³ria... · web viewhistÓria do cristianismo sob a direcção de alain corbin com nicole lemaitre,...

371
HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender melhor o nosso tempo Tradução de António Maia da Rocha 72 EDITORIAL PRESENÇA FICHA TÉCNICA Título original: Histoire du Christianisme Direcção de Alain Corbin com a colaboração de Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon e Catherine Vincent Autores: Vários Copyright (c) Éditions du Seuil, 2007 Tradução (c) Editorial Presença, Lisboa, 2008 Tradução: António Maia da Rocha Capa: Ana Espadinha Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, Dezembro, 2008 Depósito legal 283 313/08 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (excepto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Email: [email protected] Internet: http://www.presenca.pt ÍNDICE PREÂMBULO.............................11 PRIMEIRA PARTE No princípio Os inícios da história do cristianismo (séculos I-V) I - SURGIMENTO DO CRISTIANISMO.............................................----17 Jesus de Nazaré. Profeta judeu ou Filho de Deus? ..........................----17 No seio da primeira aliança. O ambiente judeu ...............................--- 22 As comunidades cristãs de origem judaica na Palestina..................--- 26 Paulo e a primeira expansão cristã....................................................--- 30 II - VIVER COMO CRISTÃO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO" (A DIOGNETO)....................................................... ..........................--- 39 Perseguidos, mas submetidos ao Império Romano (até 311)...........--- 39 "Vivemos convosco", mas... Os cristãos e os costumes do seu

Upload: others

Post on 07-Jan-2020

15 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender melhor o nosso tempo Tradução de António Maia da Rocha 72 EDITORIAL PRESENÇA FICHA TÉCNICA Título original: Histoire du Christianisme Direcção de Alain Corbin com a colaboração de Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon e Catherine Vincent Autores: Vários Copyright (c) Éditions du Seuil, 2007 Tradução (c) Editorial Presença, Lisboa, 2008 Tradução: António Maia da Rocha Capa: Ana Espadinha Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, Dezembro, 2008 Depósito legal 283 313/08 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (excepto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Email: [email protected] Internet: http://www.presenca.pt

ÍNDICE

PREÂMBULO.............................11 PRIMEIRA PARTE No princípio Os inícios da história do cristianismo (séculos I-V) I - SURGIMENTO DO CRISTIANISMO.............................................----17 Jesus de Nazaré. Profeta judeu ou Filho de Deus? ..........................----17 No seio da primeira aliança. O ambiente judeu ...............................--- 22 As comunidades cristãs de origem judaica na Palestina..................--- 26 Paulo e a primeira expansão cristã....................................................--- 30 II - VIVER COMO CRISTÃO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO" (A DIOGNETO).................................................................................--- 39 Perseguidos, mas submetidos ao Império Romano (até 311)...........--- 39 "Vivemos convosco", mas... Os cristãos e os costumes do seu tempo..............................................................................................--- 43 Respondendo às críticas. Os apologistas, de Aristides a Tertuliano .--- 46 III - QUANDO O IMPÉRIO ROMANO SE TORNA CRISTÃO..........--- 50 De Constantino a Teodósio. Da conversão do imperador à conversão do Império......................................................................................--- 50 Pensar o Império cristão. Teologia política e teologia da História...--- 54 Roma christiana, Roma aeterna. O lugar adquirido pela Igreja de Roma durante a Antiguidade tardia..................................................--- 57 IV - DEFINIR A FÉ .................................................................................--- 61 Heresias e ortodoxia..........................................................................--- 61 Concorrentes do cristianismo. Gnose e maniqueísmo......................--- 64 A elaboração de uma ortodoxia nos séculos IV e V .........................--- 68 V - EDIFICAR ESTRUTURAS CRISTÃS ............................................--- 71 Estruturar as igrejas...........................................................................--- 71 Iniciação cristã, culto e liturgia.........................................................--- 75 Cristianização do espaço e cristianização do tempo ........................--- 79 Dignidade dos pobres e prática da assistência .................................--- 83 Em busca da perfeição. Ascetismo e

Page 2: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

monaquismo ..........................--- 87 VI - INTELECTUAIS CRISTÃOS PARA CONFIRMAR A FÉ. OS PADRES DA IGREJA................................................................--- 91 Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo...........................--- 91 Jerónimo e a "Vulgata" .....................................................................--- 96 Santo Agostinho e a irradiação do seu pensamento.........................---100 VII - ANUNCIAR O EVANGELHO "ATÉ AOS CONFINS DA TERRA"--- 107 A cristianização da bacia mediterrânica no século V nas fronteiras do Império Romano.......................................................................---108 Povos cristãos nas fronteiras do Império Romano...........................---114 Bárbaros cristãos, dentro e fora do Império Romano ......................---119 SEGUNDA PARTE A Idade Média Nem lenda negra nem lenda dourada... (séculos V-XV) I _ CONSOLIDAÇÃO E EXPANSÃO .................................................---127 São Bento (+ ca. 547). Pai dos monges do Ocidente.......................---127 Gregório Magno. Um pastor à dimensão do Ocidente.....................---132 Por volta do ano 1000. As "cristandades novas".............................---136 Roma, cabeça da Igreja latina (a partir do século XI) ......................---142 Bizâncio/Constantinopla e o Ocidente. Comunhão e diferenciação ..---146 São Bernardo de Claraval (+ 1153) e os cistercienses ......................---150 A catedral ..........................................................................................---153 II - AFIRMAÇÃO, CONTESTAÇÕES E RESPOSTA PASTORAL ...---157 A primeira cruzada (1095) e os seus prolongamentos .....................---157 As heresias (século XII).....................................................................---161 A Inquisição (século XIII)..................................................................---165 O fim dos tempos..............................................................................---169 Latrão IV (1215). O ímpeto pastoral ................................................---173 Francisco, o pobre de Assis (+ 1226) ...............................................---177 As ordens mendicantes......................................................................---181 Tomás de Aquino (+ 1274) ...............................................................---185 III - TRABALHAR PARA A SUA SALVAÇÃO...................................---188 O Purgatório e o além.......................................................................---188 Culto dos santos, relíqüias e peregrinações......................................---192 Nossa Senhora...................................................................................---196 A multiplicação das obras de caridade (séculos XII-XIII).................-- 200 O culto do Santíssimo Sacramento (século XIII) ..............................-- 204 i (+ 1415)............................................................................-- 207 A busca de Deus. Místicos do Oriente e do Ocidente .....................-- 211 A Imitação de Cristo.........................................................................-- 218 TERCEIRA PARTE Os tempos modernos A aprendizagem do pluralismo (séculos XVI-XVIII) I - OS CAMINHOS DA REFORMA....................................................-- 229 Erasmo e Lutero. Liberdade ou escravidão do ser humano.............-- 229 Até ao fim das Escrituras. Os radicais das reformas........................-- 233 Calvino. Eleição, vocação e trabalho................................................-- 236 A via média anglicana. Uma lenta construção .................................-- 240 I - RIVALIDADES E COMBATES......................................................-- 244 Inácio de Loiola e a aventura jesuíta................................................-- 244 As Inquisições na época moderna.....................................................-- 248 Liturgias novas ou liturgias de sempre? ...........................................-- 251 Mística do coração, do fogo e da montanha.....................................-- 256 Mística da Encarnação e da escravidão ............................................-- 260 O jansenismo. Entre sedução rigorista e mentalidade de oposição .-- 264 III - EVANGELIZAR E ENQUADRAR O

Page 3: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

MUNDO.............................-- 268 Cristianismos longínquos ..................................................................-- 268 "Instruir na cristandade"...................................................................-- 275 A imagem tridentina. Ordem e beleza..............................................-- 279 Roma e Genebra. Novas Jerusalém da comunicação.......................-- 283 V - NOVOS HORIZONTES DE SENSIBILIDADE..............................-- 286 Bach. A música sem fronteiras .........................................................-- 286 Nascimento da crítica bíblica (séculos XVI e XVII) ..........................-- 289 A renovação protestante. Do pietismo ao pentecostalismo, passando pelos despertares ............................................................................-- 293 Os santos e a sua nação (séculos XIV-XX)........................................-- 296 A Ortodoxia russa. Monolitismo e cisões (séculos XVI-XVIII)..........-- 299 QUARTA PARTE O tempo da adaptação ao mundo contemporâneo (séculos XIX-XXI) I - A EVOLUÇÃO DA EXEGESE BÍBLICA E DAS FORMAS DA PIEDADE...................309 A Bíblia e a história das religiões (séculos XIX-XX)....................309 João Maria Baptista Vianney, cura d'Ars (1786-1859) ...................-- 313 A renovação da teologia e do culto marianos ..................................-- 316 Teresa do Menino Jesus (1872-1897)...............................................-- 319 Pio X, a infância espiritual e a primeira comunhão..........................-- 323 Dois séculos de querelas em torno da arte sacra..............................-- 327 II -A DOUTRINA CRISTÃ PERANTE O MUNDO MODERNO......-- 330 Um catolicismo intransigente. O "momento Pio IX" (1846-1878)..-- 330 A encíclica Rerum novarum (1891) e a doutrina social da Igreja católica...........................................................................................-- 334 O cristianismo e as ideologias do século XX....................................-- 337 O Concilio Vaticano II (1962-1965).................................................-- 340 O catolicismo perante a limitação dos nascimentos.........................-- 343 III - O CRISTIANISMO À DIMENSÃO DO PLANETA......................-- 347 Regresso à história longa do cristianismo oriental na época otomana (séculos XV-XIX).............................................................................-- 347 A acção missionária nos séculos XIX e XX.......................................-- 354 O protestantismo na América do Norte ............................................-- 358 Do ecumenismo ao inter-religioso? ..................................................-- 361 GLOSSÁRIO.................................................................................................-- 365 SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................-- 367 REFERÊNCIAS BÍBLICAS.........................................................................-- 369 OS AUTORES...............................................................................................-- 371 ÍNDICE DOS MAPAS..................................................................................-- 377 10 PREÂMBULO O cristianismo impregna, com maior ou menor evidência, a vida quotidiana, os valores e as opções estéticas, mesmo daqueles que o ignoram. Contribui para o desenho da paisagem dos campos e das cidades. Por vezes, faz a actualidade. Entretanto, os conhecimentos necessários à interpretação desta presença vão-se apagando rapidamente e, ao mesmo tempo, vai crescendo a incompreensão. Admirar o monte Saint-Michel e os monumentos de Roma, de Praga ou de Belém; deleitar-se com a música de Bach ou de Messiaen; contemplar os quadros de Rembrandt ou saborear verdadeiramente determinadas obras de Stendhal ou de Victor Hugo implica poder decifrar as referências cristãs que constituem a beleza destes lugares e destas obras-primas. Também a existência dos debates mais recentes sobre a colonização, as práticas humanitárias, a bioética e o choque das culturas pressupõe um conhecimento do cristianismo, dos elementos fundamentais da sua doutrina, das peripécias que marcaram e

Page 4: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ritmaram a sua história, das etapas da sua adaptação ao mundo. Foi nesta perspectiva que nos dirigimos a especialistas eminentes. Propusemos-lhes que pusessem o seu saber à disposição dos leitores de um grande público culto. Mas, sem o peso da erudição, sem o emprego de um vocabulário demasiado especializado, sem eventuais alusões a um pressuposto conhecido que já não tem existência real e, evidentemente, sem visões proselitistas. Esta obra colectiva interessará aos leitores cristãos desejosos de aprofundar o seu saber e, ainda mais, a todos aqueles que, por simples curiosidade intelectual ou para compreender melhor o seu ambiente e a cultura dos outros, desejam conhecer a história de uma religião que, até agora, não lhes tem sido revelada deforma suficientemente nítida. Alain Corbin, Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon, Catherine Vincent 11

PRIMEIRA PARTE NO PRINCÍPIO OS INÍCIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO (séculos I-V)

Componente da cultura do nosso tempo, o cristianismo nasceu numa época precisa da história do mundo mediterrânico e do Próximo Oriente, na Antiguidade, num país, a Judeia, que então fazia parte do Império Romano; enraízado na fé e na cultura judaicas, desenvolveu-se rapidamente na cultura greco-romana. O cristianismo surgiu com a pregação do profeta judeu Jesus de Nazaré, em quem os cristãos reconhecem o Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado para a salvação dos homens. A sua fé fundamenta-se no testemunho dos primeiros discípulos, que reconheceram em Jesus o Messias ou Cristo (daqui o nome de cristãos que lhes foi dado), anunciado pelos profetas. Proclamaram que aquele que tinha sido condenado à morte pelas mãos dos homens foi ressuscitado por Deus com o seu corpo, em que eles tocaram - fundamento da crença dos cristãos na ressurreição da carne - e que, depois, desapareceu diante dos seus olhos, tendo enviado o Espírito Santo que os amava para anunciarem esta Boa-Nova (Evangelho) "até aos confins da Terra", conforme com a missão que Jesus lhes tinha confiado. Na Palestina, entre judeus e não-judeus (ou gentios), foram-se formando pequenas comunidades de crentes; depois, na parte oriental do Império Romano e em Roma; e, logo a seguir, não só na sua parte ocidental, mas também nas regiões exteriores - Mesopotâmia e talvez a índia desde a época apostólica, Arménia, Geórgia e Etiópia - e, nos séculos IV e V, entre os povos bárbaros: visigodos, ostrogodos e vândalos. Os crentes cristãos dos primeiros séculos viveram e praticaram a sua fé nas condições concretas do mundo do seu tempo. Foi em grego que a Boa-Nova de Jesus Cristo e os outros textos que formam o Novo Testamento foram passados a escrito, embora o aramaico, o hebraico e o siríaco tenham sido conjuntamente utilizados nalguns casos. A Bíblia (Antigo e Novo Testamento - o primeiro já tinha uma tradução grega, a dos Setenta) foi traduzida nas diferentes línguas: latim, gótico, siríaco, copta, arménio e eslavónio. Foi também em grego que as primeiras fórmulas de fé foram conceptualizadas e fixadas. Os cristãos da Antiguidade usaram modos do pensamento judaico, categorias filosóficas do pensamento grego, técnicas de discurso da retórica grega e latina para formular uma teologia que se foi apurando ao longo do tempo. Aqueles que o fizeram - bispos reunidos em concílios, apologistas e Padres da Igreja - estavam convencidos de que se exprimiam sob a inspiração do Espírito Santo. 15

Page 5: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Quando se tornou evidente que o regresso de Cristo, que os primeiros cristãos tinham esperado, não estava iminente, as comunidades organizaram-se e estruturaram-se, unidas por um laço de comunhão. Embora, espiritualmente, a Igreja se defina como corpo místico de Cristo, que é a sua cabeça, e todos os baptizados sejam os membros, concretamente a Igreja constituiu-se a partir das Igrejas locais unidas por um fundo comum de crenças e de ritos essenciais (baptismo e eucaristia). Com a ajuda dos conceitos de heresia e ortodoxia, elaborados pouco a pouco, definiu-se uma doutrina que conduziu, marginalizando certas correntes, à construção da "Grande Igreja". Perseguidos pelas autoridades judaicas desde o início, os cristãos também o são, logo que identificados como tais, pelas autoridades romanas, que podem punir a sua recusa de venerar os deuses comuns a todos. Apesar de sujeitos ao Estado e ao poder, pelo qual oram, os cristãos distinguem-se pela sua fé e apego a valores e modos de vida que os levam a viver com os seus contemporâneos, mas "no mundo sem ser do mundo". Por isso, são alvo da hostilidade popular e do desprezo das pessoas cultas. Tanto a uns como a outros, os intelectuais cristãos respondem, enquanto, em tempo de perseguição, homens e mulheres dão testemunho da sua fé e, até à morte, reivindicam a sua identidade cristã; estes mártires tornam-se modelos venerados; mas os pastores aceitam reconciliar, depois de uma penitência apropriada, os que falharam e caíram. Com o fim das perseguições, o ascetismo substituiu o martírio como meio para atingir a santidade através de uma perfeita identificação com Cristo. O reconhecimento da liberdade religiosa perante o fracasso das perseguições e a adesão pessoal do imperador Constantino à fé cristã (a partir de 312), depois a dos seus sucessores, excepto de Juliano, criam condições radicalmente novas. Doravante, o imperador concede favores aos cristãos, o que permite uma certa cristianização do espaço e do tempo. Ele também intervém nos negócios da Igreja e até na definição da própria fé, o que foi, durante o século IV, fonte de conflitos. Pouco a pouco, também reprime os cultos tradicionais até os proibir no final do século IV, fazendo do cristianismo a religião do Estado. A esta evolução estava subjacente uma teologia cristã do poder político e da história. Os cristãos tinham de pensar não só no soberano cristão e no seu lugar na Igreja, mas também na função do Império Romano no plano providencial de Deus para, finalmente, quando Roma foi ameaçada, compreenderem que a sorte da Igreja não estava ligada a nenhum Estado, mesmo que fosse cristão. Assim, os cristãos aprendiam a ver-se como "cidadãos do Céu" e a aspirar ao "Reino que nunca terá fim" (Agostinho, Cidade de Deus, XXII, 30). Françoise Thelamon 16

I

SURGIMENTO DO CRISTIANISMO

Jesus de Nazaré Profeta judeu ou Filho de Deus?

Como se conhece a vida de Jesus de Nazaré? Jesus falou, mas não escreveu nada: nenhum documento dele nos chegou à mão. Portanto, as fontes documentais de que dispomos são

Page 6: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

todas indirectas; mas são múltiplas. A mais antiga é a correspondência do apóstolo Paulo, redigida entre 50 e 58. Falava da morte do Nazareno por crucifixão e da fé na sua Ressurreição; além disso, o apóstolo conhece uma colecção de "palavras do Senhor" que utiliza (às vezes, sem as citar) na sua argumentação. Depois, por ordem de antigüidade, vêm os Evangelhos: por volta de 65, o de Marcos foi redigido tendo por base tradições que remontam aos anos 40; os de Mateus e Lucas foram redigidos entre 70 e 80, ampliando Marcos; o de João data de 90-95. Estes escritos não são crónicas históricas: fazem memória da vida do Nazareno, mas numa perspectiva de fé que apresenta simultaneamente factos e a sua leitura teológica. Evangelhos mais tardios ausentes do Novo Testamento, ditos apócrifos, foram, por vezes, herdeiros de tradições não consideradas pelos quatro anteriores: nomeadamente o Evangelho de Pedro (120-150), o Proto-Evangelho de Tiago (150-170) e o Evangelho copta de Tomé (por volta de 150). As fontes não cristãs são raras: os historiadores romanos não julgaram o acontecimento digno de ser contado. Mas um historiador judeu, Flávio Josefo, apresenta nas suas Antiguidades Judaicas (93-94) esta notícia: "Naquela época, houve um homem sábio chamado Jesus, cuja conduta era boa; as suas virtudes foram reconhecidas. E muitos judeus e de outras nações fizeram-se seus discípulos. E Pilatos condenou-o a ser crucificado e a morrer..." (18, 3, 3). Mais tardiamente, o Talmude judeu apresenta uma quinzena de alusões a "Yeshu"; estas falam da sua actividade de curador e da sua condenação à morte, por ter - diz-se - extraviado o povo (Baraitha Sanhedrin 43a; Abodoh Zara 16b-17a). 17

O que há de certo? A reconstituição da vida de Jesus é objecto de pesquisas literárias minuciosas; mas, como para todas as personagens da Antiguidade, as certezas absolutas são pouco numerosas. Entretanto, podemos apresentar alguns factos com alguma segurança. Jesus nasceu numa data desconhecida, que poderia ter sido o ano 4 antes da nossa era (antes da morte de Herodes, o Grande). Foi baptizado no Jordão por João Baptista, de quem se tornou discípulo, antes de fundar o seu próprio círculo de aderentes. À maneira de João, Ele espera a vinda iminente de Deus à história; também partilha a convicção de que, para se ser salvo, não basta pertencer ao povo de Israel: é indispensável praticar o amor e a justiça. Pelos trinta anos, Jesus é um pregador popular que alcança algum sucesso na Galileia. Ao contrário dos rabinos (doutores da Lei) da época, Ele ensina com uma linguagem simples; as suas parábolas retomam o quadro familiar dos seus ouvintes (o campo, o lago, as vinhas) para falar surpreendentemente de um Deus próximo e acolhedor. Simplifica a obediência à Lei, centrando-a, como outros rabinos antes dele, no amor aos outros. Os seus numerosos actos de cura revelam que Ele era um curador talentoso e apreciado. Com o seu grupo de aderentes, leva uma vida itinerante; vão-se aumentando e alojando nas aldeias onde param. Além de um círculo próximo de doze galileus, há outros homens e mulheres que o acompanham e partilham o seu ensino diário. A subida a Jerusalém irá causar a sua morte. Comete um acto violento no Templo, um gesto profético que atrai a hostilidade da elite política de Israel: derruba as bancas dos vendedores de animais de sacrifício, talvez para protestar contra a multiplicação dos ritos que se interpõem entre Deus e o seu povo. Então, por instigação do partido saduceu, decide-se denunciar Jesus ao prefeito Pôncio Pilatos por causa da agitação popular. Pressentindo que a hostilidade iria apanhá-lo, Jesus despedira-se dos seus amigos durante uma última refeição (a Ceia), em que instaurou um rito de comunhão no seu corpo e no seu sangue: o pão partido e a taça de que todos bebem simbolizavam a sua morte futura e

Page 7: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

relembrariam a sua memória. Depois da sua detenção, facilitada por um discípulo, Judas, Jesus foi levado perante o prefeito, condenado à morte e entregue aos legionários que o pregaram numa cruz. A sua agonia durou apenas algumas horas, facto que espantou Pilatos; o homem de Nazaré devia ter uma constituição fraca. Pouco depois da sua morte, correu o boato de que os seus discípulos o tinham visto vivo e de que Deus o atraíra a si.

Um reformador de Israel Jesus de Nazaré não tinha o projecto de criar uma nova religião. A sua ambição era reformar a fé de Israel, simbolizada pelo círculo dos doze 18

íntimos que o seguiam. Estes homens representam simbolicamente o povo das doze tribos, o Israel com que Jesus sonha. Ele queria reformar a fé judaica, mas fracassou. Porquê? Jesus era um místico, dotado de uma forte experiência de Deus. A seus olhos, Deus estava próximo dos humanos, tão próximo que, para lhe orar, bastava chamar-lhe "papá" ou "paizinho" (abba em aramaico). As suas palavras e os seus gestos estão marcados por um sentimento de urgência inadiável. O apelo para seguir Jesus começa a quebrar as solidariedades mais intocáveis: já não há necessidade de despedir-se dos seus nem de cuidar das exéquias do seu pai (Lc 9,59-62). Este atentado aos ritos funerários e aos deveres familiares deve ter sido considerado totalmente indecente, escandaloso. Outro sinal de urgência: a necessidade de anunciar o Reino de Deus é tão imperiosa que os seus discípulos recebem a ordem de ir dar testemunho sem levar alforge nem sandálias nem saudar ninguém pelo caminho (Lc 10,4). A sua transgressão do repouso sabático também chocou. Por várias vezes, Jesus cura em dia de sábado; para se justificar, reivindica a necessidade imperiosa de salvar uma vida (Mc 3,4). Quando Jesus comenta a Tora (a Lei), que é a colectânea das prescrições divinas, o imperativo do amor ao outro desvaloriza todas as outras prescrições; até o rito sacrificial no Templo de Jerusalém deve ser interrompido perante a exigência de se reconciliar com o seu adversário (Mt 5,23-23). Em suma: tanto as curas como a leitura da Tora participam num estado de urgência provocado pela iminência da vinda de Deus. Jesus está convencido de que, dentro de pouco tempo, acontecerá a vinda de Deus que, com o seu julgamento, suprimirá todas as causas de sofrimento e reunirá os seus à sua volta. Já nada importa senão chamar à conversão.

Opções chocantes de solidariedade social Os Evangelhos e o Talmude judeu falam concordantemente da tolerância chocante de Jesus quanto às suas atitudes e amizades. Tornou-se solidário com todas as categorias sociais marginalizadas pela sociedade judaica daquele tempo, fosse por desconfiança social, por suspeição política ou por discriminação religiosa. Provocou escândalo o acolhimento que, no seu grupo, reservava às mulheres, aos doentes e às pessoas marginalizadas; de facto, Ele considerava que as regras de pureza que proíbem todo o contacto com estes são contrárias ao perdão que Deus oferece. "Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mc 2,17). Jesus não concorda com o ostracismo que atinge os cobradores de impostos por razões políticas e os samaritanos por razões religiosas. Admite mulheres no seu círculo (Lc 8,2-3), quebrando a desqualificação religiosa de que elas

Page 8: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

sofriam. Deixa que os doentes se aproximem dele, fazendo com que, através das suas curas, 19

sejam integrados no povo santo. Dirige-se ao povo dos campos, aquele "povo da terra" depreciado pelos fariseus pela sua incapacidade de cumprir o código de pureza e de pagar os dízimos sobre tudo o que produziam. As refeições de Jesus com os reprovados e as mulheres de má vida oferecem o sinal mais impressionante desta recusa de todos os particularismos (Mc 2,15-16). Estas refeições não indicam apenas uma opção de tolerância social e religiosa, mas também antecipam o banquete do fim dos tempos, englobando desde logo todos os que o Reino de Deus acolherá no futuro. Estar à mesa com os desclassificados é o anúncio da esperança de Jesus num Reino que visa a sociedade do seu tempo; esta esperança contradiz a estrutura fechada que a ordem religiosa fundada na Tora e no Templo tinham construído na sociedade judaica. Este ataque à estrutura da piedade judaica - considerado blasfemo - e a sua abertura aos desclassificados atraíram contra Jesus a animosidade mortal das autoridades religiosas da sua época.

A fé no Messias Jesus declarou-se Messias ou Filho de Deus? Se deixarmos de lado o Evangelho de João, que é uma recomposição teológica tardia da tradição de Jesus, os Evangelhos mais antigos nunca põem na boca dele uma declaração sobre a sua identidade formulada na primeira pessoa. "O que dizem as multidões a meu respeito? - pergunta Ele aos seus discípulos; e depois - E vós quem dizeis que Eu sou?" (Mc 8,29). Sobre a sua identidade, Ele cala-se. O único título que os primeiros evangelistas põem nos seus lábios é "Filho do homem", o antigo título daquele cuja vinda sobre as nuvens do céu era, segundo o profeta Daniel, esperada por Israel. Jesus solidarizou-se com este ser celeste vindo de Deus. E de tal modo se lhe comparou, que se identificou com ele. Em contrapartida, os títulos "Filho de Deus", "Messias", "Filho de David" foram-lhe atribuídos pelos primeiros cristãos. Mas não devemos admirar-nos. Jesus evitou apropriar-se do título de Messias, provavelmente porque estava sobrecarregado de expectativas nacionalistas e de uma dimensão de poder violento que Ele não queria. Depois da sua morte, os seus aderentes tomaram consciência do que significava a sua vinda e a sua acção. E propuseram um nome sobre o que Jesus tinha deixado suspenso. Em suma, Jesus não disse quem era, mas fez quem Ele era. Afirmá-lo é o papel do crente na sua confissão de fé. O evento da Páscoa, a que os cristãos chamam a Ressurreição, pode ser compreendido como aquela iluminação que os seus amigos conheceram, pouco depois da morte dele, ao aperceberem-se de que Deus não estava do lado dos carrascos, mas se solidarizava com a vítima suspensa no madeiro. A Páscoa é este acontecimento visionário em que os amigos de Jesus compreenderam que o que tinham recebido dele e com Ele 20

vivido lhes advinha do próprio Deus; então, eles proclamaram-no: "Deus ressuscitou-o dos mortos e nós somos testemunhas disso" (Act 3,15). Rapidamente, os primeiros discípulos anunciaram que Deus tinha reabilitado Jesus, restituindo-o à vida; e esta crença, reafirmada ao

Page 9: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

longo dos séculos, é capital para a compreensão da história do cristianismo. Daniel Marguerat 21

No seio da primeira aliança O ambiente judeu

O judaísmo da época de Jesus não era nada monolítico. Repartido entre o antigo reino da Judeia, tendo por capital Jerusalém, e uma importantíssima diáspora desde a Babilónia ao Mediterrâneo ocidental, divide-se em várias correntes, mesmo na Judeia.

O aparecimento de várias correntes Quase nada se sabe do judaísmo judeu na época do Segundo Templo, entre o regresso do exílio da Babilónia (édito de Ciro, 538 a. C.) e a revolta dos macabeus que rebenta sob o domínio do rei selêucida da Síria, Antíoco IV Epifânio. Durante este período conturbado, o sumo sacerdócio tinha sido tirado à dinastia legítima. Em 164 a. C, Judas, chamado Macabeu, conseguiu restabelecer o culto do Templo, interrompido durante três anos. Depois da sua morte, o seu irmão Jónatas, aproveitando as querelas de sucessão na Síria, aumentou o seu território, tendo-lhe sido oferecido o sumo sacerdócio em 152 a. C. O seu irmão Simão, depois o filho deste, João Hircano, sucedem-lhe na dupla função política e religiosa. Finalmente, a partir de 104 a. C, Judas Aristóbulo [Aristóbulo I], depois o seu irmão Alexandre Aristóbulo [Alexandre Janeu] (103-76 a. C.) acumulam definitivamente a realeza e o sacerdócio nesta dinastia chamada "asmoneia". É neste contexto que aparecem as divisões que, durante mais de século e meio, iriam agitar o judaísmo da Judeia. O historiador judeu Flávio Josefo (37-95 d. C.) menciona três correntes a partir da época de Jónatas: saduceus, fariseus e essénios. Segundo o seu nome, os saduceus parecem remontar a Sadoc, o sumo sacerdote do tempo de Salomão, fundador da única dinastia sacerdotal legítima. Literalmente, os fariseus são os "separados", os "dissidentes"; mas de quem? Os essénios levam uma vida monacal à margem da sociedade. Segundo uma parte da sua literatura, que [a partir de 1947] 22

foi encontrada em Qumrân entre os manuscritos do mar Morto, o fundador da sua "seita", o "mestre de justiça", teria sido perseguido por um "sacerdote ímpio", em quem muitos estudiosos querem reconhecer Jónatas, usurpador do pontificado. Também há divergências políticas a opor estas três correntes na época asmoneia. Os saduceus, inicialmente contrários à dinastia, acabaram por se unir a ela. Os fariseus, sem dúvida saídos daqueles homens piedosos (assideus ou hassidim) que tinham combatido ao lado de Judas Macabeu, manifestam a sua hostilidade ao acumular das funções sob João Hircano. Foram duramente perseguidos durante o reinado do seu filho e do seu sucessor Alexandre Janeu que, ao aperceber-se da influência crescente dos fariseus entre o povo, legou, antes de morrer, o trono a sua mulher Salomé Alexandra (76-67 a. C), aconselhando-a a governar com os fariseus. As tensões entre fariseus e saduceus desempenham um papel notável na querela entre os dois irmãos, Hircano II e Aristóbulo II, de que Pompeu se aproveita em 62 a. C. para instalar um controlo mais ou

Page 10: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

menos directo de Roma na Judeia. Mas quando Herodes, filho do conselheiro idomeu de Hircano II, Antipáter, chega ao trono da Judeia, graças ao apoio romano, os fariseus já se encontram na oposição. No ano 6 da nossa era, quando Roma impõe o seu domínio directo, aparece uma "quarta filosofia" que, mais tarde, inspira sicários e zelotes, motores da revolta contra Roma que acaba na destruição do Templo no ano 70. Outros grupos aparecem esporadicamente na obra de Josefo: os que seguem diferentes líderes surgidos após a morte de Herodes, os que acompanham até ao deserto os pregadores exaltados que anunciam milagres, os que respondem ao apelo de João Baptista e mergulham no Jordão para se lavarem dos seus pecados. Numa célebre passagem conhecida como Testimonium Flavianum, Josefo também menciona um "homem sábio", chamado Jesus, que está na origem de um novo grupo, os "cristãos", do grego christos, correspondente ao hebraico mashiah, "ungido", de que deriva a palavra "messias".

Crenças e práticas Sobre as crenças e as práticas que distinguem alguns destes grupos, a nossa fonte principal continua a ser Flávio Josefo. Podem-se recolher alguns ensinamentos no Novo Testamento, apesar da apresentação polémica dos fariseus e saduceus que neles encontramos. Os essénios são igualmente conhecidos pelo filósofo judeu Fílon de Alexandria (20 a. C.-50 d. C.?), mas são ignorados tanto pelos Evangelhos como pelas fontes rabínicas. Além disso, toda a literatura judaica não canónica, transmitida, as mais das vezes, pela Igreja nas várias traduções, atesta a força da corrente apocalíptica bem representada em Qumrân. 23

A principal discórdia entre saduceus e fariseus refere-se à "lei oral" desenvolvida por estes: "Os fariseus tinham introduzido no povo muitos costumes que mantinham dos Antigos, mas que não estavam inscritos nas leis de Moisés e que, por isso, a seita dos saduceus rejeitava, argumentando que só devia considerar-se lei o que estava escrito" (Antiguidades Judaicas, XIII, 297). As correntes judaicas apoiavam-se todas nos mesmos textos sagrados hebreus, cujo corpus já estava constituído. Os fariseus tinham a reputação de serem os melhores intérpretes dos textos e esforçavam-se mais que os outros por instruir a juventude. Os mais sábios de entre eles recebiam o título de rabino ("mestre"), também aplicado a Jesus pelos Evangelhos. Enquanto o Evangelho de Mateus, escrito depois do ano 70, numa atmosfera polémica entre judeus e judeo-cristãos, é particularmente hostil aos fariseus, Josefo, que - depois de ter descrito as três correntes principais - optou pelo farisaísmo, insiste na moral elevada e na afabilidade que o caracterizam. A popularidade dos fariseus obrigava os saduceus a seguirem os seus usos no Templo "porque, de outro modo, o povo não os suportaria" (Antiguidades Judaicas, XVIII, 17). Ao apresentar as três correntes principais do judaísmo de antes de 70 como três "filosofias", Josefo volta à questão da liberdade humana. Os saduceus afirmam-na plena e inteira; os essénios, pelo contrário, sustentam a predestinação e os fariseus conciliam as duas doutrinas. Cada um destes grupos devia apoiar-se em argumentos escriturísticos fáceis de encontrar. Os essénios tinham fama de saber predizer o futuro, o que nada tem de espantoso, se se considerar que tudo está escrito. Comentários dos profetas encontrados em Qumrân levam-nos a descobrir uma técnica de exegese, o pesher, que vê no presente o

Page 11: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

cumprimento das profecias antigas. A quarta corrente, nascida no ano 6 d. C, no momento do recenseamento imposto pelos Romanos às regiões - Judeia, Samaria e Idumeia - que acabavam de perder a sua independência, segue a doutrina fariseia, mas proclama: "Só Deus é o mestre." Animada pela convicção de combater a favor da chegada do reino divino, alimenta a resistência mais encarniçada ao poder romano. As idéias difundidas pela literatura apocalíptica puderam influenciar sicários e zelotes. Tinha havido grandes impérios, mas doravante o Reino de Deus estava próximo. O Livro de Daniel, composto durante a revolta dos macabeus, descrevia ao lado de Deus "um filho de homem" que representava "o povo dos santos do Altíssimo". O Livro de Henoc fazia dele uma figura individual soteriológica. Depois da decepção causada pela dinastia asmoneia e pelo reinado de Herodes, houve quem sonhasse com um verdadeiro rei legítimo, descendente de um David idealizado que receberia a unção real. Deste modo, a expectativa de um "ungido" ou "Messias" sobrepunha-se à do "filho de homem". 24

Esta atmosfera de expectativa e espera febris, reforçada pelas desgraças daquele tempo, pode explicar a busca activa de pureza que se encontra sob formas diferentes entre os fariseus, observadores da Lei, em João Baptista que, pela imersão, oferece a purificação física e moral, e entre os essénios que, na sua grande maioria, preferem o celibato e vivem em comunidade, numa ascese rigorosa. Ao contrário dos saduceus, todos estes grupos partilhavam a crença na ressurreição. Esta crença, difícil de fundamentar escrituristicamente (daí, a zombaria dos saduceus expressa nos Evangelhos sinópticos), só é explícita no Livro de Daniel (12,2) e no Livro 2 dos Macabeus. Na doutrina fariseia que a propaga, ela é essencial para assegurar que a justiça se manifestará no "mundo vindouro" ligado ao Juízo Final anunciado pelos profetas. Este aspecto consolador explica, em grande parte, a popularidade do farisaísmo. A crença nos anjos e nos demónios também estava bastante desenvolvida entre os fariseus e os essénios, mas era rejeitada pelos saduceus. O ensino de Jesus, tal como no-lo descrevem os Evangelhos, concorda em muitos pontos com a doutrina dos fariseus e visa reformá-la noutros. Desde as descobertas de Qumrân, às vezes, o "mestre de justiça" tem sido visto como uma prefiguração de Jesus; pelo menos, é freqüente afirmar que João Baptista era essénio. Mas todas as descrições antigas do essenismo no-lo mostram como um grupo que vive encerrado em si mesmo, enquanto João e Jesus pregam diante das multidões. Entre os crentes na ressurreição, nos anjos e nos demónios e os que não acreditavam; entre os que só observavam a Lei escrita e os que lhe juntavam a Lei oral; entre os que viviam ao redor do Templo e os que, como os essénios, viviam longe do Templo; entre os judeus da Judeia e os da numerosíssima diáspora, muitos cismas poderiam ter surgido; mas a história não regista quando aconteceram. A revolta dos judeus contra os romanos (66-73), que provocou a tomada de Jerusalém e a destruição do Templo no ano 70, levou consigo saduceus, sicários, zelotes e essénios. Só deixou, face a face, os judeus que criam que o Messias tinha chegado e os que ainda estão à sua espera. Mireille Hadas-Lebel 25

As comunidades cristãs de origem judaica na Palestina

Page 12: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Construir a história das comunidades cristãs de origem judaica na Palestina é tocar no nascimento do cristianismo, o que não é nada fácil; dado o estado parcelar da documentação, o historiador é obrigado a avançar por etapas sucessivas que não permitem uma síntese real. Jesus não é o fundador do cristianismo como religião independente. É, quando muito, o fundador da comunidade cristã de Jerusalém no quadro do judaísmo do seu tempo. Falar das comunidades cristãs de origem judaica na Palestina implica um estudo sobre os discípulos de Jesus, sobre as grandes figuras como Tiago, o Justo, Pedro e Paulo, que difundiram progressivamente a sua mensagem não só nos meios judaicos como também pagãos. No ano 30 da nossa era, em Jerusalém, Jesus de Nazaré, originário da Galileia, que há dois anos é pregador itinerante e profetiza a iminência do reino de Deus, é preso, julgado e executado por razões político-religiosas - sendo Pôncio Pilatos prefeito da província romana da Judeia. No dia seguinte à morte do seu mestre, num primeiro momento, os seus discípulos parecem ter-se dispersado por toda a Palestina. Contudo, num segundo momento, encontram-se em Jerusalém a proclamar que "aquele" que tinha sido crucificado foi ressuscitado. Anunciam um tempo novo e a realização, aquando do regresso de Jesus, da antiga promessa de salvação feita pelo Deus de Israel aos antepassados do seu povo. Está prestes a nascer um movimento religioso com origens proféticas e tendências cada vez mais messiânicas, constituído por judeus que, discípulos de Jesus, vivem do seu Espírito, de quem eles herdaram o poder criador, curando os doentes e expulsando os demónios como o seu mestre já fizera antes deles. Isto acontece em Jerusalém, a cidade santa do judaísmo, dominada pelos romanos havia quase um século. A nova comunidade dos discípulos de Jesus é relativamente pouco homogénea, constituída por judeus oriundos de horizontes extremamente diferentes: alguns são de cultura e de língua hebraicas (os hebreus), outros de cultura e de língua gregas (os helenistas). 26

Ela subsiste graças ao facto de todos porem em comum os bens vendidos para socorrer as necessidades de todos e parece ter como centro uma "sinagoga" situada no monte Sião, no lugar onde Jesus tomou a sua última refeição com os discípulos mais chegados (os apóstolos). Os novos adeptos são admitidos no grupo dos "santos", como chamam a si mesmos, mediante uma iniciação em forma de uma ablução lustral - um baptismo em nome de Jesus, o Messias. Os seus membros freqüentam o Templo com assiduidade; é o caso do seu primeiro responsável, Tiago, o Justo, o irmão de Jesus. Às vezes, esta comunidade é perseguida pelas autoridades religiosas judaicas, o que obrigará alguns dos seus membros a dispersarem-se, motivando a difusão da mensagem do Reino de Deus entre as comunidades judaicas da diáspora. No ano 33, um cristão de origem judaica de língua grega chamado Estêvão foi condenado à morte por apedrejamento por blasfémia contra o Templo; no mesmo ano, sem dúvida, Paulo de Tarso torna-se membro do movimento dos discípulos de Jesus, vindo a ser um dos maiores missionários cristãos conhecidos. Então, estes cristãos espalham o que consideram a "Boa-Nova" (quer dizer, o Evangelho de Jesus, o Messias): assim, em 33, Filipe, um dos sete escolhidos pelos helenistas para o "serviço das mesas" (quer dizer, para a administração da sua comunidade), propaga-a na Samaria; em 34, cristãos de origem judaica de língua grega são levados a criar uma comunidade em Antioquia onde os crentes receberão pela primeira vez o nome de "cristãos", ou seja, "messianistas". Cristãos de origem judaica de língua hebraica como Pedro e Tiago (o irmão de João, e não de Jesus) são ambos perseguidos em 43-44; o segundo é executado por decapitação por ordem de Herodes Agripa I, enquanto o

Page 13: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

primeiro é obrigado a fugir em condições apresentadas como miraculosas. Então, Pedro é levado a propagar a "Boa-Nova" da crença messiânica em Jesus até Roma, a capital do Império. Tiago, o Justo, também é executado por lapidação em 62, por ordem do sumo sacerdote em exercício, por violação da lei de Moisés - aquando de uma vacatura da procuradoria romana. Nessa ocasião, a comunidade de Jerusalém parece desorganizar-se, sendo obrigada a refugiar-se em Pela (Transjordânia) em 68, durante o cerco da cidade pelas legiões romanas; só lá voltará, parcialmente, depois de 70. No início, a difusão da mensagem cristã foi realizada em meio judaico; depois, em meio pagão. Mas, na realidade, a maior parte dos não-judeus atingidos por esta mensagem são pagãos simpatizantes do judaísmo, relativamente numerosos nesta época nas comunidades judaicas do Império Romano. Durante os anos 30-135, a entrada dos pagãos nas comunidades provocará dificuldades pelos confrontos entre as diferentes tendências existentes no movimento cristão. Tiago, Pedro e Paulo estão no centro dos conflitos, cujos contornos podem resumir-se nestes termos: deveria a nova 27

crença messiânica impor as observâncias judaicas aos pagãos, nomeadamente a circuncisão? Parece que as respostas foram várias e diversificadas: para os crentes de origem judaica mantêm-se as observâncias que não serão necessariamente impostas aos de origem pagã - uns e outros deverão partilhar a mesma mesa, pelo menos durante a eucaristia. Antes do conflito de Antioquia e da reunião de Jerusalém, em 49-50, quando Tiago e Pedro, de um lado, e Paulo, do outro, se enfrentaram sobre esta questão, já Pedro, em Cesareia, tinha feito entrar para os "santos" um incircunciso e toda a sua casa, o que obrigou a explicar-se à comunidade de Jerusalém: trata-se de Cornélio, um centurião antigo simpatizante do judaísmo. A repartição dos campos de missão entre Pedro e Paulo é uma idéia que aparece tardiamente na literatura cristã; de facto, entre estas duas grandes figuras há concorrência na propagação da mensagem cristã, como se pode verificar não só na Anatólia, mas também em Roma. Sem contar que enviados de Tiago desempenharam um papel não desprezável nesta rivalidade. Com efeito, há um conflito nas interpretações: alguns consideram que, para a salvação, basta acreditar no Messias (Paulo, no que concerne unicamente os cristãos de origem pagã); outros julgam que é necessário observar e crer na Lei e, conjuntamente, no Messias (Tiago e, em menor escala, Pedro). Seja como for, nos anos 60 da nossa era, há cristãos por todo o Oriente romano e também em Roma. Não são, é claro, muito numerosos e vivem secretamente a sua condição para se protegerem por todos os lados. Mas, embora constituam comunidades dispersas, partilham essencialmente, de uma forma ou de outra, a crença de que Jesus é o Messias ou Cristo enviado pelo Deus de Israel e que, apesar de condenado à morte, foi arrancado aos poderes das trevas para se sentar à direita do seu Pai, enviando o seu Espírito capaz de transformar os corações e de perdoar os pecados na expectativa e espera do seu próximo regresso. Estas comunidades ainda permanecem no judaísmo, apesar de nelas haver já a presença de cristãos de origem grega. Durante um período dificilmente determinável com precisão, manter-se-ão no seio do judaísmo, não obstante as conseqüências das revoltas judaicas contra Roma de 66-74, de 115-117 e de 132-135. É difícil falar de cristianismo antes da segunda metade do século II - no melhor dos casos. Melhor dito, o cristianismo está tanto dentro do judaísmo, como fora dele, mas sem constituir uma religião desligada das suas raízes judaicas. Em meados do século II, o cristianismo adquire autonomia relativa em relação ao

Page 14: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

judaísmo, mas sem pretender quebrar as pontes; na verdade, esta corrente religiosa não tem data de nascimento, porque a sua edificação durou mais de um século, até à tentativa de emancipação - um divórcio que nunca será pronunciado, não obstante as excomunhões mútuas. A separação ou a ruptura (?) com o judaísmo será o resultado de um 28

percurso semeado de conflitos que, inicialmente, tomarão uma forma inter-judaica (entre judeus cristãos e judeus não-cristãos), antes de se revestir de uma forma antijudaica (entre cristãos e judeus). Ao longo do século II, assiste-se à marginalização das comunidades cristãs de origem judaica (o judeocristianismo), em proveito das comunidades cristãs de origem pagã (o paganocristianismo) que haverão de, progressivamente, erigir-se em "Grande Igreja". Durante os anos 30-150/180, os cristãos ainda não realizaram a utopia da unidade, embora as fontes, transmitidas pelos que se proclamam pertencentes à "Grande Igreja", afirmem evidentemente o contrário. Na verdade, o cristianismo da "Grande Igreja" construiu-se no decurso dos séculos II e III, elaborando conceitos novos, como os de heresia e de dogma. Foram eles que permitiram que esta se construísse à custa das outras tendências relegadas para a sombra da marginalidade, tanto judaizantes (nazoreus, ebionitas, elcasaítas...) como gnosticizantes (basilidianos, valentinianos...) ou marcionitas (Marcião), montanistas (Montano) ou, ainda, encratitas (Taciano). De algumas destas franjas emergirão outras correntes religiosas: no século III, do elcasaísmo nascerá o maniqueísmo. Simon C. Mimouni 29

Paulo e a primeira expansão cristã

A cristianização do Império Romano, realizada em três séculos, foi espantosamente rápida. Pressupõe um duplo processo: a expansão geográfica da nova religião a partir de Jerusalém e a sua penetração nas redes e nos meios de vida do mundo greco-romano. Embora a primeira história cristã, os Actos dos Apóstolos, dê a impressão de poder reconstituir as etapas de uma progressão geográfica na bacia do Mediterrâneo oriental, de Jerusalém a Roma, no seguimento das viagens de Paulo, trata-se de uma visão hagiográfica, destinada a mostrar a passagem do cristianismo do judaísmo ao helenismo, deixando na sombra numerosos aspectos da missão, como a chegada do cristianismo a Roma ou a Alexandria, e não tendo na devida conta a totalidade das missões de Paulo, de que não se fala a partir da sua chegada a Roma. Os escritos do Novo Testamento contêm bastante mais informação sobre os meios evangelizados do que sobre os itinerários da missão e permitem uma análise minuciosa da penetração do cristianismo em certas regiões, entre as quais se deve privilegiar a Ásia Menor, isto é, a actual Turquia, onde convergem fontes de informação variadas e contínuas. De facto, a actividade missionária está no centro das Epístolas apostólicas, a começar pelas de Paulo, que representam um testemunho autobiográfico insubstituível; das atribuídas a João para as comunidades destinatárias do Apocalipse joânico; das colocadas sob o nome de Pedro que são dirigidas às fundações deste apóstolo na Ásia Menor; e das chamadas pastorais, que emanam de comunidades paulinas desta mesma região durante a terceira geração. A história local das

Page 15: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

comunidades cristãs é bastante mais tardia e foi construída, sobretudo, sobre os relatos de mártires a partir de meados do século II. 30

Paulo, o "último dos apóstolos"... que também é o maior

Paulo domina toda a geração apostólica, tanto pela sua teologia como pela sua estratégia missionária... e pela sua escrita fulgurante que, ainda hoje, constitui uma presença excepcional. Paulo não era um discípulo como os outros porque não tinha conhecido Jesus em vida. A sua fé e a sua adesão a Cristo resultam de uma série de experiências místicas que fundaram e fundamentaram a sua concepção antropológica de uma re-criação do crente, mediante a união mística a Cristo. A primeira teve lugar em Damasco: como fariseu militante, partira para arrasar uma seita que ele considerava desviante e ímpia, teve uma visão e um chamamento que imediatamente o converteram e comprometeram a pregar o Evangelho com o mesmo ardor que ele tinha posto em combatê-lo. Paulo foi sempre independente do grupo dos discípulos, mas reconhecia a autoridade especial de Tiago, de João e de Pedro, de quem recebeu ensinamentos. Portanto, seria abusivo fazer dele o fundador de uma religião nova, muito distante da pregação de Jesus pelo facto de se dirigir aos gregos. Na realidade, toda a vida de Paulo o predestinava para se tornar um transmissor de cultura: judeu da diáspora em país grego, poliglota, associava uma educação grega, recebida em Tarso, sua cidade natal, a uma formação de fariseu recebida em Jerusalém. Pertencendo certamente a uma família de nível internacional (sem dúvida no comércio do têxtil), imediatamente viu e serviu-se das possibilidades de mobilidade e de encontros que o Império Romano lhe oferecia. A sua rota cruzou algumas vezes a de Pedro em Antioquia, Corinto e Roma.

Os grande pólos do cristianismo

Com efeito, as missões apostólicas não têm o objectivo de percorrer o maior espaço possível, mas o de implantar o cristianismo localmente. As tradições da Igreja sugerem a existência de pólos que desempenharam um papel mais importante como pontos de partida da missão. O primeiro é, evidentemente, Jerusalém. No dia de Pentecostes, o horizonte missionário do grupo dos discípulos de Jesus abre-se em três direcções. Em primeiro lugar, está a diáspora oriental da Mesopotâmia e dos contrafortes iranianos, para lá de Damasco - regiões que efectivamente se relacionavam com Jerusalém, mas sobre as quais não temos depois nenhuma informação até ao aparecimento da cristandade siríaca e das tradições relativas ao apóstolo Tomé, a partir do século III. O segundo eixo da missão saída de Jerusalém desenvolve-se na Ásia Menor, de leste para oeste, começando nas regiões continentais do planalto anatólio e terminando nas cidades mais helenizadas da costa. Segundo o testemunho das Epístolas, isto corresponde às missões de Paulo e de Pedro, que convergiram com o desenvolvimento das comunidades joânicas 31

Page 16: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

na província da Ásia à volta de Éfeso; é, portanto, o campo missionário mais bem documentado. A terceira área missionária corresponde ao espaço dominado por Alexandria - Creta, Cirenaica, deserto arábico e Egipto -, onde, em meados do século II, depois de um século de silêncio, emerge um cristianismo intelectualmente brilhante. Eram constantes as deslocações e as trocas entre Jerusalém e Alexandria. No Oriente, o primeiro horizonte cristão inscreve-se no quadro geográfico bastante convencional dos judeus helenizados do século I: o de Fílon, por exemplo. Quer dizer que o suporte da diáspora foi determinante na elaboração dos primeiros projectos missionários. Roma, capital do Império, já está presente no horizonte do Pentecostes, na menção de judeus de Roma idos a Jerusalém para a festa. A religião de Cristo atingiu a cidade antes da chegada de Pedro e de Paulo, sem dúvida desde o reinado de Cláudio, em 49 e durante os anos seguintes, no momento em que as fontes romanas e cristãs assinalam perturbações no seio das sinagogas da capital. Roma foi realmente o ponto de partida do movimento de cristianização das províncias ocidentais - Gália, África e Península Ibérica. É verosímil que o cristianismo tenha sido levado para África, onde só entra na história aquando das primeiras perseguições em 180, por judeus idos de Óstia, o porto de Roma, dado tratar-se de uma comunidade de língua latina. Na Gália - onde o cristianismo emerge na mesma data, em 177, aquando da perseguição sofrida pelas Igrejas de Lião e de Viena [a actual Vienne Isère no lés-nordeste da França] -, as primeiras comunidades localizam-se no vale do Ródano e reivindicam uma origem asiática, mas parece que Roma teria servido de intermediária no envio de missionários. A cristandade de Lião é uma comunidade helenófona como as Igrejas e as sinagogas de Roma; mergulhou num meio de negociantes e de outros profissionais idos do Oriente, todos de língua grega. É impossível datar os inícios do cristianismo na Península Ibérica. Paulo teria fixado este objectivo no final das suas três missões no mundo grego, quando preparou a sua chegada a Roma. Nesse momento, nos anos 60, é um objectivo absolutamente inovador, porque os orientais helenizados limitavam as suas perspectivas de viagem ao Mediterrâneo oriental, que, aliás, é o quadro limitado dos Actos dos Apóstolos. Conseqüentemente, Paulo tinha sido um dos primeiros a integrar a totalidade do espaço controlado por Roma e o universalismo do Império, o que o conduzia progressivamente à concepção da universalidade da Igreja. Este objectivo extremo-ocidental é reafirmado por Clemente de Roma nos anos 90.

As missões paulinas na estrutura do Império Romano

Postos assim em evidência os grandes pólos, é possível analisar mais exactamente o processo da expansão do cristianismo, graças às Epístolas de 32

Paulo, que cobrem as suas missões em Antioquia, em Chipre, na Anatólia, na Macedónia, na Grécia e, finalmente, na região de Éfeso. Felizmente, possuímos referências cronológicas: em 52, Paulo encontrava-se em Corinto, o que inscreve o conjunto da sua missão nos anos 50-60,

Page 17: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

mas o seu ritmo mantém-se bastante hipotético. A concepção que ele tem das suas viagens missionárias é inteiramente tradicional, já que se trata sempre de périplos ou circuitos a partir de Jerusalém com regresso ao seu ponto de partida para prestar contas à Igreja de Jerusalém ou, na terceira vez, para uma peregrinação. Freqüentemente, Paulo é considerado um grande viajante, mas não podemos considerá-lo um aventureiro ou um descobridor. Nessa época, estas viagens nada tinham de extraordinário. Ele não se esforçou por ocupar o maior espaço possível, mas antes por criar pólos cristãos, utilizando a infra-estrutura do Império para transmitir o seu Evangelho. Em suma, Paulo passou pelas capitais provinciais do Oriente romano: Antioquia, capital da Síria; Pafos, capital de Chipre; Tessalónica, capital da Macedónia; Corinto, capital da província da Acaia, que corresponde à Grécia antiga; Éfeso, capital da província da Ásia. A isto, junte-se a evangelização de colónias de veteranos romanos, que controlavam os nós rodoviários, como Antioquia da Pisídia e Filipos da Macedónia, que Paulo sempre considerou como o ponto de partida e o suporte da sua missão na Grécia. Igualmente, numa escala muito maior, foi sempre a partir das capitais provinciais, de Alexandria, de Cartago ou de Lião, que se difundiu o cristianismo nas províncias. As capitais provinciais eram pólos de reunião para os habitantes da região que lá iam regularmente, chamados pela presença da administração romana e pela realização de sessões judiciárias; esta função decuplicava-se quando estas cidades também eram sede de peregrinações ou de festivais, como Corinto ou Éfeso. Neste lugares cimeiros da romanidade, Paulo talvez visasse a elite romana, o círculo familiar, clientelar e oficial do governador; é assim que os Actos dos Apóstolos o põem em cena em Chipre. Sobretudo, como ele explica na sua Carta aos Tessalonicenses, utiliza as redes de difusão das notícias, embora a sua mensagem preceda sempre a sua chegada a cada terra. Pode calcular-se em cerca de três centenas de quilómetros a circulação da informação a partir de uma capital. Quando, na Carta aos Romanos, faz o balanço da sua missão na Grécia, Paulo diz que atingiu a "Ilíria": mas esta expressão não pode designar a região de língua ilíria, onde acaba o grego e começa o mundo bárbaro setentrional, porque o país dos ilírios, nas margens do Adriático, só foi evangelizado mais tarde. Este limite linguístico situa-se na região do lago de Ochrid, no centro dos Balcãs, a cerca de três centenas de quilómetros de Filipos, mais ou menos a mesma distância entre Éfeso e as fundações paulinas de Hierápolis, Colossos e Laodiceia. Compreende-se por que motivo Paulo se deteve tão longamente nestas capitais, que eram nós de comunicação e retransmissoras de informações; por isso, ficou dezoito meses em Corinto e três anos em Éfeso. 33

O exame dos itinerários de Paulo e das suas passagens de uma região para outra revelam-no como homem de recursos. Como enviado da Igreja de Antioquia, tinha sido adjunto de Barnabé, originário da ilha de Chipre, numa missão nesta ilha; lá, os dois apóstolos estavam num universo familiar, porque Chipre era uma etapa intermédia entre a Síria e a Cilícia, pátria de Paulo. A primeira escolha, estranha e significativa, foi a passagem de Chipre para a Pisídia, no centro da Anatólia. Antioquia da Pisídia era o lugar de origem da família do procônsul de Chipre com quem Paulo se encontrara e mantinha relações de amizade. Como então faziam os viajantes notáveis, Paulo, cidadão romano, usou o apoio das infra-estruturas oficiais da época: cartas de recomendação, escolta das delegações oficiais... A segunda passagem, também determinante, é a da Ásia para a Europa, de Tróade para a Macedónia. Os Actos dos Apóstolos, que solenizam este acontecimento através de uma visão, não explicam as suas razões secretas,

Page 18: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

mas pode deduzir-se, da estrutura do relato, que Paulo responde, sem dúvida, a um convite de macedónios de Filipos que, desde então, desempenharam um papel determinante no seu círculo pessoal. A missão desenvolve-se através dos conhecimentos pessoais de cada um, servindo-se dos encontros e das relações de hospitalidade. Mesmo que a passagem para a Europa pareça altamente simbólica, a verdade é que havia travessias e intercâmbios contínuos entre as duas margens do mar da Trácia. A figura de Lídia, uma negociante de púrpura de Filipos, originária de Tiatira na Ásia, corresponde perfeitamente ao que as inscrições revelam sobre o comércio têxtil e os movimentos migratórios entre as cidades da Macedónia e as da Lídia. Em Éfeso, e depois em Roma, Paulo foi precedido e chamado por um dono de loja-oficina itinerante, Áquila, para quem trabalhou em Corinto. Da Macedónia até Corinto, apoiou-se num certo número de familiares seus, como acontecia freqüentemente nas diásporas orientais, fenícia ou judaica.

As redes da missão cristã A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como uma penetração por capilaridade, que utiliza as redes da cidade antiga que funcionava como uma imbricação de comunidades, da mais pequena - que é a família - até à maior - que é a cidade. A célula-mãe da missão é a "gente da casa", o oikos, que é simultaneamente comunidade familiar e comunidade de actividade, exploração agrícola, oficina e armazém. Contrariamente à família nuclear moderna, o oikos antigo reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças, escravos e libertos, em maior número nas famílias dos notáveis; por isso, a sua composição transcende as clivagens da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e mulheres, livres e não-livres. Os cristãos de uma cidade 34

reuniam-se quer por oikos, quer na morada mais espaçosa de um notável que juntava os seus vizinhos e amigos. Esta prática continuou durante dois séculos. Tanto em Roma como em Doura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos referenciados no tecido urbano, em meados do século III, resultam da adaptação de grandes moradias urbanas: são "casas-igrejas". As actividades e as relações dos membros do oikos inserem-no em todas as espécies de redes de sociabilidade, em função do desenvolvimento familiar ou por afinidades, para responder a interesses profissionais ou a serviços de entreajuda, tanto em associações e comunidades de imigrados como nas sinagogas e nas associações desportivas ou culturais. A vida associativa é um traço característico das cidades do Oriente romano na época em que se difunde o cristianismo. Paulo utilizou claramente as solidariedades profissionais do meio têxtil, a que ele pertencia e em que trabalhava aquando das suas escalas: a oficina de Áquila fornece o exemplo de uma Igreja itinerante que se desloca de Corinto para Éfeso e para Roma. A preponderância das relações associativas, baseadas no convívio, justifica a importância alcançada em Corinto pelas questões de promiscuidade à mesa e de partilha das carnes sacrificiais. De facto, a maneira como os cristãos desenvolveram as suas estruturas de entreajuda impressionou os contemporâneos, desde o escritor Luciano ao imperador Juliano, dando ao cristianismo a sua primeira visibilidade, à falta de imagens e de monumentos. Portanto, os cristãos organizavam-se em pequenas comunidades muito personalizadas, de seis, dez, doze indivíduos, uma estrutura que ainda subsiste na época dos primeiros relatos de

Page 19: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

mártires no século II e III. Nas cidades, constituíam grupos a par de outros, sujeitos ao risco de parecerem sectários, de que Paulo tem perfeita consciência em Corinto. Esta descrição da missão paulina deve poder ser generalizada. Aliás, as missões de Paulo, de Pedro e do movimento joânico seguiram os mesmos itinerários e adoptaram as mesmas perspectivas na Ásia Menor, com problemas de usurpação entre os paulinianos e os outros na região de Éfeso, embora a pregação joânica e a de Pedro privilegiassem as cidades de numerosa população judaica. A partir de implantações pontuais em meio urbano, em volta de personalidades carismáticas, a unidade da Igreja foi-se construindo progressivamente segundo a mesma dinâmica, ao redor dos bispos como personalidades de referência e graças às novas redes que estes estabeleceram com as suas viagens e, sobretudo, com a troca de correspondência.

O universalismo cristão O pensamento e a reflexão teológicos do apóstolo Paulo fizeram evoluir um messianismo judeu para uma religião de salvação para todos os habitantes do Império. Pode considerar-se que o cristianismo assenta no acto de fé de um grupo de galileus diante de um túmulo vazio. A Ressurreição 35

está no coração da nova fé: era uma esperança já viva em certas correntes judaicas, fariseias e essénias, bem como no orfismo e nos mistérios dionisíacos e egípcios do mundo greco-romano. O cristianismo conserva a concepção bíblica da ressurreição dos corpos, sem entrar nas idéias gregas do renascimento ou de transmigração das almas, divergência que explica sem dúvida o fracasso de Paulo em Atenas. A confissão de fé cristã reconhece Jesus como o Cristo, o Messias anunciado pela revelação bíblica, e considera que Ele veio realizar os oráculos dos profetas. Os autores do Novo Testamento referem-se sem cessar ao Antigo Testamento para pô-lo em evidência. A identificação do Messias cria a separação entre judeus e cristãos, apesar de concepções teológicas comuns, que se acelera depois da insurreição messiânica de Bar Kochba, em 135, que obriga os cristãos de origem judaica a uma escolha. Mas, mesmo depois desta data, não obstante a tentativa de Marcião, o cristianismo permanece uma religião bíblica que se apropria da Bíblia hebraica, ao mesmo tempo que vai surgindo uma literatura de propaganda dirigida a notáveis do mundo greco-romano. Como as outras religiões de salvação do Império, o cristianismo dirige-se a indivíduos, independentemente da sua origem étnica e do seu estatuto: na vivência das comunidades paulinas, já não há diferença entre judeus e gregos, homens e mulheres, pessoas livres e escravos, habitantes do Império e bárbaros. Assim, a eclesiologia paulina baseia-se na paridade e na reciprocidade, o que exclui, por exemplo, toda a misoginia original que só aparece no século II, em conformidade com uma evolução geral da sociedade. A ética cristã assenta inteiramente na imitação de Cristo: em período de perseguições, termina no martírio. A nova religião é a única cujos membros foram designados pelos romanos em referência ao seu fundador, christiani, "os de Cristo". Mais do que qualquer outra, a religião cristã baseia-se na adesão pessoal, o que a faz parecer uma seita, ambigüidade de que Paulo tem consciência, ao observar a explosão da cristandade de Corinto à volta de personalidades opostas e que ultrapassou ao afirmar a vocação universal da Igreja no espaço do Império e ao trabalhar, com a sua correspondência, na união das primeiras comunidades que ele fundara. Marie-Françoise Baslez 36

Page 20: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

II

VIVER COMO CRISTÃO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO" (A DIOGNETO)

Perseguidos, mas submetidos ao Império Romano (até 311) Os cristãos foram perseguidos desde que, identificados como tais, deixaram de beneficiar do estatuto privilegiado dos judeus. A perseguição, inicialmente pontual, local e esporádica, tornou-se sistemática em meados do século III. Porque se perseguiam os cristãos no Império Romano, considerado "tolerante" relativamente a tantos cultos diferentes? A frase de Jesus "dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22,21) fundamentava não só o lealismo político dos cristãos e a sua sujeição ao Estado, mas também a separação dos domínios político e religioso, quando a sua intricação era a norma no mundo antigo. Porque professam um monoteísmo exclusivo e recusam o culto dos deuses, os cristãos são considerados maus cidadãos, perigosos para a salvação do Império. O seu "ateísmo" põe em perigo o necessário acordo harmonioso entre os deuses e os homens, esta paz dos deuses que garante, pelo estrito cumprimento dos ritos dos cultos públicos, o bom funcionamento do mundo romano. Os cristãos sujeitam-se aos governantes porque todo o poder vem de Deus e, mesmo perseguidos, oram a Deus pelo imperador e seus representantes, mas recusam o culto imperial. Na ausência de legislação anticristã, o zelo dos governadores era determinante em relação a estes adeptos obstinados de uma "superstição perigosa e insensata": bastava aplicar as leis da época republicana contra as religiões novas e ilícitas. Era o facto de ser cristão que era punido de morte, e não os pretensos delitos. Foi essa a jurisprudência estabelecida em 112, na resposta do imperador Trajano a Plínio, o Jovem, que, nomeado governador da Bitínia (na Ásia Menor), acabava de descobrir a presença de numerosos cristãos; todavia, o imperador recomendava que não os procurasse e recusasse as denúncias anónimas. Os cristãos, punidos pelo 39

que são e não pelo que fazem, são mais vítimas do ódio que anima a opinião pública, às vezes até ao massacre, e do zelo dos governadores, do que de uma vontade política de repressão. Em Roma, no ano 64, na seqüência do incêndio que devastava a cidade, foram executados cristãos, "condenados não tanto pelo crime de incêndio quanto pelo ódio do género humano", como escreveu o historiador Tácito, por volta de 115-116. Foram entregues às feras, crucificados ou transformados em tochas ardentes durante os jogos no anfiteatro dos jardins de Nero. Foi verosimilmente no decurso deste "suplício grandemente espectacular" que o apóstolo Pedro foi crucificado. Como cidadão romano, Paulo, levado do Oriente para Roma, foi decapitado, depois de um processo, em 66 ou 67. Houve perseguições pontuais e locais durante o século II: na Bitínia e em Antioquia sob Trajano (98-117); na província da Ásia, aquando e a pretexto de manifestações populares; sob Adriano (117-138); sob Antonino (138-161), o cristão Ptolomeu em Roma e o bispo Policarpo em Esmirna foram condenados,

Page 21: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

unicamente por serem cristãos; nota-se uma recrudescência das perseguições no reinado do imperador filósofo Marco Aurélio (161-185) que não tem senão desprezo pelos cristãos, apesar da coragem dos mártires diante da morte. Os cristãos foram responsabilizados pelas desgraças do tempo e constituem vítimas potenciais de ritos expiatórios. Assim, o filósofo e apologista Justino foi condenado à morte em Roma, enquanto em Lião, em 177, o velho bispo Potino e vários cristãos morrem na prisão; Sanctus, o diácono da Igreja de Vienne Isère, Átalo, cidadão romano, a escrava Blandina, o adolescente Póntíco e outros foram entregues às feras no anfiteatro das Três Gálias; os seus corpos foram oferecidos aos cães, depois queimados e as cinzas lançadas ao Ródano; em Pérgamo, cristãos são torturados, depois queimados vivos no anfiteatro. Em 180, pela primeira vez na África do Norte, são decapitados cristãos por causa da sua fé; em Roma, alguns são condenados aos trabalhos forçados nas minas da Sardenha. Mas também se vêem governadores soltar cristãos e o imperador Cómodo amnistiar confessores por influência de quem o rodeia, porque o cristianismo penetrou em todos os meios, até mesmo na corte. Doravante, os cristãos são mais numerosos; em cada cidade, a Igreja local organiza-se com o bispo à cabeça, assistido por presbíteros e diáconos; esta organização, conhecida tanto pelas autoridades como pelo público, pode ser comparada com os colégios cívicos ou corporações, o que permite ter lugares de culto e cemitérios. Entretanto, as perseguições continuam. Algumas visam os convertidos, catecúmenos e novos baptizados bem como os seus catequistas: em Alexandria, em 202-203; em Cartago, onde são detidos alguns catequistas, entre os quais duas jovens mulheres, Perpétua e Felicidade; julgados e condenados às feras, são executados no dia 7 de Março de 203, com o seu catequista, depois de terem sido baptizados na prisão; tinham recusado ser vestidos, os homens com os hábitos dos sacerdotes 40

de Saturno e as mulheres com os das iniciadas de Ceres, para que o seu sacrifício não se transformasse em sacrifício aos deuses da África romana. As denúncias e a pressão popular suscitam sempre chamas de violência, como o massacre anticristão de 249, em Alexandria. Os cristãos em perigo de morte exaltaram o ideal do mártir, testemunho absoluto de fé, realização da perfeição cristã pela imitação de Cristo crucificado, fracasso aparente que se transcende em triunfo. Ao longo do século III, o Império é confrontado com graves provações (invasão dos godos, catástrofes naturais) interpretadas como sinais da ruptura da paz dos deuses; para restaurá-la, o imperador Décio ordena que se faça, no dia 3 de Janeiro de 250, uma súplica geral: todos os cidadãos (praticamente todos os habitantes livres do Império desde 212) e as suas famílias devem realizar um acto religioso em honra dos deuses - oferenda de incenso, libação, sacrifício ou consumo de carne consagrada; e são entregues certificados - que alguns compraram. Propriamente falando, não se tratava de um édito de perseguição, mas o facto desencadeou-a porque visava condenar ou fazer abjurar quem se recusava submeter-se. Numerosos cristãos submeteram-se espontaneamente, alguns abjuraram, obrigados, outros, sujeitos à tortura, resistiram: são os confessores; alguns foram condenados à morte: são os mártires. A perseguição cessou com a morte de Décio, em 251, mas foi retomada quando o seu sucessor ordenou numerosos sacrifícios públicos para afastar uma epidemia de peste; e novamente as multidões hostis gritavam: "Os cristãos aos leões!" Os apóstatas tinham sido mais numerosos que os mártires e que os confessores, nomeadamente na África. Evitando o duplo escolho do rigorismo e do laxismo, Cipriano, bispo de Cartago,

Page 22: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

preconizou uma penitência proporcional à falta, que foi adoptada por um concílio africano, em comunhão com o bispo de Roma, Cornélio. Assim, foi definida para a Igreja universal uma disciplina de penitência e de misericórdia. Em 257-258, por causa da situação particularmente grave, o imperador Valeriano ordenou uma perseguição geral dos cristãos, a fim de obviar ao descontentamento popular contra os cristãos, considerados responsáveis. Pela primeira vez, dois éditos visam-nos explícita e exclusivamente: em 257, as reuniões e o acesso aos cemitérios são interditos; bispos, presbíteros e diáconos devem sacrificar sob pena de exílio e de confiscação dos bens; em 258, é a morte de clérigos e pessoas de elevada categoria social. A perseguição torna-se sangrenta: em Roma, o bispo e quatro diáconos são decapitados; Cipriano e outros bispos africanos, alguns das Hispânias e Dinis de Lutécia (Paris) também o foram. Depois da captura de Valeriano pelos persas, seu filho Galiano, preocupado com a paz civil, mostra-se realista e suspende a perseguição em 260, autorizando os cristãos a recuperar lugares de culto e cemitérios. Embora a religião cristã não fosse reconhecida como legal, os cristãos beneficiaram durante quarenta anos de um período de paz que permitiu à 41

Igreja desenvolver-se, certamente de maneira desigual, consoante as regiões. Convém, no entanto, não sobrestimar esta expansão, que pode atingir de cinco a quinze por cento da população, mais no Oriente e na África, bastante menos nas regiões pouco urbanizadas do Ocidente. A partir de 284, o imperador Diocleciano empreende a reorganização do Império e chama a si três colegas que formam, em 293, um colégio de quatro imperadores (a tetrarquia). Esta obra implicava uma estrita coesão religiosa no quadro da religião tradicional, o que conduziu à perseguição de quem a recusasse: dos maniqueus em 297 e dos cristãos a partir de 303. Quatro éditos anunciam as proibições e as penas cada vez mais severas: arrasar as igrejas, queimar as Escrituras, despedimento dos oficiais e funcionários cristãos, depois prisão dos chefes das Igrejas e, finalmente, obrigação de todos sacrificarem, sob pena de morte. A aplicação destas medidas foi variável: a perseguição foi muito dura no Oriente até 311 (e mesmo depois), brutal na Hispânia, na África e na Itália até 306, restrita na Gália, domínio do imperador Constâncio, tolerante, se não mesmo simpatizante, do cristianismo. Em 311, o imperador Galério, perseguidor obstinado, reconheceu o fracasso de uma perseguição que, por mais sangrenta que tivesse sido, não havia conseguido erradicar o cristianismo. Realista, mas não contra a vontade, decide mostrar-se "indulgente". Concede o direito de ser cristão, de reedificar os lugares de reunião e acrescenta: "Os cristãos deverão orar ao seu Deus pela nossa saúde, pela do Estado e pela sua própria." Havia três séculos que eles não pediam outra coisa! O cristianismo era legalmente reconhecido. A decisão tomada em Milão em 313 pelos imperadores Constantino, pessoalmente convertido, e Licínio concede "aos cristãos, como a todos, a liberdade de poderem seguir a religião de sua escolha, de modo que o que há de divino na morada celeste possa ser benevolente e propício". Era reconhecida a liberdade de religião e de culto, algo profundamente novo. O martírio deixava de ser - pelo menos por agora - a via real de acesso à santidade; o culto dos mártires e a veneração das suas relíqüias desenvolveram-se. Encontraram-se, particularmente no ascetismo, outros modos de testemunho da fé, outros meios para aceder à vida perfeita. Françoise Thelamon 42

Page 23: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

"Vivemos convosco", mas... Os cristãos e os costumes do seu tempo

Animados por uma fé exclusiva que não tolera compromissos, os cristãos recusam toda a participação nos cultos tradicionais: não apenas cerimónias e festas em honra dos deuses, mas também formas de sociabilidade que delas fazem parte, como banquetes e espectáculos, e o consumo da carne de sacrifício. Certas profissões ou estados de vida são incompatíveis com o baptismo que, então, deve ser recusado ou adiado: todos quantos estão ligados aos cultos, aos templos, à adivinhação e até à magia; ao anfiteatro, ao circo e ao teatro, à prostituição e também a profissão de soldado, as magistraturas que implicam o poder da espada e/ou o cumprimento de ritos em honra dos deuses ou dos imperadores. Portanto, os cristãos mantêm-se à margem de uma parte da sua vida pública; por isso, são acusados de misantropia e de "ódio ao género humano" (Tácito). Como a sua fé informa práticas religiosas, individuais e colectivas que lhes são próprias, os cristãos são suspeitos de formar uma seita perigosa devotada a uma "vã e louca superstição", porque adoram como deus um criminoso devidamente condenado por um magistrado romano ao mais infame dos suplícios, o da cruz. São acusados de realizar ritos horrendos ou imorais - matança de crianças, canibalismo, magia - e de terem costumes sexuais depravados. Finalmente, os intelectuais e os meios cultos desprezam-nos. Deste modo, para o filósofo Celso (ca. 178), são pessoas da "última ignorância", "sem educação" nem cultura, que enganam os espíritos fracos (mulheres e crianças, artesãos, escravos e libertos) servindo-se da sua credulidade, sendo gente que põe em perigo a família e a sociedade. A estas acusações, os cristãos respondem: "Não fazemos nada de mal", os nossos costumes são puros. "Vivemos convosco, levando o mesmo género de vida", escreve Tertuliano, por volta de 197, afirmando que os cristãos cultivam a terra, comerceiam, freqüentam o foro, o mercado, as termas, as lojas, as estalagens, as feiras, em suma, vivem com os seus concidadãos e como eles. De facto, os cristãos afastam-se dos costumes e 43

das formas de sociabilidade do mundo do seu tempo, quando são incompatíveis com a sua fé e os seus valores. As suas refeições em comum, os seus ágapes - que provocavam tanto mexerico -, são emblemáticos da sociabilidade cristã: sob o olhar de Deus, estão marcados pela modéstia, pelo pudor e pela sobriedade (neles não se bebe demasiado e cantam-se hinos em honra de Deus). Um cristão pode freqüentar as termas, mas só para se lavar; pode utilizar incenso em honra dos mortos. "Quanto aos espectáculos, renunciamos a eles", escreve ainda Tertuliano, que denuncia a loucura do anfiteatro, onde as corridas provocam o desencadear frenético das paixões, a imoralidade do teatro, a atrocidade do circo, onde o espectador vive um prazer sádico de assistir à morte de seres obrigados a matarem-se - os gladiadores - ou a exporem-se às feras, a frivolidade das competições desportivas. A crítica cristã, além de se juntar à de alguns filósofos (os estóicos), às corridas e aos jogos do anfiteatro, acrescenta-lhe uma denúncia do carácter idolátrico e, portanto, diabólico - os deuses são identificados com os demónios - de certas práticas, de que, aliás, nem os seus próprios contemporâneos já teriam consciência, como o carácter religioso do cortejo que, no circo, preludiava o desenrolar das corridas ou, ainda, o facto de os combates dos gladiadores terem a sua origem no sacrifício

Page 24: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

humano em honra dos mortos. Por isso, a renúncia aos espectáculos é realmente um sinal distintivo dos cristãos. Mas teria sido sempre respeitado? As ordens e os avisos regularmente repetidos até ao século V permitem que se duvide. Ao recomendar às mulheres cristãs que "só agradem ao [seu] marido" e, portanto, não usem artifícios de sedução como maquilhagem, jóias e vestidos luxuosos ou impudicos, Tertuliano afirma precisamente que há uma regra comum e que um esposo, cristão ou não - o que era freqüentemente o caso -, considere a castidade o mais belo dos adornos. Neste ponto, a moral cristã concorda com a moral comum, excepto nos usos. Mas Tertuliano também convida as mulheres cristãs a saírem de casa para socorrer os pobres, participar no santo sacrifício e ouvir a palavra de Deus; admite as visitas de amizade a não-cristãs para que lhes sirvam de exemplo. Igualmente, Clemente de Alexandria (ca. 190) esforça-se por "esboçar" - em O Pedagogo - "o que deve ser em toda a sua vida quem se chama cristão", dá conselhos muito práticos para viver no mundo com simplicidade, moderação e autodomínio, e usar bem o que Deus criou. Mas é necessário ter em conta o facto de estes conselhos de ética e de vida quotidiana constituírem um discurso normativo dirigido a uma certa categoria social abastada. Não sabemos grande coisa da vida concreta da maioria anónima das pessoas comuns, homens e mulheres, cristãos ou não. Além disso, o adiamento do baptismo para perto da morte também permitia continuar a viver "como antes", sem contar a pressão social e os cargos a que os notáveis das cidades podiam eximir-se. Ao fazer da união de Cristo e da Igreja o modelo do casamento, os cristãos estabeleceram o fundamento de uma ética específica da união conjugal, 44

baseada no autodomínio e na fidelidade mútua dos esposos. Deste modo, o homem que vive em concubinato deve casar-se para ser admitido ao baptismo, mas a escrava concubina do seu dono, que educou os seus filhos e não tem relações sexuais com outros homens, pode ser baptizada. Entre as correntes sectárias, como os marcionitas, que preconizam a continência absoluta tanto para os homens como para as mulheres, os que negam o primado da virgindade (Joviniano) ou os que ridicularizam as mulheres casadas (Jerónimo), o equilíbrio é mantido pelos responsáveis das comunidades que insistem no valor do casamento, embora o modelo da virgindade consagrada seja exaltado no século IV, com o desenvolvimento do ascetismo. Ao reprovar o adultério, tanto do homem como da mulher, e o uso sexual dos jovens, e sem estabelecer diferença entre livres e escravos, os pregadores cristãos contribuem para que os homens tomem consciência da dignidade igual de todos os seres humanos. O mesmo se diga quando, contra o uso estabelecido, os cristãos se recusam a abandonar os recém-nascidos indesejáveis, mesmo que se trate de crianças malformadas. Ao responderem "Sou cristão" ao magistrado que tinha o poder de condená-los à morte e, talvez mais ainda, "Sou cristã", no caso das mulheres, os/as futuros/as mártires, ao recusarem pronunciar a sua identidade, ao recusarem apresentar a sua origem familiar patrícia ou nobre, ou a sua qualidade de cidadão romano, acediam à dignidade de pessoas e de sujeitos do seu próprio destino, em nome da sua fé. Tertuliano foi o primeiro a dirigir-se às mulheres num tratado sobre a toilette, inovação que foi continuada. Pregadores, retóricos e filósofos cristãos trataram da educação, tanto das raparigas como dos rapazes, e depois, no século IV, da virgindade, do casamento e da viuvez, em cartas e tratados freqüentemente destinados às mulheres, contribuindo para desenvolver a nova ética familiar, primeiro nos meios abastados, e depois difundindo-se gradualmente em toda a sociedade. De facto, os cristãos estão numa situação paradoxal, como explica o autor

Page 25: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

do escrito A Diogneto (redigido em Alexandria entre 190 e 210, sem dúvida a um magistrado encarregado de um inquérito sobre os cristãos): "Os cristãos não têm nada diferente dos outros homens [...]; não vivem em cidades à parte [e] conformam-se com os usos locais, mas também seguem as leis extraordinárias [...] da sua república espiritual." Simultaneamente semelhantes e diferentes, os cristãos têm outros valores e outros comportamentos diversos dos seus concidadãos. Ao contrário dos estóicos, que pretendem ser "cidadãos do mundo", os cristãos "passam a sua vida na Terra, mas são cidadãos do Céu". Habitando nas cidades do mundo, são como a alma no corpo. Como "a alma habita no corpo, mas não está no corpo, assim os cristãos moram no mundo, mas não estão no mundo". Conscientes da sua identidade e do que ela implica, os cristãos não deixam de reivindicar, salvo em certas correntes sectárias, a sua pertença a uma família, a uma cidade e ao Império Romano, e a sua ligação à cultura greco-romana. Françoise Thelamon 45

Respondendo às críticas Os apologistas, de Aristides a Tertuliano

O conflito que opunha a jovem comunidade cristã à massa do povo, à sua elite intelectual e às autoridades levou os seus membros mais cultos a tomar a palavra para defender (apologeisthai) os seus correligionários, endereçando súplicas aos poderes ou cartas abertas aos seus compatriotas: são os autores a quem geralmente se chama apologistas, palavra que se aplica mais especificamente aos autores de língua grega do século II. Este movimento prolongou-se pela primeira metade do século III, pelo IV (Eusébio e Atanásio) e até ao início do século V (Agostinho, Cirilo e Teodoreto). A apologética primitiva parece largamente tributária da tradição judaica. É ilustrada pelo ateniense Aristides, que dirige o seu libelo ao imperador Adriano, aquando da sua estada na Ática, por volta de 124-125. Esta obra, de conteúdo bastante rude, segue um plano muito simples: depois de um exórdio sobre a existência e a natureza do verdadeiro Deus, Aristides passa em revista o erro dos bárbaros (o culto dos elementos), o dos gregos (o politeísmo associado à zoolatria egípcia) e o dos judeus que honram o verdadeiro Deus sem o conhecerem; e segue-se uma exposição sobre a piedade dos cristãos. Esta divisão em quatro "raças" é a primeira afirmação testemunhal datada da separação da Igreja e da Sinagoga. Também se encontram em Aristides fragmentos de fórmulas de fé, compreendendo a afirmação da unicidade de Deus, único criador, e a confissão do Filho, Deus vindo à carne "pelo Espírito", para assegurar a salvação dos homens, crucificado, morto e ressuscitado. A actividade de Justino, que dirigiu ao imperador Antonino e ao Senado, entre 150 e 155, duas súplicas (biblidia), marca o apogeu do género. Nascido em Naplusa [antiga Siquém, Israel], de uma família de colonos helenizados, não circuncidados, formado na filosofia pagã (afirma-se discípulo de Platão), Justino converte-se depois e na seqüência de um itinerário espiritual de que faz um duplo relato, realçando, ora o valor exemplar da coragem dos cristãos, ora a força de convicção de um didáscalos (mestre, professor) encontrado em Éfeso e dos escritos que ele lhe deu a conhecer. Esteve em Roma por duas vezes: uma assinalada por 46

Page 26: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

disputas com o filósofo cínico Crescendo, a outra terminada com o seu martírio sob Marco Aurélio entre 163 e 168. Dele foram-nos igualmente transmitidos um diálogo com o judeu Trifão, que contém em germe toda a argumentação contra os judeus desenvolvida nos séculos seguintes, e um tratado Sobre a Ressurreição dirigido contra cristãos heterodoxos, sem dúvida os gnósticos. Justino está na origem de um género literário novo, que se define mais pelo fundo que pela forma; ao servirem-se dos seus escritos, Taciano, Atenágoras e Tertuliano afirmam-se implicitamente seus seguidores. O seu uso das Escrituras, e mais particularmente dos testemunhos (testimonia) cristológicos, marca uma etapa importante na afirmação da exegese cristã. Por fim, contribui de forma decisiva para o progresso da reflexão cristológica: ao definir o Filho como "outro Deus", segundo em categoria, afirmando também a sua unidade com o Pai, ele concilia a unidade e a distinção dos dois numa perspectiva de subordinação que será regra até [ao Concílio de] Niceia [325]. A geração seguinte - Taciano, Atenágoras, Melitão e Teófilo, que floresceram em finais do reinado de Marco Aurélio - é a da diversificação do género. Sírio, convertido do paganismo e discípulo de Justino em Roma, Taciano vai-se afastando da "Grande Igreja" depois da morte do seu mestre, para dirigir no Oriente uma seita própria, chamada dos encratitas ("abstinentes"). Dele conserva-se um Discurso aos Gregos, um ataque violento à cultura helénica identificada com o paganismo, em que ainda é muito notória a influência de Justino, e diversas traduções do Diatéssaron, uma concordância dos Evangelhos que foi a versão oficial da Igreja siríaca até ao século V. Estes textos não permitem julgar o grau de heterodoxia da doutrina de Taciano, cujos escritos não parecem ter causado grande escândalo no Oriente, enquanto que Clemente de Alexandria e, depois, o heresiarca Epifânio de Salamina, os colocavam entre as obras gnósticas. Atenágoras, "filósofo" de Atenas, apresenta-se como um moderado. Sobre ele nada se conhece de seguro, embora o historiador Filipe de Sidé o designe como o primeiro mestre do didaskaléion de Alexandria. Redigiu uma Súplica a propósito dos cristãos dirigida ao imperador Marco Aurélio, por volta de 176-177, em que refuta sucessivamente as três acusações - de antropofagia ritual, de incestos edípicos e de "ateísmo" -, antes de condenar os costumes e as crenças pagãos, que ele opõe aos dos seus correligionários; e um Tratado sobre a Ressurreição, em que combate a interpretação espiritual que os gnósticos faziam desta doutrina. A Súplica manifesta uma vontade evidente de apresentar a mensagem cristã à luz da razão, em particular na definição das relações que unem o Pai ao Filho. Também fundamenta racionalmente a refutação do paganismo: oposição muito platónica entre o Deus incriado e os deuses criados, polidemonismo para explicar a acção dos ídolos nos santuários, evemerismo para justificar a existência das suas lendas e dos seus cultos. Na mesma época, o bispo de Sardes, Melitão, dirigiu ao imperador uma apologia de que só restam 47

alguns fragmentos; nela desenvolve a visão utópica de uma união da Igreja e do Império, contradita pelos factos. Outra obra de Melitão, a homilia Sobre a Páscoa, define pela primeira vez a unidade das naturezas (duo ousiai) em Cristo, que só implicitamente aparece em Justino. De Teófilo, bispo de Antioquia, só se conservaram três livros: A Autolykos, relato de uma conversa com um amigo pagão. Embora ele seja também de origem pagã, é o primeiro a desenvolver uma exegese contínua dos primeiros capítulos do Génesis em que se detecta a influência dos métodos rabínicos. Também contribui de maneira importante para a elaboração do dogma, em particular pelo primeiro emprego conhecido do termo trías ("tríade",

Page 27: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

"trindade") para designar o Pai, o Filho e o Espírito, e para uma sistematização da doutrina da processão do Logos, conciliando a co-eternidade do Verbo contido em Deus desde o princípio e a sua prolação como dois momentos na existência do Verbo. A cronologia universal que ele dá no seu último livro para provar a grande antigüidade das Escrituras cristãs permite situar a sua actividade num período de calma relativa, nos anos seguintes à subida ao poder de Cómodo (180). Numerosos historiadores associam às apologias o escrito A Diogneto, obra anónima mal situada no tempo e no espaço (em Alexandria do início do século III?) que é uma resposta às questões postas ao autor, uma vez mais, por um amigo pagão: "A que deus se dirige a fé dos cristãos, que culto lhe prestam, de onde lhes vem o desdém unânime pelo mundo e o seu desprezo pela morte, porque não fazem nenhum caso dos deuses reconhecidos pelos gregos e não observam as superstições judaicas, qual é o grande amor que têm uns pelos outros e, finalmente, porque é que este povo novo, este novo modo de vida, não começou a viver mais cedo?" São estes os principais temas da apologética. Não parece que as apologias tenham alcançado o seu objectivo. A política dos imperadores não se inflectiu no sentido de uma maior tolerância e, embora a comunidade não cesse de se alargar, deve-o mais à propaganda individual e ao valor do exemplo: retomando a palavra de Tertuliano, é o sangue dos cristãos que constitui a melhor das sementeiras, e também sem dúvida a austeridade da sua moral. Mas o contributo dos apologistas para a construção do cristianismo não se limita a este papel de defesa das comunidades, nem mesmo ao de pôr em causa o politeísmo; este aporte é acompanhado por um esforço de racionalização da doutrina, para torná-la compreensível a um público culto, contribuindo assim para a elaboração do dogma. A actividade apologética prossegue no século III. Clemente de Alexandria (ca. 150-ca. 215) não foi somente um pregador, um director de consciências, um "gnóstico" dentro da ortodoxia, detentor de uma doutrina esotérica, cujo segredo ele preserva: foi também um cantor do cristianismo e, ao mesmo tempo, um denunciador eloqüente do paganismo no seu Protréptico. Entre os latinos, o africano Tertuliano (ca. 160-ca.. 225), 48

moralista rigoroso, tão retórico com uma eloqüência virulenta quão teólogo brilhante (a ele se deve o vocabulário teológico usado no Ocidente: persona, trinitas, etc.), com uma obra tão abundante quanto diversificada, realça na sua Apologética (ca. 197) a fragilidade do fundamento jurídico das perseguições, tema até então um pouco negligenciado; como Taciano, nos finais da sua vida afasta-se da Grande Igreja para se juntar à corrente montanista. Um pouco mais tarde, parece, o advogado Minúcio Félix, no seu Octavius, põe em cena o debate de dois amigos, um pagão (Cecilius) e outro cristão (Octavius), que se encerra com a vitória do segundo. Por fim, Orígenes, fundador e mais brilhante representante da escola exegética de Alexandria, no seu Contra Celso (ca. 248), refuta sistematicamente a primeira obra de envergadura dirigida contra os cristãos, Discurso Verdadeiro do filósofo Celso, anterior cerca de setenta anos. Mas, para estes escritores, o combate mudou de natureza: as acusações caluniosas já pertencem ao passado e o confronto torna-se mais intelectual. Doravante, a literatura e o pensamento cristãos rivalizarão com os seus concorrentes pagãos. Bernard Pouderon 49

Page 28: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

III

QUANDO O IMPÉRIO ROMANO SE TORNA CRISTÃO De Constantino a Teodósio Da conversão do imperador à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter, de início, simplesmente uma fé monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido sob diversos nomes e adorado de várias maneiras - assim, o Sol invictus aparece nas moedas depois de 308; mas só progressivamente ele virá a formular de maneira explícita, em textos saídos da sua pena, a sua adesão ao cristianismo. Não é possível contestar a sua sinceridade, como fizeram bastantes historiadores, embora esta adesão lhe permita ser identificado como um instrumento escolhido pessoalmente por Deus e esta relação pessoal ganhe um alcance político; então, estava-se num mundo em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo marcado religiosamente. Aliás, não se pode imaginar uma conversão súbita, mas, antes, uma evolução, um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador recebeu sinais de Deus, por diversas vezes. Em todo o caso, parece que, quando entrou em Roma, depois da batalha da ponte Mílvius (312), Constantino encontrou o denominador comum que assegurará não só a unidade do seu Império - o reconhecimento de um Deus único - mas também a sua legitimidade, que ele considera uma missão pessoal recebida de Deus. Isso condu-lo a uma atitude intolerante em matéria de religião. Em 313, o "Édito de Milão" exprime simultaneamente a idéia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e já não pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do facto de a religião não poder ser obrigatória. Ele testemunha uma política de consenso a que cristãos e pagãos podem aderir, com um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um monoteísmo que 50

tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Conseqüentemente, ao pôr termo à Grande Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou na sua tentativa de erradicar o cristianismo, Constantino visa conciliar os cristãos e incorporá-los no Império e na sua política tradicional. Está assente que, desde muito cedo, irá manifestar um favor acentuado à Igreja: ofertas em dinheiro, terrenos, palácios, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Conseqüentemente, os bispos pedem-lhe que intervenha nos seus negócios internos e, embora inicialmente ele procure regular os seus conflitos de maneira consensual, as resistências encontradas conduzem-no rapidamente à punição severa dos dissidentes: donatistas e, depois, arianos. Em contrapartida, conserva uma atitude tolerante (se bem que um pouco desdenhosa) para com a religião tradicional, contentando-se com proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido (os sacrifícios sangrentos, a magia e a adivinhação privada). Embora tivesse podido conter os bispos e as suas violentas disputas teológicas, durante o seu reinado, soube neutralizar um cristianismo militante antipagão. Os sucessores cristãos de Constantino (muito especialmente Constâncio II, Valente e Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para isso, podem apoiar-se na teologia política

