente, o tempo passado. Os “arquivos” nos

possibilitam prioritariamente elaborar conexões, ressalvando-se que os documentos foram

reunidos com objetivos claramente ideológicos (id.:197). Mas o historiador deve romper

com os padrões desta memória socialmente tradicionalizada (id.:200).

Nem todo rastro deixado é intencional (id.:201). Há certa arbitrariedade no seu

registro e na sua conservação. Este aspecto gera uma nova ruptura com o modelo

monumental de interpretação. Refigurando a temporalidade pertinente àquele vestígio, o

investigador interroga-o. Ele comumente parte das questões que orientam a pesquisa

(id.:198), mas sabe também que existe uma causalidade do rastro estar naquela forma e

lugar. O rastro é o efeito da ação de alguém. O documento torna-se, então, o espaço de um

enigma a ser enfrentado (id.:209).

No pensamento ricoeurano há uma relação rastro-agente que remete à relação texto-

autor. Nas décadas de sessenta e setenta ocorreram acirrados debates sobre tal relação. As

correntes estruturalistas defenderam o princípio da “morte do autor”. Diziam que o texto

tinha de ser analisado em sua própria textualidade e a “mente” do autor era uma quimera

dos românticos.

Paul Ricoeur adere com reservas a algumas das idéias desta vertente teórica. Saber o

que o autor pensava enquanto redigia o texto, ele considera impossível20. Isso seria uma

utopia da hermenêutica idealista, e a sua proposta quer gerar uma hermenêutica

eminentemente crítica (cf.1977). Mas seguindo o parâmetro do discurso como diálogo, a

intencionalidade comunicativa permanece na interpretação, assim como a referência ao

mundo circundante. Numa conferência dada em 1970, por exemplo, ele propunha a

articulação entre a lingüística estrutural, onde a forma da linguagem é importante, a

fenomenologia, que considera o ato lingüístico pela intenção de dizer algo, e a ontologia do

discurso, na qual o dizer expressa um modo de ser (1971:304).

O vestígio/texto separa-se do seu produtor/autor. Agora, ele é algo objetivo. Pode

ser apropriado de diferentes formas, até contrárias à pretensão inicial. Ricouer centra suas

20 Além disso, defende que para compreender bem um texto não é necessário reviver o evento que o gerou, como concebiam os idealistas, mas “gerar um novo acontecimento, que começa com o texto em que o evento inicial se objetivou” (1999:87).

15

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reflexões, portanto, na relação entre o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”. O texto21

revelaria um mundo próprio, pois constitui uma redescrição da realidade. O leitor

recontextualiza-o, de modo a restabelecer o texto dentro de uma cadeia significativa

(1990:156).

Mas, e o autor? Como se sabe, percebê-lo continua fundamental para esforço de

conhecer o passado. O autor, conforme Ricoeur, só pode ser atingindo por vias indiretas.

Ele está presente no texto – muitas vezes só sobrevive nele - mas é uma das referencias

possíveis para a interpretação. Até porque a noção de autor como a concebemos hoje não é

tão antiga, sendo formada em torno do século XVIII (CHARTIER,1998:33-65). A

hermenêutica crítica supõe um “arco” interpretativo, onde os mundos vividos pelo autor e

pelo leitor são intermediados através do texto (RICOEUR,1990:161).

A autoria manifesta-se no texto através de uma identidade narrativa. A pessoa não

está integralmente no discurso, pois ela cria uma personagem e representa os possíveis

receptores (RICOEUR,1991:171s). A imaginação faz parte tanto da produção quanto da

interpretação dos textos, especialmente da interpretação histórica. Recupera-se, desta

forma, o princípio metodológico defendido por Collinwood de desdistanciamento entre o

passado e o presente (RICOEUR,1997:246). De maneira complementar, o historiador

reconhece a alteridade do passado, rejeitando a mesmidade ou a manipulação ideológica

(id.:254). A história só pode ser conhecida através da representância.