Page 29: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

elaborada por Eusébio de Cesareia nos seus últimos escritos, em particular no Discurso para os Trinta Anos de Reinado e Vida de Constantino, em que o seu autor apresenta o modelo de um basileus cristão, colocado à cabeça de um Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade", que proclame a todos "as leis da piedade verdadeira", que vele por assegurar a salvação de todos. Investidos com esta missão de protecção ou, mesmo, de vigilância, os imperadores cristãos, ao longo da crise ariana, apoiam ou impõem diversas fórmulas de fé, concedendo o seu favor aos que as aceitam, mas perseguindo os que as recusam (os dissidentes, bispos sobretudo, são depostos e exilados - como Atanásio de Alexandria e Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinqüenta anos de controvérsias, a chegada de Teodósio I (379-395) marca o regresso definitivo à "ortodoxia" definida no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada aquando do Concílio de Constantinopla de 381: recebe o apoio do imperador, que faz disso uma lei que se impõe a todos. Uma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão e do culto de todos os dissidentes da ortodoxia, considerados hereges e perseguidos como tais. Mas, em nome dos deveres do imperador, Eusébio contava igualmente o de combater o "erro ateu", o paganismo. Deste modo, a par das medidas de repressão das dissidências cristãs, os sucessores de Constantino tomaram outras que irão restringir e, depois, proibir a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino foram os primeiros que as puseram em prática. Uma lei de Constante de 341 declara: "Que cesse a superstição, que seja abolida a loucura dos sacrifícios." Todavia, ao que parece, ainda não se trata de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de 51

uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De facto, uma das suas leis proíbe que se destruam os templos, tolerados "embora toda a superstição deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por razões em que a política parece ter o maior peso: entre 353 e 357, depois da derrota do usurpador Magnêncio, que tinha autorizado novamente os sacrifícios nocturnos, diversas leis ordenam o encerramento dos templos e tentam interditar totalmente o culto pagão: quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "atingido por uma espada vingadora" e pela confiscação dos bens; a adoração das estátuas é proibida sob pena de morte. Contudo, estas medidas só foram parcialmente aplicadas. Por isso, a política religiosa dos dois irmãos não terminou na repressão sistemática do paganismo, mas somente num desfavor acentuado. O imperador Juliano, nascido cristão mas regressado à religião tradicional, aboliu estas medidas e tentou fazê-la reviver; contudo, o seu curto reinado (361-363) não lhe permitiu realizar esta empresa. A sua lei escolar, imediatamente abolida pelo seu sucessor Joviniano, tentara proibir os professores cristãos de difundirem a herança da cultura clássica, considerada um bem do paganismo. Entretanto, a política dos seus sucessores Valentiniano e Valente continua relativamente tolerante com este. Uma das suas primeiras leis, renovada em 370, declara que mantém a liberdade de culto; mas, no final do seu reinado, Valente proíbe novamente os sacrifícios sangrentos. A política religiosa de Graciano e de Teodósio I, e deste sozinho, quando desapareceu o seu associado, adoptará medidas bastante mais decisivas, que acabarão por pôr o paganismo fora da lei. Aquando da sua investidura, Teodósio I recusa o título e o manto de Pontifex maximus e Graciano renuncia a isso pouco depois. Os cristãos regressados ao paganismo são visados por éditos e, a partir de 381, perdem o direito de fazer testamentos. A lei é renovada em 383, aplicando-se estritamente aos

Page 30: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

cristãos baptizados que abandonaram a sua fé, considerados "excluídos do direito romano", deixando àqueles que não foram catecúmenos o direito de testemunhar a favor da sua família. Em 391, Teodósio endurece-a porque o abandono da comunhão cristã equivale a "cortar-se do resto dos homens". Por outro lado, são renovadas as antigas proibições das práticas religiosas tradicionais: em 381 e 382, são proscritos os sacrifícios sangrentos sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação, sob pena de morte. Os dois imperadores também atingirão as próprias instituições do culto pagão. No Outono de 382, Graciano manda tirar do Senado de Roma a estátua e o altar de Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pagãos, confisca as suas receitas e os seus subsídios; Teodósio ordena o encerramento dos templos; só podem ficar abertos para fins exclusivamente culturais ou para que, nos que contêm obras de arte, se realizem assembleias públicas. Em 384, são fechados ou demolidos diversos templos. 52

Mas é uma série de leis emanadas em 391-394 que completa a empresa proibindo todas as manifestações do culto pagão: a lei de 24 de Fevereiro de 391 aplica-a a Roma, a de 16 de Junho ao Egipto, a de 8 de Novembro de 392, a todo o Império. São proibidos todos os sacrifícios, mesmo os mais modestos do culto doméstico, tanto em público como em privado, seja qual for a categoria social, sob pena de pesadíssimas coimas ou de penas mais graves. É esta lei que torna, doravante, o cristianismo religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo o direito legal de se exprimir: foi com Teodósio (e não com Constantino como, às vezes, se diz) que o Império romano se tornou oficialmente cristão. Pierre Maraval 53

Pensar o Império cristão Teologia política e teologia da história

A escolha do cristianismo por Constantino, o fim das perseguições e o reconhecimento da liberdade religiosa para todos criaram condições radicalmente novas para os cristãos; doravante, era preciso pensar o Estado romano no plano divino, na economia da salvação, pensar a relação do soberano cristão com Deus e o seu lugar na Igreja. No seio dos Estados antigos, a realeza humana era pensada como imagem terrestre da realeza divina, e aquele que era investido como representante na Terra do soberano celeste; o exercício do poder era uma imitação sacralizante da acção divina. Na própria Roma, tinha-se desenvolvido, de várias formas, uma determinada sacralização do imperador, cujo título Augusto já exprime e de cujo culto imperial, ele, na sua qualidade de sumo pontífice, era o chefe e o responsável da religião tradicional. Eusébio, tornado bispo de Cesareia da Palestina por volta de 313-314, próximo de Constantino depois de 324, apologista, teólogo e historiador, é o primeiro a formular, em vários discursos e obras, uma teologia cristã do poder e da história. Mostra que a encarnação do Verbo de Deus, o Logos, na pessoa de Jesus é o ponto crucial da história da humanidade e dá-lhe sentido; ora, este acontecimento operou-se no Império Romano no tempo de Augusto, o que não é uma coincidência, mas a realização do plano de Deus; desde então, "um Deus único era proclamado a todos e, simultaneamente, uma única realeza, a dos romanos, estabelecia-se, florescente, entre nós [...], no preciso momento [...], uma paz profunda

Page 31: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

apoderava-se do universo" (Elogios de Constantino, XVI, 4). Daí em diante, havia um só Deus e um só imperador - monoteísmo e monarquia andam a par; a paz romana era o sinal objectivo desta realização providencial, mesmo que, durante vários séculos, os imperadores não tenham sido cristãos, mesmo que os cristãos tenham sido perseguidos. Deste modo, o Império Romano é totalmente assumido; no plano de Deus, ele tem por missão assegurar a unidade e a harmonia do género humano; a expansão do Império e a paz romana criam as condições que permitem que se realize o "Ide, ensinai todas 54

as nações em meu nome" (cf. Mt 28,19, citado por Eusébio em XVI, 8). Com esta meditação sobre a história, Eusébio permitia que os seus contemporâneos se considerassem plenamente romanos e cristãos, de maneira que "no nosso tempo", diz ele, esta vocação do Império se realizava. Quando, em Constantino, o imperador se torna cristão, pode ser verdadeiramente imagem de Deus na Terra; a sua realeza é uma imagem da do Logos, o Filho pelo qual o Pai, soberano universal e todo-poderoso, exerce a sua realeza na Terra: "Trazendo a imagem da realeza do alto, o rei amado de Deus segura a cana do leme e dirige, imitando o Todo-poderoso, tudo o que está sobre a Terra" (I, 6). "Bem-amado de Deus", o imperador cristão é dotado de virtudes carismáticas: razão, sabedoria, bondade, justiça, temperança, coragem e, acima de tudo, piedade - são as do soberano ideal da tradição filosófica -, que ele não considera como méritos pessoais, mas sim como graças recebidas do alto. Nisso, ele é o verdadeiramente "filósofo", porque "se conhece a si mesmo"; reconhecendo a sua posição subalterna e aspirando ao Reino do alto, invoca o Pai celeste pela sua salvação e a do seu povo, de quem está encarregado. Mas qual a missão de que Constantino terá sido concretamente investido na Igreja, se apenas foi baptizado no seu leito de morte? Estava tudo por inventar. Porventura, daí para o futuro, incumbirá ao imperador cristão ensinar a verdadeira doutrina, dar força de lei a uma fórmula de fé definida por um Concílio, fazer com que se execute as suas decisões, ordenar a construção de igrejas, tomar medidas contra cultos tradicionais? E qual é o seu lugar na Igreja, quando ele nem sequer for baptizado ou quando for considerado herege ou até impuser uma ortodoxia que não seja recebida por todos num contexto de querelas teológicas graves? Desde o reinado do filho de Constantino, Constâncio II (317-361), acende-se um conflito entre os bispos que defendem a fé estabelecida pelo Concílio de Niceia (325) contra as definições de concílios posteriores que o imperador impõe; então, eles são afastados das suas sés e enviados para o exílio. As reacções são muito vivas: Hilário, bispo de Poitiers, num panfleto particularmente violento, trata Constâncio como Anticristo! Portanto, o lugar do imperador na Igreja e a sua competência em matéria de definição da fé devem ser repensados. "O imperador está na Igreja e não acima da Igreja." Esta fórmula de Ambrósio, bispo de Milão (339/340-397), resume bem o pensamento dos bispos ao longo dos últimos decénios do século IV, em particular no Ocidente romano. Em 386, ele lembrava firmemente os "direitos do sacerdócio" ao jovem imperador Valentiniano II ainda não baptizado: em matéria de fé, "são os bispos que são juizes dos imperadores" e não o inverso, sobretudo se o imperador é suspeito de heresia ou cometeu uma falta grave. Em 390, recusou ao imperador Teodósio - culpado de, num acesso de cólera, ter ordenado o massacre dos habitantes de Tessalónica - o acesso à igreja antes de ter feito penitência pública; o imperador submeteu-se de 55

Page 32: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

tal maneira, que Ambrósio não deixou de sublinhar o seu exemplo edificante. De um imperador "bispo dos negócios de fora"*, como se teria chamado a si mesmo Constantino, a um imperador "o primeiro dos leigos", tal como é apresentado por Ambrósio, é claro que a concepção do imperador cristão evoluiu durante o século IV. Doravante, mais do que Constantino, é Teodósio quem constitui o modelo do soberano cristão ideal; ele tem essas qualidades: temor a Deus e piedade, clemência, autodomínio e humildade; por isso, ele merece a vitória e, para ele e para o seu povo, também a "felicidade eterna que Deus dispensa às almas realmente piedosas" (Agostinho, Cidade de Deus, V, 26). De futuro, a humildade aparece como a virtude essencial do imperador cristão. À semelhança de Cristo, que "se fez obediente até à morte", o imperador deve ser submisso a Deus e também à Igreja, em matéria de fé, de conduta e até na sua forma de exercer o poder. Mas, se o Império romano tinha podido ser pensado como querido por Deus e realizado em império cristão, o choque provocado pelos ataques dos bárbaros e a tomada de Roma pelos godos em 410 obrigaram os cristãos a superar a idéia da eternidade de Roma, em não ligar a sorte da Igreja à de um Estado terrestre seja ele qual for, mesmo cristão, em não confundir "as extremidades da terra" a evangelizar com as fronteiras do Império. "Que horror, o Universo desaba!", escreve Jerónimo (Carta 128), mas também, apelando à penitência: "São os nossos pecados que fazem a força dos Bárbaros" (Carta 60). O próprio Agostinho convida a que se releia a história de Roma e se reflicta na velhice do mundo, em vias de desaparecer, mas ao qual, pela sua encarnação, Cristo trouxe a salvação. Ultrapassando as representações da cidade ideal, mesmo dilatada nas dimensões do mundo, Agostinho anuncia então: "Dois amores construíram duas cidades. O amor-próprio até ao desprezo de Deus, a cidade terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si próprio, a cidade celeste" (Cidade de Deus, XIV, 28). Não se trata de opor uma cidade terrestre inteiramente má a uma cidade celeste fora do tempo e desencarnada: trata-se de dois amores. As duas cidades não são contraditórias: a cidade terrestre que pode fazer reinar a paz e a concórdia não é desprezável, mas é insuficiente e não conseguirá ser um fim; a cidade celeste, na sua viagem sobre a Terra, ultrapassa todas as formas de Estado e transcende-as: "atrai a si os cidadãos de todas as nações [...] de todos os pontos da Terra" para conduzi-los "para o Reino que não terá fim" (Cidade de Deus, XXII, 30). Françoise Thelamon

* Mais exactamente: "rerum exteriorum in eclesia Episcopus ac Inspector", "Bispo e Inspector das coisas externas na Igreja". (NT) 56

Roma chrístiana, Roma aeterna O lugar adquirido pela Igreja de Roma durante a Antiguidade tardia

A vitória de Constantino sobre o seu rival Maxêncio na ponte Mílvius, no dia 28 de Outubro de 312, não só lhe abriu as portas de Roma e do poder, como também assinalou o início da Antiguidade tardia. No decurso deste período de três séculos, as datas mais significativas para

Page 33: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

a história da Igreja romana são dois anos marcados por eventos sobrevindos fora da cidade, mas prenhes de futuro para ela: 330 e 429. A 11 de Maio de 330, o novo príncipe fundava Constantinopla; com isso, ligava-se a uma política de regionalização do Império que conheceu a sua concretização plena sob Teodósio. E isso conduziu a uma regionalização da cristandade. Disso é testemunha o terceiro cânone do Concílio de Constantinopla de 381: "Que o bispo de Constantinopla tenha o primado de honra depois do bispo de Roma, porque esta cidade é a nova Roma", a que faz eco de maneira mais firme o cânone vigésimo oitavo do Concílio de Calcedónia, em 451. Roma podia protestar, mas já tinha acabado o seu primado universal que afirmava deter não pelo seu estatuto político, mas devido às suas origens apostólicas. Daí em diante, o Oriente ficava-lhe largamente fechado, embora as Igrejas continuassem a voltar-se para ela quando entravam em conflito com o imperador. Por outro lado, na Primavera de 429, oitenta mil vândalos, homens, mulheres e crianças, passaram o estreito de Gibraltar e apoderaram-se da África romana, quase sem desferir um golpe. Conquistados pelo arianismo, os novos senhores quiseram impor a sua fé aos seus súbditos; seguiu-se um século de perseguição, umas vezes feroz, outras, branda. Mas, embora a Igreja local saísse vitoriosa da provação, tinha vivido um longo eclipse e nunca mais reencontrou o seu antigo brilho. Ora, os nomes dos seus bispos, a glória dos seus mártires e a recordação viva deixada por alguns pastores como Cipriano ou Agostinho faziam dela a única Igreja ocidental que podia rivalizar com Roma; o apagamento permite que a Igreja romana exerça no Ocidente o primado que tinha podido salvaguardar no Oriente. Porque, se 57

a Itália do Norte outrora resistiu, as jovens Igrejas das Gálias e das Hispânias viram de repente no bispo de Roma o patriarca indiscutível do Ocidente. Pelo menos na origem, o favor imperial contribuiu muito para esta aura reconhecida da Igreja romana porque, logo que entrou na Urbs, Constantino multiplicou as iniciativas a seu favor. Com a edificação da basílica Constantiniana (São João de Latrão), ele dota Roma de uma vasta e luxuosa catedral, mais adequada para reunir os fiéis à volta do seu bispo que as "casas de oração". Para Pedro, ergueu uma basílica não menos vasta no Vaticano; para Paulo, outra igreja - sem dúvida mais modesta - na Via de Óstia, enquanto, na Via Apia, a basílica Apostolorum (São Sebastião) celebrava conjuntamente estes dois "pilares" da Igreja local. Finalmente, para si próprio, manda construir na Via Labicana uma igreja funerária e um mausoléu em que, por fim, repousa Helena, sua mãe. E, ao longo do século IV, os príncipes prosseguiram no mesmo caminho, os constantínidas erguendo São Lourenço e Santa Inês, a dinastia teodosiana reconstruindo São Paulo Fora de Muros para fazer dela a "gémea" de São Pedro, que a sua dedicação saudava como uma "morada régia". No século V, os bispos de Roma tinham-se tornado suficientemente poderosos para edificar basílicas que pudessem rivalizar com estas fundações imperiais, como Santa Maria Maior, sobre o Esquilino, obra de Sisto III (420-440). E, embora os seus predecessores tivessem sido menos ambiciosos, também contribuíram para o surgimento na Urbs de uma topografia cristã, cujo tempo ou ambiente histórico foi magistralmente reconstituído por Charles Pietri. Na cidade, isso passou pela construção dos tituli, simultaneamente igrejas e centros de catequese, cuja rede se tornara tão densa, desde o século V, que não havia fiel que tivesse de percorrer mais de quinhentos metros para assistir ao ofício. O mesmo aconteceu fora das muralhas da cidade, com a multiplicação, nos cemitérios e nas catacumbas, de santuários mais ou menos importantes em onra dos mártires.

Page 34: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Nenhuma outra cidade podia concorrer com Roma no número e na qualidade dos seus edifícios; por isso, Roma oferecia um modelo de equipamentos eclesiásticos tanto mais notável quanto estava ao serviço da pastoral original, cujos traços principais foram sendo delineados desde o episcopado de Dâmaso (366-384). As inscrições em verso, numa caligrafia esplêndida, que este pontífice mandou gravar nas tumbas dos mártires não se limitam a elogiar os santos: pelo seu aparecimento regular em todos os cemitérios, celebram a agregação à comunidade romana destes heróis da fé cristã. "Cristianização de Roma e romanização do cristianismo" (Richard Krautheimer) são as duas faces de um mesmo processo que foi crescendo ao longo da Antiguidade tardia de que Dâmaso foi o primeiro cantor - e que cantor! Isso mesmo testemunha o elogio que ele tinha destinado à basílica Apostolorum: se ele concede, como que de passagem, que Pedro e Paulo tinham sido 58

"enviados pelo Oriente", é para acrescentar que, por causa do sangue que lá derramaram, "Roma pode reivindicá-los como seus cidadãos"; também os saúda por terem acabado como "novas estrelas", o que voltava a identificar estes príncipes da Roma christiana com os gémeos Castor e Pólux que velavam desde as origens, ou quase, pela salvação da Roma aeterna. É evidente que o facto de Pedro e Paulo terem sido assim convocados por esta reinterpretação cristã da ideologia cívica de Roma não é inocente, dado que os papas do século IV não tinham cessado de exaltar o enraízamento apostólico da sua Igreja e da figura de Pedro, por detrás da qual se desenhava pormenorizadamente o seu retrato de sucessores dos apóstolos. Este tema, tão abundantemente orquestrado nos seus escritos, também encontrou tradução visual nas pinturas das catacumbas e nos sarcófagos, muitos dos quais foram exportados, o que contribuiu significativamente para difundir no Ocidente a ideologia pontifícia. Testemunham-no as tinas de pedra do início do século IV, sobre as quais Pedro é representado, sob os traços de Moisés, como patriarca da "nova Israel", e sobretudo as cenas dos finais do século em que Cristo, no seu palácio celeste, entrega a sua Lei a Pedro na presença de Paulo, que o aclama. Diferentemente da primitiva arte cristã, que oferecia um acesso imediato às Escrituras, aqui mostra-se que a recepção da Escritura deve fazer-se na Igreja, especialmente por intermédio da Igreja de Roma. E os artistas traduziram esta concepção usando uma composição hierática e dando aos protagonistas da cena traços em que a iconografia cristã se tem inspirado até aos nossos dias. Além deste, há outro legado - e não menor - que a Igreja de Roma da Antiguidade tardia deixou à Igreja universal, que é próprio do Ocidente e em que se deve igualmente insistir: o legado da língua. Isto é válido também para a língua jurídica - o direito canónico e a sua jurisprudência - que o papado começou a elaborar a partir do século IV, inspirando-se intimamente no direito romano. Também nisso, Dâmaso foi pioneiro: a chancelaria pontifícia que valorizou e enriqueceu prefigura a cúria, enquanto a expressão decreuimus [decretamos] que usou nas suas relações com as Igrejas do Ocidente anuncia as decretais* da Idade Média. Aliás, a designação "Sé [sede] apostólica", que se difundiu durante o seu pontificado, visava sobretudo traduzir a idéia de que a Igreja romana era fonte de direito, e as imagens de Pedro-Moisés nos sarcófagos contemporâneos não diziam outra coisa: ao privilegiarem as cenas do Sinai - entrega da Lei e "milagre da nascente" - , é a figura de um legislador que elas exaltam.

Page 35: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

* Colecções de cartas de papas que, a partir do século xIII, constituem autoridade no corpus de direito canónico, com a mesma valia do Decreto de Graciano, composto em meados do século XII. 59

O contributo não foi menor no domínio da língua sagrada. Dâmaso - ainda ele - solicitara ao seu secretário Jerónimo que traduzisse para latim as escrituras e, em resposta, recebeu nada menos que a Vulgata. Ousou substituir o grego pelo latim nas celebrações, originando assim a elaboração da liturgia romana, cujo formulário é uma das criações mais originais: uma mistura harmoniosa de grandeza e de sobriedade, de simplicidade e de dignidade. Henri-Irénée Marrou, profundo e erudito conhecedor da cultura antiga, considerava-a "a derradeira, e não a menor, obra-prima da civilização clássica". Certamente foi necessário esperar pela fórmula carolíngia para que esta liturgia se difundisse no Ocidente, mas, desde então e até ao Vaticano II, ela foi património comum dos fiéis católicos romanos. Jean Guyon 60

IV

DEFINIR A FÉ Heresias e ortodoxia

A diversidade caracteriza o cristianismo nascente, segundo formas que as relações com o judaísmo vão tomando, os contactos com o mundo politeísta penetrado pelas missões junto dos "gentios" e a referência a Cristo nas comunidades primitivas. As Epístolas de Paulo e os Actos dos Apóstolos de Lucas testemunham a existência de conflitos; existem diferenças entre a teologia dos escritos joânicos e a dos Evangelhos sinópticos. Poder-se-iam multiplicar os exemplos, tendo igualmente em conta os escritos cristãos mais antigos, classificados posteriormente como "apócrifos". As múltiplas "Igrejas" constróem a sua identidade; os indivíduos, as doutrinas e os usos circulam, enquanto se exprimem aspirações à unidade. Enquanto as "Igrejas" vivem o presente como iminência dos últimos tempos, as divisões, quando provocam perturbações, aparecem como outros tantos sinais da última hora, o que basta para compreendê-las e dominá-las, vendo nelas a intervenção dos "falsos profetas" descrita pela tradição viva do apocalipse. Entretanto, como a Parúsia (o regresso de Cristo) tarda a manifestar-se e o cristianismo se organiza para assegurar a sua difusão num mundo que já não percebe unicamente como estrangeiro, é preciso enfrentar os seus conflitos internos, tal como sucede numa sociedade estabelecida com alguma permanência, e associá-los aos critérios de delimitação e de exclusão tirados da sua herança original dos modelos tomados do horizonte universal que a rodeia. A oposição entre "heresias" e "ortodoxia" é o resultado da afirmação das estruturas institucionais. No século IV, Eusébio de Cesareia impôs durante muito tempo a imagem da unidade original da Igreja, atacada por "heresias" surgidas mais tarde. Este quadro presidiu à historiografia, com algumas excepções, até ao século XX. Então, foi abalado por Walter Bauer, que se esforçou por mostrar que as correntes posteriormente classificadas como "heréticas" eram maioritárias no século II, enquanto as

Page 36: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

tendências retrospectivamente consideradas "ortodoxas" eram minoritárias. Embora a tese de Bauer seja contestável no pormenor, concorda com o progresso dos 61

conhecimentos tornado possível desde há alguns decénios pelas descobertas relativas ao gnosticismo, como a biblioteca copta de Nag Hammadi (no Egipto), tendo em conta sem preconceitos a literatura chamada "apócrifa", e por uma percepção aperfeiçoada das relações entre cristianismo e judaísmo nos primeiros séculos. Entretanto, uma das fraquezas da tese é ter conservado a dupla "heresia"/"ortodoxia", mantendo-se tributária de conceitos produzidos pela apologética. De facto, a noção de "heresia" precisa-se em meados do século II, numa descrição unificante de erro que, depois, serve de quadro e de instrumento de polémica, de que é testemunho, em primeiro lugar, a obra do apologista (e mártir) Justino. A adopção de um modelo comum de exclusão situa-se num momento em que a Igreja procura ser conhecida, definindo a sua autenticidade segundo as maneiras de pensar de quem ela quer convencer. O Tratado contra todas as heresias que se foram produzindo, de Justino, assim como algumas alusões na Apologia e no seu Diálogo com Trifão, bem como alguns traços em Ireneu de Lião, permitem reconstituir a sua heresiologia. Antes de Justino, o termo hairesis foi tomado dos gregos para designar tendências divergentes, num sentido desfavorável: assim é na Epístola de Paulo aos Gálatas (5,20) e na sua primeira Epístola aos Coríntios (11,19). Também nos Actos dos Apóstolos - onde é empregado geralmente segundo o sentido da corrente dos judeus helenizados, para evocar, de modo neutro, as correntes do judaísmo - aparece uma tonalidade negativa (em 24,14). Na segunda Epístola de Pedro (2,1-2), um dos escritos mais tardios do Novo Testamento, haireseis, no plural, é empregado no sentido de "doutrinas perniciosas" e hairetikos, na Epístola a Tito (3,10), atribuída a Paulo, é nitidamente pejorativo. Sentido pejorativo que se acentua ainda mais nas cartas de Inácio de Antioquia. O que é novo em Justino é, por um lado, o agravamento do sentido restritivo da palavra aplicada aos "falsos profetas" e à origem diabólica dos factores de perturbações; e, por outro, a adaptação polémica à heresiologia cristã de esquemas próprios da historiografia da época helenística e imperial, ao tratar das "escolas" filosóficas. Em resumo, pode dizer-se que Justino tira partido do sentido vago de "escola de pensamento" tomado pelo termo hairesis nos tratados Peri haireseôn (Sobre as heresias), a partir da segunda metade do século II a. C, para a distinguir da "escola" institucional, scholè, de que falam as obras intituladas Sucessões dos filósofos, um pouco anteriores, a propósito das quatro escolas de Atenas (Academia, Liceu, Jardim e Pórtico). A analogia assim estabelecida por Justino entre as "escolas" filosóficas e as "seitas" cristãs permite que não se chame "cristãos" a pessoas cujas convicções são atribuídas a seres humanos pervertidos e, graças ao tema judeu e cristão da falsa profecia, a uma origem diabólica; e também permite esboçar a tese que faz de Simão, o Mago, o pai de todas as heresias, tornando plausível uma genealogia das "seitas". Tinha nascido a heresiologia. 62

Ireneu sistematiza-a e endurece o discurso, expondo as "escolas" ao ridículo e introduzindo a suspeita relativamente à influência da filosofia; depois, Tertuliano fazia de Platão o despenseiro das "heresias". Desemboca-se no século III no método ilustrado pela Denúncia de todas as heresias do Pseudo-Hipólito, que identifica cada "seita" com um sistema pagão e,

Page 37: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

depois, no século IV, no género da suma heresiológica, rematado por Epifânio com o seu Panarion ou Caixa de remédios. Mesmo os Padres da Igreja mais favoráveis à filosofia, como Clemente de Alexandria e Orígenes, exploram o mais possível o poder acusador da qualificação de "heresia". Doravante, é uma censura grave nos debates teológicos e nos conflitos institucionais no seio da Igreja. Quando o Império se torna cristão, a legislação política ataca os suspeitos de heresia, como atestam o Código de Teodósio e, mais tarde, o Código de Justiniano. O instrumento heresiológico é elaborado por Justino e desenvolvido por Ireneu na época em que duas grandes crises atravessam o cristianismo, provocadas por Marcião e pelos "gnósticos": um rejeita a herança judaica e a lei bíblica, e constitui uma Igreja rival; os outros alegorizam a Escritura e reivindicam o acesso ao conhecimento puro, que os coloca acima dos "simples" e dos pastores que os governam, e também contestam radicalmente a autoridade das instituições, de que a Igreja está a dotar-se. Este instrumento é então completado pelo tema da "sucessão" autêntica, esboçado por Justino no contexto da controvérsia com o judaísmo e não sem reminiscências da maneira como o farisaísmo estabelecia em seu proveito a continuidade da transmissão da Tora desde Moisés. Em contrapartida, no tempo de Ireneu, a ruptura com o cristianismo é consumada, e os cristãos acusados de judaísmo são, também eles, banidos e qualificados como hereges. Mas a verdade é que a influência indirecta de representações oriundas do judaísmo sobre a teoria da sucessão autêntica remonta aos Apóstolos e a Cristo. Considera-se que esta continuidade institucional e normativa contém a tradição da verdade, única e pura, oposta à heresia e às dissensões dos "hereges". É também com Ireneu que se afirma a constituição de um cânone do Novo Testamento, outra peça-chave da ortodoxia em que a Igreja, na sua conquista de unidade, assenta a sua autoridade. O conjunto das normas que constituem a "ortodoxia" é completado no século IV, quando os defensores do Concílio de Niceia, nos documentos oficiais, opõem a orthodoxia à "heresia" ariana. E, doravante, o adjectivo "ortodoxo" qualifica a fé da Igreja, por oposição àquilo que é denunciado como heresia: trata-se de julgamentos em matéria de doutrina, dos escritos, dos bispos e de qualquer adepto da regra de fé precisada e confirmada pelos concílios ecuménicos. Alain le Boulluec 63

Concorrentes do cristianismo Gnose e maniqueísmo

Privilegiando, tanto uma como outra, um conhecimento (gnosis) que é iluminação directa do homem, a gnose e o maniqueísmo concorreram poderosamente com o cristianismo nos primeiros séculos da nossa era. A gnose manifestou-se no Império Romano entre os séculos II e IV, ilustrada pelos mestres cuja memória foi preservada pela polémica dos Padres da Igreja. Oriundas do Egipto, da Síria ou da Ásia Menor, cuja herança cultural se enraíza tanto no paganismo como na tradição judaica e cristã, construíram sistemas de pensamento que, malgrado a sua diversidade, concordam num ponto fundamental: o mundo é a criação defeituosa de um deus inferior (demiurgo) em que o homem está aprisionado. No entanto, portador de uma réstia de luz proveniente do Inconhecível, o homem pode remontar às suas verdadeiras origens, se conseguir revivificar esta luz interior. Ser "gnóstico" (gnostikos, "aquele que conhece") é desfazer-se dos laços do corpo, tomando consciência da negatividade do

Page 38: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

universo e de si próprio no universo. Ao conhecer, superam-se as leis perversas da história e do tempo, feitas pelo criador, para reintegrar o "pleroma" (plenitude). Vários sistemas gnósticos identificaram o deus criador com o Deus da Bíblia: o livro do Génesis é a história mítica de um Deus ciumento que deu ao homem um corpo para o servir. Cristo é um enviado celeste, revelador dos mistérios do começo e do fim. Por uma tradição oculta, esta instrução, confiada a alguns discípulos escolhidos, como Tomé, Filipe, Tiago e Maria Madalena, foi posta em forma escrita por autores anónimos entre os séculos II e III. Esta releitura, que perturbava os fundamentos do cristianismo, suscitou a reacção dos Padres da Igreja, que refutaram a gnose, conscientes das suas perigosas implicações. Adversário ameaçador da Igreja em vias de estruturação, preconizando uma salvação pela via única do conhecimento individual e não tendo nenhuma necessidade das hierarquias eclesiásticas, a gnose foi taxada como heresia, os seus adeptos perseguidos e os seus escritos destruídos - política de repressão seguida pelo Estado romano tornado cristão. 64

Em primeiro lugar, a gnose foi exclusivamente conhecida pelos seus opositores: Ireneu de Lião (Denúncia e Refutação da Falsa Gnose, entre 180 e 185), o Pseudo-Hipólito de Roma (Refutação de Todas as Heresias, início do século III) e Epifânio de Salamina (Panarion, "Caixa de Remédios", de finais do século IV), mas também Tertuliano de Cartago, Clemente de Alexandria e Orígenes. Em meio pagão, Plotino, cuja escola romana era freqüentada por gnósticos, e o seu aluno Porfírio de Tiro, levantaram-se, no século III, contra uma doutrina que associava mito e filosofia. Embora polémica, a documentação da controvérsia é útil porque nos informa sobre os nomes e as teorias de um certo número de mestres: Valentim e os seus alunos Ptolomeu e Heracléon, Carpócrates, Isidoro e Basílides, todos naturais do Egipto, os sírios Satornilo e Menandro, e o asiata Marcos, o Mago. A partir de Alexandria, de Antioquia e de Roma, as doutrinas gnósticas espalharam-se por todo o Império. Desde o fim do século XVIII, encontraram-se textos compostos pelos próprios gnósticos: escritos em copta, língua do Egipto na época cristã, são traduções de originais gregos perdidos, dos séculos II e III. Estes textos conservaram-se em códices (o códex é o antepassado do livro) reunidos e criados por volta de 350: o códex Askew, o códex Bruce e o códex de Berlim. A maior descoberta arqueológica foi a de Nag Hammadi (Alto Egipto) onde existe toda uma biblioteca gnóstica: treze códices em papiro, reunidos em meados do século IV, com cinqüenta e três tratados, que tinham sido metidos numa jarra, escondida numa gruta sobranceira ao Nilo. Evangelhos, apocalipses e homilias, e também exposições de filosofia e de mitologia constituem a rica paleta deste corpus. São textos de teor esotérico, destinados à instrução de quem se compromete numa via de conhecimento. Em 2006, acabava-se o restauro de um novo códex; descoberto em 1970 no Egipto Médio, o códex Tchacos contém quatro tratados gnósticos, o mais surpreendente dos quais é, sem dúvida, o Evangelho de Judas. O estudo concomitante destas fontes permite reconstituir uma doutrina, fascinante e complexa, que tem o seu lugar entre as grandes construções da história do pensamento. A tendência dualista expressa na gnose pela separação entre um deus perfeito e um deus criador torna-se mais nítida no sistema de pensamento elaborado por Mani (216-276). Nascido na Babilónia do Norte, em Mardinou, Mani passou a sua infância na comunidade baptista do Dastumisan, praticando ascetismo e purificações rituais. Aos doze anos, em 228, segundo diversas fontes, Mani teve uma revelação do seu gémeo celeste, descido da terra da luz. Depois de uma segunda visita do

Page 39: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

anjo, doze anos depois, Mani deixou a seita para difundir a mensagem divina recebida: a verdadeira pureza decorre da separação, tanto no homem como no universo, entre o que pertence à luz e o que pertence à treva. A partir da capital sassânida, Selêucia-Ctesifonte, Mani empreende viagens missionárias durante trinta anos. Com o apoio de Shabuhr I, funda comunidades em todo o Irão. No Império 65

Romano, depois da Mesopotâmia e do Egipto (por volta de 240), a sua doutrina passou por todas as províncias. Durante uma estada em Ctesifonte (262-263), preparou os estatutos da sua Igreja. A morte de Shabuhr I (272-273) põe termo à expansão extraordinária da religião de Mani, e a ascensão de Vahram I, influenciada pelos sacerdotes masdeístas, priva-o da protecção régia. Chamado pelo novo rei a Beth Lapat (Susiana), esmagado por falsas acusações e lançado na prisão, Mani vai-se extinguindo (276), condenado ao suplício das correntes: comemora-se todos os anos a sua paixão na festa do Bêma. A morte de Mani e, depois, a do seu sucessor Sis (284) marcaram o início da perseguição. Segundo uma fórmula bem testemunhada, a doutrina de Mani é a dos "dois princípios e dos três tempos". Os dois princípios são bem e mal, luz e treva, coeternos, opostos um ao outro, cujas relações se articulam em três tempos: o tempo da separação; o tempo médio, onde a luz é agredida pela treva e se mistura com ela; o tempo final, em que são de novo separados. A cosmologia (génese do mundo), a antropogonia (génese do homem) e a soteriologia (doutrina da salvação mediante um redentor) inserem-se no tempo médio, durante o qual a luz aprisionada é progressivamente libertada através de um dispositivo cósmico de filtragem. O combate mítico entre o bem e o mal interioriza-se em cada maniqueu, que separa a luz da treva por meio de um comportamento ascético e um regime alimentar vegetariano, rico em partículas luminosas. Mito e doutrina entrecruzam-se nas nove obras compostas por Mani, de que nos restam apenas alguns fragmentos: Shabuhragan, Evangelho vivo, Tesouro, Mistérios, Lendas, Imagem, Gigantes, Cartas, Salmos e Orações - todos em siríaco, excepto Shabuhragan. A sua doutrina está repleta de elementos tomados de outras religiões (budismo, zoroastrismo e cristianismo), não só para se adaptar a todos os contextos culturais, mas também porque Mani se considerava o último elo na cadeia das mensagens divinas. Ao pôr por escrito a sua revelação, Mani distingue-se dos outros fundadores de religiões - Buda, Zoroastro, Jesus; aplicava a si próprio a metáfora do "selo da profecia", significando que era nele que se realizava a revelação. A extraordinária difusão do maniqueísmo apoia-se na organização sem falhas da sua Igreja, estruturada em duas classes: leigos e religiosos; estes são apóstolos itinerantes, adstritos a um código moral muito exigente. O pensamento de Mani revisita, segundo uma grelha de leitura dualista, diversos elementos da tradição cristã. Embora a recusa da Bíblia judaica seja muito clara, honra-se a figura de Jesus, um Jesus celeste de quem Mani se proclama apóstolo e paracelso (o consolador - o termo designa o Espírito Santo). A Igreja enfrenta o maniqueísmo, que acusa de heresia devido à sua distinção entre um deus do bem e um deus do mal, criador (o Deus da Bíblia), da rejeição das Escrituras Veterotestamentárias e da releitura da figura de Jesus. A partir de 280 (carta de Teonas de Alexandria), multiplicam-se os avisos contra a propaganda maniqueia, até à redacção das 66

Page 40: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

refutações: a primeiríssima, os Actos de Arquelau (por volta de 345), descreve Mani como um persa bárbaro que se infiltrou no mundo cristão. Esta imagem, tomada da heresiologia - de Cirilo de Jerusalém (348) a Epifânio de Salamina (376), de Filastro (385) a Fócio (870) -, contrasta com aquela transmitida pela tradição persa e árabe, na qual Mani goza de grande prestígio. O Estado romano reage contra o maniqueísmo: o Édito de Diocleciano (297) acusa os seus seguidores de espionagem por conta do rei persa, condenando-os a castigos extremos. Agostinho, maniqueu durante dez anos, testemunha a sua penetração na África proconsular. O maniqueísmo tem sido explicado, desde o início do século XX, pela descoberta de fontes primárias. Dos códices coptas de Medinet Madi (Fayoum, século IV) ao pequeno códex grego de Colónia (século V) e às escavações arqueológicas do oásis de Dahlah (antiga Kellis), encetadas em 1982, tem aparecido uma rica documentação sobre os maniqueus do Egipto. Banido no Ocidente, o maniqueísmo expandiu-se no Oriente, com sortes diferentes, e chegou, seguindo a Rota da Seda, até à Ásia Central e à China, conforme ilustrado por abundantes fontes literárias e iconográficas. Se, em 1292, Marco Pólo encontrou maniqueus em Zaitun, há vestígios do século XVI que atestam a permanência desta religião na China do Sul. Madeleine Scopello 67

A elaboração de uma ortodoxia nos séculos IV e V

Estes dois séculos são um tempo de elaboração doutrinal intensa, marcada inicialmente pelas controvérsias trinitárias e, depois, no século V, pela querela cristológica; tanto as primeiras como a segunda punham em causa a divindade do Filho e, simultaneamente, a economia da salvação que ela implica. As soluções finalmente consideradas fundam e fundamentam, ainda hoje, a fé da maioria dos cristãos, embora muitos deles confessem não acreditar que Jesus fosse realmente Filho de Deus e se mostrem cépticos acerca da Ressurreição. Contudo, trata-se do ponto fundamental de que depende a identidade dos cristãos, pois, no seio do monoteísmo herdado dos judeus, a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus, ligada à questão da salvação, obriga-os a formular as relações que Ele mantém com Deus Pai. Cristo é Deus como o Pai? Ou um ser divino distinto dele? Ou ainda uma criatura de Deus, nem que seja a primeira? Para assegurar a salvação da humanidade, o Filho deve ser plenamente Deus e plenamente homem. Nos séculos precedentes já tinham sido encaradas diversas soluções: recorrendo a conceitos da filosofia grega como ousia ("substância" ou "essência"), hypostasis ("hipóstase", existência real), prosopon ("pessoa") ou physis ("natureza"), oscilavam entre dois escolhos: o modalismo (representado por Sabélio), que insistia na unidade da substância divina (ousia) em detrimento do reconhecimento das três pessoas distintas; e o diteismo, que concede ao Filho uma substância divina própria e igual à do Pai. A questão volta a ser abordada no início do século IV por Ario, padre de Alexandria que, em nome do único Deus não-gerado, considera o Filho, gerado pelo Pai, uma criatura, e define uma teologia trinitária segundo a qual o Filho se subordina ao Pai, sendo-lhe inferior. Mas Constantino, imperador único desde 324, desejoso de estabelecer a unidade da Igreja depois da do Império, reúne um Concílio geral em Niceia em 325 para definir uma data para a Páscoa e uma ortodoxia comuns a todos os cristãos do

Page 41: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Império. De facto, doravante, a Igreja é reconhecida como uma instituição oficial no conjunto do Império. Contra o arianismo, o homousios, que 68

afirma que o Filho é "da mesma substância" (ou essência) que o Pai, é adoptado por todas as Igrejas e as proposições de Ario são anatematizadas, sendo ele próprio exilado. Entretanto, esta fórmula suscita grandes reservas entre os bispos do Oriente devido a uma interpretação sabeliana sempre possível. Também as discussões originaram, durante quase quarenta anos, uma sucessão de sínodos em que os arianizantes, apoiados pelo imperador Constâncio (337-361), voltaram a ganhar terreno. Desenvolveu-se uma teologia antinicena da semelhança, que oscilava entre o semelhante segundo a substância (homoios kafousiari) e o simplesmente semelhante (homoios), destinada a afastar os extremos: os sabelianos para quem o Filho não é mais que uma modalidade do Pai e os arianos radicais que defendiam a diferença de substância Qieterousios) do Filho. Em 359, surgiu uma solução intermédia, o homeísmo. Esta foi adoptada em Janeiro de 360 como fé oficial por Constâncio, que via nela o meio de impor a unidade a todo o Império. Os opositores foram exilados. Esta fé foi partilhada fora do Império por Úlfila, evangelizador dos godos. A morte de Constâncio, em 361, voltou a pôr em causa este equilíbrio: face ao perigo do arianismo radical, as posições nicenas são reafirmadas em Alexandria por Atanásio (Concílio "dos confessores" de 362) e reconhecidas em Antioquia pelo antigo homeiano Melécio (sínodo de 363). Mas Valente (364-378) retoma também a política homeiana de Constâncio. A sua morte marca o início da viragem nicena fortemente apoiada por Teodósio (379-395). O seu édito de 28 de Fevereiro de 380 define a ortodoxia a partir da fé dos bispos de Roma e de Alexandria que, a seus olhos, eram o símbolo da unidade do Império. Convoca um sínodo de todo o Oriente em Constantinopla, em Maio de 381, enquanto, no Ocidente, o Concílio de Aquileia condena os últimos homeianos, exilados por Graciano (375-383). A lei de Niceia é reafirmada por cento e cinqüenta bispos, e explicitada em dois pontos, precisando que "o reino de Cristo não terá fim" e afirmando a divindade do Espírito Santo, "adorado e glorificado com o Pai e o Filho". O édito de 30 de Julho de 381 só reconhece como "católicos" os que professam esta fé, sendo os outros rejeitados como hereges. A reflexão cristológica prossegue à volta da questão da coexistência em Jesus do humano e do divino. Ainda a esse respeito, as posições extremas serão afastadas depois de violentas discussões, com proveito para um compromisso entre as duas principais tendências representadas pela Igreja de Alexandria e pela de Antioquia. A primeira, monofisita, defendia uma cristologia de natureza única (physis) do Verbo encarnado; a segunda, diofisita, insistia nas duas naturezas (physeis) de Cristo, reconhecendo ao mesmo tempo a sua unidade na pessoa real. Ora, a confusão entre os conceitos de natureza e de pessoa contribuía para fazer ferver o debate: os monofisitas acusavam os seus adversários de dividirem Cristo e de ensinarem a existência de dois Filhos, a que os diofisitas respondiam que 69

os monofisitas negavam a humanidade de Cristo e punham em causa a economia da salvação. De forma nenhuma se poderá admitir uma distinção demasiado vincada em Cristo entre o Verbo divino e o homem Jesus, como fazia Nestório de Constantinopla, segundo o qual desaparecia a união real em proveito de uma simples união moral que era um atentado à

Page 42: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

divindade de Jesus; também de modo nenhum se podia aceitar a mistura das duas naturezas, divina e humana, em que o humano desaparecia em proveito da única divindade - outra posição extrema defendida pelo arquimandrita Eutiques que seduz Teodósio II (408-450). Este reúne o concílio em Éfeso em 431, para resolver a crise suscitada pela posição nestoriana. O partido de Cirilo de Alexandria (412-444), maioritário, obtém a condenação e a deposição de Nestório, aprovadas pelos legados romanos e, depois, pelo imperador, que o exilou, mas nenhuma decisão doutrinal foi tomada a não ser o reconhecimento do Símbolo [ou Credo] de Niceia. Depois do Concílio, em 433, fracassou uma tentativa de aproximação entre Alexandria e Antioquia. Eutiques, primeiro condenado por Flávio de Constantinopla de acordo com o bispo de Roma, é apoiado por Dióscoro (444-454), novo bispo de Alexandria, que é designado por Teodósio II para presidir a um novo concílio de Éfeso em 449, no qual Eutiques é reabilitado contra o parecer dos legados romanos, enquanto os antioquenos são violentamente afastados. As decisões deste Concílio, reafirmando o monofisismo, foram confirmadas por Leão de Roma, autor de um Tomo dirigido a Flaviano e nitidamente diofisita, que denunciava a "pilhagem" ou "exacção" de Éfeso. Com a morte de Teodósio II, a relação das forças inverte-se. O novo imperador, Marciano (450-457), hostil a Eutiques e a Dióscoro, convoca um novo concilio em 451, em Calcedónia. Reunidos em Outubro, trezentos e cinqüenta bispos, quase todos orientais, anulam as decisões de Éfeso II (449) e, após longas discussões, homologam uma cristologia diofisita, em parte retomada do Tomo de Leão, proclamando a união das duas naturezas perfeitas na pessoa de Cristo encarnado: "Um único e mesmo Filho [...], gerado para nós e para nossa salvação da Virgem Maria, mãe de Deus [Têotokos] [...], reconhecido em duas naturezas [•••], uma só pessoa e uma única hipóstase." Esta solução doutrinal de conciliação foi considerada um esclarecimento do símbolo de Niceia-Constantinopla e não uma nova definição de fé. Mas, afinal, a união entre calcedónios e monofisitas revelou-se impossível, sendo que ambas as facções logo se organizaram em Igrejas separadas, ainda hoje activas (no Egipto). Niceia, Constantinopla, Éfeso (431) e Calcedónia são considerados, na história da Igreja, os quatro concílios "ecuménicos" que fundaram a doutrina cristã. Annick Martin 70

EDIFICAR ESTRUTURAS CRISTÃS Estruturar as igrejas

Numa homilia sobre o capítulo VI dos Actos dos Apóstolos, João Crisóstomo (falecido em 407) interroga-se sobre a função realmente exercida pelos "sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria" que os Doze instituem para "o serviço das mesas" na primeira comunidade de discípulos de Jesus de Nazaré estabelecida em Jerusalém: "Mas que dignidade lhes será conferida? Que ordenação receberam? É o que é preciso saber. Seria a dos diáconos? E, no entanto, não será o caso nas Igrejas, mas então é aos presbíteros que pertence administrar? Ainda não havia bispos, mas somente os apóstolos. Por isso, creio que se pode concluir clara e evidentemente que nem o nome "diácono" nem o de "presbítero" se lhes aplicavam; contudo, foi com este objectivo que foram ordenados." O embaraço do pregador é patente, a expressão hesitante: a leitura rápida dos Actos não lhe permite identificar com evidência a idade apostólica, os cargos e funções que conhece na sua Igreja na viragem do

Page 43: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

século IV: bispo, diácono e presbítero. O historiador contemporâneo não está mais bem armado que Crisóstomo para abordar os primeiros tempos da estruturação ministerial das comunidades cristãs. Das alusões e incidentes contidos nas cartas unanimemente atribuídas a Paulo - os primeiros escritos cristãos -, resulta que, em Jerusalém, os Doze, quer dizer, os discípulos directamente escolhidos por Jesus (excepto Matias, que substituiu Judas) e enviados por Ele em missão (daí o seu nome de apóstolos) constituem, com Tiago, o "irmão do Senhor", os pilares do grupo que se afirma de discípulos do Nazareno. As comunidades que Paulo cria ou encontra ao longo das suas viagens são colocadas sob a direcção de colégios de responsáveis chamados episcopoi ("vigilantes") ou diakonoi ("servidores"), sem que seja possível precisar bem os cambiantes eventualmente 71

colados às denominações diferentes. O mesmo acontece com o termo presbyteroi que se encontra nos Actos dos Apóstolos. A dificuldade é tanto maior quanto os mesmos vocábulos se conservaram ao longo do tempo para designar as principais funções em uso nas comunidades cristãs da "Grande Igreja", mas com uma acepção que mudou. É por isso que a tradição erudita fala, em relação à época primitiva, de "epíscopos", de "presbíteros", mas também, talvez com alguma incoerência, de "diáconos", pressupondo implicitamente que esta última função permaneceu substancialmente a mesma ao longo do tempo. Portanto, toda a questão está em determinar qual o momento e segundo que processos os termos presbyteroi e episcopoi adquiriram o seu significado moderno, o que torna legítimo traduzi-los respectivamente por "presbíteros" e por "bispos". Durante a primeira metade do século II, talvez por volta de 110-120, a correspondência de Inácio de Antioquia, por mais discutidos que sejam a sua composição exacta e o seu texto, testemunha a favor do surgimento de uma evolução decisiva da organização eclesiástica. De facto, nas cartas que, na viagem que faz para Roma, onde irá sofrer o martírio, Inácio envia a diversas Igrejas da Ásia Menor, não cessa de exortar os cristãos à unidade e de recomendar a todos a submissão ao episcopos que "ocupa o lugar do próprio Deus" (Epístola aos Magnésios, 6,1): aqui é uma direcção colegial e não um bispo único - os eruditos utilizam a palavra "monoepiscopado" - que preside a uma comunidade hierarquizada dotada de "presbíteros" e de "diáconos". O tom particularmente polémico desta correspondência permite que se pense que essa transformação suscitou debate. Revolução ou mutação gradual? As fontes não permitem responder, embora as epístolas pastorais, cuja autenticidade paulina é geralmente negada e, conseqüentemente, cuja datação é muito disputada, atestem uma tendência para a precisão crescente das funções e obrigações dos servidores das igrejas, o estabelecimento de ministros permanentes e uma especialização progressiva das tarefas. Certos especialistas chegam a identificar nestes textos os traços de um monoepiscopado. Seja como for, a passagem para o episcopado único aconteceu aos poucos, ao longo do século II, segundo uma cronologia variável, em todas as comunidades da "Grande Igreja": é deste modo que, na viragem do século II, o polemista anticristão Celso (cf. Orígenes, Contra Celso, V, 59) designa a rede maioritária de comunidades cristãs em comunhão umas com as outras, por oposição aos pequenos grupos dissidentes. Esta nova constituição permitiu que se desse uma visibilidade maior à apostolicidade reclamada pelas comunidades da "Grande Igreja" (aliás, tanto quanto os seus adversários). De facto, desde Paulo, e de maneira cada vez mais acentuada ao longo dos decénios, a investidura apostólica, directa ou indirecta, aparece como o requisito sine qua non de toda a autoridade nas Igrejas. Na viragem do século

Page 44: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

I, a Carta da Igreja de Roma à Igreja de Corinto (42,1-4 e 44,2) estabelece todas as regras deste tema: "Para nós, os apóstolos receberam de Senhor Jesus Cristo a Boa-Nova; Jesus, o Cristo, 72

foi enviado por Deus. Portanto, Cristo vem de Deus e os apóstolos vêm de Cristo; as duas coisas saíram em boa ordem da vontade de Deus. Por isso, receberam instruções e, cheios de certeza pela ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, confirmados pela Palavra de Deus, com a plena certeza do Espírito Santo, partiram a anunciar a Boa-Nova de que o reino de Deus estava para vir. [...] Tendo recebido um conhecimento perfeito do futuro, eles estabeleceram ["epíscopos" e "diáconos"] e, depois, puseram como regra que, depois da morte destes últimos, outros homens experimentados lhes sucedessem no seu ofício." Os bispos da "Grande Igreja" reivindicam para si a qualidade de depositários desta tradição confiada aos apóstolos e aos seus sucessores, e de intérpretes legítimos e exclusivos face a todos os dissidentes; desde o terceiro quartel do século II, Corinto e Roma estabeleceram "sucessões da verdade", opostas às "sucessões do erro" dos mestres gnósticos. É assim que nascem listas episcopais que projectam de maneira anacrónica, no passado mais longínquo das comunidades, a organização monoepiscopal. Na passagem do século II para o III, Tertuliano pode interpelar os seus rivais: "Mostrai a origem das vossas Igrejas; desenrolai a série dos vossos bispos que se sucedem desde a origem, de tal maneira que o primeiro bispo tenha tido como garante e predecessor um dos apóstolos ou um dos homens apostólicos que, desde o início, estiveram em comunhão com os apóstolos. Porque é assim que as Igrejas apostólicas apresentam os seus fastos" (Das Prescrições dos Hereges, 36,1). Deste ponto de vista, a ausência de uma estruturação episcopal dos grupos dissidentes podia constituir uma fraqueza nas controvérsias entre cristãos. No decurso do século III, a Didascália dos Apóstolos, um regulamento canónico-litúrgico sírio colocado sob um padroado apostólico ou a correspondência de Cipriano, o bispo de Cartago, ou, ainda, as críticas com que Orígenes semeia as suas obras testemunham a favor do novo equilíbrio ministerial das comunidades cristãs. Como chefe de uma Igreja, eleito pelo conjunto da comunidade e sagrado por outros bispos vindos como vizinhos para assistir à eleição, o bispo é o seu liturgo por excelência: é ele quem celebra principalmente a eucaristia, ajudado pelos diáconos para levar as oferendas e distribuir o pão e o vinho consagrados. É ele quem acolhe na igreja, administra geralmente o baptismo e, em casos extremos, excomunga; é ele quem, depois de avisar a comunidade, confia os cargos e funções, e ordena um ou outro para tal ou tal ofício. É ele quem pode e deve ser chamado a arbitrar os conflitos entre membros da comunidade e a indicar a regra de fé, aquando de controvérsias doutrinais. É ele quem gere, com o concurso dos diáconos, a caixa e os bens da comunidade, embora apareça exteriormente, e em particular aos olhos das autoridades romanas, como o verdadeiro presidente da associação dos cristãos. Sob as suas ordens, encontram-se directamente colocados os clérigos ("aqueles a quem foi atribuída uma parte"), sempre homens na "Grande 73

Igreja" (exceptuando o caso das diaconisas) que as fontes distinguem cada vez mais, desde entrado o século II, leigos ("aqueles que pertencem ao povo"), embora não se deva extremar demasiado esta distinção, pois as fronteiras inferiores do clero continuam incertas durante

Page 45: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

muito tempo, tanto mais que um cursus clerical só progressivamente se foi consolidando e os cargos subalternos (diaconisa, subdiácono, acólito, exorcista, leitor, ostiário, chantre e coveiro) variam de igreja para igreja. Assim, no início dos anos 250, a Igreja de Roma conta com "46 presbíteros, 7 diáconos, 7 subdiáconos, 42 acólitos, 52 exorcistas, leitores e ostiários" (Cornélio, bispo de Roma, citado por Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, VI, 43, 11). Os diáconos estão ligados muito directamente à pessoa do bispo e ajudam-no em todas as suas actividades. Os presbíteros parecem ter sobretudo um papel de suplência do bispo (para a eucaristia, para o baptismo ou para a pregação) e aparecem freqüentemente nas fontes de maneira mais discreta que os diáconos. Não são raras as rivalidades destes colégios de clérigos, em que tanto uns como outros podem ter acesso ao episcopado. A revolução constantiniana acelera o processo de institucionalização das igrejas e a concessão de subsídios aos clérigos arrasta consigo uma definição mais precisa do clero, das aptidões requeridas dos seus membros e das suas carreiras, enquanto os progressos da difusão do cristianismo terminam num alargamento das competências dos presbíteros. Michel-Yves Perrin 74

Iniciação cristã, culto e liturgia

Na petição que o filósofo Justino de Naplusa, que tem escola em Roma e é discípulo de Cristo, dirige ao imperador Antonino, o Pio, e aos seus filhos adoptivos Marco Aurélio e Lucius Verus, pouco depois de meados do século II, para defender e ilustrar os seus irmãos na fé, evoca dois ritos dos cristãos: "Quanto a nós, depois de termos lavado aquele que crê e de ele se ter juntado a nós, conduzimo-lo ao lugar onde estão reunidos aqueles a quem chamamos irmãos. Com fervor, fazemos orações comuns por todos, pelo iluminado, por todos os outros, em qualquer lugar que estejam, para que sejam julgados dignos, depois de terem aprendido a verdade, de serem encontrados a praticar a virtude e a observar os mandamentos, e de, assim, serem salvos para uma salvação eterna. Quando as orações terminam, damos uns aos outros o beijo da paz. Depois, leva-se pão e uma taça de água e de vinho temperado ao que preside à assembleia dos irmãos. Ele pega neles e louva e glorifica o Pai do universo pelo nome do Filho e do Espírito Santo; depois, faz uma longa acção de graças [eucharistia] por todos os bens que recebemos dele. Quando ele termina as orações e a acção de graças, todo o povo presente exclama: "Ámen." "Ámen" é uma palavra hebraica que significa: "Assim seja". Quando aquele que preside fez a acção de graças e todo o povo fez a aclamação, aqueles a quem chamamos diáconos distribuem a cada um dos presentes o pão, o vinho e a água que receberam a acção de graças, e levam-nos aos ausentes." (Primeira Apologia, 65). O primeiro destes ritos, acabado de descrever, é o baptismo (palavra derivada do verbo grego que significa "mergulhar", "temperar" [com água]). Tem origem nas práticas de imersão ritual muito difundidas no judaísmo palestiniano do tempo de Jesus de Nazaré. Concebido como purificador, este tipo de banho podia ter um significado escatológico, como no caso do movimento de João Baptista, e ser conferido uma única vez em sinal de conversão (metanoia); Jesus recebeu-o (Mc 1,9-11) e Ele próprio também 75

Page 46: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

baptizou (Jo 3,22) e também os seus discípulos, imitando-o. Este gesto de penitência, realizado em sinal da "remissão dos pecados", ganha um novo significado já que este acto é freqüentemente apresentado nos Actos dos Apóstolos como efectuado "em nome de Jesus": trata-se do sinal de adesão plena e inteira à fé em Cristo, da integração na comunidade cristã que Paulo de Tarso interpreta como participação na morte e ressurreição de Cristo (Rom 6,3-5). Desde os primeiros textos cristãos, foram-lhe dadas várias designações que conheceram uma larga difusão: "selo do Espírito" (2 Cor 1,22; Ef 1,13; 4,30), "banho do novo nascimento e da regeneração" (Tt 3,5), "circuncisão não feita por mão humana" (Cl 2,11); e está associado à imagem de uma "iluminação" (Ef 5,8-14; Heb 6,4; etc). A partir da segunda metade do século II, aparecem cada vez mais testemunhos de uma preparação para o baptismo - o catecumenato (de uma palavra grega que significa "instrução oral") - que visa, por um lado, experimentar a seriedade do pedido de adesão do futuro baptizado e verificar a conversão do seu modo de vida às prescrições então reconhecidas como definidoras do ser cristão e, por outro, assegurar uma formação doutrinal e moral. As Catequeses baptismais de Cirilo de Jerusalém, em meados do século IV, ou de Teodoro de Mopsuéstia, alguns decénios mais tarde, para apresentar somente dois exemplos, permitem conhecer as diversas etapas do catecumenato - a sua ordem e a sua cronologia podem variar segundo as igrejas: inscrição na lista dos catecúmenos, exorcismos (freqüentemente repetidos), catequeses, jejuns e vigílias, penitências, traditio [entrega] (transmissão oral) e redditio [restituição, repetição] (recitação pelo catecúmeno) do símbolo de fé, traditio do Pai-Nosso. O baptismo, administrado preferencialmente durante a celebração da vigília pascal, comporta diversos ritos: depois de ter renunciado solenemente a Satanás e às suas obras - o lugar deste acto é diferente no Ocidente -, o catecúmeno, que já foi ungido uma ou mais vezes com óleos, entra nu na tina [ou piscina] baptismal cheia de água previamente benzida, antes de o bispo em pessoa - salvo delegação num presbítero - o baptizar, por imersão ou infusão, "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Em geral, o catecúmeno recebe outra unção, agora perfumada, interpretada como símbolo do Espírito Santo, tornando-se, então, neófito (em grego, uma "nova planta"), novo baptizado, vestindo-se de branco durante uma semana; desde então, pode aceder plenamente ao segundo rito evocado por Justino: a eucaristia. A génese e a história deste ritual durante os primeiros séculos são particularmente difíceis de analisar sendo, por isso mesmo, controversas, porque as fontes - exceptuando Justino - são muito raras e só contêm alusões. De facto, a partir da viragem do século II, vai-se estabelecendo progressivamente, nas comunidades da "Grande Igreja", uma grande reticência em evocar diante de não-baptizados os ritos do baptismo e da eucaristia com maior reserva sobre o segundo que sobre o primeiro. Esta 76

atitude - que o polemista protestante Jean Daillé (1594-1670) denominou "disciplina do arcano" - faz com que estes rituais assumam cada vez mais um carácter "mistérico", precisando de uma "iniciação". Com efeito, a partir da época helenística, e na esteira de precedentes platónicos, o uso metafórico da terminologia dos cultos politeístas de mistérios conheceu uma difusão maciça. Somente um "iniciado" - é assim que, muito freqüentemente, as fontes gregas denominam um baptizado - pode ter conhecimento do ritual eucarístico na sua totalidade e tomar parte nele. Por mais diversificadas que sejam as suas formas segundo as regiões e as igrejas, este ritual compreende duas partes principais: a primeira consta de

Page 47: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

leituras escriturísticas (Antigo e Novo Testamento) - cujo número é variável - seguidas de uma homilia, em geral, pronunciada pelo presidente da assembleia dos fiéis, e que visa, com algumas excepções, comentar tudo ou parte destes textos. Depois, vem a despedida dos catecúmenos e dos penitentes vigiada pelos diáconos e ostiários. Os penitentes são aqueles que cometeram pecados graves e públicos, como a apostasia, a heresia, o adultério ou o assassínio, e que, por isso, foram excomungados pelo bispo, mas desejam voltar a integrar-se plenamente na comunhão dos fiéis. Se a sua reconciliação for considerada possível - o que depende não só das normas e práticas em vigor na sua igreja, mas também da aquiescência do seu bispo -, são inscritos no grupo dos penitentes e, durante algum tempo, variável, até à sua reconciliação solene, só podem assistir à primeira parte da missa, antes de serem dispensados, geralmente ao mesmo tempo que os catecúmenos. Começa, então, o rito eucarístico propriamente dito, reservado aos baptizados, descrito em pormenor, em relação aos finais do século IV, no livro VIII das Constituições Apostólicas, uma compilação canónico-liturgica realizada provavelmente em meio ambiente antioqueno. Uma oração, chamada "anáfora" no mundo grego, é pronunciada por um bispo ou por um presbítero - na "Grande Igreja" são os únicos habilitados a fazê-lo - sobre pão e vinho eventualmente misturado com água e sobre as oferendas previamente trazidas pelos fiéis. Considera-se que esta oração de acção de graças, cujo texto se vai progressivamente fixando ao longo séculos, e que - em geral, embora não necessariamente - compreende a recordação da última refeição de Jesus com os seus discípulos, opera uma mudança do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. Embora não apareçam, salvo em casos excepcionais, desenvolvimentos precisos sobre a natureza e as modalidades desta transformação, convém notar o realce freqüentemente dado, pelo menos nos testemunhos saídos das cristandades orientais, ao poder transformador do Espírito invocado sobre as oferendas. Depois, os elementos "eucaristificados" são distribuídos pelos diáconos aos fiéis que podem, se for caso disso, levá-los para casa para os consumir quando desejarem comungar. Com efeito, a eucaristia tem lugar todos os domingos e, eventualmente, algumas vezes por semana, segundo um calendário que é próprio de cada igreja. 77

Compreendido como um "sacrifício espiritual" em íntima relação com o "sacrifício realizado na Cruz", segundo uma temática muito querida do autor da Epístola aos Hebreus, o ritual eucarístico é o objecto de uma sacralização crescente ao longo dos séculos, que usa os modelos do Antigo Testamento dos sacrifícios oferecidos no Templo de Jerusalém; trata-se de um léxico sacrificial que tende a designar os dispositivos litúrgicos (edifícios, mesas e recipientes) que lhe estão ligados e também os ministros que o realizam, enquanto se multiplicam as regras e as proibições, em particular de ordem sexual. As aclamações e os cantos dos fiéis vão ritmando as cerimónias, cujos rituais não cessam de se enriquecer ao longo dos séculos e de fascinar os observadores externos, enquanto a eucaristia, ao sabor das controvérsias doutrinais, se torna a pedra de toque da comunhão das igrejas, de que a crise donatista na África do Norte e a crise monofisita no Mediterrâneo oriental oferecem numerosíssimos exemplos. Michel-Yves Perrin 78

Cristianização do espaço e cristianização do tempo

Page 48: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A Paixão dos Sete Dormentes de Éfeso, que Gregório de Tours conhecia, narra a história de cristãos perseguidos que tinham adormecido numa gruta durante a perseguição do imperador Décio (249-251). Despertaram do seu longo sono no tempo do imperador Teodósio II (408-450) e um deles chegou à cidade próxima. Qual não foi a sua surpresa ao ver "o sinal da cruz gravado na porta da cidade"! Esta observação resume, por si só, uma revolução política e religiosa - a passagem, para o cristianismo, do estatuto de adesão criminal à de religião de Estado - e testemunha a favor da inscrição visível desta transformação no espaço da vida quotidiana no seio do Império Romano (a situação é diferente no Império Persa). A partir de finais do segundo decénio do século IV, a cruz e o crismon ou chrismon - o símbolo formado pela sobreposição das duas primeiras letras gregas da palavra Christos [CRISTOS] - floresceram progressivamente, muitas vezes como sinal de protecção ou de exorcismo, nos monumentos públicos e privados: marcos miliários em África e padieiras das portas das casas ou lintéis das portas das igrejas, lagares de vinho ou de azeite, marcos de delimitação dos prédios rústicos na Síria, fontes ou estátuas em Éfeso, para citar alguns exemplos, sem esquecer as sepulturas. A afirmação espacial da presença cristã também se marca com a erecção de lugares de reunião para os cristãos cada vez mais claramente identificáveis, tanto na malha urbana como nos campos. Este processo, que tinha começado durante a segunda metade do século III (provavelmente graças ao édito do imperador Galiano que, em 260, pusera fim às perseguições gerais dos cristãos e iniciara o período da "Pequena Paz da Igreja", como a denominam os historiadores modernos), tinha sido brutalmente interrompido pela perseguição de Diocleciano. De facto, as medidas de repressão tomadas em 303, com aplicação desigual consoante as regiões, previam a destruição dos lugares de assembleia dos cristãos. 79

De novo em paz, inicia-se uma verdadeira revolução edilícia que, segundo uma cronologia e uma intensidade variáveis, se apodera de numerosas igrejas no mundo romano: a necessidade de reconstruir edifícios destruídos, o apoio financeiro, não só dos notáveis cristãos, mas também dos simples fiéis, e o exemplo do próprio imperador Constantino, que, primeiro em Roma e na Itália central, depois nos lugares santos da Palestina, se encarrega da construção de igrejas e de santuários, contribuem para a multiplicação dos lugares de reunião dos cristãos. Por razões sobretudo funcionais - trata-se de conceber edifícios capazes de abrigar comunidades em pleno crescimento demográfico -, o plano "basilical" (rectangular) é geralmente privilegiado e realizado segundo as suas numerosas variantes. Este também permite uma repartição e uma distinção eficazes dos espaços interiores entre o coro, onde se encontra o altar e estão os presbíteros, e o resto da basílica, onde tomam lugar os fiéis. Em certas regiões, a orientação do edifício é objecto de atenção. Um evidente cuidado com a visibilidade acompanha estas novas construções; para isso contribuem a cobertura em geral elevada da nave central, a monumentalidade cada vez mais acentuada da entrada, a eventual construção de anexos (o pátio, denominado atrium, à frente da igreja, o baptistério, a residência episcopal, etc). Por mais dependente que seja da estrutura da malha urbana e das suas mutações (compras, vendas e doações), a implantação dos edifícios cristãos no interior das cidades sofre uma importante transformação que, nalguns casos, ao fim de dois ou mais

Page 49: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

séculos, acabaria por saturar o espaço urbano e periurbano: a cidade média de Oxirrinco, no Egipto, contava, no início do século IV, com pelo menos duas igrejas, por volta do ano 400 já tinha doze e em 535/536, vinte e cinco. Com efeito, aos edifícios situados na cidade juntam-se os que foram erguidos nas suas redondezas, no suburbium, junto dos túmulos dos mártires e, depois, dos santos monges ou bispos. O cuidado que os cristãos reivindicam para a sepultura daqueles que, de entre eles, morreram mártires, a convicção cada vez mais divulgada da sua capacidade de intercessores junto de Cristo juiz, o desenvolvimento da prática da inumação ad sanctos, quer dizer, enterramento junto dos seus túmulos, que favorece a constituição em volta de autênticas cidades dos mortos - testemunhas disso são certas catacumbas romanas ou as necrópoles de Santa Salsa em Tipasa (na Argélia actual) ou de Manastirine em Salone, na Croácia - traduz-se também na monumentalização das tumbas veneradas e na eventual construção de santuários próprios para atrair os peregrinos, as mais das vezes vindos da cidade próxima. A desigual repartição espacial dos corpos santos favorece a circulação de relíqüias, geralmente roupa branca ou óleos previamente colocados em contacto com restos venerados, que são considerados portadores do mesmo poder de cura e, mais geralmente, de milagre, capazes de magnetizar as devoções dos fiéis e, portanto, próprios para estimular os impulsos edilícios. Neste contexto, os lugares ligados a um episódio do Antigo ou do Novo 80

Testamento têm um lugar especial: tradições judaicas, memórias cristãs e lendas locais concorrem para um inventário continuamente crescente num movimento sem precedentes de apropriação do espaço. Se convém não sobrestimar a amplitude das peregrinações a longa distância na "Terra Santa", na Antiguidade tardia, a viagem de Egéria, em 381-384, continua a ser um caso excepcional, a difusão de relíqüias da verdadeira Cruz em todo o mundo mediterrâneo testemunha a favor de um fascínio intenso. Os cristãos tinham uma história e, doravante, também uma geografia. Esta conquista do espaço também toma a forma de uma substituição simbólica: assim, já não são os lugares de culto pagãos, oficialmente encerrados a partir de 392, que gozam de direito de asilo (privilégio de inviolabilidade) e acolhem os fugitivos, mas, cada vez mais, o mesmo acontece com os santuários cristãos, num processo complexo de sacralização. Além disso, os edifícios de culto pagãos podem ser objecto do ardor destruidor de cristãos, desde meados do século IV, a ponto de, no início do século seguinte, ter havido imperadores que, por vezes, tentaram proteger os templos então desertos. Entretanto, na maior parte dos casos, estes edifícios não são imediatamente reutilizados pelo culto cristão: são precisos decénios, ou mesmo séculos, para apagar a recordação dos "demónios". Esta cristianização do espaço tem como resposta uma cristianização do tempo. Com efeito, os cristãos tinham conservado o ritmo hebdomadário da semana judaica, que podia harmonizar-se facilmente com o da semana planetária (dia da Lua, de Marte, etc), cujo uso tendia a difundir-se no seio do mundo romano. Mas, por um lado, na "Grande Igreja", a observância do sabat tinha sido abandonada em proveito do repouso ao domingo, dia associado à ressurreição de Cristo e, por outro, os bispos censuravam, com pouco sucesso, o emprego do nome dos planetas para designar os dias da semana. Ainda por outro lado, no decurso do século II, tinha-se instaurado uma festa anual de Páscoa com um conteúdo especificamente cristão, mas a determinação deste dia dividia os cristãos. Uns celebravam-na no tempo da Páscoa judaica, que começa na tarde do décimo quarto dia do mês de Nisan, isto é, na Lua cheia depois do equinócio da Primavera, levando a realçar a Paixão de Cristo, porque, segundo

Page 50: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

a cronologia do Evangelho de João, Jesus foi crucificado no dia 14 de Nisan; outros, no domingo seguinte à festa judaica, o que valorizava a Ressurreição. O primeiro cômputo torna-se rapidamente minoritário e o concílio imperial de Niceia (325) bane o seu uso na "Grande Igreja". O segundo foi geralmente adoptado, mas, por mais esforços que, todos os anos, se fizessem para se chegar a uma determinação do dia da Páscoa, válido para o conjunto do mundo cristão, não deixaram de subsistir divergências durante toda a Antiguidade. Por fim, na viragem do século III, o mais tardar, estabeleceu-se uma festa da natividade de Cristo no dia 25 de Dezembro em Roma e no dia 6 de Janeiro em Alexandria. As razões que levaram à adopção destas duas datas continuam obscuras e controversas. Outras festas anuais ligadas 81

a Cristo e, depois, à Virgem, aparecem em certas igrejas, e a sua observância difundiu-se segundo uma cronologia e uma geografia variáveis. Com Constantino, o tempo cristão começou a ser levado em conta pela legislação imperial. E foi assim que, desde 321, o "dia do Sol", o domingo, se torna um dia feriado para permitir que as populações das cidades fossem às igrejas (Código teodosiano, II, 8, 1 e Código justiniano, III, 12, 2). Em 389, uma lei fixa os dias feriados dos tribunais: no dia 1 de Janeiro, nos aniversários das fundações de Roma (21 de Abril) e de Constantinopla (11 de Maio), os sete dias antes da Páscoa e os sete dias seguintes, os domingos, os aniversários de nascimento e de entronização dos imperadores (Código teodosiano, II, 8, 19). O tempo da liturgia cristã insinua-se no calendário público. Desde 367, institui-se uma amnistia pascal (ibid., IX, 38, 3) e, em 380, uma lei prevê a suspensão de todas as instruções criminais durante a Quaresma (ibid., IX, 35, 4), porque, como explicará uma disposição ulterior, "durante estes dias em que se espera a libertação das almas, não se pode supliciar os corpos" (ibid., IX, 35, 5). A partir dos decénios centrais do século IV, os bispos tentam concorrer com o calendário das festas pagãs, multiplicando as festas dos mártires, e esforçam-se por organizar verdadeiros ciclos de festas cristãs. Em 392, a autoridade imperial, provavelmente industriada a tal, proíbe as corridas do circo ao domingo, salvo se o aniversário do imperador for nesse dia (ibid., II, 8, 20); mas esta excepção logo deixa de ser tolerada, de modo que as festas pagãs são oficialmente suprimidas; algumas, como as calendas de Janeiro, ainda sobrevivem, como testemunham as repetidas queixas dos pastores ao longo do século V. Mas o crescimento contínuo das festas cristãs no decurso da Antiguidade tardia, o apoio dos imperadores e as adesões maciças ao cristianismo terminam numa transformação quase total das referências tradicionais do tempo público. Michel-Yves Perrin 82

Dignidade dos pobres e prática da assistência

Interrogar-se sobre o que os cristãos dos seis primeiros séculos realizaram a favor dos pobres é deparar-se com um vasto problema, herdado de vários séculos de debates: terá o cristianismo, com a sua expansão através do mundo antigo, trazido progressos em matéria social e humanitária? Já o século XVIII fizera esta pergunta com, por exemplo, Montesquieu. O século seguinte dividiu-se entre os que censuravam os cristãos por só terem oferecido algum alívio, sem criticarem a ordem nem, sobretudo, tentarem abolir a escravatura, e os que, por zelo

Page 51: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

apologético, apresentavam a difusão inicial da mensagem evangélica como uma inovação que ultrapassava, antecipadamente, o "Século das Luzes" e a Revolução Francesa. O mais ilustre dos segundos é, sem contestação, Chateaubriand (embora não sejam os seus Estudos Históricos nem o seu Génio do Cristianismo que actualmente lhe dão renome); mas dever-se-ia sobretudo citar Franz de Champagny, cujos livros influenciaram o bispo de Perúsia, Giuseppe Pecci, futuro autor, enquanto papa Leão XIII, da primeira encíclica sobre a condição dos operários. Com a sua História da Escravatura na Antiguidade, Henri Wallon, um dos pais fundadores da III República [Francesa], também participou nesta controvérsia, sublinhando tudo o que julgava inovador na maneira como os primeiros cristãos consideravam e tratavam os escravos. Do século XX até hoje, a discussão continua aberta: certos historiadores minimizam o contributo humanitário do cristianismo, vendo nisso apenas um aspecto da evolução geral das idéias e dos costumes greco-romanos; outros insistem na originalidade dos valores e das práticas cristãos, assim como nas mudanças felizes que suscitariam. Mas acontece que a atitude perante os pobres e a escravatura constituem dois exemplos opostos do papel social desempenhado pelo cristianismo no mundo antigo. São, por assim dizer, dois pólos opostos: embora a Igreja não tenha recusado o sistema esclavagista, não deixou de inovar grandemente a favor dos pobres, tanto no domínio das realizações concretas como 83

no das representações colectivas. Esta diferenciação explica-se sobretudo pela diversidade das prescrições que os cristãos dos primeiros séculos encontraram na Bíblia. Mesmo que esta contenha alguns versículos que condenam explicitamente a escravatura, teria sido extremamente difícil pô-los em prática, salvo à escala das comunidades pouco numerosas e marginais, fortes como eram as inércias socioeconómicas e os hábitos psicológicos. Aristóteles imaginava uma sociedade sem escravos só quando as lançadeiras tecessem sozinhas. Como é que os cristãos da Antiguidade, acostumados, como os seus contemporâneos, a ver na escravidão de uma parte da população um facto elementar da sua vida quotidiana, teriam podido decretar intolerável uma instituição que as suas Escrituras não proibiam? Em contrapartida, o cuidado dos pobres e dos infelizes ocupa de imediato na tradição cristã um lugar central, porque o próprio Jesus, como se lê no Evangelho segundo Mateus (25,35-36), estava plenamente identificado com eles: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo." Esta enumeração, cujo eco se propaga de Justino de Roma (mártir em 165) às Constituições Apostólicas (compiladas por volta de 380) e muito para além, leva à interrogação da diversidade daqueles que os textos patristicos e, depois, a bibliografia contemporânea, agrupam habitualmente no nome vago e muito englobante de "pobres". Em primeiro lugar, trata-se dos infelizes, daqueles que se encontram numa situação, momentânea ou duradoura, de sofrimento e de necessidade: os indigentes de toda a espécie, os expatriados sem ajuda, os doentes isolados, os detidos, e também, na linha das imposições bíblicas, as viúvas e os órfãos. Os "pobres" das nossas origens são igualmente aqueles que, para viver, só dispõem do necessário ou nem sequer isso: humildes artesãos ou camponeses que, às vezes, a imprecisão do vocabulário nos levaria a confundir com mendigos. Existem ainda os desclassificados, aquelas e aqueles que as perturbações políticas e as invasões da Antiguidade final privaram dos seus bens e do seu estatuto: Ambrósio de Milão, Jerónimo, Victor de Vita e, sobretudo, Gregório Magno interessam-se por eles, como se

Page 52: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fossem especialmente sensíveis a estas subversões da ordem social, e como se eles julgassem particularmente miserável o infortúnio daqueles que já se tinham habituado às riquezas e às honras. Finalmente, estes "pobres" são aqueles que, dispondo de uma pequena propriedade, se vêem despojados por um vizinho mais poderoso, como o Nabot da Bíblia, querido de Ambrósio. Mas, se o léxico das nossas origens se mostra ambíguo, a prática das igrejas antigas não admite dúvidas. Os Actos dos Apóstolos atestam que, no modelo das comunidades judaicas, os primeiros "cristãos" (não se chamavam assim) de Jerusalém procuravam, ao menos sob a forma de refeição colectiva, uma assistência às viúvas do seu meio social. Em finais do século II, Tertuliano fala de quotizações feitas pelos cidadãos para alimentar e inumar 84

os indígenas, para ajudar os órfãos, os servos envelhecidos, os náufragos e os que se encontravam nas minas ou na prisão por causa da sua fé. Em meados do século seguinte, a igreja de Roma mantinha mais de mil e quinhentas viúvas e indigentes. Foi precisamente nos anos 250 que esta prática cristã da assistência começou a ultrapassar o estrito quadro comunitário para se dirigir indistintamente a todas as vítimas de uma epidemia de peste: o mesmo aconteceu em Cartago sob o episcopado de Cipriano, depois em Alexandria, com Dionísio. Uma nova etapa é ainda franqueada em 313, com a "viragem constantiniana". Doravante, instaladas na legalidade ou, até, favorecidas pelo poder central, as igrejas desenvolvem estruturas de assistência de um novo tipo; obtêm dos imperadores cristãos o reconhecimento oficial pelo serviço que prestam à sociedade. A segunda metade do século IV vê florescer um vocabulário original, bem conseguido como tal por um Agostinho de Hipona, que nomeia os edifícios onde se dispensa a ajuda aos infelizes: assim, a palavra grega xenodokheion que em latim dá xenodochium, parece designar um edifício onde se recebem pessoas de passagem (peregrinos e também vagabundos) e se tratam os doentes. Estes estabelecimentos de caridade empregam um pessoal específico: médicos, enfermeiros, maqueiros (como os parabalani de Alexandria, no início do século V). A sua importância e o número dos seus beneficiários variam consideravelmente consoante os lugares: neles acolhem-se desde uma dúzia a várias centenas de indigentes. O exemplo mais impressionante é o do vasto complexo, composto de hospícios e uma leprosaria, criado em Cesareia da Capadócia pelo bispo Basílio. O seu amigo, Gregório Nazianzeno, vê nesse conjunto uma "nova cidade", a que outras fontes chamam a "Basilíada". Em suma, é nesta acção concreta do cristianismo da Antiguidade tardia a favor dos indigentes que se deve procurar as origens longínquas das nossas instituições hospitalares. Já não há dúvida do contributo cristão, também ele herdeiro da tradição judaica tardia, no domínio das idéias e das representações colectivas. Os escritos dos Padres da Igreja, como antes a Bíblia, falam dos "pobres" (oprimidos, mendigos, viúvas, órfãos...), muito mais freqüentemente do que a literatura greco-romana e com um apreço inédito. Judaísmo e cristianismo têm no seu activo uma verdadeira reabilitação dos indigentes e dos infelizes que o segundo, graças a um texto fundador já citado, chega a identificar com Jesus. Perante o desprezo dos ricos, Gregório de Nissa proclama a dignidade dos pobres; o seu amigo Gregório de Nazianzo declara que todos os cristãos são "companheiros de miséria" que precisam da ajuda divina; para Agostinho, cada homem é um "mendigo de Deus". Encontra-se um eco desta pregação nos epitáfios que elogiam crentes ricos, qualificando-os, segundo uma fórmula empregada igualmente pelas inscrições judaicas,

Page 53: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

como "amigos dos pobres". Isto quanto ao discurso destinado aos abastados; mas também é preciso mencionar as palavras que Ambrósio e Agostinho dirigem aos cristãos menos favorecidos, exortando-os a não se 85

desencorajarem nem se depreciarem. Esses bispos tentaram realizar, numa sociedade muito inigualitária, tanto nos princípios como nos factos, aquilo a que poderíamos chamar uma democratização da estima de si mesmo. Precisamente, parece que, no seio das igrejas, os mais pobres tinham tomado consciência do seu peso colectivo e souberam fazer interceder a seu favor os bispos que, às vezes, tiveram individualmente a tendência para considerar-se já seguros da sua salvação no além. Agostinho vê-se obrigado a lembrar-lhes o dever da humildade que têm em comum com todos os outros fiéis, de que são os mais afortunados. Por mais inegáveis que sejam, estas inovações dos cristãos da Antiguidade em matéria de ajuda material e psicológica aos pobres não devem ser olhadas com "angelismo". A assistência eclesiástica não pertence unicamente ao domínio da moral: tem conseqüências muito para além do alívio das misérias mais gritantes. Para aqueles que o dirigem, os bispos, este sistema de beneficência constitui uma justificação teórica das riquezas, por vezes consideráveis, cuja administração asseguram e, sobretudo, uma fonte de influência diária no seio das cidades. Tornados protectores dos mais pobres e até das camadas populares em geral, os bispos saem da esfera "religiosa" estrita, sendo doravante novos actores - e não dos menores - na vida social e política. No Ocidente, nos séculos V e VI, a derrocada das estruturas administrativas do Império Romano leva-os a desempenhar, pelo menos pontualmente, o papel de autoridades civis e militares. Assim, acabou por se partilhar tarefas que o século IV, a "idade do ouro dos Padres da Igreja", tinha realizado: é o momento de um equilíbrio que não haveria de durar e de um pensamento social cristão que, depois, iria perder a sua audácia. Jean-Marie Salamito 86

Em busca da perfeição Ascetismo e monaquismo

Desde as origens, muitos discípulos de Jesus adoptaram um modo de vida ascético. Para o seguir ou para ser perfeito como Ele exigia, era preciso deixar a família, a profissão e a propriedade: estas exigências aceites pelos primeiros discípulos também foram entendidas, sob várias formas, pelos seus sucessores. Os membros da primeira comunidade de Jerusalém punham os seus bens em comum; nas outras comunidades, numerosos cristãos dos dois sexos escolhem viver na virgindade e na pobreza, "errantes apostólicos" sulcam as estradas do Império-e este tipo de ascese durará vários séculos. Até se chega a encontrar, em regiões como a Síria, a partir do século III, esboços de estruturas comunitárias que reúnem celibatários ao serviço das igrejas, os "filhos da Aliança". Mas, em finais deste século, aparece uma maneira de viver o ascetismo que, pouco a pouco, irá suplantar estas formas antigas e tornar-se uma verdadeira instituição: o monaquismo. Na biografia que Atanásio, bispo de Alexandria, nos deixou, Antão aparece como o modelo, se não o iniciador, do monaquismo. Não só se despoja dos seus bens e escolhe viver na castidade e na penitência, como também o faz na solidão,

Page 54: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

definindo o que será a originalidade do monaquismo: a opção por uma vida separada ou isolada, implicando uma separação física do mundo; o monge é aquele que está só (monos ou monachos). Nos anos 280, Antão deixa a sua aldeia do vale do Nilo e instala-se, isolado, primeiro num túmulo afastado das habitações; depois, num fortim abandonado no deserto e, finalmente, no "deserto interior" da montanha próxima do Mar Vermelho, onde reside de 312 até quase à sua morte, em 326. Na sua solidão, o monge ora, jejua, vela e luta contra o demónio, tudo isto com a finalidade de o conduzir à unificação do seu ser e à contemplação. Antão não é, assim, o único a adoptar este modo de vida que, aliás, graças ao seu sucesso, irá transformar-se muito rapidamente. Como muitos outros solitários, tinha visto afluir junto dele candidatos a esta vida, 87

tornando-se seu guia espiritual. Por isso, vão-se constituindo colónias monásticas onde cada um se exercita na ascese na solidão; mas os mais jovens mantêm-se em contacto com um ancião e seguem os seus conselhos. No entanto, não existe nenhuma regra comum, fazendo cada um a sua própria regra. Nos primeiros anos do século IV, esses grupos aparecem em várias regiões do Egipto, em particular no deserto de Sceta, a cerca de sessenta quilómetros a sul de Alexandria. Entretanto, uma nova etapa - a da vida comunitária - começa naquela época. O seu iniciador é Pacómio, que, depois de alguns anos de vida solitária, se instala, por volta do ano 321, em Tabenese, uma aldeia abandonada do Alto Nilo, onde alguns discípulos se juntam a ele. Pouco a pouco, vai-se constituindo aí uma verdadeira comunidade sob a sua direcção; e vai-se elaborando uma regra que se torna o quadro jurídico que estrutura a existência diária dos "irmãos". Esta prevê orações comuns várias vezes ao dia e práticas ascéticas vividas num quadro colectivo (que moderam o rigor das práticas dos solitários, tanto em matéria de jejum como de vigílias). Entre eles, o trabalho manual torna-se um elemento essencial da ascese, como reacção a um monaquismo que pretendia contentar-se exclusivamente com a oração e ser alimentado pelos outros cristãos (tendência que se encontrará em diversas regiões). Os monges vivem num mosteiro, num conjunto de edifícios rodeados por um muro de cerca que garante a sua separação em relação ao mundo; as refeições e o regime alimentar são comuns, a partilha dos bens é integral, pois cada um entrega os seus bens ao mosteiro e não pode dispor deles senão no que a regra lhe concede. Nesta vida organizada, a obediência ao superior torna-se a virtude principal do monge. Rapidamente florescente no Egipto, tanto sob a forma solitária como sob a forma comunitária, o monaquismo espalha-se pouco a pouco por todo o mundo cristão com diferenças locais, às vezes bastante acentuadas. Por isso, o monaquismo sírio caracteriza-se pelo extremo rigor da ascese dos solitários que impõem a si mesmos penitências terríveis. É lá que aparecem os primeiros estilitas que vivem a sua ascese no cimo de uma coluna, um modo de vida que terá numerosos imitadores. Na Ásia Menor, encontram-se fraternidades marcadas por um radicalismo evangélico que critica as estruturas e as práticas de uma Igreja "instalada" e tende a fazer do monaquismo um movimento sectário; Basílio, bispo de Cesareia de Capadócia, levará um grande número dos seus membros a adoptar um quadro de vida propriamente monástica, com comunidade de bens, castidade e exigência de trabalhar para ganhar a sua vida e fazer caridade. Como no caso de Pacómio, a obediência a um superior ganha uma importância capital: é ele quem tem o carisma do discernimento e sabe explicar os mandamentos. Por outro lado, estas comunidades continuam ao serviço da igreja local, em

Page 55: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

redor do bispo. As regras basilianas conhecem uma longa posteridade no monaquismo oriental. 89

Embora o modo de vida solitário esteja reservado aos homens, o modo de vida comunitário é bem depressa adoptado pelas mulheres. Pacómio funda conventos de mulheres, outros são criados por iniciativa de mulheres de nível social elevado, como Macrina, a irmã de Basílio. Durante muito tempo, subsistiram as virgens independentes que continuavam a residir com a sua família e até partilhavam o seu modo de vida com um homem que havia feito a mesma escolha: este tipo de coabitação é testemunhado desde muito cedo, mas os bispos, considerando-o suspeito, não cessarão de combatê-lo durante todo o século IV, até que acabará por desaparecer em proveito da vida comum. No Ocidente, o monaquismo propriamente dito é de importação oriental e só se desenvolveu a partir da segunda metade do século IV. A antiga maneira de viver a vida ascética manter-se-á durante mais tempo, não comportando nem a solidão nem a existência comunitária: no quadro da sua vida quotidiana habitual, cada um respeita a virgindade, a pobreza, a oração, o jejum e o serviço dos pobres e só, pouco a pouco, este modo de vida desaparecerá ou se fundirá no molde monástico. A Vida de Antão, traduzida [do grego] para latim desde o seu aparecimento (em 357), logo provocou no Ocidente o aparecimento de numerosos eremitas que, como o seu modelo, se exercitavam na vida ascética e na solidão. Alguns escolhiam o campo ou as florestas, outros instalavam-se nas ilhas do Mediterrâneo. A atracção da vida eremítica, testemunhada em obras como Louvor do Deserto de Eucher de Lião, escrita por volta do ano 400, persistiu durante muito tempo no Ocidente. São relativamente raros os testemunhos precisos, porque muitos eremitas desapareceram sem deixar o mínimo rasto, mas sabe-se que muitos daqueles que fundaram mosteiros comunitários começaram pela vida solitária e que à volta destes conventos se conservaram longamente algumas células isoladas, onde os monges mais avançados na ascese podiam viver durante algum tempo. Apesar de tudo, é possível afirmar que, no Ocidente, houve um declínio progressivo do ideal eremítico. Em contrapartida, o monaquismo comunitário conheceu um grande sucesso sob as mais variadas formas. No início, fundam-se mosteiros familiares, quando cristãos (ou, sobretudo, cristãs) atraídos pelo ascetismo transformam pouco a pouco as suas casas em mosteiros, levando nelas uma vida já mais ou menos comunitária com jovens mulheres solteiras e viúvas da aristocracia, sem falar dos seus servos e servas. Criam-se igualmente mosteiros episcopais, onde os clérigos vivem comunitariamente em redor do seu bispo (um dos mais conhecidos é o de Agostinho, em Hipona). Em breve, estabelecem-se mosteiros em sentido estrito, onde se reúne em volta do fundador um grande número de monges. João Cassiano, vindo do Oriente, funda um mosteiro em Marselha e, com os seus escritos, difunde no Ocidente o ideal dos cenobitas egípcios. Outros fundadores começaram pela vida solitária e juntaram numerosos discípulos, como é o caso de 89

Martinho (+ 398), inicialmente instalado em Ligugé, depois em Tours, de que se torna bispo, e também de Honorato, que se instala na ilha de Lérins entre 400 e 419, aonde acorreram discípulos de todas as regiões, que começaram por residir em celas separadas, mas sob a

Page 56: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

autoridade do mesmo chefe e da mesma regra. Lérins torna-se rapidamente um ccenobium, um grande convento onde se pratica a vida comum. Nos séculos V e VI, foi o mais importante centro monástico da Gália e até do Ocidente, com múltiplas filiais. As regras que lá surgiram inspiraram numerosos mosteiros ocidentais antes do aparecimento da de São Bento. Pierre Maraval 90

VI

INTELECTUAIS CRISTÃOS PARA CONFIRMAR A FÉ OS PADRES DA IGREJA Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo

A mensagem do Evangelho, destinada a todos os homens, tinha sido revelada por Jesus prioritariamente aos pequenos. Os apóstolos, que, seguindo-o, a tinham difundido no Oriente grego e, depois, no Ocidente, não eram letrados. Face à cultura tradicional, os escritores cristãos dos primeiros séculos tiveram de enfrentar verdadeiros desafios: denunciar o absurdo ou a imoralidade das fábulas do politeísmo, receber e reter da cultura grega o que podia contribuir para estabelecer as bases intelectuais do cristianismo nos domínios do dogma e da moral, utilizar os recursos da dialéctica e da retórica para comunicar com os seus irmãos ou com os seus contraditores; e, graças a isso, nobilitar e emancipar os textos cristãos nos diversos géneros literários - obra imensa de confrontação, para a qual era necessário estar perfeitamente armado, como o revela a carreira de grandes bispos do século IV. Basílio de Cesareia (ca. 330-379): teólogo e homem de acção O mais velho dos capadócios pertence a uma família muito abastada da aristocracia que tinha conhecido a perseguição. Cesareia era afamada pelos seus retóricos, mas Basílio, o Velho, que ensinou a retórica, enviou o seu filho para Constantinopla e, sobretudo, para Atenas, a fim de completar 91

a sua formação. Durante estas estadas, seis a sete anos no total, Basílio tornou-se amigo de Gregório de Nazianzo. Ambos tiveram mestres prestigiados, um dos quais o pagão Libânio, e percorreram o ciclo completo dos conhecimentos. A sua formação religiosa, recebida da mãe e da avó, foi sólida. De facto, quando regressou à Capadócia, Basílio voltou-se para a vida ascética e empreendeu (sozinho?) uma grande viagem pelo Baixo Egipto e pela Síria, entrando em contacto com diversas formas de vida monástica. Então, retirou-se em Annesi, no Ponto, no coração da solidão arborizada de uma propriedade familiar, com a mãe, a irmã Macrina, o irmão Gregório (futuro bispo) de Nissa (durante algum tempo) e também Gregório de Nazianzo. Com este, dedicou-se ao estudo de Orígenes (+ ca. 254), de cuja obra retiraram extractos em forma de metodologia exegética e filosófica, a Philocalia. Logo a seguir, foi ordenado presbítero e, em 370, por morte do bispo de Cesareia, foi eleito para lhe suceder. Os seus oito anos de episcopado foram bem cheios, tanto no plano doutrinal, disciplinar e canónico, como nas suas iniciativas litúrgicas (ofícios cantados com coros mistos), nas suas viagens pela sua província eclesiástica, nas suas fundações de fraternidades monásticas, nas

Page 57: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

suas obras caritativas (sopas populares e complexos de assistência, sobretudo a famosa Basilíada, às portas de Cesareia), na sua defesa dos pequenos e das vítimas da administração imperial, e no seu trabalho incansável a favor da paz e da unidade entre as igrejas. Basílio soube fazer frutificar os dons que tinha recebido do seu meio social e da sua "escolaridade" em prol do povo que lhe estava confiado. Convencido de que só existe uma autoridade, a das Escrituras, redige uma súmula dos deveres do cristão, as Regras Morais (um dossiê de mil e quinhentos versículos do Novo Testamento), depois as respostas às questões postas pelas fraternidades, o Pequeno Askêticon, que, depois, se torna as Grandes e as Pequenas Regras ou Grande Askêticon. O tratado Sobre o Espírito Santo abre caminho ao Concílio de Constantinopla (381). A pregação de Basílio compreende homilias sobre os Salmos, homilias "morais" sobre diversos assuntos, entre os quais as questões sociais, e, finalmente o Hexaemeron (sobre Gn 1-3). O opúsculo Aos jovens sobre a maneira de tirar proveito das cartas helénicas é uma obra maior sobre as relações entre a fé cristã e a cultura "clássica": com os conhecimentos que tinha adquirido junto dos melhores representantes desta cultura, Basílio estava muito bem preparado para formar os jovens espíritos no discernimento. Por fim, deixou mais de trezentas cartas dirigidas a clérigos e a bastantes leigos fervorosos, que revelam uma grande sensibilidade. Favorecida pelas traduções latinas, a influência de Basílio atinge o Ocidente ainda em sua vida, e talvez faça dele o Padre grego mais citado pelos autores medievais. 92

Gregório de Nazianzo (ca. 330-390): teólogo poeta

Gregório nasceu numa aldeia do Sudoeste da Capadócia, numa família ortodoxa fervorosa, filho de Gregório, o Velho, que foi eleito bispo de Nazianzo antes do seu nascimento. Freqüentou as escolas de Cesareia da Capadócia, Cesareia da Palestina, Alexandria e, depois, sobretudo, Atenas, onde conheceu Basílio. Voltou à sua pátria antes de Basílio, e depois foi para Annesi, levar a "vida filosófica" que os dois amigos tinham escolhido. Em 361, chamado pelo pai, Gregório é ordenado presbítero contra a sua vontade. Pouco depois, cedendo à atracção pela vida solitária, foge para junto de Basílio, mas regressa a Nazianzo antes da Páscoa de 362. Algum tempo depois da sua eleição para a sé de Cesareia, Basílio obriga Gregório a deixar sagrar-se bispo de Sasimes, simples entreposto de mala-posta no Sul da Capadócia. O temperamento de Gregório, absolutamente nada disposto a controvérsias, levou ao fracasso do papel que o seu amigo desejava que ele desempenhasse junto de Antímio de Tiana. E Gregório fugiu novamente para a montanha. O seu pai conseguiu, pouco antes da sua morte, fazer com que ele regressasse e, então, administrou a diocese de Nazianzo com satisfação dos bispos da região. Mas, como eles tardaram a nomear um sucessor, fugiu para Selêucia de Isáuria. Em 378, com a chegada de Teodósio, protector da ortodoxia, a comunidade católica de Constantinopla pediu a Gregório que fosse seu pastor e ele aceitou, depois de alguma hesitação (379). Deste período datam os seus notáveis Discursos Teológicos (n.ºs 27-31), consagrados à defesa da Trindade. Inicia-se então o Concílio de Constantinopla (381), presidido por Melécio de Antioquia, que regularizou a situação canónica de Gregório à frente da diocese, mas morreu antes do encerramento da assembleia. A sua sucessão em

Page 58: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Antioquia deu lugar a dissensões entre os Padres, que se repercutiram em Gregório, cuja posição foi contestada por alguns; ele aproveitou-se disso para se demitir, passando a administrar a igreja de Nazianzo até 383 para, depois da eleição do seu primo Eulálio, se retirar para Arianzo, onde se entregou ao estudo e à poesia até à sua morte (390). A vida desta alma delicada, inclinada à contemplação, foi uma seqüência de abandonos ou de fugas. A obra daquele que o Oriente iria denominar como "o Teólogo" foi incansavelmente recopiada, lida e citada nos concílios; compreende duzentas e quarenta e nove cartas de grande interesse histórico e espiritual, nomeadamente as suas cartas de orientação de jovens teólogos, plenas de sinceridade e naturalidade; numerosos poemas (dezassete mil versos ao todo), escritos teológicos (apologia contras os hereges) e históricos (entre os quais, epitáfios e epigramas e - coisa rara nos Antigos - duas autobiografias) e, por fim, quarenta e cinco discursos (vários dos quais sobre festas e algumas orações fúnebres, como a de Basílio). Nestes tempos 93

de fermentação teológica, era preciso uma imensa cultura para não sacrificar aos gostos do tempo, como o faziam os clérigos mais destacados, e para não se limitar a defender a fé de Niceia "com hábeis e subtis dosagens". Contudo, Gregório - adversário do helenismo nos seus discursos ao povo mas adepto da cultura grega na sua correspondência e nos seus poemas - não se contradiria ao usar as mesmas armas literárias cujo emprego reprovava nos outros? De facto, para Gregório, "o verdadeiro perigo é a ignorância das letras", o "erro do julgamento" da maioria dos cristãos e que ele denuncia. Era isso mesmo que o aproximava do seu amigo Basílio, e que o torna muito actual.

João Crisóstomo (ca. 344/354-407): a delicadeza do coração

Nascido em Antioquia, João recebeu muito de sua mãe Antusa, a sua primeira educadora, a quem deve uma grande sensibilidade. Formado em Antioquia, parece também ter sido aluno de Libânio; mas logo se voltou para os ensinamentos divinos, junto de Melécio (que o baptiza em 372), e depois com Diodoro de Tarso. Ordenado leitor, João leva uma vida ascética, primeiro em sua casa, e depois como cenobita, durante quatro anos vividos a oriente de Antioquia, e, por fim, solitário numa gruta. Mas os seus excessos de austeridade obrigaram-no a regressar a Antioquia, onde foi ordenado diácono (381) e, depois, presbítero (396); então, torna-se o pregador de Antioquia. A sua reputação chegou a Constantinopla, sem dúvida aquando da revolta de Antioquia (387); por morte do arcebispo Nectário (397), João foi escolhido para lhe suceder (398) e, embora a contragosto, conduzido a Constantinopla. Também lá conquistou a afeição dos pobres e de uma parte do clero. Por causa de alguns diferendos com a imperatriz Eudóxia, foi deposto ilegalmente em 403 - ordem revogada quase imediatamente - e, depois, banido pelo jovem imperador Arcádio (404), deportado para Cucusa (Arménia) e, depois, para Pityus (Cáucaso); estas marchas forçadas venceram-no durante a caminhada em Comana, no Ponto, no dia 14 de Setembro de 407. João, que deve muito à cultura grega - "a clareza das idéias, a força da persuasão e o brilhantismo da expressão" -, não deixou de perseguir o helenismo com os seus ataques, suplicando aos pais

Page 59: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

que preservassem os seus filhos das fábulas dos gregos. Este rigor deve-se à corrupção dos costumes em Antioquia. Apesar disso, chega a usar temas platónicos e estóicos. Além dos sermões de circunstância (Ao Povo de Antioquia), a sua imensa obra oratória comenta uma grande parte do Antigo e do Novo Testamento, fazendo de João Crisóstomo (Boca de Ouro, em grego) o mais 94

fecundo dos pregadores gregos; também deixou uma abundante correspondência, nomeadamente à viúva Olímpia, e alguns tratados ascéticos e espirituais. João Crisóstomo "entra nos corações; torna as coisas sensíveis" (Fénelon) e distingue-se a comentar as atitudes mais simples. Por toda a parte, a gravidade do tom e as exigências do Evangelho misturam-se com diálogos fictícios em que o pastor se mostra preocupado com a educação dos jovens. Benott Gain 95

Jerónimo e a "Vulgata"

Jerónimo (347?-418) é muito mais celebrado como autor da Vulgata do que pelos seus comentários da Escritura - em particular os dos profetas, pequenos e grandes, do Antigo Testamento. Passado mais de um milénio, mas em particular depois do Concílio de Trento, no século XVI, ainda se lhe chama a "edição Vulgata da Bíblia" - quer dizer edição corrente, comum, difundida -, ou, simplesmente, "a Vulgata", a tradução latina do Antigo e do Novo Testamento elaborada, em grande parte, nos finais do século IV, que demorou dois a três séculos a ser adoptada, muito lentamente, por vezes muito dificilmente, no uso da Igreja do Ocidente. A partir do século IX, certos manuscritos, e, depois, nos séculos XIV e XV, muitos pintores popularizaram a imagem de um Jerónimo a redigir a Vulgata sob a inspiração do Espírito Santo. Na realidade, a palavra "Vulgata" tem uma história tão complexa que será muito difícil não a simplificar excessivamente e não a deformar numa apresentação sucinta. "Vulgata" designa sobretudo o resultado e o reconhecimento de uma empresa durante muito tempo contestada pela sua novidade, que Jerónimo quer estabelecer como texto normativo. Ele próprio designa como vulgata a ou as traduções latinas anteriores a ele, que considera inexactas. Antes de se tornar "corrente", a sua tradução será considerada uma tradução nova, o que, por isso, a torna suspeita, mesmo aos olhos de alguém como Santo Agostinho, que quase não a utilizará. Para compreender esta evolução e as reviravoltas, não só da situação mas também do vocábulo, é necessário partir da situação concreta dos cristãos do Ocidente de então que, em geral, desconhecem a língua grega, na qual estão escritos os textos do Novo ou do Antigo Testamento que eles usam. Diversas traduções latinas aparecem em África e na Itália na viragem do século III. As do Novo Testamento, por exemplo, dos Evangelhos, de que se ocupa Jerónimo, remontam a um texto grego da época, mas que não é o mais difundido no Oriente. As traduções do Antigo Testamento, na sua 96

Page 60: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

maioria parciais, baseiam-se, todas elas, não no texto hebreu, mas numa ou noutra das traduções gregas realizadas pelos judeus da diáspora, em particular sobre a que foi efectuada em Alexandria do Egipto entre o século II antes da nossa era e o início da era actual: a "Setenta" [Septuaginta ou LXX], assim chamada porque se considera ter sido feita por setenta sábios judeus. Por outro lado, fossem quais fossem os textos a traduzir, a realização deixava a desejar, não somente em termos de exactidão ou de conformidade com os textos gregos mais recentes, mas também pela sua qualidade literária. No século IV, os cristãos letrados mostravam-se chocados com a mediocridade formal do texto latino que usavam. Além da singularidade do vocabulário e da diferença de sintaxe entre as várias línguas, os erros gramaticais e de estilo pareciam-lhes indignos da palavra de Deus, independentemente dos lapsos dos copistas. Por um lado, este aspecto estético entra no primeiro trabalho de conjunto que Jerónimo, de regresso do Oriente onde encontrou diversas versões gregas dos Evangelhos, empreende em Roma entre 382 e 384. A partir de um texto grego que ele julga ser melhor, e que era, então, corrente no Oriente, corrige a tradução latina dos Evangelhos usada em Roma, melhora a sua cor latina e fluidez, sem se sujeitar a oferecer uma tradução totalmente nova. O tempo, mas também a prudência e o desejo de não chocar demasiado os costumes, incitam-no a não alterar demasiado o texto existente. É esta a tradução que foi reconhecida muitíssimo rapidamente no Ocidente. E também foi só isto que ele fez em relação àquela que se chama a Vulgata do Novo Testamento. A revisão das Epístolas de Paulo data mais ou menos da mesma época; talvez tenha sido elaborada pelo grupo mais próximo de Jerónimo, mas, contrariamente ao que se creu durante longos séculos, não é obra sua. Desde a sua estada em Roma, Jerónimo também se mostrou preocupado com outra dificuldade no que concerne o Antigo Testamento: o diálogo com os judeus. Muito preocupado com o estabelecimento da messianidade de Cristo, confronta o texto grego dos livros dos profetas com manuscritos hebraicos emprestados por rabinos judeus. Segundo ele, o texto hebraico é mais favorável à fé cristã do que o texto grego dos Setenta, que ocultou o messianismo. Ele ignora - será necessário esperar pela nossa época para que se tome verdadeiramente consciência disso - que o regresso dos judeus da diáspora ao texto hebraico, notório desde os primeiros séculos da nossa era, quando surgem diversas revisões gregas da Setenta, é devido a uma inflexibilidade da comunidade judaica face à utilização do texto dos Setenta pelos cristãos. Por outro lado, na esteira de Orígenes, que tinha começado a comparar o texto hebraico com as diversas traduções gregas, Jerónimo admite que a discussão com os judeus só pode efectuar-se tendo por base o seu texto. O que não o impediu de trabalhar primeiro numa revisão do texto latino do Antigo Testamento traduzido a partir do texto grego dos Setenta revisto por Orígenes. Mas quase nada resta desta 97

tradução, mais usada e consultada por Santo Agostinho do que a tradução a partir do hebraico. Entretanto, há um paradoxo: o Livro dos Salmos da Vulgata é tão-somente o texto da revisão da tradução da Setenta. Aliás, a tradução a partir do hebraico - o "Saltério segundo o hebraico" -, mais sábia, nunca fez parte da Vulgata. O desejo de discussão com os judeus provoca outra conseqüência: Jerónimo só pode servir-se dos livros conhecidos por eles. Portanto, são excluídos, por exemplo, os livros, mesmo que judeus, originalmente escritos em grego. Estes, sem terem sido objecto de alguma revisão feita por Jerónimo, entraram na Vulgata, sob a forma de um texto que remonta a uma ou mais traduções anteriores a Jerónimo

Page 61: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

(Sabedoria e Eclesiástico [actualmente chamado Ben Sira], por exemplo). Será daqui que virá em particular a diferença entre o "cânone" - a lista dos livros recebidos - da Igreja católica, que acolhe todos os livros utilizados pela Igreja antiga, e o cânone da Reforma, fiel a Jerónimo e ao cânone judaico. Última indicação antes de entrar na história da feitura da tradução: Jerónimo, ocupado com mil afazeres, não fez todas as traduções com o mesmo cuidado. Alguns livros (o Génesis, os Profetas) pareceram-lhe mais importantes que outros. Entretanto, recebeu algumas encomendas que satisfez em prazos muito curtos. Por isso, nem a qualidade do trabalho é igual nem, de modo algum, a ordem dos livros é respeitada. Um dia, todas as suas traduções serão reunidas e acabarão por constituir uma edição especial, mas começaram por circular separadamente, à medida que iam sendo feitas. Foi em 390/392 que Jerónimo abandonou a sua revisão do texto grego do Antigo Testamento para passar a um trabalho de revisão do latim a partir do texto hebraico, não sem servir-se das várias traduções gregas (judaicas) existentes. Com muitas interrupções, seguidas de fases de grande actividade, o trabalho retê-lo-á até 405, ou seja, durante quase quinze anos. Podemos seguir a sua progressão e, em particular, os dissabores, pelos Prefácios que Jerónimo antepõe ao início da maior parte de cada um dos seus "pedaços" de tradução. Estes Prefácios respondem sobretudo às críticas que o acusam de inutilizar a tradução reconhecida até então pela Igreja. Nos livros mais importantes, o texto de Jerónimo melhora a língua e a sintaxe, embora se mantenha sempre muito próximo do hebraico. Mas, para aquela época, o resultado está longe de ser negligenciável. Como edição sábia que é, esta tradução foi criando lentamente o seu lugar no seio da Igreja latina, até nas leituras litúrgicas. Por isso, ela exerceu uma influência considerável em toda a Europa, mesmo nas outras línguas. Mas, ao difundir-se, o seu texto sofrerá muita corrupção material na sua própria transmissão, sem contar os reenvios mais ou menos inconscientes ao texto latino anteriormente em uso. É com Cassiodoro (ca. 550) que aparece a primeira colectânea dos textos traduzidos por Jerónimo, mas como uma bíblia entre muitas. Ao longo dos séculos seguintes, inclusive 98

na Renascença, fizeram-se diversas tentativas de regresso ao texto de Jerónimo. Mas será preciso esperar pelo século XX para que uma equipa, constantemente renovada, de monges beneditinos consagre oitenta anos de trabalho obstinado não somente a reunir os múltiplos manuscritos da Vulgata mais ou menos alterada, mas também a reconstituir, segundo as regras mais estritas da filologia, o texto deixado por Jerónimo. Yves-Marie Duval 99

Santo Agostinho e a irradiação do seu pensamento

Paradoxalmente, foi na África do Norte, num país hoje totalmente isla-mizado, que nasceu o cristianismo ocidental latino. Aparecida no Oriente num meio judeu bastante impregnado de helenismo, durante muito tempo a nova religião não tem expressão em Roma e no resto da Europa Ocidental, nem entre os membros bastante pouco numerosos de colónias de orientais. Na África do Norte, em meados do século II, inicia-se em todos os meios sociais a comunidade cristã ocidental mais abundante e mais dinâmica da língua latina. Também foi lá que, no século

Page 62: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

V, o cristianismo ocidental encontrou a sua personalidade própria, intelectual e espiritual, graças à marca indelével que deveriam imprimir nela o pensamento e a obra de Santo Agostinho. Agostinho apresenta três particularidades ao historiador. Em primeiro lugar, é o escritor antigo mais documentado: não somente milhares de páginas da sua obra chegaram até nós, como ainda se continua a descobrir, nos manuscritos, textos dele que ignorávamos (vinte e nove cartas em 1981 e uma trintena de sermões nos anos noventa do século XX). Por outro lado, ele é o homem da Antiguidade cuja vida, sentimentos e psicologia conhecemos melhor, pois falou muito de si, e não só nas suas Confissões, que contêm um relato dos trinta e quatro primeiros anos da sua vida. A sua terceira característica é a imensa influência do seu pensamento, que marcou de maneira decisiva o Ocidente cristão na Idade Média e na época moderna. Um índice desta marca é o facto de os monges medievais terem incansavelmente copiado as suas obras, transmitindo-nos mais de quinze mil manuscritos que reproduzem os seus escritos. Agostinho nasceu em 354 na pequena aldeia de Tagaste, hoje Souk-Ahras, na Argélia, junto da fronteira com a Tunísia. Os seus pais pertenciam à pequena nobreza local, mas conseguiram dar-lhe uma educação brilhante que, em 375, lhe permitiu tornar-se professor de retórica em Cartago. Chegou à Itália em 383, tornando-se professor de retórica em 100

filão, residência do imperador, pois então ambicionava uma brilhante carreira administrativa e política. A sua conversão em 386 pôs fim a estes projectos e incitou-o a regressar a África em 388, para se dedicar à vida religiosa. Tornou-se padre em 391, bispo em 395, em Hipona, hoje Annaba (antiga Bône), e consagrou-se a este ministério pastoral e à redacção da sua imensa obra até à morte, em 430, com quase setenta e seis anos, na sua cidade episcopal sitiada pelos vândalos. Agostinho viveu cinco anos em Itália; durante todo o resto da sua longa [existência, viveu e escreveu no Norte de África. Contudo, a sua obra teve rapidamente uma grande repercussão na Europa, até porque, então, as costas norte e sul do Mediterrâneo ainda não eram universos linguísticos e culturais diferentes. As províncias da África romana contavam-se entre as mais ricas do imenso Império; nelas havia numerosas cidades prósperas onde vivia uma elite culta e formada, as mais das vezes, por berberes latinizados (como o eram, com toda a evidência, o próprio Agostinho e a sua família). A África parecia não ter sofrido, durante o Baixo-Império, o mesmo declínio que certas regiões do Império Romano. As trocas culturais e as económicas com a Europa eram contínuas e a metrópole cartaginesa, a segunda cidade do Ocidente depois de Roma, exercia uma influência que ia muito além das praias africanas. Por isso, compreende-se que, embora redigidas em África, as obras de Agostinho tenham podido ser imediatamente lidas e comentadas em todo o mundo ocidental. Em Cartago, admiradores seus mandavam fazer cópias dos seus livros que expediam para Itália, de onde se difundiam pelas Gálias e pelas Hispânias. Esta irradiação devia-se não só à profundidade da sua reflexão teológica e espiritual, mas também ao seu imenso talento literário, à sua língua rica, poderosa e original, à sua faculdade de exprimir pela linguagem escrita a sua sensibilidade aguda, e a penetração, desconhecida antes dele, da sua análise psicológica. Dele, a posteridade só reteve um pessimismo inato sobre a natureza humana, corrompida pelo pecado original e propensa ao mal, e também um austero rigorismo moral. Isto deve-se ao facto de os teólogos agos-tinianos terem freqüentemente, ao longo do tempo, sistematizado e endurecido o pensamento do mestre que, na sua obra gigantesca, se revela complexo, subtil e não

Page 63: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

desprovido de contradições (pensamento que evoluiu bastante ao longo dos anos), o que torna muito difícil uma apresentação sumária. Por isso, aqui, evocaremos apenas alguns aspectos de um pensamento variado, múltiplo e multiforme. Foi somente numa última etapa, no fogo da controvérsia com os seus adversários pelagianos, que ele apresentou as suas teses de maneira vigorosa e sistemática, em particular a doutrina da predestinação em que, de algum modo, o velho homem, sem querer, se caricaturava a si mesmo. Consideremos que, para Agostinho, a natureza humana está irremediavelmente marcada pelo pecado e que não podemos aceder à salvação pelos nossos méritos pessoais 101

ou pelas nossas boas obras, pois só a graça divina pode salvar-nos. Era essa a experiência do próprio Agostinho, relatada nas Confissões: depois das suas múltiplas errâncias, Deus tinha-o, de algum modo, levado pela mão e guiado até si, revelando-lhe a sua presença no mais íntimo de si mesmo e a omnipotência do seu perdão. A sua conversão não se devia aos seus méritos pessoais, pois não era senão a resposta a um chamamento divino, à graça divina. Os adversários de Agostinho, que eram o asceta britânico Pelágio e, sobretudo, os seus discípulos, reduziam o cristianismo a um rigoroso moralismo sem espiritualidade. Segundo eles, quem cumprisse estritamente a lei divina podia chegar à perfeição, e Deus devia recompensá-lo pelos seus méritos (ou puni-lo pelas suas faltas) na vida futura. Como os pelagianos consideravam boa a natureza humana, também pressupunham que este programa era realizável. Estas idéias tiveram sucesso nos meios monásticos. O pelagianismo também foi apreciado pelo mundo aristocrático romano, onde a exaltação da virtude individual encontrava ecos profundos na antiga tradição romana e no estoicismo. Agostinho reagiu fortemente. Segundo ele, no fundamento desse sistema encontra-se uma ilusão sobre a bondade da natureza humana e a negação do pecado original que tornava esta natureza predisposta para o mal. Além disso e sobretudo, Pelágio e os seus minimizam o valor da graça divina e da necessidade da salvação operada por Cristo: no seu orgulho, julgavam-se aptos a tornarem-se perfeitos com as suas próprias forças; pensavam que, de algum modo, podiam prescindir de Deus. Nesta questão, Agostinho tinha consciência de que defendia um elemento central da essência do cristianismo. Mas a polémica durou e azedou-se: Agostinho acabou por elaborar um sistema antipelagiano radical, em que reservava a salvação para uma comunidade de eleitos escolhidos pela graça de Deus desde toda a eternidade, os predestinados, tirados aleatoriamente da "massa condenada" que era a humanidade pecadora. Esta foi a última fase do seu pensamento, que a posteridade, muitas vezes e erradamente, haveria de considerar sob o nome de agostinismo. Foi entre 413 e 426, portanto na época das invasões bárbaras, que Agostinho redigiu A Cidade de Deus, que é uma vasta reflexão, numa perspectiva de eternidade, sobre o destino da humanidade e que, no contexto da actualidade trágica, era um pouco - como pôde escrever aquele profundo conhecedor moderno de Agostinho que foi Henri-Irénée Marrou - "uma arte de viver num tempo de catástrofe". Aqui, retenhamos um aspecto desta síntese imensa. No tempo da história, a Cidade de Deus, quer dizer, a comunidade dos eleitos, está a caminho da sua realização, que só chegará no fim dos tempos. Por agora, não poderá confundir-se com nenhuma comunidade ou instituição humana actual: mesmo que um Estado, como o Império Romano de então, se proclame cristão, não pode afirmar que é a Cidade de Deus na Terra e reivindicar um carácter sagrado, uma 102

Page 64: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

omnipotência de origem divina. O mesmo é válido para a Igreja terrena, a Igreja visível, que compreende simultaneamente justos e pecadores. Henri-Irénée Marrou percebeu muito bem que este pensamento constituía uma recusa forte de todos os totalitarismos e de todos os integrismos. Agostinho também foi arrastado para uma querela dramática que dilacerava a cristandade africana desde a época de Constantino. Uma comunidade cismática chamada Igreja donatista, do nome do seu fundador Donato, dominava regiões inteiras, uma das quais a Numídia de Hipona. Os donatistas acusavam os bispos católicos de terem sido fracos no tempo da perseguição de Diocleciano e afirmavam-se como os únicos membros da Igreja autêntica, a Igreja dos santos, dos puros e dos mártires. A forte implantação desta Igreja nos meios rurais e a implicação de alguns dos seus membros numa insurreição popular que ensanguentou a Numídia nos anos 340 (a revolta dos circunceliões ou "vagabundos dos palheiros") levaram alguns historiadores modernos a ver, não sem anacronismo, neste movimento religioso a manifestação de um nacionalismo anti-romano ou de uma luta de classes. De facto, tratava-se de uma forma sumária e intransigente de religiosidade, a que chamamos integrismo, sem programa político especial, que compreendia entre os seus partidários bastantes nobres e até senadores. O baptismo, as mais das vezes recebido na idade adulta, introduzia na comunidade cristã e tinha uma imensa importância na espiritualidade do tempo. Os donatistas rebaptizavam os cristãos das outras Igrejas que aderiam à sua comunidade porque consideravam-se os únicos cristãos autênticos. Agostinho tenta, em vão, reconduzi-los à unidade pela persuasão, mas face ao fracasso e embora inicialmente reticente, acabou por unir-se à repressão feita pela autoridade imperial. Em suma, ele foi um dos líderes da conferência episcopal contraditória reunida em Cartago em 411, que acabou na dissolução autoritária da Igreja cismática, sendo os donatistas obstinados punidos com pesados castigos. O conflito freqüentemente muito violento entre irmãos cristãos foi incontestavelmente uma causa de fraqueza para a Igreja de África e, com todo o direito, alguns historiadores viram nele uma das causas longínquas do futuro desaparecimento do cristianismo naquele país. Até Agostinho, o pensamento teológico e filosófico cristão era quase exclusivamente de língua grega. Doravante, o Ocidente cristão latino possuía um mestre com uma poderosa personalidade, que exprimia o seu génio com tanto mais originalidade criativa quanto, conhecendo mal o grego, tinha sido levado a pensar por si mesmo, em vez de continuar tributário dos seus predecessores. Aliás, o nascimento em África de uma teologia ocidental particular é uma das causas, distante mas fortíssima, do cisma, consumado a partir do século XI, que havia de separar o Ocidente latino católico do Oriente grego ortodoxo. No Ocidente, no decurso da Idade Média, Agostinho foi o único mestre que pensou, sem no entanto se admitirem os aspectos extremos da sua doutrina: no século IX, o saxónico 103

Gottschalk foi condenado a prisão perpétua por ter defendido a doutrina da predestinação. A partir do século XII, o pensamento escolástico afastou-se muito de Agostinho, partindo precisamente dele. O bispo de Paris Pedro Lombardo apresentou a sua doutrina em fórmulas dogmáticas abstractas, caindo inevitavelmente numa caricatura que deformava. Depois, o sucesso do aristotelismo afastou cada vez mais a teologia escolástica da pura tradição agostiniana. As controvérsias religiosas do século XVI recolocaram Agostinho em primeiro

Page 65: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

plano. Lutero e Calvino romperam com a Igreja católica porque a acusavam de ser pelagiana. Para eles, o homem não podia ser justificado diante de Deus a não ser pela graça e pela fé, não pelas suas obras, porque estava desprovido de méritos por causa da sua natureza corrompida. Por isso, desde o início, o protestantismo voltou-se decididamente para o agostinismo e, em Calvino, para a doutrina da predestinação. Todavia, os adversários católicos dos Reformadores, no Concílio de Trento, também se inspiraram no pensamento do antigo bispo africano, embora recusando certos aspectos radicais, como a predestinação ou a negação absoluta do valor das obras humanas. No século XVII, o prestígio e a autoridade de Agostinho foram incontestados em França, onde foi constantemente invocado como uma autoridade infalível. Inspirou todos os movimentos espirituais do tempo, como o Oratório do cardeal Bérulle. Em 1640, foi publicado o Augustinus, um grosso livro póstumo de Jansénio, bispo de Ypres, na Flandres, que retomava os argumentos de Agostinho contra os pelagianos e propugnava uma teologia agostiniana radical. A Igreja de França dividiu-se entre os partidários e os adversários do jansenismo. O mosteiro feminino de Port-Royal-des-Champs torna-se o centro do movimento. O Augustinus foi condenado sucessivamente por vários papas. A partir de 1665, o apoio que muitos parlamentares lhe deram tornou-o suspeito aos olhos de Luís XIV, que mandou destruir Port-Royal em 1710. Um dos argumentos favoritos apresentados em sua defesa pelos jansenistas era o de que apenas exprimiam a doutrina de Agostinho e que os seus adversários, até mesmo os papas, só podiam estar em erro quando atacavam o ilustre doutor. No século XVIII, a grande época da Europa agostiniana já pertencia ao passado. O jansenismo estava em declínio total: não passava de uma mistura de rigorismo moral e de oposição política. Por seu lado, os teólogos protestantes abandonavam cada vez mais o agostinismo estrito dos seus antecessores. Sobretudo, constata-se uma rejeição do agostinismo na Europa das Luzes. A idéia de uma natureza humana irremediavelmente corrompida e incapaz de perfeição chocava claramente alguns filósofos, convencidos da possibilidade de um progresso ilimitado, tanto moral como intelectual. Jean-Jacques Rousseau elabora a sua teoria de um homem naturalmente bom, unicamente corrompido pela sociedade, talvez como 104

reacção contra o calvinismo em que tinha sido educado durante a sua juventude, em Genebra. Mais tarde, alguns românticos apreciaram muito vivamente a sensibilidade de Agostinho e o seu sentido trágico do destino humano, mas este interesse mantém-se superficial. O destino do pensamento agostiniano pode parecer singular. Desde o triunfo do Islão, a sua recordação manteve-se oculta no seu próprio país, no qual Agostinho não teve nenhuma posteridade intelectual ou religiosa. Na Argélia actual, a ideologia oficial só considera o seu conflito com os hereges donatistas, vistos muito anacronicamente como os antepassados do nacionalismo argelino; nesta perspectiva, Agostinho é considerado um partidário do colonialismo! Olhando para tal e tamanho génio, filho de um país a que esteve profundamente ligado ao longo de toda a vida, esta atitude parece simultaneamente absurda e ridícula. Aqui, vê-se a profundidade da ruptura radical provocada pela islamização do Magrebe. Por isso, foi na Europa Ocidental, e não no Norte de África, que se copiaram, ao longo da Idade Média, os milhares de manuscritos que nos transmitiram as obras de Agostinho. Mas, embora ele tenha marcado mais fortemente do que nenhum outro a vida religiosa e intelectual do Ocidente europeu, foi também aqui que, desde o século XVIII, esta influência decaiu irremediavelmente: a ideologia do Ocidente moderno exalta o humanismo, a crença no progresso e na

Page 66: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

perfectibilidade da natureza humana. Essa visão do mundo e da humanidade inscreve-se resolutamente contra o teocentrismo agostiniano e a sua concepção pessimista ou, talvez, simplesmente lúcida, de uma natureza humana irremediavelmente propensa ao mal. Todavia, embora o agostinismo, enquanto sistema doutrinal, pareça hoje pouco estimado, verifica-se que os nossos contemporâneos continuam sensíveis à profundidade excepcional da análise psicológica de Agostinho: assim, ele foi o primeiro a descobrir, no fundo do nosso ser, as forças obscuras que, independentemente da consciência clara e do livre exercício da vontade, podem determinar o nosso comportamento - aquilo a que, depois, Freud veio a chamar o subconsciente. Finalmente, lembremos que a sua visão pessimista da natureza humana não impediu Agostinho de afirmar o lugar essencial da inteligência em toda a reflexão, religiosa ou outra. A razão e a inteligência são dons de Deus que devem estar sempre activos: nada lhe é mais estranho do que uma religião obscurantista. Dizia ele que é necessário procurar para encontrar e encontrar para procurar - magnífica definição, não só da busca de Deus, mas também de todo o esforço intelectual. Igualmente, toda a filosofia permanecerá para sempre devedora da reflexão agostiniana sobre o tempo e a memória. Por fim, alguns espíritos religiosos continuam profundamente marcados pela espiritualidade de Agostinho, em particular a sua visão do frente a frente na interioridade do coração, entre a alma e o seu Criador, "mais íntima de mim mesmo que eu próprio". Último paradoxo: é no mundo muçulmano que se encontra hoje a fidelidade mais explícita a princípios que foram 105

agostinianos antes de serem islâmicos: a afirmação sem concessão da transcendência divina absoluta, a aceitação pacífica da vontade de Deus e a expectativa da salvação operada só pela misericórdia. Se se chegasse a estabelecer um diálogo religioso sereno e desapaixonado entre as duas margens do Mediterrâneo, o pensamento do antigo doutor cristão africano talvez pudesse servir de traço de união. Claude Lepelley 106

VII

ANUNCIAR O EVANGELHO "ATÉ AOS CONFINS DA TERRA"

O anúncio da Boa-Nova (Evangelho) "até aos confins da Terra" é um elemento constitutivo do cristianismo, tendo Jesus enviado os seus apóstolos em missão dizendo-lhes: "Ide..., fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19). Uma tradição já atestada no século II e retomada pelos historiadores da Igreja (Eusébio de Cesareia no início do século IV, Rufino de Aquileia no início do século V) verificava a existência de uma partilha entre os apóstolos da terra a evangelizar. Durante muito tempo, isso validou a pretensão de numerosas igrejas de ter um apóstolo como fundador e a inscrever-se na sucessão (diadoché) apostólica directa. Embora, inicialmente, a expansão do

Page 67: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

cristianismo se tenha feito no Império Romano e nas regiões orientais vizinhas, para além delas havia muitos mais povos a evangelizar; desde o século III, alguns deles começaram a penetrar no Império. No decurso do século IV e do V, pouco a pouco, os cristãos foram tomando consciência do facto de a Igreja não poder limitar-se ao Império Romano, mesmo que este se tivesse tornado oficialmente cristão. Françoise Thelamon 107

A cristianização da bacia mediterrânica no século v nas fronteiras do Império Romano

A 9 de Abril de 423, o imperador da parte oriental do Império, Teodósio II, dirigiu ao prefeito do pretório Asclepiódoto ou Asclepíades uma lei em que, entre outras coisas, dispunha que "os pagãos que ainda existem, embora pensemos que já não resta nenhum, sejam tratados segundo as prescrições [leis] já promulgadas" (Código teodosiano, XVI, 10, 22). Cerca de trinta anos depois do encerramento dos templos ordenado em todo o Império por Teodósio I, o seu sucessor considerava de maneira muito ambígua o efeito desta medida. À negação ideológica da existência de adeptos dos cultos politeístas opunha-se a realidade quotidiana da sua presença, mesmo que as suas actividades culturais já não pudessem realizar-se em público e, com medo de uma legislação cada vez mais repressiva, tivessem de procurar a protecção das casas particulares, das margens ou dos lugares mais remotos do mundo romano. O historiador contemporâneo não consegue medir quantitativamente e em momentos sucessivos a amplitude desta adesão, condenada - salvo excepções - ao segredo nos territórios dos "cristianíssimos imperadores". Conseqüentemente, não é possível avaliar o ritmo da passagem dos "pagãos" para o cristianismo, e as "conversões" de judeus, às vezes em massa, como em Mahón, na ilha de Minorca, em Fevereiro de 418, continuam claramente minoritárias. Certamente, Agostinho (Comentário dos Salmos, VII, 7, XXXIX, I, etc.) denuncia freqüentemente - não é o único na viragem do século IV - "o crescimento da hipocrisia" nas fileiras dos cristãos ou, por outras palavras, o crescimento das ligações simuladas, mas já Orígenes, século e meio antes, emprega uma linguagem similar (Comentário sobre Mateus, sermão 19,20, 24). Por isso, e em geral, a história da progressão numérica do cristianismo no Império Romano depende das impressões de leitura e da convicção mais ou menos bem fundamentada do historiador que a estuda, mesmo que seja o resultado de tentativas de "modelização" fundadas em bases estatísticas tão evanescentes quanto controversas. 108

A cristianização crescente do espaço e do tempo, quer dizer, a saturação progressiva em referências cristãs destas duas dimensões essenciais da vida quotidiana, é inegável e consolida o peso das leis que proscrevem o "paganismo" e limitam, a partir do século V, o exercício do culto judaico. Mas as transferências de adesão religiosa, especialmente as "conversões ao cristianismo", não estão de modo nenhum documentadas com pormenor a não ser em certos retratos de grupo, como os "Ismaelitas" (quer dizer, populações árabes) junto da coluna de Simeão, o Estilha, segundo o testemunho de Teodoreto de Cirro (História Filoteia, XXVI, 13-16) ou os autobiográficos de Justino mártir a Arnóbio ou de Agostinho, que é difícil ordenar cronologicamente. Desde então, a tradição historiográfica tratou da "conversão dos povos" em

Page 68: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

narrativas leves tão vastas quanto imprecisas ou do "itinerário de uma alma", investigado com todos os recursos da psicologia moderna aplicada aos textos antigos. São numerosas as tentativas de realçar certos mecanismos sócio-históricos de "conversão ao cristianismo". Mas, freqüentemente, transformam-se em grandes textos com visão explicativa que, mesmo libertos da sombra da Providência, têm dificuldade em articular efeitos locais e causas gerais, porque estes relatos baseiam-se na determinação de pressupostas capacidades de atracção das comunidades cristãs e da(s) sua(s) mensagem(ns) - por exemplo, as práticas assistenciais e a sua justificação teórica - ou, numa perspectiva que, em última análise, se reduz à apologética cristã, e no realce de fraquezas também pressupostas pelos politeísmos tradicionais. Isto é prova, se fosse necessária, da dificuldade de conciliar o pormenor - a "conversão" de um indivíduo - com o universal - a cristianização de uma sociedade. Estas considerações preliminares convidam-nos a entrar no fenómeno das "conversões" ao cristianismo de modo mais circunscrito, centrando-nos no exame dos motivos de adesão explicitamente assinaláveis nas fontes, sem procurar distinguir entre "conversões sinceras" e "conversões interessadas". A neutralidade axiológica do historiador impõe que renuncie a essa discriminação absolutamente inoperante. Ela faz com que só se valorizem as informações disponíveis sobre o que determina as transferências de fidelidade religiosa, num tempo em que desapareceu a menção de pregadores itinerantes cristãos no Império Romano. De facto, a difusão do cristianismo sobre o modelo da missão paulina tinha-se tornado, no essencial, não só um esquema literário que teve muito êxito na literatura apócrifa dos Actos dos Apóstolos, como também o apanágio de Mani e dos seus discípulos. Esta investigação terminou numa enumeração de factores variados cujo entrelaçamento, hoje, nos impede de classificar por ordem de importância as influências familiares, a imitação dos poderosos - "se determinado nobre se tornar cristão, ninguém permanecerá pagão" (Agostinho, Comentários dos Salmos, LIV, 13) - e, em particular, do príncipe, a vontade de obter uma vantagem material ou de se mostrar, através do medo da coacção ou até do exercício da violência como em Mahón, os dons recebidos à 109

maneira de caridade, os milagres e os sonhos, as discussões com familiares, bispos ou monges, as influências entre amigos, a leitura de livros, a pregação e, mais em geral, as artes da palavra, etc. Também se deverá realçar os factores de resistência à "conversão" - determinado factor podia influenciar em sentidos diferentes: tradições familiares, uma certa consciência de classe, um apego ideológico (como é o caso dos neoplatónicos de Atenas, como Proclo), etc. Fosse qual fosse o nexo dos motivos que conduziam à inscrição nas fileiras dos catecúmenos e a duração do processo gradual de assimilação das normas e das crenças então consideradas requeridas a um cristão, aderir ao cristianismo significava ingressar numa comunidade. Esta dimensão ordinariamente comunitária do facto cristão na Antiguidade tardia e, conseqüentemente, a importância crescente da caracterização religiosa na definição de uma identidade social, aparecem com tanto mais evidência quanto o catecúmeno e o baptizado são incessantemente chamados não só a distinguir de um ponto de vista intelectual a "ortodoxia" da "heresia", mas também a diferenciar, numa perspectiva prática, os grupos que professavam o cristianismo. Desde então, uma primeira avaliação da densidade da presença cristã no mundo romano pode fundir-se com a cartografia tradicional dos bispos confirmados nas diversas épocas. Os progressos das investigações prosopográficas permitem completar as listas

Page 69: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

episcopais e, por exemplo, calcular que, no início do século V, seriam quatrocentos os bispos donatistas no Norte de África, enquanto haveria uns seiscentos bispos "católicos" (antidonatistas), tendo em conta o número de dioceses com dois titulares antagonistas. Em meados do século v, existiriam na Gália entre setenta a oitenta sés/sedes episcopais, mais ou menos o mesmo número que na Itália dessa época. O Egipto possui uma centena de bispados; na diocese civil da Ásia, quer dizer, na metade ocidental da Ásia Menor, há cerca de duzentas dioceses cristãs. Na determinação destes dados numéricos, as listas das presenças dos bispos (ou dos seus representantes) nas actas dos concílios ou sínodos - os dois termos, o primeiro latino e o segundo grego, são então sinónimos - desempenham um papel decisivo. Aparecida no fim do século II, a instituição conciliar, que consiste na reunião de chefes da Igreja numa base geográfica mais ou menos alargada para debaterem os problemas com que se defrontavam, conheceu um começo pujante. Os imperadores, desde Constantino e dos concílios de Aries (314) e de Niceia (325), apropriaram-se deles para tentar dirimir e sanar os conflitos que dilaceravam o mundo cristão. Paralelamente, progrediu uma certa hierarquização das sés episcopais, e os bispos, essencialmente orientais, reunidos em Niceia, ratificaram a preeminência do bispo de Alexandria sobre todo o Egipto e do de Roma sobre a Itália central e meridional - a quem, pouco depois, começaram a chamar "arcebispos". Por outro lado, decidiram criar em cada província civil uma sede metropolitana, cujo titular seria encarregado de velar pelas 110

eleições episcopais em todo o seu território e de convocar duas vezes por ano os seus sufragâneos para um concílio provincial. A difusão do sistema dos metropolitas, primeiro no Oriente e depois no Ocidente, assegurou uma estruturação mais firme da Igreja imperial. No Concílio de Calcedónia (451) apareceu a noção de "patriarcado" que só começou a ganhar toda a sua importância a partir do reinado de Justiniano (527-565) com a "pentarquia": Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém - a "Antiga" e a "Nova" Roma disputavam o seu primado sobre a Igreja imperial. O vigor desta organização eclesiástica, muito prejudicada ao longo do século V pelas "invasões bárbaras", especialmente em África e na Península Ibérica, não pode esconder a densidade irregular da rede episcopal nas fronteiras do Império Romano. O contraste pode ser grande, não somente à escala regional, por exemplo, entre a parte oriental do Norte de África e as suas costas ocidentais, mas também à escala micro-regional, como o prova o caso italiano, ou mesmo a nível local, onde uma cidade como Edessa largamente cristianizada pode opor-se a um bastião dos cultos pagãos como Harran. Além do mais, a importância não somente territorial, mas também demográfica de uma sé episcopal pode variar consideravelmente, embora, na ausência de dados sólidos sobre o povoamento, convenha renunciar a toda a cartografia do fenómeno da progressão numérica do cristianismo para privilegiar análises micro-regionais que façam jus a uma cristianização muito esporádica. Michel-Yves Perrin 111

Povos cristãos nas fronteiras do Império Romano

Page 70: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Ao atribuir aos apóstolos Tadeu e Tomé a evangelização da Me-sopotâmia (em particular, de Edessa) e, até, da índia, apercebemo-nos da existência de comunidades cristãs testemunhadas na segunda metade do século II.

Uma Igreja da Pérsia

A dinastia persa dos Sassânidas, que então assumiu o controlo do Império Parto, fortalece a religião nacional, o masdeísmo, enquanto as vitórias do rei Shabuhr I (240-272) sobre o Império Romano provocaram a deportação em várias regiões do Império Persa, da Mesopotâmia ao Irão, de cristãos da Ásia Menor e da Síria, perseguidos depois de terem sido tolerados. A política normal de tolerância na primeira metade do século IV permite o desenvolvimento da Igreja da Pérsia, tendo um dos seus bispos participado no Concílio de Niceia em 325. Desde o fim do século III, o bispo de Selêucia-Ctésifon tinha procurado estabelecer a hegemonia da sua sede sobre todas as igrejas do Império Sassânida, com grande prejuízo dos seus colegas que tinham apelado para a arbitragem de bispos do Império Romano. Por isso, dos confins do Império Romano ao Golfo Pérsico, existem numerosas comunidades, dotadas com um bispo, nas quais a presença de cristãos foi provada a leste e a norte até ao mar Cáspio; há cristãos em toda a sociedade, mesmo na corte, assim como ascetas solitários e monges a viver em comunidades. A retoma das hostilidades entre persas e romanos em 338 foi, sem dúvida, juntamente com a hostilidade dos magos que tinham reformado a religião nacional, uma das causas da mudança de política do imperador Shabuhr II (309-378), que, então, perseguiu os cristãos: foi o "grande 114

massacre" (340-383). Suspeitos de serem traidores do interior recebidos do inimigo romano, os cristãos foram vítimas de uma perseguição sangrenta que fez numerosos mártires. No início do século V, o rei Yazdgard I, preocupado com libertar-se da influência dos magos e aproximar-se do Império Romano, soltou os cristãos prisioneiros, autorizou a reconstrução das igrejas e a reunião de um Concílio em Selêucia-Ctésifon em Fevereiro de 410; organizou uma Igreja nacional reconhecida pelo Estado, com o bispo de Selêucia à sua frente, que, em breve, toma o título de catholicos, patriarca (em 424); adoptando as decisões do Concílio de Niceia, estabelecia a Igreja da Pérsia na comunidade da Igreja universal; mas, em 423-424, um sínodo decidiu sobre a sua autonomia disciplinar e doutrinal.

A Arménia: primeiro reino cristão

Reino independente nos confins do Império Romano e do Império Persa sassânida, a Arménia foi, no século IV, por influência de um e de outro, depois partilhada pelos dois (ca. 387): dois terços do território passaram para o protectorado persa conservando um rei, e a parte

Page 71: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ocidental foi praticamente anexada pelo Império Romano. As origens cristãs da Arménia são apenas conhecidas por meio de algumas fontes arménias evidentemente posteriores à invenção do alfabeto arménio pelo monge Machtots (Mesrop), por volta do ano 405. A origem siríaca da primeiríssima evangelização dos cantões meridionais próximos da Alta-Mesopotâmia, tradicionalmente ligados ao apóstolo Judas Tadeu, deixou vestígios no vocabulário religioso. Mas esta evangelização foi sobretudo obra de Gregório, o Iluminador, pregador de origem parta, oriundo da Capadócia: enfrentou o rei Tirídates IV (298-330), que, primeiro, mandou prendê-lo, e depois deixou que ele pregasse o cristianismo. Depois de ter regressado a Cesareia, onde foi ordenado bispo, em 314, baptizou o rei, convencido da inanidade do culto dos ídolos, e também toda a corte, o exército e todos os habitantes. Assim, o reino da Arménia tornou-se o primeiro Estado cristão. Os missionários gregos e sírios que acompanhavam Gregório introduziram novos convertidos - filhos dos antigos sacerdotes dos cultos pagãos que herdaram domínios anteriormente devolvidos a seus pais - com a intenção concreta de formar o clero cristão; por ordem do rei, os templos tinham sido destruídos e substituídos por igrejas. Tirídates não queria mudar nem as leis fixadas pelo costume nem as estruturas do seu reino; a conversão ao cristianismo fortaleceu a coesão. Concedeu a Gregório e aos seus descendentes os títulos de sumo sacerdote e de bispo principal, juiz supremo do reino e protector dos pobres, funções anteriormente exercidas pelo chefe dos sacerdotes pagãos. A Arménia conheceu as mesmas querelas doutrinárias que o Império Romano: os bispos permaneceram fiéis à lei definida pelo 115

Concílio de Niceia, mas os soberanos alinharam geralmente com as escolhas doutrinais dos imperadores, tornando-se fonte de conflitos. Em meados do século IV, o bisneto de Gregório, Nerses Magno, organizou a Igreja da Arménia; também criou fundações caridosas e introduziu o monaquismo. Os seus sucessores já não foram ordenados em Cesareia; a partir de 373, a Igreja arménia tornou-se autocéfala. Depois da partilha da Arménia, ela teve de enfrentar a hostilidade do conquistador persa. Enquanto isso, o neto de Nerses, Sahak (387-438), último descendente de Gregório, foi nomeado arcebispo, mas a sé episcopal foi transferida para junto da residência real; por morte de Sahak, o arcebispado tornou-se electivo. Protector de Machtots, Sahak encorajou o desenvolvimento de uma literatura arménia: a Bíblia começou a ser traduzida para arménio antes de 407, os livros litúrgicos também o foram e, depois, numerosas obras dos Padres gregos e siríacos; foi o fundamento de uma cultura arménia cristã. Machtots obtém do imperador Teodósio II o direito de ensinar o alfabeto arménio também do lado bizantino da fronteira, permitindo assim aos arménios destas regiões salvaguardar a sua identidade, a sua língua e a sua cultura. Em meados do século V, os cristãos da Arménia foram duramente perseguidos pelo poder persa: a abjuração simulada dos dinastas não foi suficiente; alguns magos foram para os meios rurais, perseguiram os presbíteros e obrigaram os camponeses a alimentar o fogo dos altares pagãos. Estalou a revolta; os arménios foram vencidos por um exército mais forte (Junho de 451); o seu chefe Vardan Mamikonian e os duzentos e oitenta príncipes que tinham perecido com ele foram venerados sob o nome de Santos de Vardanank. Os persas suspenderam durante algum tempo as conversões forçadas, mas as perseguições foram retomadas por diversas vezes nos séculos V e VI, sem jamais vencerem a resistência do cristianismo dos arménios.

Page 72: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A conversão da Geórgia

Apesar de uma tradição atribuir ao apóstolo André a evangelização da Geórgia ocidental, ignoram-se os seus inícios; um bispo de Pitionte, no mar Negro, estava presente no Concílio de Niceia e foram encontrados vestígios de igrejas do século V. O Sul da região e o Leste (Azerbaijão), e também a Albânia foram evangelizados por missionários enviados por Gregório, o Iluminador, e por outros oriundos da Síria. Mas foi nos primeiros decénios do século IV, sob Constantino ou pouco depois da sua morte, em 337 ou 338, que a Ibéria do Cáucaso (Geórgia central e oriental) [de onde, possivelmente, vieram os antepassados dos iberos da península do Sudoeste europeu] se converteu ao cristianismo. Os georgianos chamam Kartli a este reino cuja capital era Mtskheta (a oeste de Tíflis, actual Tbilissi). A sua sorte estava 116

ligada às lutas entre os romanos e os persas. No início do século IV, a Geórgia está sob o protectorado dos romanos, que nomeiam o rei. Como as fontes escritas georgianas são todas muito posteriores, a relação escrita mais antiga da conversão dos iberos do Cáucaso foi redigida em latim, em 402-403, pelo historiador Rufino de Aquileia, segundo o testemunho do príncipe ibero Bacurius (Bacur), então oficial no exército romano: uma mulher "cativa" - entenda-se "cativa de Deus" ou "cativa de Cristo" e não "prisioneira de guerra" - revela o nome do deus que ela venera e que realiza curas por seu intermédio: Cristo. A rainha, depois o rei e, através deles, o conjunto do povo converteram-se. A "cativa" ensina os ritos do culto e a maneira de construir uma igreja, mas foi só depois de ela ter passado uma noite em oração que uma coluna que ficara suspensa no ar se colocou por si mesma no lugar. O nome de "Coluna viva", dado mais tarde à catedral de Mtskheta, sob a qual foram encontrados os vestígios da pequena igreja de madeira do século IV, perpetua a recordação deste milagre, rito de fundação. A conversão ao cristianismo era também uma escolha política que fortalecia os laços com o Império de Constantino (ou dos seus filhos) face aos persas. Segundo a tradição georgiana, Nino, a "Santa Mulher", teria vindo da Capadócia durante o reinado do rei Mirhian que pediu padres a Constantino. De facto, os primeiros bispos foram de origem grega e a Igreja da Ibéria do Cáucaso considerava-se dependente de Antioquia, onde o seu catholicos foi consagrado no momento em que ela se constituiu como Igreja nacional, na segunda metade do século V (467?). No princípio do século V, a criação de uma escrita nacional facilita a evangelização, a elaboração da liturgia e o aparecimento de uma literatura cristã. Entretanto, enquanto a planície é evangelizada e os persas tentam impor o masdeísmo quando controlam a Ibéria, o sistema religioso politeísta mantém-se longamente nos vales das montanhas do Cáucaso.

A introdução do cristianismo na Etiópia

Page 73: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Deste modo, é a Rufino de Aquileia que se deve o relato mais antigo da introdução do cristianismo no reino de Axum (Etiópia) a que chama índia ulterior. No século IV, Axum era um Estado poderoso cujo rei possuía o título de "negus" e de "rei dos reis". Inscrições em língua e escrita etíopes (gueza) e sul-arábicas testemunham e falam de um rei Ezana que parecia já não exercer a suserania real do outro lado do Mar Vermelho, mas que empreende campanhas vitoriosas na África, que ele começa por agradecer a vários deuses e, depois, a um só chamado "Senhor do céu". Ora, segundo o testemunho de um deles, Rufino relata que dois jovens cristãos originários de Tiro, feitos prisioneiros durante uma viagem, haviam entrado ao serviço do rei do país; pouco depois, o mais brilhante, Frumentius, dirige a chancelaria e, por morte do rei, desempenha o papel de regente junto da rainha 117

e do seu jovem filho. Dá aos negociantes romanos de passagem a possibilidade de construírem igrejas e favorece um início de evangelização da população. Quando o príncipe se torna rei, Frumentius vai a Alexandria, por volta de 330. No regresso, prega com sucesso a fé definida no Concílio de Niceia, como o confirma, em 356, uma carta do imperador Constancio II aos soberanos de Axum, Ezana e Sazana, o que evidentemente não implica que sejam cristãos. As fontes etíopes, todas tardias, retomam o relato de Rufino e colocam no reinado destes dois reis a acção de Fremenatos, primeiro patriarca da Etiópia, venerado como Abba Salama, o "Revelador da luz". Por fim, numa inscrição em grego, de data incerta, um rei Ezana diz-se "servo de Cristo", cuja divindade proclama e afirma a sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Em finais do século V, alguns monges prosseguem a evangelização e desenvolvem o monaquismo, mas a Igreja da Etiópia continua em comunhão com Alexandria. Ao escolher fazer o ponto da situação destes dois casos de expansão do cristianismo em direcção ao Cáucaso e à índia ulterior situados nos extremos do mundo, Rufino mostra que, no tempo de Constantino, a expansão do cristianismo prossegue "até aos confins da Terra", inscrevendo na continuidade dos tempos apostólicos a época do primeiro soberano romano cristão, considerado o décimo terceiro apóstolo. Françoise Thelamon 118

Bárbaros cristãos, dentro e fora do Império Romano

Os bárbaros - isto é, por definição, os povos que não falavam nem latim nem grego - sempre tinham cercado e ameaçado o Império Romano, que se protegia deles graças a uma fronteira militarizada contínua, o limes, o limite. No entanto, desde finais do século III, a crise que corroía o mundo romano tornou os custos desta defesa difíceis de assegurar. A barreira tornou-se cada vez mais permeável, mas o cristianismo ganhou com isso novas ocasiões para se difundir entre os povos vizinhos. É verdade que, havia muito tempo, Roma fazia uma política de sedução junto dos bárbaros mais próximos. Oferecendo-lhes algum dinheiro, os imperadores uniam estas nações belicosas mas economicamente vulneráveis, que se fixavam junto das fronteiras, de modo a criar uma barreira protectora. Estas populações, mais ou

Page 74: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

menos sedentarizadas, abriam-se às influências culturais dos seus poderosos protectores. Ocasionalmente, o cristianismo aproveitava estas aberturas. Assim, no Norte da Arábia, uma tribo de sarracenos aliada de Roma converteu-se desde os anos 370. Esta instalação dos povos clientes romanos nas fronteiras não bastou para travar a crise profunda que o Império vivia e cuja causa principal era provavelmente a queda da demografia. Por isso, para repovoar o mundo romano, os dirigentes dos séculos IV e V permitiram que bárbaros entrassem no seu território. Bastantes deles foram contratados para um exército que não conseguia encontrar recrutas entre os cidadãos. Alguns deles tiveram belas carreiras: a maior parte dos grandes generais do Império Tardio, como Estílico ou Estilicão [em latim, Flavius Stilicho], Bauto ou Arbogasto foram bárbaros. Embora, em geral, estes homens tenham permanecido pagãos, os seus filhos converteram-se ao cristianismo e casaram-se com membros das maiores famílias romanas. Outro bárbaros, em grupos inteiros, foram instalados nas províncias despovoadas para as fortalecer. Assim aconteceu com diversos povos chamados "germânicos" que habitavam a leste do Reno e a norte do Danúbio 119

e foram arrastados para o Império pelos fluxos migratórios oriundos da Ásia central. Muitas vezes, era a fome que os levava a entrar no Império, não para pilhá-lo, mas para procurar a sua protecção. Quando, então, descobriam o cristianismo, as suas reacções à nova religião dependiam bastante das relações complexas que mantinham com os imperadores. Nesta perspectiva, basta o destino dos visigodos para resumir o processo de evangelização dos bárbaros. Em meados do século IV, este antigo povo germânico vivia no baixo vale do Danúbio, quando recebeu a visita de Úlfila, um bispo capadócio, que lhe pregou o cristianismo e lhe traduziu a Bíblia em língua gótica. Ora, este Úlfila tinha participado em 360 no Concílio de Constantinopla, em que triunfara a profissão de fé proposta pelo imperador Constâncio II. Estabelecido no seu terreno de missão, Úlfila ensinou aos visigodos o único modelo trinitário que conhecia: a doutrina homoiana, que apresentava o Filho como ligeiramente subordinado ao Pai e que os seus opositores qualificavam como arianismo disfarçado. E assim, por mero acaso, acabava de nascer o "arianismo germânico". Apesar do ardor de Úlfila, o sucesso do cristianismo não foi imediato. Entre 369 e 372, um dos chefes visigodos, Atanarico, lançou uma perseguição, provavelmente porque a nova religião ameaçava as antigas crenças tribais em torno das quais se fundava a identidade gótica. Tudo mudou quando o poder dos visigodos decaiu e o seu território foi invadido pelos Hunos. Em 376, o chefe Fritigerno foi obrigado a negociar a entrada do seu povo no território romano. Em sinal de boa vontade, converteu-se ao cristianismo homoiano, que, então, era a religião oficial do Império Romano do Oriente. No entanto, o imperador Valente não teve consideração alguma pelos refugiados. Humilhou os chefes godos e provocou a fome entre os seus povos. Num movimento de desespero, os bárbaros revoltaram-se. Desastradamente, Valente tentou esmagá-los, subestimando a sua força. Assim fazendo, arrastou o exército romano para um dos piores desastres da sua história, a batalha de Andrinopla (378), em que ele próprio encontrou a morte. O traumatismo causado pela derrota selou o destino da doutrina homoiana no Império, onde se considerava que a morte do imperador tinha sido um castigo divino punindo a sua heresia. Em 380, o novo imperador, Teodósio I, pôde sem dificuldade impor o regresso ao catolicismo, doutrina do Concílio de Niceia (325). Por seu lado, os visigodos continuaram a vaguear através do Império, ora como aliados, ora como inimigos. Mantendo-se fiéis à doutrina pregada por Úlfila, foram

Page 75: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

descobrindo pouco a pouco que os romanos já não professavam o mesmo modelo trinitário. E, em vez de se converterem ao catolicismo, preferiram continuar "arianos". De facto, embora sofressem uma forte romanização no seu modo de vida, a diferença religiosa permitia-lhes proteger a sua identidade étnica. Por isso, enquanto a língua gótica ia sendo cada vez menos usada no dia-a-dia em proveito do latim, continuava a ser a língua litúrgica da Igreja ariana. 120

Embora o cristianismo dos visigodos tenha sido fruto do seu oportunismo político, nem por isso era menos sincero. Quando, em 410, fizeram o saque de Roma, respeitaram o direito de asilo das basílicas. Foi preciso esperar por 418 para que, finalmente, o Império lhes confiasse uma tarefa digna e remunerada segundo as suas expectativas. Com efeito, receberam a missão de defender as províncias do Sul da Gália de todos os outros bárbaros. Continuando senhores deste imenso território aquando do desaparecimento do último imperador do Ocidente, os visigodos fizeram dele o seu reino. Nas regiões que controlavam, os visigodos implantaram um clero ariano e construíram basílicas heréticas. Mas também difundiram a sua fé entre outros povos germânicos. Os ostrogodos, que lhes eram aparentados, tinham sido convertidos desde a época da sua instalação comum nas margens do Danúbio. Os seus reis conservaram esta fé depois de terem conquistado a Itália em 493. Do mesmo modo, os vândalos aceitaram a doutrina ariana, em circunstâncias mal precisas, mas em data muito precoce; o seu reino de África tornou-se uma terra de heresia. Em 466, a diplomacia conquistadora dos soberanos visigodos alcança também a conversão ao arianismo dos suevos instalados no Noroeste das Hispânias. Quanto aos burgúndios, fixados no Reno médio, tinham decidido converter-se ao catolicismo durante os anos 430, pensando que, assim, beneficiariam do apoio de Roma contra os hunos que ameaçavam as suas fronteiras. Mas ficaram cruelmente decepcionados. Por isso, quando, nos anos 470, voltaram a formar um reino independente ao redor de Lião, preferiram converter-se à religião dos seus poderosos aliados visigodos. Em resumo, por volta do ano 500, no conjunto do Ocidente, o arianismo germânico tornara-se a "lei dos godos", símbolo da sua supremacia. Contudo e paradoxalmente,'as Igrejas arianas abstinham-se de todo o proselitismo em relação às populações locais. Na verdade, a única razão de ser da heresia - baseada numa subtileza teológica, cuja compreensão escapava a muitos - era manter nos novos reinos uma distinção entre "romanos" e "bárbaros". Para que esta estratégia de distinção funcionasse, ainda faltava que os romanos não se sentissem tentados a converter-se ao arianismo. Isso explica que os reis arianos, com a notável excepção dos vândalos, fossem extremamente tolerantes com os seus súbditos católicos. Esta especificidade do arianismo germânico explica igualmente o seu fracasso entre os povos bárbaros que tinham escolhido aproximar-se das populações romanas. Foi o caso dos francos, que se converteram em massa ao catolicismo depois do baptismo do seu rei Clóvis, por volta do ano 500. Então, jogaram com a sua ortodoxia para se aliarem estreitamente às elites galo-romanas, nomeadamente com o episcopado. Estes apoios permitiram-lhes derrubar os visigodos da Aquitânia, em 507 (batalha de Vouillé). Desde então, o arianismo começou a recuar em toda a parte. Em 516, os burgúndios proclamaram a igualdade das três pessoas divinas na Trindade, 121

Page 76: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

a pedido do seu rei Segismundo. Em meados do século VI, foi a vez de os reinos vândalo e ostrogodo desaparecerem, vencidos pelos exércitos bizantinos. Então, o imperador Justiniano impôs a doutrina de Niceia no Norte de África e na Itália reconquistados. Os visigodos, voltando-se para as Hispânias, continuaram a ser durante muito tempo um dos últimos bastiões do arianismo. Contudo, em 589, o seu rei Recaredo ordenou a conversão do conjunto do seu povo à fé católica. Tendo compreendido que as tensões confessionais minavam o seu reino, preferira sacrificar a religião identitária dos godos. Quando Gregório Magno se tornou papa em 590, o catolicismo já triunfava na maior parte dos povos bárbaros instalados nas antigas províncias do Império. Só os lombardos, senhores do Norte de Itália desde 568, se mantiveram fiéis, ainda por alguns decénios (até ao início do século VII) a um arianismo germânico cada vez mais anacrónico. Bruno Dumézil 122

SEGUNDA PARTE

A IDADE MÉDIA NEM LENDA NEGRA NEM LENDA DOURADA. (séculos V-XV)

A primeira metade deste período com uma duração de dez séculos corresponde a um tempo de consolidação dos quadros locais e centrais. A obra missionária prosseguiu, alargando os espaços cristianizados. Os acasos da história puseram frente a frente as metrópoles de Constantinopla e de Roma, que encarnaram duas formas de cristianismo a que não se chamavam "ortodoxa" e "católica", mas "grega" e "latina". No Ocidente, para aprofundar a cristianização da sociedade e dissociar o espiritual do temporal, o papado erigiu-se como potência religiosa soberana. Mas o movimento não fez nascer uma teocracia: coexistiam dois direitos, o direito civil e o direito da Igreja (direito canónico), ambos muito devedores ao direito romano; tanto o Império como os reinos foram governados por príncipes e não pelo papa; e também nenhum soberano pôde aproveitar-se das prerrogativas sacerdotais. Distante da imagem de uma Idade Média rendida a uma submissão cega à autoridade da Igreja, observa-se que, depois do ano 1000, a penetração da mensagem cristã suscita fortes correntes de afirmação (cruzada) e de contestação ("heresia"). As segundas manifestam, antes de tudo, um anticlericalismo virulento, prova de que os espíritos podiam discernir as contradições entre o conteúdo da mensagem pregada e o exemplo dado; também deixam transparecer as dificuldades em receber uma religião da Encarnação. Independentemente do uso da coacção, que só tem uma época, a resposta mais pertinente esforçou-se por satisfazer as aspirações assim manifestadas. A multiplicação dos carismas religiosos contribuiu para isso, ilustrada pela criação de novas ordens, tanto contemplativas como hospitaleiras ou "mendicantes", atentas aos pobres e dedicadas à pregação. Deste modo, os regulares vieram apoiar, com o seu prestígio e a sua acção, a obra pastoral confiada aos seculares e que o período sistematizou no quadro da paróquia, criando para a designar a expressão "cura d'almas", ligada àquele que tinha essa responsabilidade, o "cura". No prolongamento de uma pastoral da responsabilidade

Page 77: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

individual em matéria de salvação, que valoriza a conversão até ao extremo fim da vida, nos antípodas de qualquer forma de predestinação - um conceito estranho à espiritualidade medieval, pelo menos até ao século XIV -, este período viu nascer, por iniciativa não só dos clérigos mas também 125

dos leigos, homens e mulheres, modalidades originais de vida religiosa, todas marcadas pela convicção de que a salvação não se ganha só e, simultaneamente, por uma individualização crescente: esta exploração das vias da interioridade deu origem a belas páginas espirituais e místicas. Catherine Vincent 126

CONSOLIDAÇÃO E EXPANSÃO

São Bento (+ ca. 547) Pai dos monges do Ocidente

Forma de renúncia por Deus praticada como solidão absoluta (eremitismo) ou em comunidade (cenobitismo), o monaquismo grego (do grego monachos, "solitário") aparece no século IV no Egipto, na Ásia Menor e, depois, no Ocidente. A partir do século VI,, a integração dos "renunciantes" na estrutura da Igreja latina é um factor de evolução essencial da sociedade cristã. Mas como estar só e, ao mesmo tempo, junto? Como santificar a comunidade no isolamento e retirado do mundo? São estas as questões-chave do monaquismo no Ocidente entre 500 e 1200.

São Bento e a regra beneditina

São Bento, considerado o "pai dos monges do Ocidente", é uma figura bastante obscura, de quem o papa Gregório I, Magno, (ca. 540-604) se fez arauto no segundo livro dos seus Diálogos. Nascido por volta de 490 em Núrsia, no Apenino Úmbrio, Itália, Bento pertence a uma família abastada. Enviado para Roma para receber uma educação à antiga, não tarda que o jovem Bento decida devotar-se à "douta ignorância" na solidão de uma gruta no Monte Subiaco. Funda uma dezena de pequenos mosteiros que acolhem descendentes da aristocracia romana, como os seus discípulos Amaro e Plácido. Cerca do ano 547, Bento e os seus companheiros transferem-se para o Monte Cassino, onde Bento morre, por volta de 547, e repousa em companhia da sua irmã Escolástica. Vinte anos mais tarde, o mosteiro é destruído pelos lombardos. Uma lenda deixada por longínquos discípulos de Bento instalados em Fleury, nas margens do rio Loire, pretende que as relíqüias do santo teriam sido fraudulentamente recolhidas 127

Page 78: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

no Monte Cassino no ano 670 para, depois, serem transportadas para a Gália, tornando-se Fleury, a partir de então, "Saint-Bênoit-sur-Loire". Para as necessidades da comunidade do Monte Cassino, Bento compôs uma regra que depende largamente dos usos anteriores consignados na "Regra do Mestre". Tanto para ele como para o seu modelo, trata-se de fixar da melhor maneira o modo de vida dos "irmãos" que, à imitação dos apóstolos, escolheram romper as ligações ao mundo (o parentesco carnal, o casamento, a rede dos amigos e das relações) para se juntarem a uma família espiritual antecipadora da comunidade dos santos no além. Num mundo que regride economicamente por causa do desmembramento do Império Romano, a regra de São Bento prescreve o trabalho manual para que o mosteiro viva, em autocracia, dos frutos da terra; além disso, outra tarefa manual, a cópia de manuscritos, oferece à comunidade todo o acesso necessário às "Letras", especialmente à Sagrada Escritura e aos seus comentários. Assim, o mosteiro beneditino é, simultaneamente, uma unidade de vida económica (muitas vezes, é o agente dinâmico e de vanguarda da vida dos campos) e um órgão cultural de importância essencial na sobrevivência e na renovação intelectuais do Ocidente durante a Alta Idade Média. O segundo objectivo da regra é oferecer aos irmãos uma imagem viva dos degraus da escada de perfeição que se eleva até ao Céu. Ela impõe a todos uma estrita organização do tempo, repartido entre o trabalho (cerca de seis horas); a oração, solitária ou colectiva no quadro do ofício divino - recitação dos salmos e leituras (Vidas de Santos, textos dos Padres da Igreja) a horas fixas, desde as vigílias às completas*; e a prática da lectio divina (leitura e meditação da Bíblia). Inicialmente, a regra de São Bento não era mais do que um texto entre muitos outros, numa abundância de regras que, no seio das "microcristandades" do Ocidente (Peter Brown), ensinavam diversos modos de renúncia. Tendo em conta estes modestos começos, como se explica o sucesso prodigioso do modelo beneditino? Essencialmente, dever-se-á ver nele um efeito indirecto da lenta política de unificação da Igreja latina. O papa Gregório Magno, que fora monge e devoto de Bento, envia uma pequena equipa de discípulos para evangelizar a Inglaterra. Foi por intermédio destes monges que a regra de São Bento foi adoptada nos grandes mosteiros anglo-saxónicos; no início do século VIII, outros missionários, agora insulares, regressam ao continente para evangelizar a Germânia e implantar lá o monaquismo beneditino. Desde então, os discípulos de São Bento ocupam um lugar de primeiro plano nesta frente pioneira de uma Igreja latina conquistadora. Tanto mais que os soberanos carolíngios

* As horas da oração são as seguintes, começando pela oração da alta madrugada: vigílias ou matinas, laudes, prima, tércia, sexta, nona, vésperas e completas (que correspondiam, mais ou menos, às duas/três, seis, nove, doze, quinze, dezoito horas e à hora do deitar ou recolher que, para a comunidade, era cedo). 128

decidem, no quadro do seu grande projecto do Império cristão, impor o tipo beneditino como modo de vida universal dos monges. Bento de Aniana (+ 821), conselheiro do imperador Luís, o Pio, em matéria religiosa, é o promotor de um verdadeiro aggiornamento (actualização) em matéria monástica, no termo do qual os irmãos reunidos em comunidade escolhem "uma só regra e um só costume": a regra de São Bento, mais ou menos adaptada em função das

Page 79: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

necessidades do tempo com a ajuda de "costumes", quer dizer, de disposições (modos de vida, usos litúrgicos) não previstas por São Bento.

O sacerdócio dos monges

A multiplicação dos costumes a partir do século IX é um bom índice da importância da sociedade cristã. Esta evolução um tanto paradoxal vai transformar aqueles que renunciaram ao mundo em engrenagens essenciais da vida em sociedade. De facto, o monaquismo torna-se, desde os anos 800, uma "ordem" perfeitamente integrada no serviço da Igreja e do poder político. Na repartição ideal das tarefas, definida pelo esquema carolíngio das três ordens funcionais (os que oram, os que combatem e os que trabalham), os monges integram-se na ordem de oração. No isolamento do claustro, a sua função é orar pela salvação dos cristãos vivos ou mortos. Na categoria destas "obras" contam-se, é claro, não só a oração, mas também o serviço do altar, especialmente importante para acompanhar os defuntos, nem suficientemente bons nem demasiado maus, que precisam do sufrágio dos vivos para se juntarem à comunidade dos santos. É, sem dúvida, relativamente ao modelo original dos beneditinos que se encontra o ponto de evolução mais importante. Na época de Bento, os irmãos são leigos, salvo raras excepções; no século IX, e mais ainda nos tempos seguintes, as comunidades contam cada vez mais com monges sacerdotes que celebram missas "especiais" ou "privadas", servindo os defuntos, os antigos membros da sua fraternidade e os familiares ou amigos da comunidade. Estes familiares e estes amigos, cujos nomes são muitas vezes inscritos nos livros de memória do mosteiro (necrológio e cartulário), dão uma boa idéia das ligações que a sociedade dos monges mantinha com o exterior, especialmente com as grandes famílias aristocráticas. Depois de terem sido instrumentos do poder público no tempo dos Carolíngios, os mosteiros e o controlo dos seus patrimónios tornam-se objecto de lutas de poder na época feudal. Em vez de nos deixarmos ofuscar perante o espectáculo de uma "Igreja nas mãos dos leigos"*, precisamos de compreender que as elites da Alta Idade Média constituem uma aristocracia,

* Fórmula do historiador Augustin Fliche, largamente usada para qualificar a situação anterior à reforma gregoriana e por ela combatida. 129

ao mesmo tempo leiga e eclesiástica, para quem o domínio sobre os homens e sobre a terra passa pelo controlo e pela posse dos mosteiros. O melhor exemplo deste tipo de integração na "ordem senhorial" é, sem dúvida alguma, oferecido pelos monges de Cluny.

Os senhores de Cluny (910-1150)

Page 80: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

O mosteiro de Cluny, no Mâconnais, foi fundado em 910 (ou 909) por Guilherme III, duque da Aquitânia e conde de Mâcon, chamado o Piedoso. Este grande príncipe renuncia a todo o direito sobre o estabelecimento e coloca o mosteiro directamente sob a protecção de Roma, de modo a assegurar a independência de Cluny em relação a qualquer poder temporal ou espiritual. Na lógica da acta de fundação, os papas Gregório V (998) e João XIX (1024) concordam imediatamente com a isenção concedida aos cluniacenses. Trata-se de um privilégio que, segundo modalidades diversas, liberta os monges de toda a ligação ao seu bispo de tutela, neste caso, o de Mâcon. É então que nasce verdadeiramente a Igreja cluniacense, uma rede bastante densa de abadias, priorados e subpriorados, directamente ligada à abadia-mãe (Cluny) e ao seu abade, que só responde diante do papa, vigário de Pedro e de Cristo. Ao mesmo tempo, a Igreja cluniacense integra-se e compromete-se profundamente na vida geral da Igreja latina, fornecendo a Roma numerosos quadros: padres, bispos, arcebispos, cardeais e até um papa, Urbano II. Num jogo de espelhos surpreendente, Cluny confunde-se com Roma, considerando-se uma miniatura do conjunto da Igreja. Nela se praticam todas as formas de vida consagrada: monaquismo, eremitismo e clausura estrita, tanto para homens como para mulheres. Além disso, o mosteiro borguinhão e as suas dependências funcionam como um imenso asilo aberto a todos os leigos, pobres e ricos, desejosos de retirar-se temporária ou definitivamente do mundo, sem contar os fiéis que pedem para ser acolhidos na comunidade na hora da morte. Esta imensa rede eclesiástica centrada no "mosteiro principal" (a própria Cluny) está profundamente implicada na sociedade feudal e na ordem senhorial. A viragem do ano 1000 representa, na França ocidental (parte oeste do antigo Império Carolíngio, na origem da França), uma fase de desagregação do poder real que permite o desenvolvimento sobretudo no Sul do reino, de senhorias independentes, laicas e eclesiásticas, entre as quais figura o mosteiro de Cluny. Os dois tipos de senhoria são concorrentes, embora estejam ligados pelo mesmo destino. Com efeito, as grandes famílias aristocráticas dotam Cluny de bens e, freqüentemente, possuem alguns dos seus membros na comunidade. A simbiose clero-aristocracia é constitutiva das estruturas de dominação social e política na idade feudal. Aliás, todos os abades de Cluny, do século X ao XII, saíram da pequena, média ou alta aristocracia. Para influenciar o comportamento, por vezes 130

violento, dos seus vizinhos castelões, os monges e grandes senhores de Cluny põem em cena, nos seus escritos, aristocratas leigos como modelos. O essencial deste modelo é elaborado desde muito cedo por Odon (879-942), segundo abade do mosteiro que faz um esboço do primeiro retrato de homem de armas cristão na biografia do conde Géraud d'Aurillac, prefiguração do "cavaleiro cristão", uma síntese do monge e do soldado, tal como no-la descreveria São Bernardo, dois séculos mais tarde. Dominique Iogna-Prat 131

Gregório Magno Um pastor à dimensão do Ocidente

Os catorze anos (590-604) do pontificado de Gregório Magno constituem um momento excepcional na história da Alta Idade Média. De facto, o papa deixou uma obra escrita imensa,

Page 81: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fonte importantíssima para todo o conhecimento da época. Também foi uma das maiores personagens activas deste tempo, à cabeça da Igreja romana, no quadro de um Império Romano já bizantino e de uma Europa ocidental herdeira da romanidade e transformada pelo desenvolvimento dos reinos romano-germânicos. Gregório nasceu por volta de 540 numa família da aristocracia romana ligada à Igreja. Na sua infância, conheceu as desgraças da guerra gótica* e o restabelecimento do poder imperial dirigido de Justiniano sobre Roma e a Itália. Foi prefeito da cidade e, depois, monge. Como Roma se encontrava sob a ameaça insistente dos lombardos, ele foi enviado a Constantinopla como representante oficial do papa junto do imperador. No regresso a Roma, encontrou a vida monástica e foi a seqüência de circunstâncias dramáticas - inundação, fome e epidemia de peste que provocou a morte do papa Pelágio II - que conduziu à sua eleição à sé romana. Gregório redigiu um comentário sobre o livro de Job (Moralia in Job) a pedido dos seus irmãos monges que o tinham acompanhado a Constantinopla. Desenvolve uma exegese fundada nos três sentidos da Escritura: literal, alegórico e moral. A letra do texto bíblico pode ser por si só uma lição moral. A alegoria consiste em reconhecer nas figuras do Antigo Testamento as verdades doutrinais reveladas pelo Novo e, antes de tudo, a pessoa de Cristo. Por fim, o sentido moral desenvolve o ensino da Escritura para o cristão e para a Igreja. O próprio título Moralia mostra o lugar dominante que Gregório concedia a esta dimensão da exegese, largamente ligada ao próprio

* Travada contra os ostrogodos em Itália de 535 a 554, no reinado de Justiniano, no quadro da "Reconquista", antes da implantação dos lombardos no território da península itálica. 132

contexto em que compôs o seu comentário. Gregório via em Job, o justo afligido por desgraças espantosas, uma figura de actualidade: a Igreja romana atravessava provas terríveis ligadas à guerra, causas de uma grave perturbação moral. Quando Gregório se tornou papa, já tinha desenvolvido uma reflexão orientada para a pastoral. Nomeadamente sobre o tema dos vícios e das virtudes, as Moralia inspiram-se fortemente na tradição monástica ocidental, umas das quais é a de João Cassiano. Mas elas transpõem a direcção dos irmãos que vivem no seio de uma comunidade monástica para a direcção das almas que formam o povo de Deus. Logo depois de eleito papa, Gregório redigiu a Regula Pastoralis (Regra Pastoral), em que examina como se deve aceder à função pastoral, como se deve conduzir-se nela e, sobretudo, como se deve pregar às várias categorias de fiéis. Mas ele não examina o acesso ao "governo das almas" apenas numa perspectiva jurídica: é a qualidade da vida moral e a intensidade da vida espiritual que devem qualificar o candidato à pregação e caracterizar o bispo em exercício. Além disso, a lista das dezenas de categorias de fiéis que constitui a maior parte deste tratado testemunha verdadeiramente um cuidado pastoral: Gregório procura tocar cada homem na sua realidade psicológica, social e moral. Sublinha nas suas Homilias que as suas ovelhas já receberam uma instrução cristã; mas, em contrapartida, têm uma necessidade urgente de exortação moral. Gregório utiliza uma técnica nova de exortação, o exemplam, um facto ou peripécia interessante, muitas vezes ligado ao culto de um santo, bem inserido na vida quotidiana, e que desperta a atenção dos ouvintes. Observa-se um cuidado análogo nos Diálogos, colectânea de vidas de santos. É verdade que o cerne dos Diálogos é o livro II,

Page 82: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

inteiramente consagrado à vida de São Bento, única fonte biográfica sobre o "pai dos monges do Ocidente" e em quem o monaquismo ocidental encontrou o seu modelo. Mas também se encontram nesta obra alguns santos "leigos" e monges que guiam fiéis leigos. A diferença de estilo entre os Diálogos, inclinados para o maravilhoso, mais "populares", e as Homilias sobre Ezequiel, orientadas para as significações espirituais da visão grandiosa do Templo de Jerusalém, é reveladora de uma exigência fundamental, longamente desenvolvida na Pastoral: o pastor não deve abandonar o cuidado das questões materiais na atenção que põe nas questões espirituais nem negligenciar as actividades espirituais quando se consagra às ocupações materiais. Temos um conhecimento bastante preciso da acção de Gregório graças às oitocentas e cinqüenta cartas que dele conservamos. A negligência do imperador obrigou-o a ocupar-se de questões militares na guerra entre o Império e os lombardos. Contra o parecer do exarco de Ravena, ele negoceia uma trégua com o rei dos lombardos, Agilulfo, e zanga-se com o imperador Maurício. Aliás, Gregório fustigava o emprego do adjectivo "ecuménico" (ou "universal") do patriarca de Constantinopla, quando "a 133

Europa" - num sentido moderno: é uma das primeiríssimas ocorrências da palavra - "era devastada pelos bárbaros". Estas devastações inspiravam a Gregório uma escatologia premente: o mundo inteiro desaba, o regresso de Cristo está próximo. Esta tensão escatológica levava-o também a uma acção de reorganização no plano material e administrativo. A Igreja romana possuía grandes domínios na Sicília e Gregório esforçou-se por obter deles receitas mais abundantes, velando pelos recursos dos camponeses: lutou contra a corrupção e as comissões dos intermediários. Ocupou-se da restauração de uma rede episcopal nos territórios colocados sob a jurisdição de Roma. Velou pelo bom andamento das eleições e sugeriu pessoalmente alguns candidatos. Face à existência de bispos negligentes ou corruptos, promoveu os mais dignos deles, freqüentemente saídos do seu próprio mosteiro romano. Em Roma, deu aos monges um lugar mais importante que antes. Além disso, o seu olhar voltou-se cada vez mais para o Ocidente "bárbaro". Durante a sua estada em Constantinopla, conviveu com Leandro de Sevilha, que, regressado às Hispânias, obtém, em 587, a conversão ao catolicismo de Recaredo, o rei dos visigodos até então ariano. Mais tarde, Isidoro, irmão de Leandro, bispo de Híspalis (Sevilha), sucedeu-lhe na sé episcopal. Para Leandro, a quem Gregório dedica as Moralia, o laço que une o papa e Isidoro (+ 636) é estreito, e a obra do segundo é largamente tributária da do primeiro no domínio moral e teológico. Na Itália, Gregório não se contentou com velar pela defesa de Roma e procurar as tréguas. Também trabalhou na conversão dos lombardos, que, para uns, eram pagãos, e, para outros, arianos, e ainda para outros, já católicos. Apoiou-se na esposa de Agilulfo, a rainha Teodolinda, católica, e, em 603, conseguiu o baptismo de Adoloaldo, herdeiro do trono. Contudo, a conversão dos lombardos não foi alcançada ainda em sua vida. Da Gália, Gregório conheceu a herança espiritual marselhesa e de Lérins. Ele sabe que os reis francos são católicos de longa data. Todavia, preocupa-se com a reforma da Igreja franca ainda marcada por práticas pagãs e de corrupção. Os conflitos internos na família merovíngia limitam os seus meios de acção, mas pode ver-se a conseqüência dos seus esforços no Concílio de Paris de 614, reunido por Clotário II, tornado o único rei depois da execução de Brunehaut. A Gália também foi a passagem obrigatória das missões que ele enviou para Inglaterra. Gregório encontrou apoios eficazes em alguns bispos galo-francos que o ajudaram a desenvolver esta actividade missionária audaciosa

Page 83: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

na antiga Bretanha. Estas missões, que lhe valem o título de "apóstolo dos anglos", são bem conhecidas de Beda, o Venerável. A primeira, constituída significativamente de monges, desembarcou na costa de Kent em 597, onde foi recebida pelo rei Etelberto, cuja esposa era uma princesa franca católica. Gregório lança as bases de uma hierarquia episcopal. Embora, depois, Beda tenha diminuído a influência do substrato bretão 134

cristão na conversão dos anglo-saxões, a verdade é que o papel de Gregório e da missão romana foi considerável no nascimento de um novo povo cristão. A legitimidade romana dada ao reino de Etelberto permitiu que surgissem uma Inglaterra e um povo inglês em que se fundiu a antiga população celta. A preocupação pastoral levou Gregório, que vê na missão o prolongamento da pregação, a estender o anúncio de Cristo até aos limites do mundo conhecido. Nas desgraças e nas provações do seu tempo, ele não se poupou a esforços para restaurar a Igreja romana e desenvolver uma solicitude pastoral no sentido da renovação moral dos povos já cristãos e conversão dos povos ainda pagãos. De maneira impressionante, desde o século VII, Gregório Magno aparece como uma autoridade, ao mesmo nível dos grandes escritores do século IV, Ambrósio, Jerónimo ou Agostinho. Na época carolíngia, é considerado um dos quatro Padres da Igreja Latina, numa contracção do tempo que sublinha a sua proximidade de Agostinho e o seu afastamento dos contemporâneos de Carlos Magno. Contudo, está cronologicamente mais próximo de Beda do que de Jerónimo. É esta a característica de um "fundador da Idade Média". Bruno Judie 135

Por volta do ano 1000 As "cristandades novas"

Por volta de 1040, o monge cluniacense Raoul le Glabre evocou, numa fórmula célebre, o "manto branco das igrejas" a que se assemelhava a Europa em plena renovação. Menos espectacular, mas também significativo da Nova Aliança que via germinar diante dos seus olhos, era a recente dilatação da cristandade; é que, acrescentava ele, "por toda a parte, o reino de Deus submeteu os tiranos pela virtude do santo baptismo". Eslavos ocidentais, escandinavos e húngaros que, havia poucos decénios ainda, semeavam o terror através de todo o continente acabavam de integrar a cristandade latina. Em breve, apenas subsistiriam alguns redutos pagãos em terra finlandesa ou báltica: os lituanos esperariam por 1386 para se converter. Mas, exceptuando estes irredutíveis, é forçoso reconhecer com o nosso cronista que o ano 1000 corresponde pouco mais ou menos ao desaparecimento da vasta no man's land pagã no Norte e no Leste da Europa. Estes "recém-chegados" (Aleksander Gieysztor) apresentaram-se-nos em três conjuntos diferentes. Primeiro, os escandinavos: tendo iniciado, desde finais do século VIII, a expansão viquingue, um movimento indissoluvelmente comercial e guerreiro, tinham lançado raízes nas regiões conquistadas, na Normandia ou no Danelaw, no Norte ou no Leste da Inglaterra. Os dinamarqueses aproveitaram para se impor como potência hegemónica e fundaram um grande reino que englobava a Noruega, dominando o mar do Norte até à Gronelândia e exercendo uma pressão constante sobre a Grã-Bretanha. Enquanto isso, grupos suecos, que, sob o nome de Varegos, navegavam na rota de Novgorod até

Page 84: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Constantinopla, tinham entrado em contacto com as imensidões do mundo eslavo. De facto, desde meados do século VII, a maior parte da Europa oriental, até ao arco alpino e ao Adriático, era habitada por tribos eslavas, em processo de diferenciação etnolinguística. Os mais ocidentais, como os eslovenos da Caríntia, foram rapidamente integrados no Império Carolíngio. Entretanto, 136

em meados do século IX, foram surgindo Estados eslavos poderosos; mas, mesmo o mais vasto deles, o reino da Grande Morávia, teve uma existência efémera por causa da irrupção dos húngaros, chegados da Ásia central. Dirigidos pelo duque Arpad, este povo seminómada estabeleceu-se nos Cárpatos, de onde lançou incursões destruidoras até o imperador Otão I lhes infligir uma pesada derrota em Lechfeld, perto de Augsburgo (955). Nesta data, além dos eslovenos e dos seus vizinhos, os croatas, só os checos e os morávios tinham abraçado o cristianismo, não sem alguma resistência. Todos os outros povos do Norte e do Centro da Europa se mantiveram alheios ou refractários. Isto porque, embora, por exemplo, no decurso do século IX, se tivessem edificado igrejas nas grandes praças comerciais escandinavas de Birka, Hedeby e Ribe, elas só existiam para acolher os mercadores estrangeiros, e nada testemunha que os autóctones as tenham freqüentado. Para explicar a entrada destas populações na cristandade por volta do ano 1000, de bom grado a posteridade pôs à frente delas algumas individualidades excepcionais, muitas das quais acederam rapidamente à glória dos altares, de tal modo o seu papel na conversão dos seus povos foi considerado decisivo. Porventura não se apresenta ainda hoje os baptismos do polaco Mieszko I (966), do russo Vladimir (ca. 988), do húngaro Vaík-Estêvão (995) ou ainda do norueguês Olaf (ca. 1015) como rupturas históricas importantíssimas? No entanto, as coisas estão longe de ser assim tão simples. A cristianização estende-se por toda a parte durante bastantes decénios ou até mais. Assim, alguns chefes húngaros da Transilvânia convertem-se ao cristianismo na sua forma bizantina desde os anos 940, ou seja, cerca de meio século antes de o futuro Santo Estêvão ter dado o passo e arrastado atrás de si a totalidade do povo húngaro. Do mesmo modo, na Escandinávia, a conversão oficial dos chefes foi precedida de um longo período de tolerância deste novo culto. Inversamente, sobretudo onde, como na Suécia, faltava uma verdadeira unidade política, o paganismo pôde manter-se até ao fim do século XI. Portanto, durante muito tempo, a cristianização conviveu com um pluralismo religioso de facto. As mais das vezes, os próprios novos príncipes cristãos hesitavam em perseguir os antigos cultos, para não terem de ofender aristocratas reticentes, tal como aconteceu com certo chefe sueco que, com medo de que os pagãos se servissem disso para o destronarem, dissuadiu os missionários de destruir o santuário de Upsala. Também houve outros que, embora baptizados, desejavam captar os favores dos antigos deuses. A atitude do húngaro Geza é eloqüente: embora cristão, continuou a oferecer sacrifícios aos deuses pagãos; ao padre que o censurava, respondeu orgulhosamente que "era suficientemente rico e poderoso para também lhes dar presentes"! Como se vê, a cristianização obedece a um processo complexo e gradual que não está isento de recuos: mais cedo ou mais tarde, em quase todas estas novas comunidades rebentaram reacções paganizantes, por vezes tão violentas 137

Page 85: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

que foi necessário quase partir do zero, como, por exemplo, na Polónia no tempo do rei Casimiro, o Renovador (1034-1058). Por isso, não sucumbamos às miragens do ano 1000. Embora esta datação se manifeste cómoda, não pode fazer-nos esquecer os contornos de uma história mais movimentada do que parece. Outra idéia feita pretenderia que, em certas regiões, a cristianização teria andado a par da germanização. É verdade que as missões entre os eslavos partiram dos bispados bávaros de Salzburgo, Passau e Ratisbona e tiveram bons resultados. Também o duque da Boémia, São Venceslau (ca. 922-935) escolheu o cristianismo romano e, ao mesmo tempo, a submissão ao rei saxão Henrique I, o Passarinheiro. Entretanto, por toda a parte, a influência germânica esbarrou com uma forte concorrência. Mas não foi certamente a de Bizâncio que criou obstáculos: com a expulsão dos discípulos dos santos Cirilo e Metódio da Grande Morávia, os missionários bávaros tinham vencido a resistência da presença grega na Europa central; enquanto o cristianismo bizantino brilhou sem obstáculos na Bulgária e, depois, na Rússia de Kiev, continuou marginal na Hungria e na Dalmácia, e nem entrou na Polónia. Mas, face ao Império Germânico em plena expansão, os chefes eslavos e escandinavos conscientes e ciosos da sua independência podiam contar com outras compensações pelo menos tão eficazes. Assim, os primeiros bispos que chegaram à Noruega e à Dinamarca foram de Inglaterra. Graças à familiaridade cultural que unia a Escandinávia às Ilhas Britânicas, eles conseguiram contrabalançar a pressão alemã exercida por intermédio dos arcebispos de Hamburgo-Bremen. Igualmente, a conversão dos polacos não foi confiada à metrópole germânica de Magdeburgo, mas resultou de um acordo com o duque checo Boleslau, cuja filha Dobrava se tinha casado com Mieszko. O caso húngaro ilustra ainda melhor a diversidade de influências que o cristianismo nascente provocou nestas regiões, dado que Santo Estêvão se apoiou simultaneamente em Adalberto, bispo de Praga, na sua mulher bávara Gisela, irmã do imperador Henrique II, e no bispo húngaro Gellert, que se tinha formado no mosteiro veneziano San Giorgio Maggiore. Simultaneamente, significa a originalidade da dinâmica política que presidiu a esta cristianização dos confins. Na época carolíngia, a unidade da fé implicava, em geral, a agregação ao Império: a missão, armada em caso de necessidade, fazia recuar as fronteiras políticas ao mesmo tempo que conquistava almas. Esta estratégia foi ainda a de Otão I (936-973), mas diversos factores começaram a atacá-la para nela abrir alguma brecha em finais do século X. Desde que, um século antes, o papado havia decidido apoiar a obra de São Metódio, aderira à idéia de fazer emergir Igrejas autóctones além do limes saxonicus. Mas as resistências pagãs que atingiram o máximo aquando da insurreição dos eslavos no Verão de 983, acabavam de selar o fracasso de uma unificação religiosa conduzida a ferro e fogo. Coube ao jovem Otão III (983-1002) o mérito de se encarregar disso. No 138

seu desejo de restaurar o Império universal em simbiose com o papa Silvestre II (999-1003), lançou os fundamentos de uma nova organização do mundo cristão: no decurso da peregrinação que fez em Março do ano 1000 ao túmulo de Santo Adalberto, em Gniezno, coroou Boleslau, o Valoroso, à maneira bizantina, concedendo-lhe oficialmente a categoria de irmão na família imperial dos príncipes; conseqüentemente, foi ali criada uma metrópole eclesiástica, provida com três bispados sufragâneos e separada da província de Magdeburgo pelo rio Óder. No ano seguinte, era a vez de Santo Estêvão receber, com soberania plena, a coroa real e obter a instituição de uma metrópole em Gran (Esztergom). Finalmente, só o reino