2.3 – A representância da ação histórica

Roger Chartier lançou, no número de comemoração dos sessenta anos da revista

Annales, um artigo onde defendia a investigação das representações como caminho para a

renovação da história das mentalidades ou da história cultural, como preferiu denominá-la

(CHARTIER, 1991). Ele recuperou esse conceito de Durkheim e Mauss, que tratavam das

“representações coletivas”. Estas eram, conforme reinterpreta, matrizes das práticas

construtoras do mundo social (1991:183). Depois, nesse mesmo artigo, Chartier fala nas

“lutas de representação” que ocorrem visando a ordenação e a hierarquização da estrutura

social (id.:ibid.). O conceito não está em Durkheim, mas parece provir de Bourdieu que

21 Mantivemos a expressão texto utilizada por Ricouer, mas podemos considerá-la no sentido ampliado de qualquer fonte histórica.

16

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publicou A força da Representação três anos antes22. Infelizmente, Chartier não citou sua

fonte. Após isto, ele recupera os significados do termo representação no século XVII

francês. Eram dois. No primeiro, a representação “faz ver uma ausência” e, no segundo,

remete aos símbolos, nos quais as representações podem mascarar a realidade (id.:184-

185). Chartier conclui essa série de “definições” retomando o tema das “lutas de

representação” no Estado absolutista (id.:186).

A falta de clareza daquilo que seria o novo conceito-chave da história cultural foi

denunciada por Carlo Ginzburg (2001:85-103). No artigo Representação – A palavra, a

idéia, a coisa, publicado inicialmente nos Annales em 1991, ele afirma categoricamente

que ou a representação “evoca uma ausência” ou “torna visível a realidade” (id.:85).

Haveria um possível meio termo?

É isso que Paul Ricoeur procura quando sugere a noção de representância. Esta

noção é fundamental para que não se sucumba aos argumentos “pós-modernos” na

historiografia. Os pensadores desta vertente falam de representação exatamente para indicar

a ausência do real nos discursos (1o sentido) ou sua completa invenção (2o sentido). O tema

se complica ainda mais quando o assunto tratado é história e suas narrativas.

Dizer que o passado é real seria uma contradição. Ele é passado justamente porque

deixou de ser. Existem traços do passado no presente, óbvio, mas como tal ele não existe

mais. A representância ajuda a conceber as conexões, mediante a ficção, do passado

“extinto” com o “preservado” (RICOEUR,1997:175). Ao introduzir a palavra ficção nesta

noção, Ricouer não nega a objetividade do passado, nem do esforço de reconfiguração do

historiador. Até porque ele não retira a ficção da esfera do mundo vivido23. O fictício, como

já dissemos, também é parte da mimese. A representância, enfim, consiste na “referência

indireta, própria de um conhecimento por rastro” (id.:243).

Este conceito remete ainda ao de metáfora. A metáfora, aliás, é para Ricouer “o eixo

da interpretação histórica” (id.:257). Para entender esta afirmação, precisamos retomar sua

obra A metáfora viva, concluída na década de setenta. A função das metáforas na apreensão

do mundo seria aproximar o que é estranho (1983:103). Ela o faz por processos analógicos,

22 Esse trabalho está republicado na obra A economia das trocas lingüísticas (1996:107-116).23 Mesmo as obras literárias de ficção para Ricoeur são “um laboratório de formas no qual ensaiamos configurações possíveis de ação para experimentar a sua consistência e a sua plausibilidade" (1990:29).

17

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incorporando às palavras sentidos novos e novas referências. As metáforas, em síntese, nos

fazem ver (id.:326).

A referencia indicada pelas metáforas é o lugar de sua significação. Essa referência

seria sempre dupla: o locutor e a realidade (id:117). Isto porque as palavras ganham um

sentido próprio a partir da utilização; da experiência que elas re-velam. Paul Ricouer sugere

nessa obra, portanto, a construção de uma semântica contextual (id.:191).

Os modelos científicos estão próximos do modelo metafórico de apreensão da

realidade. Eles são instrumentos que visam, “por meio da ficção, destruir uma interpretação

inadequada e abrir caminho a uma nova interpretação, mais adequada” (id.:357). Os

cientistas reinventam o mundo, pois inventar, para Ricoeur, “implica simultaneamente

descobrir e criar” (id.:463). Ao “re-velar como as coisas são pelas palavras, o conhecimento

científico as transforma em ações"24 (id.:469).

A reflexão sobre a ação possui grande espaço no pensamento ricouerano. A relação

entre uma hermenêutica dos textos e uma hermenêutica das ações decorre da estrutura

significante de ambos. Isso porque o filosofo considera a ação humana sempre como

“simbolicamente mediada” (1986:256). É por causa disso que os historiadores, dentre

outros do meio científico, poderão posteriormente transformar a análise dos vestígios do

passado também em ações históricas.