Page 86: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

da Boémia ficou privado de arcebispado porque ainda estava em gestação e pertencia ao Santo Império; ainda o bispado de Praga, fundado em 973, e o de Olomouc, um pouco mais recente, foram subtraídos à Igreja de Salzburgo para serem colocados sob a autoridade da longínqua Mogúncia. A Escandinávia seguiu um destino semelhante, embora com um ritmo próprio: começou por depender de Hamburgo, antes de se dotar de um centro metropolitano em Lund (1104), depois em Nidaros para a Noruega, em 1152, e em Upsala para a Suécia, em 1164. Portanto, e em resumo, a Igreja do Império sonhada por Carlos Magno e sucessores foi substituída pela Europa das cristandades. Esta mutação é testemunhada numa célebre miniatura proveniente de Reichenau, em que se vê o imperador majestoso, escoltado não só por Roma e pelas antigas províncias romanas, mas também pela Eslavónia, o país dos eslavos. Foi deste modo que nasceram, na periferia da Europa, poderosas Igrejas territoriais, em breve transformadas em nacionais. Muito ligadas à Sé romana, onde tinham encontrado o seu primeiro apoio, compensado com um derradeiro sinal de agradecimento, modelaram a sua identidade através dos seus santos reis, numa união estreita da fé, da dinastia e do país. Neste sentido, a Europa das nacionalidades que hoje conhecemos é realmente filha do ano 1000, embora já num contexto secularizado. Olivier Marin 139

O OCIDENTE RELIGIOSO SÉCULOS XI-XV

Roma, cabeça da Igreja latina (a partir do século XI)

Ao cabo de um longo processo, no qual o período medieval se revela decisivo, o prestígio ligado à cidade de Roma transforma-se numa superioridade institucional sobre o mundo cristão, fazendo com que o papa seja muito mais do que o simples bispo de Roma, que, no entanto, continuará a ser. O enfraquecimento das instituições romanas favoreceu o aumento do poder do bispo de Roma, patriarca do Ocidente, no governo da capital imperial. Aquele a quem se chama o papa (do grego papas, "pai") assume o papel de chefe da parte ocidental do mundo cristão, ocupando, perante as outras sedes episcopais, uma posição de árbitro ou de último recurso. Roma ainda está sob o controlo do imperador de Constantinopla; contudo, é o papa quem deve assegurar a boa gestão da vida quotidiana de uma cidade muito despovoada, mas ainda famosa. Enquanto Bizâncio continua dona e senhora da Itália, Roma e o papa beneficiam de uma protecção militar eficaz; o mesmo não acontece aquando das invasões lombardas, no século VI. Ameaçado pelos bárbaros, preocupado com manter uma certa autonomia, o bispo de Roma pede insistentemente a ajuda militar dos francos, então em plena ascensão. Pepino, o Breve, responde favoravelmente ao apelo urgente de Estêvão II, em 753. Seguem-se a intervenção militar do carolíngio e a doação territorial à sé apostólica que devia dar origem a um Estado Pontifício, com Roma por capital; colocada sob a autoridade moral do primeiro imperador cristão, por meio de um documento que ainda é uma das mais célebres falsificações da história desmascarada no século XV pelo humanista italiano Lorenzo Valla, esta doação foi posteriormente conhecida com o nome de Doação de Constantino. Carlos Magno segue os passos de seu pai: toma a coroa dos lombardos e inicia uma política de estreitas

Page 87: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

relações com o papado. A coroação imperial de 800 inaugura uma forte aliança dos dois soberanos que pretendem, cada um deles, governar a sociedade dos cristãos 142

{respublica christiana). Doravante, Roma é senhora de uma boa parte da Itália. Nessas condições, a eleição do papa reveste-se de grande importância; todavia, começa a ser controlada por algumas grandes famílias romanas, o que parece não ter tido graves conseqüências na acção puramente religiosa daquele que servia de referência e de autoridade para os cristãos do Ocidente. Depois de meio século de vacância, o renascimento do Império, em 962, marca o início de cem anos de domínio dos soberanos alemães sobre Roma, o papado e a Itália. Quando a sua influência abrandou, como aconteceu sob Henrique II (1002-1024), o destino do papado voltou a cair nas mãos da aristocracia local. O século XI representa uma viragem decisiva, prelúdio de uma ascensão cada vez mais firme do papado. Durante os séculos que separam a chegada a Roma de Pepino, o Breve (753), da de Henrique III (1039-1056) ou, seja, durante três séculos, o papado desempenhou um papel secundário, só expedindo bulas para uma pequena parte do Ocidente. Mas, embora não apenas se interessem por regiões distantes que era necessário converter e onde, por vezes, se impõem, como na Polónia e na Hungria, mas também se façam reconhecer pela liturgia romana que faz escola e se difunde largamente desde o primeiro impulso dado por Carlos Magno, os papas, freqüentemente prisioneiros daqueles que os colocaram na cátedra de São Pedro, têm ambições limitadas, sobretudo quando os imperadores estão presentes na Itália ou são lá representados. Em 1049, a escolha de Leão IX (+ 1054) marcará uma viragem decisiva que arrasta o papado para uma revisão completa do seu funcionamento e lhe dá um novo poder. A reforma que se inicia nutre grandes desejos: tenta definir e separar os dois domínios, o espiritual e o temporal, mas hierarquizando-os e confiando ao primeiro a missão de guiar o segundo. Por isso, mesmo que ambicione cristianizar profundamente o conjunto da sociedade, começa por unir-se ao mundo dos clérigos, encarregados de ilustrar e transmitir o seu programa aos leigos. A concretização de tudo isto assenta numa concepção centralizada do governo das Igrejas, cuja cabeça está em Roma: uma eclesiologia piramidal, em que os bispos colaboram com o papa, sucede a uma eclesiologia horizontal, impregnada de comunhão colegial. Mais especificamente, não há dúvida de que a escolha unilateral dos papas feita pelo imperador acelerou o processo de revisão do modo de nomeação dos pontífices romanos. Em 1059, foi acordado em sínodo que o papa, até então promovido unicamente pelo clero e povo de Roma, fosse daí em diante eleito pelos cardeais, um grupo de clérigos composto pelos bispos suburbicários (colocados à frente das igrejas dos arrabaldes de Roma), e também dos padres e dos diáconos das igrejas romanas. Esta medida revolucionária cria ao memo tempo uma instituição, a do colégios dos cardeais, que se põe ao serviço dos papas para quem constitui uma verdadeira corte, a "cúria", e que assegura a continuidade do governo da Igreja entre dois reinados pontifícios. 143

A chancelaria vê a sua actividade reforçada e a sua produção aumentada: um número crescente de bulas parte de Roma com destino a todos os países para levar aos fiéis as decisões do papa. O novo modo da sua nomeação - de que os leigos, por mais poderosos

Page 88: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

sejam, são excluídos - inspira o dos bispos, entregue aos cónegos dos cabidos catedrais. O movimento prolonga-se até aos simples padres, cuja nomeação pelos "patronos" leigos das igrejas é cada vez mais contestada, para voltar para os bispos. A introdução de novidades tão radicais nas modalidades da investidura nos cargos eclesiásticos provocou a "querela do sacerdócio e do Império", porque quem mais perdia nesta questão era o imperador, directamente interessado na escolha dos prelados, intimamente associados à eleição imperial e ao governo. Henrique IV (1056-1106) revoltou-se, mas pediu perdão em Canossa, sem conseguir triunfar militarmente em Itália. Perante ele, Gregório VII (1073-1085) foi o defensor intransigente da liberdade da Igreja; é por isso que a expressão "reforma gregoriana" foi utilizada para designar uma empresa que se prolongou muito para além do seu pontificado, durante mais de um século (ca. 1050-ca. 1150). Impostas pelas mesmas preocupações, a reunião de concílios gerais, as viagens do papa fora de Roma e da Itália, a criação de organismos curiais e o desenvolvimento do espírito jurídico contribuíram para uma emancipação considerável do papado. De facto, até então, somente alguns raros papas tinham deixado Roma. Leão IX teve outra concepção e empreendeu longas viagens através das regiões fronteiriças da França e da Alemanha. Posteriormente, a vontade de tornar o papado presente em toda a parte da cristandade levou à prática das legações que permitiram que o papa tivesse fiéis executantes em todos os países: os legados pontifícios. É durante o pontificado de Alexandre III (1159-1181) que se manifestam mais claramente todas estas inovações; depois, Inocêncio III (1198-1216) põe termo a este longo período de transformações. Os concílios de Latrão em 1123, 1148 e 1179 já anunciam outro, bastante mais amplo, de Latrão IV (1215) convocado por este papa; sobretudo, Inocêncio III estabelece os Estados do papa a nível dos principados laicos e instala-os na feudalidade, quer distribuindo feudos, quer obtendo juramentos de vassalagem de outros príncipes. Ao longo dos séculos XII e XIII, o papado tornou-se plenamente senhor das decisões que deviam ser tomadas, a todos os níveis, desde o metropolita ao cura de paróquia, no conjunto da cristandade. Não tardou a encarregar-se das promoções dos clérigos, controlando, revendo ou ordenando as eleições dos bispos, distribuindo prebendas de todas as espécies a pedido dos grandes e a seu bel-prazer. Poucas acções religiosas escaparam ao patriarca do Ocidente. Bonifácio VIII quis exprimir este poder total por ocasião do jubileu de 1300, prelúdio brilhante de um período difícil para o papado, diante da afirmação dos Estados nacionais cujos príncipes pretenderam ter influência sobre "o seu" clero. 144

Em 1308, a eleição de um papa francês precedeu pouco a transferência da cúria para Avinhão, onde, durante setenta anos, mostrou que podia reinar sobre a cristandade longe da Itália, acentuando a sua burocracia, tornando-se um verdadeiro modelo para os Estados nascentes, no domínio jurídico ou no financeiro. No entanto, ao perder o papado, Roma não perdera todo o seu prestígio, fundado na dupla recordação do Império e dos mártires. Elevaram-se numerosas vozes a reclamar o seu regresso, que aconteceu em 1377 mas provocou o início de uma fase particularmente dramática do governo da Igreja do Ocidente: o Grande Cisma. Então, o Ocidente foi dividido entre dois papas, reinando um em Roma e o outro em Avinhão, onde os cardeais saudosos do antigo estado de facto e irritados com o comportamento do eleito romano tinham procedido à nomeação de um novo pontífice. Cada qual contava os seus apoios; mas, como os dois campos tinham poder quase igual, nada se podia resolver pela

Page 89: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

força. Nenhum pontífice quis demitir-se, ambos considerando legítimas as suas eleições. A situação, que se manteve durante mais de uma geração, provocou o desenvolvimento de uma poderosa corrente reformadora, que via na reunião do concílio o último recurso. Embora o Grande Cisma haja terminado graças à acção do concílio de Constança (1414-1418), a assembleia conciliar não conseguiu impor-se como um órgão estável do governo da Igreja e desacreditou-se aquando do Concílio de Basileia (1431-1440), ao alongar-se interminavelmente em debates sem fim. Face aos defensores das teses conciliaristas, o papado saiu de lá fortalecido, como é disso testemunha o notável sucesso do jubileu de 1450, que viu multidões afluírem a Roma. Michel Parisse 145

Bizâncio/Constantinopla e o Ocidente Comunhão e diferenciação

A ruptura entre a Igreja romana e a Igreja bizantina e o rótulo de "cismática" que desde então ficou ligado à segunda permitem-nos considerar que, nesta questão, o mau papel foi desempenhado por um Oriente que teria recusado seguir a via recta traçada para os cristãos por Roma, a mãe das Igrejas. Mas isto seria ignorar que cada uma delas tem a sua história: a Igreja de Roma só progressivamente foi afirmando a sua autoridade, enquanto a Igreja de Constantinopla se ia construindo num quadro muito diferente. Em vez de se falar de separação, seria melhor sublinhar a comunhão entre estas duas Igrejas e as razões da diferenciação que se introduziu entre elas. Na Idade Média, as duas Igrejas, que utilizavam a mesma Bíblia, em grego para uma, em latim para outra, sempre acabaram por estar de acordo nos três domínios fundamentais. Em primeiro lugar, sublinhemos que o seu Credo (expressão do conteúdo da fé) é o mesmo: é o que foi definido pelos concílios ecuménicos entre os séculos IV e IX. Em segundo lugar, as duas Igrejas concordam em ter São Pedro como "corifeu" (o chefe de coro) dos apóstolos; e, igualmente, a peregrinação a Roma para ir venerar as relíqüias de Pedro e de Paulo nunca deixou de ser uma prática oriental. Finalmente, ambas as Igrejas têm as mesmas estruturas de enquadramento (bispados agrupados em províncias metropolitanas). Pode acrescentar-se que os concílios ecuménicos não se ocuparam exclusivamente da definição do dogma, mas também legislaram em numerosos domínios (liturgia, organização do clero, vida moral, piedade, vida monástica...) para normalizar e harmonizar, mediante regras comuns, muitos aspectos da vida dos cristãos e dos seus pastores. De facto, nunca se poderá esquecer que as Igrejas primitivas se caracterizaram por uma grande diversidade em todos os domínios e que, a partir dos textos considerados revelados, se foram, pouco a pouco, dotando de formas de vida e de culto elaboradas em função das tradições locais e de problemas particulares, tendo por único recurso as suas 146

vizinhas mais próximas. A partir do primeiro concílio ecuménico (Niceia, 325), a diversidade inicial das Igrejas primitivas começou a reduzir-se. Além disso, foi no final do século IV que o Império Romano se dividiu em Império Romano do Oriente centrado em Constantinopla (Bizâncio) e Império Romano do Ocidente. O Império bizantino iria existir, sem solução de continuidade, até 1453, considerando-se o herdeiro de um Império Romano de vocação

Page 90: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

universalista. Em contrapartida, o Império do Ocidente conheceu uma história mais atormentada que se traduziu numa fragmentação política: houve um imperador, mas nem sempre; e nunca coincidiu com o conjunto do mundo cristão ocidental, cujos fundamentos romanos se foram colorindo com outras heranças, sobretudo a franca. Esta diferença política não se encontra no plano eclesiástico porque a Igreja cristã, saída dos concílios ecuménicos, comportava cinco instâncias supermetropolitanas, chamadas patriarcados. Na parte oriental do Império Romano, densamente povoado, onde havia numerosos bispados, houve quatro patriarcados: Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Na parte ocidental, apenas um: Roma. Cada patriarcado tinha autoridade no seu território, mas o acordo entre as cinco sés era a garantia da rectidão da fé, concordando todas que o patriarcado de Roma tinha direito, no seio dos patriarcados, a honras especiais. Convém acrescentar que, até ao século VIII, a autoridade do imperador de Constantinopla se estendia sobre parte da Itália; mas nem por isso Roma, que dependia do Oriente no plano político, deixava de reger as Igrejas ocidentais. Foi respeitando esta organização, a pentarquia ("cinco poderes") - que se conjuga com a idéia de que o único verdadeiro sucessor do colégio dos apóstolos é o corpo dos bispos reunidos -, que se desenrolaram os concílios ecuménicos, todos convocados pelos imperadores, guardiões da ordem pública. No entanto, muito em breve, a marcha da história originará uma evolução. Primeiro, no Oriente, a importância de Constantinopla cresceu consideravelmente depois e como conseqüência da formação do Império Arábico-Muçulmano. Alexandria, Antioquia e Jerusalém continuaram a existir como patriarcados, mas em terra muçulmana e, ainda por cima, enfraquecidas pelo desenvolvimento das Igrejas heréticas rivais. Constantinopla foi o único patriarcado que permaneceu em terra cristã; melhor, o seu território acabou por quase coincidir com o do Império Bizantino, que, a partir do século VIII, dispôs de duas cabeças: o imperador e o patriarca, associados e solidários, a títulos diferentes, na sua responsabilidade perante os cristãos. A Igreja bizantina nunca se concebeu fora da relação com o imperador (foi esse o seu grande problema quando o Império desapareceu, em 1453): era uma Igreja imperial e orgulhosa de o ser, "dando a César o que é de César" e tanto mais disposta a fazê-lo, quanto o imperador era chamado o "coroado de Deus". A sua capital estava sob a protecção particular da Mãe de Deus e o seu Império tinha uma dimensão providencialista. Já desde o século V, o patriarca de Constantinopla atribuía a si 147

mesmo uma importância especial e o segundo lugar no seio do colégio dos patriarcas, pelo facto de ocupar a sede da capital do Império que substituía a Roma antiga. Por seu lado, a Igreja de Roma evoluíra em função de outras realidades. O seu chefe, a quem cada vez mais chamavam "papa", tinha a responsabilidade do conjunto das Igrejas ocidentais. Muito cedo, desde o século v, nasceu a idéia de, entre todos os bispos, conceder um primado especial ao de Roma, enquanto sucessor de São Pedro, a quem Cristo havia dado a missão de fundar a sua Igreja sem limitação geográfica e cujas relíqüias guardavam a cidade. Todavia, o bispo de Roma precisou de algum tempo para impor este primado às Igrejas do Ocidente e para impor igualmente a sua liberdade perante os fiéis, soberanos, reis ou imperadores, no quadro da reforma gregoriana, iniciada no século XI. Entretanto, o aprofundamento da herança de São Pedro levara o papa a definir-se já não somente como sucessor do chefe dos apóstolos, mas como vigário ("aquele que está no lugar de") de Cristo, o que o colocava numa situação excepcional e única em todo o mundo cristão. As vicissitudes da história tinham gerado dois

Page 91: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

pólos no mundo cristão - Roma e Constantinopla -, cada qual fundado na sua própria concepção de Igreja: ideologia petrinista que tendia a dar uma dimensão simultaneamente universalista (é o sentido da palavra católico) e monárquica à Igreja de Roma; ideologia imperial providencialista em que a dimensão colegial e pentárquica da Igreja se inclinava a favor da sua capital, Constantinopla. Esta diferenciação aprofundou-se a partir dos finais do século IX e, depois nos séculos X e XI, período a partir do qual se julgou já não ser útil pedir aos imperadores que reunissem concílios ecuménicos, dado que nenhuma heresia nova ameaçava a integridade da fé cristã. Durante estes séculos houve muitos contactos entre Roma e Constantinopla, facto propositadamente esquecido [por alguns historiadores] para se privilegiarem os momentos de crise, como o verificado durante o patriarcado de Fócio, na segunda metade do século IX. Mas o facto que, a prazo, teve conseqüências mais pesadas foi o fim dos concílios ecuménicos que tinham sido o quadro de encontros e permutas para elaborar decisões comuns. Ao desenvolvimento intelectual sucedeu o tempo de gestação; às tumultuosas e escaldantes questões teológicas, a busca paciente de soluções face às interrogações formuladas pelas sociedades em evolução; à definição da ortodoxia, já então comum, a busca de uma ortopráxis. A normalização e a uniformização romanas tiveram os seus equivalentes no Império Bizantino. Fundamentando-se em textos, muitos dos quais comuns, com métodos e instituições diferentes (decretais pontifícias e concílios de Latrão, em Roma; sínodo permanente e legislação sinodal, ratificada pelo imperador, em Constantinopla), a Igreja romana e a Igreja de Constantinopla chegaram a resultados práticos por vezes notoriamente diferentes. Conhecem-se as divergências mais marcantes: pão ázimo ou pão levedado na Eucaristia, celibato ou não dos padres, jejum ou não ao sábado... 148

Também, sem minimizar a violência dos acontecimentos de 1054, é necessário apreciar a crise à luz desta evolução que, no decurso de dois séculos, não tinha provocado nenhum confronto notável. Os problemas postos nesta ocasião eram reais e sérios, nomeadamente o do primado que o papa julgava dever exercer no conjunto das Igrejas. As personalidades que se ocuparam deles tinham pouca capacidade para os resolver. Mas só houve excomunhão de pessoas, não de Igrejas que, durante o século e meio seguinte, mantiveram relações de tipo tradicional: então, Roma não considerava que os orientais fossem "cismáticos" e Constantinopla não sentia repugnância em falar com o sucessor de São Pedro, agora que ele se emancipara completamente dos poderes temporais. Em contrapartida, é certo que as cruzadas, singularmente a quarta, em 1204, quebraram este movimento. Ao conquistar o Império Bizantino, ao estabelecer um imperador latino no trono de Constantinopla, ao instituir um patriarca latino, ao dominar repetidas vezes a cidade, os cruzados realizaram não só actos que feriam o orgulho político dos bizantinos, como também tocaram em realidades que eram sagradas para os seus irmãos cristãos, tornando-se sacrílegos. Roma não censurou o facto. Por isso, é fácil compreender que muitos gregos tenham, desde então, considerado os latinos mais perigosos que os muçulmanos, sobretudo quando se lembravam da maneira pacífica com que Saladino retomara a posse de Jerusalém em 1187. Bernadette Martin-Hisard 149

São Bernardo de Claraval (+ 1153) e os cistercienses

Page 92: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Quando a "Igreja cluniacense" (ecclesia cluniacensis) atinge o apogeu, a regra de São Bento vai dar origem a outra forma de experiência monástica, simultaneamente próxima e diferente: o movimento cisterciense, cujo nome provém da abadia de Cister, seu berço.

Cister ou o encontro efémero com a pobreza monástica das origens (1089-1220)

A palavra francesa para Cister (Citeaux) evoca os "juncos" (étimo: "cistels") que se podem encontrar nos pântanos e lameiros da planície do Saône. Foi lá que, a 21 de Março de 1098, antigos eremitas conduzidos pelo abade Robert decidem fundar o seu "Novo Mosteiro", depois do fracasso de uma primeira instalação em Molesmes (nos confins da Champagne e da Borgonha). Ao contrário do fausto dos grandes senhores cluniacenses, Robert e os seus irmãos pretendem voltar às fontes do monaquismo e à letra da regra de São Bento. Instalados (em teoria, pelo menos) em vales afastados das cidades, esforçam-se por viver exclusivamente do seu trabalho, recusando todos os proventos senhoriais e todas as receitas eclesiásticas (oferendas ou dízimos); renunciam portanto a inserir-se na vida das paróquias e até a encarregar-se da memória dos mortos, de modo a subtrair-se à arbitrariedade dos vivos. Esta fundação conhece um sucesso rápido. Em 1115, Cister conta já com quatro "filhas": La Ferté (junto de Chalon-sur-Saône), Pontigny (a sul de Auxere), Morimond (a leste de Chaumont) e Clairvaux (Claraval), (perto de Troyes). Esta foi fundada por um grupo de irmãos conduzidos por Bernardo de Claraval, que foi seu abade até à morte, em 1153. Nascido em 1090 em Fontaine-les-Dijon, no seio de uma família da pequena aristocracia, o jovem Bernardo foi educado numa escola de cónegos. Aos vinte e dois anos, 150

decide-se, em companhia de uma trintena de nobres - entre os quais alguns dos seus irmãos, dos seus tios e dos seus primos -, juntar-se aos irmãos do "Novo Mosteiro", depois Claraval. Cisterciense de segunda geração, por si só Bernardo encarna todo o espírito do movimento. Na sua oposição aos cluniacenses e ao seu abade Pedro, o Venerável, o melhor inimigo de Bernardo, com quem manteve uma correspondência assídua, o abade de Claraval reivindica um regresso dos monges à pobreza dos tempos apostólicos e à pureza da regra de São Bento. Ele pretende impor aos irmãos uma verdadeira renúncia em todos os aspectos da vida comunitária: conduta pessoal ascética, quadro de vida de grande sobriedade, liturgia despojada das longas durações e dos faustos de Cluny. Mas, à maneira de Pedro, o Venerável, ele quer promover o magistério dos monges no seio da Igreja, persuadido de que só os mais puros podem mostrar o caminho aos outros fiéis. Daí a sua presença fora do mosteiro em todas as frentes de luta pela defesa e pelo esclarecimento da cristandade: denuncia os velhos hábitos e erros teológicos de Abelardo no Concílio de Soissons; ajuda o papa Inocêncio II a eliminar o antipapa Anacleto II e o seu partido (1130-1138); opõe-se aos hereges maniqueus no Languedoque, que pretende eliminar como "raposinhos na vinha do Senhor"; percorre o Nordeste de França e o Império a fim de pregar a segunda cruzada pela libertação dos Lugares

Page 93: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Santos (1146). A irradiação de Cister e das suas filhas é imediata e duradoura. Em 1250, o primeiro conjunto difundiu-se pelos quatro cantos da cristandade latina e contava mais de seiscentos e quarenta estabelecimentos, muitos dos quais mosteiros femininos. É um corpo colocado sob a protecção da "Virgem da Misericórdia", cujos membros são tratados de modo absolutamente igual, no quadro do capítulo geral (ou assembleia dos abades) reunido todos os anos em Cister. A pobreza e o despojamento, patentes até na simplicidade do vestuário feito de lã não tingida (daí o nome de "monges brancos"), não deixam dúvidas. Desde o seu início, a ordem de Cister foi apoiada pela prodigalidade aristocrática. Os estabelecimentos cistercienses acolhem numerosos filhos e filhas das grandes famílias. Aliás, a organização do mosteiro cisterciense típico reflecte uma estratificação social rígida entre, de um lado, o espaço dos monges de coro, freqüentemente de origem aristocrática, e, do outro, o dos conversos, aqueles irmãos leigos maioritariamente nascidos no campesinato que escolheram servir o Senhor com as suas mãos. Estes últimos participam na grande obra cisterciense: a domesticação da natureza e a exploração dos frutos da terra. Tendo escolhido o isolamento dos eremitas, os cistercienses encontram-se rapidamente à frente de vastos domínios rurais organizados em centros de produção à frente dos progressos agrícolas e industriais: as herdades ou quintas. Exploram terras, pastagens, madeira e lenha, vinhas e caminhos; o domínio da força hidráulica permite-lhes ter azenhas, forjas e fundições. Alimentam os mercados com os seus excedentes: lã, carne, couros, vinho, vidro, carvão e ferro. Deste modo, 151

comerciando, os "pobres" cistercienses acedem à moeda e às riquezas do mundo; pela lógica das suas opções fundamentais - trabalho manual e exploração das propriedades agrícolas - adquirem o estatuto de "santos empresários" (C. B. Bouchard), participando no formidável crescimento da Europa ocidental a partir dos anos 1100. Nestas condições, pode dizer-se que o século e o mundo apanharam estes arautos do retorno à pobreza das origens. Aliás, numa evolução natural, o capítulo geral de 1220 suprime todas as proibições iniciais e reconduz os cistercienses ao regime comum dos monges, quer dizer, ao estatuto de grandes senhores eclesiásticos. As igrejas de pedra, que os cistercienses começam a construir em grande número a partir de 1140, são largamente alimentadas pelos excedentes dos produtos da terra. No plano monumental e estético, Cister entra em ruptura com o luxo dos edifícios realizados pelos "monges negros" em Cluny, a maior ecclesia da cristandade ou, para o abade Suger em Saint-Denis, o primeiro edifício de estilo gótico. Na sua Apologia a Guilherme de Saint-Thiérry, composta por volta de 1125, Bernardo de Claraval expõe a carta do despojamento cisterciense, ainda perceptível na ausência de imagens e de cores nas igrejas hoje conservadas. Defendendo-se a mais extrema sobriedade, trata-se primeiro de preservar os bens destinados a manter os pobres; ao privilegiar a luz branca e nua, mal filtrada pelas vidraças sem cor, proibindo a decoração no interior da igreja, trata-se também e sobretudo de não desviar os sentidos da meditação interior das Escrituras. Este manifesto é uma tomada de posição contra a função mística da decoração, contra a função "anagógica" segundo a qual as imagens permitem, pelo despertar dos sentidos, subir até ao Criador. No mosteiro cisterciense, não se procura aceder a Deus, mas habitar com aquele que, segundo Bernardo de Claraval, é "altura, largura, comprimento e profundidade". Dominique Iogna-Prat 152

Page 94: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A catedral

Imortalizada por Victor Hugo em Notre-Dame de Paris, a catedral permanece nos espíritos como símbolo da Idade Média cristã. Mas, "igreja do bispo", a catedral não conseguiria ser compreendida mediante a única versão gótica. Contudo, o cliché não é fortuito... A Igreja catedral recebe o seu nome da cátedra, a cadeira, o assento solene reservado ao bispo e colocado no coro do edifício; portanto, trata-se da igreja devolvida à autoridade episcopal que se estende à diocese. A amplitude desta circunscrição territorial evoluiu bastante. Nos primeiros séculos da cristianização, depois da paz da Igreja, as dioceses confundiram-se com os territórios das cidades antigas, pelo menos nos espaços romanizados. Também era à catedral que os fiéis da cidade e dos campos em redor vinham celebrar as grandes festas, no decurso das quais recebiam um ensinamento do bispo; também era lá que se baptizavam os neófitos, na vigília pascal. Estas dioceses pequenas, ainda numerosas na Itália, existiram no Sul da França até à Revolução Francesa. A este estado de coisas correspondeu uma realidade monumental que se exprimiu em vários edifícios a que os arqueólogos, que recentemente a trouxeram à luz do dia, chamam o "grupo episcopal": um dos primeiros foi descoberto em Genebra nos anos 1970-1980. Este conjunto compunha-se inicialmente de várias igrejas cujas serventia e afectação ainda são mal conhecidas: a maior devia servir para as cerimónias solenes; outra estaria certamente reservada ao clero da catedral que ajudava o bispo nas suas responsabilidades, na recitação diária do ofício. Juntava-se-lhe um baptistério, facilmente identificável pelos seus com equipamentos hidráulicos destinados à realização do baptismo por imersão num tanque ou piscina central. Por fim, diversos edifícios civis serviam de lugar de habitação para o clero, sem contar com o edifício central da escola e o que servia para acolher os pobres e os doentes, o xenodochium. Isto quer dizer que a categoria episcopal de uma cidade se notava facilmente no tecido construído. 153

Quando a cristianização chegou às regiões menos urbanizadas, a estatura das dioceses amplificou-se tanto que tornou impossível uma prática regular na catedral; além disso, o baptismo era conferido às crianças desde o seu nascimento. A catedral já não reunia todos os fiéis, que celebravam o culto nas igrejas paroquiais, mais próximas. O bispo, que tinha delegado uma parte das suas funções aos curas destas paróquias, continuava à frente da circunscrição diocesana como a autoridade de referência, rodeada de um clero que era designado, cada vez mais correntemente, com o nome de cónegos, distintos dos monges. Os edifícios religiosos do grupo episcopal foram-se progressivamente fundindo numa só igreja, a catedral, enquanto as outras construções persistiam, ampliando-se. Os palácios episcopais ganharam magnificência, abrigando serviços de uma administração diocesana cuja pompa aumentava incessantemente, com alguns dos seus edifícios postos ao serviço da população, nomeadamente para a autenticação de actos e certidões num país sem notariado. Os cónegos construíram edifícios adequados à sua maneira de viver que, numas regiões, era comunitário (cónegos regulares) e, noutras, individual, cada um podendo ter a sua casa: o conjunto estava situado ao redor da catedral, no chamado "bairro canonical". Este espaço - que, por vezes, era

Page 95: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fechado e possuía um estatuto próprio - ainda hoje é perceptível no mapa das cidades. As escolas catedrais tiveram a sua hora de glória nos séculos XI e XII (Angers, Chartres, Laon, por exemplo), dirigidas por um cónego mandatado pelo bispo: o mestre-escola. Quanto aos antigos xenodochia, foram substituídos por asilos-hospitais mais espaçosos, onde se acolhiam os pobres e os necessitados. A função da igreja catedral transformou-se quando se iniciou a acção pastoral realizada pelos párocos, a que se juntaram, a partir do século XIII, os frades mendicantes. Embora os reformadores continuassem à espera do bispo para pregar nos dias de festas maiores (o que nem todos respeitavam), muitos destes centraram a sua atenção nos seus deveres para com o clero diocesano. Diversas circunstâncias ofereciam ao bispo ocasião para manter com os "seus" padres a ligação que unia a "igreja-mãe" da diocese (é assim que os textos da época chamam à catedral) às igrejas-filhas das paróquias: as assembleias sinodais, reunidas rigorosamente de dois em dois anos, para a instrução do clero; a missa crismal celebrada na Quinta-Feira Santa, durante a qual eram benzidos os óleos usados na administração dos sacramentos (como o óleo do Santo Crisma, de onde vem o nome desta missa); no fim, cada pároco leva uma pequena quantidade para a sua paróquia, em sinal de comunhão. Além disso, observa-se que a catedral vai assumindo cada vez mais o papel de lugar de repositório da identidade diocesana, como atesta a existência, dentro dos seus muros, dos túmulos dos seus bispos e das relíqüias das figuras locais mais ilustres, e também as suas tradições litúrgicas, que associavam elementos universais comuns a todas as igrejas cristãs e outros próprios da história da cristianização local, como a 154

memória dos santos da diocese, a comemoração da consagração da igreja no fim da sua construção, a tradição coral que ainda não fora suplantada pelo canto romano imposto por Carlos Magno às igrejas do Império (como o canto ambrosiano na Igreja de Milão). Um ou outro cónego, consciente deste papel, escreveu a história da sua igreja, quer sob a forma de notícias biográficas dos bispos (Actos dos Bispos), como acontece em Roma com o Liber pontificalis, quer sob a forma de relatos mais sintéticos. Ao contrário das igrejas dos mosteiros ou dos conventos dos mendicantes, a catedral apresenta-se como um edifício partilhado, onde coexistem diversos grupos. Em primeiro lugar, estão os cónegos que são quem a usa mais regularmente. Eles são os verdadeiros senhores e donos dos locais em que se organiza o seu coro, isolando-o da animação ambiente com uma grade, e, depois, no fim da Idade Média, com estrados em degraus, dotando-os de estalas por vezes ornadas com esculturas dos maiores mestres (Amiens). A seguir, o bispo, presente de modo cada vez mais episódico, cujos direitos sobre o edifício estavam rigorosamente delimitados. Finalmente, os fiéis do bairro, que tinham necessidade de uma paróquia; às vezes, essa função era desempenhada por uma igreja vizinha ou até por uma parte restrita da catedral, como uma capela da nave lateral. Alguns raros leigos, em geral pessoas abastadas, foram autorizados a deixar a sua marca neste monumento prestigioso, as mais das vezes construindo uma capela privada para servir de jazigo. Não será demasiado afirmar que as catedrais ainda existentes no mundo contemporâneo ilustram todos os estilos da arquitectura. Nos países de antiga cristianização, este monumento, que, por definição, se inscreve numa lista muito longa no tempo, foi sujeito a numerosas alterações ou, mesmo, a reconstruções totais, depois e como conseqüência de incêndios ou para adaptar o monumento aos gostos contemporâneos. Embora seja difícil para o observador actual aperceber-se disso, ainda há catedrais românicas, mais bem conservadas sobretudo na

Page 96: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Alemanha e na Itália. Mas a catedral confunde-se, e não sem razão, nas nossas memórias com a arquitectura gótica. Esta nova arte de construir, aparecida na íle-de-France durante a segunda metade do século XII e prosseguida até à Renascença, correspondeu a uma fase de reconstrução de numerosas igrejas catedrais. As obras eram impulsionadas pela expansão urbana e pelo enriquecimento da população, inclusive do clero, que as financiou largamente. Os corpos canonicais e as corporações citadinas, sem contar os príncipes, um dos quais era o rei de França (o novo estilo nascera no coração do seu reino), olhavam para estes edifícios com todo o seu orgulho, rivalizando entre si para elevar as abóbadas a alturas vertiginosas. As catedrais góticas, abundantemente iluminadas graças à técnica do cruzamento de arcos ogivais que permite aliviar as paredes do peso das abóbadas e nelas inserir vitrais, foram dotadas de uma decoração esculpida ou pintada na pedra ou no vidro, cuja coerência o historiador de arte Emile Mâle tentou reconstruir no seu livro L'Art 155

religieux du xme siècle. Na catedral gótica exprime-se a visão cristã do mundo: uma criação boa, querida por Deus, na qual todos os elementos minerais, vegetais e animais encontram o seu lugar; uma história humana que ganha sentido na perspectiva da Encarnação de Cristo, cuja vida é abundantemente representada nas suas correspondências tipológicas com os episódios do Antigo Testamento; quando muito, hoje, neste programa, dar-se-ia mais relevo e mais espaço à história local, intimamente imbricada nesta história universal mediante uma selecção dos santos representados. Neste pensamento englobante, tanto no jogo de correspondências entre o Antigo e o Novo Testamento como nesta arquitectura analítica em que as forças são divididas pelas colunazinhas que compõem os pilares, encontra-se o eco do progresso intelectual das escolas urbanas e das universidades (Erwin Panofsky): a tipologia adoptada pela exegese medieval, a decomposição escolástica dos problemas em questões sucessivas e a vontade de reunir o saber em Sommes. Mas a vida das catedrais não parou no fim da Idade Média: os novos arranjos e as novas decorações provam que estas igrejas continuaram a assumir o seu papel de guardiãs da memória da diocese, estando presentes no seu tempo. Catherine Vincent 156

II

AFIRMAÇÃO, CONTESTAÇÕES E RESPOSTA PASTORAL

A primeira cruzada (1095) e os seus prolongamentos

A cruzada suscita um interesse historiográfico sempre apoiado e captado pelas opções ideológicas e pelo ambiente contemporâneo. A expansão europeia e a colonização no século

Page 97: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

XIX, depois a experiência sionista no século XX, suscitaram e ainda suscitam comparações e assemelhações pretensamente polémicas, que se baseiam na identificação do movimento de 1095 com uma agressão, entre dois blocos, vinda do Ocidente. Mais subtilmente, a cruzada foi interpretada segundo grelhas de leitura económicas e sociais (expansão do feudalismo ou do comércio italiano) que lhe tiram toda a especificidade e que encontramos primeiramente nos historiadores árabes dos séculos XII e XIII, que a assemelham à Reconquista ibérica e à conquista da Sicília, mostrando assim a dificuldade de perceber a sua originalidade. De facto, só há um ponto que reúne as três arremetidas da Europa latina: a resposta ao apelo de cristãos sujeitos ao Islão e oprimidos, moçárabes de Andaluzia, gregos da Sicília e cristãos da Palestina. A Europa conhece bem os sofrimentos destes últimos. Sob a terrível perseguição do califa fatimita Hâkim, em 1009-1012, sofreram o assassínio do patriarca de Jerusalém, tio materno do califa, a destruição de todos os santuários cristãos e judeus, e a conversão forçada, como em todo o Império Fatimita, da Sicília à Síria. O seu primeiro efeito foi o desenvolvimento vigoroso das peregrinações a uma Jerusalém sem igrejas, iniciadas em 1025, que abrandaram de 1040 a 1050 e foram retomadas, não só com expedições numerosas e exércitos, mas também com a multiplicação na Europa Ocidental das igrejas dedicadas ao Santo Sepulcro ou imitando a sua planta e a sua cúpula. 157

A cruzada de 1095-1099 é um movimento religioso, autónomo e independente do magistério pontifício, laical nos seus quadros e quase sem o controlo da hierarquia episcopal, ausente da marcha para Jerusalém. O apelo de Clermont, lançado por Urbano II e de conteúdo incerto (apoiar Bizâncio ou libertar cristãos do Oriente e dos Lugares Santos) não foi o seu principal motor: de facto, este apelo é posterior à difusão feita por Pedro, o Eremita, regressado da Terra Santa, da carta do patriarca de Jerusalém, Simeão, exortando à libertação dos cristãos e que esteve na origem de uma primeira mobilização. O apelo pontifício reúne, na resolução de partida, uma forma jurídica nova, dois elementos: o compromisso do peregrino e a indulgência plenária prometida aos penitentes. Esta resolução é imediatamente simbolizada por uma cruz de pano cosida nas roupas. É um povo numeroso de peregrinos penitentes, mais de cem mil, homens e mulheres, que parte em 1096, animado com um espírito de guerra santa inspirado na Bíblia, nos Livros dos Macabeus, e estimulado pelas experiências na Península Ibérica e na Sicília entre 1060 e 1080. A batalha de Cerami, em que o conde Roger da Sicília desbarata os muçulmanos, é o protótipo dos combates de 1098-1099: vitória esmagadora com intervenção celeste. É uma ruptura, certamente preparada pelas expedições carolíngias contra os pagãos, com a tradição que identificava a vida militar com o mal e a impureza (militia malitia). A considerável força militar da expedição de 1096 compreende dez mil cavaleiros, enquadrados por membros das principais famílias da aristocracia europeia, todos eles os mais velhos, como Godofredo de Bulhões e Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse. É uma verdadeira comuna, como a das cidades de burgos da Europa, sem autoridade real. O acolhimento do Império Bizantino, nada hostil, leva numa colaboração eficaz e duradoura, que será contrariada pelas ambições de alguns chefes da cruzada, mas que só será quebrada no início do século XIII. O cerco de Antioquia, de Outubro de 1097 a Junho de 1098, manifesta a originalidade do movimento, que foi analisada por Paul Alphandéry. Numa atmosfera saturada de referências bíblicas, em particular aos "pobres de Israel", e de temas de libertação messiânica, multiplicam-se os sinais do Céu: visões do além e promessas de milagres,

Page 98: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

aparições de anjos e de santos a combater. Embora haja facções do exército que mantêm dúvidas sobre a sua origem, as visões de Pierre Barthelemy e a descoberta da Santa Lança dão um formidável impulso aos peregrinos. O exército turco é desbaratado e o Império Seldjúcida desmorona. A ajuda dos cristãos da Síria permite uma chegada rápida aos muros de Jerusalém. Um cerco de um mês, marcado por novas aparições, permite a tomada de assalto da Cidade Santa no dia 15 de Julho de 1099 e uma purificação dos Lugares Santos. Mas, quase logo, na atmosfera festiva e inquieta que reúne os Latinos, os Sírios e os Gregos de Jerusalém, tudo muda: a fundação de um Estado para guardar o Sepulcro é confiada a Godofredo de Bulhões, que se recusa a cingir a coroa temporal na terra onde Cristo 158

foi coroado de espinhos; o seu irmão e sucessor, Balduíno de Bolonha, aceita o título real para evitar a constituição de outro "património de São Pedro", como na Itália. Foi enterrado no Santo Sepulcro com o epitáfio que lhe chama precisamente "o outro Macabeu". Este reino, cumprindo a profecia de Isaías, será um reino de justiça e de paz. Cristãos orientais e muçulmanos conservam os seus quadros religiosos e jurídicos; não se nota nem colonização económica nem política de povoamento. A atribuição de senhorias aos peregrinos que optassem por ficar - inicialmente um pequeno número - só prolongou o enquadramento fiscal dos fatimitas. Os cristãos gregos (dependentes do patriarcado de Constantinopla) e os jacobitas (dependentes do patriarcado de Antioquia) conservam a sua hierarquia episcopal e os seus mosteiros, numa atmosfera de união implícita com os latinos. E é pelo casamento com os cristãos orientais que se opera uma mestiçagem que chocou os latinos do Ocidente, que chamam "potros" aos filhos destas uniões, usando uma metáfora animal de desprezo. Encontra-se o mesmo clima de unidade nos três outros principados fundados pelos cruzados de 1095-1099: o condado de Edessa, implantado pelos Bolonhas em país arménio, junto do Eufrates; o principado de Antioquia, que coube ao normando de Itália, Boemundo; o condado de Trípoli, estabelecido por Raimundo de Saint-Gilles e consolidado por seu filho. Segundo o testemunho do patriarca jacobita Mateus, o Sírio, durará até ao fim do século XII, para, depois ser enfraquecido pela ruptura de 1204 entre Roma e Constantinopla, conseqüência da tomada da capital grega por uma cruzada de camponeses desviada contra ela por Veneza. As conseqüências religiosas deste clima de unidade são notáveis: pacificação geral, ausência de disputas teológicas, reunião à Igreja romana dos maronitas (cristãos do Líbano constituídos em Igreja patriarcal desde o século VIII), imigração dos nestorianos (discípulos de Nestório que, no século V, não reconheceu a dupla natureza de Cristo) e de jacobitas para os principados latinos. Mas também se notam, como afirma Jacques de Vitry, em 1215, as primícias de um afrouxamento destes laços quando Jerusalém voltou a passar para o domínio dos muçulmanos. Esta paz estendeu-se aos muçulmanos e aos judeus: embora os primeiros não fossem autorizados a viver em Jerusalém nem a fazer a peregrinação à mesquita de Ornar, que então se tornara a colegiada do Templo do Senhor, não era proibido aos segundos ir lá orar, como testemunha o relato da peregrinação de maimónidas. As relações com os Estados muçulmanos vizinhos colocam-se sob o sinal de conflitos políticos. A propaganda dos meios pietistas a favor do djihâd não revolta o mundo muçulmano, e os príncipes, chefes de guerra turcos, servem-se disso apenas para se legitimarem. Além disso, algumas alianças transitórias unem as dinastias muçulmanas com os príncipes dos Estados latinos. Entretanto, por volta de

Page 99: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

1170, com o surgimento de Saladino, favorecido pelo aventureirismo de Amaury de Jerusalém, que tenta a conquista do Egipto, desenha-se uma força considerável. Mas, uma 159

vez mais, é necessária a imprudência do jovem rei Gui de Lusignan, que procura legitimar o seu poder frágil por uma vitória, para conduzir à derrota de Hattin (1187) e à ruína do reino meridional. Não se pode considerar a política dos latinos unicamente na perspectiva das conquistas territoriais. Querem defender um património sagrado, sem hostilidade preconcebida nem menosprezo. Sublinhemos que os sentimentos que nutrem pelos adversários são partilhados por eles, segundo Usâma ibn Munqidh, que não esconde a sua admiração pelos cavaleiros francos. Os seus valores militares comuns e uma forma ecuménica que ilustra a convivência em peregrinações e santuários partilhados explicam a oferta que, em várias ocasiões, os herdeiros de Saladino fizeram de restituir Jerusalém aos latinos, terminando, em 1229, na partilha da Cidade Santa entre o imperador Frederico II, rei de Jerusalém por casamento, e o ayyoubide Malik Kâmil. Jerusalém passa para a soberania de um príncipe cristão, os muçulmanos conservam o monte do Templo e podem livremente ali organizar a sua peregrinação. Este acordo durou sem demasiados choques até 1244. A partir de 1099, as cruzadas continuam, mas mudam de sentido, pois já não é a grande expedição de voluntários de 1095, mas um fluxo reduzido e contínuo de peregrinos que vão servir a defesa dos Lugares Santos e, nos momentos difíceis, mobilizações limitadas que reúnem as forças dos Estados guiadas pelos reis da Europa latina, para levar ajuda aos principados ameaçados: em 1147, depois da tomada de Edessa; em 1189, depois da queda de Jerusalém. Durante o século XIII, há projectos mais ambiciosos que fracassaram: a conquista do Egipto em 1218-1221 e, de novo, em 1250, sob o comando directo de um legado pontifício; a expedição de São Luís a Tunes em 1270. Mas deixam transparecer ambições políticas. Depois do encontro de Francisco de Assis com Mâlik Kâmil diante de Damieta em 1219, outra preocupação - a da missão e da conversão - domina o mundo latino. Ela anima, antes e depois da queda de Acre (1291), uma relação directa com o mundo muçulmano e com as cristandades orientais. Henri Bresc 160

As heresias (século XII)

Uma heresia, a dos "bons homens" (denominação confirmada em 1165) nasceu no século XII no Languedoque, França. Por volta de 1200, outra, a dos valdenses, parece já largamente implantada na mesma região. Estes movimentos têm um lugar importante na história da Igreja, porque suscitaram uma reacção vigorosa que tomou duas formas sucessivas: uma cruzada que se desenrolou entre 1209 e 1229; depois, a instauração de uma instituição nova, a Inquisição, em 1231. A Igreja define a heresia. Esta simples verificação sugere uma estreita relação entre ela e o facto de a heresia consistir, antes de tudo, na rejeição da norma eclesiástica. Não há dúvida de que os clérigos da Idade Média sentiram e apresentaram esta rejeição como a irrupção em terras ocidentais de uma lepra ou de um cancro saídos do Oriente. Mas seria errado tomar as suas palavras ao pé da letra porque dão à heresia uma representação que mascara a realidade. Não se trata de um corpo estranho à cristandade,

Page 100: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

vindo de longe para subverter a verdadeira fé, mas de uma dissidência, de um desvio. A contestação dos dogmas e das instituições da Igreja romana nasce no coração do Ocidente cristão, é um fenómeno interno. Assim, a dissidência aparece como prolongamento e conseqüência da reforma gregoriana. Baseado na vida apostólica, o movimento gregoriano provoca a proliferação de correntes "evangélicas" que vêem nela a necessidade de uma superação contínua que não se fixe no institucional; além disso, este movimento exalta o sacerdócio e os religiosos regulares, constituindo-os mediadores obrigatórios entre o mundo terrestre e o além, entre os fiéis, de um lado, e os mortos, os santos e Deus, do outro. É evidente que os dois aspectos são contraditórios, tanto mais que a clericalização acentuada da vida religiosa se efectua ao mesmo tempo que a eclosão, principalmente no mundo urbano, de um laicado portador de aspirações espirituais novas. De facto, as cidades compõem um universo particular, aberto à acção, favorável à afirmação do indivíduo, caracterizado pelos 161

contratos igualitários e pelas solidariedades horizontais em que os negócios geram uma reflexão fundada no raciocínio e favorecem a prática alargada da escrita e da leitura. Desenvolvem-se elites que quereriam participar activamente no culto divino e ter acesso directo à Palavra de Deus; desejam uma religião que seja mais permuta e convívio do que autoridade, e que dê espaço tanto à meditação pessoal quanto aos ritos. Em suma, estes leigos, em vias de emancipação política, esperam paralelamente uma libertação espiritual. Além disso, como a Igreja ainda não tinha levado em conta o surgimento das novas realidades económicas, estas elites urbanas sofrem o opróbrio lançado não apenas sobre a actividade mercantil, mas também sobre o comércio do dinheiro e quem o pratica. Finalmente, as novas elites são, no Languedoque, excluídas das dignidades eclesiásticas e monásticas, que continuam reservadas aos filhos da aristocracia: deste modo, encontram-se privadas do magistério espiritual e do reconhecimento social. Baseadas na sua afirmação política, elas reivindicam igualmente o fim da sua subordinação religiosa. Esse estado de coisas começa por alimentar, na primeira metade do século XII, um vigoroso anticlericalismo. Depois, o conflito radicaliza-se: os movimentos evangélicos urbanos, definidos como os de "pseudo-apóstolos", são denunciados, ao contrário dos movimentos anteriores rapidamente integrados na instituição eclesiástica. Dá-se, então, uma fractura social: a pretensão dos citadinos de serem portadores e transmissores da Palavra tende a arruinar a preponderância da aristocracia na Igreja e na gestão do sagrado. De resto, o respeito absoluto pelo Evangelho aniquila a sociedade feudal nos seus fundamentos, porque o texto sagrado proíbe que se julgue e se mate, e proscreve o juramento, nó das relações sociais. Os dissidentes também opõem o Evangelho às instituições eclesiásticas. Pretextando um evangelismo literal, recusam sacramentos e hierarquia, afirmando que é o modo de vida apostólico que funda e fundamenta o direito de pregar a Palavra, e não a ordem (o facto de se ser ordenado clérigo). Com o tempo, o confronto entre os dissidentes e os clérigos produz múltiplos efeitos. Primeiro, uma divisão da contestação em dois ramos. Discípulos de Valdo, um mercador lionês, os valdenses admitem a Encarnação e a Redenção, mas rejeitam a Igreja e os sacramentos, porque trata-se de "obedecer a Deus mais que aos homens" (Act 5,29). Professam que cada um deles, em razão da pureza dos seus costumes, pode pregar, confessar e, até, consagrar o pão e o vinho. Não reconhecem entre eles nenhuma hierarquia, porque o único mestre é

Page 101: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Cristo. Adoptam a pobreza e a mendicidade como condição prática do seu apostolado itinerante: nem bens nem mulher nem trabalho, à maneira dos apóstolos. Por seu lado, o anticlericalismo dos "bons homens" evolui progressivamente para o dualismo, amplificando certas latências do cristianismo da época "romana". Rejeitam o mundo visível e também a criação de Satanás, levando ao extremo o desprezo pelo mundo e o ódio à carne e às 162

vaidades terrestres que se exprimiram em muito autores eclesiásticos nos séculos XI e XII. Retomam, radicalizando-a, a certeza de que o universo é o campo de um combate entre as forças do mal, conduzidas pelo diabo, o Inimigo, omnipresente, e as do bem, um antagonismo figurado na decoração pintada e esculpida das igrejas mais humildes. Mas, entre os bons homens, o deslizar de uma concepção unitária para a concepção dualista do mundo parece derivar, antes de mais, da experiência vivida e também do desenvolvimento da lógica e da dialéctica nas escolas. As lutas e as condenações geram nelas o sentimento de uma ruptura total entre o Evangelho e o século: este dualismo vivido acaba por suscitar um dualismo ontológico que também nasce de uma reflexão sobre a incompatibilidade entre a omnipotência de Deus e o livre curso do mal no mundo. Produto ou, melhor, contraproduto, da teologia nascente, a "cisão do universal" (Jean Jolivet) permite pôr em causa a unidade da Igreja e da sociedade. O dualismo implica uma doutrina particular da criação, assim como relações entre Deus e o mundo. Os bons homens do Languedoque rejeitam a Encarnação e a Redenção pela cruz. Mas a sua dissidência permanece de inspiração cristã. Eles apoiam-se exclusivamente na Bíblia, principalmente no Novo Testamento, que lêem e comentam em língua vernácula. O "Pai-Nosso" constitui a sua única oração. A regra de vida que eles observam conforma-se com os preceitos evangélicos. A sua liturgia, muito simples, só comporta elementos recebidos da tradição da Igreja. Outras dissidências religiosas vão surgindo em diversas regiões do Ocidente latino, a partir de 1120, nomeadamente nos países da bacia do rio Mosa, na Renânia e na Itália setentrional e central. Antes mesmo do fim do século XII, os clérigos estendem sobre estes movimentos o manto da unidade, reunindo-os sob uma denominação genérica: herética pravitas, a "perversão herética". Deste modo, dão corpo a um fantasma nascido do medo causado pela contestação. Nos factos, não existe nenhuma ligação orgânica entre estas dissidências com as estruturas frouxas, embora as suas aspirações concordem. Portanto, é injustificado pensar-se que eles são uma Igreja e uma doutrina. Neste aspecto, revela-se totalmente ilegítimo o emprego dos termos "cátaros" e "catarismo", indiferentemente aplicados ao conjunto das dissidências religiosas que desabrocharam na cristandade ocidental entre 1000 e 1300. O Languedoque medieval ignora estes vocábulos e só os conhece por "bons homens" e os seus "crentes". Depois de 1200, os valdenses do Sul da França são mal conhecidos, por falta de arquivos suficientes. Contudo, verifica-se a sua persistência até ao fim do primeiro terço do século XIV. Recrutam-se principalmente na classe média das cidades, a dos artesãos. O Languedoque serve igualmente de refugio a valdenses vindos da Sabóia e da Borgonha. Os fiéis dos bons homens pertencem às elites urbanas do saber e da riqueza, às quais se junta uma parte da pequena aristocracia do Sul da França: grandemente excluída do prestígio, do poder e dos rendimentos dos benefícios eclesiásticos, 163

Page 102: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

detentoras das igrejas fundadas pelos seus membros e, por isso, dos dízimos que lhes eram muitíssimo contestados, inclina-se naturalmente para o anticlericalismo, depois para um clero desligado dos bens deste mundo e correspondendo a exigências espirituais que também são suas. O facto de a dissidência dos bons homens ser própria das elites ajuda-nos a compreender que rejeitem o sensível e se afastem da religião popular, muito ligada ao concreto: rejeição dos milagres, das imagens e da pompa dos rituais. O seu recrutamento sociológico torna-a muito minoritária, tanto nas cidades como nos campos: atinge um máximo de cinco por cento da população e o valdismo ainda menos. Os clérigos afirmam que o Sul da França está totalmente "gangrenado" pela heresia; mas esta asserção deriva da polémica combatente e de modo nenhum descreve a realidade. Aliás, o radicalismo evangélico contém em si mesmo o aniquilamento dos poderes temporais e espirituais, associados por laços apertados. Pela sua função espiritual e escatológica, numa época em que a religião, a natureza e a sociedade são co-extensivas, a Igreja define o quadro das relações sociais e das condutas; é uma instância reguladora muito importante em que se apoiam os poderes do século. A defesa da unidade da fé, espiritual em primeiro lugar, interessa não só à instituição eclesiástica, mas, com ela, também a todo o sistema social. Por isso, bons homens e valdenses suscitam vivas reacções, cuja violência é correlativa do carácter revolucionário das suas propostas. Jean-Louis Biget 164

A Inquisição (século XIII)

Uma série de concílios regionais, coroados pelo de Latrão III (1179) e, depois, pela bula Ad abolendam (1184), começam a organizar a perseguição aos hereges. Deste modo, com o apoio dos príncipes temporais cujo poder judiciário segue a mesma evolução, passa-se da justiça acusatória à justiça inquisitória no domínio da fé. Em 1199, o papa Inocêncio III, pela constituição Vergentis in senium, assemelha a heresia a um crime de lesa-majestade divina, cominando com as mesmas penas que os atentados à majestade imperial romana. Neste momento, pela conjugação de vários factores, na cristandade prevalece a opinião de que o Languedoque está povoado de hereges. De facto, desde 1170, os poderosos vizinhos condes de Toulouse, o duque da Aquitânia (rei de Inglaterra) e o conde de Barcelona (rei de Aragão) instrumentalizam a heresia para fazer dela um motivo de ingerência nos territórios do principado de Toulouse. Além disso, a fraqueza política do Sul da França faz com que esta se torne um campo privilegiado da acção do soberano pontífice e dos seus legados, na maior parte cistercienses. A luta contra a heresia é a mola da sua política, servindo-se dela para renovar o episcopado, substituindo bispos ligados aos poderes locais por prelados fiéis a Roma. Dá-lhe o pretexto para impor ao conde de Toulouse uma subordinação de facto ao papa. Estas ofensivas conjugadas provocam uma representação hiperbólica da dissidência languedociana. A situação fica tensa quando fracassa a quarta cruzada (1204) que, de certa maneira, humilha o poder pontifício. Por outro lado, há pregadores populares que afirmam que este fracasso está relacionado com a impureza do Ocidente, de que é responsável a heresia. Neste contexto, o assassínio do legado pontifício, Pierre de Castelnau, nas margens do Ródano, numa manhã de Janeiro de 1208, desencadeia a cruzada contra os inimigos internos

Page 103: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

(1209). Mas a empresa revela-se totalmente contraproducente em relação à dissidência, tanto mais que a forma de violência, sofrida colectivamente, 165

acaba por alimentar a heresia. Aliás, é precisamente quando os cruzados se retiram, depois de 1218, que a audiência dos bons homens tem o seu melhor período. Mas tudo muda com a intervenção do rei no Sul da França. O tratado de Paris, concluído em 1229, implica a caça aos hereges. É seguido de um concílio que define os princípios da Inquisição que, então, continua confiada aos bispos. Após diversas hesitações relativamente à Itália, Gregório IX, em Outubro de 1231, instaura, para a Alemanha do Sul, juizes delegados por ele, dando origem à Inquisição papal. Tal como a bula Vergentis in senium, que se referia aos habitantes de Viterbo revoltados contra o papa, a Inquisição procede em primeiro lugar de problemas italianos, em particular do conflito entre Frederico II e a Santa Sé. Contudo, estendida à Alemanha e, depois, na Primavera de 1233, a toda a cristandade latina, ela manifesta a universalidade do poder pontifício e permite que o papa intervenha em todos os locais, justificando-se com a defesa da fé; assim, além de instrumento do magistério pontifício, serve também para a sua afirmação. A Inquisição é uma jurisdição de excepção, derrogatória de todos os direitos. Substitui o processo acusatório, oral e público, por outro, a que deve o seu nome, de inquérito de gabinete, totalmente secreto, em que os visados não têm direito a nenhuma assistência ou defesa. Usa técnicas "modernas", oriundas da racionalidade universitária: elaboração de manuais práticos e precisos, constituição de uma memória estruturada, consignada em registos, que a indústria nascente do papel permite multiplicar. Os inquisidores esforçam-se por obter a confissão dos acusados: do ponto de vista judiciário, esta considera-se, então, uma prova perfeita; do ponto de vista espiritual, se for sincera, abre caminho à penitência, a que os hereges arrependidos são admitidos; graduada consoante a gravidade das faltas, toma a forma da prisão, d'"o muro", ou, então, andar com a cruz - infamante - e a obrigação de fazer peregrinações aos principais santuários da cristandade. A participação na viagem ultramarina, isto é, na cruzada do Oriente, também constitui uma pena até perto de 1250. Os hereges impenitentes são entregues aos representantes dos poderes temporais, que os conduzem à fogueira. Estes autos-de-fé, que chocam no século XXI, no século XIII não tinham o impacto que se poderia imaginar. Para a maioria da população, trata-se de cerimónias penitenciais e purificadoras que reduzem uma fractura e marcam um regresso à unidade e à harmonia. Para os cristãos que permanecem na ortodoxia, o castigo dos hereges - que ofenderam a Deus - é promessa de eternidade, motivo de alegria e não de luto. A solidariedade espiritual e social não se estabelece em torno dos hereges, mas contra eles. Na verdade, o que está em causa, tanto para os inquisidores como para a enorme maioria da população, é a salvação de todos. No século XIII, não se considera que a acção inquisitorial viole as consciências; muito pelo contrário, a heresia é que é sentida como uma violação da fé. A Inquisição não suscita mais que uma hostilidade minoritária, o que explica que possa funcionar, porque, por 166

si mesma, não dispõe de nenhuma força material. Com o apoio das multidões, ela também beneficia da assistência decisiva do poder capetíngio. Com efeito, a ortodoxia sincera dos soberanos opõe-se vigorosamente a todas as formas de dissidência; além disso,

Page 104: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

independentemente da sua fé pessoal, intervém a defesa da monarquia, porque a "explosão universal" põe em causa a unicidade do poder, desqualificada ainda mais como emancipação de Satanás; por fim, numa época em que a ligação espiritual é a mais forte garantia da coesão das populações, está certo que a unidade política assente na unidade de crença. Perante a dissidência, a Inquisição mostra-se, graças a estes apoios, bastante mais eficaz do que o exército dos cruzados. Quebra e destrói solidariedades territoriais, familiares e sociais, chegando até a aniquilar o clero dos bons homens. Por isso, é certo que ela desempenha um papel no enfraquecimento da dissidência. No entanto, a desagregação da base social da heresia também parece determinante. Durante o século XIII, a pequena cavalaria acaba por ser esmagada pela evolução económica e pela inflação, que reduzem os seus rendimentos. A única tábua de salvação reside no acesso aos ofícios da monarquia ou aos benefícios da igreja, o que exclui a opção da dissidência. As elites burguesas ligam-se à monarquia, que lhes oferece possibilidades de participação no poder e de promoção porque precisa de técnicos do direito, da escrita e da finança. As causas sociais da derrocada da dissidência dos bons homens são realçadas pelo caso dos valdenses, que desaparecem do Languedoque depois de 1330 mas se mantêm nos Alpes do Delfinado e na Provença, desertando das cidades para os campos. A religião dos bons homens não tem a capacidade de se popularizar para sobreviver: no final do primeiro terço do século XIV já está extinta. Nesta extinção, os factores religiosos desempenham um papel essencial. Com efeito, as ordens mendicantes, frades menores e pregadores, efectuam a reconquista espiritual das elites. Ao contrário das ordens religiosas tradicionais, cujos monges do coro pertencem na sua esmagadora maioria, se não na sua totalidade, à aristocracia, os pregadores e os menores reúnem no seu seio os filhos das elites de nascimento e das elites burguesas. Esta integração, também própria dos bons homens, constitui uma novidade revolucionária, contribuindo para uma melhor compreensão dos problemas. Uma análise mais apurada dos dados da economia justifica a existência de certas formas de benefícios e de créditos. Abrem-se novos caminhos para a penitência e a salvação que situam as obrigações individuais no plano da consciência, como testemunha o desenvolvimento da confissão auricular. A insistência na pregação sobre o Purgatório promete o resgate aos pecadores eventuais e abre a todos a esperança da eleição celeste. Os mendicantes também propõem às elites uma pregação que convém à sua cultura e ao seu estado. Para que seja mais bem entendida, no Sul, concorre com a elaboração e a expansão de uma arquitectura militante, cujo volume 167

amplo e unificado promove as igrejas, tornando-as casas da palavra nova, e desviam contra a heresia alguns dos seus trunfos mais fortes: a austeridade e um certo distanciamento do sensível. O despojamento dos edifícios do gótico da região de Toulouse incita a elevar-se para Deus, mediante o retorno a si próprio e à meditação: constitui a expressão monumental de um processo de interiorização e de afirmação do personalismo religioso; participa na resposta a necessidades espirituais parcialmente responsáveis pelo sucesso da dissidência nas elites sociais. Esta pastoral tem êxito. Por toda a parte no Languedoque, os filhos das famílias heréticas contribuem para povoar os conventos dos mendicantes desde o início do século XIV. Além disso, a multiplicação de capelas abertas nas paredes exteriores das igrejas meridionais, iniciada no convento dos Jacobinos de Toulouse, tem por função primordial acolher a sepultura das grandes linhagens ou os altares das confrarias. A sua concentração ao redor dos

Page 105: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

coros e das naves exprime actos de fé, traduz o regresso à Igreja de oligarquias há muito dedicadas aos bons homens e marca o sucesso da renovação pastoral que se manifesta igualmente no progresso do enquadramento paroquial. Assim, muito mais do que a actividade dos inquisidores, foram os dados políticos, sociológicos e sobretudo religiosos que conduziram à extinção da religião dos bons homens no Languedoque. Jean-Louis Biget 168

O fim dos tempos

Na perspectiva medieval cristã, a visão da história é indissociável de uma interrogação sobre o fim dos tempos e o Último Juízo que impregna toda a Bíblia: a escatologia que mergulha as suas raízes no Antigo Testamento. Os profetas Amós, Miqueias e Oseias descrevem o futuro dia de trevas, de luto e de castigo: furacões e tremores de terra precederão o Juízo Final; depois, Deus manifestar-se-á no esplendor da uma teofania e a conversão da humanidade inaugurará um logo período de felicidade. Ezequiel, Joel, Isaías e Daniel precisam estas noções nos textos designados sob o nome de apocalipses ("revelações"), em que descrevem a sua visão, realçando a vinda do Messias, rei sobre-humano que governará este mundo renovado. Redigido pouco antes do nascimento de Cristo, o Livro dos segredos de Henoc precisa que, depois de seis mil anos de existência, o mundo será destruído; então será instaurado um reino universal de mil anos, que precederá o dia de Iavé, o grande Julgamento que inaugurará a eternidade. No Novo Testamento, o Evangelho de Mateus, as duas Epístolas de Paulo aos Tessalonicenses e, sobretudo, o Apocalipse de João (dos últimos anos do século I da nossa era) falam da Parúsia, da segunda vinda de Cristo no fim dos tempos, e dos seus sinais precursores: catástrofes cósmicas, perseguições dos cristãos, apostasia geral e abandono da fé, o reinado do Anticristo e sua derrota final, a ressurreição dos mortos e o Juízo Final. A Idade Média alimentou-se destas concepções: a sua visão da história foi dominada pela idéia de que ela constitui não só uma etapa num percurso cíclico - como no mito antigo do eterno retorno -, mas também que, um dia, terá um fim definitivo; enquanto esperam, os homens devem trabalhar para construir cá em baixo o reino de Deus, cuja realização plena se situará no além. Um dos maiores problemas postos pelo texto do Apocalipse - cujo carácter inspirado só tardiamente foi reconhecido e que foi muito pouco comentado no mundo bizantino - é o da menção (Ap 20,1-5) a um período 169

intermédio, um "reino de mil anos", situado entre o tempo da história e a eternidade do além. Seria preciso tomar a expressão à letra ou atribuir-lhe um valor simbólico? Santo Agostinho prefere esta segunda interpretação, tendo apresentando no início do século V este milénio como uma figura da história da Igreja, chamada a durar até ao fim dos tempos. Mas outros comentadores, minoritários, continuaram a considerar que esta passagem anunciava um período de regeneração que preparava a vinda do Céu à Terra. Esta interpretação é designada como "milenarismo": nem todos os que o defenderam acreditaram no advento de um reino de mil anos; além disso, realçaram menos o fim do mundo do que a instauração na Terra de uma era de felicidade e de paz, e o "grande dia" que devia marcar o seu início. Esta espera e

Page 106: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

expectativa manifestou-se numa atenção vigilante e nas profecias que caracterizaram as suas etapas. Contudo, o milenarismo é tão-só uma das formas possíveis da escatologia cristã, que também inspirou certas correntes reformadoras que se esforçaram por criar, no quadro dos mosteiros, uma sociedade perfeita, como antecipação da Jerusalém celeste (por exemplo, Cluny). Na perspectiva tradicional, até ao início do século XIII, desconhecia-se a idéia de progresso. Pelo contrário, os cronistas estão convencidos da existência de um declínio progressivo do fervor religioso, à medida que os cristãos se afastam da perfeição dos primeiros tempos. Por conseguinte, a aspiração a uma reforma só podia apresentar alguma legitimidade, caso se apresentasse como um regresso às origens: à Igreja dos apóstolos ou ao mundo anterior ao pecado de Adão e Eva. A aspiração a uma sociedade mais justa e mais fraterna traduziu-se mais geralmente no desejo de regressar à Idade de Ouro, mito igualitário e paradisíaco que constituiu o pano de fundo ideológico de numerosos movimentos políticos e sociais nos últimos séculos da Idade Média. Entretanto, nesta tensão permanente entre o passado e o futuro, a referência ao futuro mantém-se fundamental. A escatologia cristã tem por finalidade a salvação prometida por Deus, no final de cada história: da individual de cada ser humano e da colectiva da Igreja, nova Israel, que, nesta Terra, caminha para o Reino eterno. Nesta perspectiva, o lugar da salvação da humanidade só poderia ser Jerusalém, onde deviam acontecer as promessas divinas não só para Israel, mas também para o conjunto das nações (cf. Is 42,6; 49,6). A data em que se realizariam estes acontecimentos é objecto de numerosas especulações, em geral baseadas no Livro de Daniel. Para os exegetas medievais, seria necessário determinar se os combates e os triunfos descritos no Apocalipse concernem a um tempo já passado - ao tempo das perseguições sofridas pela Igreja primitiva - ou se se aplicam ao presente e ao futuro. A primeira interpretação, baseada em Santo Agostinho, prevaleceu durante a Alta Idade Média, nos comentários do Apocalipse de Beda, o Venerável, e de Beatus de Liébana, nos séculos VII e VIII, assim como no de Haimon d'Auxerre, por volta de 840. Mas, a partir do século X, observa-se uma renovação de interesse por uma leitura 170

histórica do Apocalipse, atestada, por exemplo, pelo tratado do abade Adson de Montier-en-Der, Sobre o nascimento e os progressos doAnticristo (ca. 950): o fim do mundo aproxima-se e será precedido pelo regressos dos dois grandes profetas subtraídos à morte, Elias e Henoc, que prepararão os fiéis para o enfrentamento com o Anticristo. Este reinará durante três anos e meio: reconstruirá o Templo de Jerusalém e far-se-á adorar como se fosse Deus, até que será morto pessoalmente por Cristo, descido do Céu para o Juízo Final. Nesta obra também aparece o tema do imperador dos últimos tempos que, com a aproximação do termo da história, se dirigirá a Jerusalém para depor as suas armas e a sua coroa no monte das Oliveiras. É neste contexto que é necessário situar o sucesso popular da primeira cruzada (1095-1099). Mas o papado empenhou-se igualmente a mobilizar estas energias ao serviço da reforma "gregoriana", ao apresentá-la como uma urgência absoluta e um episódio decisivo do combate entre as forças do bem e do mal (adeptos e praticantes da simonia, do casamento dos padres e da investidura laica). Nisto, Roma recebeu o apoio de uma monja alemã visionária e profetisa, Hildegarda de Bingen (+ 1179), que não hesitou em advertir o imperador Frederico Barba-Ruiva e de ameaçar o clero com os piores castigos, se não se reconciliasse com os reformadores. Mas, neste aspecto, a personagem então mais importante é, sem dúvida alguma, Joaquim de Fiore (+ 1202). Este monge calabrês, que deixou a ordem cisterciense para

Page 107: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

se dedicar a uma vida mais perfeita, foi o primeiro autor medieval que fez do livro do Apocalipse a chave de uma leitura teológica da Igreja e da humanidade. Dividiu a história em três idades, correspondendo cada uma a uma pessoa da Trindade. A primeira, da criação à Encarnação, é a idade do Pai: o seu livro é o Antigo Testamento e os homens, todos casados, viviam nele de forma carnal. A idade do Filho ia do nascimento de Cristo até ao início do século XIII, em função dos números dados pelo Livro de Daniel; é uma época simultaneamente carnal e espiritual, colocada sob o sinal do Novo Testamento, em que os simples fiéis estavam enquadrados e dirigidos pelos clérigos seculares. Depois, devia começar a terceira idade, marcada pela manifestação plena do Espírito, em que os crentes, sob a influência de uma elite de "homens espirituais", chegariam a uma compreensão plena "em espírito e em verdade" da Palavra de Deus. No espírito de Joaquim, estes "homens espirituais" eram, sem dúvida, os monges. Mas a sua mensagem foi retomada, nos anos 1240-1250, por alguns frades menores que viram em São Francisco, tornado "segundo Cristo" (alter Christus) depois da sua estigmatização, o Messias da terceira idade, cujos filhos eram chamados a renovar a Igreja e o mundo. Com Joaquim de Fiore e as correntes joaquimitas, cuja influência se estende a toda a Europa até ao século XVI, a história reveste-se, pela primeira vez, de um significado positivo, concebido como um tempo de crescimento e de progresso em direcção à idade do Espírito. 171

A partir do século XIV, a reflexão sobre o fim dos tempos centra-se no antagonismo entre as forças do mal - a Igreja carnal - e as do bem, associadas à Igreja espiritual; na segunda metade do século, a referência ao Apocalipse torna-se mais freqüente e o realce incide, tanto nos sermões de certos pregadores como na iconografia, no carácter violento do "tempo do fim": comentadores e artistas dão cada vez mais espaço e importância à personagem do Anticristo; mas também difundem a imagem da Jerusalém celeste, morada eterna prometida aos eleitos, apresentada sob a forma de uma cidade ideal, e já não do jardim do Éden. Paralelamente, à medida que diminuem as esperanças de uma reforma da Igreja, a escatologia vai-se politizando: multiplicam-se os homens e as mulheres, tanto clérigos como leigos, que afirmavam ter recebido de Deus a missão de ler os acontecimentos e de identificar entre os soberanos os sequazes do Anticristo ou, ao contrário, os prováveis reis messiânicos. Aquando do Grande Cisma (1378-1417) e durante as guerras franco-inglesas, cada um dos campos rodeou-se de profetas ou de profetisas. Alguns chegaram mesmo a acreditar, como Brígida da Suécia (+ 1373) e Catarina de Sena (+ 1380), que o papado deveria reformar-se e, com ele, a Igreja; outros houve que, como Joana d'Arc e muitos outros, centraram as suas esperanças na acção do rei da França, do imperador ou de um soberano da Península Ibérica: os melhores cristãos andavam à procura de um chefe espiritual ou temporal que, pondo termo às divisões, restabelecesse a paz e organizasse a última "passagem" ultramarina [a última cruzada] que permitisse libertar a Terra Santa e converter os muçulmanos e os judeus, criando assim as condições favoráveis ao regresso glorioso de Cristo a Jerusalém. André Vauchez 172

Latrão IV (1215) O ímpeto pastoral

Page 108: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Embora não tenha ficado na história do cristianismo ocidental como um concílio tão célebre como o de Trento, o IV Concílio de Latrão marca uma etapa decisiva, nomeadamente do ponto de vista da prática religiosa, cujos elementos definiu segundo modalidades que se revelarão duradouras. Convocado em 1215 por Inocêncio III (+ 1216), esta assembleia é como que o cadinho da reforma gregoriana. Parte dos três concílios anteriores do mesmo nome, que se reuniram no decurso do século XII por iniciativa papal. Esta renovação da actividade conciliar num local propositadamente escolhido, o palácio de Latrão, próximo da catedral de Roma, a igreja de São João de Latrão, e que é, então, a residência papal (o Vaticano só começou a sê-lo em finais do século XIV), é o sinal do poder recentemente adquirido pelo bispo de Roma. A reunião foi preparada com cuidado por convites largamente dirigidos, desde o ano precedente, aos dignitários eclesiásticos latinos e orientais, e a alguns poderosos leigos. O programa dos debates foi fixado pelo papa, eminente jurista formado nas escolas de Bolonha. Pela dimensão que lhe é dada (mais de mil e duzentos participantes) e pelo alcance das decisões que tomou, o concílio emparelha com os grandes concílios ecuménicos dos primeiros séculos cristãos. Situada na aurora do século XIII, a reunião desta assembleia intervém no contexto perturbado: enraízamento dos movimentos de contestação sobretudo no Norte da Itália e no Languedoque (valdenses e homens bons, chamados cátaros); aspirações claras da maior parte dos leigos cultos, em meio urbano, a um enquadramento religioso mais apoiado, que traduz o florescimento de movimentos de devoção, como os humilhados (Umiliati) ou os penitentes, na Itália; fracasso da quarta cruzada, que regressou do Oriente por Constantinopla, cujo saque (1204) sela a ruptura entre os mundos cristãos latino e grego. Com lucidez e energia, o papado quis retomar, com este Concílio, as rédeas da situação e afirmar os quadros da 173

vida religiosa no espaço sob a sua obediência, que então cobria não só as regiões antigamente cristianizadas, mas também os países de "cristandades novas". A propósito, é sugestivo verificar que os cânones do IV Concílio de Latrão começam por uma longa profissão de fé. Menos sintética do que as dos concílios ecuménicos dos primeiros séculos e mais marcada, na sua parte final, pelo contexto da época, não teve o mesmo sucesso; mas foi a ocasião para reafirmar o conteúdo da fé da Igreja ocidental e a sua posição sobre as questões sacramentais, então debatidas ou contestadas, nomeadamente a doutrina eucarística da transubstanciação. Depois, num longo corpo de cânones (artigos), o concílio aborda todos os problemas ainda suspensos, terminando pela cruzada e pela situação nos Lugares Santos. Na linha das disposições internas da Igreja do Ocidente, encontram-se os grandes combates dos reformadores gregorianos para limitar os tráficos de dinheiro ligados aos cargos eclesiásticos e à administração dos sacramentos, assim como para promover a dignidade dos clérigos, elevados a modelos de comportamento cristão para as suas ovelhas. Por isso, o concílio recorda que estes devem adoptar um modo de vida que, com as suas renúncias, os separe cada vez mais dos leigos: obrigação do celibato; modéstia no vestir e no mobiliário e arranjo das casas; dignidade dos costumes, afastamento dos locais de diversão e de devassidão. O concílio mostra-se igualmente preocupado com a sua formação, que ainda não está dotada de instituições próprias (os seminários só haveriam de aparecer depois do Concílio de Trento) e baseia-se nas pequenas escolas paroquiais, nas escolas catedrais de que, por vezes, nascerão uma universidade, como em Paris, ou, mais regularmente, a reunião dos clérigos diocesanos à

Page 109: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

volta do bispo aquando das assembleias sinodais, cuja reunião é obrigatória duas vezes por ano. Nesta ocasião, a leitura dos cânones dos concílios, a pregação do bispo ou de um clérigo mandatado para o substituir, assim como a participação na liturgia da catedral são outros tantos meios para dar aos servidores da paróquia modelos a que possam ater-se. Estas disposições aparecem em perfeita coerência com as que tornam célebre o IV Concílio de Latrão e que concernem à acção pastoral a empreender junto dos fiéis para corresponder às suas aspirações e reabsorver a contestação que passa, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento de uma pregação apoiada: o meio tradicional de transmissão da fé foi amplamente captado por estas correntes contestatárias que a Igreja pretende combater, situando-se no mesmo terreno. É por isso que o concílio se propõe instituir pregadores especialmente afectados a esta missão junto dos bispos que não podem ou não querem desempenhar este aspecto do seu cargo. É verdade que a disposição não teve nenhuma aplicação prática; mas, de algum modo, antecipa o sucesso das ordens mendicantes, a mais célebre das quais foi a dos irmãos pregadores, instituída em 1216. 174

No entanto, o instrumento pastoral em que mais se insistiu foi a paróquia, a mais pequena das circunscrições eclesiásticas, pela qual se opera o enquadramento dos fiéis. Pela primeira vez desde há séculos, um concílio geral debruça-se sobre esta instituição e fixa as condições mínimas da prática requerida aos fiéis: cada um deverá confessar-se e comungar ao menos uma vez por ano, pela Páscoa, na igreja da sua paróquia (cânone 21). O cumprimento destes gestos distinguirá os fiéis respeitadores da Igreja dos que põem em causa a validade dos sacramentos administrados por clérigos que eles julgam indignos ou por aqueles que recusam totalmente o valor destes sinais concretos da graça. O servidor da paróquia [o padre cura] é encarregado de apontar o nome daqueles que resmungam ao cumprir o seu dever. Ao adoptar um ritmo anual para a prática da confissão e da comunhão, o concílio apenas retoma as disposições mínimas adoptadas pelos numerosos bispos, que podem obrigar os seus fiéis a uma prática mais freqüente - três vezes por ano, no Natal, na Páscoa e no Pentecostes. O ritmo anual entrará tão solidamente nos costumes que fornecerá aos inquéritos contemporâneos de sociologia religiosa um critério de cálculo da identidade cristã média e definirá uma categoria de praticantes, os "pascalizantes", menos fervorosos do que os praticantes regulares. Ao enunciar esta obrigação, o cânone 21 liga dois sacramentos importantes do grupo dos sete que acabava de ser fixado e cuja primeira menção figura nas Sentenças de Pedro Lombardo (ca. 1140), obra de base do ensino teológico. Trata-se dos sacramentos cuja prática é renovável, ao contrário dos outros cinco, que são recebidos uma só vez: baptismo, confirmação, ordem ou matrimónio, consoante o estado de vida clerical ou laical, e a extrema-unção. Com efeito, na prescrição, estes dois sacramentos estão dependentes um do outro: a comunhão só acontece quando o fiel está preparado mediante a confissão das suas faltas junto do padre da paróquia. Ao fazer isto, o concílio integra uma evolução mais ampla registada pelo sacramento da penitência que, doravante, toma a forma de confissão das faltas, anteriormente identificadas e pelas quais sente pesar e arrependimento: a confissão individual auricular. Este acto é considerado suficientemente penoso para garantir ao fiel o perdão divino, dado pelo confessor, e concluído com o cumprimento de algumas penas concretas: orações, esmolas ou, por vezes, dias de jejum ou peregrinações. Esta nova disciplina penitencial pressupõe uma educação da consciência individual, pela qual o fiel se reconhece responsável pelos seus actos

Page 110: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

e pelas suas conseqüências em matéria de salvação; ele foi-se preparando ao longo do século XII pelo surgimento do "socratismo cristão" (Marie-Dominique Chenu). Assenta igualmente na convicção segundo a qual, distante de qualquer forma de predestinação, o arrependimento e a conversão podem assegurar a todo o momento a salvação, como o ilustra a figura evangélica de Maria Madalena, a pecadora arrependida, cujo culto conhece nesse período um grande desenvolvimento. Nesta aprendizagem, o papel do confessor é primordial; 175

é por isso que o concílio descreve qual deve ser a atitude do padre de paróquia, comparada com a do médico que deve derramar o óleo e o mel nas chagas da consciência e não avivá-las com uma culpabilização excessiva: uma verdadeira "cura das almas" cuja formulação latina, a cura animarum, está na origem do termo "cura" adoptado a partir do século XIII-XIV [no português] para designar o pároco [termo cujo uso é só do século XVIII]. Em vez de permanecerem letra morta, as decisões pastorais do IV Concílio de Latrão foram amplamente difundidas. Há quem veja uma prova disso na presença de passagens inteiras dos seus cânones, nomeadamente do vigésimo primeiro, nos textos de legislação para uso das dioceses redigidos aquando das assembleias sinodais, e nos estatutos sinodais, de que os padres das paróquias deviam ter uma cópia em seu poder. Melhor ainda, as primeiras palavras do cânone 21 Utriusque sexus ("Os fiéis de um e de outro sexo...") são referenciadas na pregação, independentemente de ser ou não fonte de brincadeira, sinal de que os fiéis se tinham familiarizado com elas. E, além da letra das disposições conciliares, o ideal sacerdotal da cura d'almas que as inspirava perdurou através dos séculos. Catherine Vincent 176

Francisco, o pobre de Assis (+ 1226)

Nascido em 1191-1192, Francisco era o filho mais velho de um mercador de tecidos da pequena cidade de Assis (Úmbria, Itália) a quem deveria suceder. Mas mostrou-se mais interessado pela vida festiva vivida pela juventude dourada da sua cidade. A sua riqueza permite-lhe freqüentar as famílias nobres e, em contacto com elas, impregnou-se dos ideais da cultura cortesã e cavaleiresca. Em 1202, participou na guerra que opôs Assis a Perúsia e ficou prisioneiro durante alguns meses. Em 1205, com a esperança de se cobrir de glória, juntou-se a uma expedição militar contra os partidários do Império, na Apúlia. Mas, em Espoleto, mudou o rumo da sua vida na seqüência de uma visão. Trabalhado pela graça, procurou o seu caminho na meditação solitária e na caridade. Depois de um violento conflito com o seu pai, que lhe censurou a prodigalidade para com os pobres e as igrejas, Francisco renunciou aos seus bens, colocou-se sob a protecção do bispo de Assis como penitente leigo e viveu como um eremita itinerante nos arrabaldes da cidade, onde o seu comportamento fez com que o considerassem um louco. Em Fevereiro de 1208, ao ouvir a passagem do Evangelho de São Mateus (10,7-10) relativa ao envio dos apóstolos em missão, descalços e sem dinheiro, tomou consciência da sua verdadeira vocação: viver na pobreza evangélica e anunciar a Palavra de Deus. Desde então, modificou o seu comportamento: conservando unicamente uma túnica e substituindo o seu cinto por uma corda, começou a chamar os seus concidadãos à conversão. Logo depois,

Page 111: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

juntaram-se a ele alguns habitantes de Assis e arredores, tanto clérigos como leigos. Em 1209, Francisco redigiu uma espécie de "manifesto" programático, feito com algumas frases do Evangelho, e dirigiu-se a Roma com os seus companheiros para o submeter ao papa Inocêncio III, que se contentou com aprovar oralmente a sua opção de vida, esperando para ver como evoluiria a sua experiência, muito próxima dos primeiros valdenses. De regresso a Assis, onde lhes foi entregue uma pequena igreja em ruínas, Santa Maria da Porciúncula, os irmãos ou frades - que, então, 177

tomaram o nome de "menores", os pequeninos, os humildes - desenvolveram as suas campanhas de pregação na Itália central e atraíram jovens mulheres, fascinadas com o carisma de Francisco. Entre elas, uma jovem aristocrata de Assis, Clara, que fugiu de casa dos pais em 1212 e haveria de estar na origem das "Pobres damas reclusas" de São Damião - as futuras clarissas -, o ramo feminino do movimento. Em 1217, aquando do capítulo geral (reunião anual dos irmãos), decidiu-se enviar alguns em missão para o Norte dos Alpes e para além-mar. Parece que Francisco teria querido partir para França, mas o cardeal Hugolino persuadiu-o a ficar em Itália para velar pela sua comunidade, ainda frágil, embora em pleno desenvolvimento. Entretanto, em 1219, o Pobre de Assis vai para o Oriente e junta-se às tropas da quinta cruzada. Durante uma trégua, foi conduzido à presença do sultão Al-Kâmil, a quem tentou convencer da superioridade da fé cristã. Depois deste fracasso, dirigiu-se à Terra Santa, mas teve de voltar à Itália em 1220. Na sua ausência, alguns irmãos haviam tomado iniciativas que ameaçavam o espírito da fundação. Francisco restabeleceu a ordem, mas preferiu abandonar a direcção do movimento, cujo rápido desenvolvimento - em 1221, contavam-se mais de mil frades - punha problemas institucionais e disciplinares que ele não se sentia à altura de enfrentar. Com efeito, o papado pressionava no sentido de que esta fraternidade evangélica se transformasse numa ordem religiosa, evolução que Francisco não rejeitava, mas que pretendia controlar. A partir de então, embora continuando a pregar com um sucesso cada vez maior, consagrou todos os seus esforços à redacção de uma regra, cuja primeira versão (1221) foi recusada pela Cúria; a segunda, mais jurídica e menos original, foi aprovada por Honório III em Novembro de 1223, tornando-se a regra dos frades menores. Muito doente e pouco à vontade com os novos problemas postos pelo crescimento da ordem, Francisco passou longos períodos em eremitérios onde, num deles, o de La Verna, teria recebido os estigmas da Paixão de Cristo, no dia 24 de Setembro de 1224. Quase cego, compôs ali o Cântico do Sol ou das criaturas, texto fundador da literatura religiosa em língua italiana. Sentindo que o fim se aproximava, redigiu o seu Testamento, onde, com emoção, evoca os primeiros tempos e lembra com vigor a necessidade de permanecer fiel ao ideal evangélico. Morreu na Porciúncula na noite de 3 para 4 de Outubro de 1226 e foi canonizado em 1228 por Gregório IX (antigo cardeal Hugolino). Sob o impulso de frei Elias, rapidamente se iniciou a construção da magnífica basílica que lhe foi dedicada no exterior de Assis. Os seus restos mortais foram para lá trasladados em 1230 e, por volta de 1300, a parte superior da basílica foi coberta, por Giotto e sua oficina com frescos que evocam os principais episódios da sua vida e alguns dos seus milagres. Francisco de Assis não deixou uma obra escrita muito importante: duas pequenas regras, alguns bilhetes, cartas e orações, isto é, um pequeno 178

Page 112: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

volume. E, embora alguns textos (Cântico do irmão sol ou das criaturas ou o seu Testamento) sejam justamente célebres, conhecemos Francisco sobretudo através das lendas. Ele não foi nem teólogo nem legislador, mas testemunha do Evangelho no seu tempo, mais próximo na sua busca de Deus dos heróis dos romances cavaleirescos do que dos doutores universitários. Por isso, a sua recordação fixou-se simultaneamente nas lendas orais, reunidas na colectânea Fioretti (Florinhas, passadas a escrito durante o século XIV) e em numerosas Vidas escritas pelos seus irmãos. A interpretação da sua existência constituiu de imediato uma empresa importante. Desde 1229, Tomás de Celano, um frade próximo dos meios dirigentes da ordem e do papa Gregório IX, escreveu uma primeira Vida que teve uma grande difusão. Mas, apesar das suas qualidades e da sensibilidade religiosa do seu autor, esta biografia é objecto de sérias críticas. Depois, escreveram-se outros textos, como a Lenda dos três companheiros, que realça os laços que Francisco manteve com a sociedade urbana de Assis. Em 1246, o ministro geral da ordem mandou que os frades que tivessem conhecido o seu fundador escrevessem as suas recordações. Daí resultou um grande volume de testemunhos, a Compilação de Perúsia ou de Greccio, em que inspiraram os biógrafos seguintes, a começar por Tomás de Celano que, em 1247, escreveu uma segunda Vida, bastante diferente da primeira. Mas as tensões que surgiram no seio da ordem por alturas de 1250 acentuaram a necessidade que os irmãos tinham de conhecer o verdadeiro rosto do seu fundador e a sua atitude face a questões fundamentais para eles: a prática da pobreza e os estudos. Em 1263, Boaventura de Bagnoreggio, ministro geral da ordem, publicou uma Vida intitulada Legenda maior, que se tornou a única biografia autorizada e, em 1266, o capítulo geral ordenou a destruição dos manuscritos de todas as Vidas anteriores. Contudo, a sua interpretação mística e triunfalista nem de longe reuniu unanimidade e, a partir de finais do século XIII, quando se agravou a querela entre os espirituais, partidários da pobreza integral, e a maioria da ordem, redigiram-se novas compilações que puseram em causa a imagem desenhada por Boaventura. Entretanto, estes escritos contestatários, que se referiam às recordações deixadas pelos primeiros companheiros, um dos quais foi o irmão Leão, não podem considerar-se mais objectivos que as biografias anteriores: até contribuíram para baralhar mais as cartas, interpretando a santidade do Pobre de Assis em função dos problemas que se punham no seu tempo e não dos que ele tinha realmente encontrado. Esta produção abundante e a das colectâneas de milagres, bem como uma iconografia superabundante, mostram bem que a figura de Francisco continuava no centro das preocupações dos frades menores e dos leigos que os rodeavam. A continuação deste fascínio deve-se ao facto de o santo de Assis ter operado uma síntese dos movimentos religiosos populares anteriores - alguns dos quais acabaram por ser condenados como heréticos - e da 179

tradição cristã mais autêntica. Nele, andavam a par uma profunda devoção a Cristo, venerado na sua abjecção e nos seus sofrimentos, com um sentido profundo da omnipotência e da transcendência divinas. O seu desejo de levar uma vida evangélica, na pobreza e na humildade, como Cristo e os apóstolos, não excluía a fidelidade total à Igreja, a única que podia transmitir a Palavra de Deus e torná-lo presente pelo sacramento da eucaristia. A seus olhos, a prática da pobreza constituía a própria essência da vida evangélica. Não representando de modo nenhum uma virtude entre outras ou uma condição económica e jurídica, era em primeiro lugar um modo de vida individual e colectivo que permitia "seguir nu Cristo nu". Ao conferir uma

Page 113: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

segurança ilusória, o dinheiro falseava as relações entre os homens, fazendo com que se esquecessem da sua igualdade fundamental como filhos do mesmo Pai. É por isso que ele proíbe que os frades menores recebam ou possuam a mais pequena moeda, excepto se necessária para os doentes, e prescreve-lhes que trabalhem com as suas mãos, vendo a mendicidade como um remedeio. Viver segundo o Evangelho pressupunha não somente a aceitação da insegurança, mas também que se estivesse em pé de igualdade com os mais pobres como, por exemplo, os leprosos. Por isso, pode considerar-se que Francisco de Assis procurou criar com os frades menores um modelo alternativo de sociedade, subtraído ao mundo da compra e venda, e recusando as hierarquias ligadas à riqueza e ao prestígio social ou cultural. Na fraternidade que ele fundou, os clérigos e os leigos estavam em pé de igualdade e, pelo menos nos primeiros tempos, os homens e as mulheres tinham vidas separadas, mas complementares. É a "utopia franciscana". Mas, embora este modelo tenha sido rapidamente abandonado, continua a exercer um fascínio real, como o mostram os movimentos que, no seio da ordem franciscana, até ao século XVI já bem entrado, se afirmam seus seguidores com a reforma dos capuchinhos. Ainda que, freqüentemente, tenha perdido a sua força ou tenha sido falseada, a mensagem de Francisco de Assis marcou a visão religiosa dos últimos séculos da Idade Média no sentido de um cristocentrismo radical e de uma devoção à humanidade sofredora do Salvador, cujo caminho da cruz (via crucis) constituiu uma das expressões mais significativas. Francisco de Assis estava em sintonia com a piedade popular; por isso, a representação mimada do Nascimento de Jesus que apresentou em Greccio, na noite de Natal de 1223, esteve na origem da difusão do Presépio, enquanto a espiritualidade mística feminina italiana, com Margarida de Cortona (+ 1297) e Angela de Foligno (t 1308), não cessou de se referir à sua experiência espiritual. Portanto, pode dizer-se que influenciou de maneira profunda e duradoura a espiritualidade e a sensibilidade do Ocidente. André Vauchez 180