Ricoeur sugeriu aos cientistas sociais que considerassem as ações segundo o modelo

dos textos. As ciências humanas não são chamadas de “interpretativas”? Pois ele propõe

que as ações fossem estudadas tal qual um texto e “interpretadas em função de suas

conexões internas” (1990:192). A ação significativa25 que deixou registros na história é

também uma “obra aberta” a ser lida (id.:198). Isto complementa o círculo das relações

texto-ação que havíamos referido.

Os agentes atribuem significados às suas ações a partir de convenções sociais. O

agir desenvolve-se em “redes de ações” (1988:61). O historiador relê tais ações com outra

ótica, diferentes informações e questionamentos. Na tensão entre os dois sujeitos do

24 Esta idéia advém da Retórica de Aristóteles, comentada no primeiro capítulo da obra de Ricoeur. O filósofo grego relaciona a mimeses, apreensão do real, com o mythos, o relato verossimilhante e ordenado das ações (RICOEUR,1983:61-73). É ainda Aristóteles que deixa a pista da comparação entre metáfora e método científico quando afirma que a analogia é o “método dos métodos”, percorrendo o percurso da matemática à metafísica (id.:407).25 Podem haver ações onde o agente aproxime-se do limite da não significação, mas seriam casos extremos de violência e constrangimento (id.:172).

18

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conhecimento26 surge a compreensão explicativa reproduzida na narrativa historiográfica.

Tanto as possibilidades interpretativas dos agentes, quanto a dos pesquisadores é, assim,

limitada, sendo por isso mesmo falsificáveis (id.:204). O parâmetro para a análise da ação,

assim como para a análise dos textos, está na relação com o outro, ou, nos termos do

filósofo, na intersubjetividade (id.:259).

2.4 – O outro do sujeito

No parágrafo acima usamos a expressão compreensão explicativa. A princípio,

existiria uma separação entre as duas: busca-se a compreensão ou a explicação. Dilthey,

como se sabe, utilizara esses dois modos de conhecer para diferenciar as Ciências da

Natureza das do Espírito. A resistência em utilizar o termo explicação proveio da noção de

que o ser humano seria livre, não existindo uma causalidade prefixada. Caímos, então, no

debate sobre a categoria de sujeito histórico.

Até os anos oitenta, tal idéia foi bastante criticada nas ciências humanas, sendo

decretada até a “morte do sujeito”. Nas últimas duas décadas, todavia, a historiografia

devolveu “o sujeito ao centro da história” (BARROS, 2001:209). Michel Foucault é

símbolo deste processo. Depois de várias obras demonstrando como a pessoa era

“fabricada” pelas instituições disciplinares e pelos discursos sociais27, nos anos oitenta

retomou a noção e pôs a subjetividade no foco de seus estudos (1984:10-12).

Mesmo no auge do Estruturalismo, Paul Ricouer insistia na idéia de sujeito

(cf.1978). Talvez se deva a este fato a pouca importância conferida à suas obras por muitos

anos, mesmo dentro da filosofia francesa. Ele permaneceu ensinando ser mais relevante

procurar o “quem” das ações do que o porquê ou o como (1996:343).

A discussão feita por ele sequer tocou nos problemas metafísicos do determinismo e

da liberdade. Ele busca outro viés, o de uma filosofia do agir. Nesta perspectiva, a

compreensão e a explicação deveriam formar uma dialética. Como este termo tem muitas

definições, esclarecemos que Ricoeur entende por dialética os pólos opostos não

excludentes constituintes de um processo complexo (1990:164). Isto significa que em toda

26 Ricouer sabe que o “sujeito histórico” reconstruído pelo historiador não existe. Ele denomina-o de “quase-personagem” (1994:260).27 Numa entrevista publicada em 1977, Foucault expunha seu projeto de construir “uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito...” (1995:7).

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interpretação, de ações ou de textos, a explicação deve completar-se pela compreensão. E

vice-versa (id.:44).