As ordens mendicantes

Os contemporâneos foram sensíveis ao aparecimento das ordens religiosas, dos frades menores fundados por São Francisco de Assis (1181-1226) e dos frades pregadores por São Domingos (1175-1221), como este cronista premonstratense alemão, Burcardo de Ursperg: "Neste tempo, o mundo envelhecia. Duas ordens surgiram na Igreja, cuja juventude renovaram à maneira da águia." Apesar das diferenças que existiam entre elas, perceberam os seus traços comuns e a singularidade em relação às formas de vida consagradas preexistentes. Por vezes, designam-se estes religiosos com o nome de "monges mendicantes", expressão muito inexacta porque, justamente, os mendicantes não são monges, mas religiosos de um tipo novo. A originalidade das ordens mendicantes reside, em primeiro lugar, numa opção a favor da pobreza colectiva e da mendicidade, forma de abandono à Providência. O monaquismo beneditino, mesmo o mais rigoroso (cister-ciense), nunca tinha exigido a pobreza individual, que não impedia a comunidade de possuir terras e rendimentos fundiários ou comerciais. Com Francisco e Domingos, as exigências cresceram: ambos proibiram que se possuísse alguma coisa, tanto pessoal como em comum. Para Francisco, a pobreza era a própria essência da vida

Page 114: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

evangélica: os frades menores deviam viver, dia a dia, do trabalho das suas mãos. Em caso de necessidade, podiam recorrer à mendicidade, mas nunca aceitariam dinheiro. Desde os anos 1230, esta exigência atenuou-se e a maior parte das comunidades vivia das receitas da mendicidade e das ofertas, de onde lhes adveio o nome. Para São Domingos, a mendicidade constituía, antes de tudo, uma arma contra a heresia, uma condição necessária - mas não suficiente - para que o testemunho dos pregadores que ele tinha reunido à sua volta no Languedoque fosse recebido pelos leigos desta região, hostis a uma Igreja poderosa e rica. Deste modo, os dominicanos mostraram-se mais flexíveis, aceitando tornar-se proprietários das igrejas e dos conventos em que residiam. Mais tarde, não hesitaram em receber rendas oferecidas pelos reis ou pelas cidades: para eles, a prioridade era 181

o ministério das almas, mediante a pregação e a confissão. Mas, mesmo quando começaram a afastar-se das exigências iniciais, os mendicantes, a que se devem juntar os carmelitas e os eremitas de Santo Agostinho, constituídos, por impulso do papado, em 1240-1255, apareceram como religiosos diferentes porque não tinham propriedades fundiárias e situavam-se fora do quadro senhorial e feudal. Foi uma das razões do seu sucesso junto da sociedade urbana: ao contrário dos bispos, dos cónegos e dos monges, não recaía sobre eles a suspeição de quererem preservar ou estabelecer posições de poder. Entre as inovações dos mendicantes, uma das que mais impressionou foi a sua abertura ao mundo: mesmo continuando a viver em comunidade, não deixaram de permanecer ao abrigo do claustro, obrigados à estabilidade como os monges, mas saíam regularmente dele. O religioso só fica na clausura para restabelecer as suas forças: a sua vocação é incitar os fiéis à conversão e à penitência, pela palavra e pelo exemplo. Deslocando-se, os frades estão em todos os caminhos, dois a dois, para pedir, pregar a palavra de Deus, ir aos studia (centros de estudos superiores) da sua ordem para se formarem em teologia e em exegese bíblica, participar nos capítulos provinciais ou gerais ou executar missões junto da Cúria romana ou do seu superior geral. Estas deslocações são ocasião de numerosos contactos entre eles. Mas as relações com os leigos são bastante mais importantes. Dependendo destes para a sua subsistência, os mendicantes precisam de uma rede eficaz de amizades. Chega-se até a censurar-lhes, depois de 1250-1260, serem demasiado amáveis com os fiéis, sobretudo com as mulheres, para suscitar a seu favor esmolas e legados testamentários. Mas era a pregação que provocava os encontros mais significativos: podia acontecer numa paróquia ou nas praças e nos adros das igrejas ou ainda no quadro das reuniões de confrarias ou de outros grupos de leigos devotos que tinham escolhido frades mendicantes como seus directores espirituais. Outra inovação: a sua relação com a Igreja hierárquica. Embora, originariamente - como São Domingos em Toulouse -, os mendicantes tivessem o cuidado de actuar concertadamente com os bispos, estavam ligados directamente à Santa Sé. Em vez de agirem como simples cooperadores do clero secular, colocaram-se sob a protecção romana, porque pretendiam que o seu chamamento à conversão fosse universal. Em contrapartida desta conivência estreita com o papado, que os cumulou de privilégios, eles apareceram como seus agentes zelosos, o que fez com que fossem considerados suspeitos e até provocou graves conflitos com o clero secular, enquanto não se encontrou um equilíbrio satisfatório na repartição das tarefas e das receitas da cura animaram, da cura d'almas, entre eles e os padres das paróquias, graças à bula Super cathedram de Bonifácio VIII, de 1300. Esta acção apostólica realizada em toda a cristandade

Page 115: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

também teve repercussões nas estruturas do governo das suas ordens. O superior geral (denominado mestre geral nos dominicanos e ministro geral nos franciscanos) 182

era eleito por uma instância representativa; e o capítulo geral, o único que tinha o poder de modificar as constituições, desempenhava o papel de órgão judiciário supremo e podia depô-lo. A inovação mais original consiste num desdobramento do governo da ordem. Em cada província, encontrava-se uma organização semelhante à que existia no cume: um prior ou ministro provincial, escolhido pelo capítulo provincial, constituído por representantes de cada um dos conventos que a compunham. Só levavam à instância superior os problemas que não podiam ser regulados a nível local, o que permitia que os mendicantes conciliassem uma forte autoridade na sua cabeça com uma descentralização efectiva das decisões. Mas a principal diferença em relação ao governo dos monges reside no facto de os superiores só se manterem em funções durante um tempo limitado, enquanto os abades beneditinos eram-no desde a sua eleição até à morte. Além disso, as práticas eleitorais das ordens mendicantes inspiravam-se nas das instituições comunais ou municipais, relativamente democráticas para a época: enquanto, entre os monges, a eleição se fazia segundo uma maioria qualificada, pela adesão da saniorpars - [da parte mais sã, isto é,] o grupo dos mais antigos e dos que exerciam funções de autoridade -, entre os mendicantes bastava a maioria simples: um homem, um voto. O que hoje é regra na vida política, foi naquele tempo uma novidade. Em última análise, o aspecto mais original das ordens mendicantes é, sem dúvida, a sua orientação para a missão entre os não-cristãos e os pagãos, que, desde a origem, se encontra em São Domingos, que sonhava com evangelizar os cumanos [povos bárbaros da região sudeste da Ucrânia], e em São Francisco, que, desde 1217, depois de ter enviado para Marrocos cinco frades [que se alojaram no convento de Santa Cruz em Coimbra, onde os conheceu Fernando de Bulhões, o futuro Santo António, então cónego regrante de Santo Agostinho], tentou converter o sultão do Egipto em 1219. Na seqüência desta experiência, Francisco consagrou um capítulo da sua primeira regra (1121) a definir a atitude a adoptar "entre os sarracenos e outros infiéis". "Os irmãos que para lá forem poderão encarar o seu papel espiritual de duas maneiras: ou não fazer nem demandas nem disputas, ser submissos a todas as criaturas humanas por causa de Deus e confessar simplesmente que são cristãos; ou, então, se virem que é a vontade de Deus, anunciar a Palavra de Deus, a fim de que os pagãos creiam em Deus omnipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, e no seu Filho redentor e salvador, se façam baptizar e se tornem cristãos." Mas os resultados das missões franciscanas foram muito decepcionantes e vários irmãos pagaram com a vida o seu anúncio público da fé cristã. Como já, por volta de 1340, o notava o bispo de São João de Acre, Jacques de Vitry (Historia occidentalis): "Os sarracenos ouviram de bom grado os frades, enquanto pregavam a fé de Cristo e a doutrina evangélica até que se puseram a contradizer manifestamente Maomé na sua pregação... Então, batiam neles e escorraçavam-nos das suas cidades." 183

Deste modo, os mendicantes tomaram consciência de que, para pregar aos muçulmanos com alguma sorte de ser escutados, era preciso renunciar à polémica e aos argumentos de autoridade, aprender a sua língua e impregnar-se da sua cultura com uma leitura aprofundada

Page 116: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

do Corão. Também criaram centros de estudos para a aprendizagem das línguas orientais, por exemplo em Valência e em Tunes. Alguns deles tornaram-se excelentes conhecedores do islão, como o dominicano Ricoldo di Monte Croce, que teve contactos aprofundados com os letrados de Bagdade. Mas os mendicantes tentam igualmente evangelizar os Mongóis: em 1289, o franciscano João de Montecorvino foi enviado pelo papa para junto do Grande Cão. Chegou a Khanbaliq - Pequim -, onde exerceu o seu apostolado junto das minorias cristãs existentes e dos indígenas. Depois de ter recebido reforços, tomou o título de arcebispo de Pequim e repartiu os frades que tinham chegado pelos principais centros da China, onde fundaram conventos franciscanos que foram origem de novos bispados. O esforço missionário das ordens mendicantes também se encontra nas costas do Báltico, junto dos prussianos, dos povos bálticos e na Finlândia. Portanto, os mendicantes corresponderam a este novo clero apostólico com que tinha sonhado Inocêncio III e o Concílio de Latrão IV (1215). De facto, o sucesso dos movimentos heréticos mostrara que a cristianização do Ocidente estava incompleta e, freqüentemente, era superficial. Na periferia da Europa, estavam ainda por converter numerosos pagãos e o islão continuava a exercer uma pressão terrível. Nesta conjuntura, a Igreja não podia contar nem com os monges, cuja vocação não era a acção no mundo, nem com um clero secular mal formado e cujos costumes não tinham, muitas vezes, nada de edificante, enquanto numerosos bispos se deixavam assoberbar pelos negócios e afazeres temporais. Com as ordens mendicantes, apareceram religiosos que o papado considerou providenciais, ratificando a sua entrada em cena, canonizando rapidamente os seus fundadores, São Francisco (+ 1226) em 1228 e São Domingos (t 1221) em 1234. Com efeito, o papado compreendeu muito rapidamente qual poderia ser o papel destas para desfazer a heresia: por isso, apoiou-se profundamente na sua acção, mediante a pastoral, e confiou-lhes a responsabilidade da repressão no quadro do tribunal da Inquisição. André Vauchez 184

Tomás de Aquino (+ 1274)

Tomás de Aquino resumiu o programa da sua vida, ao explicar um adágio da ordem dominicana que encontrou em 1244: "É mais belo iluminar do que apenas brilhar; do mesmo modo que é mais belo transmitir aos outros o que se contemplou do que contemplar somente." Com efeito, ele consagrou toda a sua vida ao ensino, ilustrando, com a sua estatura intelectual, o melhor do pensamento escolástico. Durante a sua vida de estudo, Tomás percorreu longamente a Europa: originário do Sul da Itália, começou os seus estudos na universidade de Nápoles, esteve algumas vezes em Paris, primeiro como estudante, depois como professor (1245-1248; 1252-1259; 1268-1272) e exerceu ofício de professor em Orvieto, Itália, (1261-1265), em Roma (1265-1268) e em Nápoles (1272-1273). Toda a sua obra tem a marca do ensino; porque, embora se tratasse do fruto de um ensino obrigatório para obter a licença para leccionar teologia, o Comentário das Sentenças [de Pedro Lombardo] (1252-1254) continua a ser uma obra teológica pessoal que já anuncia as duas grandes Sumas, ou seja, a Suma Contra os Gentios (começada em 1259 e terminada em 1265) e a Suma Teológica (1265-1273, inacabada). Na primeira destas duas sínteses, Tomás pretende propor uma obra de

Page 117: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

sabedoria, dado que o estudo da sapientia era considerado a empresa humana mais perfeita, mais sublime, mais útil e mais agradável. Portanto, ele pretende "expor, segundo a nossa medida, a verdade proposta pela fé católica, ao mesmo tempo que se rejeitam os erros contrários" (Suma contra os Gentios, I cap. II). Por seu lado, a Suma Teológica, que, com as suas três partes, apresenta-se como uma obra concebida para "instruir os principiantes" (Suma Teológica, I, 1, 7). Além disso, na medida em que em que a função do mestre em teologia, que Tomás assumiu desde a Primavera de 1256, comportava então três aspectos - comentar (legere [ler]), pregar e disputar -, possuímos várias séries de questões disputadas que testemunham a diversidade e a riqueza 185

dos debates intelectuais no século XIII, nomeadamente as questões Sobre a Alma e Sobre as Criaturas Espirituais, ou ainda Sobre o Mal. Os numerosos comentários bíblicos deixados por Tomás - o Comentário de Job (1261-1265), o Comentário das Epístolas de São Paulo, a Lectura sobre São Mateus (1269-1270) e a Lectura sobre São João - remetem igualmente para a sua actividade docente. Mas o mesmo não se poderá dizer dos seus doze comentários das obras de Aristóteles (redigidos a partir de 1265), que testemunham mais a sua convicção de que uma filosofia sólida é o fundamento indispensável a uma teologia de boa qualidade. A esta série já impressionante de obras convém acrescentar um número considerável de pareceres e, sobretudo, de tratados muito originais como, no domínio da filosofia primeira, Do Ser e da Essência (1256) e o opúsculo inacabado Sobre as Substâncias Separadas (1271) ou, no domínio da teologia, o Breve Resumo da Teologia, e, no campo da política, o tratado Sobre o Reino (1267). Também não se pode esquecer que Tomás tomou parte activa nos debates que agitavam a vida intelectual em Paris, defendendo vigorosamente o direito das ordens mendicantes de ensinar na querela que as opunha aos seculares: diversos opúsculos e tratados testemunham a sua intervenção nesta disputa tão viva como acalorada. Não menos virulenta e feroz parece ter sido a intervenção de Tomás na discussão filosófica acerca da doutrina da possibilidade da unicidade do intelecto, que fora nomeadamente provocada por alguns escritos de Sigério de Brabante, a partir de 1265. Com uma verve sem precedentes, no tratado Da Unicidade do Intelecto Contra os Averroístas (1270), o dominicano combate a idéia de um intelecto único para todos os homens e quer demonstrar que os seus adversários, especialmente o filósofo árabe Averróis (falecido em 1198), chamado o Comentador, são intérpretes lastimáveis dos textos de Aristóteles. Estes numerosos escritos são fruto de uma actividade incansável e de um trabalho obstinado que, segundo as testemunhas mais próximas dele, parou repentinamente no mês de Dezembro de 1273. Tomás deixou de escrever, desembaraçou-se do seu material de escrita e, segundo Reinaldo de Piperno, seu companheiro e assistente, teria afirmado: "Não posso mais. Comparado com o que vi, tudo o que escrevi parece-me palha." Pouco tempo depois desta decisão, que os historiadores têm interpretado de vários modos (teria sido conseqüência de alguma experiência mística?), Tomás de Aquino morreu a caminho de Lião, na abadia de Fossanova (a sul de Roma), no dia 7 de Março de 1274. O pensamento do dominicano italiano funda-se numa concepção tão precisa e rigorosa da teologia, que preenche os critérios da cientificidade. Ao afirmar a superioridade da teologia, Tomás defende a legitimidade e a autonomia relativa da filosofia que se funda exclusivamente na razão. A espantosa "confiança no poder da razão" (Étienne Gilson), que caracteriza toda a sua especulação, explica-se pelo facto de o real, que o filósofo tenta 186

Page 118: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

compreender com a ajuda da razão, e a revelação, que o teólogo interpreta, terem o mesmo Deus por causa: por conseguinte, é impensável que "a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão conhece naturalmente" (Suma Contra os Gentios, I, cap. VII). O primeiro princípio indemonstrável em que assenta toda a busca da razão humana é o princípio da não-contradição. A este primeiro axioma da razão especulativa corresponde, na ordem da razão prática, a proposição: "É preciso fazer e procurar o bem e evitar o mal", axioma que se baseia na noção de bem, cujo conteúdo a razão apreende através das inclinações naturais do homem. Em última análise, daí resulta uma ética para a qual a conformidade com a razão é decisiva: "Nos actos humanos, o bem e o mal são determinados pela relação com a razão" (Suma Teológica, I-II, 18,5). Para Tomás, o homem é determinado por três relações: com a razão que é a medida das suas acções; com Deus, que é o seu criador; com o seu semelhante (Suma Teológica, I-II, 72,4). Na verdade, o ser humano é não só animal racional, mas também "animal social e político", o que é atestado pelo facto de o homem possuir linguagem que o torna capaz de manifestar o seu pensamento e de enunciar o que é justo e bom. Graças ao hilemorfismo aristotélico, segundo o qual todo o ser se explica pela matéria (hylê) e pela forma (morphê), é possível compreender a alma como forma do corpo e asseverar, ao contrário de qualquer dualismo, a unidade do homem. O empirismo epistemológico de Tomás, para quem o conhecimento humano não pode prescindir da sensação, explica porque é que a proposição "Deus existe", impossível de apreender directamente pelos sentidos, não é evidente para a razão natural e, portanto, deve ser demonstrada. A demonstração mais célebre da existência de Deus (que se encontra na Suma Teológica, I, 2, 3) tenta provar a verdade dessa proposição por cinco vias, referindo-se à experiência do movimento, da causalidade, da contingência, dos graus de perfeição e da finalidade das realidades naturais. Contudo, estas provas, que dependem de várias fontes filosóficas, ainda não revelam o aspecto mais original da concepção tomista de Deus: é um ser subsistente por si (esse per se subsistem). Esta concepção de Deus pressupõe não só a distinção entre o ser e a essência, que caracteriza tudo enquanto finito, mas também uma interpretação específica do ser concebido como "a actualidade de todas as formas" e "a perfeição de todas as perfeições". Esta metafísica do Êxodo, designando Deus como "Eu sou aquele que sou" (Ex 3,14), depende de uma consciência apurada dos limites do conhecimento humano de Deus. "O nosso conhecimento é de tal modo fraco que nenhuma filosofia jamais pôde examinar perfeitamente a natureza de uma mosca; é por isso que se lê que um filósofo passou trinta anos na solidão para conhecer a natureza da abelha" (Sobre o Credo, prólogo). Ruedi Imbach 187

III TRABALHAR PARA A SUA SALVAÇÃO O Purgatório e o além

Segundo Jacques Le Goff (La Naissance du Purgatoire, 1981*), o terceiro lugar do além, com o Inferno e o Paraíso, seria uma invenção da Idade Média. Embora seja possível encontrar alguns precedentes, não há dúvida de que, a partir dos séculos XII-XIII, a noção vai-se ancorando nos

Page 119: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

espíritos e nas práticas da Igreja do Ocidente, sem, contudo, obter o assentimento das Igrejas gregas. Então, fixa-se durante séculos a tríade das vias oferecidas aos fiéis depois da morte e que Dante explorou no percurso poético e iniciático de A Divina Comédia. Mas em que consistiu esta novidade? O cristianismo desenvolve uma concepção linear da história da humanidade marcada por três etapas maiores: a criação do mundo, obra divina relatada de modo metafórico no primeiro livro da Bíblia, o Génesis; a Encarnação de Deus na Terra na pessoa de Jesus; o fim dos tempos, descrito também ele de modo metafórico, no último livro da Bíblia, o Apocalipse. Por seu lado, o Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) refere de que modo o fim do mundo será marcado pela ressurreição dos corpos e o julgamento que separará, segundo o cuidado havido com o próximo, os condenados dos eleitos, sendo os primeiros precipitados no Inferno e os segundos admitidos no Paraíso. Numerosas representações figuradas, colocadas sobre os portais das igrejas (Autun, Bourges, Chartres), transmitiram largamente, com o ensino escrito e oral, esta visão binária do além. Mas, nesta perspectiva, o destino final só se joga no fim do mundo; por isso, os fiéis interrogaram-se como deveriam imaginar o destino das almas entre o momento em que se considerava terem saído do corpo, aquando da morte, e o encerramento

* Tradução portuguesa: O Nascimento do Purgatório, Lisboa, Editorial Presença, 1994. (AT) 188

da história humana. Então, era-lhes ensinado que este longo tempo de espera decorria no seio de Abraão, pai de todos os crentes; lugares chamados limbos acolhiam os homens: nos limbos dos Patriarcas, os que não tinham conhecido a revelação de Cristo e, nos limbos das crianças, os bebês falecidos antes de terem recebido o baptismo e de serem agregados à comunidade dos cristãos. Encontra-se também em alguns autores anteriores do século XII, entre os quais Santo Agostinho, a idéia de que a visão de Deus prometida aos eleitos não estaria acessível senão ao cabo de um tempo de purificação, deixando entrever o que iria tornar-se o Purgatório. Notam-se os primeiros vestígios do Purgatório no século XII, na pena de autores cistercienses e de mestres ou professores seculares das escolas urbanas que desenvolviam a seguinte concepção: são raros os crentes que podem arrogar-se uma perfeição que os conduza directamente ao Paraíso e, para a grande maioria, é necessário um tempo suplementar de penitência, proporcional ao tamanho das faltas não expiadas - princípio ousado, talvez influenciado pela cultura matemática que, então, se desenvolve nas cidades. Estas idéias transformam a visão do além que, de binária, passa a ternária. A sua maior conseqüência é antepor ao Juízo Final um julgamento individual situado para cada um no momento da morte: o fiel poderá ser lançado no Inferno se teimar nas suas faltas e na ausência voluntária de esperança na misericórdia divina; ou ir imediatamente para o Paraíso, se mostrar todos os sinais da perfeição; mais seguramente, irá para o Purgatório, onde cumprirá a penitência necessária, no fim da qual entrará no Paraíso, dado que só se sai do Purgatório em direcção ao alto. Como o sentiu muito bem Jacques Le Goff, este "terceiro lugar" constituiu uma enorme lufada de esperança trazida aos fiéis: "O Purgatório esvaziou o Inferno." Portanto, a visão de Deus (ou visão beatífica) pode ser alcançada antes mesmo do Juízo Final, depois do qual, porém, será intensificada, segundo o ensino do papa Bento XII (Constituição Benedictus Deus,

Page 120: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

1336). Para difundir estas concepções novas, foi preciso formalizá-las em função das categorias do tempo e do espaço. Por isso, os autores tentaram situar o Purgatório em lugares terríveis do planeta, conhecidos pelas suas condições naturais extremas; consideraram-se tanto a cratera do Etna, boca de fogo que se adaptava bem à imagem, como uma ilha ao largo da Irlanda, que servia de lugar de ascese para os eremitas: o "Purgatório de São Patrício". De facto, embora termine com uma saída favorável, o Purgatório não é olhado de modo agradável, dado que as penas sofridas pelas almas aproximam-se das do Inferno, a julgar pela iconografia que, pouco a pouco, se vai fixando e retoma os suplícios do fogo, do frio e das trevas que as imagens infernais tinham desenvolvido. Quanto ao tempo de purgação, considerou-se que poderia ser abreviado graças aos méritos acumulados pelos justos, dando lugar a uma verdadeira solidariedade entre os crentes. Dizem os textos (Santo Anselmo, 11109), que os incomensuráveis méritos de Cristo permitiam que a Igreja dispusesse de um "tesouro" que distribuía 189

sob a forma de indulgências; os méritos dos santos eram invocados pelos devotos que procuravam a sua intercessão junto de Deus, nomeadamente na hora do seu julgamento; quanto aos méritos dos simples fiéis, acumulados sob a forma de "boas obras" (orações, celebração de missas, esmolas ou outros gestos de piedade), também eram tidos em conta. Relatos exemplares, consignados sobretudo pelos dominicanos, irão contar que determinado marido defunto tinha aparecido depois da sua morte à sua esposa, vindo do Purgatório, primeiro completamente negro pelas suas faltas, depois cada vez mais branco, à medida que ela amontoava graças a seu favor... Este princípio também originou o grande sucesso das confrarias e das associações fundadas por iniciativa dos fiéis que, entre os seus membros, praticavam não só uma solidariedade espiritual, mas também formas de entreajuda material em caso de necessidade. Por isso, concebe-se que, desde então, importava preparar o fiel para conseguir um bom fim, já que todo o arrependimento, mesmo o mais tardio à hora da morte, pode ser fonte de salvação. Os meios intelectuais que formalizaram o Purgatório são os mesmos onde se elabora a nova disciplina penitencial, a confissão auricular individual, segundo a qual a verdadeira responsabilidade reside na intenção que preside ao acto. Conseqüentemente, a ajuda sacramental prestada havia já muito tempo ao moribundo com a Extrema-Unção enriquece-se com uma comunhão e uma confissão derradeiras, como atestam as "Artes de morrer" (Artes moriendi), aqueles livrinhos, compostos ao longo do século XV, em que se descrevem e ilustram em tábuas gravadas os últimos combates espirituais a travar. Essa visão do além vai contribuir para desenvolver e sistematizar as práticas, anteriormente nascidas, da oração a favor dos mortos. Muito antes do nascimento do "Purgatório", a sociedade já esperava que os monges, os especialistas da oração, orassem pelos mortos: cada mosteiro possuía a sua lista de familiares, alguns dos quais tinham mesmo o privilégio de ser inumados dentro das paredes do mosteiro. No século XI, o abade de Cluny, Odilão, instaurou uma festa especial a favor dos defuntos, no dia 2 de Novembro, precisamente depois da que comemora os eleitos, o Dia de Todos os Santos, que teve grande sucesso. A "lógica" do Purgatório veio amplificar o fenómeno e dar-lhe um realce particular, tanto mais que, simultaneamente, parecia que a boa obra por excelência era a comemoração do sacrifício de Cristo, a celebração eucarística. Por conseguinte, os fiéis, a título individual ou colectivo, no quadro das confrarias, encomendaram abundantemente aos clérigos celebrações de missas,

Page 121: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

quer imediatamente depois de um falecimento, para abreviar o mais possível, a favor do defunto, as penas do Purgatório, quer perpetuamente, quer combinando os dois ritmos, porque a introdução de um juízo individual não tinha feito desaparecer a crença no Juízo Final. Numerosos clérigos, ordenados padres mas desprovidos de paróquia ou de outros benefícios, encontram nestas celebrações fontes de rendimentos lucrativos que, em certas regiões, se repartiam entre naturais da 190

mesma aldeia, no quadro de poderosas associações clericais. No Sudoeste da França, colectas organizadas entre os paroquianos para financiar missas por intenção das almas do Purgatório também motivaram a fundação de associações: as "Bacias das Almas" ou "Bacias do Purgatório". A representação da sociedade dos crentes dividiu-se em três grupos: a Igreja triunfante, a dos eleitos; a Igreja padecente, a das almas do Purgatório; a Igreja militante, a dos vivos [na Terra], preocupada com aliviar a anterior. Por mais surpreendentes que possam parecer ao homem do século XXI, estas concepções e os usos que introduziram corresponderam certamente a uma expectativa profunda; aliás, não se conseguiria explicar de outra forma a persistência tenaz através de toda a época moderna que conservou a oração medieval pelas "almas do Purgatório" até aos nossos dias. Contudo, na seqüência das investigações recentes (Guillaume Cuchet), a Primeira Guerra Mundial teria contribuído para lançar um olhar diferente sobre a noção do Purgatório; com efeito - se é que podemos permitir-nos este triste jogo de palavras -, o inferno das trincheiras foi considerado, pára aqueles que o viveram, um verdadeiro Purgatório na Terra... Catherine Vincent 191

Culto dos santos, relíqüias e peregrinações

Estas formas de devoção permanecem associadas, nos espíritos, ao período medieval; contudo, precederam-no e sobreviveram a ele, embora tivessem conhecido bons momentos testemunhados por fontes muito sugestivas: hagiografias, relatos de milagres, de invenção (descoberta) ou de trasladação de relíqüias e também descrições de peregrinações. A Idade Média herda da Antiguidade cristã o costume de honrar, entre os defuntos, aqueles que são considerados ilustres por terem sido grandes testemunhas da fé. Além das figuras dos tempos apostólicos, distinguem-se aqueles que foram mortos violentamente, os mártires (o termo significa "testemunha"); os que desenvolveram uma intensa obra de evangelização pelo seu pensamento e pela sua acção, os confessores ("confessaram" a sua fé); os que, nos claustros ou nos eremitérios, deixaram uma rica herança espiritual, como os Padres do deserto. Estas grandes figuras eram festejadas ao longo do ano, em datas que correspondiam ao seu "nascimento para o Céu", isto é, ao aniversário da sua morte, misturadas no calendário com as festas da vida de Cristo ou da sua mãe, a Virgem Maria, que ofereciam outros tantos pontos de referência à vida social e económica (termos de pagamento de contratos, por exemplo). O grupo dos santos e das santas foi-se enriquecendo ao longo das gerações. Os bispos que, durante a Alta Idade Média, desempenhavam o papel de pais protectores da sua cidade, rapidamente granjearam uma reputação de santidade, assim como alguns soberanos que

Page 122: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

apoiaram a evangelização do seu reino, nomeadamente nos países mais tardiamente cristianizados. A eles se juntam alguns monges reformadores, como Bento de Aniana ou Bernardo de Claraval, os fundadores de ordens novas, como Bruno para os cartuxos, Francisco de Assis para os frades menores, e Domingos de Gusmão para os frades pregadores, algumas mulheres reconhecidas pela sua acção caritativa (Isabel da Turíngia), pela sua irradiação espiritual (Catarina de Sena) ou 192

pela sua vida mística (Brígida da Suécia); somente alguns raros leigos foram elevados aos altares, depois de uma vida devotada aos valores evangélicos, como, na Itália, o comerciante de tecidos Homebon de Cremona ou, por razões que misturam espiritualidade e política, o rei da França São Luís. Ao valorizar estes comportamentos, a Igreja pretendia dar referências aos fiéis, promover vários tipos de conduta e também, a partir do século XIII, propor modelos, embora na sua maioria os santos não fossem nada imitáveis, pelo seu carácter excepcional tão marcado (André Vauchez). Isto é, o quadro que constituía o acesso à santidade. Este começou por basear-se na "reputação" de santidade (afama sanctitatis), para cuja definição a vox populi ("voz do povo") se considerava ter o valor da vox Dei (a "voz de Deus"); a decisão final pertencia ao bispo ou ao abade, quando se estava em território monástico. O processo não esteve isento de abusos, de que os próprios contemporâneos se aperceberam, como se pode ler no tratado muito crítico escrito no século XII pelo monge Guiberto de Nogento sobre As Relíqüias dos Santos. Os casos mais litigiosos foram levados a Roma; deste modo, tendo em conta este precedente e o desenvolvimento do poder do papa, não será de admirar ver o papado julgar que o controlo do acesso à santidade lhe pertencia em último recurso e fixar o procedimento no fim do qual se tomaria a decisão: o "processo de canonização". Em parte decalcado no novo processo judiciário da Inquisição, consiste num inquérito feito a testemunhas, cujos resultados são examinados na cúria de Roma: a progressão da causa não dependia unicamente das virtudes da pessoa em causa, mas também do poder e da riqueza daqueles que tinham apresentado o processo! A veneração de que os santos foram objecto não se apoia somente na admiração que a sua vida suscitava, cujos episódios eram ampliados intencionalmente pela literatura hagiográfica, como a Lenda Áurea do dominicano Tiago de Voragine. Baseia-se igualmente na convicção de que os seus méritos lhes mereceram que Deus lhes outorgasse um poder de intercessão (virtus) que continuava unido não apenas aos seus ossos ou partes do corpo, mas também a todos os objectos, tecidos, líqüidos ou pequenas coisas postas em contacto com eles. Foi assim que os lugares de sepultura dos santos se tornaram muito rapidamente destino de viagens piedosas, cuja finalidade era relacionar-se directamente com a fonte da virtus e obter os auxílios solicitados, as mais das vezes de ordem terapêutica (curas diversas), mas igualmente de ordem familiar (fecundidade, bom parto, sobrevivência de um bebê para baptizá-lo). Os lugares de culto foram providos de estruturas adequadas. Mas se, como acontecia freqüentemente na Idade Média, o túmulo do santo estava numa igreja, acedia-se a ele por uma galeria que permitisse a circulação em volta dele: um deambulatório com janelas através das quais se podia estabelecer o contacto desejado com a sepultura. 193

Page 123: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Em certos casos, os fiéis passavam debaixo da pedra tumular ou até eram autorizados a dormir nas suas proximidades, praticando a incubação já em vigor nos templos antigos. Para atrair a benevolência do santo ou agradecer a sua intercessão que tinha obtido de Deus o milagre esperado, os fiéis depositavam no santuário oferendas e ex-votos: os dons em cera, com o peso ou a altura da pessoa a curar ou moldados segundo a forma do membro a tratar, eram substituídos no fim da Idade Média e na época moderna por pequenos quadros representando o episódio miraculoso. Para difundir o mais amplamente possível as virtudes dos santos, foi-se tornando costume, desde a época carolíngia, dividir os seus corpos para os distribuir por numerosas igrejas que conservavam estas preciosas parcelas em relicários cuja forma lembra, por vezes, a ossada preservada. Os cemitérios romanos, que se considerava só conterem sepulturas de mártires (o que já não é de modo nenhum admitido pela crítica actual), foram grandes fornecedores, até meados da época moderna. Nalguns casos, chegou-se a cometer piedosos roubos, aqueles roubos de relíqüias cujo êxito se acreditava terem o assentimento do santo e que estão na origem de pitorescos conflitos entre igrejas. No fim da Idade Média, nomeadamente em Itália, depois em todo o Ocidente, na época moderna, observa-se que se reconhecem competências análogas às "ymagens" [assim se escrevia em português naqueles tempos] dos santos, quadros, pinturas ou estátuas que, por sua vez, se tornavam os suportes de gestos de devoção análogos. O inegável e persistente sucesso desta piedade baseada no concreto e que não foi recusada pelo magistério, pelo contrário, já que os próprios clérigos participavam nela, está na origem de uma miríade de locais de peregrinação de que o Ocidente está semeado: a sorte de alguns durou tão-só o tempo de um fogo de palha, ao sabor do entusiasmo dos fiéis. Desta multitude de santuários, umas vezes anichados em locais dificilmente acessíveis, e, outras, quadro de práticas ilícitas, emergem alguns destinos com irradiação mais ampla, geralmente servidos por pessoas da Igreja, seculares e, mais ainda, regulares, que acolhiam os visitantes e enquadravam as suas devoções. Entre eles, além dos santuários marianos, como o de Rocamador [no Sul da França], citemos a basílica de São Nicolau de Bari, na Apúlia [Itália]; a da jovem mártir de Agenais, Santa Fé, em Conques-en-Rouergue [França]; o túmulo de São Tomás Becket na Cantuária ou o Hospital de Santo Antão em Viennois que afirma deter as relíqüias do grande santo monge egípcio e com uma especialidade na cura do "mal des ardents", "fogo sagrado" ["peste do fogo", "fogo de Santo Antão" ou, mais correctamente, ergotismo] que é transmitido pelo consumo da cravagem do centeio [envenenamento causado pela ergotina]. De entre os mais célebres santuários medievais, a época moderna reteve especialmente o de Santiago de Compostela, actual destino de caminheiros, peregrinos ou turistas, cada vez mais numerosos. O culto do apóstolo, parente de Jesus, desenvolveu-se na Galiza a partir do século IX; depois, 194

foi muito bem orquestrado no contexto da luta contra os muçulmanos de que a Península Ibérica foi palco na Idade Média. No estado actual da documentação, não é de modo nenhum possível saber qual teria sido a amplitude da freqüentação deste santuário; não nos deixemos levar por uma fonte muito original, o Guia do Peregrino de Santiago [do século XII], espécie de itinerário comentado, santuário por santuário, de que só se conserva um único manuscrito. Mas a popularidade do santo é incontestável - não somente enquanto "mata-mouros" -, como o prova a multiplicidade de igrejas que afirmam possuir as suas relíqüias; e a viagem em direcção a Compostela, misturada com a lenda de Carlos Magno, alimentou abundantemente

Page 124: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

o imaginário medieval; supomos que, para alimentá-lo, tenham sido necessários alguns relatos de peregrinos, que se tornaram auréolas da glória de um destino tão distante e prestigiado, e, ainda por cima, situado no extremo do mundo então conhecido. Dois últimos destinos de peregrinação distinguem-se nos usos cristãos ocidentais. O primeiro é Jerusalém, para onde os fiéis são cada vez mais atraídos, depois do ano 1000, dado que a piedade se fixa mais na meditação da vida terrestre de Jesus. A seguir, depois de 1095, a história da viagem para os Lugares Santos está imbricada na da cruzada, que constitui a sua bússola armada e, às vezes, também o desvio do seu rumo. O segundo é Roma, lugar importante da memória cristã por lá terem sido mortos Pedro e Paulo, e, depois, muitos outros mártires. Além disso, o papel devolvido ao bispo da antiga capital do Império dá à peregrinação romana um relevo especial. Se os peregrinos vão lá visitar os túmulos das duas "colunas da Igreja", muitos deles também vão para receberem a absolvição de faltas graves que só o papa lhes pode conceder. Assim, a "viagem romana" ganha, desde a Alta Idade Média, uma dimensão penitencial, presente em todas as peregrinações, em razão do esforço realizado, mas mais acentuada neste. Estes precedentes fizeram com que, nos finais do século XIII, germinasse a idéia de que essa fonte de graça podia estender-se a todos os fiéis, na viragem de cada século, depois segundo um ritmo mais freqüente, pela proclamação dos Jubileus, o primeiro dos quais aconteceu no ano 1300: nestas circunstâncias, a visita das basílicas romanas valia a indulgência plenária - quer dizer, a remissão de todas as faltas cometidas até então e das penas acumuladas para as expiar - para aqueles que a realizassem. Catherine Vincent 195

Nossa Senhora

Foi ao longo do século XII que Maria se tornou "Nossa Senhora" na literatura mariana: então, o culto da Virgem conhecia um novo fôlego ligado à redescoberta da humanidade de Cristo. Num mundo ocidental que se esforça por conjugar realeza e feudalismo, a Virgem afirma-se como uma figura importante de poder. Posta ao serviço da ideologia da soberania, definida como uma realeza sagrada desde o século VIII, Maria torna-se rainha do Céu. Depois da vacatura do poder real, conseqüência do desmoronamento do Império Carolíngio, no século X, participa na sua eleição como rainha da Terra. Também é neste momento que as novas estruturas de comando - entre as quais estão, por exemplo, a ordem monástica de Cluny, em pleno crescimento - apelam instantemente para a figura mariana a fim de fixar a sua soberania. Por isso, vê-se a "Senhora das senhoras" reinar sozinha nos mosteiros apresentados como terras "virgens", sem lastro de pecado e povoadas de homens espirituais, os monges, que sonham ser semelhantes aos anjos para conduzir os homens carnais à salvação. Em virtude da conclusão de um paralelismo teológico entre a Virgem e a Igreja, baseado na comparação entre as suas respectivas maternidades, uma em relação ao Filho de Deus, a outra relativamente aos homens, doravante Maria está em condições de impor a sua autoridade de Igreja às dissidências, uma das missões que a reforma gregoriana se propusera erradicar. Com o Menino Jesus ao colo, a Virgem "em majestade" apresenta um Deus encarnado aos homens que interrogam de tal modo o mistério cristão que o põem em causa. "Porque é que Deus se fez homem?", resume Santo Anselmo (+ 1109) que responde, interpondo Maria. Para ir

Page 125: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

venerar o Menino Jesus, o povo cristão põe-se em marcha, como os reis magos, rumo aos santuários marianos - este povo a quem se explica que ele peregrina para a Jerusalém celeste, meta e fim do seu exílio na Terra. 196

O progresso doutrinal conduz paralelamente à afirmação da maternidade espiritual da Soberana, definida como a mediadora entre os homens e Deus: Mãe de Deus, Maria torna-se Mãe dos homens. Nos anos 1100, começa o desenvolvimento das peregrinações à Virgem. Localizam-se essencialmente nos Centro e Norte da Europa. Em Laon, em Soissons, em Chartres..., há milhares de peregrinos que vão tocar nas relíqüias de Maria: a sua túnica branca, o seu delicado calçado, o seu leite ou os seus cabelos, últimos vestígios da sua presença corporal. A crença na Assunção, que se fixa nos espíritos do século XII, coloca no Céu o corpo incorruptível de Maria elevada com a sua alma até à luz de Deus. Os relatos de milagres de Maria, escritos, muito freqüentemente, por monges e cónegos, visam não só assegurar a promoção das peregrinações, como também promover a salvação. Rapidamente reunidas em colecções - como os Milagres de Nossa Senhora de Guilherme de Malmesbury, compostos por volta de 1123, ou os de Gautier de Coinci, antes de 1236 -, os relatos de milagres contam as inumeráveis graças da Mãe de Deus. Os miraculados da Idade Média parecem ter saído directamente dos Evangelhos. Vivem o mesmo quinhão de sofrimentos e enfermidades, inspirados por uma história comum, relida como sendo a da humanidade subtraída, depois da queda, à ordem estabelecida por Deus no Génesis. Então, a Virgem mostra o rosto da sua graça, Ela que é a "cheia de graça", como diz a oração Ave-Maria, um dos elementos do catecismo mínimo do cristão do século XII com o Pater ou Pai-Nosso e o Credo (primeira palavra da profissão de fé cristã). São Bernardo (+ 1153) utiliza nomeadamente a imagem do aqueduto para descrever este fluir do amor divino que corre para todo o homem que eleva a sua oração a Maria. Deste modo, os relatos de milagres são a ocasião para traduzir a crença na intercessão da Virgem, que, ainda melhor do que os santos, apresenta a Deus os pedidos dos homens para que todos sejam salvos. Ao mesmo tempo que Ela restabelece a sociedade medieval numa bem-aventurada felicidade, semelhante à que reinava antes da queda no jardim do Éden, a Virgem em majestade domina sobre os portais das igrejas, tornando-se uma imagem monumental, como em Notre-Dame de Paris. A partir de finais do século XII, assiste-se à sua coroação ao lado de Cristo, simultaneamente juiz e rei. Nos textos, a Virgem é apresentada como a advogada dos pecadores e a rainha das rainhas. Triunfante, Maria é revestida com um manto que as suas mãos abrem para acolher a cristandade nas entradas das igrejas, quais portas do paraíso. Agora, os comentadores identificam a mulher coroada com a Mulher do Apocalipse, vestida de Sol e coroada de estrelas. À maneira de Ruperto de Deutz (+ 1129), sublinham o seu papel na história do fim dos tempos. O seu seio de mãe avoluma-se em tempo de novas maternidades, definidas como espirituais. Assim, por alturas de 1200, a ordem cisterciense proclama-a fundadora e mãe dos 197

monges. Ao jeito de São Bernardo (+ 1153), "o bebê de Nossa Senhora", segundo o seu hagiógrafo Pierre de Celle, os noviços são apresentados como irmãos de leite do Menino Jesus.

Page 126: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Bebem o leite espiritual que brota do seio alimentador da Mãe de Deus. Depois, seguindo a ordem cisterciense, as novas ordens religiosas de São Francisco (+ 1226) e de São Domingos (+ 1221) reivindicam o seu padroado: os frades refugiam-se sob os panos do grande manto da mãe de misericórdia. A partir de então, a figura mariana mostra toda a sua magnificência. De facto, o corpo de Maria situa-se no centro da teologia que se vai elaborando a propósito dela. E, como deste corpo nasceu o corpo de Cristo que é, ao mesmo tempo, de carne, corpo eucarístico e corpo da Igreja, quer dizer, de todos os baptizados, o corpo da Virgem também pode servir de metáfora para designar a Igreja. Por isso, cada um dos membros ou corporações que compõem a Igreja - do povo ao papa - vê em Maria a sua figura mais eminente. Imediatamente depois do IV Concílio de Latrão (1215), a Virgem, modelo de obediência ao Pai, é proposta com modelo da normalização da Igreja. Compete-lhe dar o exemplo às ordens religiosas, guiar as almas até à descoberta do mistério de Deus, convidar os fiéis a tornarem-se cristãos exemplares. Em suma, fazer respeitar o programa conciliar de erradicação da heresia, de enquadramento da crença dos leigos e de construção da unidade da cristandade. Então, a rainha apresenta-se também como a serva deste dispositivo. A figura da "serva" dos Evangelhos é realçada nas releituras do texto sagrado. É assim que aparecem, em meados do século XIV, os primeiros "servos e servas de Maria", tanto clérigos como leigos: por exemplo, a ordem dos servitas de Maria. A Virgem é, para eles, uma mãe de ternura em quem os seus "filhos" e as suas "filhas" vêem uma santidade inimitável. A imitação mariana abre sobretudo novos caminhos espirituais às mulheres místicas do início do século XIV, que se consideram "grávidas do Espírito Santo" e "dão à luz" o Menino Jesus na sua alma como, por exemplo, Santa Catarina de Sena (+ 1380). A devoção mariana faz parte deste mesmo processo de incorporação destinado a integrar cada corpo individual ou colectivo no corpo da Igreja. Da Flandres à Itália, o mesmo movimento ordena confrarias, ordens terceiras, cidades, universidades (no sentido medieval genérico de "agrupamento")... Igualmente, quando a Igreja se divide, e com ela a cristandade, durante o Grande Cisma (1378-1417), o Filho martirizado descido da cruz sucede ao Menino Jesus ao colo da sua mãe. As Pietà, esta nova iconografia do século XIV, mostram a Virgem dolorosa perante as desgraças do tempo (peste, fome, epidemias...), enquanto a oração Stabat Mater descreve Maria aos pés da cruz. Nas ladainhas oferecidas a Maria, as dores substituem as alegrias e os teólogos comentam a comunicação da Paixão entre a Virgem e o seu Filho. Em Maria, pedra angular do mundo cristão ocidental, o fim da Idade Média também tenta 198

o seu último estertor de indivisão. Os seus milagres e as suas aparições enchem-se dessa visão, em particular nas controvérsias sobre a Imaculada Conceição que, mais que nunca, ameaçam a unidade da Igreja. No final da Idade Média, o culto da Virgem também se expõe a uma reforma que o século XVI protestante realizou em actos. Sylvie Barnay 199

A multiplicação das obras de caridade (séculos XII-XIII)

Page 127: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Desde os primeiros séculos, a Igreja proclamou a necessidade de prestar assistência aos pobres: o amor de Deus anda a par do amor ao próximo (Mt 22,34-40; Mc 12,28-34; Lc 10,25-28). Na tradição cristã, este dever de caridade realçou em alto grau a responsabilidade dos bispos. Com o desenvolvimento do monaquismo, sobretudo beneditino, a prática da hospitalidade e da esmola exigida pela regra de São Bento aumentou as capacidades de ajuda aos indigentes. É a partir do século XI e, sobretudo, do século XII, independentemente das expressões multiformes da caridade privada, que a doutrina da salvação pelas obras, largamente desenvolvida, incita os fiéis a praticar a generosidade - já que, segundo a Escritura, a esmola apaga os pecados - e o cuidado dos pobres toma progressivamente formas mais organizadas, tanto no seio das ordens especializadas como no quadro dos movimentos confraternais. Esta actividade caritativa encontrou o seu programa nos actos que distinguem os eleitos dos reprovados, seguindo o relato do Juízo Final (Mt 25,31-46): são as "obras de misericórdia". Às obras concretas citadas no texto (alimentar, dessedentar os pobres e vesti-los, visitar os doentes e os presos, acolher os estrangeiros e sepultar os mortos), os teólogos acrescentaram um equivalente espiritual (ensinar, aconselhar, repreender, consolar, perdoar, converter, orar pelos vivos e pelos defuntos). Socorrer os peregrinos esgotados pela sua caminhada para Jerusalém, depois ir ajudar os cruzados feridos e doentes, foram os objectivos da primeira iniciativa testemunhada de vocação ao serviço do próximo inserida no quadro de uma ordem religiosa reconhecida: o Hospital de São João de Jerusalém, que é a mais antiga das ordens de caridade. A regra que lhe foi atribuída em meados do século XII foi, depois, muitas vezes imitada por numerosos estabelecimentos hospitalares, no que concerne ao acolhimento dos doentes. Depois de ter recebido os cuidados indispensáveis (confissão e comunhão), os pacientes são conduzidos à sua cama e servidos como se 200

fossem os senhores da casa. A qualidade de hospedagem e a eficácia dos cuidados, juntamente com a abundância das esmolas distribuídas diariamente aos necessitados, constituem os traços característicos de uma hospitalidade-modelo, com certeza principalmente ilustrada na casa-mãe de Jerusalém, depois em Acre e em Rodes, mas que também existiu em numerosas comendadorias dispersas por toda a cristandade. Ao longo do século XII, num Ocidente em pleno desenvolvimento económico e demográfico que também gera os seus pobres abandonados, as formas de assistência multiplicam-se e também se diversificam. A par dos organismos de distribuições caridosas, cuja iniciativa pertenceu a algumas cidades e também freqüentemente a simples cidadãos, surgiram numerosos hospitais e leprosarias, na maioria das vezes independentes uns dos outros. Em 1198, o papa Inocêncio III aprova duas fundações recentes, novas nos seus objectivos: a dos irmãos do Espírito Santo e a dos trinitários. Com efeito, foi por volta de 1180 que Gui de Montpellier fundou na sua cidade um estabelecimento que se propunha como missão alimentar os famintos, vestir os pobres e tratar os doentes. O seu reconhecimento pelo papa, seguido pouco depois pela sua união, sob a mesma direcção de frei Gui, ao hospital que o próprio Inocêncio III mandara construir em Roma, nas margens do Tibre, Sancta-Maria-in-Saxia, depois a agregação progressiva de diversos lugares de acolhimento na Europa fizeram desde o século XIII irmãos do Espírito Santo, doravante encarregados de uma verdadeira ordem religiosa hospitaleira, os promotores dedicados e eficazes da caridade evangélica. Esta exercia-se em benefício das vítimas da miséria e da doença: pobres transeuntes, velhos, enfermos, mulheres em trabalho

Page 128: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

de parto, crianças abandonadas, todos podiam encontrar asilo e conforto nas suas casas. Ao mesmo tempo, a criação de outra ordem dedicada ao resgate de cativos prisioneiros em terra do islão e colocada sob a protecção da Santíssima Trindade também se insere na prática das obras de misericórdia. Desde o seu primeiro estabelecimento de Cerfroid (diocese de Meaux, França), depois em casas estabelecidas nos países mediterrânicos, os trinitários não somente se devotaram ao serviço dos prisioneiros, afectando a esta actividade um terço das suas receitas, mas também mantiveram, agregado à maior parte dos seus conventos, um hospital, e consagram à assistência aos pobres e aos doentes ainda um terço dos seus bens. À sua imitação foi fundada em Barcelona, em 1223, uma confraria consagrada à libertação dos cristãos escravizados pelos muçulmanos que, a partir de 1235, se tornou uma ordem religiosa de cónegos agostinhos, Santa Maria das Mercês. Os "mercedários" dedicavam-se essencialmente à organização de grandes campanhas de peditórios e serviam igualmente nos hospitais. Outra ordem hospitaleira especializada, a dos irmãos de Santo Antão em Viennois, devotou-se às vítimas do ergotismo: o "fogo de Santo Antão" ou "mal des ardents" é uma grave intoxicação alimentar que fez razias na 201

Europa entre os séculos XI e XIV. Devida ao consumo de cereais fermentados, provoca sensações de queimadura, depois a queda dos membros atingidos. A partir do seu estabelecimento primitivo no Delfinado, os antoninos implantaram uma vasta rede de dependências, centros de recebimento dos produtos dos peditórios e lugares de acolhimento para os doentes. Em 1297, Bonifácio VIII integrou-os numa ordem religiosa de cónegos regulares que seguiam a regra de Santo Agostinho, sob a autoridade do abade de Santo Antão em Viennois. A competência dos antoninos, as curas que obtinham, a sua dedicação no cumprimento da sua missão valeram-lhe a admiração da sociedade cristã, a devoção de numerosos testadores, o sucesso das suas campanhas de peditórios e colectas, e, finalmente, a honra de manterem um hospital ambulante seguindo a corte pontifícia nas suas deslocações, para cuidar dos peregrinos e os curialistas sofredores. De facto, pouco a pouco, com o recuo do ergotismo no século XIV, os hospitais da ordem acolheram todos os doentes sem distinção, mantendo através dos séculos uma fidelidade sem falhas ao seu ministério de caridade. Ao lado das grandes ordens, foram numerosas as pequenas comunidades hospitaleiras, organizadas à volta de uma casa importante, mas cuja irradiação se limitava a uma determinada região, como os grandes hospícios dos peregrinos que foram Roncesvales, São Tiago d'Altopascio ou Aubrac e, sobretudo, as múltiplas fraternidades semi-religiosas e as confrarias laicais que consagram o essencial ou uma parte importante das suas actividades à assistência. "Esmolas", "caridades", "mesas dos pobres" pulularam na Europa na Idade Média, a funcionar em formas variadas, submetidas a estatutos e a regulamentos também muito diferentes, mas todas elas voltadas para o socorro das necessidades, especialmente das necessidades corporais, sob a forma de "dõaçom" de alimentos e de roupas. Instituições caridosas de outro tipo também nasceram à volta da tomada de consciência do perigo representado pela travessia de ribeiros e rios. Deste modo, associações de irmãos e de irmãs "da ponte" encarregaram-se da manutenção e, por vezes, até da construção de uma ponte ou do atravessamento dos cursos de água por barco e do acolhimento dos viandantes nos hospícios situados nas proximidades, ilustrando uma hospitalidade caminheira original, particularmente representada ao longo do Ródano (Lião, Pont-Saint-Esprit, Avinhão). À acção

Page 129: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

destas estruturas associativas com finalidades assistenciais, institucionalizadas e cada vez mais municipalizadas, acrescenta-se um desenvolvimento de iniciativas individuais que iam da fundação de um hospital por uma personagem rica à instituição dos "pobres de Cristo" como legatários universais; desde a manutenção por um príncipe ou prelado de uma capelania até à ajuda perante os tribunais oferecida gratuitamente por um jurista misericordioso. Por isso, foram-se multiplicando as respostas dadas pela Idade Média ao desafio social e religioso representado pela existência de miséria no seio 202

de uma franja da população mais ou menos numerosa segundo os locais e as épocas. Desenvolvidas no contexto do grande impulso de prosperidade que caracterizou os séculos XII e XIII europeus, estimuladas pelo despertar das consciências que a palavra dos pregadores provocava, as instituições de assistência e todos os outros gestos e comportamentos ilustravam a caritas, a lei de amor evangélico, e também foram, para o mundo laical e face ao clero, uma via de acesso ao controlo parcial do sagrado e a uma responsabilização acrescida do cristão diante da sua salvação. Daniel le Blévec 203

O culto do Santíssimo Sacramento (século XIII)

O culto do Santíssimo Sacramento - entendido não só como a cerimónia da eucaristia (a missa), mas também a veneração prestada ao pão e ao vinho consagrados pelas palavras do celebrante em corpo e sangue de Jesus (Mt 26,26-28; Mc 14,22-24; Lc 22,19-20) - nasceu durante a segunda metade da época medieval. Na verdade, o primeiro milénio cristão não se tinha preocupado com aprofundar e explicitar a teologia da eucaristia. Foi preciso esperar pela época carolíngia para que dois monges se enfrentassem sobre a interpretação a dar à transformação assim operada: um, Pascásio Radberto (+ ca. 860), abade de Corbie, atendo-se a uma interpretação "realista" (as espécies tornam-se realmente o corpo e o sangue de Cristo); o outro, Ratramo (+ ca. 870), igualmente monge de Corbie, militava por uma leitura espiritual. No século XII, Berengário, um clérigo de Tours, relançou o debate em termos mais marcados, num contexto de renovação da busca dialéctica e do pensamento científico. Como resposta às várias correntes, os escolásticos acabaram por formular o que ainda continua como posição oficial da Igreja ocidental: a "transubstanciação". Segundo esta doutrina, as espécies eucarísticas são verdadeiro corpo e verdadeiro sangue de Cristo, sob o "aspecto" aparente do pão e do vinho, cuja "substância" foi transformada pela prolação das palavras da consagração: a forma continua, a matéria muda. A transubstanciação é citada nos cânones do IV Concílio de Latrão (1215) e a sua transmissão foi objecto de uma pastoral intensa entre os séculos XIII e XV. Todos os recursos da arte, do gesto e da palavra foram mobilizados para levar os fiéis a entrar na delicada inteligência do mistério e responder às objecções que nunca faltaram. Multiplicaram-se os relatos de milagres eucarísticos que falam de toalhas de altar cheias de sangue (em Bolsena, Itália, em 1263) ou da aparição de Cristo menino ou a sofrer na hóstia. A divisão infinita do corpo de Cristo é comparada à da chama que nem por isso diminui. A cerimónia da missa conhece a introdução do 204

Page 130: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

gesto da elevação, precisamente depois da consagração, durante o qual o padre, que celebra de costas para os fiéis, eleva a hóstia e o cálice acima da sua cabeça para que os assistentes possam vê-los: os fiéis chegam a pensar que "ver a hóstia" é uma garantia contra a morte súbita. Compõem-se orações para preparar clérigos e leigos para a contemplação do Corpus Christi ("Corpo de Cristo") e para a comunhão. Esta recepção da hóstia consagrada ainda não era preconizada a não ser de modo limitado, mas ao menos uma vez por ano, pela Páscoa. O fervor eucarístico é particularmente vivo no mundo dos religiosos: mas é entre os cartuxos que se encontra a primeira menção da elevação. As mulheres mostram-se especialmente receptivas; uma delas, Juliana de Montcornillon (+ 1258), religiosa agostinha da região de Liège, está na origem da celebração de uma festa própria do mistério eucarístico, chamada Festa do Corpo de Deus ou Corpus Christi. Esta celebração foi adoptada pela diocese de Liège antes de o papa Urbano IV, antigo arcedíago desta diocese, a estender a toda a cristandade de obediência romana em 1264; parece que as orações litúrgicas próprias desta celebração podem ser atribuídas a Tomás de Aquino. Em 1311, o Concílio de Vienne reafirmou a sua obrigatoriedade. Então, esta torna-se, nomeadamente nas cidades, um dos maiores acontecimentos anuais. De facto, implicava a organização de uma procissão durante a qual a hóstia (o vinho foi eliminado por razões práticas evidentes) era levada solenemente sob um pálio, numa pequena caixa preciosa, uma píxide, posteriormente substituída por um "ostensório" (objecto próprio para lhe acrescentar dignidade e a mostrar aos assistentes), rodeado pelo clero e pelos fiéis que o precediam e seguiam. Entre estes, figuravam em lugar destacado os membros das confrarias do Santíssimo Sacramento, que tinham sido abundantemente fundadas para desenvolver nas paróquias o culto do Corpus Christi - por exemplo, recolhendo dinheiro para a manutenção de uma lamparina junto da reserva eucarística (o seu uso perpetuou-se nas igrejas). Nos últimos séculos da Idade Média, os governos citadinos promoveram esta procissão do Corpo de Deus, ocasião privilegiada para a cidade manifestar a identidade dos elementos que a compunham. As corporações de artes e ofícios, os grupos eclesiásticos (cónegos da catedral e colegiais, monges, frades mendicantes e confrarias) e o corpus da cidade rivalizavam uns com os outros para se mostrarem no seu melhor e ficarem bem colocados na procissão. Deste modo, a Festa do Corpo de Deus ganhou uma dimensão cívica que conservou na época moderna. No final do século XV, a espiritualidade da eucaristia fortalecia-se com favores colectivos e individuais mais estruturados, tanto no espaço renano-flamengo (de que é testemunha A Imitação de Cristo) como na Itália, quando se desenvolve, por alturas de 1500, nalguns círculos como o Oratório do Divino Amor de Génova, a idéia de uma comunhão diária e de um culto mais freqüente da hóstia. Quando, a partir de 1527, os barnabitas 205

ou os capuchinhos organizam em Milão a oração das Quarenta Horas (orações expiatórias dirigidas a Deus diante do Santíssimo Sacramento) e quando o papa dá indulgências por este gesto em 1537, é todo o sistema moderno da devoção ao Santíssimo Sacramento exposto em tempo de calamidade que é promovido. Em 1550, Filipe de Néri adapta a liturgia a Roma e apresenta-a em decorações pintadas, criando assim um espaço que realça o poder do Santíssimo Sacramento e motivando, neste contexto, o nascimento de uma característica da

Page 131: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

arte barroca. Em 1552, também os jesuítas organizam orações ininterruptas diante do SS. Sacramento em Messina [Sicília] ameaçada pelos turcos e, a partir de 1556, convidam os fiéis a orar durante o Carnaval para expiar as faltas cometidas durante esta época, criando assim o conceito de adoração perpétua reparadora que atingiu o seu pleno sucesso em finais do século XIX. Estas sensibilidades novas são propostas em grande escala pelos jesuítas nos seus colégios desde o fim do século. Reafirmado pelo Concílio de Trento, o culto divino torna-se então um sinal identificativo do catolicismo e, às vezes, um instrumento de opressão relativamente a outras confissões, obrigadas à veneração da hóstia. Em redor desta identidade, fortalecida por milagres em finais do século XVI, Francisco de Sales ou Bérulle, entre outros, estabelecem as modalidades de um companheirismo de cada fiel com Cristo glorioso. Esta capacidade de evocar a presença concreta e tranqüilizadora de Cristo vencedor sobre todo o mal justifica cerimónias grandiosas para recordar a protecção divina nas catástrofes, em situação de minoria, ou para lançar novas cruzadas, políticas ou morais, até ao século XX. Ajoelhar-se diante do SS. Sacramento permite que se mostre uma submissão pessoal à Igreja romana, ao mesmo tempo que constitui uma prática segura e activa para reparar os pecados do mundo. A basílica do Sacré-Coeur, construída a partir de 1877 unicamente com o dinheiro dos fiéis em reparação pelos excessos da Comuna, e dedicada desde a sua origem à adoração perpétua, não será porventura o melhor exemplo da influência do SS. Sacramento no mundo? O culto da presença permanente de Cristo, incessantemente revivifi-cada, permite alimentar a espiritualidade individual dos leigos numa intimidade com Ele em razão da sua Encarnação e da sua vitória sobre a morte; é a marca da originalidade católica, uma sensibilidade que torna concreta a transcendência enquanto arma de combate contra os maus cristãos, contra os pagãos e, mesmo, contra quem se opõe a Roma. Catherine Vincent e Nicole Lemaitre 206

João Huss (+ 1415)

Constança, Alemanha, 6 de Julho de 1415: os padres do Concílio assistem à morte na fogueira de um padre checo que acabavam de declarar herege, Jan de Husinec, conhecido por João Huss. Ainda não tinham passado dois meses e já centenas de nobres da Boémia e da Morávia protestavam contra a sentença. Seguiram-se quinze anos de guerras, durante as quais a Boémia enfrentou cinco cruzadas lançadas contra os discípulos de Huss pelo papa Martinho V e pelo imperador Segismundo. Facto inédito, um novo concílio reunido em Basileia teve de negociar com eles e, por fim, em 1436, outorgar-lhes um grande reconhecimento de facto. Mas como pôde a morte deste obscuro teólogo eslavo promover o nascimento de uma das primeiras Igrejas nacionais na Europa? Nada parecia predispor o jovem Huss para um papel de revolucionário. Tinha nascido por volta de 1370 numa aldeia da Boémia meridional, no seio de uma família modesta que o orientou, tanto por ambição quanto por convicção, para a carreira eclesiástica. Depois dos estudos elementares, por alturas de 1390, João inscreveu-se na faculdade de artes da universidade de Praga, onde rapidamente obteve os seus primeiros graus, embora sem grande brilho: bacharel "em artes" em 1393, foi aceite como professor três anos mais tarde. Nesse tempo, a capital da Boémia brilhava em todo o seu esplendor. Promovida a arcebispado em 1344, sede de uma universidade desde 1347, teria entre trinta a

Page 132: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

quarenta mil habitantes e abrigava a residência de Venceslau IV, rei dos Romanos (título que o imperador tinha depois da sua eleição pelos príncipes germânicos, antes da sua coroação em Roma). Ao descobrir a metrópole mais povoada, mais cosmopolita e mais brilhante da Europa Central, Huss familiarizou-se com o movimento de renovação religiosa que havia ganhado corpo guiado pelos arcebispos; debatido no quadro dos sínodos diocesanos, depois tratado na universidade, o movimento visava dar mais regularidade ao funcionamento das instituições eclesiásticas, mais dignidade aos membros da Igreja secular 207

e mais cultura cristã ao povo no seu conjunto. Como muitos outros membros da universidade praguense, João Huss quis participar o melhor possível nesta obra educadora que fortalecia a sua utilidade social ao mesmo tempo que satisfazia as suas aspirações espirituais. Depois da morte do imperador Carlos IV em 1378, a reforma de Praga enfrentava uma crise de crescimento. O arcebispo Jan de Jenstejn entrara em conflito com Venceslau IV, enquanto as dificuldades económicas nascentes reavivavam as tensões entre checos e alemães; e, lá como em toda a parte, o Grande Cisma exercia os seus efeitos perniciosos, instilando desconfiança onde antes havia respeito pela Sé de Roma. Huss foi a testemunha e intérprete desta efervescência inquieta. Como professor da universidade, pertencia certamente à elite clerical que aconselhava o arcebispo. Mas a sua geração sentia-se, com ou sem razão, ameaçada: menos seguros acerca do seu saber e da sua posição académica do que os doutores em teologia mais idosos, desprovidos dos privilégios e do prestígio dos seus colegas juristas, expostos à concorrência dos frades mendicantes, amargurados por terem de partilhar funções e receitas com os professores estrangeiros, Huss e os seus amigos estavam prestes a pôr as suas competências ao serviço da crítica da ordem estabelecida. Inicialmente, isto passou pela adopção do wyclifismo, do nome do célebre professor da universidade de Oxford John Wyclif (ca. 1327-1384). Este grande teólogo deixara uma obra tão abundante quanto polémica que puxava o agostinismo no sentido de uma contestação explícita das mediações eclesiais. Huss foi daqueles que recopiaram os seus escritos filosóficos e que, desde então, subscreveram um realismo* radical, professando a existência de universais (ou conceitos aplicáveis a todos os indivíduos de um género ou espécie) formais e incriados na inteligência divina. Mais aberto que o seu inspirador às necessidades espirituais dos fiéis, tornou-se também pregador de sucesso, conforme a corrente pastoral estabelecida em Praga desde meados do século XIV por Conrado de Waldhausen e Milíc de Kromeríz. Tendo obtido em Março de 1402 uma cátedra na capela de Belém recentemente fundada (1391), pregou aí em checo durante dez anos e animou uma escola de pregadores que abastecia com sermões-modelo. Severo com os abusos na Igreja, mas ainda prudente no plano teológico, o seu ensino conheceu um grande sucesso e valeu-lhe o apoio do novo arcebispo Zbynek Zajíc de Házmburk, que o nomeou pregador nos sínodos de Outubro de 1405 e 1407. Foi para ele a ocasião de se inserir na sociedade política de Praga e de comunicar com valores patrióticos a que os universitários tinham durante muito tempo sido refractários. Autor de cânticos e também de manuais de educação, o pregador de Belém soube seduzir as elites praguenses pelo seu rigorismo

Page 133: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

* Doutrina oposta ao nominalismo e que defende a realidade dos universais, independentemente de serem ou não conhecidos por um sujeito. 208

moral e pela sua aptidão em lhes comunicar o gosto pela Palavra de Deus, largamente difundida e traduzida. Os círculos de leigos piedosos, em particular os beguinos que, havia alguns anos, reclamavam o acesso directo às fontes da fé, encontraram assim em João Huss um pai espiritual à sua medida. A partir de 1408, a referência clara a Wyclif pô-lo em conflito aberto com a hierarquia eclesiástica. Embora Huss tenha permanecido ligado ao realismo eucarístico (fé na "presença real" do corpo e do sangue de Cristo sob a aparência das espécies do pão e do vinho eucarísticos) e tenha hesitado diante da predestinação, defendeu vigorosamente a ortodoxia do pensamento de Wyclif contra o arcebispo que quis proscrevê-lo do ensino. Proibido de pregar, revoltou-se e procurou o apoio do rei Venceslau IV. Esta aliança conjuntural permitiu que a "nação" checa da universidade arrancasse o decreto de Kutná Hora, que reduzia os professores alemães à minoria, obrigando-os a emigrar (18 de Janeiro de 1409). Por seu lado, embora apoiasse teoricamente o Concílio de Pisa (1409), a partir de então, Huss confiou largamente no poder laico para assegurar a reforma para que apelava tanto na capela de Belém como na universidade. A sua audiência foi crescendo, como o prova a abundante correspondência que manteve com todos os que, desde a rainha Sofia a simples estudantes ou cavaleiros, solicitavam os seus conselhos. A sua desgraça foi muito mais penosa quando, em 1412, se opôs ao rei, a quem censurou por ter autorizado a pregação de indulgências a favor da "cruzada" italiana do papa. Cominado com uma excomunhão agravada, não lhe restou senão apelar para Cristo e exilar-se fora de Praga em plena ebulição. Encontrou refúgio nos castelos que os seus protectores possuíam na Boémia meridional, onde se consagrou a uma pregação itinerante cada vez mais radical e à redacção de numerosas obras polémicas. Entre elas destacam-se um panfleto contra a simonia, uma ampla colecção de sermões em checo (Postila) e, sobretudo, o seu tratado De Ecclesia, em que ele corta definitivamente todas as amarras: ignorando as soluções conciliaristas que, na época, haviam ganhado o favor dos teólogos, acabou por recusar o primado romano e a definição usual da Igreja como sociedade visível. Para quebrar o seu isolamento, Huss teve finalmente de ceder, no Verão de 1414, ao rei dos romenos, Segismundo, que se apressou a ir defendê-lo em Constança diante do futuro Concílio. Embora munido de um salvo-conduto, os seus adversários alemães e também franceses e checos conseguiram lançá-lo na prisão pouco depois da sua chegada. Então, aproveitou a sua inactividade forçada para responder por escrito às acusações que lhe eram feitas e para confortar os seus discípulos que acabavam de restabelecer em Praga a comunhão sob as duas espécies (pão e vinho) para todos os fiéis, quando se tinha imposto o uso de dar em comunhão aos leigos somente o pão. Perante a avalanche de protestos dos nobres checos presentes, o concílio concedeu que o acusado fosse ouvido em sessão pública. Desde 209

Junho, as suas audições apenas mostraram publicamente a hostilidade visceral do concílio a uma reforma conduzida fora de qualquer mediação institucional nem preocupação com o escândalo ou com a oportunidade. É-se tentado a reconhecer que, por detrás desta oposição, se encontra a clivagem entre cristandades de antiga latinidade, dotadas de uma longa tradição

Page 134: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

de auto-regulação reformadora, e o cristianismo, espontaneamente mais impaciente e intransigente, de quase "recém-chegados". Fosse como fosse, Huss negou ter defendido as posições erradas que lhe haviam sido imputadas e recusou em consciência retractar-se. Depois de o cardeal Zabarella e outros Padres conciliares terem tentado em vão as últimas mediações, Huss foi queimado e as suas cinzas espalhadas no Reno. Mas, em breve, desenvolveu-se na Boémia um culto em sua honra a que foi associado o seu companheiro de infortúnio Jerónimo de Praga (ca. 1380-1416). A memória do seu martírio iria alimentar cada vez mais os conflitos sobrepostos da história política e religiosa checa. Os reformadores protestantes, na peugada de Martinho Lutero, arrolaram Huss entre os precursores da pressuposta verdadeira religião, enquanto, depois da batalha da Montanha Branca (1620), a Contra-Reforma triunfante se esforçou por erradicar a menor das suas recordações. Tempo perdido: desde os primeiros decénios do século XIX, o nacionalismo checo revivescente tornou-o inspirador da sua luta pela identidade eslava face ao autoritarismo germânico. A primeira república checoslovaca, que nasceu em 1918 sobre os escombros do Império Austro-Húngaro, arrogava-se, muito logicamente, o direito de ser sua herdeira e até defendia a formação de uma Igreja hussita auto-céfala, composta de fiéis liberais e nacionalistas. Contudo, nestes últimos anos, a imagem por Huss foi-se alterando. De um lado, a Igreja católica, sem pronunciar a reabilitação da sua doutrina, reconheceu a sua piedade e o seu zelo apostólico. Sobretudo, a instrumentalização do hussitismo pelo regime comunista e as coligações da Igreja hussita com a ditadura acabaram por cansar a opinião pública. Sinal dos tempos, quando a Europa se reunifica, João Huss vai cedendo o seu lugar, no coração dos checos, ao muito europeu Carlos IV... Olivier Marin 210

A busca de Deus Místicos do Oriente e do Ocidente

A mística, palavra aparecida no século XVII para designar a experiência da presença divina alcançada no fim de um processo de meditação e de contemplação, "inaugura-se nos mais longínquos começos da história religiosa" (Michel de Certeau). Nas Igrejas do Oriente, a via mística constituiu um elemento importante da vida religiosa e foi até integrada na teologia oficial da Igreja bizantina, enquanto, no cristianismo ocidental apenas sai da sombra a partir do século XII.

A mística bizantina

No Oriente, a via mística, já presente nos tratados de Orígenes (185-ca. 253), teve os seus teólogos nos meios monásticos dos finais da Antiguidade, em Macário, o Egípcio (ca. 300-ca. 390), Evagro, o Pôntico (346-399) ou João Cassiano (ca. 350-ca. 435). Na verdade, os Padres do deserto comentaram a sua experiência da comunhão com Deus na solidão. Obtinha-se graças não só a uma longa ascese e a uma luta contra os demónios, que permitiam a purificação da alma, mas também graças a um estado de oração, criado pela recitação da "oração de Jesus"

Page 135: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ou "oração do coração" (uma curta fórmula pronunciada em consonância com o ritmo respiratório: "Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim") ou pela "ruminação" meditativa da palavra de Deus através de um versículo bíblico. Para instaurar este estado de oração que permite o encontro com Deus, monges e monjas procuram a hèsychia, a paz interior, que se atinge mediante o controlo das paixões e dos pensamentos. Então, a alma pode experimentar o maravilhamento do contemplativo. Os Padres do deserto, como os monges que retomaram a sua tradição espiritual, tentaram definir os efeitos deste encontro com Deus, sendo um deles, aliás muito corrente, o aparecimento das lágrimas. Diádoco de 211

Foticeia (século V) descreve-o assim: "Quando o Espírito Santo age na alma, ela salmodia e ora, em total abandono e doçura, no segredo do coração. Esta disposição é acompanhada por lágrimas interiores e, depois, por uma espécie de plenitude ávida de silêncio." Para João Cassiano, a presença divina revela-se "por uma alegria inefável". Às vezes, a experiência mística também passa por uma percepção sensível desta presença: uma visão luminosa, os eflúvios de um perfume sublime ou de uma brisa leve, um fogo interior que regenera os seres com o seu calor vivificante e os ilumina, mas que, em si, permanece puro e sem mistura", refere Dinis, o Areopagita*. Para numerosos autores, o objectivo último é chegar à "visão" de Deus ou à união com Deus. Embora a tradição mística bizantina tenha nascido nos meios monásticos do deserto, onde encontrou os seus teóricos, nem por isso se manteve exclusiva dos profissionais da ascese e da oração, mas antes fez parte integrante da vida religiosa de numerosos fiéis. Dionísio, o Areopagita, insiste no facto de o amor divino ansiar por se comunicar. Como o fogo, explica, "ele dá-se a quem dele se aproximar, por pouco que seja". Entretanto, a via mística nem sempre foi favorecida: conheceu fases em que a sua expressão era controlada pela autoridade eclesiástica. Preconizando um acesso directo a Deus pela oração e pela ascese, sem passar pela mediação clerical, os seus teóricos foram, por vezes, considerados espíritos perigosos que procuravam subtrair-se aos sacramentos e criticavam a hierarquia clerical. Alguns grupos místicos, como os messalianos, identificados no século IV em Antioquia como oriundos da Mesopotâmia e baptizados como "orantes" pelos seus adversários em referência à importância quase exclusiva que atribuíam à oração na prática religiosa, foram declarados hereges e perseguidos. Depois, a acusação de "messalianismo" tornou-se um selo que permitiu a rejeição de outros místicos. A época iconoclasta (730-843) não parece de modo nenhum favorável à expressão da corrente mística, nomeadamente porque não só os imperadores, mas também os bispos favoreciam o clero secular, único intermediário reconhecido com o divino, e não os monges, muito freqüentemente iconódulos (favoráveis à veneração das imagens). Mesmo nos meios monásticos, por causa do seu carácter individualista, a via mística nem sempre obteve os favores dos reformadores, como Teodoro Estudita (759-826), porque podia gerar uma hierarquia paralela fundada na proximidade declarada ou suposta em relação a Deus. Ora, a reorganização monástica

* Designa-se sob o nome de Pseudo-Dionísio (ca. 500) um conjunto de textos - entre os quais a célebre Hierarquia Celeste - atribuídos, até ao século XVI, a Dionísio, o Areopagita, ateniense convertido por São Paulo, em quem alguns também quiseram ver o santo bispo de Paris que

Page 136: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

morreu mártir por volta de 250 (segundo Gregório de Tours, bispo e hagiógrafo do século VI). Estas obras, que integram o neoplatonismo no cristianismo, marcaram profundamente a espiritualidade e a mística medievais. 212

tinha um carácter pragmático que não favorecia o individualismo; portanto, o misticismo devia ser discreto. Aquando do apogeu do Império (séculos X-XI), certas formas de vida mística foram condenadas como heréticas. Nalguns episódios pode ver-se uma recuperação do controlo exercido pelo patriarcado e pelos metropolitas sobre as correntes que tendem a escapar-lhes e podem ser populares. Por isso, os partidários de Eleutério de Paflagónia (século X) foram condenados por duas vezes pelo sínodo patriarcal. Somente conhecido pelas acusações deformadoras do sínodo que vê nela um messa-liano e um libertino, Eleutério foi, no entanto, venerado como santo na província onde residia. A popularidade dos místicos e o respeito que a sua proximidade com Deus inspirava estão bem ilustradas na carreira de Simeão, chamado o Novo Teólogo (+ 1022). Filho de uma família aristocrática, decidiu entrar no mosteiro de Stoudios, o mais prestigiado de Constantinopla, onde desenvolveu a idéia de que cada um pode procurar directamente a sua salvação pessoal pela graça; isto porque nem as obras de caridade nem os sacramentos constituem o caminho para lá chegar, mas somente a humildade, a submissão a um pai espiritual e o temor de Deus podem conduzir à percepção da luz divina. Simeão chegara a proclamar a superioridade daqueles que Deus distinguiu pela sua graça em relação aos padres que tinham passado pela ordenação clerical. Também afirmava que o poder de perdoar os pecados foi dado por Cristo aos apóstolos através do dom do Espírito e que, por conseguinte, os monges, sem serem padres, podiam confessar. Essa visão tornou-o suspeito: foi expulso do Stoudios, depois obrigado a demitir-se do seu cargo de higoumène (abade) em São Mamas, antes de ser exilado para a costa asiática do Bósforo, em Crisópolis. Mas, como era apoiado por numerosos aristocratas da capital, sensíveis à sua proximidade directa com Deus, conseguiu voltar a Constantinopla para lá fundar o mosteiro de Santa Marina; finalmente, foi um monge estudita, Nicétas Stéthatos, quem redigiu a sua Vida e estabeleceu a sua reputação de santidade, uma geração depois da sua morte. A via mística continuou a prosperar em Bizâncio. No entanto, sob os primeiros Comnenos (dinastia que governou de 1081 a 1185), a Igreja secular, que tinha toda a liberdade de promover a repressão em troca de um apoio dado à nova dinastia, atirou-se uma vez mais a diversos representantes desta corrente que fez condenar. Por exemplo, em 1140, um certo Constantino Crisómalos, leigo, foi acusado de partilhar a heresia com os messalianos e, nomeadamente, não reconhecer que o sacramento do baptismo era suficiente para entrar na comunidade cristã. Esta decisão sinodal revela, em primeiro lugar, que os escritos de Constantino Crisómalos se tinham espalhado pelos mosteiros da capital e dos arredores; em segundo lugar, dá a entender que as idéias místicas e subversivas relativamente à hierarquia eram bem aceites pelos leigos. É verdade que a corrente mística se tinha nobilitado pela difusão das obras dos Padres dos finais da Antiguidade, 213

como Máximo, o Confessor (+ 662), que tinha sido canonizado pela sua defesa da fé ortodoxa, ou João Clímaco (+ ca. 649), cuja obra A Escada Santa era lida e comentada. Mas a Igreja

Page 137: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

secular não podia aceitar os autores que proclamavam a superioridade da via mística em relação à via sacramental, a não ser que abandonassem a sua crítica aos sacramentos e reintegrassem o acesso à comunhão com Deus na oração litúrgica. Foi com este fundamento que, nos últimos séculos do Império Bizantino, se elaborou uma solução de compromisso entre a Igreja secular e as correntes místicas. Com o enfraquecimento do império, decorrente da ocupação latina e do avanço dos turcos na Ásia Menor, e com o aumento do recrutamento monástico na Alta Igreja, tinha-se desenvolvido uma poderosa corrente mística, em particular no Monte Atos, que reunia monges que partilhavam experiências espirituais muito diferentes. Atribui-se a Gregório, o Sinaíta, a renovação da oração mística e o desenvolvimento do hesicasmo. Oriundo de uma família rica, capturado pelos turcos na sua juventude, em finais do século XIII, Gregório foi resgatado por cristãos e tornou-se monge no Sinai. Lá aprendeu a oração do coração, que rezava ininterruptamente e em que iniciou numerosos monges do Monte Atos, antes de fundar três lauras (mosteiros) na Macedónia. Conta-se entre os seus primeiros discípulos o futuro patriarca Kallitos, que aprovou o seu pensamento e esforços e redigiu a sua Vida. Gregório, o Sinaíta, ensinava como praticar a oração para se aproximar de Deus, alternando a salmódia monástica tradicional com a oração do coração; mas foi a Gregório Palamas (1296-1359) que competiu teorizar e defender o hesicasmo. Nas suas obras, ele estabelece uma distinção entre a essência divina, inacessível, e que, portanto, escapa a todo o conhecimento, e as energias divinas, como a luz divina que se manifestara aquando da transfiguração de Cristo no monte Tabor e a que o fiel pode aceder pela oração e pela contemplação. Esta teologia encontrou uma forte oposição naquilo em que, parecia, punha em causa a unidade divina; mas acabou por ser incorporada na doutrina oficial da Ortodoxia; durante a guerra civil que dilacerou o Império, em meados do século XIV, Gregório Palamas tomou o partido de João VI Cantacuzeno, cuja vitória lhe permitiu obter a sé da prestigiada metrópole de Tessalónica. Por seu lado, um dos seus amigos, Nicolau Cabasilas (+ 1317), propôs uma mística mais sacramental que passava pela liturgia e também teve muita influência. A canonização muito rápida de Gregório Palamas, em 1368, é uma prova da boa integração das correntes místicas na Igreja grega. Por isso, independentemente das condenações de que foi objecto, a via mística, tanto sob a forma de hesicasmo como da corrente litúrgica, faz parte integrante da atitude religiosa dos bizantinos, para quem a tradição dos Padres do deserto continuava muito viva e não apenas no meio monástico. Esta tradição é largamente exportada para as outras Igrejas ortodoxas. As Igrejas russas, búlgaras e sérvias também tiveram os seus 214

mosteiros na Montanha Santa, o Monte Atos. Na Igreja copta, a tradição dos Padres do deserto egípcios subsistiu no seio dos mosteiros, apesar dos constrangimentos derivados da ocupação árabe. Do mesmo modo, também nas Igrejas sírias de língua siríaca se manifestou uma corrente muito viva durante os séculos medievais, largamente inspirada pela poesia religiosa que remontava a Efrém (t 373). O eco destas ricas tradições ainda se nota na época moderna. Béatrice Caseau

A mística ocidental

Page 138: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

No Ocidente, a mística começa a desenvolver-se no século XII, quando aparecem as primeiras obras que relatam este tipo de experiência, para imediatamente desabrochar, até ao século XV, em vários focos dispersos, em que brilham mais especialmente o mundo flamengo, o vale do Reno e a Itália. Coube ao chanceler da universidade de Paris, João Gerson (1363-1429), no seu De mystica theologia, dar a definição desta como "o conhecimento de Deus", e analisar as suas formas em termos ainda considerados válidos. Até ao século XI, nos meios monásticos ocidentais, parece ter prevalecido mais a contemplação do que a experimentação dos mistérios divinos. Entretanto, alguns religiosos conheceram obras dos Padres do deserto ou as de João Cassiano, e viveram segundo esta tradição, nomeadamente em Marselha e em Lérins; também Gregório Magno, antes de ser papa, levou uma vida contemplativa, impregnada de mística. Mas só no século XII aparecem os primeiros autores cujas obras descrevem de maneira mais sistemática a passagem da reflexão à iluminação no conhecimento dos "mistérios" divinos (é esta etimologia da palavra). Entre estes, figuram em lugar de destaque a abadessa Hildegarda de Bingen (t 1179), mais visionária do que propriamente mística, e os monges de Claraval Aelred de Rievaulx (+ 1167), Bernardo de Claraval (1091-1153) e o seu amigo Guilherme de Saint-Thierry (t 1148). Foram as páginas ardentes de paixão do livro do Antigo Testamento, o Cântico dos Cânticos, que inspiraram ao abade de Claraval, no comentário que dele faz, a sua ampla concepção da relação que une, no modo do amor, o Criador e as suas criaturas, Deus e a sua Igreja. A alma esposa é apresentada à procura do seu esposo divino, em tensão para uma união cujo êxtase na Terra dá tão-somente uma pálida imagem da visão face a face esperada no além. Por seu lado, Guilherme de Saint-Thierry realça mais o mistério trinitário, vendo na alma criada a imagem da Trindade criadora; pois é graças às suas três funções, associadas às três pessoas - a memória ao Pai, a razão ao Filho e a vontade ao Espírito Santo - que ela pode esperar aceder ao conhecimento íntimo do Deus-Trindade. Na mesma época, em Paris, a abadia dos cónegos de Saint-Victor, prestigiado centro intelectual, desenvolveu, pelas penas de Hugo de São Victor e de Ricardo de 215

São Victor, uma mística mais especulativa, que tenta conciliar a reflexão com a busca amorosa de Deus. No século XIII, a corrente amplia-se e, facto até então inédito, sai dos claustros para entrar no mundo dos leigos e das mulheres. Entre elas, figuram religiosas cistercienses, como Beatriz de Nazareth (1200-1268), beguinas que, sem fazer votos, tinham abraçado um modo de vida religioso feito de oração e de serviço ao próximo, como Matilde de Magdeburgo (século XIII), ou, depois da fundação das ordens terceiras dominicana e franciscana - movimentos expressamente destinados aos leigos que viviam nos círculos de influência das duas principais ordens mendicantes -, alguns terceiros, a mais célebre dos quais é Catarina de Sena (ca. 1347-1380). Estas mulheres não hesitaram em dar a conhecer as experiências excepcionais com que foram agraciadas: umas escreveram pessoalmente o relato, sinal da sua cultura e do seu conhecimento das Escrituras e dos comentários; outras confiaram-no aos seus directores espirituais. Mais experientes no manuseio do vocabulário espiritual, mas suspeitos de terem adaptado os testemunhos recolhidos às normas que lhes eram familiares. Todavia, em certos casos, o ascendente da dirigida sobre o director era tal, que a relação acabava por inverter-se, como aconteceu entre Catarina de Sena e o dominicano Raimundo de Cápua. Os

Page 139: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

relatos que chegaram até nós desenvolvem uma temática muito rica. A metáfora da iluminação ocupa neles um lugar importante, como testemunha, por exemplo, o título do livro de Matilde, A Luz que flui da Divindade; situa-se na esteira da apresentação escriturística de um Deus "Luz do mundo" e de uma corrente neoplatónica difundida pelas obras do Pseudo-Dionísio. Na mesma época e no mesmo espírito, o teólogo franciscano São Boaventura (+ 1247) fixou as três vias da Ascensão espiritual: purgativa, iluminativa e unitiva. Mas, para espíritos profundamente marcados pela obra de São Bernardo, as imagens apresentadas pela mística nupcial continuam a ser um modo fecundo de expressão, a que se junta uma forte inspiração eucarística, trazida pelo desenvolvimento contemporâneo do culto ao Corpus Christi, oriundo destes mesmos meios. No entanto, a meditação sobre a vida de Cristo não podia ignorar a sua parte de sofrimento, em consonância viva com as dores sofridas por Jesus na sua carne ao longo da Paixão, nomeadamente através da devoção às Cinco Chagas (mãos, pés e lado). Além disso, distante das discussões teológicas, o relato místico comporta uma dimensão experimental em que o corpo, em particular o feminino, se torna o instrumento privilegiado para os fenómenos extraordinários de que é quadro. Os relatos superabundam em descrições, para que foi necessário criar um vocabulário adequado, ondas ou rios de lágrimas, de êxtases, de arroubos ou enlevamentos, de levitações. Muitos devotos alimentavam-se exclusivamente de uma hóstia consagrada; às vezes, recebida das mãos do esposo celeste em pessoa, a hóstia também podia ter o sabor da carne que atesta o mistério da comunhão na presença real. A união com os sofrimentos de Cristo crucificado inscreve-se igualmente nos corpos mediante a estigmatização, de que 216

Francisco de Assis não é exemplo único; e culmina no mais íntimo com a troca de corações (Catarina de Sena e Doroteia de Montau, 11394). Nos conventos mendicantes e nas beguinarias flamengas ou renanas, o movimento conhece uma autêntica reviravolta de perspectiva: a caminhada ascensional da alma é substituída por um abandono total, esperando que, da renúncia de si mesmo, receba tudo do Criador, para encontrar o seu ser por fusão no Ser divino. A mística nupcial é suplantada ao Ser, própria da tradição renana, de que o dominicano Mestre Eckhart (+ 1327) foi a grande figura. Para ele, trata-se de perder-se para se encontrar, de permitir que "o homem seja Deus em Deus" ou "tornar-se por graça aquilo que Deus é por natureza": estas frases valeram ao seu autor a acusação, errónea, de panteísta. Como no Oriente, as autoridades eclesiásticas reagiram de maneiras muito diferentes diante da amplitude e do vigor da corrente mística. Alguns não esconderam a sua admiração, como o cardeal Tiago de Vitry (+ 1240) na Vida que redigiu da beguina Maria d'Oignies (1177-1213). Mas, mais geralmente, é a desconfiança que suscita. De facto, os clérigos estavam espantados ao ver que simples mulheres os tinham precedido no caminho da vida espiritual! Além disso, os místicos, homens e mulheres, viviam uma relação directa com Deus independentemente das mediações eclesiásticas (sacramentos, cerimónias litúrgicas, pregações) cujo cumprimento obrigatório tinha sido afirmado pela reforma gregoriana e pelo Concílio de Latrão IV (1215). Finalmente, o magistério lamentava, não sem razão, os desvios que estas experiências particulares poderiam ocasionar. A seus olhos, os relatos feitos pelos místicos não poderiam ser deixados em todas as mãos, sobretudo quando redigidos em língua vernácula, como um remédio demasiado poderoso que poderia provocar nas almas mais estragos que benefícios. Entretanto, as autoridades religiosas esforçaram-se por encontrar nestas obras traços

Page 140: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

propriamente heréticos: verifica-se na leitura do Prólogo do livro da beguina Margarida Porete, o Espelho das Almas Simples Aniquiladas, que teve o cuidado de, antes de o difundir, o fazer aprovar por três clérigos, um frade franciscano, um monge cisterciense e um professor de teologia. Quando houve condenação, como foi o caso desta beguina, queimada em Paris em 1310, foi sobretudo por causa do contexto político, na circunstância a luta entre Filipe, o Belo, e o papado, tendo ela sido mero bode expiatório. Mas, para a maioria das pessoas de Igreja, seguindo um ponto de vista de que João Gerson se fez eco, seria melhor considerar as "pessoas simples" fora destes excessos e propor-lhes uma via espiritual mais equilibrada. Foi esse o papel desempenhado pela Imitação de Cristo, a mais bela flor desta literatura espiritual, mediante a qual, porém, se percebe o quanto ela deve às grandes obras místicas que a precederam. Do outro lado da tormenta da reforma, há laços profundos que unem a mística medieval ocidental à da época moderna, marcada pelas evocações do aniquilamento ou as da união dos espíritos e dos corações. Catherine Vincent 217

A Imitação de Cristo

Entre as jóias da literatura cristã, A Imitação de Cristo é, depois da Bíblia, o texto mais difundido e mais traduzido no mundo. Do século XV ao século XX, é considerável a sua influência em gerações de cristãos, dos mais ilustres aos mais humildes, dos católicos aos protestantes. Classificada na categoria das obras espirituais, A Imitação nem por isso deixa de ter um conteúdo teológico de elevado alcance. Quatro tratados redigidos em latim e distintos uns dos outros são agrupados neste livro célebre, cujo título saiu das primeiras linhas da obra. Colectâneas de pensamentos, cada qual dotado de uma unidade redaccional, foram sem dúvida produzidos pelo mesmo autor, que permanece anónimo. Nada no seu conteúdo permite identificar este religioso, muito discreto, que relata as suas experiências para ajudar os seus semelhantes na descoberta de Deus e na obtenção da paz interior. Muito crítico da teologia praticada nas universidades, mas também muito irritado com os excessos das devoções exteriores, o autor rejeita em bloco o formalismo do ensino e das observâncias. Por isso, a sua intenção não é propor uma exegese nem, ainda menos, uma doutrina elaborada, frutos de uma erudição pretensiosa, mas antes testemunhar humildemente a sua experiência, destinada a ajudar outros a conformar-se a Cristo. Sem exigir do seu destinatário grandes qualidades intelectuais, aliás inúteis para penetrar nos mistérios divinos, apela à inteligência do coração, convidando o leitor a ruminar o ensinamento de Cristo e, depois, a considerar o exemplo dos santos. Nascido da prática de exercícios de meditação sobre a Sagrada Escritura e a vida dos Padres do deserto, o texto introduz o indivíduo, qualquer que seja, numa relação de proximidade íntima ou, até, afectiva, com Cristo, embora aceite livrar-se dos entraves que o amor-próprio, o apego aos bens materiais ou a suficiência intelectual constituem. Em contrapartida, ele cultiva a humildade, a compunção do coração e a simplicidade. Ao propor ao seu destinatário uma ascese exigente mas acessível, eleva-o da consideração da sua miséria ao encontro com o Deus de amor e ao 218

Page 141: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

acolhimento da sua graça santificante, pelas vias da interioridade e da purificação. Assim, o conhecimento de si mesmo abre caminho ao conhecimento de Deus. Nenhum plano preciso organiza estes livros que, em vez de proporem uma antologia de citações tradicionais, reintegram-nas na releitura pessoal, posta ao serviço de uma direcção espiritual. Por isso, pôde-se extrair deles passagens, para as aprofundar ou ler sequencialmente, para saborear o seu desenvolvimento geral. Todavia, não se trata de um caminhar progressivo para a perfeição, mas de exortações a um trabalho interior constantemente renovado. O primeiro livro reúne "Avisos úteis para entrar na vida interior". Cada um é encorajado a desembaraçar-se das ilusões do mundo exterior para se consagrar à procura do essencial, no mais profundo do seu ser. A alma assim libertada poderá restabelecer a sua inclinação mais nobre: tender para Deus. A via mais segura para lá chegar é a disponibilizada por Cristo, que leva o homem a viver segundo o Evangelho e, portanto, a cultivar o amor de Deus e a renúncia a si próprio. Será árduo o caminho para a virtude, mas numerosos os frutos colhidos. As referências a um contexto conventual destinam prioritariamente estas páginas a religiosos, sem excluir os leigos, também eles chamados a uma conversão interior. Na segunda colectânea, o homem é posto em contacto íntimo com Cristo. Capaz de elevar-se para esperar o repouso em Deus, o homem é, em razão da sua natureza pecadora, confrontado com uma rude tarefa. A graça de Cristo pode ajudar a suportar contradições e humilhações e, até, correr ao encontro dos sofrimentos. Para a receber, o homem deve abandonar-se confiadamente nas mãos de Deus, sem contar com os seus recursos. O discurso meditativo segue o diálogo afectivo "entre Cristo e a alma fiel" exposta às provações de uma busca em que as delícias de encontros efémeros com o divino alternam com a experiência dolorosa dos limites da condição humana. É então que se pede ao homem que renuncie a todas as formas de desejo, para se abandonar totalmente à iniciativa divina. A união tão procurada alcança-se no quarto livro, "sobre a eucaristia", na comunhão do corpo de Cristo, recebido não como recompensa no termo de um percurso, mas como ajuda necessária ao prosseguimento da caminhada. Muito mais do que uma exortação moral para viver à semelhança de Cristo, os livros articulam-se em torno do tema do amor que une o crente à pessoa de Jesus, que inaugurou o caminho que conduz a Deus. Só Ele poderá fornecer-nos a ajuda necessária. "Por isso, deixai entrar Jesus em vós e não deixeis entrar senão ele." Uma única opção possível: renunciar às vaidades de um mundo corrompido e às solicitações da condição humana para seguir Jesus no caminho da cruz e responder com uma doação total de si próprio ao amor incomensurável de Cristo. Esta relação será não somente alimentada por consolações reconfortantes, como também percorrida por sentimentos de privação que o cristão aprenderá a receber como outro dom divino. Este estado 219

de abandono e de acolhimento nunca está inteiramente adquirido, mas deve ser procurado à custa de esforços continuados sem concessões às exigências da natureza humana, que só a graça divina pode elevar. Ao consagrar durante muito tempo no Ocidente a ruptura entre a teologia e a espiritualidade, estes textos encontram, desde a sua difusão por volta de 1425, as expectativas de um leitorado atraído por propostas simples que apostam mais na prática da humildade e do desapego do que na especulação pura como método de santificação. Ao manter-se anónimo, não tarda a suscitar uma série de controvérsias a propósito da sua autoria. Perante o seu sucesso, diversos meios espirituais reivindicam a sua paternidade. Há

Page 142: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

manuscritos que pretendem que sejam de João Gerson (+ 1429), chanceler da universidade de Paris. Outros fazem-nos remontar a Johannes Gersen, beneditino italiano do século XIII. Uma tradição mais comummente aceite associa-os à pessoa de Tomás Hemerken (+ 1471), originário de Kempen, no arcebispado de Colónia. Durante os seus estudos, este homem freqüenta os Irmãos da Vida Comum, com quem aprendeu a conhecer o movimento espiritual implantado em Deventer pelo seu fundador Gérard Grote (t 1384). Agrupados em fraternidades de clérigos e de leigos, estes irmãos e irmãs reúnem-se à volta de projectos comuns: a busca de uma santificação pessoal pela oração, pela meditação e pela ascese, e a participação eficaz na edificação dos contemporâneos, cada um segundo as suas possibilidades. A sua propensão para o isolamento não os segrega do mundo: para eles, é primordial acolher o pobre. Dando uma importância extrema à reprodução das obras dos seus mestres, depois à composição e à difusão de obras de meditação centradas na Sagrada Escritura, animam oficinas de copistas e escolas, rapidamente tornadas atractivas, em que o saber e a espiritualidade se misturam subtilmente. Propugnando uma religião do interior, propõem aos seus destinatários um programa de vida devota absolutamente "discreta", uma Devotio moderna sem excessos, ao alcance de todos, exactamente o contrário de uma teologia mística ou especulativa, reservada às elites. Privilegiam os temas da vaidade [de vanitas, mais no sentido etimológico de aparência vã, vacuidade, ausência de valor], do mundo e do amor de Cristo e louvam as virtudes da humildade, da obediência e da renúncia. A moderação manifesta-se ainda na sua liturgia, simplificada, e nas suas práticas ascéticas, acessíveis. O seu destino encontra-se rapidamente associado à história da congregação dos cónegos de Windesheim, aprovada em 1395 e centro de uma verdadeira reforma da vida religiosa. Tomás, chamado a Kempis, professou nesta ordem em 1407. Autor de numerosos tratados, sermões e biografias espirituais, entre as quais a de Gérard Grote, foi-lhe atribuída, muito depois da sua morte, a paternidade dos textos d'A Imitação favoravelmente acolhidos nestes meios religiosos em expansão e que lhe asseguram uma enorme difusão desde o último quartel do século XV. 220

O texto terá uma disseminação considerável, tanto nos meios conventuais como nos laicais e servirá de cadinho espiritual em diversas correntes de reforma na Igreja. Recebendo especialmente o favor dos círculos femininos, que nele vêem o alívio de um possível acesso a Deus sem outra mediação além da de Cristo, A Imitação será, como todos os grandes textos, objecto de múltiplas releituras extremamente diversificadas, tanto católicas como protestantes. Marie-Élisabeth Henneau 221

TERCEIRA PARTE

OS TEMPOS MODERNOS A APRENDIZAGEM DO PLURALISMO (séculos XVI-XVIII)

Page 143: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Durante muito tempo - até finais do século xx -, o nascimento dos tempos modernos foi concebido na cultura comum como progresso e abertura, como vitória face ao arcaísmo e ao obscurantismo medievais. Neste quadro, a religião estabelecida tomava um carácter negativo que justificava que poderosos movimentos a pusessem em causa: reforma das instituições políticas, clericais e monásticas, do papado ou do clero, mas também reforma da leitura da Bíblia, da pregação, da oração pessoal e, sobretudo, dos costumes. Pressupunha-se que estas aspirações conduziriam a um futuro melhor, uma nova idade, a do progresso, da liberdade e das opções de consciência..., quando os contemporâneos, persuadidos da degradação de todas as coisas, pensavam-nas como regresso à origem. Os historiadores saídos das Luzes legavam-nos uma leitura discutível: as evidências, mesmo partilhadas, são sempre justas? O clero de finais do século XV seria mais depravado do que o do século XIII? O papado dos Bórgia (Alexandre VI) seria mais escandaloso do que o papado de Avinhão? Hoje responde-se a estas perguntas simples de maneira mais circunstanciada. Nos casos em que se pode encontrar documentação que nos fornece as suas características, não se nota aumento dos abusos, mas os contemporâneos de Erasmo e de Lutero acreditaram nisso e os historiadores dos dois séculos seguintes deixaram-se levar pelas suas palavras para desenvolverem uma retórica da decadência do fim da Idade Média. Hoje, as técnicas históricas reavaliaram profundamente este período intermédio entre a idade gótica e a idade clássica, sublinhando a sua inventividade, o seu dinamismo religioso, a sua capacidade de pôr em questão as falsas aparências do momento, as suas incertezas e até mesmo as suas angústias. Para si próprio e para a multidão considerável dos seus partidários e simpatizantes que estão na mesma busca, Lutero opta por reconhecer como única autoridade da Bíblia e única maneira de cumprir a vontade de Deus a justificação pela fé. Por isso, ele edifica, com destino ao maior número dos fiéis, um cristianismo de perfeição pessoal, outrora reservado a uma elite reduzida de "virtuosos" do religioso: uma religião fundada na recusa das mediações humanas (a dos padres) e no face a face directo com a transcendência. É assim que se deve pensar a Reforma protestante à volta do ano 1520 tenha ela sido luterana, já radical ou ainda erasmiana e, por isso, católica (porque Erasmo é lido e discutido dos dois lados). Foi o que constituiu o carácter crucial do 225

confronto entre Erasmo e Lutero em 1524: o homem será, porventura, livre de avançar por si mesmo a caminho de Deus pelos seus esforços, ou será ajudado pela Escritura e pela fé, que ligam a sua consciência em ordem à sua salvação? Outros reformadores tentam responder à sua maneira à procura do sentido da vida, de Tomás More a João Calvino, de Inácio de Loiola a Teresa de Ávila, de Francisco de Sales a Bérulle e a São Cirano. Todavia, neste século que quer acreditar que Deus conduz a ordem do mundo e inspira para o bem ou abandona ao mal cada uma das suas criaturas, as conseqüências desta fermentação são inicialmente de exclusão do outro, a vontade de disciplinar as populações e fortalecer o Estado e os poderes eclesiásticos (tanto católicos e clericais como protestantes e leigos). No clima de confronto, a fronteira entre as confissões construiu-se de maneira extremamente rápida. Entre a revolta do homem Lutero, que se coloca em 1517, mas que só se torna efectiva em 1520, e a formação de Estados que se dizem protestantes (1529), depois da instalação definitiva de Calvino em Genebra (1541), não passa mais que um quarto de século. No espaço destes poucos anos, a destruição da "Babilónia" romana é um leitmotiv, aliás, por vezes, executada, também aquando do saque

Page 144: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

de Roma (1527), e o fim do velho mundo é postulado como iminente para muitos. Durante este quarto de século, o papado recusa mover-se enquanto partes inteiras da Igreja romana reclamam a reforma e outras pedem o aniquilamento definitivo dos rebeldes, enquanto estes predizem a inutilidade e o fim próximo do "papismo". Quando, em 1534, o cardeal Alexandre Farnese (Paulo III) foi eleito, queria reunir um Concílio. Mas foram precisos mais de dez anos de batalhas diplomáticas para tornar efectiva a reunião do Concílio de Trento, e muitas querelas e interrupções para que ele desenvolvesse, entre 1545 e 1563, um corpo de doutrinas e uma consciência católica fundada no consenso (as questões disputadas como a da Imaculada Conceição, por exemplo, nunca terminaram na redacção de um texto durante estes anos). O concílio promoveu uma religião de combate que colocou à sua frente o papa de Roma, numa luta travada contra os protestantes com todos os meios culturais do momento. Por isso, tendo-se o papado tornado o órgão executivo do Concílio, com a Inquisição, utiliza certamente a coerção, mais racional nos seus métodos do que a polémica podia fazer crer, mas também transforma Roma como montra do catolicismo novo pela beleza arquitectónica e pictural - maneirista, depois barroca - e pela música. Uma intensa competição entre Roma e as capitais protestantes acompanha este combate: a escola, a missão longínqua assim como a interior, a própria cultura são dinamizadas por esta dura luta; os ecos ressoaram até aos nossos dias nas etiquetas apostas às instituições em questão. Doravante, se o cristianismo é plural e obrigado a dar lugar ao outro contra sua vontade, também se exprime, as mais das vezes, nas identidades nacionais, culturais e locais fortes, que seguram os seus fiéis e, ao mesmo tempo, os seus 226

súbditos. Nestes combates fratricidas, não se separa a religião da política. Este mesmo esforço também constrói o seu contrário, "espíritos fortes", "libertinos", que tomam à letra as buscas místicas, que privilegiam a procura de uma vida singular em que cada indivíduo entra em contacto com Cristo. Ao abrir a um maior número de pessoas aventuras interiores e psíquicas outrora reservadas a alguns, os devotos, jansenistas, pietistas... consagram a consciência individual como o mais alto dos valores. Mas, nas suas utopias de fraternidade de pureza, o indivíduo chamado a evangelizar o mundo como a si mesmo encontra justificação e estabilidade para empreender e para agir, independentemente de qualquer esperança terrestre. Embora o dinamismo da Europa moderna seja sem dúvida demográfico, é igualmente ético e também reside na consciência adquirida e refundada permanentemente por cada confissão e por cada nação da sua escolha e com a certeza da adequação da sua acção ao plano de Deus. Amordaçados pelo poder imperial russo ou otomano, os ortodoxos não tiveram estas oportunidades. Mas o progresso e as Luzes não se teriam inscrito nas crises do cisma? O historiador não pode dizer nada a esse propósito; simplesmente observa, através destas fissuras fundamentalmente religiosas, o gosto da busca de novos mundos, tanto para convencer quanto para conquistar, o respeito pelo rigor e o conhecimento necessários à controvérsia, a liberdade interior da experiência de Deus... Tantas características provavelmente mais importantes do que o controlo, sempre relativo, das consciências, quantos os "horrores" da Inquisição desconfiada, quanto a intolerância e a exclusão transformadas em sistema, e quanto o conformismo de uns e de outros. Por vezes, os excessos de um mundo violento são limados pelos poderes de todos os feitios; mas, no fundo, este gosto da ordem conduz a outras violências, saídas da radicalização de certos crentes, da sua

Page 145: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

necessidade de distinção e do fascínio de um mundo que muda demasiado depressa para uma verdade única e estável. Estes tempos de dinamismo também são tempos de perturbações, demasiado ocultas pela exaltação dos mártires e da idade de ouro das fundações fraternas. Paradoxalmente, a instrumentalização das aspirações religiosas pelos poderes políticos e pelos grupos sociais, embora denunciada por alguns crentes, contribuiu sem dúvida para manter as sociedades ocidentais afastadas do radicalismo religioso. De resto, a Europa também está ligada por estes acontecimentos e por estas lutas de irmãos inimigos, em que ela aprendeu a desconfiar de uma pureza religiosa demasiado proclamada e demasiado reservada a certas comunidades. Nicole Lemaitre 227

OS CAMINHOS DA REFORMA

Erasmo e Lutero Liberdade ou escravidão do ser humano

Por alturas de 1500, o humanismo preconiza um regresso às origens e aos textos fundadores do cristianismo, enquanto a Devotio moderna prega uma religião mais interior, individual e cristocêntrica. É neste enquadramento que Erasmo e Lutero se confrontam sobre a idéia de liberdade. A sua imensa erudição, o seu talento literário e o seu apego ao Evangelho valem a Erasmo de Roterdão (1469-1536), antigo cónego regular que se manteve padre secular, um prestígio inigualável, e suscitam oposições ferozes. Editor dos Padres da Igreja, ele apresenta, em 1516, a primeira edição grega e uma nova tradução latina do Novo Testamento com notas críticas, uma exortação a ler a Escritura de modo a retirar benefício da leitura e uma exposição do método teológico. Desde 1503, no Manual do Cristão Militante, propõe um programa de vida evangélica, em que "a piedade não se identifica com a vida monástica". Com o Elogio da Loucura, Erasmo dirige a sua inspiração contra a ambição e a cupidez que conduzem aos abusos de poder e aos negócios ilícitos; contra a cegueira e a auto-suficiência dos teólogos que se presumem capazes de ensinar tudo; contra a ignorância e as superstições dos monges que desnaturam e confiscam a piedade. Para ele, a piedade contabilizável e as observâncias ameaçam o cristianismo com dois perigos mortais: o paganismo e o farisaísmo. Contra uma escolástica repleta de empolamentos e querelas - que substitui a Bíblia por Aristóteles e a humildade do crente pela arrogância do raciocinador -, Erasmo apela a uma teologia escriturística, fundada num conhecimento preciso do texto e conduzida para o único objectivo de ouvir Cristo para ser transformado nele. O estudo das letras prepara melhor do que a dialéctica para entender a Escritura e para a conversão do coração, porque "a verdadeira teologia é mais vida do que 229

discussão". Longe das "curiosidades ímpias", uma investigação atenta à letra e aberta ao Espírito alimentará "uma doutrina piedosa e uma piedade esclarecida". Teria ele sido aliado de Lutero na Reforma? Religioso agostinho em Erfurt, depois professor de teologia em Wittenberg, Martinho Lutero (1483-1546) atravessa, desde 1516, uma crise espiritual grave.

Page 146: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Embora respeite a regra, ele sente-se sempre pecador, digno da cólera de Deus. Conhece a angústia e o desespero. Por fim, a leitura de Santo Agostinho e de São Paulo liberta-o e inspira doravante a sua teologia. Segundo ele, o pecado original corrompeu totalmente a natureza humana. Minado pelo orgulho e pelo amor-próprio, o homem peca necessariamente, mesmo externamente, quando faz o bem. Ele não pode merecer a sua salvação, mas Deus vem em seu auxílio através da lei que dá a conhecer para convencer o homem da sua impotência e mostrar que só Ele salva, generosamente, por Cristo. Só a fé no perdão generoso restitui a inocência, sem as obras nem os méritos. Então, o crente encontra a paz e a liberdade, uma liberdade que não é a livre escolha entre o bem e o mal (o livre-arbítrio). Em A Liberdade Cristã (1520), Lutero declara: "O cristão é o homem mais livre, dono de todas as coisas, não está sujeito a ninguém. O cristão é, em todas as coisas, o mais serviçal de todos os servos, está sujeito a todos." Esta liberdade interior não autoriza a licença moral nem a sedição. Liberta da tirania das observâncias, da falsa segurança das obras, da ilusão do mérito, do orgulho e do desespero. Liberta da lei, não contra a lei, mas por reconhecimento, mesmo no fundo da provação. Justo e pecador, o homem novo perdoado pela fé luta contra o antigo, não para ser salvo, mas porque está salvo. Esta via de salvação só é conhecida pela Palavra de Deus, contida unicamente na Escritura. Tradições e magistério só têm força e legitimidade para anunciar fielmente esta Palavra. O sentido da Escritura é claro, e é ela própria a sua própria interpretação, e só Cristo é a sua chave. O "Deus escondido", inacessível ao homem, revelou-se, velando-se em Jesus crucificado. A "teologia da Cruz" opõe-se à "teologia da glória", que confia nas obras e na razão. Nesta base, Lutero critica vigorosamente as práticas da Igreja do seu tempo, conseqüências, segundo ele, da teologia da glória. A sua contestação das indulgências lançadas por Leão X para financiar a construção da basílica de São Pedro provoca uma reacção de Roma. Excomungado como herege, Lutero é banido do Império em 1521. Está consumada a ruptura. Lutero proclama o sacerdócio de todos os fiéis, mantém unicamente dois sacramentos, o baptismo e a eucaristia, rejeita o Purgatório, a missa como sacrifício, os votos monásticos, a intercessão dos santos, o direito canónico, a hierarquia romana e considera o papa o Anticristo. No meio de muitos mal-entendidos, a sua audiência aumentou na Alemanha. Erasmo pensa que as teses de Lutero merecem ser ouvidas e não tanto condenadas quanto moderadas. Enquanto para Lutero a reforma impõe 230

rupturas inevitáveis, Erasmo está convencido de que a concórdia é uma exigência evangélica. Ora, a manutenção da paz requer paciência, como a salvaguarda da unidade exige que se suporte uma certa diversidade, porque o nosso conhecimento é imperfeito. Estas divergências têm raízes profundas. Desde 1517, Lutero pensa que Erasmo "não promove suficientemente Cristo e a graça de Deus". Deus, insiste Erasmo, revela-se progressivamente através da história, de cujos meandros se serve e respeita. Como os Padres notaram, Deus "balbucia", "adapta-se" às condições concretas dos homens a quem se dirige, consentindo passar através da sua intermediação. A pedagogia divina manifesta a paciência de Deus: a Antiguidade pagã é uma "preparação para o Evangelho"; homens criados à imagem de Deus trazem em si esboços de verdade, que a fé cristã assume e aperfeiçoa. É verdade que a sabedoria de Deus é loucura para os homens, mas Cristo atrai tudo a si, recapitula e reconcilia tudo em si (Jo 12,32; Ef 1,10; Cl 1,20). Assim, a Palavra de Deus fez-se palavra de homem e, finalmente, Deus fez-se homem. O próprio Jesus adoptou a linguagem de um tempo e de um lugar. A historicidade da revelação

Page 147: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

inscreve-se na ordem da criação e da Encarnação. Estas mediações humanas e históricas explicam simultaneamente a necessidade de reformas, à luz do Evangelho, e a atenção devida à tradição que carregou este Evangelho. A história continua, o Espírito Santo não abandona a Igreja na sua marcha, mas chama-a sem cessar a purificar-se, a converter-se. Em 1524, Erasmo enfrenta Lutero sobre um tema decisivo, num Ensaio sobre o Livre-Arbítrio. Conclui que o homem pode modestamente cooperar na sua salvação com a graça de Deus. Com o pecado, o homem não perdeu tudo da sua semelhança original com Deus. É Deus quem o salva por amor, mas respeita-o e associa-o a si. A "filosofia de Cristo" não esmaga, mas "restaura a natureza que foi criada boa" -já São Tomás o tinha sublinhado. É claro que esta questão é difícil. Erasmo só quis comparar argumentos, analisar os dados variados da Escritura e da Tradição. Como, por vezes, a Escritura não é nada clara - diz ele -, está sujeita a interpretação, por se inscrever na história e na linguagem humana, e pela profundidade dos mistérios entregues a estas mediações. Como acreditar que, até ao nosso tempo, a Igreja tenha errado sobre um ponto capital? Tentemos seguir Cristo, confiando na sua ajuda e na sua misericórdia, não nos nossos méritos obscuros e sem pretendermos saber tudo, mas trabalhando livremente por saber mais e melhor. A este exame crítico (diatribe), Lutero responde com um tratado Sobre o Servo Arbítrio. Trata-se de uma afirmação (assertio), porque a Palavra de Deus não tolera hesitação nem de compromisso, explode e ilumina como o relâmpago, corta como a espada, reduz a nada as pretensões de uma natureza pervertida e os balbucios da história. Não pode deixar de suscitar desordem e tumulto e não concórdia, porque Deus e o mundo opõem-se como Deus e Satanás. Ora, toda a Escritura afirma claramente a decadência 231

total do homem natural, a soberania, a santidade exclusiva e a alteridade de Deus e a absolvição unicamente pela fé. A própria fé é um dom imerecido do Deus insondável. Depois do pecado, o homem é igual a um animal de carga montado ou por Deus ou por Satanás. Afirmar o homem é negar Deus. Portanto, Erasmo é um ímpio. Mas, embora Lutero confesse aqui a sua fé com segurança, também declara, na véspera da sua morte: "Somos todos mendigos. Eis a verdade." Lutero, mais profético do que Erasmo, opõe à sua teologia uma teologia radical da transcendência. Erasmo faz da Encarnação o ponto culminante de uma história em que se conjugam transcendência e imanência. Estes dois teólogos não tiram da "loucura da Cruz" as mesmas conseqüências sobre a condição do homem nem sobre os modos de acção divina. Entre a criação e a Encarnação redentora, Erasmo mantém uma certa continuidade. A preocupação com assegurar a plenitude da Redenção leva Lutero a ver nisto sobretudo uma ruptura, uma criação inteiramente nova, sobre os destroços da antiga. Assim, a fé do convertido, cativo da verdade, opõe-se à busca humilde do crente que caminha, sem renunciar a ela, para uma verdade que se oculta. Duas sensibilidades, duas antropologias abrem caminhos diferentes a uma reforma igualmente desejada. Mas também houve muitos reformadores protestantes que acolheram os trabalhos de Erasmo mais favoravelmente, embora não aceitassem o seu pensamento profundo. A reforma católica rejeitou sobretudo o humanista; mas, às vezes, sem o ler, desde o Concílio de Trento e, depois, com Francisco de Sales e os jesuítas, chegou a algumas das suas intuições. Será preciso esperar pelo século XX para que se reconhecesse ao pensamento de Erasmo um alcance teológico profundo, talvez mais de acordo com uma modernidade pluralista do que à de Lutero, mais agarrado ao absoluto de Deus. Jean-Pierre Massaut 232

Page 148: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Até ao fim das Escrituras Os radicais das reformas

Desde os primeiros anos das reformas posteriormente chamadas "protestantes", surgiram dissidências multiformes. Nascidos ao lado destes reformadores, convencidos do fracasso da Igreja medieval, estes radicais decepcionam-se bastante rapidamente com certas hesitações ou "compromissos" de Lutero e de Zuínglio (1484-1531) e seguem o seu próprio caminho. Nos anos 1524-1525, surge a primeira manifestação popular: começa na Floresta Negra, depois difunde-se por toda a Alemanha meridional e central até ao Tirol. Inspirando-se em escritos anticlericais de Lutero e Zuínglio, insistindo no direito local dos pastores, no direito da paróquia de ler e de interpretar a Escritura, e também da busca de uma justiça social inspirada pelo Evangelho, o "movimento camponês", também animado em diversas regiões por um certo milenarismo, termina com um banho de sangue e provoca o descrédito da Reforma aos olhos dos católicos. Desde então, as reformas luteranas e zuinglianas tornam-se cada vez mais questão dos príncipes e das cidades livres do Império. A dissidência que se segue toma o caminho da clandestinidade. Por isso, nos decénios seguintes podemos seguir pelo menos três formas de "radicalismo" protestante. Em primeiro lugar, aparecem várias formas de "anabaptismo" mais ou menos estruturadas. Em Zurique, os primeiros anabaptistas são jovens humanistas e discípulos de Zuínglio. Partilhando a aspiração de autonomia local dos camponeses, Conrad Grebel, Felix Mantz e Balthasar Hubmaier afirmam que o Novo Testamento não ensina o baptismo dos bebês. Além disso, o princípio reformador da "salvação pela fé" encoraja-os a considerarem o compromisso individual como a condição necessária de um baptismo de adulto, quando vivido com conhecimento de causa. Os primeiros baptismos conferidos sobre a confissão de fé acontecem em Janeiro de 1525, em Zurique. Embora, desde o princípio do movimento, se encontre entre a maioria uma não-violência de princípio fundada numa leitura 233

erasmiana dos ensinamentos de Cristo, aqueles que doravante se chamam "rebaptizadores" estão associados ao movimento camponês e são considerados perigosos. Sob a direcção do antigo prior beneditino Michaél Sattler, o anabaptismo suíço - a partir de então fora-da-lei - estrutura-se e sobrevive graças aos princípios elaborados na "Confissão" de Schleitheim, em Fevereiro de 1527: baptismo dos crentes, disciplina exercida pela comunidade no seu seio, separação do mundo, recusa da violência e do juramento, escolha do pastor local. Ao mesmo tempo, nasce na Alemanha do Sul e na Áustria outra forma de anabaptismo mais "místico" que sobrevive de maneira estruturada no movimento "hutteriano" (Jacob Hutter) na Morávia. A partilha integral dos bens, segundo o modelo da primeira Igreja de Jerusalém, faz parte da eclesiologia não-violenta e separatista destes anabaptistas. Estimulada pelo pensamento de Melchior Hoffman, surge nos Países Baixos uma forma "milenarista" do anabaptismo. Esperando o regresso de Cristo, esta corrente consolida-se em 1534-1535 em Munster, na Vestefália. Este reinado aterroriza a Europa cristã no seu conjunto e, como o movimento camponês, termina no sangue e na violência. Na seqüência deste desastre e sob a direcção de Menno Simons, padre que se tornou anabaptista em 1536, o movimento anabaptista

Page 149: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

neerlandês e flamengo estrutura-se também em torno da não-violência evangélica e de uma Igreja não ligada ao Estado. Com o tempo, estes anabaptistas serão chamados "menonitas". Um segundo ramo de protestantismo radical é freqüentemente chamado "espiritualista". Reagindo às divisões e aos conflitos relativos às coisas "externas" ou "materiais", o espiritualismo realça o lado interior e espiritual da fé cristã. Estes homens não se satisfazem nem com o solafide de Lutero (o princípio segundo o qual apenas a fé é fonte de salvação) nem com o princípio católico do ex opere operato (que afirma que o sacramento é eficaz pela sua própria realização, independentemente de quem o dá e até de quem o recebe). Aos olhos destes, se o último conduzia à salvação pelas obras, o primeiro favorecia o laxismo moral. Teologicamente, estes homens fundamentam-se na "Escritura só", mas também são atraídos ou influenciados pela interiorização da fé presente num Erasmo ou pela mística medieval. Como o anabaptismo, também o espiritualismo conhece múltiplas expressões. As primeiras manifestam-se em torno de Lutero, em homens como Thomas Müntzer ou Andreas Carlstadt, que criticam as hesitações de Lutero e se identificam com o "povo". Embora Carlstadt não se comprometa directamente com o movimento camponês, Müntzer torna-se um dos seus chefes nas regiões mais directamente influenciadas por Lutero. Convencido de que Lutero estabelecia uma primeira elite de teólogos formados na Universidade, os únicos habilitados a interpretar correctamente a Escritura, Müntzer fala da presença do Cristo interior em todos os fiéis, dado assim um acesso directo a Deus aos camponeses que não sabem ler. 234

Apesar do espiritualismo de Müntzer acabar por encorajar a violência dos camponeses revoltados, também houve formas mais "pacíficas" desta tendência em homens como Hans Denck e Sebastian Franck. Do mesmo modo, o teólogo leigo silesiano Caspar Schwenckfeld, que se encontra em Estrasburgo no início dos anos 1530, propugna um cristianismo totalmente interior, pretendendo que o verdadeiro baptismo é o do Espírito, que a verdadeira eucaristia não precisa de elementos sensíveis e que a verdadeira Igreja de Jesus Cristo não precisa de estruturas visíveis. O seu movimento atrai pessoas instruídas e sobrevive em pequenos círculos dispersos no Sul da Alemanha. Não obstante, em princípio, os espiritualistas não formem grupo estruturado, é possível discernir traços comuns: recusa de uma monopolização dos meios da salvação pela instituição, sensibilidade à experiência individual e à interioridade da fé, recusa de uma teologia da predestinação. Em terceiro lugar, durante os anos 1550, emergem movimentos às vezes chamados "antitrinitários". O primeiro exemplo bem conhecido teria sido a corrente conduzida por Michel Servet (1511-1553), médico e teólogo espanhol que se interessa intensamente pelos debates teológicos de então. Notemos desde já que, até 1492, a teologia foi confrontada em Espanha com a presença de judeus e muçulmanos que, em comum, rejeitavam a doutrina trinitária. Quando Servet começa a estudar a Escritura mais profundamente, acaba por verificar que as categorias cristológicas de Niceia-Constantinopla não têm fundamento bíblico. Para Servet, a boa cristologia faz-se a partir do Jesus histórico e de uma interpretação rigorosa da Bíblia. Na Itália também existia uma corrente "heterodoxa" que recusava o conceito de Trindade. Depois da morte de Servet na fogueira em Genebra, alguns dos seus membros - Celio Secondo Curione, Camillo Renaro, Lelio Sozzini - refugiam-se na Europa central e oriental (Lituânia, Polónia, Morávia e Transilvânia). O seu primeiro terreno de acção foram as jovens Igrejas calvinistas, dentro das quais nasce uma ala antitrinitária que acaba por tornar-se "unitariana" e, em finais do século

Page 150: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

XVI, "sociniana". Algumas destas comunidades também partilham diversos traços teológicos e éticos das correntes anabaptistas. Apesar da sua diversidade, estas correntes dissidentes partem todas do mesmo ponto, nos grandes princípios da sola Scriptura e da solafide. Se bem que os movimentos reformadores oficiais não os reconheçam, os dissidentes são "protestantes" porque, embora não possamos evocar um movimento homogéneo - alguns historiadores falam de "Reforma radical" ou de "ala esquerda da Reforma" -, na verdade é possível reconhecer que há elementos comuns que atravessam mais ou menos este conjunto disperso: uma leitura bíblica liberta dos conceitos da teologia medieval, uma crítica da doutrina luterana da absolvição, a recusa da síntese institucional "constantiniana" e uma ética muitas vezes fundada na vida no seguimento de Cristo. Neal Blough 235

Calvino Eleição, vocação e trabalho

Ao nome de Calvino, já durante a sua vida e ainda mais depois, está associada a palavra "predestinação", oriunda de Agostinho, com a sua dupla face: eleição e condenação. A predestinação divina confirma, radicalizando-a, a doutrina da salvação "só pela graça", sem as obras nem os méritos do homem. Desde Max Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, 1905), predestinação calvinista e "espírito do capitalismo" formam um par improvável, subjugado por uma ética do sucesso profissional. De facto, a tese de Weber baseia-se nos escritos de pastores calvinistas ingleses do século XVII, que procurou distinguir da doutrina de João Calvino (1509-1564). Pode-se encontrar em Calvino a matriz temática que liga a teologia da predestinação e a ética económica? Nos textos em que Calvino trata da predestinação, a eleição está unida à "vocação", produtoras de obras; mas é nos outros textos que o tema da vocação, no sentido de "profissão", está unida a uma ética do trabalho.

Eleição e vocação

Apoiando-se nas Epístolas paulinas, Calvino articula eleição e vocação: a eleição é devolvida a cada um, intimamente, pela "vocação" (de vocare "apelar", "chamar"), o chamamento de Deus à conversão e à "santidade" ou, mais exactamente, à "santificação" ou "regeneração". Por uma ou duas vezes, na sua obra, Calvino evocou a sua própria "conversão súbita": é Deus quem faz passar o jovem estudante do mundo das "superstições" da Igreja tradicional, que ele era incapaz de deixar por si próprio ao "gosto e [ao] conhecimento da verdadeira piedade". Calvino sabe que a sua experiência - uma reviravolta descrita como uma iluminação simultaneamente intelectual e espiritual - não é um caso singular. Os seus contemporâneos, leitores de Lutero, Zuínglio e outros, descobrem como ele uma 236

Page 151: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

compreensão nova do homem diante de Deus, da fé e do Evangelho. Na sua Epístola ao Cardeal Sadolet (1539), Calvino apresenta assim uma dupla: "abri os ouvidos e tive de agüentar ser ensinado [pelos "novos pregadores"]. Portanto [...], estando eu veementemente consternado e perdido com a miséria em que caí [...], pensei que nada me seria mais necessário, depois de ter condenado com choros e gemidos a minha maneira de viver passada, do que me [...] retirar na tua [Senhor]". Para Calvino, esta libertação pela graça - ou "justificação pela fé" - não é um fim, mas um início. Retirado do "abismo de perdição", o crente (o eleito) começa a viver uma vida nova. Neste processo, é ainda Deus quem tem a iniciativa: "Regenerou-o e reformou-o numa vida nova." A "regeneração" concerne à "vida cristã" inteira: trata-se de "procurar e conhecer a vontade de Deus", resumida no "sumário da lei", o duplo.mandamento de piedade e de caridade; por outras palavras, "renunciar a nós mesmos", "carregar a cruz de Cristo", servir a Deus e ao próximo. As consciências libertadas do jugo da Lei e do cuidado das obras meritórias obedecem livremente à Lei, para dar glória a Deus. Se a fé não está "ociosa", mas trabalha e produz frutos, "boas obras", quererá dizer que as boas obras dos fiéis são sinais de eleição divina? Segundo Max Weber, para os puritanos, angustiados com a predestinação, as obras, frutos da "fé eficaz", a "conduta de vida do cristão que serve para aumentar a glória de Deus", objectivam a "certeza da salvação". Em contrapartida, para Calvino, as obras dos santos, sempre manchados de pecado, não podem ser sinais seguros de eleição. O único "testemunho de eleição" na consciência dos fiéis é a "vocação dos eleitos", a Palavra de graça ouvida, recebida e "selada nos nossos corações": "Ao tocar os homens concretamente para fazer com que vão para Ele, [Deus] declara a sua eleição que anteriormente estava secreta." Partindo daqui, "a consciência também pode fortificar-se pela consideração das obras", como "frutos da sua vocação", mas, então, trata-se de uma confirmação secundária. Ao elidirem o "testemunho interior do Espírito Santo", os puritanos ingleses puseram em primeiro lugar as obras para conquistar a certeza subjectiva da eleição, obras postas em sistema, o "trabalho sem descanso numa profissão" ou uma vocação.

O trabalho como vocação

Sobre o tema do trabalho como vocação, Calvino é devedor de Lutero: o trabalho é uma "vocação" de Deus, dada ao homem (Adão) antes da queda, para impedir a "ociosidade". Aqui, entende-se "vocação" no sentido do apóstolo Paulo (1 Cor 7,17-20), como a maneira de viver a que Deus chama cada um: "Quero que vivas assim ou assim", num estado (pai de família, servo...), num "ofício" (magistrado) ou numa profissão. As 237

profissões "úteis", em "proveito de todos", são "aprovadas por Deus", portanto, são vocações. A hierarquia tradicional dos géneros de vida é invertida. O estado monástico, a "vocação religiosa", já não é o "estado de perfeição cristã", o ideal de contemplação é qualificado como ociosidade egoísta. São as profissões dos leigos (ou o seu trabalho em geral) que são chamadas "vocações". Calvino identifica a dimensão própria da vocação com a "comunicação mútua entre os homens", a excelência das diferentes profissões na sua interactividade. Deste modo,

Page 152: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ele mostra-se mais aberto do que Lutero às realidades do mundo moderno, ao comércio e ao manuseamento do dinheiro em geral. "Portanto, quando se disputa sobre a mercadoria, dir-se-á que é uma vocação santa, que Deus aprova e que é útil, ou mesmo necessário, a todo o género humano; e, quando o homem se mistura com tudo isso, deve aplicar-se como se servisse a Deus [...]. Por conseguinte, os comerciantes devem servir a Deus no seu estado, sabendo que Ele os chama e que os quer conduzir com a sua palavra." Também se sabe que sobre os empréstimos com juros, o lucro do dinheiro, Calvino abriu uma brecha na posição tradicional dos teólogos, apoiados em Aristóteles, no Antigo Testamento e nos Padres da Igreja. Primeiro isola, em exegese, as objecções bíblicas; depois, em nome da equidade, refuta a idéia segundo a qual o juro seria contra a natureza, porque o dinheiro não pode produzir frutos por si mesmo. Levantando os obstáculos da tradição, o caminho fica aberto para o empréstimo a juros ou o crédito, desde que o dinheiro emprestado vá servir para produzir um ganho para quem pede emprestado (empréstimo de produção). "Não deixar o dinheiro ocioso" é uma das fórmulas de Calvino, encorajando um dos seus amigos, comerciante fixado em Estrasburgo, a emprestar para fazer negócios. Este dinamismo prolífico, socialmente útil, valorizado em oposição à "ociosidade" estática, não é a única consonância entre Calvino e os calvinistas ingleses descritos por Max Weber. No capítulo da sua Instituição da religião cristã (1541) consagrada à "vida cristã", Calvino estabelece regras de ética, de como "bem ordenar a sua vida", que podem prefigurar a ética puritana do trabalho profissional: a ascese no mundo ("usando o mundo como se não se usasse", 1 Cor 7,29-31); a idéia de um "depósito de que teremos, um dia, de prestar contas"; finalmente, o "serviço da nossa vocação", quer dizer, a consideração da vocação particular de cada um, como quadro dos seus actos, regula quem orienta e organiza as suas obras ao longo de toda a sua vida. Sobre os dois pares temáticos no centro do modelo weberiano da ética calvinista-capitalista - eleição e vocação, trabalho e vocação particular -, não faltam os pontos de contacto entre Calvino e os calvinistas do século XVII. Contudo, nos textos de Calvino não se lê este hino sem descanso que é próprio 238

dos puritanos e nem sequer se encontra neles vestígios do móbil que, segundo Weber, faz a ligação entre a teologia calvinista e o "espírito do capitalismo", a necessidade de conquistar pelas obras a certeza da eleição. Por isso, não surpreende que Weber não tenha conseguido encaixar o reformador de Genebra na sua demonstração. Marianne Carbonnier-Burkard 239

A via média anglicana Uma lenta construção

Mesmo que esteja ligada a factores sociais, económicos e, evidentemente, religiosos, a origem da Reforma anglicana é, em primeiro lugar, dinástica. O rei Henrique VIII julga indispensável consolidar a jovem dinastia dos Tudor, assegurando uma sucessão masculina. Tendo unicamente uma filha do seu casamento com Catarina de Aragão, não conseguiu obter do papa a declaração de nulidade desta união. Por isso, Henrique decidiu, em 1534, ao cabo de um longo inquérito sobre um caso difícil de direito matrimonial, repatriar a sua "grande questão", como então se dizia, para a Igreja de Inglaterra de que ele se tornava, depois de

Page 153: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Cristo, o chefe supremo. No entanto, a coroa inglesa tinha-se mostrado das mais zelosas na defesa da fé romana, contestada por Lutero e pelos seus partidários. Duas figuras ilustram-no bem: John Fisher, bispo de Rochester, e, sobretudo, um leigo, Thomas More, autor de Utopia (1516) e "gémeo" de Erasmo, cujo ideal de humanismo cristão partilhava. O próprio Henrique VIII, que se presumia teólogo, assinou uma obra para refutar Lutero, ocasião para o papa Leão X lhe conceder o título havia muito solicitado de "Defensor da fé".

A "reforma henriquina" (1534-1547)

O "divórcio" do rei, que tornava possível o seu casamento com Ana Bolena, de quem era amante, provocou simultaneamente a separação de Roma e a aproximação daqueles que, desde os anos 1520, essencialmente em Cambridge, professavam as idéias luteranas. Os advogados de uma Reforma protestante, cujos fundamentos haviam sido estabelecidos por Wyclif no século xiv, foram William Tyndale, que traduziu a Bíblia para inglês, Hugh Latimer e, sobretudo, Thomas Cranmer, padre sábio e político dócil, casado secretamente em 1532 com uma sobrinha do reformador alemão Osiander. 240

Nomeado arcebispo de Cantuária por Henrique VIII, Cranmer tornou-se o artífice mais eficaz da difusão das idéias protestantes em Inglaterra. Em 1534, o Parlamento aprovou o Acto de Supremacia relativo à Igreja anglicana. No início do Verão de 1535, o rei mandou executar John Fisher e, depois, Thomas More, que fora seu chanceler de 1529 a 1532, porque não tinham querido prestar o juramento exigido pelo rei. Thomas Cromwell foi encarregado de gerir as mudanças e fez uma política sistemática de propaganda a favor das idéias novas. Entretanto, houve operações de supressão dos mosteiros, entre 1536 e 1539, com a transferência das suas propriedades para a coroa e para beneficiários privados que ligaram duradouramente a "reforma henriquina" a uma classe que tinha tudo a ganhar com a manutenção do novo estado de coisas. Houve, porém, um movimento de resistência com uma amplitude que se tem subestimado. Os mentores da "Peregrinação de Graça", que abrangeu sobretudo o Yorkshire e o Norte da Inglaterra (1536-1537), foram executados. Artífice de uma aproximação dos príncipes protestantes, de que - depois da execução de Ana Bolena e da morte de Jane Seymour - o quarto casamento do rei com Ana de Clèves devia ser o símbolo, mas que se mostrou desastroso, Cromwell foi acusado de traição e condenado à morte em 1540. Um ano antes, por um movimento de pêndulo que caracteriza todo este período, o soberano tinha imposto os Seis Artigos, de tonalidade menos protestante, para substituir os Dez Artigos de 1536. Com este "nacional-catolicismo", Henrique VIII parecia já procurar uma "via média" que o anglicanismo vai depois reivindicar. Tirânica, mas hábil, esta política podia contentar simultaneamente aqueles que, aceitando ou desejando a separação de Roma e uma reforma na Igreja, se mantinham nas suas crenças tradicionais e aqueles que, de convicção protestante, ainda podiam esperar a chegada de uma revolução religiosa. Doravante, já com um herdeiro dado por Jane Seymour (em 1537), Henrique VIII, ao preparar a sua sucessão, promoveu, na organização do Conselho de regência, a família desta esposa a família da esposa bem-amada

Page 154: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

que tinha morrido pouco depois do parto. De facto, era programar o triunfo das doutrinas calvinistas depois da sua morte, em 1547.

O reinado de Eduardo VI e os anos protestantes (1547-1553)

Um quadro alegórico que se encontra na National Portrait Gallery de Londres descreve com uma bela economia de meios o que pretendia ser a corte de Eduardo VI (1547-1553), chegado ao trono com dez anos de idade e freqüentemente comparado a Josias, o menino-rei que, no Antigo Testamento, é o restaurador da Lei em Israel. À esquerda do quadro, o rei Henrique VIII, deitado na sua cama de doente, aponta o seu jovem filho Eduardo que está ao centro, sentado num trono por baixo do qual jaz o papa, 241

derrubado por uma grande Bíblia aberta. Perto dele, lêem-se as palavras "idolatria" e "santidade fingida". Dois monges, reconhecíveis pela sua tonsura, fogem. À direita, vêem-se oito personagens de aspecto grave, das quais uma é bispo, sem dúvida Cranmer. Por cima delas, num quadro dentro do quadro, homens derrubam uma estátua da Virgem. A influência de Calvino é conhecida pelas suas cartas dirigidas ao próprio Eduardo VI. Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo que tinha encontrado refúgio em Cambridge, é o inspirador do ritual de ordenação dos padres. Mas o mestre-de-obras da reforma litúrgica em língua inglesa foi Thomas Cranmer, bom conhecedor não só da tradição, mas também criador. Pessoalmente próximo de uma concepção simbólica da eucaristia, foi o autor principal do Livro de Oração Comum (Prayer Book) em 1549, depois de um Segundo Livro, de tendência mais explicitamente protestante, em 1552, assim como dos Quarenta e Dois Artigos de fé de 1553. Pouco antes, uma campanha iconoclasta destruía os altares de pedra, substituídos por mesas. Depois da queda do duque de Somerset, em 1550, o poder foi tomado por John Dudley, que conseguiu persuadir Eduardo VI a excluir da sua sucessão Maria, filha de Catarina de Aragão, que se tinha mantido fiel à fé católica. Por morte de seu irmão, em Julho de 1553, Maria, apoiada pelos partidários do antigo regime, conseguiu impor-se. Chegada ao trono, restabeleceu os laços quebrados da Inglaterra com a Igreja Católica, depois de vinte anos de cisma.

Maria Tudor e os anos romanos (1553-1558)

Até então, Maria tinha vivido na recordação de sua mãe, que tinha sido humilhada. Ficou próxima dos Habsburgo da Alemanha e de Espanha, que lhe pareciam o melhor apoio do catolicismo na Europa. A política de Maria contra os partidários do protestantismo só se endureceu verdadeiramente depois das revoltas que se ergueram no Sul da Inglaterra. Então, foram executados Cranmer e Latimer, que não tinham ido para o exílio como muitos outros.

Page 155: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Maria apoiou-se em Reginald Polé, ligado por sua mãe à família real e, por isso, banido por Henrique VIII. Legado do papa, arcebispo de Cantuária, Polé reconciliou solenemente a Inglaterra com Roma (1556). Este teólogo humanista, que tinha participado no Concílio de Trento, empreendeu de maneira espantosamente rápida uma reforma católica, antecipando, por exemplo, a criação dos seminários dos padres. No entanto, a perseguição dos hereges alimentou um sentimento anticatólico e contribuiu para um crescendo de impopularidade da rainha. Mas a opinião rejeitou sobretudo o casamento de Maria com aquele que se tornou o rei de Espanha com o nome de Filipe II, embora, diplomaticamente esta 242

escolha pudesse perfeitamente ser defendida. Contudo, foram a morte da rainha em Novembro de 1558, sem descendência, apesar do seu desejo desesperado de a ter, e, algumas horas depois, a de Reginald Polé, que determinaram uma nova reviravolta religiosa, com a chegada de Isabel.

Isabel e o primado do político (1558-1603)

Uma das raras coisas que o historiador pode afirmar acerca das convicções de Isabel, filha de Henrique VIII e de Ana Bolena, é a admiração que ela dedicou durante toda a sua vida ao seu pai e a sua vontade de imitá-lo. É a ela que se deve o estabelecimento de uma via media entre um protestantismo radical e o catolicismo romano. Desde o início do seu reinado, o restabelecimento, com poucas modificações, do Livro de Oração Comum de 1552 mostrou que a orientação protestante retomava o seu lugar no equilíbrio religioso e político de Inglaterra, ao longo de um dos maiores reinados da sua história. Em Janeiro de 1559, o Parlamento votou um novo Acto de Supremacia, suprimindo a jurisdição pontifícia mas substituindo o título de chefe supremo da Igreja Anglicana pelo de, menos ofensivo, governador, o que não impediu que Pio V excomungasse a rainha. Os Trinta e Nove Artigos, redigidos em 1563 e adoptados em 1571, apresentaram a doutrina mais como uma série de posições sobre as controvérsias teológicas do momento do que como um credo. Os artigos sobre a predestinação, tão caros dos protestantes, ou sobre a eucaristia, que preocupavam os católicos, estavam redigidos de maneira a ser diversamente interpretados. Este compromisso religioso foi defendido pelo teólogo Richard Hooker. Contra os puritanos, ele justifica a estrutura episcopal cuja continuidade apostólica a rainha quis estabelecer com a ordenação de Matthew Parker, em 1559, como arcebispo de Cantuária. Hooker queria sobretudo mostrar a necessidade de harmonizar o direito positivo simultaneamente com a lei natural e com as prescrições da Bíblia. O governo da Igreja tinha de adaptar-se às circunstâncias e a reforma anglicana podia ser justificada sem a separar da instituição medieval. Apoiada, num regime estável, por uma liturgia servida pelos maiores músicos do tempo, como Tallys ou Byrd, esta síntese permite que o anglicanismo se implante duradouramente, aliás, com um endurecimento anticatólico e uma exigência de maior conformidade nos finais do reinado. Este protestantismo moderado viria a ser ameaçado por crises políticas e religiosas do século seguinte. Guy Bedouelle 243

Page 156: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

II

RIVALIDADES E COMBATES

Inácio de Loiola e a aventura jesuíta

Aos quinze anos, Inigo López de Onaz y Loyola (1491-1556) é enviado para o castelo de Arévalo, de Juan Velázquez de Cuéllar, um parente seu, superintendente das finanças do reino de Castela e membro do Conselho real. Depois de ter passado dez anos na administração junto deste funcionário, torna-se diplomata ao serviço de Manrique de Laras, duque de Nájera e vice-rei de Navarra, outro parente. Em 1521, é ferido durante o cerco de Pamplona. Reconduzido a Loiola, converte-se. Vai a Monserrate, um foco da Devotio moderna, depois a Manresa, onde a sua vida assume um cariz místico, e finalmente a Jerusalém, em busca de Cristo. No seu regresso, desejando "ajudar as almas", estuda em Barcelona, Alcalá e Salamanca. Mas alguns excessos fazem com que seja considerado um alumbrado (iluminado herético) e teve de justificar-se perante a Inquisição. Em 1528, em Paris, adquire rapidamente no colégio de Montaigu o nível requerido em latim, gramática e retórica para se inscrever na faculdade das artes. Depois, entra em Sainte Barbare, um colégio inovador, onde se cruza com Calvino. Forma-se como mestre em artes em Março de 1534. No dia 15 de Agosto seguinte, em Montmartre, com seis amigos que fizeram os Exercícios Espirituais, compromete-se a viver o Evangelho na castidade e na pobreza, a ir a Jerusalém ou, se isso for impossível, a pedir ao papa que o envie aos infiéis. Pouco depois, aquando da questão dos Placards e da repressão real, os companheiros trabalham na reconciliação dos luteranos, estudando teologia nos dominicanos e nos franciscanos, e também no colégio de Navarra e na Sorbona. Interessam-se, então, pelas Escrituras e pelos Padres da Igreja, e alguns deles, apaixonados pelo grego, vão ouvir os leitores reais. Em 1537, estão todos em Veneza para aí esperar um barco para Jerusalém. Então, os que não eram padres foram ordenados. Não chegando 244

a embarcar, os companheiros dirigem-se ao papa, que os envia em missão na Itália: uns dirigem os Exercícios (propõem aos fiéis retiros à maneira de Inácio de Loiola), outros pregam ou ensinam as Escrituras, mas todos se dedicam às obras de misericórdia. Em 1539, depois de uma longa deliberação, escolhem tornar-se religiosos. A originalidade do seu propósito é apresentar-se como um corpo internacional bem estruturado, unido por uma profunda amizade e uma forte espiritualidade, a dos Exercícios, de maneira a poderem dispersar-se a pedido do papa ou dos seus superiores. A marca dos Exercícios Espirituais, editados em 1548, é tal que, em breve, este método de acesso à vida espiritual torna-se uma das características do catolicismo moderno. Para Inácio e seus companheiros, trata-se de um itinerário que se segue à luz do Evangelho, sendo guiado discretamente por uma pessoa que já os praticou. Ao

Page 157: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fazer os Exercícios, cada um também é convidado, em toda a liberdade, a unir-se a Deus e a encontrar a sua própria vocação, tanto na sociedade como na Igreja. Os jesuítas são aprovados em 1540 por Paulo III. Em 1546, decidem abrir colégios e dar ao seu apostolado uma visão quádrupla: o ensino universitário, o acompanhamento espiritual, as pregações missionárias e as obras de misericórdia. Em França, a entrada dos jesuítas é difícil. Censuram-lhes a novidade do seu instituto, o seu ultramontanismo (ou a sua vassalagem exclusiva ao papa) e o seu carácter internacional. Apesar do apoio de bastantes cardeais, o seu desejo de fundar colégios é mal recebido. Considera-se suficiente a presença dos mendicantes nas universidades e julga-se exorbitante o seu desejo de ensinar as artes e as letras. Em 1561, obtêm um estatuto legal, mas serão necessários vinte anos para realmente se implantarem. Em 1582, já são trezentos, repartidos por três províncias. As suas fundações, só decididas pelo superior geral, são motivadas pelo desejo de realizar o "bem mais universal" com um máximo de eficácia. Nesta estratégia, a luta contra as heresias está longe de ser o único objectivo e várias razões levam os jesuítas para as universidades: o seu desejo humanista de unir fortemente a cultura e a religião, e também a sua vontade de estarem presentes nos locais de onde propagam as reformas. Mas têm ainda outros motivos, como o de recrutar estudantes brilhantes. Em 1594, o parlamento de Paris, sempre hostil, usa o atentado contra Henrique III para expulsar os jesuítas do seu domínio, sem, contudo, conseguir que os parlamentos de Toulouse e de Bordéus se decidam a segui-lo. Em 1603, Henrique IV restabelece a Companhia e institui-se seu protector. Luís XIII e Luís XIV seguiram a mesma política: em 1616, a assistência de França conta já cinco províncias. Daí em diante, a Companhia nunca mais terá modificações substanciais. Em 1762, os jesuítas são 3049, repartidos por 161 casas, das quais 91 são colégios e 20 seminários onde residem não apenas os regentes e os professores, os escritores e os sábios, mas igualmente os pregadores e os missionários. 245

Durante o primeiro terço do século XVII, os jesuítas franceses atingem o estádio místico atingido pelos seus companheiros espanhóis e italianos. A espiritualidade inaciana conhece, então, grandes desenvolvimentos não somente na ordem, na Bretanha, na região de Bordéus e nas missões, mas também no exterior, nas congregações marianas e nas associações de amigos, ligadas às residências e aos colégios. Os teólogos jesuítas sublinham os debates importantes sobre a Escritura e os Padres da Igreja, mas alguns deles também entram nas discussões sobre a graça e a liberdade deixadas pendentes pelo Concílio de Trento. Formados pelos Exercícios, não podem admitir que os homens não tenham parte na sua salvação. Estas posições causar-lhes-ão aborrecimentos com os dominicanos, os agostinianos e, mais precisamente, com Pascal e Port-Royal. Os sábios jesuítas dão prova de menos audácia, quando, com Tycho Brahe, tentam um compromisso entre Ptolomeu e Copérnico. Os jesuítas franceses estão na América do Norte, nos países do Levante e no Extremo Oriente. Muitas vezes, a partir destas missões longínquas, mantêm correspondência com os sábios de Paris, Londres ou Moscovo. Mas, em 1685, quando uma dezena deles embarca para o Sião e para a China a pedido do rei Luís XIV, a sua situação torna-se difícil em França, porque o rei suporta mal a sua submissão ao papa. Logo que esta questão é regulada pelo padre de La Chaise, o confessor real, outra se declara. No momento em que esta rebenta, em 1730, a Companhia não se apercebe da sua fragilidade. Os seus colégios estão pouco adaptados ao momento em que o Estado-nação se esforça por assumir o controlo do ensino. O seu funcionamento

Page 158: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

financeiro também se fragiliza. O fim do sistema beneficiário marca o início das dificuldades da Companhia O fracasso de La Valette, na Martinica, é um exemplo das suas inadaptações. O princípio da "solidariedade" financeira justifica o assalto aos jesuítas. Ora, embora os magistrados saibam que, em direito, cada casa é autónoma e não pode ser proprietária, também sabem que, nos factos, esta estrutura jurídica não é aplicada. A inabilidade dos jesuítas foi não só dirigirem-se ao parlamento, mas sobretudo não se aterem aos factos. Então, ressoa uma palavra de ordem: "É preciso destruir os jesuítas!" Editam-se os Extractos das Asserções Perigosas, uma verdadeira "máquina de guerra", mas, mais subtilmente, alguns querem transferir para o interior do Estado o que tinha oposto jesuítas e jansenistas na Igreja. Ao contrário de Pascal, Le Paige, o jansenista que conduz a questão, não está contra o laxismo nem contra o regicídio; quer denunciar o próprio princípio das Constituições da Companhia: o seu despotismo. Depois de ter hesitado, o parlamento de Paris redige, em 1762, um projecto de édito que denuncia a Companhia como o próprio exemplo do despotismo na Igreja e no Estado. O seu desejo nada tem a ver com os jesuítas, mas com o governo de quem são eles reféns. Todos os parlamentos e todas as cortes soberanas adoptam 246

o mesmo procedimento e, em 1764, a Companhia já não tem existência legal em França, apesar dos protestos de Clemente XIII e dos bispos. Por fim, pressionado pelos Bourbon, Clemente XIV suprime a ordem em 1773. Mas, tendo a czarina recusado este acto, a Companhia subsiste na Rússia, onde é reconhecida por Pio VI em 1801, antes de o ser universalmente por Pio VII, em 1814. Então, pouco a pouco, clandestinamente ou não, a Companhia regressa às suas terras de origem. Philippe Lécrivain 247

As Inquisições na época moderna

A Inquisição não é uma criação da época moderna, mas conhece modificações profundas no decurso dos séculos XV e XVI: em declínio em França, onde os tribunais reais se arrogam as suas competências, ela aparece na Península Ibérica e reorganiza-se na Itália. Como tal, ela é, portanto, comparável a outros organismos de controlo social que então se desenvolvem nos outros contextos: assim, o consistório calvinista exerce um controlo minucioso dos costumes e sanciona duramente os contraventores. Mas as Inquisições conservam a sua especialidade: como justiça eclesiástica e tribunal das consciências, definem os crimes que conhecem; apoiam-se no braço secular e, no caso ibérico, dependem estreitamente dele, mas também conservam uma autonomia que faz delas verdadeiros poderes locais. Outra característica da Inquisição moderna é a sua adaptação ao quadro político e nacional que justifica a utilização do plural. A Inquisição espanhola é a primeira destas Inquisições modernas. Em 1478, os Reis católicos Isabel e Fernando obtêm do papa a nomeação de juizes eclesiásticos encarregados, antes de tudo, de vigiar os cristãos novos ou conversos, aqueles judeus convertidos ao cristianismo, por vezes há várias gerações, e suspeitos de conservar em segredo a sua antiga fé. Muito rapidamente, esta nova instância estrutura-se, com um inquisidor-geral, ou conselho central, a Suprema, e tribunais regionais. Ao período de terror que marca os primeiros

Page 159: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

decénios, em que vários milhares de judaizantes ou suspeitos como tais são perseguidos, sucede uma fase de consolidação, durante a qual a Santa Sé alargou a sua acção aos delitos que concernem também os cristãos velhos (aqueles de quem não se pode afirmar que tenham uma origem judia ou muçulmana), como a blasfémia, as práticas supersticiosas e os comportamentos sexuais. O poder da Inquisição em Espanha manifesta-se de maneira estrondosa em 1559, quando o arcebispo de Toledo, Bartolomé Carranza, foi preso por suspeita de heresia. Entretanto, 248

a monarquia mantém sob controlo apertado esta instituição, a única que escapa ao parcelamento jurídico dos vários reinos que a compõem. Em Portugal, a Inquisição implantada em 1547 é da mesma natureza que na Espanha. As Inquisições ibéricas estendem a sua jurisdição às terras ultramarinas conquistadas. No México, em Lima ou em Goa, os inquisidores querem perseguir a imigração de cristãos europeus suspeitos, judai-zantes ou simpatizantes da Reforma, e sancionar todas as formas de mestiçagens religiosas produzidas pela experiência colonial. A Inquisição romana tem outra origem e não está ligada de maneira tão estreita a um Estado. O medo da difusão da Reforma em Itália leva o papa Paulo III a criar em 1542 uma congregação de cardeais com âmbito suficiente para inquirir em matéria de heresia. Esta nova congregação, cujo império se estende teoricamente sobre o conjunto do mundo católico, exceptuando as terras submetidas às Inquisições ibéricas, só exerce de facto a sua jurisdição na Itália, onde os tribunais inquisitoriais já existentes lhe estão sujeitos. Mas a sua existência modifica consideravelmente os equilíbrios de poder no seio da cúria romana. Bastião dos intransigentes, o Santo Ofício pode impedir a eleição ao pontificado de cardeais suspeitos de simpatias pela Reforma como, em 1549, o cardeal inglês Reginald Polé, ou, ao contrário, promover candidatos saídos das suas fileiras: a maior parte dos papas da segunda metade do século XVI são antigos inquisidores. Localmente, os tribunais inquisitoriais desmantelam grupos dissidentes que, em alguns decénios, sucumbem aos seus golpes. Então, a Inquisição romana alarga o seu campo de acção a outros delitos religiosos e interessa-se, como no caso ibérico, por comportamentos heterodoxos que nada têm a ver com o protestantismo. Doravante, ela exerce um controlo intelectual global, nomeadamente sobre a produção e a difusão de livros impressos. Esta vontade de impor a ortodoxia católica a todos os sectores do saber acaba naturalmente numa confrontação com as inovações da revolução científica que se iniciou no século XVI, apesar do apoio de uma parte da Igreja romana aos sábios mais ilustres. O processo feito a Galileu e a sentença lida em 1633 ilustram de modo notável a ruptura entre a ciência e a teologia provocada pela instituição inquisitorial e a sua visão intransigente das relações entre a fé e o saber. Quando se fala de Inquisição, é necessário evitar uma reabilitação que seria perfeitamente chocante e, ao mesmo tempo, uma lenda negra que mascara uma realidade já terrível. A instituição inquisitorial suscita desde a época moderna uma viva repulsa no próprio seio do mundo católico e, de Nápoles aos Países Baixos, a perspectiva da introdução da Inquisição desencadeou verdadeiras revoltas. No entanto, as censuras feitas à Inquisição pelos seus contemporâneos não são as que um espírito do início do século XXI poderia esperar. Por exemplo, a prática da tortura não figura entre as primeiras objecções feitas às Inquisições modernas. É verdade que elas praticavam-na com muito mais moderação e regras do que os tribunais laicos da época. Depois dos seus primeiros decénios de existência, em que 249

Page 160: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fizeram numerosas vítimas (sem dúvida milhares em Espanha, centenas na Itália), as jurisdições inquisitoriais só raramente condenaram à morte. Perante as denúncias odiosas e interessadas, também souberam instaurar um procedimento bastante exigente de verificações das testemunhas, de audição dos acusados, que tinham acesso a uma parte do seu dossiê para poderem defender-se. Isso evitou, nos países submetidos à Inquisição, a loucura dos linchamentos de feiticeiros e de bruxas que assolou a Europa do Norte entre, mais ou menos, 1550 e 1650. A Inquisição foi sempre muito circunspecta perante os delitos da feitiçaria e nunca manifestou a ferocidade de que era capaz noutras circunstâncias. Foi das primeiras jurisdições do mundo católico que duvidou da realidade do sabat ou do pacto com o diabo. A Europa da primeira modernidade achou a prática inquisitorial particularmente terrífica por razões diferentes dos aspectos tantas vezes apresentados, às vezes de maneira fantasiosa, pela polémica anticatólica do Século das Luzes e da época contemporânea. O segredo do processo, em que o acusado não conhece o delito nem o nome de quem o denunciou, em que ele próprio tem de prometer que nada dirá acerca do desenrolar do processo, seja qual for a conclusão, suscita uma profunda angústia entre os réus da Inquisição. A infâmia social ligada a uma condenação do Santo Ofício é mais dolorosa que a duração da pena: postas em cena aquando dos autos-de-fé, em que os condenados deviam abjurar publicamente, mesmo que depois só fossem sujeitos a penas leves, as sentenças da Inquisição marcavam com a ignomínia as suas vítimas e a sua descendência. Finalmente, no plano intelectual, as Inquisições não abafaram toda a criação nos países que lhes estavam submetidos, mas favoreceram o surgimento de uma forma de conformismo religioso e de autocensura que, para certos historiadores, contribuiu para o declínio da Espanha, de Portugal e da Itália nos séculos XVII e XVIII. Entretanto, a avaliação global das Inquisições na época moderna e do seu impacte permanece um desafio, em razão da mole de documentos deixada por estas instituições minuciosas e do prisma deformador das experiências totalitárias do século XX, de que dificilmente o historiador se desliga para analisar sem anacronismos esta polícia das consciências. Alain Tallon 250

Liturgias novas ou liturgias de sempre?

Reduzem-se demasiado as reformas à fé e à Bíblia, como se o cristianismo fosse tão-só o comentário jamais acabado. Ora, o cristianismo moderno também desenvolve práticas corporais e sociais que exprimem a fé na e pela liturgia, e que estabelecem uma relação com Deus e com Cristo não menos essencial que a da Escritura; é, aliás, o aviso de Lutero, primeiro bastante conservador em matéria litúrgica, contra Carlstadt e contra Zuínglio que, ao contrário, afastavam os seus fiéis de uma concepção puramente sacramental (mágica, para eles) da liturgia, para desenvolver os seus aspectos simbólicos. Em 1523, Lutero adoptava uma fórmula depurada e em alemão do ritual do baptismo. No entanto, a sua missa alemã só apareceu em 1526. Os cânticos evangélicos (ele próprio compôs vários), editados desde 1524, na primeira colectânea de cânticos, constituíam, pelo contrário, um verdadeiro comentário da sua teologia. Muito rapidamente, os gestos e as palavras da liturgia implicaram escolhas

Page 161: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

antropológicas importantes. Na verdade, a força da idéia do sacerdócio universal e, sobretudo, a questão sobre a pertinência do latim, cujas raízes pagãs alguns humanistas então redescobriram, fazem explodir os fundamentos da liturgia medieval, que são a missa e o ofício das horas. Este novo questionamento de gestos e palavras da liturgia fez mais pelo surgimento da violência interconfessional do que todos os comentários teológicos... O que seriam hoje a reforma luterana ou a calvinista sem os salmos e cânticos em alemão ou em francês, a reforma anglicana sem o Livro de Oração Comum e a reforma tridentina sem a missa "romana"? Para explorar estes espaços, observemos alguns lugares de batalha confessional antes de vermos como se fixam as opções feitas no século XVI. No terreno escaldante dos gestos, é preciso desde já pôr de lado as práticas eucarísticas, porque é "aí que tudo se realiza ou tudo se destrói", como já dizia Pierre Chaunu. A violência da polémica sobre a missa, contra 251

a "malcheirosa missa" papista, faz parte da explosão reformada. É o sinal de que o rito é muitíssimo mais do que uma refeição partilhada: institui uma comunhão dos participantes entre si e com Cristo triunfante. Portanto, é preciso haver aqui uma interpretação da fraternidade realizada em volta da figura de Cristo, eternamente presente no meio dos seus. É por isso que as posições sobre a presença eucarística são tão importantes; é por isso que as palavras técnicas de consubstanciação ou de transubstanciação, de presença real, corporal, espiritual, memorial, provocam tantas paixões. Esqueceu-se demasiado depressa quanto os insultos escatológicos, as provocações contra o "Deus de massa", as acusações de antropofagia a propósito do banquete eucarístico e das suas conseqüências construíram uma atmosfera de suspeição e de enquistamento entre os cristãos. Pensa-se sempre na contraposição polémica aguda entre católicos e protestantes, mas os debates sobre a Ceia também pesaram muitíssimo nos debates entre reformados: desde muito cedo, zuinglianos e luteranos, calvinistas e anabaptistas estabeleceram fronteiras identificativas que retomam discussões sempre renascentes sobre o sentido da memória da última ceia de Cristo. Enquanto os protestantes desprezam a multiplicação das missas e dos sinais de adoração eucarística, os católicos, pelo contrário, desenvolvem a devoção ao SS. Sacramento, saída do coração da Idade Média, mas muito em voga no fim do século XV nos meios mais fervorosos. Continuam a apresentá-lo em cerimónias cada vez mais visíveis (e, em breve, também agressivas contra os "hereges" forçados a terem de se sujeitar a elas, quando for o caso). Desenvolveram uma participação no sacrifício de Cristo, muito mais pela visão (no momento da elevação da hóstia durante a missa) do que pela consumpção da eucaristia, apoiando-se nas práticas seculares e, portanto, veneráveis; em meados do século XVI, a comunhão freqüente ainda só era prática de alguns grupos devotos em formação, como os jesuítas. Também não nos podemos esquecer do apego dos cristãos a certas orações saídas da liturgia das horas: quem poderá avaliar a função tranqüilizadora exercida pela Ave-Maria em latim ou pelo Pai-Nosso em francês, pelas antífonas do Livro de Oração Comum tornadas sentenças morais?... A violência católica da primeira guerra de religião em França tem tanto a ver com a prática ostentatória do canto dos salmos ao ar livre e nas ruas como a iconoclastia dos perseguidores. Os saltérios luterano ou huguenote e os cânticos anabaptistas ainda hoje são sinais identificativos fortes que ligam cada tradição confessional à sua origem e aos tempos bíblicos. Mas é do lado da língua litúrgica que o corte é mais nítido. Enquanto algumas línguas vernáculas se emancipavam na administração e ganhavam estatura literária, enquanto a Escritura era traduzida havia várias

Page 162: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

gerações, as Igrejas protestantes optaram, logo à partida e com sucesso imediato, por abandonar o latim. Sentindo o perigo para o enraízamento na tradição, uma parte dos humanistas pôs-se a defender com a crítica e a história as traduções 252

latinas dos salmos (como o discípulo de Jacques Lefèvre d'Étaples, Josse Clichtove). Do lado católico, há muito que parecia impossível abandonar o latim, língua das coisas sagradas havia bem mais de um milénio. Todavia, outra parte dos humanistas, que escolheu permanecer no catolicismo não obstante os mitos, continuou persuadida de que a tradução era indispensável para defender o princípio de interiorização da fraternidade com Cristo. Foi assim que muitos clérigos dos círculos de Margarida de Navarra, Lefèvre d'Étaples, Gérard Roussel e Claude d'Espence, por exemplo, defenderam a liturgia em língua vernácula até cerca de 1535 e trabalharam a língua francesa para a levar a uma melhor expressão da experiência espiritual. As traduções/interpretações de Clément Marot que edificam o saltério huguenote também nasceram deste esforço. Mas ainda nem tudo estava decidido; no Concílio de Trento ainda se discutia sobre a oportunidade da passagem para a língua vulgar, para se acabar por recusá-la por causa do seu papel já claramente identificativo dos protestantes. Então, o concílio decide rever e simplificar o latim dos livros litúrgicos: Pio V edita o Breviário (1568), depois, o Missal (1570), saídos destes trabalhos, e Paulo V produz o Ritual Romano em 1614. O católico orará em latim, enquanto o protestante fará oração em língua vulgar, até que o recuo das humanidades, provocando um empobrecimento da liturgia católica, voltará a pôr a questão com outros fundamentos no século XX. As opções do século XVI ainda têm conseqüências importantes a longo prazo. A liturgia católica mantém o seu carácter universalista e, até, supranacional, muito útil quando a celebração impuser diversas línguas. No entanto, periodicamente, por exemplo em França, com o jansenismo, voltar-se-á a pôr a questão do uso litúrgico da língua vulgar. Porque embora a utilização exclusiva do latim fortaleça o sentido do sagrado, entra em contradição com a exigência de saber e de apropriação pessoais que, doravante, é condição de acesso à primeira comunhão. As orações usuais ou a missa ainda podem ser assimiladas em latim, mas não acontece o mesmo com a compreensão da Escritura e, portanto, da capacidade de responder sobre a sua fé num mundo pluralista. Em contrapartida, a insistência católica na missa leva a maior parte das Igrejas da Reforma, com a notável excepção dos anglicanos, a insistir mais na leitura da Bíblia e da pregação do que no ritual da Ceia, cuja prática está, em geral, reservada às quatro grandes festas de devoção comuns a todos os fiéis da primeira metade do século XVI e que, às vezes, como entre os anabaptistas, tem a forma de uma simples refeição comemorativa. As palavras dos rituais que constróem e exprimem a ligação com o invisível continuam a ser diversas, como acontecia nas primeiras gerações cristãs, mas as escolhas do século XVI acentuam as diferenças que desenham identidades assumidas até aos nossos dias. Uma mesma fé cristã 253

na Encarnação está contida em rituais cujo sentido se tornou cada vez mais opaco entre primos de uma mesma tribo, mas que, de algum modo, marca a fé num homem-Deus eternamente vencedor, com os seus fiéis, sobre a morte e o mal. No fundo, a comunidade escatológica realizada em toda a liturgia zomba das eventuais mudanças, desde que encontre

Page 163: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

uma maneira de exprimir melhor a sua experiência consensual (fraterna, pelo menos) e o seu enraízamento num outro mundo. Nicole Lemaitre 254

Mística do coração, do fogo e da montanha

"Ciência não de estudo mas de oração, não de discurso mas de prática, não de contenção mas de humildade, não de especulação mas de amor" (Bérulle), a mística cristã, verdadeira "ciência dos santos" que não se ensina nas escolas, conhece o seu apogeu literário na época moderna. Ela designa a experiência directa de uma fruição de Deus que se deixa saborear, embora conserve o seu segredo. Originariamente, em actividades de escrita muito diversificadas, os místicos espanhóis, italianos, franceses... utilizaram todos os recursos da linguagem para traduzir o indizível de experiências que lhes sacudiram o corpo e a alma. À procura de uma união com o Absolutamente-Outro, sabem que é para já inacessível, ao mesmo tempo que a desejam e, às vezes, saboreiam as suas primícias. Servindo-se das metáforas do tacto, do paladar e, depois, dos outros sentidos, as suas palavras não cessam de cantar esta alegria dolorosa de um desejo ardente jamais satisfeito. Num caminhar constante, o místico apraz-se a relatar o itinerário de que se serve, com as suas descobertas felizes e as suas desilusões frustrantes, para guiar os outros pelas vias difíceis da sua própria experiência. Por vezes suspeitos de heresia por se terem afastado mais ou menos da mediação sacramental da Igreja, sentem-se freqüentemente espartilhados numa religião feita de observâncias e de práticas, constrangedoras ou estéreis a seus olhos. No entanto, alguns deles tiveram a boa sorte de convencer as autoridades acerca da sua ortodoxia e até de serem elevados à categoria dos santos. A sua criatividade poética leva-os a recorrer aos símbolos da tradição bíblica transmitidos pelos seus predecessores. Sempre revestidos de significados novos, estes elementos permitem que os místicos exprimam melhor o inexprimível e ofereçam aos simples devotos matéria para meditarem sobre os mistérios divinos. A montanha, ponto de encontro entre o Céu e a Terra, abriga a maior parte das cenas bíblicas em que se selou e renovou a Aliança entre Deus e o seu povo, do Sinai ao Gólgota. Os místicos recorrem a esta imagem para 256

evocar a elevação da alma chamada a escalar as sendas árduas que a elevarão ao cume da união com Deus. O Monte Carmelo será o seu símbolo para João da Cruz (+ 1591), que propõe a sua "subida" à guisa de iniciação. Descreve as primeiras etapas da ascensão que exige abandono total, para Deus, daquilo que não é Deus. Depois de purificado, o espírito entrará numa noite escura, onde talvez se manifeste uma presença bem no centro da ausência. Na tradição cristã, a simbologia do fogo permite exprimir o esplendor incomparável de Deus, os esforços da sua acção na Terra, e o mistério da sua transcendência insondável. Simultaneamente agente vital e elemento destruidor, o fogo remete não só para a imagem do criador e para a presença do Espírito, mas também para a imagem do Deus vingador. Aquando das teofanias, a sarça ardente, as línguas de fogo ou as chamas abrasadoras manifestam aos homens a presença gloriosa do Deus em três pessoas. Os místicos experimentam os seus

Page 164: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

benefícios e o seu calor reconfortante, mas também provam as suas devastações, recebidas como outras tantas suaves queimaduras. A prova do fogo purifica-os, antes de fazer com que o seu coração atinja o ponto de fusão com o divino. O fogo que, ao comunicar-se, não perde nada do seu brilho, também se presta a significar a virtude da caridade, concebida como tendo por modelo o amor de Deus a todos os homens. O coração inflamado torna-se o seu símbolo, associado tanto à figura de Santo Agostinho como à de Calvino. Não há dúvida de que a mística do fogo encontra a sua expressão mais lírica em João da Cruz, que traduziu n'A Chama Viva de Amor (por volta de 1585) o canto da alma purificada pelo fogo, saboreando, finalmente, a queimadura suave, chaga deliciosa, da união com Deus. Depois de Gertrudes de Helfta e de Catarina de Sena no século XIV, Teresa de Ávila (+ 1582) compara o amor divino a um braseiro, de onde escapam as fagulhas que hão-de tocar a alma com o ardor da sua paixão, enquanto a ursulina Maria da Encarnação (t 1672) só aspira a arder neste braseiro. A simbologia, presente na iconografia e na liturgia, encontra-se igualmente no discurso pastoral que vê na comunhão eucarística e nas orações outros tantos elementos próprios para atear este fogo de amor capaz de abrasar os corações.------------------ - A metáfora do coração é habitual na linguagem espiritual para designar a sede da vida e das paixões ou, mesmo, o ponto de contacto possível entre o homem e o infinito. Intervém regularmente nos métodos de oração que vêem nela o oratório mais propício para um encontro íntimo com Deus. Os místicos utilizam-na, a cada passo, para fazer do coração simultaneamente o receptáculo do amor divino e o reservatório dos seus próprios sentimentos. Entre os modernos, o Coração de Jesus é recebido como o símbolo do Deus de amor feito homem de carne. Antes deles, esta devoção tinha nascido no século XII, no contexto de uma meditação privada sobre a Paixão e nomeadamente na contemplação do coração traspassado, fonte da graça 257

divina escoando-se do lado ferido. Alimentou um rico movimento que irrigou diversas famílias espirituais. Na peugada de Bernardo de Claraval (+ 1153), mas com uma sensibilidade muito original, monjas beneditinas e cistercienses ousaram descrever o seu ardor em termos espantosamente concretos: embriaguez bebida na fonte da ferida divina; encontro na carne com Cristo, divino mediador entre Deus e os homens; união íntima, na permuta de corações com o Bem-Amado. A família franciscana ilustra-se desde o século XIV com experiências femininas análogas antes que Bernardino de Sena (+ 1444) exprima com lirismo a sua veneração pelo Coração de Jesus, que ele percebe que arde completamente de amor pela humanidade. Em meados do século XIV, no vale do Reno, os dominicanos Suso e Tauler e também a sua irmã, Margarida Ebner, tinham a mesma compaixão pelos sofrimentos de Cristo e pelo seu Coração ferido de amor, diferenciando-o, pouco a pouco, do culto das Cinco Chagas do Crucificado, ainda muito queridas a Lutero. Por seu lado, Ludolfo, o Cartuxo (+ 1378), levou os seus filhos espirituais a considerarem o Coração aberto como via de acesso à vida espiritual. Depois, o seu sucessor, Lansperge (+ 1539), produziu o primeiro manual de devoção ao Coração traspassado e introduziu o uso das imagens. Outros devotos compõem orações em que a metáfora do fogo se associa à do coração para evocar a intensidade do amor de Cristo. A carmelita Maria Madalena de Pazzi (+ 1607) compara as chagas de Jesus a fornalhas ardentes. No século XVII, textos e práticas de piedade testemunham um aumento de interesse pela devoção ao Coração de Jesus na sociedade francesa, em que o coração é visto como a expressão da personalidade, feita de inteligência e de sensibilidade, e em que a humanidade

Page 165: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

carnal de Cristo é particularmente cultivada pelos espirituais e pelos místicos. Todavia, as manifestações da devoção mantêm um carácter privado. Beneditinas e cistercienses reformadas veneram a título pessoal o Coração de Jesus, enquanto Francisco de Sales (+ 1622) encoraja o seu culto nos conventos da Visitação. A ursulina Maria da Encarnação chega a uma relação íntima com o Coração de Jesus, cuja devoção exporta para a Nova França (América do Norte). Alguns métodos de meditação exortam as religiosas a penetrar no Coração a sangrar para viverem a sua vida assim oferecida e também fazerem no seu próprio coração, a experiência do seu amor redentor. Para João Eudes (+ 1680), formado por Piore de Bérulle (t 1629), o Coração de Jesus exprime a divina humanidade de Cristo. Portanto, importa que se institua um ofício litúrgico em sua honra, para dar graças ao amor que ele tem aos homens (1672). Ao mesmo tempo, as experiências da visitandina de Paray-le-Monial, Margarida Maria Alacoque (+ 1690), e especialmente a sua insistência em discorrer sobre o Coração de carne e sobre os sofrimentos suportados por Cristo por causa dos pecados da humanidade, vão relançar a expressão desta espiritualidade, posta desde então ao serviço da Contra-Reforma. 258

A sua visão do Coração de Jesus, cercado de espinhos e encimado por uma cruz (1672), confere à devoção novos contornos, não só fazendo eco do código de honra que regula as relações sociais, mas também como resposta às necessidades de uma cristandade despedaçada: o amor de Cristo, desprezado pelos ímpios (protestantes), chama a um amor reparador, que os fiéis (católicos) lhe manifestarão com outras tantas "satisfações", destinadas a expiar os ultrajes infligidos ao Redentor e a apaziguar a sua justa cólera. Os jesuítas Claude de la Colombière (+ 1682), seu director espiritual, depois Jean Croiset (+ 1738), autor de um livro de sucesso (1691), são, com as visitandinas, os principais agentes de difusão desta espiritualidade. A réplica jansenista é virulenta, insurgindo-se contra os aspectos afectivos da devoção, fundada numa revelação mística julgada suspeita. Mas, além disso, o acolhimento não é de modo nenhum benevolente em relação a práticas consideradas singulares e cujo vocabulário é tomado da linguagem política do absolutismo para justificar uma submissão radical à majestade divina. Contudo, a devoção encontra eco favorável junto de uma população tocada pela referência ao Coração ferido de um Cristo ultrajado mas misericordioso, a ponto de lhe conferir uma coloração dolorista, à medida dos acontecimentos trágicos da história, e também na Vendeia [França], em que foi difundida pela pregação dos Monfortinos ao longo do século XVIII. Foi somente em 1765 que Roma permitiu o culto público prestado ao Sagrado Coração, na seqüência de esforços do jesuíta Gallifet (+ 1749). A devoção serve um cristianismo familiar e dolorista, particularmente promovido e aceite nas terríveis guerras modernas, a partir do século XIX. Marie-Élisabeth Henneau 259

Mística da Encarnação e da escravidão

A Encarnação do Filho de Deus, um dos dogmas fundamentais do cristianismo, foi uma das noções mais difíceis de admitir pelo espírito humano. Entre os místicos, inclinados a deixar de

Page 166: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

lado a reflexão intelectual para dar lugar às faculdades do coração, a experiência íntima desse mistério pôde revelar-se mais vivificante que o enunciado meramente teológico. Por isso, na Idade Média, alguns deles viveram uma relação amorosa muito pessoal com Cristo contemplado na sua humanidade. Outros, no entanto, em busca da fusão total com a essência divina, não precisaram sequer de intermediário, mesmo que fosse o Filho de Deus. A favor de uma redescoberta dos textos neotestamentários e por virtude da influência da espiritualidade franciscana e da Devotio moderna, no tempo do humanismo, novas correntes restituíram ao Homem-Deus o seu papel de mediador entre um Deus Todo-Poderoso e a humanidade pecadora. Na época moderna, duas figuras de proa testemunham, de um lado e do outro dos Pirinéus, uma mística inventiva da Encarnação, que marcou várias gerações de espirituais e de devotos. Quando Teresa de Ávila (+ 1582) se sente "apanhada por um vivo sentimento da presença de Deus" não pode duvidar de que Ele está "nela" e que ela própria está "abismada nele". Esta experiência de união mística subverte a vida da futura reformadora do Carmelo, abalada com o choque de encontros sucessivos com Cristo revelado na sua humanidade, a quem ela se consagra de corpo e alma. Com efeito, é para o Homem-Deus que tendem todos os seus desejos. Aquando dos primeiros contactos, apenas sente a sua presença invisível. Ela percebe-o como a testemunha de todos os seus actos. Pouco a pouco, visões da imaginação e da inteligência alternam para avivar uma relação de pessoa a pessoa, cada vez mais intensa, alimentada por diálogos amorosos e trocas de olhares, até ao matrimónio espiritual, nova etapa da ascensão da alma, finalmente levada pelo Esposo a penetrar o mistério da Trindade. Mas, mesmo sendo penetrada por esta presença trinitária, é a Cristo e à sua 260

humanidade que regressa espontânea e incessantemente. Para Teresa, Cristo é realmente o acesso ao Pai. Esta época revela-se fecunda em comportamentos análogos nos conventos femininos de Espanha, sem, contudo, terminar na realização de uma obra tão magistral como a produzida pela mística de Ávila, mais tarde reconhecida como doutora da Igreja. Quando Pierre de Bérulle (+ 1629) começou a acolher em França as carmelitas espanholas, herdeiras de Teresa, recebeu o apoio da sua prima Bárbara Acarie. Freqüentador do seu salão, foi lá que ele encontrou o capuchinho Bento de Canfeld (+ 1610), cantor do aniquilamento em Deus, e o cartuxo Richard Beaucousin, que o apresenta aos místicos renano-flamengos. O círculo de Mme Acarie professa um teocentrismo que privilegia a união imediata e "abstracta" da alma humana à essência divina. Por conseguinte, Cristo aparece muito pouco no Bref Discours de l'Abnégation intérieur publicado pelo jovem Bérulle no fim do século XVI. Por outro lado, o seu pensamento, influenciado pela obra do Pseudo-Dionísio e pela hierarquização do mundo que ela opera, sofre então uma lenta evolução, influenciada pela prática dos exercícios de Santo Inácio e, ao mesmo tempo, pela descoberta da mística teresiana. A sua dirigida da época, Madeleine de Saint-Joseph (+ 1637), ministra um ensino no seu Carmelo de Paris centrado na humanidade de Cristo. Não renunciando completamente à herança dos renano-flamengos e, sobretudo, à sua mística trinitária, Bérulle redescobre a que ponto o desejo de amor de Deus se liga ao mistério da Encarnação, em que a divindade do Filho se une à sua Humanidade para fazer de Cristo o único mediador entre Deus e os homens, "verdadeiro sol e verdadeiro centro do mundo". Para os membros do Oratório, instituto de padres que ele fundou em 1611 com a finalidade de restaurar o ideal sacerdotal, Bérulle elabora um programa de iniciação mística que recapitula a sua evolução cristológica ligada a uma concepção hierarquizada da sociedade

Page 167: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

eclesial, inspirada pelo modelo dionisiano. Por causa da dignidade do seu estado, os padres beneficiam de uma proximidade especial com as esferas celestes que, conseqüentemente, lhes confere altas responsabilidades sobre as almas que lhes estão confiadas. Para transmitir fielmente a irradiação de Cristo, deverão submeter-se inteiramente à sua vontade. Bérulle vê na Encarnação o arquétipo da renúncia perfeita e de uma submissão total a Deus, às quais ele espera que os padres se conformem. Neste contexto, propõe-lhes um voto de sujeição à Virgem, como expressão do desejo de viver na dependência da Mãe de Deus, depois outro a Jesus e à sua humanidade deificada (1615), que os tornará capazes de comunicar às hierarquias inferiores o que eles próprios tiverem recebido do Verbo encarnado. No Discours de l'état et des grandeurs de Jesus (1623), Bérulle procura justificar o seu comportamento, vivamente criticado pelos seus contemporâneos, em virtude de um contexto político-religioso oposto aos seus 261

compromissos. Nele expõe os últimos desenvolvimentos da sua mística da Encarnação. O cristocentrismo de Bérulle ressente-se da maneira como ele considera o papel reservado a cada uma das pessoas da Trindade. No Pai, ele vê a origem e a conclusão de todas as coisas. O Filho, Verbo de Deus, é a "imagem viva e idéia perfeita" que o Pai tem de si mesmo, enquanto o Espírito constitui "o elo e a unidade do Pai e do Filho". Por isso, opõe-se a qualquer tentativa que pretenda atingir a essência divina sem a mediação do Filho que, durante toda a sua vida terrestre, passa por diversos estados, todos eles portadores de graça, desde que igualmente assumidos pela sua divindade. O estado da infância perturba especialmente Bérulle, impressionado com a abjecção do Verbo de Deus num ser inacabado, privado de palavra (infans). Por amor ao homem, o Verbo aceita aniquilar-se na natureza humana, reduzida a nada pelo pecado. Depois de ter contemplado a divindade do Filho eterno aniquilada na humanidade, Bérulle maravilha-se diante desta humanidade "deificada" e, desde então, perspectiva-se-lhe um possível regresso da criatura a Deus. Para isso, terá de renunciar a si mesma e, num abandono total ao Espírito, "aderir" a Cristo em todos os seus estados. Segundo Bérulle, o sacramento da ordem torna o padre particularmente apto a viver este estado de adesão que lhe permitirá oferecer aos cristãos a possibilidade de subir até Deus por mediação de Cristo, comungando o seu Corpo. A influência da sua mística da Encarnação nas comunidades de religiosas provoca nestas mulheres um verdadeiro entusiasmo por um mistério a que elas consagram todas as suas orações e a cujo nome muitas delas juntam o seu, como, por exemplo, Bárbara Acarie, que, como carmelita, se chamou Maria da Encarnação. Mais tarde, outra Maria da Encarnação (+ 1672), a ursulina de Tours, figura mística da Nova França [América do Norte], vive igualmente uma relação apaixonada com Cristo, em que ela vai descobrindo pouco a pouco, pelo dom da oração, que Ele é "o Caminho, a Verdade e a Vida". Na história da espiritualidade cristã, a noção de servidão continua associada à personalidade de Bérulle, nomeado cardeal em 1627. Esta noção refere-se à simbologia da escravatura, já usada para qualificar uma relação de pertença livre e total a Deus, a Cristo ou a Maria. Foi deste modo que a ordem dos servitas de Maria foi criada no século XIII em Florença. No século XIV, nasceu em Espanha uma devoção da escravidão mariana, sob a forma de práticas de piedade - recitação do rosário, novenas... - em voga em certos conventos femininos, que esteve na origem de numerosas confrarias, igualmente implantadas nos Países Baixos. Com Bérulle, os votos de escravidão foram considerados "elevações a Deus, sobre o

Page 168: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

mistério da Encarnação, [...] para oferecer a Jesus no estado de servidão que lhe é devida, como conseqüência da união inefável da Divindade com a Humanidade, [...] e a Maria [...] como tendo poder especial" sobre os homens, em razão da sua qualidade de Mãe de Deus. 262

A mística da Encarnação também conduz a uma devoção a Cristo, particularmente venerado no seu "estado de infância" por determinadas congregações femininas, como as anunciadas celestes, que se caracterizam por uma consagração ao Verbo encarnado, cuja vida escondida no seio de Maria pretendem imitar, devotando-se a uma clausura particularmente rigorosa. Margarida do SS. Sacramento (+ 1648), no Carmelo de Beaune, torna-se uma das grandes promotoras ao Menino Jesus depois de ter recebido o favor extraordinário de se unir a Cristo no seu estado de infância. Embora, na sua Vida de Jesus, limitada ao tempo anterior ao nascimento em que Jesus vive em Maria e Maria em Jesus, Bérulle privilegie as noções de submissão do Verbo "às condições da natureza e da infância" e insista no seu estado de dependência e na sua incapacidade de comunicar, ele não pode impedir a manifestação de sentimentos mais marcados de afectividade para com o Menino Jesus, cujo culto se desenvolve no século XVII na França, na Itália e na Boémia. Marie-Élisabeth Henneau 263

O jansenismo Entre sedução rigorista e mentalidade de oposição

Austeridade, rigor e despojamento são indissociáveis do jansenismo; mas, embora esta palavra ainda hoje conserve uma força de evocação, não será também por os jansenistas terem encarnado o desafio de uma consciência moral e religiosa para a qual as "grandezas institucionais" e os poderes de cá de baixo não conseguiriam igualar a grandeza de Deus? O jansenismo, do nome de Jansen (Jansenius, em latim), teólogo da universidade de Lovaina, tem as suas origens numa obra póstuma deste autor, o Augustinus (1640), uma exposição sistemática do pensamento de Santo Agostinho sobre a graça: com toda a liberdade, Deus decide a condenação ou a salvação do ser humano, sem que este possa, de algum modo, influenciar na decisão divina. Então, a grandeza do homem está na aceitação desta omnipotência. É também uma reacção face ao desenvolvimento de uma teologia de inspiração jesuíta que sublinha o livre-arbítrio e a capacidade do homem de colaborar na sua salvação. Este pensamento penetra nos círculos devotos franceses graças a Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran, e próximo de Jansénio. O seu pensamento é particularmente bem recebido no mosteiro feminino de Port-Royal, cuja abadessa, Angélica Arnauld, restabelecera a disciplina alguns anos antes e que se torna o centro de um núcleo militante com o apoio dos Arnauld, poderosos no parlamento de Paris. Desde os primeiros decénios, o que é antes de tudo uma aspiração a retirar-se do mundo encontra a desconfiança e, depois, a hostilidade das autoridades. A aliança de Richelieu com os príncipes protestantes, fortemente criticada por Jansénio, começa por desaprovar o círculo de Port-Royal: em 1638, Saint-Cyran é preso. Começa então o braço-de-ferro com o poder. Na seqüência de uma bula pontifícia, os clérigos e as religiosas são obrigados a assinar um formulário que condena cinco fórmulas ou

Page 169: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

proposições que se julgava estarem contidas no Augustinus. Os jansenistas replicam reconhecendo que (por direito) são efectivamente condenáveis, mas que, de facto, elas não estão na obra. Alguns anos mais tarde, quando 264

Pascal, nas suas Cartas Provinciais, vota ao ridículo o que ele apresenta como a moral laxista dos jesuítas, estes respondem inabilmente: é já o tempo (até 1670) da grande irradiação do círculo de Port-Royal-des-Champs, no vale de Chevreuse. Os "solitários", leigos que se instalaram nas proximidades, trabalham em obras de gramática e de lógica; alguns alunos, entre os quais o jovem Racine, freqüentam as suas "escolinhas", onde o ensino dá mais espaço ao francês do que em qualquer outro lugar. Esta forma de oposição passiva é inaceitável para Luís XIV. A ofensiva do poder retoma, exigindo dos principais interessados que eles reneguem oficialmente e por escrito as idéias de Jansénio. O apoio levado a Roma por alguns bispos jansenistas aquando da crise da Regale, em 1682, exaspera o soberano, que contava, para o exercício deste direito, unificar todas as dioceses francesas sob o seu poder. Em 1709, as últimas religiosas de Port-Royal-des-Champs são dispersas e o seu mosteiro arrasado. Em 1713, o rei obtém de Roma a condenação de várias afirmações extraídas literalmente de uma obra do oratoriano Pasquier Quesnel: é a bula (ou a Constituição) Unigenitus, que provoca a oposição dos "anticonstitucionais". Por morte de Luís XIV, em 1715, o jansenismo parece definitivamente extinto, mas o seu fantasma não tarda a manifestar-se. Para isso, concorrem duas razões essenciais: em primeiro lugar, a constituição de um núcleo activo no seio do clero e entre os fiéis, essencialmente em Paris e na bacia parisiense. O segundo ponto forte é o aparecimento de uma rede internacional que repousa nas trocas epistolares regulares entre os exilados, nomeadamente nos Países Baixos, e simpatizantes estrangeiros, em Roma e em certas cidades italianas. Minoritários, estes homens, cuja opinião varia da convicção profunda à simples simpatia, não deixam de constituir grupos de pressão eficazes. Aproveitando o enfraquecimento do poder que acompanha a Regência, os jansenistas franceses apelam à reunião do concílio geral que se pronunciaria contra a bula. Estes "apelantes" (que apelam ao Concílio) são pouco numerosos (quando muito, 5 por cento do clero francês), mais fortemente representados em certas congregações de vocação sábia (oratorianos e beneditinos de Saint-Maur, por exemplo) e muito implantados em determinadas paróquias parisienses; alguns bispos, entre os quais o arcebispo de Paris, Noailles, não hesitam em ligar-se à sua causa. Face à possível conjunção das oposições, a atitude do poder rarefaz-se. Um dos bispos apelantes, Jean Soanen, é condenado ao exílio em La Chaise-Dieu em 1727. Em 1730, a Constituição Unigenitus é proclamada Lei de Estado. Durante os anos 1740, os jansenistas são sistematicamente afastados dos cargos eclesiásticos. Este enfraquecimento institucional coincide com uma mudança radical. Depois do falecimento, em 1727, do diácono jansenista François Paris, muito considerado pela sua humildade e pela sua pobreza voluntária, os fiéis acorrem ao seu túmulo, no cemitério da igreja de Saint-Médrad, em Paris. Pouco depois, começam a surgir curas miraculosas, acompanhadas de 265

transes e de convulsões; atraem uma multidão de crentes e de curiosos. Inquietas, as autoridades ordenam o encerramento do cemitério, mas os fenómenos prosseguem no

Page 170: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

quadro de reuniões privadas. Aquando destas sessões, as convulsionárias, em geral mulheres, são persuadidas de que encarnam a verdadeira Igreja, detentora da verdade e perseguida. Elas reclamam "socorros": então, espancam-nas até fazer chagas; a sua resistência à dor é interpretada como o sinal da justeza da sua causa. Deste modo, traduzem no seu corpo a teologia figurista desenvolvida por certos clérigos jansenistas para quem a Bíblia, através das provações sofridas pelo povo hebreu e por Cristo, "prefigura" e assinala o pequeno grupo dos eleitos. A resistência à autoridade também se traduz pela difusão de um semanário clandestino, Les Nouvelles Ecclésiastiques, regularmente impresso e difundido na capital, com um tom fortemente polémico. Como jornal de propaganda, centralizando as informações, também é a manifestação da capacidade dos jansenistas para organizar uma imprensa que, graças à autonomia e à compartimentação dos participantes, consegue proteger-se das perseguições e das detenções. A dupla natureza do jansenismo - defesa dos direitos da consciência e mentalidade de oposição - é ilustrada pela evolução do movimento durante os anos 1750. Quando o fenómeno das convulsões escalda, o arcebispo de Paris exige que os fiéis apresentem bilhetes de confissão - espécie de atestados assinados pelos curas favoráveis à bula -, antes de receberem a comunhão, nomeadamente o viático. Ao provocar o escândalo da recusa dos últimos sacramentos a pessoas moralmente irrepreensíveis, esta disposição desencadeia uma profunda indignação contra o clero e a autoridade real. Por táctica ou por convicção, magistrados e advogados tomam o partido dos jansenistas. Seguindo o advogado Le Paige, transpõem para o plano político a idéia de que uma minoria guardiã das leis e "depósito" delas deve impedir a autoridade de um só (o papa em Roma, o rei na França) que abuse do seu poder transgredindo a lei divina. Cantado nos escritos dos filósofos como Voltaire, firmemente combatido nas fileiras do clero, associado à sorte dos parlamentos quando estes se adaptam, o jansenismo parece estiolar no último decénio do Antigo Regime. Contudo, no próprio seio da Igreja, ele inspira os que defendem as teses do "richerismo"*, ligada aos direitos do baixo clero. Além disso, a atenção aos mais humildes motiva o seu interesse pelo ensino popular e por uma concepção ampla da participação dos leigos nas cerimónias, com o desenvolvimento, em determinadas paróquias, de uma liturgia em francês. Mas, nas dioceses em que defendem uma moral muito rigorista, é provável que a sua atitude favoreça mais o afastamento religioso.