O problema do conflito entre as duas posturas metafísicas na história das ciências

está localizada na noção de causa. Tomou-se por regra geral o conceito dado por David

Hume: “relação entre causa e efeito implica que os antecedentes e os conseqüentes sejam

logicamente independentes, quer dizer, suscetíveis de serem identificados separadamente”

(apud RICOEUR,1990:171). Ora, tal noção é demasiado estreita, pouco contribuindo para o

aperfeiçoamento das Ciências Humanas.

Nas ações sociais, a causa tende a identificar-se com seu motivo, e este com uma

meta a ser alcançada (RICOEUR,1988:24). Mesmo em história, as causas teleológicas

deveriam ser admitidas28. Elas levam a pensar o agente como aquele que “está disposto a...”

(id.:ibid). Mas a motivação também depende do saber e do poder fazer (id.:40). Paul

Ricoeur coloca tanto a esfera dos desejos quanto a do medo influenciando as disposições

humanas29 (id.:57).

A compreensão e a explicação não são somente atributos do pesquisador, sendo

igualmente requisitadas pelo próprio agente. Os atores sociais “explicam” suas ações,

remetendo a um contexto maior de regras e normas compartilhadas (RICOEUR,1991:82).

Geralmente ao narrá-las, esses sujeitos buscam uma “neutralidade ética”, livrando-se das

censuras e reprovações (id.:75).

Ao integrar a explicação e a compreensão, as ações humanas estão situadas “entre

uma causalidade que pede para ser explicada e não para ser compreendida, e uma

motivação que releva de uma compreensão puramente racional” (1990:173). A última

assertiva está relacionada à busca de aceitação pessoal e social. Ou seja, a construção da

identidade.

Para existir identidade é necessário existir a diferença (RICOEUR,1996:161).

Portanto, ela é construída nas relações de diferenciação que visam constituir uma unidade

28 Na explicação teleológica, a aparição de um acontecimento depende de outro acontecimento que possui a característica de exigir algum fim (id.:58). Durante muito tempo evitamos este tipo de explicação devido às críticas de Paul Veyne (1995). No entanto, o historiador já sabe em que o evento passado resultou, e isso conta em sua análise. Apesar disso, na construção da narrativa não é bom que este conhecimento apareça, de forma a aflorarem no texto as outras possibilidades abortadas. Remetemos o leitor ao primeiro volume de Tempo e Narrativa, onde Ricoeur faz longas considerações sobre a causalidade em História (1994:261-293).29 Sendo grande conhecedor da psicanálise (cf. RICOEUR, 1974), o pensador francês ressalta que eles podem provir do Inconsciente. De qualquer modo, o pesquisador só poderá interpretar o que for manifesto na intencionalidade consciente (1988:118).

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com certo grau de coerência. Paul Ricouer distingue na identidade dois fenômenos

correlacionados. Um seria a idenidade (do latim idem, mesmo). Esse seria o eixo mais

relacional e maleável, apesar do agente pretender afirmar-se o mesmo diante dos outros.

Sua base é uma continuidade (1991:142). A ipseidade (do latim ipse, si mesmo) seria o

núcleo com traços mais permanentes que trazem o reconhecimento do si, seja individual ou

grupal. Inclui a noção de fidelidade (id.:147). A idenidade visa perpetuar um passado,

enquanto a ipseidade projeta-se ao futuro (1997a:127). A ipseidade é encoberta pela

idenidade, mas as duas envolvem memória, imaginação e crença (1991:152-154).

Ao narrar-se, o sujeito recria momentos de sua vida30. Ele constrói uma unidade,

onde mistura fabulação e experiência (id.:193). Surge a identidade narrativa, de que já

tratamos. Tal narrativa é tecida de intrigas, de modo semelhante ao que faz o historiador na

intenção de reconfigurar a experiência temporal (RICOEUR,1994:12). Todavia, é bom

ressaltar, o sujeito nunca é o que imagina ser e o conhecimento de si mesmo será sempre

incompleto (RICOEUR,1977b:373). O produzido pelo historiador também.

3 – Hermes e Clio: um casal?

Hermes era muito esperto. Logo após sair do ventre de Maia, roubou um rebanho

pertencente a Apolo. Encontrando provas de que fora a jovem criança, Apolo dirigiu-se a

Maia e a Zeus, pai da criança, para protestar. Hermes tentou mentir. Mas vendo que seria

impossível enganar Zeus, ele teve de revelar sua traquinagem. Por castigo, seu pai lhe

obriga a nunca mais faltar com a verdade. Hermes, por sua vez, esclarece que ele também

não estaria obrigado a dizer toda a verdade.