* Doutrina baseada nas teses de Edmond Richer (1559-1631), que defendiam a necessidade de uma representação mais alargada do baixo clero no governo da Igreja, muito apoiada neste clero do tempo da Revolução Francesa. (NT) 266

No tempo da Revolução, os jansenistas franceses dividem-se uma vez mais a propósito da Constituição Civil do Clero. Embora alguns deles sejam favoráveis ao princípio da eleição dos párocos e ao controlo exercido sobre eles pelo Estado, outros, em compensação, opõem-se-lhe em nome da separação dos poderes espiritual e temporal. Fora da França, uma minoria influente de bispos trabalha na reorganização do clero austríaco aquando das reformas empreendidas por José II, enquanto clérigos italianos formulam claramente, por ocasião do Concílio de Pistóia (1786), a sua adesão a um funcionamento colegial do governo da Igreja. Os

Page 171: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

episódios revolucionários e napoleónicos assistem às derradeiras manifestações de um espírito jansenista através da esperança milenarista de que estes acontecimentos sejam uma etapa anunciadora de uma era nova. Mas o século XIX, com a afirmação da infalibilidade papal e de uma moral menos intransigente, transforma fatalmente o jansenismo num emblema nostálgico dos direitos da consciência religiosa perseguida. Isabelle Brían 267

III EVANGELIZAR E ENQUADRAR O MUNDO Cristianismos longínquos A caminho da América e da Ásia

Segundo os princípios do tempo, os soberanos portugueses e espanhóis não distinguiam nem separavam, nos seus impérios, os negócios da religião. As partilhas, efectuadas em 1481 por Sisto IV quanto à África e, em 1494, por Alexandre VI, relativamente às índias, confirmavam-nos neste sentido, porque estes papas reconheciam-lhes toda a autoridade em matéria de exploração e de evangelização. É o que, então, se chamava padroado. Nas índias espanholas ou portuguesas, os primeiros missionários a trabalhar sob a autoridade real são os dominicanos, os franciscanos e os carmelitas. No Brasil, os calvinistas chegam ao Rio e a Pernambuco, a partir de 1555, quer dizer, pouco depois dos jesuítas. Em contrapartida, estes só mais tarde se instalaram no México e no Peru. Então, a conquista está quase acabada e é preciso organizar. Acabou o sonho de um reino índio no México apoiado pelo filho de Coités e pelo franciscano Jerónimo de Mandieta. Também acabou o sonho da Igreja índia acalentado pelo bispo dominicano Bartolomeu de las Casas. Era uma empresa importante: como, por alturas de 1550, cristianizar cerca de cem milhões de americanos e um espaço ainda desconhecido, quando as populações de Espanha e Portugal juntas mal chegavam aos oito milhões de habitantes? E que dizer das rotas marítimas portuguesas, tão longas? As missões jesuítas ilustram bem este paradoxo. Desde a sua chegada a Goa, em 1542 (cuja diocese fora erigida apenas em 1539), o jesuíta Francisco Xavier apresenta ao bispo franciscano João de Albuquerque as cartas de Roma que lhe dão todos os poderes nos "territórios submetidos ao rei de Portugal", mas explica que só os usará segundo o parecer do prelado. Quanto a si, apenas deseja "plantar a sua fé no meio dos Gentios". 268

Volta-se para os pobres, não se desinteressando pelo colégio de São Paulo, onde cerca de sessenta autóctones são instruídos a expensas do rei. Como os franciscanos e os dominicanos, Francisco Xavier e os seus companheiros que haviam partido pouco depois dele para o Brasil, para o Congo, para a Mauritânia e para a Etiópia encontram-se perante o desafio da imensidão. Os jesuítas são humanistas. Muito rapidamente, Loiola prescreveu que criassem colégios para formar aqueles que, com o concurso de "letrados" europeus, evangelizarão os infiéis. Foi assim que nasceu São Paulo, no Brasil. Inspirando-se na experiência dos etnólogos franciscanos, por exemplo a de Bernardino de Sagunto, Inácio também pede aos jesuítas que "se adaptem" às sociedades indígenas e compreendam os seus costumes. Por fim, pede que lhe enviem regularmente cartas, cujo objectivo primário é "edificar" a Companhia, mas também subverter as aquisições da Antiguidade. Ao opor à autoridade dos livros as certezas da

Page 172: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

experiência, elas abrem, para além do mundo antigo, imensos horizontes de que nasce o sentimento da ilimitação do espaço. Mas o que, na descoberta dos outros, mais impressiona estes homens do século XVI é a sua semelhança com eles próprios. O pensamento moderno procede, em larga medida, deste encontro do humanismo com o espaço novo. Embora não tenham sido os jesuítas quem o criou, eles souberam dar-lhe a sua plena eficácia. Por volta de 1550, o império português compreende, além de todo o contorno africano, o conjunto edificado por Afonso de Albuquerque em Goa, entre Ormuz e Malaca, com as suas ramificações em direcção ao Japão e à China. Francisco Xavier sulca-o durante dez anos, enquanto o Brasil é percorrido por Nóbrega e Anchieta. Por toda a parte, os jesuítas devem "considerar que, naquele lugar, se tem o direito de esperar mais fruto dos meios que a Companhia emprega: por exemplo, onde se veria a porta mais amplamente aberta e onde as pessoas estariam mais dispostas a aptas para o progresso... Porque, sendo o bem mais universal e mais divino, devem preferir-se as pessoas e os lugares cujo progresso permita que o bem se estenda mais a outros...". Por morte de Inácio, sob o generalato de Laynez, o tom é mais frio; em compensação, sob o de Bórgia, os jesuítas deslocam-se para as índias do imperador: para a Florida em 1566, para o Peru em 1568 e para o México em 1572. No vice-reino de Lima, é lançada uma vasta campanha para a "extirpação da heresia", enquanto no do México, a pedido do rei de Espanha, as pesquisas etnológicas de Bernardino de Sagunto, consideradas subversivas, são destruídas em 1572. Algumas, redescobertas nos anos 1930, apoiarão a renovação do indianismo. A extensão das missões jesuítas na América e na Ásia requer rapidamente um novo modo de governo na Companhia de Jesus. Então, os padres gerais Mercurian e Aquaviva decidem enviar Visitadores com toda a autoridade necessária: La Plaza para o Peru e para o México, Valignano para a Ásia. Este, tirando partido do padroado, mas desejando uma acção missionária independente, esforça-se por regular o difícil problema do 269

comércio da seda. No Japão, depois de ter promovido os princípios de um método apropriado, recorda que é aos missionários estrangeiros que compete adaptarem-se aos japoneses e não o inverso. Pede a Ricci e a Ruggieri que se preparem para entrar na China. Mais tarde e com o mesmo espírito, Nobili e João de Brito deslocar-se-ão para a índia e Rhodes para o Vietname. Na América Latina, os Visitadores convidam os jesuítas a não se dispersar nas doctrinas e a empregar todas as suas forças nos colégios e nas missões junto dos negros e dos índios. Também são chamados como teólogos aos concílios provinciais. No de Lima, em 1582, o jesuíta Juan de Acosta toma posição sobre a difícil questão da "extirpação" dos cultos indígenas. Aquando do seu regresso a Espanha, Acosta publica o seu De procurando Indorum salute (1576), uma obra muito lida até ao século XVIII, em que propõe uma tipologia das "culturas" segundo os princípios da Renascença europeia, nos quais o escrito é mais valorizado que o oral. Por isso, divide os povos a evangelizar em três categorias: em baixo, os "bárbaros" ferozes ou corrompidos com quem é desejável empregar uma atitude forte. Acima deles, os povos dotados de verdadeiras "civilizações", os Astecas do México e os Inças do Peru, junto de quem se deve intervir de maneira mitigada. Por fim, os chineses, os japoneses e os indianos distinguem-se dos outros pelo desenvolvimento de um direito e de uma literatura autóctones: é preciso comportar-se com eles como os primeiros cristãos com os gregos e os latinos. Assim, definem-se uma compreensão da missão e uma nova consciência europeia. Duas experiências

Page 173: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

podem ilustrar a maneira de proceder dos jesuítas: as reduções americanas e as missões chinesas. Diego de Torres, o primeiro superior da província do Paraguai, inspirando-se nos franciscanos decide reagrupar (reducir [>reducciones>reduções]) os autóctones. Logo depois, já há trinta reduções entre os Guaranis e, de 1609 a 1768, esta "República" permite que os índios acedam ao estatuto de cidadãos. Viu-se nisso uma utopia, mas trata-se mais de uma "eutopia" submetida à antropologia do possível. Ultrapassando muito a simples idéia de uma evangelização forçada ou de uma assimilação precária por sincretismo duvidoso, embora estes factores devam ser levados em conta, os jesuítas procuraram apropriar-se do interior da subjectividade dos guaranis, respeitando a sua liberdade. Segue-se uma conversão, duplicada por uma transferência de valores - os do "Outro" - numa visão espiritual. Então, as obras de arte dos guaranis ganham toda a importância. Exprimem, à sua maneira, que a "Terra sem mal" (Yvy maraê'y) que procuram existe, mas além da morte. Na China, a maneira dos jesuítas é diferente. No gabinete imperial de Astronomia, conduzidos pelos chineses, alguns deles dissociam as demonstrações matemáticas da sua roupagem dogmática, mas outros recusam-se fazê-lo em nome de uma compreensão mais rígida da religião. Por outro lado, traduzindo três dos quatro clássicos confucianos (Ta-hiisch, 270

Chung-ying, Lum-yii), os jesuítas contribuíram para a "proto-sinologia". Depois, as controvérsias centraram-se em Les Nouveaux Mémoires do padre Lecomte, um livro popular pelo tom e conteúdo, mas sem grande experiência directa da tradição chinesa nem do programa de adaptação jesuíta. Em 1700, a Sorbona censura a obra. Está próxima da querela dos ritos que, ao fim e ao cabo, não é mais do que um debate ocidental que se resume a uma pergunta: Ricci, fundador da missão na China, está errado ou tem razão? Por outras palavras: poderia o cristianismo abstrair do seu suporte europeu para se adaptar, sem perder a sua identidade, a outros modos de pensar, a outras normas e ritos? Fosse como fosse, os ritos chineses foram condenados em 1742. Alguns jesuítas, pintores, botânicos ou arquitectos, continuaram junto do imperador, mas já se tinha virado uma página para os católicos. Philippe Lécrivain

As missões africanas (séculos xvi-xx)*

O trabalho missionário só começou em África no fim do século XV, na esteira da conquista portuguesa. Mas o cristianismo tinha raízes muito mais antigas no continente, nomeadamente no Egipto, na Etiópia e no Sudão. É no reino do Congo, em relação com Portugal desde 1491, que se observaram os primeiros progressos, com a ordenação de um bispo negro, Dom Henrique, filho do rei Afonso [I do Congo], em 1521, e a criação de uma diocese independente em 1578. Mas não tiveram continuação. Em 1619, o bispo podia contar com o apoio de vinte e quatro padres e os cónegos da catedral de São Salvador cantavam o ofício "segundo o uso da Europa". Em 1649, a Congregação da Propaganda Fide, fundada havia uma vintena de anos em Roma, cria a prefeitura apostólica do Congo, que confiou aos capuchinhos italianos. Nada menos que quatrocentos e trinta e quatro destes religiosos foram enviados para o Congo e

Page 174: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Angola entre 1645 e 1820. Os esforços feitos na Senegâmbia, na Serra Leoa e nos reinos do Benim e Warri na mesma época tiveram menor sucesso. Em contrapartida, no Sudeste da África, não só na costa do Oceano Índico, mas também na bacia do rio Zambeze e até ao coração do reino de Monomo-tapa, os missionários portugueses, principalmente jesuítas e dominicanos, chegaram a assegurar uma presença modesta mas constante durante mais de dois séculos. O balanço desta primeira vaga de evangelização é magro. O efeito combinado das doenças, das dificuldades de comunicação, compromissos

* Tendo-se em conta a especificidade da temporalidade da história africana, os cinco séculos são aqui objecto de uma visão global. 271

da Igreja com o poder político e da sua aceitação da escravatura arruinaram toda a hipótese de desenvolvimento. Em todas as regiões penetradas pelos missionários a influência do cristianismo foi mínima. O seu verdadeiro impacte exerceu-se através do sincretismo. Na Alta Guiné, no Congo e no vale do Zambeze surgiram formas religiosas inéditas, combinando elementos da religião tradicional e os mistérios do dogma cristão. A fundação de sociedades missionárias protestantes como a Baptist Missionary Society, a London Missionary Society e a Church Missionary Society, no fim do século XVIII, em Inglaterra, marcou o início de uma nova era na história das missões. Significativamente, são as classes populares, muito influenciadas pelo movimento evangélico, que forneceram os primeiros contingentes de voluntários. Depois, sociedades semelhantes também se desenvolveram na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos. Os católicos, que tinham começado atrasados, responderam fundando em 1822 a Société de la propagation de la foi. Estabelecida em Lião, esta obra progrediu rapidamente, graças a um importante apoio popular. No primeiro ano, os donativos elevavam-se a 22 915 francos, Em 1846, presente em 475 dioceses, recolhia 3575 885 francos ou, seja, 150 vezes mais. Em 1799, o primeiro elemento da London Missionary Society desembarcou na Cidade do Cabo, onde os ingleses acabavam de chegar. Cinco anos mais tarde, um grupo de missionários anglicanos chegou à Serra Leoa. Em 1833, a Société des missions évangeliques de Paris enviou os seus primeiros homens para o Lesoto. Em Zanzibar e em Mombaça, foi necessário esperar pelo ano 1844 para que chegasse o primeiro missionário, um alemão empregado pela Church Missionary Society. O início do movimento missionário nos Hausas e nos Igbos, na Nigéria actual, e também nos Camarões, data da mesma época. Mais centralizado, o movimento missionário católico beneficiou do impulso do papa Gregório XVI, que, desde 1845, apelou com todas as forças para a formação de um clero indígena. Em 1841, Francisco Libermann fundou a congregação do Sagrado Coração de Maria para a evangelização dos negros, que logo depois se fundiu com a antiga congregação do Espírito Santo. Em 1850, os primeiros oblatos de Maria, fundados por Eugênio de Mazenod sob a Restauração, chegavam ao Natal. Alguns anos mais tarde, o cardeal Lavigerie, apóstolo da luta contra a escravatura e promotor daquilo a que ele ainda não chamava inculturação, fundou os missionários de África, também chamados Padres Brancos, para a evangelização dos territórios a sul do Sara. Escrevia: "É preciso que os jovens negros, mesmo os que quisermos um dia tornar professores primários e catequistas, tenham um estado que lhes permita viver à sua custa o modo de vida africana e, se possível, um estado

Page 175: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

que os honre, que lhes dê influência e seja aceite sem contestação por todos, de modo que possam ajudar poderosamente os missionários sem serem uma carga para eles." De facto, os formadores indígenas especializados nas aprendizagens culturais 272

e religiosas de base desempenham um papel considerável na interpretação dos valores ocidentais para as outras sociedades. Embora usem de uma certa margem de manobra, os missionários estavam ligados de facto ao sistema colonial. Até meados do século XX, todos, por mais esclarecidos que fossem, criam na superioridade do modo de vida ocidental. Parafraseando David Livingston, o missionário que se tornou explorador, eles não duvidavam de que existia uma convergência fundamental entre o cristianismo, o comércio e a civilização. Diferentemente dos chefes tribais, que só pretendiam abrir as suas portas aos missionários que lhes levassem benefícios materiais ou diplomáticos, os governos coloniais garantiam aos representantes das Igrejas a paz, a segurança, o direito de comunicar, de circular e de pregar livremente. Foram raros os missionários que, como John William Colenso, o bispo anglicano do Natal, ou Joseph Schmidlin, um pioneiro da missionação nos Camarões, souberam erguer-se contra os abusos do regime colonial. E, mais tarde, a maior parte das sociedades missionárias abstiveram-se de apoiar os movimentos de emancipação. A historiografia moderna tradicional apresenta uma visão falseada da história do cristianismo em África, ao sublinhar de maneira desproporcionada o papel desempenhado pelos missionários europeus e norte-americanos. Os agentes pastorais indígenas cumpriram uma missão não menos importante no movimento missionário e no enraízamento local do cristianismo. Não são raros os casos em que a evangelização precedeu a chegada dos Europeus, como em Moçambique, onde trabalhadores migrantes, que descobriram o cristianismo no Transval, fundaram uma missão presbiteriana durante os anos 1880. Do lado católico, apesar dos esforços de pioneiros como Mons. Alois Kobès no Senegal ou o cardeal Lavigerie na África Central, poucos padres indígenas foram ordenados antes do início do século XX. O impulso veio de Roma, com as encíclicas missionárias Maximum illud de Bento XV (1919), Rerum ecclesiae de Pio XI (1926) e Fidei donum de Pio XII (1957). No terreno, os missionários brancos invocavam os mais diversos pretextos para adiar a aplicação das normas. Foi necessário esperar por 1939 para que um africano - Joseph Kiwanuka, um padre de Massaka, Uganda - fosse ordenado bispo. As igrejas protestantes hesitaram durante menos tempo em ordenar padres e pastores indígenas. Samuel Crowther, um iorubá que tinha trabalhado para a Church Missionary Society, foi consagrado bispo da Igreja de Inglaterra em 1864 para a diocese do Níger. Contudo, a experiência fracassou por causa do fraco apoio dado ao bispo pela sua Igreja e pelo tamanho excessivo da diocese. Mas também se fizeram outras experiências. Segundo o World Christian Handbook, o número de ministros ordenados na África Subsariana passa de 1200 em 1900 para 4200 em 1957. Em contrapartida, durante o mesmo período, o número de agentes pastorais não ordenados, catequistas, ministros leigos e professores de 273

religião, aumentou de 6000 para 82 433. A partir de então, o movimento de indigenização do clero tem vindo a acelerar. Os missionários europeus e norte-americanos são cada vez menos numerosos. Exceptuando a Igreja católica, que continua a depender das antigas metrópoles,

Page 176: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

embora de maneira menos intensa, para o seu pessoal e o seu financiamento, a maior parte das Igrejas tornou-se completamente indígena. Philippe Denis 274

"Instruir na cristandade"

O grande impulso educativo que varre a cristandade a partir do século XVI é inspirado por duas idéias directrizes: os homens e as mulheres pecam e perdem-se por ignorância, e o remédio deve começar pelas crianças. A partir daí, as rupturas causadas pela Reforma criam entre as Igrejas uma emulação que deu um formidável impulso às duas instituições complementares que são o catecismo e a escola. Há coisas que é preciso saber para se ser salvo. Esta idéia vinha-se impondo desde o fim da Idade Média. Já ninguém pode contentar-se com a fé "implícita", pela qual os fiéis aderiam "ao que a Igreja crê", sem saber enunciá-lo suficientemente e, ainda menos, compreendê-lo. É necessário que saibam no que devem crer, mesmo que não o saibam explicar. É claro que isso será ainda mais necessário quando a Reforma obrigar os fiéis a colocarem-se sob uma "confissão de fé" concreta, distinguindo-a de todas as outras. E como poderão levar uma vida cristã digna deste nome se ignorarem os mandamentos de Deus e as orações que Ele espera deles? Ora, este saber é às crianças que deve ser inculcado. Não somente porque a pouca idade recebê-lo-á e conservá-lo-á mais facilmente, mas também porque é desde a "idade da razão" (por volta dos sete anos) que a sua alma estará em perigo, se ignorar os fundamentos da fé e da moral cristãs. Já por alturas de 1400, Jean Gerson, em França, era dos primeiros a levantar esta questão. E foi ouvido nos Países Baixos pelos Irmãos da Vida Comum, que tinham como objectivo a instrução das crianças. Ao mesmo tempo, os humanistas italianos avançam com a idéia de que o homem perfeito com que sonham é o produto de uma educação bem conduzida. "Não nascemos homens, tornamo-nos homens", escreve por volta de 1500 o príncipe dos humanistas, Erasmo, que não desdenha publicar pequenos livros para ensinar as boas maneiras às crianças. Com a Reforma, a questão da instrução dos cristãos passa para primeiro plano. Em 1514, Martinho Lutero lança um apelo veemente aos magistrados 275

das cidades alemãs para que abram e mantenham escolas. Zuínglio em Zurique e Bucer em Estrasburgo têm a mesma preocupação. E Calvino, acabado de chegar a Genebra em 1537, faz da instrução das crianças um dos quatro pontos fundamentais que exige das autoridades da cidade para que a Igreja esteja "bem regulada". É preciso citá-lo porque é a sua linguagem que se impõe doravante: "É muito requerido e quase necessário, para conservar o povo em pureza de doutrina, que as crianças sejam de tal modo instruídas que possam dar razão da fé." Desde então, cada um dos reformadores começa a compor um manual com o resumo das verdades da fé, as orações e as regras de vida do cristão. Os "catecismos" publicados por Lutero em 1529, o "pequeno" para as crianças e o "grande" para os adultos, como livro do mestre, tiveram um sucesso que, até hoje, nunca foi desmentido. Depois, Calvino fez o mesmo para Genebra. "Conservar o povo em pureza de doutrina." Concebe-se que os responsáveis da Igreja Católica não tenham sido menos ambiciosos. Já ninguém pode contentar-se com repetir

Page 177: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

no ofício de domingo fórmulas estereotipadas (os doze artigos do Credo, os dez mandamentos de Deus e os cinco da Igreja, as sete obras de misericórdia, etc.) ou passagens do manual de Gerson. Imediatamente a seguir ao Concílio de Trento (1566), Roma publicou um catecismo oficial, mas destinava-se aos curas d'almas nas paróquias, para que o pusessem ao alcance dos fiéis. Os primeiros manuais para crianças são obra dos jesuítas, discípulos de Inácio de Loiola que, nos seus anos de transformação, tinham ensinado a doutrina cristã às crianças da rua. Os de Pedro Canísio ainda hoje são autoridade entre os católicos da Europa Central. Em França, no século XVII, os bispos preferirão mandar compor e impor o manual próprio da sua diocese. Onde e como instruir as crianças? Duas instituições contribuem para isso: a escola e a igreja, que devem considerar-se complementares e não rivais. As crianças que freqüentam a escola não aprendem somente a ler e a escrever, mas, em primeiro lugar e essencialmente, a crer e a viver como cristãos. A primeira tarefa do mestre é dar o catecismo. É por isso que Lutero, por exemplo, preconiza a escola tanto para as meninas como para os meninos. E, por toda a parte, a autoridade eclesiástica, protestante e católica, exerce um controlo sobre a doutrina e a moralidade dos mestres. Todavia, mesmo nas regiões em que as escolas são bastante numerosas, só uma minoria de crianças as freqüentam. As outras são retidas em casa pela pobreza dos seus pais (em geral, é preciso pagar ao mestre) ou, muito simplesmente por necessidade de trabalhar. Para já não se falar das meninas e raparigas, cuja instrução é considerada menos útil e que o pudor proibia que freqüentassem a mesma escola que os rapazes. Então, para todos os excluídos da escola, só restava o ensino religioso, o catecismo ou a "escola de domingo". De facto, o repouso dominical permite que o cura ou o pastor reúna as crianças nos bancos da igreja ou 276

do templo, ajudado por alguns leigos (os fiéis da Igreja romana, inscritos nas confrarias, ditas da Doutrina Cristã, são recompensados com abundantes indulgências). Também se deseja que os seus pais assistam às sessões, para aproveitarem as lições. Mas, para se chegar a um resultado, foi preciso, primeiro, convencer os curas d'almas a dar catecismo e os pais a enviar os seus filhos. Para isso, as Igrejas souberam usar um sólido argumento: a profissão de fé entre os protestantes e a primeira comunhão entre os católicos. No difícil debate que tiveram de conduzir para justificar, contra os anabaptistas, o baptismo dos bebês, os reformadores retomaram a sugestão de Erasmo: porque não pedia aos adolescentes que ratificassem publicamente o baptismo recebido à nascença? Em Estrasburgo e na Genebra de Calvino, esta profissão de fé será como que a coroação dos anos de catecismo. Do lado católico, foi preciso quase um século para aperfeiçoar a fórmula concorrente, porque a idade e as condições da primeira comunhão tinham ficado muito fluidas. E como, ao mesmo tempo, se tinha imposto a idéia de fazer desta primeira comunhão uma festa colectiva, imagine-se a vergonha por que passaria não só a criança que fosse rejeitada, mas, sobretudo, os pais. Os antropólogos continuam a espantar-se com o facto de terem sido necessários quinze ou dezasseis séculos para que, nas sociedades cristãs, a Igreja reinventasse um rito de final da infância. Aliás, catequizar sem alfabetizar só podia ser considerado um triste remedeio. Entre os protestantes, o essencial é ler a Bíblia; portanto, não há templo sem escola. Entre os católicos, é desejável que os fiéis saibam ler o seu catecismo e livros de piedade que a imprensa e a propaganda difunde por toda a parte. Tanto mais que a escola também é escola moral. A partir de então, a sociedade nunca deixará de clamar pela abertura de escolas, para os rapazes e para as

Page 178: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

raparigas. Fundar escolas e dotá-las de rendimentos próprios é um acto de generosidade que os senhores da aldeia e os curas de paróquias praticam à porfia. Nas cidades, criam-se escolas chamadas de caridade, isto é, gratuitas, para disciplinar as crianças das classes pobres. Então, põe-se a questão do recrutamento dos mestres e das mestras, profissão ainda bastante desprezada. Para responder a esta necessidade, começam a florescer congregações religiosas de mulheres e de homens que têm por vocação consagrar-se à educação cristã e humana das crianças. Do lado das mulheres, são todas as que se agrupam sob o padroado de Santa Úrsula, a partir da iniciativa de uma italiana de Bréscia, Angela Merici, várias vezes modificada pelas autoridades eclesiásticas; ou das congregações análogas nascidas em Bordéus, na Lorena, etc. Depois surgiram outras fórmulas, bastante mais flexíveis: simples beatas ou mulheres consagradas, em grupos de duas ou três, fixam-se numa aldeia para ministrar um ensino muito rudimentar de leitura e de trabalhos manuais. Do lado dos homens, foi preciso esperar pelo fim do século XVII para que nascesse, por iniciativa de um cónego de Reims, João-Baptista de la Salle, 277

uma congregação dedicada à educação dos rapazes. Mas o sucesso é estrondoso, porque estes "Irmãos das Escolas Cristãs" recebem uma formação pedagógica muito sólida e estarão na origem de uma verdadeira renovação dos métodos escolares. No ensino secundário, fizeram-se os mesmos esforços, mas só os rapazes beneficiaram deles. Aqui, são mais fortes as exigências das famílias: a promoção social passa pela aprendizagem do latim nas escolas de gramática - assim se chamavam, inspiradas pelo humanismo italiano. Mas, sempre que as escolas se multiplicavam até nas cidades mais pequenas, acontecia uma ruptura confessional. As autoridades católicas incriminam os regentes, não sem razão, de simpatia protestante. Nas cidades reformadas, o colégio é e deve ser confessional, porque um dos seus objectivos é formar futuros pastores. Alguns serão famosos, como o Gymnasium de Estrasburgo, criado e durante muito tempo dirigido por João Sturm. A réplica dos católicos foi dada pelos jesuítas que, embora não tivessem sido fundados para isso, aceitam, a partir dos anos 1550, encarregar-se dos colégios que saberão inculcar nos adolescentes o humanismo cristão, defendendo a fé católica. O sucesso supera todas as expectativas, tanto mais que os jesuítas se revelam notáveis pedagogos, cuja experiência é reunida, em 1599, na célebre Ratio studiorum. Importa reler o testemunho dado por Descartes, no início do Discurso do Método (1637), do ensino que tinha recebido em La Flèche dos seus mestres jesuítas. E é no colégio de Rouen que Corneille se impregna da cultura clássica e cristã que devia alimentar as suas comédias ligeiras, o seu teatro heróico e a sua poesia sagrada... Globalmente, a educação da juventude terá sido a principal beneficiária da rivalidade das confissões cristãs. Marc Venard 278

A imagem tridentina Ordem e beleza

No início do século XVI, na cristandade ocidental, a arte religiosa está em plena expansão, mas em duas direcções opostas: na Itália, a admiração pela Antiguidade leva a uma racionalização das formas e a uma humanização dos temas que arrisca esvaziar o mistério cristão; nos países

Page 179: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

do Norte da Europa, segundo uma arborescência gótica levada aos extremos, exprime-se numa sensibilidade que vai da ternura ao patético. Ao encontro destes dois domínios, talvez Albert Dürer (1471-1528) tenha sido a melhor testemunha da vitalidade de uma arte autenticamente cristã. Umas vezes, esta arte é monumental, enchendo de cores e de luz as paredes e as janelas dos grandes santuários; outras vezes é íntima, graças à multiplicação dos quadros de oratórios e das gravuras. Mas é difícil dizer que relação os fiéis mantêm com todas estas imagens que os rodeiam. Contudo, a partir dos anos 1520, os reformadores julgam que estas imagens são um insulto à Palavra de Deus. Menos Lutero, a bem dizer, que Carlstadt, Zuínglio e, depois deste, Farel e Calvino. Brandem com veemência o segundo mandamento bíblico (que a Igreja da Idade Média passava em silêncio): "Não farás nenhuma imagem diante da minha face." E denunciam todas as estátuas da Virgem e dos santos a quem o povo presta um culto só devido a Deus. À medida que a Reforma ganha terreno, assiste-se à "limpeza" dos santuários nos locais em que se impõe ou em actos iconoclastas isolados, perpetrados por prosélitos zelosos que partem ou danificam as imagens, cruzes e altares. Muito mal recebidas pelas populações, estas manifestações da fé reformada são objecto de cerimónias reparadoras e de pregações inflamadas. As grandes vagas iconoclastas de 1561 e 1562 em França, e a de 1566 nos Países Baixos deixarão atrás de si ódios inexpiáveis. Mas caberia ao Concílio de Latrão dar uma justificação teórica e prática da arte religiosa, o que fez nas suas vigésima primeira e vigésima segunda sessões (em 1563), num longo decreto que mistura culto dos santos, culto 279

das relíqüias e culto das imagens. Retomando os termos do segundo Concílio de Niceia (787), começa por afirmar que a veneração não é prestada às imagens, aos objectos materiais, mas às pessoas que eles representam, Cristo, a Virgem ou os santos; as imagens estão lá unicamente para orientar a fé dos fiéis. Por outro lado, é legítimo representar Deus nas suas intervenções, tais como a Bíblia ou as Vidas de santos no-las referem: estas "histórias" servem para instruir o povo, são como um catecismo ilustrado. Contudo, o concílio adverte contra abusos: não se deve figurar nada que não esteja conforme com os relatos autênticos e que não respeite a decência. "Dever-se-á evitar toda a lascívia, de modo que as imagens não sejam pintadas nem ornamentadas com uma graça impudente." Posteriormente, estas fórmulas conciliares um pouco lacónicas iriam ser explicitadas de várias maneiras. Mais concretamente, quando Pio V ordenou a Daniele da Volterra (il Braghettone) que tapasse com véus pudicos as nudezes grandiosas do Juízo Final de Miguel Angelo; e nos tratados teóricos com que o arcebispo de Bolonha Gabriele Paleotti ou o jesuíta neerlandês Van Meulen (Molanus) escreveram para uso dos artistas os temas que deviam representar e as regras que deveriam seguir para isso. Se é verdade que, desde então, a Reforma católica iria romper com certas tendências da arte religiosa anterior, também é verdade que conheceu um relançamento artístico pelo menos igual, senão até mais vigoroso do que no século precedente, e isto sob formas que os padres conciliares estariam bem longe de imaginar. O concílio não tinha dito nada sobre lugares de culto. Coube a São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, transcrever o seu espírito numa Instrução sobre a construção das igrejas que haveria de ter uma grande autoridade. Contra a planta circular ou em cruz grega, preconiza-se a planta em cruz, que alonga a nave para os fiéis, separando-a do coro, reservado ao clero. Sabe-se que mesmo a planta adoptada por Brabante e Miguel Angelo para a basílica de São Pedro de Roma iria ser

Page 180: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

arranjada neste sentido. Na igreja, o altar-mor deve destacar-se (à custa dos púlpitos e dos túmulos) e sobreelevado, de tal modo que todos os olhares se dirijam para o sacrifício da missa. No altar será colocada, com toda a solenidade conveniente, uma reserva eucarística. E, dominando o altar, um retábulo teatral para valorizar e testemunhar o seu papel de ligação entre o Céu e a Terra. Enquanto o altar é assim exaltado no santuário, a cátedra do pregador aproximar-se-á o mais possível da assistência. Por outro lado, para que esta possa seguir melhor os ofícios, a igreja também deverá tornar-se o mais iluminada possível. Acabaram-se os belos vitrais coloridos que tinham resplandecido com os seus últimos raios durante a primeira metade do século XVI. Nestas igrejas claras, importa que o sacramento da penitência seja administrado com toda a discrição: por isso, é na mesma Instrução de São Carlos que se encontra minuciosamente descrito o móvel que deverá ser utilizado para confessar os fiéis - o confessionário. 280

E instaura-se uma polícia da arte, cujos agentes mais eficazes são os bispos em visita pastoral pelas paróquias. Então, mandam deslocar os altares, eliminar túmulos ou mobiliário que atravancam o santuário. Lá, ordenam a construção de um retábulo, a ornamentação de um sacrário. Um pouco por toda a parte, mandam retirar imagens indecentes, um São Sebastião demasiado nu ou um São Martinho eclipsado pelo seu cavalo. Por vezes, as populações resmungam e só retiram da sua igreja o "bom" santo quando querem fazer ou cumprir promessas às escondidas, enquanto os artistas transpõem para Madalenas penitentes e anjos ambíguos a sensualidade que a autoridade quis banir. Conforme o decreto conciliar, doravante a arte católica proíbe certas liberdades. Tratando-se da Trindade divina, adopta-se uma representação estritamente funcional: o Pai em majestade, o filho na sua Humanidade crucificada e, entre ambos, o Espírito, na forma de uma pomba. Depois, a partir do fim do século XVII, já ninguém ousa representar o mistério divino a não ser com um triângulo impresso com o tetragrama. Da vida da Virgem Maria, desapareceram algumas cenas predilectas da Idade Média, mas não testemunhadas pelos Evangelhos, como a aparição de Cristo ressuscitado a sua mãe. Em compensação, os artistas são encorajados a fazer sair da sombra São José, até cruzar a Trindade divina com a trindade humana de uma Família sagrada. Também assume prioridade tudo o que pode não só proclamar a autoridade da Igreja e o valor dos seus sacramentos, mas também os méritos dos santos, tanto os do passado como os que mostram a graça divina sempre em acção: santos não só para invocar, mas igualmente para imitar. A partir das obras mais importantes produzidas pelos artistas da Reforma católica, as dos grandes arquitectos romanos, dos pintores da escola bolonhesa ou dos ateliês flamengos, é preciso reconstruir uma cadeia inteira de imitações talentosas ou malsucedidas, alimentada pelas migrações de homens ou pela circulação das gravuras. Assim, é interessante seguir, numa determinada cidade ou província, a introdução dos novos temas e das novas decorações. Porque, neste domínio, os jesuítas foram muitas vezes iniciadores, surgiu o hábito de baptizar erroneamente como "jesuíta" o estilo do catolicismo reformado. Mas, além de os padres da Companhia terem por princípio entregar o trabalho aos artistas locais, só usaram das novas modas o que servia para o seu apostolado. Em contrapartida, durante muito tempo negligenciou-se o papel das confrarias na difusão da arte pós-tridentina. Uma multidão delas, encorajadas pelo papado e pelos bispos, propagadas pelas novas ordens religiosas, popularizam as devoções mais importantes da Reforma católica, como a adoração eucarística,

Page 181: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

a oração mariana do rosário, a intercessão pelas almas do Purgatório e muitas outras. Por isso, cada uma deve ter a sua capela ou, pelo menos, o seu altar, identificado com um retábulo, assim como imagens para distribuir aos seus membros para lhes recordar os seus deveres. 281

Embora algumas confrarias, como a dos ourives de Paris, tenham dado trabalho aos maiores artistas, a maior parte povoou as nossas igrejas de obras modestas, produzidas por artistas locais. Pode ligar-se a esta produção a das imagens de piedade para uso individual, cujo sucesso é, hoje, difícil medir. Freqüentemente são réplica de obras-primas e de directrizes precisas como acontece, por exemplo, com a série de gravuras que o jesuíta Nadal mandou realizar nos Países Baixos, no fim do século XVI, para ilustrar as cenas da vida de Jesus. Não só puderam servir para guiar pintores pouco imaginativos, mas também, levadas para casas de particulares, puderam ajudá-los nas suas orações a fazer a "composição do lugar" recomendada por Santo Inácio. De resto, todos os mestres espirituais da época (mesmo César de Bus, que era cego!) preconizam que se medite diante das imagens piedosas. O que não impede que as imagens tenham podido, em muitas casas, conservar o seu uso, oficialmente proibido, de talismãs... Foi propositadamente que não empregámos o adjectivo "barroco". A nova arte católica, preconizada na época em que o estilo da moda era aquele a que chamamos "maneirista", por si mesma não conduzia ao florescimento e aos excessos daquele que as gerações seguintes cultivaram e a que chamamos "barroco". Ou, se a ele conduzia, era de maneira implícita. Porque reconhecia-se nela não apenas o triunfalismo da Verdade, tão manifesto na Roma papal, mas também a exaltação dos sentidos, em particular da vista, de maneira que a beleza terrestre fosse a promessa do Paraíso celeste. Marc Venard 282

Roma e Genebra Novas Jerusalém da comunicação

Genebra, nova Roma? A analogia parece impor-se a partir do século XVI, quando estas duas cidades se tornam emblemáticas do confronto confessional. A Contra-Reforma decidida contra o protestantismo pelo Concílio de Trento foi mais romana do que tridentina porque, apesar das críticas que o magistério romano suscita entre certos galicanos ou jansenistas, a fidelidade a Roma impôs-se ao conjunto do mundo católico, pois a cidade pontifícia é o lugar de definição da ortodoxia e da censura da heresia. A Inquisição romana e o índex são prova disso. Por seu lado, embora não tenha sido a primeira cidade a passar para a Reforma de tipo sacramental, Genebra apareceu desde 1540 como o bastião da ortodoxia definida com brio por Calvino e Teodoro de Beza, depois conservada pela companhia dos pastores, nomeadamente contra os desvios arminianos. Na Idade Moderna, Roma queimou Jordano Bruno e perto de noventa hereges, mas Genebra também executou Michel Servet e Spifame. Cada uma destas cidades esforçou-se por brilhar no seu campo por todos os meios modernos de comunicação. Em Genebra, na Idade Média não havia universidade e foi estabelecendo uma academia que se formaram muitos dos pastores para a Europa reformada, nomeadamente francófona, que se tornaram émulos dos dogmas e da organização da Europa. Esta influência foi sublimada pela função de refúgio exercida pela cidade em relação às vítimas das perseguições religiosas,

Page 182: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

italianas, inglesas e sobretudo francesas, desde o século XVI, e ainda mais depois da revogação do édito de Nantes (1685). A perseguição favoreceu a expansão da cidade, proporcionando-lhe, no século XVI, uma força de dissuasão editorial que contribuiu muito para a propagação na área francófona das traduções genebrinas da Bíblia, do saltério e de um conjunto de literatura polémica, teológica e política. Post tenebras lux era a divisa da cidade reformada. 283

Roma também valorizou a sua imagem por meio dos jubileus, renovando o seu urbanismo e a sua decoração para se erigir em cidade universal, católica no sentido literal do termo, acolhendo os peregrinos que acorriam a obter as indulgências. Enquanto a tipografia vaticana poliglota imprimia em todas as línguas conhecidas, o papado desenvolvia, no século XVII, instituições coordenando a propagação da fé no mundo e assegurando a formação missionária. Nas duas cidades, usa-se a erudição para derrotar a outra na controvérsia confessional. De facto, como rivais, as duas cidades sonharam destruir-se, e não somente pela rabies theologica ("raiva teológica"). O saque de Roma pelas tropas imperiais (1527) teria tido tão grande dimensão profanadora, se os protestantes não tivessem denunciado a nova Babilónia? "Ser cristão não é ser romano", afirma Lutero a Leão X. E o dia da Escalada (11/12 de Dezembro de 1602) testemunha, pela aliança entre o papado, o rei de Espanha e o duque de Sabóia, o desejo de cruzada contra este bastião que, segundo Ronsard, se tornou "a miserável estância de toda a apostasia". Quando, no dia seguinte, 12 de Dezembro, os genebrinos repeliram o exército de mercenários que escalava as muralhas, abandonaram definitivamente a obediência ao seu suserano feudal, o duque de Sabóia, mas encontraram uma identidade colectiva própria que ainda hoje se mantém muito viva (além da festa colectiva do costume, come-se uma marmita de chocolate repartida pela mesa familiar aos gritos de "Assim morrem os inimigos da República!"). O fracasso da empresa saboiana e católica foi imediatamente apresentado aos europeus como um sinal providencial da eleição celeste da Reforma. À maneira da sua rival das margens do rio Tibre, a cidade encostada ao lago Leman reforçou o seu dispositivo defensivo nos séculos XVI e XVII, com o concurso financeiro de príncipes e das Igrejas reformadas de toda a Europa, porque a queda desta pequena república teria sido uma derrota da "Internacional Protestante". Por isso, tanto no mito como no seu reverso, as duas cidades parecem análogas, pelo menos no que concerne à maneira de enfrentar as controvérsias. Todavia, não podem ser idênticas porque não se inscrevem na mesma economia da salvação nem na própria eclesiologia. Roma é o coração de uma Igreja hierárquica visível que reivindica o seu enraízamento na tradição apostólica e no sangue dos mártires da Igreja primitiva. Governada depois do Concílio de Trento por vários papas notáveis e por uma administração curial renovada desde 1588, Roma assegura no presente a continuidade e a renovação permanentes da tradição. A Roma da Renascença procurava a fonte do seu poder nos vestígios antigos romanos; a Roma barroca escavou as catacumbas a partir de 1578 e decifrou as inscrições da Antiguidade cristã, ao mesmo tempo que se orna com novas igrejas para visualizar esta nova mediação ancorada na Igreja romana cristã da Antiguidade. As artes foram postas ao serviço de uma teologia das obras, ilustrando a participação do homem na sua salvação. Ao refundar a peregrinação medieval em torno 284

Page 183: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

das sete basílicas maiores, que Carlos Borromeu, Pio V e muitos outros voltaram a pôr na moda, numerosos guias e vedute [vistas, gravuras ilustradas] difundiram novamente esta imagem da Cidade Eterna junto dos peregrinos. Uma imagem de tal maneira densa que até funda o urbanismo do centro de Roma nas construções da unidade italiana. Sede do papado, Roma torna-se o coração da economia da salvação para os católicos do século XVII. Só ela decide a autenticação dos santos para recompensar os méritos e propor modelos edificantes ao mundo. Roma exporta indulgências, jubileus e relíqüias para valorizar a sua função sacra. Ao contrário, na Igreja protestante, marcada pela invisibilidade dos eleitos e pelo sacerdócio universal, Genebra tornou-se certamente, depois de Calvino, um modelo de cidade santa onde os desvios são perseguidos pelo olhar vigilante dos pastores e dos magistrados, não sem conflitos nem sem resistências; no entanto, ela só pode ser uma Igreja reformada entre outras, sem proeminência, como o manifestam as opções das Igrejas de França, da Escócia e dos Países Baixos. É por isso que, embora Genebra possa ser comparada a Roma, a analogia tem limites. Ela inscreve-se num tempo muito breve, o século XVI, porque, desde o século XVII, o magistério genebrino teve como concorrentes não só o de outras cidades, como Saumur ou Leyde, onde vivem eminentes teólogos reformados, mas também, depois, na aurora do século XVIII, o profetismo cevenol [de Cévennes, região do Centro-sudeste da França]. O liberalismo teológico introduzido por Jean-Alphonse Turrettini leva a Enciclopédia de Diderot e d'Alambert a apresentar Genebra como uma cidade das Luzes e de deístas, com prejuízo para os seus habitantes e para Rousseau, mas talvez para depreciar ainda mais a sede da "infame catolicidade". Sobretudo, limitada no tempo, a analogia das duas cidades-Igreja não poderá esconder a diferença entre as suas funções respectivas no interior do seu bloco confessional. Genebra nunca pretendeu ser uma terceira Roma, como reivindicou Moscovo. Pelo menos, esta competição entre as duas cidades modelou a sua identidade e a sua paisagem urbana. Mas o que há de comum entre a Roma triunfante barroca e a austeridade genebrina de cidadela reformada? Talvez o facto de terem ambas atingido uma certa universalidade. A Roma pontifícia assegurou a herança imperial cristã. Cidade do refúgio, marcada pelo acolhimento provisório ou definitivo dos perseguidos de todo o tipo, até aos anarquistas e revolucionários do século XIX, Genebra alberga organizações internacionais não governamentais e interconfessionais encarregadas da paz, da legislação do trabalho, do socorro dos mais desfavorecidos e do diálogo entre religiões. Jean-Marie le Gall 285

IV NOVOS HORIZONTES DE SENSIBILIDADE Bach A música sem fronteiras

"A música é um dom de Deus", afirmava Lutero, fazendo eco do seu mestre Santo Agostinho. Ela exorciza o mal e põe o homem em relação imediata simultaneamente física e metafísica com o sobrenatural. E "quem canta reza duas vezes", não só com as palavras, mas também com o poder dos sons. Por isso, o reformador tinha de colocar a música com a palavra no centro da nova liturgia que ia instituindo. Doravante, a música que todos praticam, cantando a uma só voz estes cânticos simples e comoventes que se conhecem mesmo antes de se saber falar e cujos textos, freqüentemente devidos a poetas de primeiro plano, declina todos os artigos da fé, e também as horas de uma vida cristã bem regrada. E, é claro, na igreja, em casa,

Page 184: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

réplica da paróquia, todos os dias, de manhã e à tarde, e ainda na escola e até na rua, dado que as cidades mantêm um corpo de músicos municipais para tocar do alto da câmara municipal, à maneira de ângelus, corais harmonizados. Nas quatro igrejas de Leipzíg, a missa dominical dura umas quatro horas e as vésperas, à tarde, três horas. Todo este tempo é duplamente ocupado pela pregação e pela música. Ao mesmo tempo que é uma terapia que trata das vicissitudes do quotidiano, o canto colectivo consolida a comunidade, pondo-a em estado de receptividade interior em relação ao ensino espiritual que lhe será ministrado durante longas horas. Em Leipzig, Bach ocupa múltiplas funções. Cantor na Thomaskirche, na igreja de São Tomé, quer dizer, professor de música igualmente encarregado da instrução religiosa, portanto, é também mestre da música das igrejas e, sobretudo, director musices, responsável por todas as actividades e celebrações musicais da cidade. Um músico na cidade - uma cidade unanimemente religiosa, num tempo em que, segundo Jean Delumeau, "cada cidadão é sociologicamente cristão". Já não há separação entre o civil e o 286

religioso, a não ser diferenças de estilo entre música para a igreja ou música para a cidade. Se os habitantes de Leipzig gostam da festa, se nunca faltam a nenhuma ocasião de regozijar-se com a visita dos soberanos, com um casamento ou o aniversário de uma personalidade, é sempre em música; e é ao director musical que compete compô-la e dirigi-la, assim como a música que se ouve ao domingo nas igrejas. Até a eleição do conselho municipal se realiza no santuário, seguida de uma cantata de acção de graças. Por isso, as cantatas dominicais são consideradas um duplicado da pregação no púlpito. Distribui-se o seu texto aos fiéis, para que possam compreender perfeitamente as palavras. Mais concisas, tratam os mesmos temas, concertados com as autoridades religiosas, com a eficácia acrescida que lhes confere o poder da música. Não só as cantatas, mas também as obras para órgão. Do alto da tribuna, o organista prega como o pastor do alto do púlpito. Como ele, entre o Céu e a Terra, o músico fala, como mediador, de Deus aos homens, e leva até Deus a palavra cantada pelos fiéis. Quem sabe se, tratando-se de Bach, ele não fará melhor do que o pastor, não só pela imensidade do seu génio, mas também pela extensão dos seus conhecimentos teológicos! Na sua obra, Bach mostra-se sempre e em toda a parte preocupado com manter um discurso em música, qualidade que já lhe era reconhecida no seu tempo, em que se falava dele como de um muito grande orador. Naquele século de retórica, como os seus contemporâneos e, sem dúvida, mais, ele não deixa de se dirigir aos seus ouvintes para comentar a Palavra. Modela o seu discurso musical e articula-o segundo as regras precisas da arte oratória, então devidamente codificadas. Retórico para organizar as formas, para despertar e governar os afectos dos ouvintes e, sobretudo, para manter uma linguagem inteligível com uma quantidade de figuras que vão do simples motivo rítmico ou melódico à estrutura de conjunto das suas grandes obras ou, mesmo, das suas colectâneas na sua globalidade. Igualmente na sua expressão sonora, Bach apela a um considerável conjunto de meios, que usa com uma ciência e uma precisão admiráveis, seguindo um código simbólico então conhecido de todos. Nele, não há instrumento, voz, tonalidade ou movimento que não possua uma conotação espiritual, cujos elementos de significação o músico trabalha e cruza. Além disso, essa citação de coral arrasta com ela as palavras de um cântico, operando a um nível suplementar de exegese. Conseqüentemente, por mais intenso que possa ser o prazer estético sentido ao escutar estas obras-primas, não se conseguirá, como os ouvintes de então, perceber o seu significado real

Page 185: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

sem um perfeito conhecimento dos textos que elas veiculam e exaltam e também o conjunto destes sinais auditivos outrora familiares que os encarnam e comentam. Independentemente de qualquer adesão religiosa pessoal, só é possível apreender o pensamento musical de Bach na sua plenitude à luz da cultura e da espiritualidade que o subentendem e animam. 287 Mas, se escutarmos bem, numerosas obras "profanas" também testemunham uma visão espiritual do mundo - as Variações Goldberg, por exemplo - e mesmo o mistério da Redenção na Cruz. Estão neste caso os cânones enigmáticos que o compositor dedica em Oferenda musical a um rei da Rússia perfeitamente ateu, Frederico II. Na sua sobreposição a si mesmo por movimento retrógrado, como que lido simultaneamente num espelho, o motivo do primeiro cânone já traça o sinal sonoro da cruz, este qui [c] grego que se tornou a figura de retórica do quiasmo*, simultaneamente nome de Cristo e imagem da cruz, figura a que o músico recorre muitas vezes. Ao longo da sua vida, Bach reuniu um saber enciclopédico. Conhece todas as músicas do seu tempo, estuda e assimila todas as do passado. Desconfiando da cultura europeia, construiu uma linguagem sincrética que lhe pertence exclusivamente e é imediatamente reconhecível, e na qual o pensamento musical do Ocidente cristão encontra a sua expressão mais acabada. Ainda hoje a posteridade continua a rever-se nele e no seu ideal de espiritualidade da obra de arte. "Fonte primordial de toda a música", segundo Beethoven, ele é o criador universal que transmite às gerações seguintes a própria essência da arte musical, dom de Deus. Simultaneamente discurso e método, a sua música contém a sua própria teoria e a sua visão do mundo. Havia alguns decénios, o discípulo do lipsiense Leibniz, Bach, parece ter posto em obra o pensamento do filósofo, afirmando que "é pelo cálculo e pelo exercício do seu pensamento que Deus criou o mundo". Criado à imagem de Deus, é pelo cálculo e pelo seu pensamento que, por sua vez, Bach criou um mundo sonoro, mundo que nos fala da criação divina. A sua derradeira obra completa é a Missa em si menor, fruto de um trabalho estranhíssimo, compilação de vários trechos escritos anteriormente, alguns com trinta e cinco anos, que o músico unifica e completa com três novos que lhe faltavam. Pedra angular no coração da obra, o Credo é constituído por três grupos de três trechos que formam um grande arco, no cimo do qual se encontra o perturbador Crucifixus, pedra angular do imenso edifício. Porquê esta missa? Porque não em alemão? E porque tem proporções que a tornam imprópria para qualquer uso na igreja? Missa absoluta, Missa tota, acima das liturgias e das famílias do cristianismo. Bach, confessor da fé. Fundamentalmente polissémico, o discurso sonoro de Bach não cessa de propor uma leitura do mundo e do lugar que o homem tem nele, numa visão coerente e ordenada de natureza espiritual, sob o signo da serenidade e do ímpeto vital. Não em música, mas pela música. Gilles Cantagrel

* Figura de estilo que consiste em inverter a ordem dos termos nas partes simétricas de dois membros de frase, de maneira a formar um paralelo ou uma antítese (Trésor de la langue française).

Nascimento da crítica bíblica (séculos XVI e XVII)

Page 186: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

O termo "crítica", no sentido de "juiz dos livros" ou de "arte de julgar os livros", é introduzido em francês no fim do século XVI pelo grande erudito Juste-Joseph Scaliger [em português "crítica" aparece em 1712]. Na revolução científica dos tempos modernos, a filologia tem uma pálida figura ao lado da física, da astronomia e da biologia. Contudo, a irrupção dos métodos filológicos na cultura ocidental poderia explicar, por si só, a entrada da crítica no campo da exegese bíblica. Mas é preciso juntar-lhe a pressão das ciências da natureza e do tumulto dos debates teológico-políticos procurando modelos bíblicos. Filologia, ciência e política: tantos campos a explorar para compreender a mudança do olhar sobre a Bíblia no mundo ocidental nos séculos XVI e XVII.

Filologia, crítica e controvérsia

Como promotor dos studia humaniora ensinados na universidade medieval, o chamado movimento "humanista" parte em primeiro lugar à busca do melhor texto, do que será digno da impressão e, por isso, inicia um processo constante de decomposição da transmissão manuscrita. Pelos seus anacronismos, pelas suas peças e pelas suas costuras, o texto tem em si mesmo a marca de uma história e o erudito deve percorrer o caminho que conduz o texto a esta história. Mas, para compreender um texto, o mesmo erudito também deve fazer o caminho inverso: da história ao texto, porque todo o texto do passado confunde o leitor, e o comentário deve atenuar esta estranheza, acumulando notas filológicas e históricas que permitam superar o fosso do tempo. A aplicação à Bíblia deste duplo movimento começa entre o fim do século XV e meados do século XVI. Ao mesmo tempo, fazem-se traduções em língua vulgar a partir dos originais, para uso de todos os fiéis que saibam ler, inclusive as mulheres. Em 1530, 289

Lefèvre d'Étaples edita em Lovaina a sua tradução da Bíblia em francês, efectuada sobre a Vulgata, com correcções a partir do texto grego do Novo Testamento. Esta versão será utilizada pelas traduções posteriores: de um lado, a Bíblia "protestante" de Olivetan (1535), origem das Bíblias de Genebra; do outro, as Bíblias católicas, chamadas de Lovaina, expurgadas de todas as infiltrações luteranas. Com efeito, a separação da velha cristandade medieval em duas Igrejas passou por aí. Quais são, para a Bíblia, as conseqüências deste rompimento? O sinal decisivo desta fractura é a elaboração, na quarta sessão do Concílio de Latrão (Abril de 1546), de um decreto que marca o corte em relação às práticas bíblicas dos protestantes. Consideremos unicamente um ponto: mesmo os textos bíblicos devem ser interpretados segundo o sentido que lhes dá e sempre lhes deu a tradição da Igreja; mas, para os protestantes, esta regra favorece as construções alegóricas e as glosas, em detrimento do sentido autêntico do texto. A aplicação das directrizes tridentinas pelos exegetas católicos e a constituição, entre os protestantes, de práticas opostas geram uma dupla direcção da exegese incapaz de uma comparação do dualismo confessional. Os controversistas muito aplicados nas

Page 187: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

polémicas doutrinais tentam justificar as suas opções com versículos das Escrituras devidamente seleccionados ou arbitrariamente explicados. Esta prática gera uma forma de comentário hiperteológico contra o qual se erguem os exegetas com sensibilidade filológica e histórica apurada. Os mais notáveis, entre os protestantes Hugo de Groot (Grotius) e, para os católicos, Richard Simon, insurgem-se contra uma certa manipulação dos textos pelos teólogos e privilegiam sistematicamente o sentido literal. São marginais em relação à exegese dos professores que, nos seus cursos, consideram que, em matéria de controvérsia, sendo o sentido literal o único que faz autoridade, o "sentido teológico" (que permanece capital) só poderá estabelecer-se depois de uma cuidadosa elaboração do sentido literal pela gramática, pelo léxico e pela história. Nesta empresa, a Grã-Bretanha coloca-se no primeiro lugar, com a publicação de uma Bíblia poliglota (a Bíblia de Walton, 1654-1658) e de uma antologia de comentários literais em nove volumes (os Critici sacri, 1660). Todos estes esforços convergem num distanciamento em relação aos textos bíblicos. Em vez de serem o receptáculo de uma Palavra divina situada numa eternidade imóvel, os textos sagrados aparecem cada vez mais como marcados pelo tempo da sua redacção. Assim, a atribuição inexacta de livros sagrados a autores prestigiados como Moisés, Isaías e Daniel pertence à mentalidade de um tempo que já não é o nosso, em que esse procedimento seria qualificado como falsidade. Contra toda a tradição judaica e cristã, chega-se a considerar que Moisés poderia muito bem não ser o único autor do Pentateuco (como afirmam Hobbes, Simon e Spinoza). Esta convicção não nasce de informações sobre a história literária dos documentos, mas de um raciocínio sobre os textos. Assim, 290

a aplicação à Bíblia dos métodos filológicos é ocasião para se afirmar a existência de uma nova autoridade sobre a interpretação dos textos sagrados: a da razão.

Bíblia e ciência

Esta distanciação dos tempos bíblicos também provém das dificuldades apresentadas pela cosmologia bíblica. Para esta, a Terra é um corpo imóvel, situada no centro do mundo, em torno do qual giram o Sol e os planetas. As estrelas estão fixas, mas é o firmamento inteiro que gira sem cessar. Posto em causa por ter sustentado a hipótese heliocêntrica de Copérnico, Galileu defende-se, na sua célebre carta à grã-duquesa da Toscana, Cristina de Lorena (1615), invocando a autoridade de Santo Agostinho e de São Tomás. Estes dois grandes doutores do Ocidente asseguram que, se uma descrição cosmológica contida na Bíblia é contradita pelos sábios, é preciso interpretá-la como uma expressão familiar, usando a linguagem das aparências, ou como uma opinião do tempo passado. É este último ponto que o movimento da exegese vai tentar levar por diante. Assim, uma dissertação exegética de 1714 da autoria do sábio Dom Calmet demonstra que a cosmologia bíblica é a cosmologia popular do mundo antigo. Outros espíritos, mais ousados, que militam contra os processos de bruxaria, procurarão provar que a omnipresença do diabo no Novo Testamento e os numerosos exorcismos praticados por Jesus provêm das convicções de uma época que desconhecia a

Page 188: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

existência de doenças nervosas. O distanciamento em relação aos tempos bíblicos é evidente e apoia-se na autoridade da razão, comparando agora o texto bíblico com os da literatura antiga.

Bíblia e política

Os tempos modernos registam duas revoluções cujas correntes se chocam violentamente: uma revolução religiosa, a da Reforma, que reivindica a escolha da consciência contra a autoridade absoluta do soberano em matéria espiritual; e uma revolução jurídica, que substitui o Estado único e soberano pela multiplicação dos territórios e das jurisdições feudais. De um lado, impõe-se o dever de obedecer à consciência, custe o que custar; do outro, a máxima de que a soberania não se divide. Dos dois lados, é necessário recorrer ao Antigo Testamento. Ou, então, os partidários do direito da consciência fazem valer os casos em que os profetas organizaram a resistência às tentativas de um rei idólatra; ou, então, os partidários da soberania absoluta observam que o povo de Israel ignorava a dualidade dos poderes: poder espiritual e poder temporal são um só. Outros juristas ou teólogos procuram sair deste dilema fazendo notar que o cristão já não está 291

sujeito às leis do Antigo Testamento. Por isso, eles dirão que, como o reino de Cristo não é "deste mundo", o recurso à violência para o estabelecer já caducou; e acrescentarão que a soberania dos reis só pode ser exercida sobre a ordem exterior da religião e não sobre as consciências (deste modo, o Novo Testamento recomenda aos fiéis a obediência aos imperadores romanos, excepto quando prescrevem actos imorais ou idólatras). Por estas reflexões sobre os modelos políticos que prescreve ou defende, a Bíblia é relegada ao seu passado findo. No mínimo, as mentalidades cristãs afastam-se das lições do Antigo Testamento, em nome dos direitos da consciência e da razão.

Em direcção às Luzes

No fim do século XVII, o termo "crítica" difundiu-se a grande velocidade: toda a história deve ser crítica. Mas, no caso da história bíblica, a pobreza dos recursos filológicos e arqueológicos entrava a marcha. Em vez de ousar fazer comentários, a maioria dos exegetas entrega-se a "introduções à Bíblia", que descrevem um programa sem o realizarem. Então, a crítica bíblica torna-se mais corrosiva, sobretudo na área das Luzes francesas. Na Alemanha pietista, a oposição à escolástica luterana produz o retorno à Bíblia em que a convicção espiritual não se extingue com o ardor filosófico mas, ao contrário, estimula-a. Por esta abertura, a Alemanha protestante é chamada a tornar-se o santuário dos estudos bíblicos. François Laplanche 292

Page 189: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A renovação protestante Do pietismo ao pentecostalismo, passando pelos despertares

Pelos seus próprios princípios (só Escritura, só fé, ecclesia semper reformando), o protestantismo - já plural no século XVI - sempre fez surgir no seu seio Igrejas e movimentos novos. Alguns destes movimentos exerceram uma influência observável até aos nossos dias. Em meados do século XVII, a Europa, já constituída por numerosas entidades confessionais (católica, reformada, luterana, anglicana), assiste ao fim das guerras religiosas. A experiência colectiva de combates pela fé produz efeitos diferentes e, por vezes, contraditórios. No continente e no Reino Unido, verifica-se alguma lassidão ou até uma grande indiferença a propósito das Igrejas. Ao mesmo tempo, a "ortodoxia protestante" continua a desenvolver-se, criando uma forma de escolástica reformada ou luterana concebida de maneira sobretudo polémica. No seio do luteranismo continental desenha-se uma reacção que se pretende seja um apelo para voltar à dinâmica dos primeiros anos da Reforma. Philippe Jacques Spener (1635-1705), pastor luterano nascido na Alsácia, representa esta tendência nova, a que chamará "pietismo". Aspirando a uma espiritualidade mais interior e comprometida, rejeitando a polémica e a disputa, ao mesmo tempo que pretende ser considerado luterano ortodoxo, Spener faz a sua tese de doutoramento em Estrasburgo sobre o tema do "novo nascimento" (Jo 3,5) e torna-se o chefe de fila de um movimento de renovação do luteranismo na Alemanha. Segundo Spener, o luteranismo corria o perigo de se tornar cada vez mais uma religião formalista, cujos adeptos teriam somente um pouco de fé ou de compromisso reais. A teologia dinâmica de Lutero transformar-se-ia em ortodoxia definhadora. A sua obra clássica (Pia desideria, 1675) propõe um programa de renovação aceite por uns e estigmatizado por outros. Entre as suas proposições: uma fé mais consciente e pessoal, o estudo da Bíblia em família e em pequenos grupos, um cristianismo prático fundado no amor fraterno e 293

na recusa da polémica, uma reforma das faculdades de teologia. Com personagens como Spener e o seu aluno August Hermann Francke (1663-1727), o pietismo tornar-se-á uma corrente importante no seio do luteranismo, com as suas universidades, faculdades de teologia (Halle) e projectos de compromisso social (orfanatos etc...). Spener sempre se proclamou luterano fiel e quis reconduzir a sua Igreja ao que, a seus olhos, era a dinâmica de origem. Portanto, este primeiro pietismo afirmar-se-á como renovador e não cismático. Infelizmente, nem sempre foi o caso. No século XVIII, o conde Ludwig von Zinzendorf (1700-1760) alimentado desde a sua infância pelo pietismo de Halle, é o instigador de uma tendência pietista que acabará por abandonar o seio da Igreja luterana. Num encontro entre Zinzendorf e um grupo de morávios (hussitas) emigrados para as terras do seu pai, nasce a Igreja da unidade dos irmãos. Marcados por uma piedade emocional centrada em Cristo e no seu sofrimento, os morávios têm um ímpeto espiritual que acelera a sua difusão na Europa. Pouco depois da morte do fundador, já há 226 missionários "morávios" enviados para fora da Europa (Antilhas, América do Sul e do Norte, África do Sul). John Wesley (1703-1791), padre anglicano, encontra o pietismo alemão no barco que o conduzia como missionário para a colónia da Geórgia, povoada de prisioneiros ingleses. Regressado a Londres, mantém com os morávios contactos que terminam numa conversão de tipo pietista (1738). Querendo renovar a Igreja

Page 190: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

anglicana a partir do seu interior, Wesley e os seus seguidores encontram inicialmente alguma oposição. A impossibilidade de pregar nas igrejas leva-os a falarem ao ar livre e, assim, o movimento atrai fortemente as classes populares. John Wesley e George Whitefield anunciam uma mensagem de conversão que apela a uma importante mudança de vida (a santificação). Com um espírito muito rigoroso, Wesley estrutura de maneira eficaz o seu movimento, que se difunde rapidamente. Perto do fim da sua vida, consagra pessoalmente - sem autorização eclesial - bispos nas colónias que se haviam tornado os Estados Unidos, um acontecimento que acaba num cisma entre a Igreja de Inglaterra e os "metodistas". De facto, estes movimentos de tipo pietista ou wesleyano contribuem para o nascimento de um novo protestantismo que atravessa fronteiras nacionais e confessionais. Por isso, encontramos uma corrente pietista entre os luteranos e os reformados continentais, tal como entre os anglicanos, os puritanos e grupos mais separatistas como os baptistas ingleses, que já tinham nascido no início do século XVII. Este tipo de protestantismo conhece um acolhimento muito favorável na América do Norte. Outra maneira de caracterizar este protestantismo seria falar do fenómeno dos "despertares". O pietismo contribui para forjar uma realidade protestante anglófona transatlântica a partir do século XVIII. Por alturas de 1750, acontece o "primeiro grande despertar", caracterizado por reuniões ao ar livre em que se prega o Evangelho e os ouvintes são convidados quer 294

a converter-se quer a "despertar", isto é, a renovar um compromisso cristão que se teria tornado insípido. Às vezes, estas reuniões são acompanhadas de fenómenos e de reacções emocionais que John Wesley acaba por criticar. O "segundo grande despertar" teve lugar na América do Norte e na Europa durante a primeira metade do século XIX. Os pregadores populares continuam a juntar multidões para anunciarem o Evangelho. Estes despertares moldam de maneira importante o conjunto do protestantismo americano - branco e negro -, em que os metodistas e os baptistas se tornam maioritários. O protestantismo é muito popular, apoiando a construção da democracia americana e acreditando na possibilidade de melhorar a vida (conjunção entre a santificação metodista e o "progresso" das Luzes). Na Europa, durante o mesmo período, movimentos de despertar partem do Reino Unido para o continente e influenciam os meios reformados na Suíça e na França, introduzindo aí novas correntes (baptistas e metodistas). Depois da Guerra da Secessão (1861-1865), da abolição da escravatura, da industrialização e de uma emigração católica importante, o protestantismo americano dos finais do século XIX e do início do século XX ainda conhecerá outro "despertar" importante. Certos meios metodistas estão descontentes com a morosidade e o pessimismo ambientes: isto faz nascer "movimentos de santificação" que apelam às origens do movimento wesleyano, insistindo, portanto, na importância da experiência individual do Espírito Santo e da santificação. Em 1906, na Igreja Azusa Street, em Los Angeles, acontece um grande despertar acompanhado de manifestações de glossolalia e de curas. O seu pregador é William Seymour (1870-1922), filho de antigos escravos. Este movimento, em breve chamado "pentecostista", popular e multirracial nas suas origens, difunde-se rapidamente no Sul dos Estados Unidos e em muitos lugares do mundo - na Europa desde 1906 e na França nos anos 1920 - para tornar-se hoje uma das famílias cristãs mais importantes. O leitor avisado reconhecerá neste desenvolvimento as raízes de uma grande parte das tendências protestantes hoje chamadas "evangélicas". Embora estas tendências tenham uma ligação

Page 191: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

importante com os Estados Unidos, as suas origens são bem europeias e remontam, pelo menos, ao século XVII ou até à própria Reforma. Neal Blough 295

Os santos e a sua nação (séculos XIV-XX)

O santos do Paraíso são a priori estranhos às divisões políticas deste baixo mundo; contudo, em Roma e nas grandes capitais, encontramos São Luís dos Franceses, São Tiago dos Espanhóis, São Nicolau dos Lorenos, São João dos Florentinos. Portanto, as comunidades humanas - cidades, províncias ou nações cristãs - podem associar-se a um santo. A escolha de um nome-marcador, como Yves na Bretanha, Martial no Limusino, Claude no Franco Condado, etc, faz parte das práticas familiares mais comuns. Em certas cidades, há procissões que reúnem toda a população em volta de um santo, situado bem no centro da religião cívica: Santa Genoveva em Paris, São Nicolau em Bari ou São Januário em Nápoles... Por fim, algumas festas de santos são festas nacionais: em França, "la Saint-Denis" no fim da Idade Média, "la Saint-Louis" sob "l'ancient Regime" ou, ainda hoje, São Patrício na Irlanda ou São Venceslau na Boémia. Mesmo a Grã-Bretanha, passada ao protestantismo, institui em 1801 uma bandeira, a Union Jack, que mistura as cruzes de Santo André, de São Jorge e de São Patrício, respectivamente patronos da Escócia, Inglaterra e Irlanda. Por conseguinte, desde o seu nascimento, as nações tiram proveito da glória dos santos. Sentem-se orgulhosas por terem um santo padroeiro ou patrono antigo que inscreve a sua evangelização e o reconhecimento da sua existência nos tempos apostólicos e lhes dá a etiqueta de um povo escolhido da Igreja primitiva. A Espanha é honrada por ter sido evangelizada pelo próprio apóstolo São Tiago, como a França por Dionísio, o Areopagita, discípulo de São Paulo. Quando, no final do século XVI, a crítica abala estas lendas, depara-se com cepticismo ou mesmo oposição. Por isso, em 1602, Filipe III solicita a Roma que o texto da missa de São Tiago em Espanha seja mantido no breviário romano. As nações gostam dos santos que exerceram um apostolado universal ou receberam um culto generalizado, ao passo que as cidades - no reino de Nápoles, por exemplo - procuram ter um patrono mais local. Assim, 296

São Jorge é o santo tutelar da Inglaterra, de Génova, de Malta e da Catalunha, de Portugal, de Hanôver e de numerosas cidades alemãs. Eis o que conduz estas nações e cidades a capitalizar as relíqüias e a disputá-las. Deste modo, Angers, Toulouse e Compostela pretendem, cada qual, possuir as relíqüias de São Tiago, enquanto Saint-Denis [França] e Ratisbona [Alemanha] rivalizam pela posse dos restos do Areopagita. Esta sacralização de um território pelos santos manifesta-se, no momento da confessionalização, pelo estabelecimento de hagiografias nacionais, como o Catalogus sanctorum Italiae (1613), a Bavaria sacra (1615) ou o Martyro-logium gallicanum (1626). Neles figuram santos "indígetes" que viveram nesses países ou cujos restos lá repousam, o que permite captar uma grande parte do martirológio universal para proveito de cada um. Com perto de sessenta mil santos, recenseados por André Du Saussay em 1626, a França não duvida de que merece o título de filha mais velha da Igreja. Entretanto, a época moderna caracteriza-se pelo apego crescente à autoctonia do santo patrono. São

Page 192: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Jorge seria um bretão, talvez nascido em Coventry, e não um capadócio. Os portugueses reivindicam Santo António de Pádua porque nasceu em Lisboa. Quando Raymon de Peynafort foi canonizado em 1601, a sua mãe-pátria catalã também fez dele o seu santo patrono. Nápoles fará o mesmo com Santo Afonso de Ligório. Os santos modernos, cuja origem se inscreve nos quadros políticos existentes, prestam-se mais facilmente que os antigos santos a esta apropriação nacional. Mas isto nem sempre foi fácil, por causa das alterações das fronteiras. Inácio nasceu com toda a certeza na Navarra espanhola, mas este reino é reivindicado e em parte detido pela França, e a ordem jesuíta foi fundada em Paris. Por isso, a monarquia do Cristianíssimo não pretende deixar que a santidade de Inácio glorifique exclusivamente a monarquia católica. E os galicanos preocuparam-se com opor-se ao esplendor das canonizações romanas dos séculos XVI-XVIII que favorecem os santos de origem ibérica e italiana. Os santos padroeiros são protectores da nação e da sorte das armas. Numerosas ordens de cavalaria são colocadas sob a sua protecção, como a Jarreteira sob a de São Jorge em Inglaterra ou as ordens de São Miguel e de São Luís em França. São Jorge a combater o dragão torna-se o símbolo da Inglaterra a lutar contra os seus sucessivos adversários - o papismo, a França ou a Alemanha. São Tiago foi matamoros, depois, com a expansão castelhana, tornou-se mataíndios. Em França, Saint Denis e São Miguel foram amplamente invocados contra o inimigo inglês na Idade Média. A partir do século XIX, a figura de Joana d'Arc expulsando da França o estrangeiro mobilizou contra a Inglaterra e sobretudo contra a Alemanha. Mas também foi explorada nos debates políticos internos. Com efeito, existe mais de uma concepção de nação; além disso, a promoção aos altares incumbe a Roma; portanto, há dois parâmetros que fazem da escolha do santo patrono uma questão eminentemente política, no momento da secularização. 297

Para alguns, embora seja possível escolher um advogado celeste, o patrono é eleito por Deus e inscreve-se numa ordem divina inviolável. Não obstante o desejo das cortes castelhanas e da aprovação romana, a monarquia católica renunciou em 1630 a erigir Santa Teresa como co-padroeira da Espanha para que não atentasse contra o monopólio inalienável de São Tiago. Portanto, o padroeiro é superior à ordem política e impõe-se por si mesmo, substituindo-a até, quando esta falha. A coroa de Santo Estêvão ou de São Venceslau encarna a eternidade transcendente da Hungria ou da Boémia, apesar de todos os acidentes históricos. Mas a promoção de um santo ao padroado nacional ou a desclassificação de outro testemunha que a nação é uma construção histórica. Quando Henrique VIII rompeu com Roma, foi preciso destruir as relíqüias de São Tomás Becket e todas as suas representações, não fosse este mártir dos reis de Inglaterra excitar o zelo daqueles que se opunham à ruptura com Roma. A canonização de João Nepomuceno, no século XVIII, consagra a reconfiguração tridentina da Boémia: até então marcada pela Igreja utraquista e pela figura de João Huss, ela torna-se, assim, um último baluarte de catolicidade. Em França, a Revolução impõe uma concepção política da nação que, em parte, se forja contra o catolicismo. Ao passo que relíqüias insignes, como as de Santa Genoveva, são queimadas, o poder valoriza o culto dos santos mártires da Revolução. No século XIX, para ajudar o clero a libertar-se do Estado, Roma canoniza bastantes franceses do "século dos santos", o século XVII, até então suspeito de jansenismo ou de galicanismo. No início do século XX, o confronto entre clericais e republicanos apoderou-se da santidade, o que conduz à beatificação das ursulinas de Compiègne em 1905 ou à

Page 193: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

apresentação da causa de vários mártires da Revolução, a dos carmelitas em 1906 (canonização em 1926), dos de Angers (beatificação em 1984). Eles simbolizam o apego à fé, contra a Revolução ímpia. Mas não podem pretender reunir a nação. Em contrapartida, os dois campos disputam largamente Joana d'Arc. Michelet vê nela a mulher do povo, abandonada pelo seu rei e queimada pela Igreja que não conseguirá admiti-lo e só introduz a causa de canonização e de reabilitação em 1894, que termina em 1926, precisamente quando Roma condena a Action Française. Ora, a direita nacionalista vê em Joana d'Arc o símbolo da luta contra todos aqueles que, a seus olhos, mancham a França - protestantes, franco-mações, socialistas e judeus - e apodera-se novamente da sua figura mítica contra as evidências religiosas de outrora. Com a secularização, o culto dos santos diminui, mas continuam presentes nos conflitos de memórias em torno das nações e das cidades, pequenas e grandes, prova de que os santos ainda podem servir a mobilização comunitária, de modo totalmente independente das políticas clericais e das catequeses. Jean-Marie le Gall 298

A Ortodoxia russa Monolitismo e cisões (séculos xvi-xviii)

A metrópole de Rhossia, criada nos finais do século X, depois da conversão do príncipe Vladimir, preserva a sua unidade e permanece sob a tutela do patriarcado bizantino até 1448. Então, torna-se autocéfala, porque rejeita a união de Florença (1439) que os bizantinos aceitaram provisoriamente. Mas, como o metropolita russo (o chefe desta Igreja) é eleito em Moscovo, por instigação do soberano local, o rei da Polónia recusa-se, desde 1458, a reconhecer a sua autoridade e subtrai à metrópole russa quase metade das suas dioceses. Desde então, coexistem uma Igreja ortodoxa rutena que se mantém, mais ou menos, nos territórios orientais da Polónia-Lituânia, e uma Igreja russa, cuja alçada coincide muito rapidamente com os limites da Moscóvia e, depois, do Império Russo. Os laços entre a Igreja e o Estado apertam-se ainda mais durante o período moderno, em que a fé ortodoxa desempenha um papel central na constituição de uma identidade nacional. Todavia, a Igreja russa também tem de enfrentar dissidências importantes.

Do patriarcado ao santo sínodo: a Igreja burocratizada

As relações entre a Igreja e o Estado evoluem no sentido de uma subordinação cada vez mais forte do espiritual face ao temporal. Entre 1448 e 1547, o grão-príncipe de Moscovo é o árbitro da eleição do metropolita russo e assegura-se de que os bispos sufragâneos, em particular o de Novgorod, permanecem na sua obediência. Ivan III (1462-1505), Vasilij III (1505-1533) e os boiardos que asseguram a regência durante a menoridade de Ivan, o Terrível, (1533-1547) não hesitam em depor os prelados que os incomodam. A instabilidade cessa quando Macário, uma das grandes figuras eclesiásticas do seu tempo, se torna metropolita (1542-1563). 299

Page 194: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Macário é o organizador da coroação imperial de Ivan, o Terrível, (16 de Janeiro de 1547) que refunda o regime monárquico russo sobre o modelo bizantino. Também encoraja o czar a conquistar os canatos (reinos dirigidos por um cão [chefe mongol]) tártaros de Cazã e Astracã (1552-1556). Esta vitória, que abre aos russos o acesso ao mar Cáspio e à Sibéria, é celebrada com a construção da igreja conhecida com o nome de Basílio, o Bem-aventurado, na praça Vermelha (1555-1560) e, sobretudo, com a fundação do arcebispado ortodoxo de Cazã (1555), que, deste modo, se torna a vanguarda da Ortodoxia. Os russos, porém, contentam-se com ter um metropolita ao lado do seu czar e Ivan, o Terrível, não hesita em mandar depor e, depois, assassinar um dos sucessores de Macário, Filipe Kolytchev (1569). Abre-se uma nova etapa em 1589, no reinado de Feodor, filho de Ivan, o Terrível, que obtém do patriarca de Constantinopla a criação de um patriarcado russo. Desta vez, o modelo bizantino é restaurado em Moscovo. A Igreja pode desempenhar um papel decisivo nos negócios do Estado. Em 1598, quando se extingue a dinastia moscovita, o patriarca Job apoia a eleição do czar Boris Godounov. No tempo das perturbações, outro patriarca, Hermógenes, apela à população para que só aceite um czar russo e expulse os polacos do país (1610-1612). Doravante, o sentimento nacional em formação assenta nesta identidade entre russa e ortodoxa. Finalmente, a Rússia conhece uma situação que lembra a da Sérvia medieval, quando o czar é Mikhail Fedorovitch Romanov (1613-1645) e o patriarca, seu próprio pai, Pilarète (1619-1633). Contudo, o período patriarcal dura somente um século (1589-1700). Com efeito, por morte de Adriano, que freqüentemente tinha perorado contra a ocidentalização dos costumes, Pedro, o Grande, deixa o trono patriarcal vacante durante vinte anos e apodera-se regularmente das receitas da Igreja para ajudar o esforço de guerra contra a Suécia. Ademais, limita estritamente o acesso dos jovens à carreira monástica e proclama a tolerância dos cultos não ortodoxos entre os súbditos não russos. Finalmente, impõe à Igreja um regulamento eclesiástico que a subordina ao Estado (1720). O patriarca é substituído por um santo sínodo, assembleia eclesiástica que, a partir de 1722, é presidida por um ober-prokuror leigo designado pelo imperador. O clero tem de jurar fidelidade ao czar e velar pela lealdade dos fiéis, sem sequer se poder escusar com o segredo da confissão. Catarina II acaba esta obra, procedendo à confiscação dos bens da Igreja, em 1764.