O mito grego do nascimento de Hermes explica porque ele seria o grande intérprete

da vontade dos deuses. Foi de seu nome surgiu a palavra hermenêutica. A divina função

que possuía era ligar o mundo das divindades (o Olimpo) com o mundo subterrâneo (o

Hades). Além disso, Hermes era o protetor dos caminhos.

Clio era uma musa filha de Mynemosine (memória). Ela patrocinava a literatura

exemplificada pelos hinos e panegíricos. Com sua trombeta, proclamava aos ares os nomes

30 Lembramos que a historia pessoal, conforme Ricouer, também é um emaranhado de outras historias pessoais (1991:187).

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dos heróis, bem como suas façanhas. No Império Romano, Clio foi eleita a musa

inspiradora da História.

Seria possível que eles formassem um casal feliz? É difícil dizer, mas a

aproximação recente feita pelas ciências humanas dos métodos interpretativos sugere pelo

menos um “namoro”. As ciências humanas, afinal, dizem tantos epistemólogos, são

ciências hermenêuticas. Elas visam nos ajudar, antes de tudo, a compreender e explicar o

mundo em que vivemos, mesmo que não possam dizer “toda” a verdade.

Este tempo presente é o mais importante, segundo Paul Ricoeur, porque reúne as

temporalidades do passado e do futuro. Retomando os conceitos de Reinhart Koselleck

(1979), ele demonstra como é fundamental alargar nosso “espaço de experiência” para

aproximá-lo de nosso “horizonte de expectativa”. O historiador, particularmente, deve

... por um lado, aproximar do presente as expectativas puramente utópicas por uma ação estratégica atenta aos primeiros passos a dar na direção do desejável e do razoável; por outro lado, resistir ao encolhimento do espaço de experiência, libertando as potencialidades inexploradas do passado (1997:399).

Para atingir essa meta, as práticas historiográficas precisam manter-se críticas diante

da tradição. A legitimação da dominação e da hierarquização social acontece em um

percurso tortuoso da tradicionalidade à tradição. Com o primeiro termo, Ricouer indica a

recepção do passado através de uma cadeia interpretativa. Quando ela chega a ser

reconhecida pelas autoridades e pelas instituições, sendo envolvida por crenças, torna-se

uma pretensão de sentido verdadeira (id.:377-387).

Tais idéias têm recebido uma atenção cada vez maior por parte dos historiadores. O

interesse foi reforçado especialmente a partir da obra Tempo e Narrativa (três volumes),

lançada durante a década de oitenta, apesar de desde os anos cinqüenta Ricoeur tratar do

conhecimento histórico31. A diferença entre esta obra de “filosofia da história” e as outras, é

que seu autor parte da produção historiográfica em suas analises. Ele não fica teorizando

abstratamente como os pensadores da filosofia analítica (v.g.GARDINER,1974). Roger

Chartier afirmara de Tempo e Narrativa ser a obra sobre teoria da história mais importante

das últimas décadas, “obrigando os historiadores a refletir sobre sua disciplina em uma

31 Numa palestra feita em 1952, Ricouer comentara a questão da “Objetividade e subjetividade em História”, meditando sobre o livro inacabado de Marc Bloch, Introdução à História (RICOEUR,1968:23-44).

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dupla dimensão: simultaneamente, sobre o estatuto de sua escrita e sobre o estatuto de seu

conhecimento” (1988:258).

Um sinal dessa valorização foi a publicação de uma palestra dada por Ricoeur na

revista fundada por Bloch e Febvre. Na ocasião, ele iniciou dizendo que quando um leitor

adquire uma obra de História, e não de ficção, espera encontrar fatos comprováveis nela

(2000:731). Este leitor é um cidadão que deseja estar bem informado. Pensando nesses

leitores críticos, sugere que os historiadores não apresentem somente os “fatos”, mas

exponham no texto o modo pelos quais interpreta, suas escolhas conceituais, os pontos

onde encontra controvérsias; que apresente seu saber, enfim, como um encontro da

subjetividade com a objetividade (id.:746). É nesta prática da mediação que a historiografia

cumprirá sua dívida com o presente.

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