Do Stoglav ao Raskol: disciplina e dissidências

O início do reinado de Ivan, o Terrível, entre 1547 e 1564, é não só marcado com a coroação imperial e a tomada de Cazã, mas também por importantes reformas. A obra realizada na Igreja começa por ser de 300

Macário, mas o czar interessa-se muito por ela. O sínodo de 1547 é o primeiro a propor "novos" santos russos à veneração dos fiéis. Em 1551, o Sínodo dos Cem Capítulos (Stoglav) esforça-se por restaurar a disciplina, tanto no seio do clero como entre os fiéis, e desenvolver

Page 195: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

em todos os escalões uma administração eclesiástica que escapa às ingerências dos leigos. Também é esta assembleia que prescreve que os pintores de ícones tomem como modelo a Trindade de Rublev. Entretanto, um século mais tarde, ainda se sente vivamente nas altas esferas da Igreja a necessidade de enquadrar melhor os fiéis e de corrigir as lições em falta nos livros litúrgicos. Forma-se, então, junto do czar Alexis (1645-1676), um círculo de "zeladores da piedade" que pretende realizar bem estas tarefas. Em 1652, um dos seus membros, Nikon, é feito patriarca. Precipitadamente, lança uma série de reformas que suscitam a rejeição dos seus antigos companheiros, em particular do arcipreste Avvakum. De facto, preocupado com estar em perfeita conformidade com o rito grego, Nikon ousa corrigir a ortografia do nome de Jesus, a maneira de fazer o sinal da cruz ou de pronunciar o aleluia... Para os seguidores da devoção tradicional ou velhos-crentes, estas inovações anunciam o reino do Anticristo. Nikon começa por mandá-los calar, intimidando-os ou exilando-os, como Avvakum. Mas o autoritário patriarca desavém-se com o czar e renuncia ao exercício do seu cargo em 1658. Inicia-se um período confuso, durante o qual os velhos-crentes multiplicam as petições e protestos, construindo verdadeiras redes. O czar convoca um concílio em 1666. A assembleia depõe Nikon, consagrando assim a destituição da função patriarcal. Mas também condena como cismáticos (raskolniki) os defensores da velha fé. Avvakum e os seus mais ardentes companheiros são exilados para além do círculo polar. Apesar disso, continuam a dar testemunho e as suas obras são difundidas clandestinamente. Por fim, são queimados, em Abril de 1682. Já haviam surgido outros mártires, como a "boiarina" Morozova, morta no exílio em 1675, ou os monges da famosa abadia de Solovki, no mar Branco, que as tropas do czar tomaram de assalto em 1676. A cisão continuou a aumentar porque os mujiques das aldeias afastadas ou os cossacos dos confins da Rússia entram em contacto com velhos-crentes, em ruptura de banimento, e freqüentemente são receptivos à sua mensagem. Por seu lago, a Igreja denuncia todos aqueles que lhe resistem como "cismáticos". Portanto, é erróneo falar "do" Raskol. Desde 1694, distinguem-se duas dependências, os "presbiterianos" (popovtsy) e os "sem-padres" (bespopovtsy). Por outro lado, a resistência toma uma infinidade de formas locais: comunidades paramonásticas, famílias de comerciantes-empresários combinando mística e têxtil, vagabundos a pregar o fim do mundo, bandos de rebeldes saqueando as zonas rurais... Pedro, o Grande, concede uma tolerância precária aos velhos-crentes em 1716, desde que eles se registem e paguem um imposto duplo. Mas os 302

defensores da velha fé continuaram em ruptura com o Estado e a Igreja e são perseguidos, intermitentemente, até 1905. Apesar destas dificuldades extremas ou por causa delas, eles seguem e conservam um importante património textual que constitui a primeira literatura dissidente na Rússia (um dos seus corolários é a autobiografia do arcipreste Avvakum). Pierre Gonneau 303

QUARTA PARTE

O TEMPO DA ADAPTAÇÃO AO MUNDO CONTEMPORÂNEO (séculos XIX-XXI)

Page 196: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Ao longo dos dois últimos séculos, o cristianismo foi visado e freqüentemente afectado por perturbações que lhe impuseram uma adaptação permanente. A exegese histórico-crítica modificou profundamente a leitura dos textos sagrados. Neste aspecto, alguns sábios, na maioria protestantes, desempenharam o papel de iniciadores. A Igreja católica, durante muito tempo reticente ou até hostil, mostrou-se finalmente favorável à nova investigação. Durante este mesmo período desenharam-se figuras de santidade, todas de humildade, de abandono, impregnadas de infância espiritual, devotadas a uma piedade seráfica, avivada pela renovação do culto mariano. A chegada da sociedade industrial e todas as transformações económicas e sociais que daí resultaram fizeram evoluir os procedimentos da acção social e caritativa. A promulgação da encíclica Rerum novarum constitui, neste domínio, um acontecimento significativo. Os séculos XIX e XX foram marcados pela forte influência de múltiplas ideologias. O liberalismo, o socialismo, o marxismo e o nazismo obrigaram os cristãos a tomar posição a seu respeito. O magistério católico, nomeadamente, teve de se pronunciar; daí uma série de condenações cuja lógica e grau de firmeza são aqui claramente expostos. A partir de 1870, o papado foi confrontado com a perda dos Estados pontifícios e, portanto, com a de todo o poder temporal. A intransigência foi substituída por uma aceitação resignada, depois resoluta. O Concílio Vaticano II, que foi aberto em 1962, manifesta claramente o esforço intenso realizado pela Igreja católica para se adaptar ao mundo moderno. A exploração dos últimos territórios desconhecidos do planeta, a retoma, em grande escala, de uma colonização orientada segundo novas modalidades conduziram à remodelação da actividade missionária. Os padres e as religiosas idos dos territórios da cristandade tradicional dão progressivamente lugar ao clero e aos leigos dos países até pouco antes considerados terras de missão. Na longa perspectiva da história do cristianismo que é a nossa, resta a importância dos esforços realizados para unir todos os cristãos e a expectativa suscitada pela instauração recente do diálogo inter-religioso. Alain Corbin 307

I

A EVOLUÇÃO DA EXEGESE BÍBLICA E DAS FORMAS DA PIEDADE

A Bíblia e a história das religiões (séculos XIX-XX)

No século XVII, os "modernos", opostos aos "antigos", não encontravam as suas raízes no passado, mas julgavam ter dado um salto para um mundo novo, iluminado pelas luzes da razão. Contudo, desde o século XVIII, desenha-se uma reacção contra este desdém em relação à herança. À imagem do indivíduo, não teria, porventura, a humanidade passado por etapas cuja descrição ofereceria uma "história do espírito humano"? E, em certo sentido, a etapa mais primitiva não seria a mais promissora, a mais fresca e a mais fecunda? Neste entusiasmo

Page 197: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

romântico em relação à origem destaca-se o pensamento de Schelling sobre o mito. O mito não é um artifício mentiroso forjado pela aliança dos déspotas e dos padres, mas sim o cadinho da humanidade. Muito mais do que invenções do homem, é na língua, na sociedade e na religião, e por elas, que o homem se inventa a si próprio. Este regresso jubiloso dos fiéis do cristianismo à tradição exige deles que aceitem que a Palavra divina também é sempre e ao mesmo tempo uma palavra humana, e, como tal, submetida aos acasos da história: "Se não houve história sem religião, também não houve religião que não tivesse sido sujeita a todas as leis gerais da história" (Littré). Recuperada pela cultura, introduzida na "lenda dos séculos", a velha história sagrada também vai ser dissecada pelo escalpelo dos historiadores. Um após outro, os livros do Antigo e do Novo Testamento são interrogados nos seus mínimos pormenores. Merecerão a confiança do historiador? E, em primeiro lugar, terão sido compostos pelos autores a quem a tradição os atribui? É evidente que não. O Pentateuco é uma compilação posterior ao exílio de Babilónia, que reúne quatro documentos cuja redacção vai da época real (Salomão) até ao regresso do exílio. Os Evangelhos não são obra de testemunhas directas, mas colecções de tradições sobre Jesus, interpretadas 309

diferentemente segundo as visões do redactor final. Na primeira metade do século XIX, nasce a hipótese de que Marcos poderia ser a fonte dos dois outros sinópticos, completada por uma colectânea de discursos. Esta hipótese fortalecer-se-á no final do século e ainda é aceite actualmente. Compostos numa data afastada dos acontecimentos que transmitem, os relatos bíblicos acabam por perder o seu carácter de testemunho histórico. Remetem sobretudo para uma fé da comunidade de onde saíram e tratam de problemas religiosos que então se lhe punham, referindo as soluções encontradas pelo seu herói/fundador: Moisés ou Jesus. Na Vida de Jesus (1835-1836), David Friedrich Strauss tenta demonstrar que o relato evangélico é concebido unicamente em função das crenças judaicas: trata-se de um relato "arranjado", para demonstrar que Jesus de Nazaré era realmente o Messias esperado. Este livro gera numerosas refutações e custa ao autor o seu lugar de leitor/prefeito em Tubinga. Para o Antigo Testamento, a revolução operada consiste em sustentar que os verdadeiros fundadores da religião de Israel são profetas do século VIII a. C. São eles os inventores de uma Lei (a Tora) de que não se encontra nenhum vestígio antes deles (obra importante de Julius Wellhausen: Prolegomena zur Geschichte Israelis, 1883). Todas as obras do protestantismo alemão são difundidas em França graças aos trabalhos do sábio alsaciano Édouard Reuss e ao encanto da pena de Renan; bom conhecedor da ciência germânica, vulgariza tranqüilamente as suas conclusões (Vida de Jesus, 1863; História do Povo de Israel). Este desenvolvimento da ciência histórica no campo da Bíblia encontra ecos no seio do judaísmo alemão, que vai interessar-se pela sua própria história. O esforço dos sábios judeus, que procuram a assimilação no meio de povos cristãos, leva-os a interessarem-se pela figura de Jesus e a colocá-lo entre os sábios de Israel. Mas o realce sobre a judaicidade de Jesus não cativa ninguém entre os cristãos. Os defensores da definição teológica de Jesus pela cristologia conciliar do século IV acham-no muito diminuído por esta leitura judaica da sua história. São ou os católicos ou os protestantes chamados "ortodoxos" (em França, "evangélicos"). Perante eles, agrupam-se os protestantes ditos "liberais", que aceitam a aplicação da história à Bíblia. Consideram que a judaicidade de Jesus constitui uma concessão aos ouvintes da sua mensagem e que é unicamente a roupagem sob a qual se oculta "a religião de Jesus" (quer dizer, a sua consciência religiosa). A mensagem

Page 198: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

de Jesus é tão-só a revelação do Pai celeste, infinitamente amante e misericordioso: esta é a essência do cristianismo, liberta de toda a dimensão tomada da escatologia judaica. Esta mensagem do protestantismo liberal ecoou poderosamente na Europa; foi levada para a França pelas vozes de Auguste Sabatier e de Maurice Goguel. Depois, esta descrição da religião de Jesus acaba por parecer arbitrária. Porque, objecta Rudolf Bultmann, não conhecemos grande coisa da sua vida e dos seus actos (Geschichte der synoptischen Tradition, 1921). Mas a sua mensagem é clara. Anuncia a interpelação absoluta de Deus, mostrando que o homem 310

é obrigado a decidir-se prontamente pelo Reino, sempre oferecido e jamais possuído. E, embora os discípulos de Bultmann tenham procurado ser mais firmes que o mestre quanto à manifestação histórica de Jesus, eles continuam vigilantes face a qualquer tentativa de ver na Igreja uma grandeza deste mundo (o que, para eles, é a tendência do catolicismo) e a sua exegese do Novo Testamento contém permanentemente o traço desta preocupação. O movimento da exegese protestante nos séculos XIX e XX é tão vivo que a exegese católica tem dificuldade em seguir o seu andamento. Ela segue-o de longe, e o seu arcaísmo, nos anos 1840, afastou para sempre o jovem Renan do catolicismo. Ela começou por ceder sobre a exactidão e sobre a precisão da cronologia bíblica, depois dos achados de Boucher de Perthes nas suas grutas. Em geral, a exegese e a teologia católicas foram mais rapidamente receptivas aos resultados das ciências naturais do que cederam aos assaltos do historiador com receio de um novo "processo Galileu". Em contrapartida, as proposições condenadas de Alfred Loisy (decreto Lamentabile sane exitu e encíclica Pascendi, 1907), os vexames sofridos pelo dominicano Joseph-Marie Lagrange e os obstáculos postos ao sucesso da sua grande obra, a fundação da Escola Bíblica de Jerusalém, visavam directamente conclusões da ciência histórica. Loisy aceitou o combate e foi excomungado; Lagrange submeteu-se, mas continuou suspeito até à sua morte. O descontentamento dos exegetas católicos terminaria em 1943 com a publicação pelo papa Pio XII da encíclica Divino afflante Spiritu, que lhe permitiu trabalhar mais livremente. O ensino deste texto foi completado pelo da constituição Dei Verbum, votada pelo Concílio Vaticano II. Ela procura alcançar um certo equilíbrio entre a afirmação da historicidade dos Evangelhos e o reconhecimento do trabalho da tradição (e dos últimos redactores) sobre os relatos. No fim do século XX, os exegetas católicos aderiram ao grosso do grupo dos "biblical scholars". O movimento da ciência bíblica durante o período aqui tratado está longe de fluir como um "longo rio tranqüilo". Foi pontilhado de paragens e retomas. Não apenas gerou disputas entre sábios, mas também provocou debates vivos na opinião pública, nomeadamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Em França, a neutralidade imposta às ciências religiosas na instituição universitária endureceu freqüentemente os conflitos e o que os exegetas ganharam em reconhecimento da parte dos seus colegas foi interpretado nos meios tradicionalistas como uma vil concessão ao século. Nos finais do século XX, impelido pela cultura americana, o interesse dos exegetas desliza do valor histórico da Bíblia para o seu fecho canónico e para as suas qualidades literárias. Que efeitos históricos se produziram com o encerramento do cânone bíblico, com o seu duplo "Testamento", pondo fora deste cânone os livros declarados apócrifos? Como é que a revelação divina é perceptível através dos diferentes géneros literários da Bíblia (relatos, poemas, provérbios e leis)? Estas orientações novas não 311

Page 199: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

significam a extinção de todo o interesse pela história: a de Israel continua a ser minuciosamente inspeccionada pelos arqueólogos assim como pelos historiadores, e o núcleo histórico, para o período pós-exílico, contrai-se cada vez mais. A história das origens cristãs torna-se bastante tributária das investigações sobre o judaísmo essénio ou fariseu e a importância da fonte Q (os discursos de Jesus referidos em comum por Mateus e Lucas) é reforçada pelo seu lugar preponderante no Evangelho apócrifo de Tomé. Doravante, a Bíblia nunca mais procura o seu lugar na cultura, usando o raciocínio apologético que a estabelecia em lugar único de "verdadeira religião". Ela manifesta a sua singularidade através da força da sua expressão poética ou da sua inspiração religiosa; inspirada na medida em que é livremente percebida como inspiradora. François Laplanche 312

João Maria Baptista Vianney, cura d'Ars (1786-1859)

O santo cura. Estas duas palavras designavam, já em sua vida, aquele que iria tornar-se o bem-aventurado (1905), depois o santo (1925) cura d'Ars, patrono dos párocos de França (1905), depois do universo (1929), aquele cuja "admirável figura sacerdotal" foi celebrada em Julho de 1959 pelo papa João XXIII, aquele em quem o papa João Paulo II, que vai pessoalmente a Ars no dia 6 de Outubro de 1986, glorifica o "pastor sem igual que ilustrou o cumprimento pleno do ministério sacerdotal e ao mesmo tempo a santidade do ministro". Contudo, a consagração de um simples padre não seria algo tão evidente no século XIX, em que o catolicismo, acabado de ser restaurado depois da Revolução, fez nascer um clero assalariado do Estado, submisso à dupla tutela do bispo e do prefeito, cuja existência era limitada pela estreiteza dos horizontes aldeãos, pelas múltiplas obrigações do ministério rural e pela autoridade concorrente do maire e do professor primário. Por vezes, no coração de uma santidade, há a exemplaridade e a excepcionalidade. Nascido a 8 de Maio de 1786 em Dardilly, perto de Lião, no seio de uma família de camponeses proprietários, o futuro cura d'Ars tem sete anos quando a Convenção começa a "descristianizar" a República; confessa-se aos onze a um padre refractário; comunga aos treze anos numa granja. Este rapaz piedoso, que "estava quase continuamente ocupado a rezar" - dirá uma testemunha -, viveu uma experiência de perseguição religiosa que não só fortaleceu, como também simplificou a sua fé. Dos missionários clandestinos que, com perigo de vida, lhe levaram os sacramentos, ele recordará "a eminente dignidade do padre": "Se eu encontrasse um padre e um anjo, saudaria o padre antes de saudar o anjo." Da experiência da descristianização, ele concluirá que é necessário recolocar Deus e os sacramentos no centro da vida religiosa das populações: "Deixai uma paróquia vinte anos sem padre e adorar-se-ão os animais" - diz ele. - "Onde já não há padre, também não há sacrifício; e onde não 313

há sacrifício também não há religião." João Maria Vianney pertence à geração dos jovens padres da Restauração; partilha as suas origens maioritariamente rurais, a formação acelerada, o ardor, a intransigência e a piedade. Formado já tarde pelos cuidados de um padre austero,

Page 200: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Charles Balley, antigo cónego da congregação de Santa Genoveva, não freqüentou o seminário menor, mas uma simples "escola presbiteral"; desertou em Outubro de 1809 para não ir para a guerra em Espanha e refugiou-se durante catorze meses nos montes de La Madeleine; dominava mal o latim: em Dezembro de 1813, foi excluído do seminário maior Saint-Irénée de Lião como debilissimus; fará o exame de teologia em francês*. Foi ordenado padre com a idade de vinte e nove anos, em plena debandada em Grenoble, a 13 de Agosto de 1815; e logo colocado em "formação contínua junto do padre Balley, como vigário em Écully, às portas de Lião. Este jovem padre mal classificado herda em 1818 uma paróquia ínfima, completamente rural: Ars-en-Dombes, do outro lado do Saône, acima de Trévoux, com cerca de duzentos e cinqüenta habitantes; a paróquia tinha ficado oito anos sem padre e o campanário tinha sido derrubado no ano 11 [1892]. O padre Vianney ficará nela até à morte, durante quarenta e um anos. "Desejo uma paróquia pequena, que possa governar melhor e onde possa santificar-me melhor", confia o jovem cura. Ele concebe o seu ministério como uma obra de conversão colectiva, vivida sob o sinal da unanimidade reencontrada, com receio do Juízo Final. A conversão da aldeia aparece primeiro através de um testemunho pessoal de que se fará eco em 1862 um rendeiro da aldeia: "Quando o padre Vianney entrou na paróquia, pareceu-nos primeiro cheio de bondade, de alegria e de afabilidade; mas nunca poderíamos acreditar que seria tão profundamente virtuoso. Notámos que ele ia muitas vezes à igreja e que ficava lá muito tempo. Não tardou a espalhar-se o rumor de que ele levava uma vida muito austera. Não tinha criada, não ia cear ao castelo como o seu predecessor, não ia visitar os seus confrades nem os recebia em sua casa. O que nos impressionou muito foi que começámos por nos aperceber de que não guardava nada; estávamos admirados com uma conduta tão pouco comum e, desde então, dizíamos uns aos outros: o nosso cura não é como os outros." Difundiu-se um boato: o cura alimenta-se de batatas estragadas; multiplica os jejuns e as macerações; no presbitério, ouvem-se uns barulhos estranhos: é o diabo, o "grappin", o "fateixa". Esta percepção muito localizada de uma "santidade" é acompanhada por uma pastoral coerente, que haveria de provocar o "regresso" dos habitantes à prática religiosa. Primeiro, passa pelas raparigas, organizadas em confraria; depois, pela luta contra o cabaré e o baile, com o risco de chocar de frente com os jovens da aldeia; finalmente, para os pais de família, chamados a restabelecer a sua autoridade sobre os seus filhos e

* Nos anos 50 e inícios de 60 do século XX, ainda se faziam os exames escritos e orais de teologia em latim, em seminários portugueses. (NT) 314

os seus familiares e criados. A sua pastoral também passa pela restauração material da igreja (o cura gastou nela a sua magra herança), pela solenidade do culto e pela observação das práticas cristãs: em Ars, não se trabalha ao domingo; e, em 1855, só sete ou oito habitantes não comungam pela Páscoa. A 6 de Agosto de 1823, o cura conduz de barco e, depois, a pé o seu "povo" em procissão ao santuário mariano de Lião, Notre-Dame de Fourvière, "precedido de três belos estandartes, cantando cânticos, hinos e recitando o terço". A conversão colectiva de Ars parecia alcançada. No entanto, um facto novo veio ameaçar esta unanimidade reencontrada: o nascimento de uma peregrinação. Pela tensão estabelecida pela peregrinação

Page 201: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

(prática individual, penitencial, por vezes "pânico") com a paróquia (prática colectiva, diária, usual), o cura d'Ars entra resolutamente, muito perturbado (por duas vezes, em 1843 e, depois, em 1853, ele tentará fugir da aldeia para ir "chorar a sua pobre vida" e "preparar-se para a morte"), na modernidade do século XIX. Longe de poder encontrar a paz do coração numa "ilhota de cristandade", ele tem de enfrentar o vento do mar alto, a individualização das condutas religiosas, a descristianização dos meios rurais e das cidades, as conseqüências religiosas da industrialização e da urbanização, a procura desvairada do perdão, da cura e da salvação, sem contar com o ciúme dos seus "confrades". O nascimento da reputação local do cura d'Ars data das missões da Restauração, quando, nos finais dos anos 1820, ele foi convidado a pregar nas comunas circunvizinhas, até Trévoux e Villefranche; já então ele vê o seu confessionário assaltado por penitentes. O "rumor d'Ars" dissemina-se. Quando a revolução liberal de Julho de 1830 proibiu as missões, é precisamente a Ars que vão os que querem ver, ouvir e tocar o "santo cura", que se transforma num "missionário imóvel". Nos anos 1850, são entre sessenta a oitenta mil os peregrinos que, todos os anos, se dirigem a Ars, a pé, a cavalo, em diligência ou a partir das gares mais próximas. Isso perturba a vida do padre: "prisioneiro das almas", ele confessa sem cessar, oito a doze horas por dia, consoante as estações, e prega o catecismo diante de multidões atentas, na escola da Providência. A sua reputação cresce; os viajantes e as cartas afluem à aldeia, que se dota de hotéis, lojas e transportes. Através do sacramento da penitência, vai-se até ele como a um vidente que revela o passado, o presente e o futuro; como a um taumaturgo que cura não só as almas, mas também os corpos, à maneira da sua "santinha", Filomena, cujo culto ele difunde e até o nome; como a um "santo vivo" cuja imagem se multiplica ("o meu Carnaval", dizia ele), deixando-o aborrecido. Quando ele morre, a 4 de Agosto de 1859, com a idade de setenta e três anos, rodeado pelo seu bispo e por um clero numeroso, habitantes e peregrinos disputam o seu corpo: João Maria Vianney ganhou um lugar na história do catolicismo francês como "cura universal". Philippe Boutry 315

A renovação da teologia e do culto marianos

Imediatamente após o Concílio de Trento (1545-1563), a Virgem dos tempos modernos torna-se a Senhora do catolicismo reconquistador, face aos avanços da Reforma, que suspeita de idolatria a devoção a Maria. A Contra-Reforma católica é menos reactiva do que a visibilidade que dá ao culto mariano. No século XVII, as igrejas da Virgem das Vitórias e da Virgem do Loreto, com louros vitoriosos, implantam-se por toda a Europa católica onde, por sua vez, as monarquias convocam a figura vitoriosa da Virgem para construir ou consolidar o seu poder. A Imaculada legitima, por exemplo, as tentativas de restauração monárquica dos Estados ibéricos. O "voto de Luís XIII" (10 de Fevereiro de 1637) coloca a França sob a protecção mariana. O rosto da Virgem serve igualmente os desígnios dos missionários, que procuram evangelizar o Novo Mundo, vasto território por definição "virgem" de cristianismo. É igualmente nas imagens marianas que o clero das missões interiores - Pierre de Bérulle (+ 1629), João Eudes (+ 1680) e Louis-Marie Grignion de Montfort (+ 1716) - encontra os meios de evangelização profunda das aldeias europeias no século XVIII. Voto a Maria, imitação das suas

Page 202: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

virtudes, santa escravidão mariana e recitação do rosário constituem as práticas devocionais mais difundidas. É no contexto de um progresso das peregrinações aos santuários marianos que a Revolução de 1789 conduz a Mãe de Deus ao exílio e entroniza a deusa Razão em Notre-Dame de Paris. Depois da Revolução Francesa, a Virgem encontra uma visibilidade sob a forma de uma estátua vestida de branco e azul, num século XIX atravessado por sincretismos religiosos. Por volta de 1830, os ilustradores dos catecismos da rua Saint-Sulpice, em Paris, ainda dão à Virgem um rosto da mulher-flor dos românticos. As imagens piedosas cheiram a rosa e a violeta. Por sua vez, as associações das "filhas de Maria", fundadas em 1845, andam em procissão vestidas de branco e de azul. As suas mães 316

procuram seguir o exemplo da mãe desta Sagrada Família que o novo catecismo social procura difundir. Nossa Senhora da Graça, da Caridade, da Piedade ou Auxiliadora apoia a maioria silenciosa das massas laboriosas e trabalhadoras num quadro de ascensão dos socialismos. Durante os anos 1830-1840, revivem numerosas peregrinações marianas como, por exemplo, ao Puy. O restabelecimento das festas dos padroeiros, a redescoberta de estátuas milagrosas levadas solenemente para os altares acompanham o novo lançamento do culto mariano. Em 1858, as aparições da Virgem em Lourdes precipitam as multidões em oração para o lugar das visões da pastora Bernardette Soubirous. A crença nas aparições marianas, que aumenta, é instrumentalizada nos grandes debates do século: Igreja contra o Estado, catolicidade contra laicidade, milagre contra a ciência, etc. A autentificação das aparições pela Igreja (La Salette, 19 de Setembro de 1851; Lourdes, 18 de Janeiro de 1862, etc.) inscreve-se numa estratégia. Como na Idade Média, o aval dado às aparições acompanha a evolução do dogma. É o caso da crença na Imaculada Conceição, que, de doutrina aprovada, se torna dogma revelado em 1854, quatro anos antes de a Virgem de Lourdes declarar: "Eu sou a Imaculada Conceição." Desde 1835, a estampagem de milhares de exemplares da medalha milagrosa e da sua inscrição revelada a uma filha da Caridade, Catarina Labouré (+ 1876) - "Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós" -, preparou o terreno para o reconhecimento dogmático. A introdução dos termos "Imaculada Conceição" nas ladainhas do Loreto, as petições do povo cristão, a consulta aos cardeais e, depois, ao conjunto do episcopado católico precipitam o movimento. A definição solene da Imaculada Conceição de Maria é proclamada pelo papa Pio IX, a 8 de Dezembro de 1854 (bula Ineffabilis Deus). Ele declara "doutrina revelada por Deus" a isenção de Maria do pecado original desde o primeiro instante da sua existência. Esta definição torna-se mais um obstáculo em relação às Igrejas do Oriente e às da Reforma. De facto, protestantes e ortodoxos negam a Maria a isenção, porque não tem apoio na Escritura e torna-se tributária da interpretação do pecado original pela tradição ocidental, diferente da do Oriente. A proclamação do novo dogma mariano inscreve-se igualmente num contexto de afirmação do poder papal. Ela precede a proclamação do dogma da infalibilidade pontifícia pelo Concílio Vaticano I (1870), outro ponto de desacordo entre as Igrejas cristãs. Depois desta data, face às doutrinas liberais e anticlericais, a figura apocalíptica da mulher que combate o dragão torna-se o símbolo da luta da Igreja católica e romana contra os perigos revolucionários do presente. Aliás, a Virgem ganha os contornos da Mulher forte do Antigo Testamento. Do alto dos seus cinco, dez ou vinte metros de altura, do cimo dos rochedos e das torres sineiras de França, Ela domina, esmagadora, com a sua

Page 203: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

estatura imponente, uma serpente que tem o nome de todos os universalismos do momento, sejam laicos ou republicanos. 317

A seguir à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e à revolução russa de 1917, os milagres e as aparições continuam a ser instrumentalizados. Assim, as releituras apocalípticas das aparições de Fátima (1917) alimentam a propaganda anticomunista durante as duas guerras. A Senhora do Céu entra igualmente no discurso de um catolicismo radical e intransigente em que primam a autoridade e o antimodernismo. É esta Virgem quem domina toda a primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, esboçam-se novas tentativas de construção da figura mariana, entre tradição e modernidade. O seu rosto de "Rainha da Paz", título acrescentado às ladainhas do Loreto por Bento XV (1914-1922), participa nos esforços da reconstrução moral, religiosa e pacífica do pós-guerra. O seu coração cravado de espinhos responde imediatamente às expectativas da devoção das mulheres particularmente provadas pela Grande Guerra. Por outro lado, a sua imagem universal acompanha os programas de evangelização maciça das colónias de África, da Ásia e da índia. Entre o Vaticano I (1870) e o Vaticano II (1962-1965), a devoção mariana é igualmente relançada pela inscrição de novas festas no calendário romano. Em 1944, a do Coração Imaculado de Maria (22 de Agosto) é imposta por Pio XII a todo o rito romano, dez anos antes da de Maria Rainha (31 de Maio). O culto de Maria honra-se também com um novo dogma. Apoiando-se no privilégio da infalibilidade, o papa Pio XII proclama, em 1950, a Assunção da Virgem "elevada em corpo e alma à glória celeste" (Constituição apostólica Munificentissimus Deus, 1 de Novembro de 1950). Doravante, está encerrada a reflexão sobre a origem e o fim terrestre de Maria, que tinha preocupado os espíritos desde a época patrística. Por isso, a teologia mariana de meados do século XX vê-se obrigada a fazer uma escolha: aprofundar ainda mais estas definições ou, ao contrário, pensar num outro rosto da Virgem. O Concílio Vaticano II (1962-1965) abre o debate. A Constituição Lumen gentium insiste na recentragem cristológica da devoção e na necessidade de uma redefinição do lugar de Maria na história da salvação e da Igreja. Uma série de encíclicas e de documentos - de Marialis cultus de Paulo VI (1974) a Redemptoris mater de João Paulo II (1987) - vem completar e precisar as orientações do Vaticano II. A pastoral com tonalidade mariana lançada por estes papas à escala planetária dinamiza novamente uma devoção que, rapidamente, começa a perder velocidade a partir dos anos 1950 (bastará pensar no "ano mariano de 1986-1987"). O culto dedicado a Maria continua, definitivamente, à procura do seu caminho. Sylvie Barnay 318

Teresa do Menino Jesus (1872-1897)

Thérèse Martin - em religião, Teresa do Menino Jesus e da Santa Face - é também muito conhecida por Teresa de Lisieux. Aliás, os papas não demoraram muito a classificá-la: a "maior santa dos tempos modernos" (Pio X), a "flor do meu pontificado" (Pio XI). Empregaram os meios necessários para fazer reconhecer a sua santidade. Faleceu em 1897, foi canonizada em 1925. Dois anos mais tarde, é proclamada padroeira das missões. Um único passo em falso: Pio

Page 204: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

XI não aprecia a idéia do padre Desbucquois (1932) de a proclamar, a ela, uma mulher, doutora da Igreja. Mas, em Í944, Pio XII faz dela padroeira para a França em guerra. Em 1947, as suas relíqüias fazem uma primeira viagem pela França. Meio século mais tarde, em 1997, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, Teresa é colocada entre os doutores da Igreja, a terceira mulher a gozar desta honra, mas a única "doutora" dos tempos modernos. E, passados alguns anos, as suas relíqüias fazem uma viagem triunfal pelo mundo. Contudo, não foi a hierarquia quem criou Teresa: contentou-se com canalizar o surgimento desta nova figura de santidade, cuja doutrina (o "caminhinho") era acessível através dos textos reescritos e editados (História de uma alma, 1898), e cujos abundantes milagres reunidos pelo Carmelo (Chuvas de rosas) mostrariam o poder de intervenção junto de Deus. As razões desse sucesso? Primeiro, a figura de Teresa testemunha a riqueza espiritual do Carmelo francês. Nunca as carmelitas foram tão numerosas, com mais de 140 conventos; nunca elas irradiaram tanto para o exterior, da Palestina à Indochina. Ao mesmo tempo, abandonaram, com alguma dificuldade, a tradição depauperada da escola francesa de espiritualidade, para conceder mais importância à grande mística espanhola: Teresa, leitora de João da Cruz, é testemunha privilegiada deste "regresso às origens". Teresa e, na sua esteira imediata, Isabel da Trindade, ou a árvore carmelita julgada pelos seus frutos. 319

Outro contexto, mais conjuntural - a viragem que se opera em França a partir dos anos 1880: sufocação das congregações activas e novo interesse pela via contemplativa; movimento de conversão nos meios literários e intelectuais; por fim, renovação dos escritos espirituais. Teresa, também ela convertida, dirá na sua autobiografia, inscreve-se perfeitamente nesta conjuntura. A História de uma Alma inaugura um novo tipo de obra de espiritualidade, mais moderna na sua escrita, mais centrada em Cristo. O sucesso de Teresa coincide finalmente com a crise modernista: Roma favorece, contra uma inteligência suspeita e condenada, a revelação do íntimo, da via do coração, do recurso à comunhão freqüente ou, até, diária. A jovem carmelita também está neste encontro. Entretanto, Teresa existe primeiro por si mesma. Singular, mas não única, sublinhou-se o peso de um contexto familiar incómodo que, até à sua morte, a marcará e fragilizará. Em todo o caso, as imagens são conhecidas: Teresa em família, em Alençon, com sua mãe; Teresa nos Buissonnets com o seu pai e as suas irmãs; Teresa no Carmelo com as suas três irmãs e a sua prima. Seria preciso acrescentar a glória de Teresa graças às suas irmãs mais velhas, madre Inês (a sua prima Paulina) antes de tudo. Teresa é a última de nove filhos, dos quais cinco filhas que viverão. A sua mãe esgota-se nas maternidades e numa grande empresa de rendas de Alençon: e morre com um cancro da mama quando a filha mais nova dos Martin tem quatro anos. Perda irremediável. A família passa para a protecção do tio Guérin, farmacêutico em Lisieux, porque o pai Martin, homem de idade, amável e piedoso, não conseguiria educar sozinho as cinco filhas. Lisieux é um refúgio de paz para Teresa até que Paulina, sua "mãezinha", a segunda das cinco, escolhe entrar no Carmelo: ruptura insuportável para esta criança de dez anos, que se traduz numa doença estranha, curada depois de uma novena a Nossa Senhora das Vitórias. Quatro anos mais tarde, Maria, a mais velha, junta-se a Paulina no Carmelo. Aos catorze anos, no Natal de 1886, Teresa conhece uma repentina saída da infância, um brusco amadurecimento, ruptura a propósito da qual ela falará de conversão. Com toda a certeza no Verão de 1887, Jesus quer que ela entre no Carmelo no Natal seguinte. Ela mobiliza o seu pai para fazer o cerco ao bispo

Page 205: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

e, face à prudência deste, ela aproveita a audiência que tem com os peregrinos da diocese de Bayeux em Roma para se abrir a Leão XIII. Sem sucesso. Contudo, as autoridades diocesanas cederão e ela entra aos quinze anos no Carmelo de Lisieux para onde também arrastará, seis anos mais tarde, Celina, a sua irmã mais próxima, para onde também chamará a sua prima, a escrupulosa Maria, uma das duas filhas do tio Guérin. No Carmelo, o noviciado é difícil. Ela confia-se, ao ritmo de uma carta por mês, a um longínquo director espiritual, o padre Pichon, que escreve pouco mas que a apoia na provação que a esmaga. De facto, o seu pai, sofrendo, é internado num asilo de alienados de Caen e há quem cochiche, 320

mesmo no convento, que a sua razão não sobreviveu à partida da sua filha preferida. Ela própria procura a paz na devoção à Santa Face de Jesus. Depois, em razão da sua juventude, a sua tomada de véu e a sua profissão são retardadas. Ao cabo dos três anos canónicos de noviciado, ela que, de todos os modos, não pode ter voz no capítulo, decide ficar com as noviças, de quem era uma acompanhante privilegiada. Ela também recebe as confidências da velha fundadora de Lisieux, que a tranqüiliza. E, sobretudo, descobre João da Cruz aos dezassete anos: a sua leitura desenvolve-a e fá-la entrar no tempo bendito das núpcias com o bem-amado do Cântico, com Jesus amado, amante. Depois desta longa formação, duas viragens decisivas marcam a sua curta vida. Primeiro, um empurrãozinho do destino, uma piscadela do Céu: em 1894 - ela tem vinte e um anos -, a sua irmã Paulina - madre Inês - é eleita prioresa. Teresa torna-se escritora para a comunidade: prepara alegres brincadeiras piedosas, pequenas peças representadas para as festas do Carmelo por ela e pelas suas noviças; também escreve poesias para estimular as suas noviças e para confortar a piedade de irmãs que lhas pedem. E chega 1895, o ano abençoado. O seu pai morre no ano anterior, a sua irmã Celina chega ao Carmelo com as suas provisões de textos do Antigo Testamento a que ela se atira como uma esfomeada. Madre Inês, que em Janeiro tinha gostado da sua Joana d'Arc, representada na sua festa, encomenda-lhe, para o ano seguinte, as suas recordações de Alençon, período que ela não conhecera porque estava no convento de Mans. Teresa sente-se autorizada, aos vinte e quatro anos, a escrever a sua autobiografia (manuscrito A). No meio da sua redacção, em Junho de 1895, acontece uma revelação decisiva, a da misericórdia divina, a que ela se dedica. A escrita da sua autobiografia é perturbada com isso: a luz desta revelação ilumina como um novo dia os meses decisivos vividos em Lisieux antes da sua entrada no Carmelo; então, ela confia ao papel com alegria e vivacidade as passagens mais conhecidas, a conversão de Natal, os meses de graça antes do Carmelo, a peregrinação a Roma, a descoberta da força da oração quando Deus, a seu pedido, converte o seu "primeiro filho", tocado pela graça no cadafalso. O segundo acontecimento, dramático, é a revelação da sua morte precoce. Na manhã da Sexta-Feira Santa de 1896, ela descobre algumas manchas de sangue no travesseiro, assinatura inegável de uma tuberculose que a levará com menos de vinte e cinco anos. Agora, a vida de Teresa conta-se mês a mês. Ao mesmo tempo, ela entra numa noite da fé: está-lhe definitivamente escondido o "belo Céu" onde, até então, ela vivia em sintonia com os santos e os seus já falecidos. Mas este drama é escondido às irmãs. Paradoxalmente, Teresa aceita responsabilidades, tornando-se mestra de noviças, embora sem o título; e é posta em contacto com um jovem padre que partia para a China, em quem ela descobre um irmão dado por Deus desde toda a eternidade para ser, em seu lugar, o padre que ela não podia ser. 321

Page 206: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Então, ela produz, num tranqüilo frenesim de escrita, as obras da sua maturidade. Primeiro, o seu poema de Setembro (manuscrito B), o único texto místico, em que enfrenta os seus desejos insaciáveis. Depois, durante alguns meses, as soberbas cartas aos seus dois irmãos: um partiu para a China, o outro prepara-se para a África; um é o seu irmão, o seu igual; o outro é o seu irmãozinho, o filho da sua agonia. Em Junho de 1897, ela confia-se à sua "bem-amada mãe", a prioresa Maria Gonzaga, de quem também é confidente: sob a forma de cartas diárias (manuscrito C), ela desvenda-lhe a sua vida desde há dois anos, as suas "tentações contra a fé", fala-lhe de caridade, da maneira de partilhar o dia-a-dia de uma família de eleição cujos membros não se escolheram. Crueldade e ternura. Em meados de Julho, despede-se por carta dos seus que não estão no Carmelo. Diz e escreve que não tem nenhuma apetência pela fruição do Céu, mas que "voltará" para estar com os seus até ao fim do mundo. Morre a 30 de Setembro de 1897. Paulina melhorará as suas misteriosas palavras, encontrará as fórmulas necessárias para colocar a sua "vozinha" de infância espiritual ao alcance das "alminhas". A "Teresinha" nascera na aurora de um século de ferro. Claude Langlois 322

Pio X, a infância espiritual e a primeira comunhão

A acreditar em quem estava à sua volta, o papa Pio X chorou de alegria quando se publicou, no dia 8 de Agosto de 1910, o decreto Quam singularí, que instituía oficialmente a primeira comunhão. Viu nela o reconhecimento do amor especial de Jesus às crianças, tal como relatam os Evangelhos de Marcos e de Mateus. Na verdade, Roma não inovava absolutamente nada nessa matéria. O Concílio de Latrão IV já tinha (em 1215) previsto a confissão e a comunhão das crianças a partir da idade do discernimento ["da razão", se dizia em português]; quer dizer, a partir dos seis ou sete anos, quando já podiam tomar consciência da malícia dos seus actos e distinguir o pão eucarístico do pão comum. No século XVI, os Padres do Concílio de Trento tinham ratificado as disposições anteriores. Depois, estas decisões foram precisadas, nomeadamente aquando do Concílio romano realizado no tempo de Bento XIII: a idade de discernimento correspondia ao uso da razão, do sentido da liberdade e, portanto, da responsabilidade; sem esquecer a necessidade de a criança possuir um conhecimento elementar das coisas da fé. No decurso do século XIX, muitas testemunhas atestam a prática da confissão das crianças, apesar de uma real inquietação no seio do clero. De facto, os seus membros sentiam-se divididos entre o receio de, no confessionário, ensinarem demasiado às crianças e o medo de permitirem que o mal se enraízasse, se deixassem de interrogá-las. As reticências seriam bastante mais fortes no que concerne à comunhão. Os padres lamentavam-se de ver as crianças manifestar muito pouco respeito pela eucaristia. Se a influência latente do jansenismo e, mais amplamente, de um rigorismo ambiente, travava a comunhão freqüente [dos adultos], afortiori travaria a das criancinhas. Os adolescentes só podiam aproximar-se da mesa eucarística aos doze ou treze anos, aquando de uma primeira comunhão que era o termo do ensino do catecismo, desde o início do século XVII. Esta primeira comunhão, celebrada à saída de uma preparação ascética e moral 323

Page 207: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

efectuada sob a orientação do pároco, constituía simultaneamente uma cerimónia e uma festa paroquial. As atitudes evoluem lentamente ao longo do século XIX. Então, cresce um desejo novo de eucaristia, de que são testemunhas a fundação de uma série de obras, como a Adoração perpétua, e também a realização de congressos eucarísticos nacionais e internacionais. No pontificado de Leão XIII, um pouco por toda a parte, há diferendos que opõem o baixo clero, desejoso de admitir as crianças à comunhão antes dos doze anos, aos bispos, reticentes em relação a esta prática. O papa, consultado em 1888 por ocasião de um desacordo na diocese de Annecy [França], dá razão aos que desejam admitir as crianças à mesa sagrada. Alguns anos mais tarde, Mons. Sarto, o futuro Pio X, então bispo de Mântua [Itália], depois patriarca de Veneza, mostra-se fervoroso partidário da comunhão dos pequeninos. E redigiu para eles um catecismo numa linguagem simples e fácil. Eleito papa, Pio X, com um decreto de 20 de Setembro de 1905, convida à comunhão freqüente, quer dizer, diária e já não semanal. Deste modo, triunfa a concepção de uma comunhão "presencial", de um pão quotidiano que alimenta uma presença permanente no foro interior dos fiéis, à custa de uma concepção ascética, que leva a singularizar a eucaristia como uma recompensa. O decreto Quam singulari inscreve-se nesta lógica. Retoma as decisões dos Concílios de Latrão IV e de Trento, e acrescenta-lhes o realce da responsabilidade dos pais, nomeadamente do pai, em matéria religiosa e moral das crianças. A partir daí, o pároco não é o único visado. Resta interpretar o movimento que conduziu ao decreto. Para isso, precisamos de traçar a história da atenção teológica dada à infância de Jesus, na medida em que isso ilumina o nosso objecto. No decurso da Idade Média, o ciclo da infância de Cristo era freqüentemente figurado. Com o da Paixão, constitui o tema privilegiado dos diálogos e dos jogos litúrgicos. O interesse assim manifestado por tudo o que concerne ao Menino Deus também se conjuga com a devoção de São Bernardo pela infância de Jesus, depois pela do movimento franciscano relativamente ao presépio. O convite dos fiéis a uma infância espiritual, inscrita na mensagem evangélica, encontra-se nos Exercícios de Inácio de Loiola. Já vimos que, no século XVII, tanto o cardeal Bérulle como Margarida do SS. Sacramento, que celebram ao mesmo tempo as humilhações e os encantos dos primeiros anos de Jesus, encorajam a aquisição do espírito de infância, o que, na mesma época, apoia o fervor ao Menino Jesus de Praga. Embora esta forma de espiritualidade pareça ter depois enfraquecido, o culto da infância de Jesus continua muito vivo no século XIX, favorecido pela ascensão do da Sagrada Família. A mensagem de Teresa Martin, quase contemporânea da obra de Pio X, testemunha o clima espiritual em que germinou o decreto Quam singulari. 324

Há uma série de processos globais e globalizantes que contribuem igualmente para explicar a decisão de 1910. O historiador Philippe Aries e outros depois dele sublinharam, recentemente, a ascensão progressiva do sentimento da infância no Ocidente. Grandes textos literários, como os de Rousseau e de Stendhal, por exemplo, testemunham este movimento que, além disso, se harmoniza com a esfera privada e com a densificação dos sentimentos que se opera no seu seio; trata-se de um processo complexo, preparado, a partir do Concílio de Trento, pela concepção de uma espiritualidade conjugal, depois acelerado pelo sucesso do tema da alma sensível e do modelo novo do casamento amoroso. No domínio da piedade, isso traduz-se pela

Page 208: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

existência de um culto familiar, feito de orações recitadas em comum, por vezes no interior de pequenos oratórios domésticos. Ao longo do século XIX, difunde-se uma imagética religiosa que impõe uma sensibilidade seráfica. O par recorrente constituído pela criança e o seu anjo da guarda, o modelo proposto pela pessoa de Luís de Gonzaga, a figura do Tobias da Bíblia, de quem então se faz uma criança, ilustram este clima. Também há motivos de ordem pastoral na instauração da primeira comunhão: a Igreja, que perde a sua influência nos homens, conta com as mulheres, com as mães educadoras, para travar a descristianização, nomeadamente no quadro da família burguesa. Tudo isto explica a insistência de Leão XIII, depois a de Pio X, sobre a necessidade de fazer da comunhão das crianças um acto privado, centrado na intimidade do lar familiar, dispensador de uma educação moral e religiosa. Em 1910, Roma dirigiu prescrições mais severas para dar a conhecer rapidamente o decreto Quam singularis. Apesar de uma resistência manifesta no seio da massa dos fiéis e do clero, o texto foi aplicado com bastante rapidez, nomeadamente nos internatos. É por isso que a primeira metade do século XX constitui o apogeu da primeira comunhão. A 3 de Junho de 1951, o papa Pio XII sublinha este sucesso aquando da beatificação de Pio X. Segundo ele, foi ao papa Sarto que se "atribuiu a tarefa de dar Jesus às crianças e as crianças a Jesus". A primeira comunhão tinha favorecido a eclosão das vocações sacerdotais e preparado a expansão do apostolado leigo. Não se pode negar que, desde meados do século XX, a prática da primeira comunhão tenha diminuído; um processo, à primeira vista, paradoxal, quando se imagina a importância que o Ocidente concede doravante ao menino-rei. A propósito deste declínio, é certamente difícil distinguir entre o que provém do processo global e o que resulta de uma modificação da atitude dos católicos praticantes. De facto, a primeira comunhão continua a ser celebrada nos meios mais fervorosos. Dito isto, a comunhão sofreu com o recuo incontestável da confissão auricular em geral. Em matéria de educação religiosa das crianças, acentua-se freqüentemente um despertar progressivo para a fé, em detrimento da inculcação do medo do pecado e da necessidade da contrição. Não haveria, 325

porventura, alguma discordância entre a vontade de suscitar um sentimento de culpabilidade ou, até, de responsabilidade, desde a idade dos seis ou sete anos, e, na sociedade global, o adiamento da malícia dos actos muito para além desta idade? Também se poderia pensar que a retracção do culto familiar, mesmo no seio das comunidades praticantes, assim como o culto da devoção ao Menino Jesus jogaram contra a manutenção de uma prática maciça da primeira comunhão. Seja como for, no tempo da sua maior expansão, ela criava um momento de intensa emoção entre as crianças e os seus pais. Favorecia uma tomada de consciência precoce da responsabilidade. Permitia que se estreitassem os laços afectivos entre os membros da família mais chegada. O seu declínio, mesmo que relativo, sanciona o declínio das técnicas mentais que se referem ao exame de si mesmo, à meditação e à contemplação. A breve história da comunhão particular, ou primeira comunhão, inserida na, bastante mais ampla, da infância espiritual, constitui um indicador da evolução da piedade no seio da Igreja católica. Alain Corbin 326

Dois séculos de querelas em torno da arte sacra

Page 209: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Arte sacra? Arte religiosa? Arte cristã? Não será certamente aqui o lugar de iniciar esse debate. Visto de longe, verificamos sobretudo o vivo contraste entre um século XIX "Saint-Sulpice" e um século XX revelado pela revista L'Art sacré. De facto, querelas quase incessantes sobre este tema atravessam estes dois séculos: as que opõem partidários e adversários do gótico, em volta dos Annales archéologiques de Didron (ca. 1850), não têm nada a invejar às polémicas dos anos 1950. Podemos dizer que todas as épocas não cessam de se interrogar sobre a orientação e os problemas da arte religiosa. Ao sair do sismo revolucionário [Revolução Francesa], muitos só pensam em "restauração" e poucos desejam inovar. Entretanto, os recursos são fracos e as encomendas, raras. As artes menores regressam às formas do Antigo Regime; a arquitectura mantém-se fiel ao estilo "neoclássico": planta basilical, fachada com frontão e colunata, abóbada de berço e abside em abóbada de semicúpula. Foi só nos anos 1840 que a procura cresceu como conseqüência do grande despertar católico, enquanto o romantismo, apesar das vivíssimas oposições, introduz uma predilecção durável pelo estilo gótico. Os seus defensores afirmam que é mais económico, mas, sobretudo, idealizam a arte do século XIII como a única verdadeiramente cristã. As igrejas góticas multiplicam-se em todos os lugares, como a basílica de Santa Clotilde em Paris; a descendência é numerosa. Sem falar nos estaleiros de restauração a que está ligado o nome de Viollet-le-Duc. Os objectos religiosos prolongarão durante muito tempo o sucesso precoce mas efémero do estilo "troubadour" no mobiliário e nas artes decorativas. Durante a segunda metade do século XIX, uma real vitalidade do catolicismo, conjugada com o enriquecimento geral, mantém num alto nível a procura de edifícios e de objectos religiosos. A industrialização da população deixa inegavelmente a sua marca nos diversos sectores; no mínimo, permite que se enfrentem as necessidades. A partir de meados do século XIX, constitui-se em volta da igreja de Saint-Sulpice, em Paris (dando o seu nome 327

a um "estilo"), uma concentração comercial que também fornece a província e o estrangeiro, embora encontre aí sérios concorrentes (com um "estilo" muito próximo). E manter-se-á até aos anos do Concílio Vaticano II. Certos sectores da arte religiosa são pouco tocados pela industrialização e pela estética "Saint-Sulpice". Deste modo, a arquitectura atém-se, mesmo nos estaleiros mais prestigiados (Lourdes, Montmartre) a um tímido eclectismo: neo-românico, neobizantino, neo-renascença. Só a basílica de Fourvière, em Lião, ousa inovar. Nem mesmo o emprego do ferro revoluciona as formas. As artes litúrgicas - ornamentos e vasos sagrados - continuam sobretudo marcadas pelo gosto medieval. Dá-se o nome de "Saint-Sulpice" a um tom de piedade piegas e fácil em que convergem as heranças degradadas do maneirismo italiano e do classicismo francês (e dos elementos rococó) com caracteres de uma produção industrializada. Os seus domínios de predilecção são os elementos da decoração das igrejas - vitrais, quadros, móveis e, sobretudo, estátuas (então é o reinado do gesso colorido) -, assim como os múltiplos "artigos de piedade" para uso privado, sem esquecer a imagética religiosa. O fenómeno é largamente internacional e, talvez, inerradicável, mas evoluiu ao longo do século XX. Contra esta degradação da arte religiosa (ou, pelo menos, o que se julga como tal), os protestos multiplicam-se e intensificam-se depois de 1890. Cita-se sempre Huysmans; mas ele não é o primeiro nem o único a erguer a voz. Outro dado importante é a mudança

Page 210: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

acelerada nesta viragem de século das artes "profanas". Olhando só para a pintura numa panorâmica rápida, em trinta anos passou-se de Corbet a Picasso. Seria impossível que as artes religiosas não reagissem a esta mudança de contexto. Houve numerosas tentativas para lhe dar (crê-se) uma grande autenticidade. Notemos, por exemplo, os esforços realizados pelos monges de Beuron (Alemanha) e pelas "confrarias de artistas" lançadas por iniciativa dos pintores Maurice Denis e Georges Desvallières. O sector que muda mais rapidamente é, então, o da arquitectura, transformada pelo advento do betão. O emprego do "cimento armado" em Saint-Jean-Évangéliste de Montmartre não modifica realmente o aspecto geral; para isso, terá de se esperar por Notre-Dame du Raincy dos irmãos Perret (1922). A mesma mutação triunfa mais claramente nos países germânicos. Uma nova viragem acontece durante os anos 1925-1935. Primeiro, em 1925, é a exposição das Artes Decorativas; este novo estilo contribui para voltar as artes menores religiosas para um "neo-Saint-Sulpice": mais expressionismo, mais esquematização. Em 1931, a inauguração na diocese de Paris dos "estaleiros do cardeal" - uma centena de igrejas novas em poucos anos - relança a actividade (depois da reconstrução dos anos 1920), mas tem apenas um efeito artístico limitado: faltou proceder com economia, salvo no que concerne a algumas operações de prestígio (por exemplo, a igreja do Espírito Santo: neobizantino, betão e art deco). 328

Sobretudo em 1935, fundou-se a revista L'Art sacré, que vai ter um lugar capital, durante mais de trinta anos, na renovação das artes religiosas. De 1937 a 1954, é dirigida pelos padres dominicanos Couturier e Régamey; mensal antes da guerra, bimestral depois, até ao seu desaparecimento em 1969. Mostra-se muito crítica com a arte do século XIX e apoia fervorosamente algumas grandes empresas: a decoração da igreja de Assy (Alta Sabóia) que inclui o Cristo contestado de Germaine Richier; a capela de Vence (Alpes Marítimos) concebida por Henri Matisse, a primogénita de uma família de "capelas de artistas"; a capela de Ronchamp (Alto Saône) e o convento dominicano de L'Arbresle (Ródano) construídos por Le Corbusier; e muitos outros. Rebentam polémicas violentas que culminam em 1950-1952. Têm o mérito de pôr algumas questões verdadeiras, a começar por: o que é a arte sacra? Ou, por outras palavras: a arte não-figurativa será capaz de exprimir o sagrado? E ainda: um artista pessoalmente descrente poderá fazer uma obra autenticamente religiosa? Questões que talvez ainda não tenham encontrado a sua resposta inteira; mas, pouco a pouco, o debate foi diminuindo de paixão e começou a soprar um vento novo. Entretanto, preparava-se outra tempestade: o Concílio Vaticano II e a crise pós-conciliar acompanhada por um desmoronamento das vocações e da prática religiosa, e, conseqüentemente, uma considerável diminuição da procura para as várias artes religiosas. Quanto à arquitectura, acrescenta-se-lhe, durante os anos 1970-1980, o desejo de uma "invisibilidade" dos edifícios religiosos que reduz os programas; a maciça catedral de Évry marca bem o fim desta tendência. As artes menores também são atingidas. A reforma litúrgica leva à "limpeza" das igrejas, por vezes exageradamente, e a que se adopte uma decoração mais sóbria. Mas nada de inquietação: o "Saint-Sulpice" está bem de saúde! Porquê esta longa crise da arte sacra contemporânea? É evidente que se pensa na evolução do sentimento religioso. Mas é preciso ir mais longe: esta crise é tão-só um reflexo do lamentável divórcio entre o catolicismo e a civilização saída do pensamento das Luzes. Talvez o "religioso" não explique tudo: também a arquitectura profana

Page 211: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

naufragou no pastiche, e o kitsch afectou todas as espécies de objectos. Por isso, a questão continua aberta... Claude Savart 329

II

A DOUTRINA CRISTÃ PERANTE O MUNDO MODERNO

Um catolicismo intransigente O "momento Pio IX" (1846-1878)

No centro do século XIX, o pontificado de Pio IX, Mastai-Ferretti, (1846-1878) aparece, por excelência, na história do catolicismo como o momento intransigente. O termo impôs-se entre os historiadores, primeiro em Itália e, depois, na França, para qualificar a corrente que outrora se denominava ultramontana, quer dizer, italiana ou romana. A intransigência toca no mais profundo do dispositivo intelectual, mental e afectivo dos católicos do século XIX. Essencialmente, esta define-se como a recusa de qualquer transacção, isto é, um distanciamento em relação a qualquer concessão, a qualquer compromisso que pusesse em perigo a conservação e a transmissão da fé, dos dogmas e da disciplina católicos; a intransigência também é simultaneamente defensiva e ofensiva, afirmação e condenação, às vezes até provocação ou agressão. Historicamente, a intransigência refere-se ao texto mais célebre do pontificado, o Syllabus dos erros modernos, que é uma seqüência da encíclica Quanta cura (8 de Dezembro de 1864). No contexto dramático que conduz, a partir de 1859, ao desaparecimento definitivo dos Estados temporais do papa e à anexação de Roma como capital do reino de Itália (1870), Pio IX, que foi erradamente apresentado no início do seu pontificado como o papa "liberal", rompe frontal e radicalmente com o liberalismo religioso, filosófico, moral, jurídico e político do seu tempo. Entre as vinte e quatro proposições condenadas foi, sobretudo, a última frase que desencadeou as paixões [Syllabus: § IX. Erros acerca do Principado Civil do Pontífice Romano]: "O pontífice romano pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna." Com esta 330

última negação, o papa parece desafiar a sua época e consagrar um catolicismo da recusa. Assim, o Syllabus rejeita confusamente proposições sobre Deus (panteísmo, naturalismo e racionalismo), sobre a religião ("indiferen-tismo" ou "latitudinarismo", segundo os quais a salvação seria acessível a qualquer religião que cada homem pode escolher com toda a liberdade), sobre a "moral natural" e o divórcio; e recusa a liberdade absoluta de opinião e de expressão, de consciência e de culto, a idéia de separação da Igreja e do Estado, o derrubamento dos governos legítimos, o socialismo e o comunismo; reafirma a independência e a autoridade da Santa Sé relativamente às Igrejas orientais, como sede da unidade e da universalidade católicas, assim como os direitos da Igreja perante o Estado. Contudo, entre

Page 212: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

esta seqüência de negações, algumas revestem uma tonalidade mais moderna: deste modo, Pio IX critica o princípio de "não-intervenção" (§ 62), funda a autoridade civil sobre o direito ("A autoridade não é mais do que soma do número das forças materiais", § 60), recusa sobretudo como uma idolatria o poder ilimitado do Estado sobre as consciências ("Como o Estado é a origem e a fonte de todos os direitos, goza de um direito sem limites", §39). Portanto, a intransigência não poderá ser reduzida a uma pura negatividade, mesmo que pretenda nada conceder, nada ceder ao tempo nem aos valores nascidos da modernidade liberal. Pio IX quer conservar e transmitir intacto aos seus sucessores o "depósito da fé" (depositum fidei), objecto essencial dos cuidados e das inquietações de uma Igreja que se sente assaltada por todos os lados na sua fé, e contestada até na sua existência. A plenitude dos direitos e da autoridade da Igreja de Roma justifica a proclamação de dogmas novos, concebidos como um aprofundamento e uma conclusão da tradição viva da fé através dos séculos. A 8 de Dezembro de 1854, a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, segundo o qual "a bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante da sua concepção, foi, por uma graça e um privilégio especial de Deus todo-poderoso, pelos méritos de Jesus, salvador do género humano, preservada e isenta de toda a mancha do pecado original", vem consagrar, no meio da excepcional unanimidade dos episcopados, a intensidade e a universalidade do culto mariano no mundo católico. Quatro anos mais tarde, as aparições marianas de Lourdes a Bernadette Soubirous (1858) parecerão confirmar miraculosamente aos olhos das multidões a definição pontifícia: "Que soy era Immaculada Counceptiou", "Eu sou a Imaculada Conceição". Igualmente, o reforço contínuo da centralização romana, o aumento das visitas dos bispos a Roma, "ao limiar dos apóstolos" (ad limina aposto-lorum), a unificação do culto em torno da liturgia romana, a multiplicação das congregações religiosas masculinas e femininas colocadas sob a autoridade imediata de Roma, o impulso missionário católico ordenado e regulado pela Congregação da "Propaganda" (de propaganda fide), a exaltação da própria pessoa do papa através da imprensa e da imagética católicas conduzindo o primeiro Concílio do Vaticano, reunido a 8 de 331

Dezembro de 1869 para proclamar, a 18 de Julho de 1870, a despeito da oposição do episcopado francês e de alguns prelados liberais, o dogma da infalibilidade pontifícia: "O pontífice romano, quando fala ex cathedra, isto é, quando desempenha o seu cargo de pastor e de doutor de todos os cristãos, e define, em virtude da sua suprema autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de moral deve ser admitida por toda a Igreja, goza, pela assistência divina que lhe foi prometida na pessoa de São Pedro, desta infalibilidade com que o divino Redentor quis dotar a sua Igreja, quando ela define a doutrina sobre a fé ou a moral." Dois meses mais tarde, no dia 20 de Setembro de 1870, as tropas italianas entram em Roma pela brecha da Porta Pia e põem definitivamente fim à existência plurissecular dos Estados do papa; mais que nunca, tanto na teologia como na sua eclesiologia, a Igreja católica, tal como uma fortaleza sitiada, parece reagrupar-se à volta da autoridade e da pessoa do "vigário de Cristo". Também a intransigência católica, na sua quádrupla recusa da Reforma protestante e da filosofia das Luzes, da Revolução de 1789 e do Estado liberal, constitui um modo de resistência aos "tempos maus" que a Igreja parece atravessar, uma forma de sensibilidade à história, às ameaças do presente e às promessas do futuro. Mas também pode ser crispação, inflexibilidade, intolerância ou, às vezes, injustiça, e concebe a sua relação com o mundo, com

Page 213: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

a sociedade civil e com as outras religiões segundo o modelo do confronto. Em Novembro de 1848, Pio IX preferiu deixar Roma a pactuar com o movimento democrático. Em Junho de 1858, confirmou a ordem de subtrair aos seus pais uma criança judia de seis anos, Edgardo Mortara, baptizada sub-repticiamente em Bolonha por uma criada, a fim de não perder a graça do seu baptismo e ser educado em Roma na religião católica. Durante o Verão de 1860, reuniu sob as ordens do general Lamoricière um exército para impedir a unificação da Itália, que será esmagado em Castelfidardo, a 18 de Setembro de 1860. Em Janeiro de 1861, prescreve a todos os fiéis católicos que se abstenham de votar no quadro das instituições parlamentares do jovem reino de Itália do rei Victor Emanuel II. Nos anos seguintes, mobilizou por toda a Europa, particularmente em França, na Bélgica e na Áustria e até no Quebeque, voluntários, os zuavos pontifícios, para defender Roma. Na Primavera de 1867, fez um apelo ao seu exército e também a um corpo expedicionário francês para esmagar em Mentana (3 de Novembro de 1867) a tentativa dos "camisas vermelhas" de Garibaldi para tomar Roma. Depois de 20 de Setembro de 1870, mura-se no seu palácio do Vaticano, como um "prisioneiro", e rejeita a lei das Garantias (13 de Maio de 1871) que lhe é oferecida por uma Itália cuja unidade encontrada ele recusa reconhecer. Deste modo, a intransigência vem sancionar a derrocada da independência temporal da Santa Sé, cujo princípio o cardeal Giacomo Antonelli se esforça por manter contra ventos e marés, e isolar dramaticamente o papado na Europa e no mundo. Mas ela foi intensamente vivida pelo mundo católico 332

como testemunho, isto é, etimologicamente, do martírio: em 1867, aquando da Exposição Universal de Paris, o Estado Pontifício escolherá estar representado por uma... catacumba. Uma dimensão sacrificial da fidelidade, nunca estranha a horizontes escatológicos ou apocalípticos, é inseparável do pontificado de Pio IX, que se extingue, num sentimento de grande solidão, ao cabo do mais longo pontificado da história, no seu vasto palácio deserto do Vaticano, a 7 de Fevereiro de 1878. O catolicismo intransigente do século XIX alimentou-se destas recusas e destas afirmações, desta inflexibilidade e desta esperança. Philippe Boutry 333

A encíclica Rerum novarum (1891) e a doutrina social da Igreja católica

A importância aqui atribuída à encíclica Rerum novarum de Leão XIII (15 de Maio de 1891) justifica-se por duas razões. O documento pontifício é a primeira tomada de posição do magistério romano sobre a "questão social", para retomar a designação do tempo. Por outro lado, a Rerum novarum é um texto fundador, regularmente evocado, em particular aquando dos aniversários da sua promulgação, como em 1931, 1971 e 1991. Consideremos a génese, o conteúdo e o alcance da encíclica. Para compreender a decisão romana, é preciso conhecer a multiplicação de iniciativas e de reflexões nascidas, não só de clérigos como Mons. von Ketteler, bispo de Mogúncia, mas também, freqüentemente, de leigos, face às conseqüências da industrialização e perante a ascensão do socialismo e do movimento operário. Basta evocar a secção de economia social na Obra dos congressos em Itália, os cristãos sociais na Áustria-

Page 214: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Hungria e na Alemanha, a Obra dos círculos católicos em França, com Albert de Mun e René de La Tour du Pin. A partir de 1884, a União Católica de Estudos Sociais de Friburgo reúne católicos sociais de diversos países para efectuar uma reflexão à luz da filosofia de São Tomás. Estes homens podem ser repartidos em dois grupos principais: os mais radicais põem em causa a legitimidade do direito de propriedade, condenam o capitalismo e estão convencidos da necessidade de intervenção do Estado na economia, em nome do bem comum; em contrapartida, a escola de Angers - do nome do bispo desta cidade, Mons. Freppel -, embora critique a sociedade individualista nascida da Revolução Francesa, é hostil ao papel do Estado e confia num liberalismo temperado, fundado na iniciativa individual. No congresso internacional de Liège, em 1890, o conflito entre as duas escolas torna-se particularmente vivo. Impõe-se uma tomada de posição do papa Leão XIII, pedida havia anos. Ainda cardeal Pecci, ele esboçou, nas suas cartas pastorais sobre a Igreja e a civilização, temas que anunciam a Rerum novarum: condenação da "espantosa usura" e das "escolas modernas 334

de economia política", que consideram tanto o homem quanto uma máquina, valor do trabalho, contraste entre "multidões sem esperança" e "um pequeno número [...] aplicado a entesourar". Como Pio IX, no Syllabus de 1864, atira-se à economia liberal baseada na acumulação de riqueza. O futuro Leão XIII deve bastante aos jesuítas da revista Civiltà Cattolica. Um deles, Matteo Liberatore, alimentado pelas reflexões tomistas sobre o direito liberal, é o autor do primeiro e mais importante esboço da futura encíclica. É sabido que, desde os estudos efectuados por ocasião do seu centenário, os seus autores quiseram fazer da encíclica um texto de compromisso, independentemente das escolas opostas. A influência da de Friburgo e do seu corporativismo é menos dominante do que se pensou; mas deu-se realce ao papel do cardeal inglês Manning e do cardeal Gibbons, arcebispo de Baltimore, que, desde 1887, se tinha oposto a que Roma condenasse a Ordem dos Cavaleiros do Trabalho, organização operária da América do Norte. Gibbons inspira o inciso de Leão XIII, que junta os sindicatos separados aos sindicatos mistos que associam patrões e operários: "as minhas esperanças estão satisfeitas", escreve ele ao papa. Intitulada Sobre a condição dos operários, a encíclica constata nas suas primeiras palavras "a sede de inovações [rerum novarum] que, desde há muito, se apoderou das sociedades". Descreve "a afluência da riqueza às mãos de um pequeno número, a par da indigência da multidão". O quadro evoca "a situação de infortúnio e de miséria imerecida" que atinge "a maior parte" dos homens das "classes inferiores". A abolição das corporações, a laicização do Estado e a "usura voraz" contribuíram para entregar "trabalhadores isolados e sem defesa" a "patrões desumanos". Em suma, um "pequeno número de ricos e de opulentos" impõe "um jugo quase servil à infinita multidão dos proletários". A encíclica admite a existência dos conflitos de classe; em compensação, a sua leitura da realidade social não tem em conta a ascensão das classes médias. A crítica vigorosa do socialismo apoia-se em duas razões: pôr em causa o "direito de propriedade sancionado pelo direito natural" e pôr em causa a família que, segundo Leão XIII, tem prioridade sobre a sociedade civil. O papa afirma a legitimidade da intervenção da Igreja em matéria social "com toda a plenitude do Nosso direito". A Igreja deve reconciliar os ricos e os pobres "lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, antes de todos os outros, os que derivam da justiça". Aos operários compete "honrar o contrato de trabalho e recusar a violência", aos patrões, não "tratar o operário como um escravo", respeitando nele a "dignidade da pessoa" (dignitatem

Page 215: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

personae), "dar a cada um o salário que lhe é devido". O Estado é fundado para intervir em nome da sua missão, que é a de "proteger a comunidade e as suas partes". O seu poder policial face aos abusos e o cuidado do bem comum legitimam a sua intervenção, mas não a tese, tão cara a certos católicos sociais, da função social da propriedade. 335

Os limites da intervenção do Estado estão claramente marcados: "nada empreender além do que for necessário, para reprimir os abusos e afastar os perigos". Os exemplos citados que concernem aos horários e às condições do trabalho mostram que Leão XIII não se afasta muito do liberalismo temperado da escola de Angers. O salário "não deve ser insuficiente para fazer subsistir o operário sóbrio e honesto". Mas o recurso à intervenção do Estado não deveria ser prioritário, para que não fosse importuno: "Perante a variedade das circunstâncias dos tempos e dos lugares, será preferível que toda a solução seja reservada às corporações ou sindicatos." Aos olhos de Leão XIII, face ao risco de estatismo que conduziria ao socialismo, impõe-se o regresso aos "corpos intermédios". Neste ponto, os católicos da escola de Liège e os da escola de Angers estão de acordo. A solução da questão social reside no encontro do trabalho e do capital. As corporações, cuja "benfazeja influência" no passado a encíclica recorda, permitirão ultrapassar os conflitos. Mas terão de adaptar-se às "novas condições". Leão XIII alegra-se por ver "que se formam por toda a parte sociedades do género, tanto compostas unicamente por operários, como mistas, reunindo simultaneamente operários e patrões". A primeira fórmula, decisiva, foi acrescentada ao primeiro projecto pelo próprio papa, instigado pelo cardeal Gibbons. Compete aos operários cristãos "organizarem-se a si mesmos", uma fórmula que convida a criar sindicatos confessionais, já que as associações operárias eram, comummente, "hostis ao nome cristão". O papa não retoma a idéia de corporação obrigatória elaborada no seio da União de Friburgo. O considerável eco da encíclica, mesmo fora do mundo católico, tem sido esquecido às vezes, pela historiografia. Os comentadores daquele tempo observam que Leão XIII, ao aproximar-se do povo e da democracia, rompe com as forças conservadoras e volta-se para as massas, para reencontrar a influência perdida. Leão XIII retomou a crítica do liberalismo e da economia liberal tão cara aos intransigentes; mas, pela primeira vez, Roma consagra uma reflexão de conjunto à "questão social" que já não é abordada unicamente mediante condenações morais, pois estabelecem-se orientações. Texto de compromisso, a encíclica deixa muitas questões abertas, onde se percebem as linhas de fractura que se cavam entre católicos sociais a partir de 1891. Mas ainda continuam vivas as questões sobre o salário familiar, o salário mínimo, a amplitude da intervenção do Estado, o sindicalismo, o capitalismo e as controvérsias que levam a autoridade romana a novas intervenções; desde então, ela arbitra, recusa e aprofunda. Segundo a fórmula do historiador belga Roger Aubert, "está colocado o primeiro marco oficial do catolicismo social", como também está doravante marcada a legitimidade de uma doutrina social da Igreja católica, reafirmada até aos nossos dias. Jean-Marie Mayeur 336

O cristianismo e as ideologias do século XX

Page 216: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

O cristianismo recusa-se a ser uma ideologia, embora se tenha inspirado em ideologias ou as tenha suscitado. Mas não pode ignorá-las, nem elas o deixariam indiferente. Também está em competição com elas: ele propõe uma explicação do destino humano e, da leitura do Evangelho, deduz uma antropologia, saberes que partilha com as ideologias e que o opõem a elas. Também as suas relações com elas são, o mais freqüentemente, conflituosas. Isto é particularmente verdadeiro no século XX, que foi por excelência o século das ideologias, o século em que elas exerceram um fascínio, conquistaram o poder e inspiraram regimes. O choque era tanto mais imparável quanto estes sistemas de pensamento pretendiam reinar sem partilha nos espíritos: as ideologias não deixavam espaço à liberdade de consciência e aspiravam a substituir o cristianismo por si mesmas. As suas ambições obrigaram as Igrejas a definir-se em relação a elas e a precisar os pontos sobre que havia incompatibilidade. O surgimento destas religiões seculares também precipitou a elaboração, pelo magistério espiritual, de um ensino sobre todos os aspectos da vida em sociedade cuja amplitude e coerência, por vezes, deram a impressão de constituir uma contra-ideologia. Embora a concorrência e a ameaça das ideologias tenham afectado todas as confissões cristãs, nem todas reagiram da mesma maneira. Algumas sentiram afinidade com uma ou outra ideologia; assim, as Igrejas da Reforma, que tinham reivindicado o direito ao livre exame, identificaram-se com o espírito do liberalismo. Além disso, nem todas elas tinham a mesma idéia da relação entre a fé pessoal e o compromisso com a sociedade. De todas as expressões do cristianismo, foi manifestamente a católica a que menos aceitou coabitar com filósofos estranhos, tanto mais que ela dispunha, com a instituição pontifícia, de um magistério cuja função principal era definir orientações e denunciar o que é errado em relação ao "depósito da fé". 337

No início do século XX, a mais antiga das ideologias, o liberalismo, ainda é o principal adversário filosófico do catolicismo. Embora as Igrejas da Reforma não tenham as mesmas razões para o considerarem inimigo, a Igreja de Roma de modo nenhum desarmou, continuando a ver nele a fonte de todos os erros modernos, a mãe de todas as heresias. Considera-o responsável não só pela descristianização, mas também pelos males que afligem a sociedade. Censura-lhe essencialmente o racionalismo, que opõe o esforço do espírito crítico ao ensino dogmático, e o individualismo, que eleva a regra a vontade do indivíduo. Esta denúncia do liberalismo permanecerá durante muito tempo como referência para a apreciação dos outros sistemas e explica certas simpatias por ideólogos que exaltavam a autoridade ou a submissão do indivíduo às exigências colectivas; mas também foi responsável por complacências prolongadas para com os regimes que se definiam por oposição ao liberalismo. Entretanto, mesmo no seio do catolicismo, havia espíritos que pensavam que o combate frontal entre catolicismo e liberalismo não procedia de uma incompatibilidade fundamental, mas era conseqüência de um mal-entendido circunstancial e, por isso, empenhavam-se em defender que a liberdade não podia ser contrária ao cristianismo, que a religião não podia sofrer com a liberdade religiosa - como prova o exemplo dos Estados Unidos, em que esta tinha favorecido o desenvolvimento do catolicismo. A história veio dar-lhes razão, com algum atraso: a experiência dos regimes totalitários, que se inspiraram em ideologias autoritárias, fez com que o magistério católico tomasse consciência de que havia adversários mais perniciosos ao homem e à fé do que o liberalismo e permitiu que este descobrisse o preço da liberdade de consciência, à qual o Vaticano II prestou homenagem. Mas

Page 217: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

nem por isso a Igreja de Roma aceitou as conseqüências do liberalismo; realçou especialmente as suas reservas quanto à sua aplicação à economia: não se trata de deixar correr livremente os mecanismos do mercado nem de desenvolver os efeitos das relações de força. Depois de ter preconizado durante algum tempo uma organização corporativa, o ensino social da Igreja pronunciou-se a favor de uma regulação pelo direito. Por isso, a Igreja católica não manifestou simpatia pelas várias formas de ideologia socialista. A sua antropologia faz da propriedade privada, adquirida pelo trabalho ou herdada da família, um prolongamento da pessoa, cuja independência ela preserva. O diferendo é mais de ordem filosófica do que política, em particular com o marxismo, cujos postulados são assumidamente materialistas e que faz profissão de ateísmo, porque - afirma esta ideologia - a religião é factor e fruto da alienação. A política anti-religiosa dos regimes comunistas, que traduzia a sua referência marxista, confirmou as reservas da Igreja católica. Em 1937, o papa Pio XI condenou o comunismo como "intrinsecamente perverso" e a Santa Sé sempre desaprovou toda a tentativa de aproximação entre cristianismo e 338

comunismo, mesmo que minorias de padres e de militantes leigos tenham crido ser possível discernir no programa comunista ressonâncias da utopia cristã (solidariedade com os mais pobres, exigência de justiça, aspiração a viver a fraternidade), e se tenham aplicado a dissociar o projecto de sociedade que o animava de uma filosofia anticristã. Talvez as Igrejas cristãs tenham demorado tempo demais a reconhecer a perversidade das ideologias inspiradoras dos regimes ditos fascistas, a avisar os seus fiéis contra a sua sedução e a proclamar a sua incompatibilidade com a fé cristã, como o tinham feito com o liberalismo e as escolas socialistas. É que estas ideologias estavam menos fortemente constituídas e não tinham uma coerência comparável às ideologias mais antigas e, portanto, não eram abrangidas pelo mesmo julgamento doutrinal. As autoridades religiosas também foram tributárias das suas tradições teológicas, que preconizavam o respeito pelo poder estabelecido: procuraram instaurar com estes governos relações de direito, até que se convenceram de que os seus interlocutores não respeitavam a palavra dada. A experiência do fascismo italiano abriu os olhos para o perigo da estatolatria. Por isso, Pio XI condenava o comunismo e, ao mesmo tempo, publicava uma encíclica que denunciava o racismo e o culto da força inerentes ao nacional-socialismo. Estas experiências e as reflexões que suscitaram explicam que hoje as expressões autorizadas e organizadas do cristianismo - as Igrejas e os seus responsáveis - se inclinem a ver na democracia o modo mais satisfatório de organização da sociedade: respeita o direito, a que a Igreja católica, herdeira de Roma, sempre dedicou uma grande estima. Aquela aceita sem reservas a herança das liberdades públicas, cujo preço a experiência dos regimes seguidores de ideologias contrárias lhe fez descobrir. Depois do segundo Concílio do Vaticano, com os pontificados de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, que se bateram pela liberdade religiosa, fechou-se a fractura histórica entre o cristianismo e a liberdade. A Igreja católica, como tal e pela acção dos seus, tomou parte, por vezes decisiva, na queda dos regimes fundados sobre ideologias opostas. O cristianismo - dizíamos ao começar - não é uma ideologia: adverte os espíritos relativamente a elas. Se, por um lado, reconhece a necessidade de uma visão de conjunto para orientar as opções políticas e instrui pela experiência do século tirando disso ensinamentos, por outro avisa o espírito dos perigos do fascínio de sistemas de pensamento contrários à liberdade da consciência e da fé cristã. René Rémond 339

Page 218: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

O Concílio Vaticano II (1962-1965)

O segundo Concílio do Vaticano, vigésimo primeiro concílio ecuménico, decorreu na basílica de São Pedro, em Roma, de 11 de Outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965. Representa uma seqüência tardia do Concílio Vaticano I, reunido na mesma praça de 8 de Dezembro de 1860 a 20 de Outubro de 1870 e suspenso sine die por causa da tomada de Roma, capital dos Estados pontifícios, pela jovem monarquia italiana, a 20 de Setembro de 1870. O Vaticano II, à maneira do concílio anterior, é chamado ecuménico na medida em que reuniu, por convocação expressa de João XXIII (1881-1963, papa desde 28 de Outubro de 1958), a totalidade dos arcebispos, bispos e superiores religiosos do mundo inteiro, enquanto sucessores dos Apóstolos, dispondo da capacidade de discutir as matérias de Igreja relativas à fé e aos costumes. Estes Padres conciliares constituíram uma Assembleia deliberativa de perto de duas mil e quinhentas pessoas. Os episcopados dos países de Leste receberam autorização para se deslocarem a Roma, excepto os da Hungria e o arcebispo de Zagrebe. Foi necessário juntar cerca de duzentos peritos com voto consultivo e alguns observadores leigos, entre os quais duas mulheres. Depois da Primeira Guerra Mundial, a Santa Sé, a única em condições de convocar um Concílio, percebeu que a Igreja católica estava confrontada com uma mudança radical: perdia os meios de chamar o mundo à conversão; o mundo pedia-lhe que se adaptasse a ele. Projectos de concílio tinham sido examinados por Pio XI em Dezembro de 1922 e Pio XII em 1948. O peso da empresa tinha dissuadido os predecessores de João XXIII, cuja iniciativa [de convocar um Concílio], três meses depois de eleito papa, não teve nada que ver com estas tentativas. Ele próprio sublinhou que era uma decisão muito pessoal, para a apresentar melhor como o efeito da divina Providência. João XXIII nunca pensara que o concílio desejado seria tão longo e difícil. Tinha imaginado uma reunião de alguns meses consecutivos, menos de um ano, adequada a um aggiornamento da Igreja, 340

quer dizer, a uma actualização do seu discurso e da sua prática face ao mundo moderno. O termo "reforma" foi posto de lado, para evitar toda a confusão com as Igrejas reformadas do século XVI. A reunião plenária do Vaticano II foi precedida de uma fase chamada antepreparatória (18 de Junho de 1959 a 30 de Maio de 1960), durante a qual os futuros Padres conciliares foram encarregados de reunir à sua volta, e nomeadamente junto dos leigos e dos movimentos de acção católica, os desejos de uns e de outros para a elaboração de um programa conciliar Chegou mesmo a falar-se no Vaticano de "consulta plebiscitária". A expressão destes desejos (vota) versou principalmente sobre a recusa de qualquer condenação e o pedido de uma abertura mais pastoral da Igreja, de uma melhor definição do ministério episcopal, deixado em suspenso aquando do Concílio Vaticano I e sobrecarregado com o voto da infalibilidade pontifícia e de uma tomada de consciência do lugar dos leigos na Igreja. Mas quase não se mencionou a aproximação das Igrejas católica, protestante e ortodoxa. Este material muito abundante, diverso, que oferecia uma imagem muito clara da Igreja católica, foi objecto de uma classificação em grandes temas por comissões pré-conciliares que fixaram o programa do Vaticano II sobre a discussão de setenta e dois temas. Um regulamento conciliar

Page 219: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

(6 de Outubro de 1962) estabeleceu que os esquemas seriam discutidos por capítulo e dariam lugar a votos parciais para o sim (placet), para o não (non placet) ou emenda (placet juxta modum). Os textos adoptados seriam promulgados pelo soberano pontífice em sessão solene. A abertura solene do Vaticano II, a 11 de Outubro de 1962, foi transmitida pela Eurovisão. O acontecimento foi tanto mais notável quanto o mundo atravessava um grande período de tensões devido ao confronto entre os Estados Unidos e a URSS, a propósito de Cuba. Muito rapidamente percebeu-se que o concílio devia enfrentar duas dificuldades: o lugar ocupado pela cúria romana no desenrolar do Concílio, demasiado importante desde o arranque dos trabalhos, e o peso da opinião pública, alimentada pelos media do mundo inteiro, cada vez mais atentos e críticos. João XXIII teve de decidir organizar em sessões anuais os trabalhos de um concílio que foi aberto sob o signo de um conflito com as repartições romanas, desde 13 de Outubro, a propósito das modalidades de eleição das comissões conciliares. Simultaneamente, apareceram uma maioria conciliar dita progressista, quer dizer, que desejava fazer do Vaticano II uma verdadeira assembleia deliberativa em consonância com o soberano pontífice, e uma minoria conservadora e reaccionária, essencialmente curialista, que considerava o concílio um entrave à autoridade do papa e de Roma. A grandíssima habilidade de João XXIII e o imenso respeito que ele inspirava salvaram o Concílio, que se separou no dia 8 de Dezembro de 1962 num clima de incerteza. Criaram-se comissões mistas que se reuniam entre as sessões, nomeadamente no domínio do ecumenismo. João XXIII morreu a 3 de Junho de 1963. O concílio foi suspenso, como previa o direito 341

canónico. O cardeal arcebispo de Milão, Giovanni Battista Montini, foi rapidamente eleito. Tomou o nome de Paulo VI, recordando aquele grande apóstolo conversor dos pagãos. Convocou o concílio para uma segunda sessão, a 29 de Setembro de 1963. O novo papa assumiu como missão levar o concílio a bom termo sobre alguns pontos fundamentais de um programa resumido: o lugar da revelação; a definição da natureza íntima da Igreja; o ministério episcopal na sua função de subsidiariedade no seio da Igreja ensinante; a liturgia como expressão viva da fé; o papel dos leigos; as relações com as Igrejas cristãs e com o judaísmo; a missão da Igreja em relação às outras culturas; as relações entre a Igreja e o mundo moderno. A segunda sessão foi a mais difícil de toda a história do Vaticano II. A questão da liberdade religiosa (a liberdade de crer e de não crer) assumiu um relevo que não se esperava e foi então que apareceram as raízes do futuro cisma dos partidários de Mons. Lefebvre. Paulo VI mostrava autoridade e também muitas hesitações. Vinha à superfície uma certa memória do conciliarismo - o governo da Igreja por uma assembleia conciliar, uma espécie de parlamentarismo -, relançada pelos media, face a um papa que não pretendia contentar-se com ser o primeiro entre iguais. As viagens efectuadas pelo papa conferiam à Santa Sé um renome internacional que punha o concílio numa situação falsa. O concílio encontrou um ritmo mais tranqüilo na terceira sessão, durante a qual foram votados textos importantes, em particular, a Constituição dogmática sobre a Igreja e a Constituição sobre o ecumenismo. Mas Paulo VI anunciou que a sessão seguinte seria a última. Desenrolou-se de 14 de Setembro a 8 de Dezembro de 1965 e foi decisiva: votaram-se sete constituições ou declarações, num conjunto de dezasseis documentos conciliares. No dia 7 de Dezembro, foi a vez da esperadíssima Constituição Gaudium et spes, aliás, A Igreja no mundo deste tempo, que foi um dos textos mais ambiciosos do programa e a propósito do qual se produziram fortes

Page 220: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

confrontos no seio do Concílio, assim como entre o papa e o próprio Concílio. A opinião pública tinha baseado na qualificação "pastoral" dada ao concílio a esperança da recuperação de uma maior liberdade em matéria de moral privada. Esta sentia-se inspirada pelo individualismo e pela estética da personalidade. Então, constata com um espanto para o qual os Padres conciliares a tinham preparado pouco, que o concílio não somente não se tinha pronunciado sobre as questões de costumes, mas que estes assuntos - essencialmente a questão do casamento e da regulação dos nascimentos - estavam reservados por Paulo VI à sua única jurisdição. Abriu-se uma grave crise na Igreja na seqüência da publicação pelo papa, no dia 25 de Julho de 1968, da encíclica Humanae vitae sobre o casamento e o dom da vida. Mas a obra do Vaticano II permanece uma referência quanto à vontade da Igreja de se fazer compreender pelo mundo moderno e vice-versa. Philippe Levillain 342

O catolicismo perante a limitação dos nascimentos

A sexualidade é um universo de que os teólogos e os confessores falam, mas de ouvido, como antropólogos no gabinete a fazer a síntese dos relatos dos viajantes. Os clérigos evocam um mundo semeado de escolhos, perigosos, mortal para a salvação porque neste domínio a "matéria é sempre grave". A relação do catolicismo com a sexualidade estruturou-se em redor de duas instituições: o casamento, o único lugar autorizado do seu exercício, e o celibato consagrado, de que fazem profissão, de direito (religioso) ou de facto (clérigos), os que têm a legitimidade para falar dele. O controlo da sexualidade toca em dois registos: o natural e o social. É natural a união potencialmente fecunda entre um homem e uma mulher. Portanto, não o são a prática solitária (masturbação), a escolha de outros parceiros (homossexualidade, bestialidade) ou de maneiras indevidas entre homem e mulher (felação, relação anal). Funda-se socialmente no casamento indissolúvel, sacramento para a Igreja; por isso, nesta segunda perspectiva, são inaceitáveis a fornicação, o amor livre, o adultério, a relação com uma pessoa consagrada. Para compreender a mudança capital neste domínio, situemo-nos no tempo da Restauração, em 1822. O padre Bouvier, teólogo no seminário de Le Mans, consulta a Sagrada Penitenciaria, instância romana habilitada a dar esclarecimentos em matéria de confissão, para conhecer a atitude a adoptar com a mulher de um marido onanista. Em 1827, publicou um manual para uso dos seminaristas - que se tornou um (relativo) best-seller - sobre problemas de sexualidade e inseriu nele um esclarecimento sobre "o pecado de Onan". Para compreender a novidade do que então estava em jogo, é preciso ter em conta quatro elementos. Em primeiro lugar, uma tradição, que remonta a Agostinho, de pôr sob o padroado de Onan (Gn 38,9) a prática de retirar, de interromper, ou coitus interruptus. Em segundo lugar, uma mutação que se opera na segunda metade do século XVIII e que consiste em centrar-se no onanismo juvenil, 343

qualificativo que se dá à masturbação, considerada mortal para a própria vida do jovem. Em terceiro lugar, a revolução coperniciana operada por Malthus, quando afirma que o mundo vindouro ficará demasiado cheio de homens e convidando cada casal a "limitar os

Page 221: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

nascimentos" em função das suas capacidades de educar os seus filhos. Finalmente, a limitação dos nascimentos, que começou em França na segunda metade do século XVIII: a Revolução Francesa acelerou a sua propagação, mas retardou a sua verificação. Será preciso esperar pelos anos 1820 para que os confessores franceses descubram o crime de Onan. Os responsáveis religiosos tomam rapidamente consciência de uma urgência especial a que é preciso responder porque o novo mal atinge o casamento, justamente no lugar em que o uso da sexualidade é legítimo. Será preciso restringir o seu exercício, imiscuindo-se nos segredos do leito conjugal? Ou, se se punir, dever-se-á alinhar pelo rigorismo ambiente, segundo o qual a esposa deve preferir a morte ao acto contraceptivo do marido? Ora, na sociedade fragilizada pela Revolução, a mulher constitui o único elo que a Igreja mantém com a família por, freqüentemente, os homens já não se confessarem ou calarem a sua prática contraceptiva. Bouvier, com o apoio da Sagrada Penitenciaria, propõe uma solução de compromisso. Na relação onanista, a mulher sofre o gesto contraceptivo do marido: é obrigada e, portanto, não culpada. Bouvier recorre à tradição casuística para avalizar as "boas razões" da esposa em participar no acto mau do seu cônjuge. Todos os teólogos e os confessores adoptam esta posição que, pelo menos, permite "salvar a mulher", apesar de condenar o marido, as mais das vezes por contumácia. Em 1842, Bouvier, então já bispo de Le Mans, mais seguro de si, mais a par da prática das famílias, confrontado, como a Igreja de França, à reconquista dos homens, propõe que se opere uma mudança profunda de perspectiva em matéria de apreciação da limitação dos nascimentos. O casal, confia ele à Sagrada Penitenciaria, seu fiel interlocutor romano, é um agente moral que distingue o bem do mal (aborto, adultério). Quer limitar o tamanho da sua família por razões que lhe parecem boas, continuando a ter relações sexuais. Por isso, o meio que usa não é falta, a seus olhos. Bouvier aceita levar em conta esta perspectiva e pede a desculpabilização da prática contraceptiva. O seu interlocutor romano evita a questão de fundo, mas aceita as suas soluções práticas. Apoiando-se em Santo Afonso de Ligório, que acaba de ser canonizado, a Sagrada Penitenciaria aceita o princípio teórico e fixa uma regra prática. Bouvier explicita um e outra. Pode-se, esclarece ele, considerar que os casais que praticam este tipo de contracepção estão de boa-fé quando obedecem à sua consciência, mesmo que ela seja errónea; conseqüentemente, não devem ser interrogados sobre isso na confissão. Apesar das opiniões partilhadas por clérigos sobre este novo rumo, os confessores em França, pelo menos até ao princípio do século XX, senão até mais tarde, evitarão maioritariamente interrogar em confissão os homens e as mulheres casados. 344

Mas, no decurso dos primeiros anos do decénio de 1850, a situação evoluiu bruscamente. Em 1849, Bouvier teoriza a boa-fé dos casais e, apoiando-se nos progressos da exegese, põe discretamente em causa a relação entre a condenação bíblica de Onan e a contracepção. Mas dá-se uma alteração do contexto romano: a eclesiologia galicana, a seguida por Bouvier, é posta no índice, e a liturgia romana é brutalmente imposta. Em 1851, o Santo Ofício, pela primeira vez consultado, condena o crime de Onan, pregando uma partida à gestão acomodatícia das práticas contraceptivas que estava então em vigor. Ao mesmo tempo, apareciam duas "novidades": a borracha dá alguma aparência de eficácia ao preservativo; a recente descoberta (1842-1845) do ciclo feminino revela a realidade de infecundidade periódica. Em 1853, a Sagrada Penitenciaria, consultada sobre esta novidade científica, dá força a uma via benigna até então seguida, admitindo as relações infecundas do casal; ao

Page 222: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

contrário, o Santo Ofício, interrogado sobre o preservativo, condena o seu uso. Opera-se uma divisão no uso dos dois métodos. Na prática, são ambos ineficazes; e, durante muito tempo, a prática contraceptiva que funciona é a de retirar. A partir de 1870, as coisas alteram-se. Em França, a contracepção torna-se um problema político e, portanto, objecto de debate público. A diminuição da natalidade põe a pátria em perigo perante o prolífico vizinho alemão. Agora, os campos defrontam-se: neomalthusianos e neopopulacionistas. Teólogos e confessores tornam-se natalistas. Ao mesmo tempo, os bispos apercebem-se de que as famílias menos numerosas já não fornecem padres nem religiosas: a limitação dos nascimentos torna-se um problema vital para a Igreja, que vive do "dízimo demográfico". Roma começa a suspeitar da boa-fé dos casais. Por volta dos anos de 1880, a Sagrada Penitenciaria alinha com o Santo Ofício. No início do século XX, a contracepção torna-se uma prática europeia; os episcopados intervêm no debate: a Bélgica em 1909, a Alemanha em 1913, a França em 1919, os Países Baixos em 1922. Em 1916, os pareceres da Sagrada Penitenciaria regressam ao rigorismo que imperava em França no início do século XIX. Em 1930, Pio IX, na sua encíclica Casti connubii, coloca a limitação dos nascimentos no centro dos males que atingem a família. É a primeira vez que um papa intervém no assunto. A sua intransigência na matéria pretende demarcar-se da Igreja anglicana, que acaba de adoptar em Lambeth uma posição pastoral compreensiva; ele visa sobretudo o clero, obrigado a interrogar os casais na confissão. O seu integralismo choca com uma vontade de reconquista da totalidade das práticas humanas, mas as famílias que levam a sério as suas exigências confessam o seu mal-estar em testemunhos pungentes, recentemente publicados (Les enfants du bon Dieu). A salvação viria de Knaus e de Ogino, que, finalmente, conseguiram, nos anos 1930, determinar o período infecundo da mulher? Pio XII, aberto à modernidade médica, assim crê e manda que se diga. A contracepção, mais seguramente, entrará numa nova era com Pincus e a pílula contraceptiva. 345

O concílio Vaticano II entende que tem uma palavra a dizer. Paulo VI retira-lha e entrega-a a uma comissão que se declara maioritariamente favorável à contracepção. Hesitante, o papa alia-se ao parecer dos teólogos da minoria, que pede que se mantenha a linha de Pio IX. E surgiu a Humanae vitae (1968). Impossível, dizia Paulo VI, reconhecer o casal como um agente moral que seja o juiz em última instância dos meios a usar para limitar os nascimentos. Houve teólogos que se opuseram à posição romana e os bispos franceses aceitaram a partilha das tarefas: Roma condenava o princípio, o episcopado geria a pastoral. Claude Langlois 346

III

O CRISTIANISMO À DIMENSÃO DO PLANETA

Regresso à história longa do cristianismo oriental na época otomana (séculos XV-XIX)

Page 223: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A organização das Igrejas submetidas

A característica principal da história do cristianismo oriental, durante todo este longo período, é a submissão ao poder muçulmano, que determina todos os aspectos da vida das Igrejas no Oriente. É verdade que a quase totalidade dos territórios cristãos da Ásia estava sujeita ao islão desde o primeiro século das conquistas arábico-muçulmanas (632-717). Mas, durante esta segunda fase, a denominação turca muçulmana estende-se igualmente sobre os Balcãs, ao sul do Danúbio e pelas ilhas do Mediterrâneo Oriental. Pouco depois da queda de Constantinopla (1453), já não resta nenhum poder cristão no Oriente, excepto a longínqua e nórdica Rússia ortodoxa. Os cristãos - e as outras "gentes do Livro" não muçulmanas - vivem, doravante sob o estatuto de dhimmis, de protegidos. Trata-se de um estatuto conhecido desde o reinado dos oméiadas (661-750), mas que, sob os otomanos, adquire um significado bastante mais existencial, porque deixara de haver o poder político cristão a que os fiéis orientais poderiam referir-se. Por outro lado, o estatuto dos dhimmis constitui a base sobre que se constituem, não só a organização das comunidades não-muçulmanas submetidas, mas também as relações entre o poder político otomano e os seus súbditos não-muçulmanos, assim como toda a vida económica e social do Império. Tal como foi estabelecido e aplicado, este estatuto decorre dos privilégios que Mehmet II tinha outorgado ao primeiro patriarca de Constantinopla, Gennadios II Scholarios (ca. 1400-1472), aquando da sua investidura (4 de Fevereiro de 1454). Conforme com a vontade do Conquistador, o bispo da sua nova capital tornou-se o chefe de todos os cristãos do 347

Império (roum millet bachi, chefe da nação dos cristãos, etnarca); depois, estes mesmos privilégios são concedidos aos chefes religiosos das outras comunidades monoteístas do Império (judaica, arménia, copta, etc), à excepção dos cristãos católicos (romanos), cujos interesses junto da Porta Sublime serão garantidos pelas capitulações e defendidos pelas embaixadas dos países ocidentais. O estatuto de dhimmi deixa certamente tanto aos súbditos cristãos do sultão como a todos os não-muçulmanos uma certa liberdade para organizarem a sua vida social, civil e religiosa, praticarem o seu culto e poderem ter a sua formação intelectual e espiritual. Mas esta liberdade também tem um número importante de restrições e de contrapartidas dolorosas: um imposto de capitação (djizya), outro sobre as receitas anuais (kharadj); as corveias para os trabalhos de utilidade pública (angariai); a "arrecadação" [antecipação de imposto] das crianças ou imposto de sangue (devchirmé, pêdomazoma); a posição de inferioridade em relação aos muçulmanos perante os tribunais muçulmanos; proibição de construir igrejas novas ou até de reparar as que estavam à sua disposição, depois da confiscação e da transformação em mesquitas dos lugares de culto mais representativos; proibição de exteriorizar a sua fé com procissões, toque de sinos, cruzes ou outros sinais religiosos externos; proibição absoluta de qualquer opinião deselegante em relação ao islão e ao seu profeta; proibição de todo o proselitismo e de conversão de um muçulmano a outra religião; proibição de o não-muçulmano se casar com uma mulher muçulmana, etc. Por isso, os súbditos não-muçulmanos do Império são levados a organizar a sua vida social, intelectual, cultural e espiritual em ambiente fechado, no seio das suas próprias comunidades. Só o lugar

Page 224: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

de reunião autorizado, o lugar do culto, se torna centro da vida da comunidade. À cabeça encontra-se o chefe religioso, que é o seu único responsável junto da Porta Sublime, o único responsável pela conduta dos seus membros diante do poder político otomano. No caso que aqui mais nos interessa, o patriarca de Constantinopla, secundado pelo Grande Sínodo e pelos vários secretariados, está encarregado da colecta dos impostos por conta da sua comunidade, da manutenção da ordem, da obediência e da execução de todas as ordens emanadas pelas autoridades otomanas. Em contrapartida, o millet bachi tem a possibilidade de organizar e de fazer viver a sua comunidade, os cristãos ortodoxos do Império, segundo o direito canónico da Igreja ortodoxa e os usos e costumes da sociedade bizantina; de prover à vida cultural e espiritual e da formação intelectual dos fiéis; de preservar os cristãos das islamizações maciças e de protegê-los da arbitrariedade das autoridades turcas; de defender a Ortodoxia e os ortodoxos da propaganda e do proselitismo exercidos pelos missionários católicos romanos e, mais tarde, protestantes. Portanto, a Igreja preserva a sua organização em patriarcados, metrópoles, arcebispados, bispados, paróquias, etc, assim como a dos fiéis em comunas e em corporações de ofícios; mas a eleição 348

dos patriarcas, dos metropolitas e dos outros altos dignitários eclesiásticos pelo Santo Sínodo está sujeita à publicação de um bérat, um decreto de nomeação que emana do sultão. Ora, muito em breve, o bérat torna-se um instrumento terrível nas mãos de uma administração otomana arbitrária, ocasião de lances custosos para as finanças das Igrejas e penosas para a sua vida. Limitando-nos à função exclusiva do patriarca de Constantinopla, notemos que, ao longo do período de 1453-1821, o trono patriarcal mudou cento e trinta vezes de titular, o que dá uma média de menos de três anos para cada investidura; setenta e sete patriarcas ocuparam o trono ecuménico, o que significa que cada um deles foi destituído pelo menos uma vez. Os patriarcas falecidos por morte natural, em exercício, são muito pouco numerosos, tendo a maior parte deles perecido no exílio ou na prisão. Dos seis patriarcas que tiveram morte violenta, uns foram enforcados, outros estrangulados e deitados ao mar. A concentração extrema de todos os poderes na capital acabou por dar às instâncias eclesiásticas de Constantinopla uma importância que elas nunca tinham conhecido na época bizantina. A instância suprema da Igreja ortodoxa é o Grande Sínodo, composto por prelados, clero, dignitários eclesiásticos e leigos notáveis; elege os patriarcas e os metropolitas dos cinco patriarcados, zela pela administração central e diocesana, trata da criação e do bom funcionamento das escolas, pronuncia-se sobre a rectidão da fé e das práticas culturais, julga os delitos consoante as suas competências, decreta a independência de uma determinada Igreja ou a autocefalia de outra, decide a atitude a tomar face à Igreja latina ou às Igrejas saídas da Reforma. Também está encarregado da repartição equitativa entre as regiões e os corpos de ofícios dos impostos devidos ao sultão, assim como da sua cobrança. Em relação ao patriarca de Constantinopla, a sua ecumenicidade nunca foi tão ampla, tão importante e tão determinante. Assim, por exemplo, o Grande Sínodo de Constantinopla declara (1484) inválida a união das Igrejas, decidida no Concílio de Ferrara (1438-1439); propõe a abertura de escolas em cada diocese do Império (1593). Por seu lado, o patriarca de Constantinopla Jeremias II eleva a Igreja da Rússia à categoria de patriarcado (1591), responde às solicitações dos teólogos protestantes de Tubinga, definindo as relações doutrinais entre a Ortodoxia e as Igrejas saídas da Reforma (1573-1581). Certos patriarcas de Antioquia, de Alexandria ou de

Page 225: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Jerusalém desempenham realmente um papel importante na Igreja, mas a título pessoal: pela sua cultura, pela sua acção e pela força da sua personalidade. O clero secular e os monges estão isentos dos pesados impostos que atingem os outros rayas (os súbditos não-muçulmanos), gozam de certos privilégios e são os únicos autorizados a deslocar-se; mas são obrigados a vestir, como sinais exteriores distintivos e bem visíveis, uma túnica castanho-escura ou preta, uma coifa especial, a barba e a longa cabeleira do clero bizantino. 349

Os mosteiros, situados geralmente nas regiões montanhosas, distantes dos centros urbanos e dos grandes eixos rodoviários, servem de refúgio; oferecem protecção e reconforto espiritual a todos os fiéis aflitos ou desamparados; tornam-se, sobretudo, centros vivos e activos da vida cultural, espiritual e intelectual da Ortodoxia. Os mosteiros do Monte Atos, a Montanha Santa, são certamente os mais conhecidos; no entanto, existem mosteiros importantes e muito activos em todas as regiões do Império, não só no mundo de cultura grega, mas também nos Balcãs de cultura eslava, e no seio das outras comunidades cristãs, arménia, nestoriana, copta, maronita, etc. O seu papel será notabilíssimo e salutar para o fortalecimento dos fiéis e a salvaguarda da fé.

Vida espiritual e consciência de pertença a uma "nação ortodoxa"

Durante toda esta longa época de sujeição, os povos cristãos conheciam condições de vida material, intelectual e moral miseráveis. Faltavam padres e, freqüentemente, também igrejas; por isso, os fiéis ganharam o hábito de freqüentar as capelas rupestres e os mosteiros, porque sentiam-se aí cada vez mais seguros. Qualquer festa importante era motivo para fugas para os campos despovoados e sítios escarpados, onde se fazia mais livremente a celebração dos ofícios numa atmosfera de maior segurança e solidariedade. Desde então, a vida religiosa reveste-se de um carácter eminentemente litúrgico. Os padres, pouco numerosos, são geralmente rudes e iletrados. A instrução dos monges só raramente é superior à dos padres seculares. Mas a sua vida retirada e o seu apego à tradição ou, até, mais às formas exteriores do que à prática religiosa, exercem uma grande influência nos fiéis, de quem eles são os guias incontestados. Também a vida religiosa adquire um acentuado carácter monástico, que se pode observar continuamente durante este período e mesmo ainda hoje. O cuidado principal de todas as Igrejas submetidas é a protecção dos seus fiéis contra a arbitrariedade do senhor muçulmano, o alívio da sua miséria material e espiritual, o fortalecimento da sua fé ortodoxa perante os dois grandes perigos: a conversão ao islão e a adesão à fé católica romana (e, no século XIX, também à fé protestante). As Igrejas submetidas têm de travar este duplo combate com armas desiguais: de um lado, têm de enfrentar a atracção que o poder e a riqueza do senhor muçulmano exercem nos rayas e também a proibição absoluta de entrar em polémica com a religião muçulmana; do outro, têm de medir-se com a superioridade intelectual incontestável dos missionários latinos, cuja obra assenta numa formidável organização e no apoio interessado dos Estados ocidentais. As Igrejas orientais só têm para oferecer aos seus

Page 226: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fiéis a beleza dos seus ofícios litúrgicos e a sua riqueza espiritual; elas convidam igualmente a um apego 350

incondicional à tradição e a uma observância estrita da prática religiosa ortodoxa. Uma tradição e uma prática tão profundamente enraízadas na história e na cultura de cada povo que acabam por fazer parte indissociável da sua identidade linguística, cultural e étnica. Por outro lado, a natureza da vida religiosa e moral encontra-se estreitamente ligada ao nível de instrução e da vida espiritual dos rayas. Ora, durante o primeiro século (1453-1530), a instrução é quase inexistente. Também a vida religiosa e moral atinge um patamar crítico. Mas, em meados do século XVI, desenha-se um movimento de renovação intelectual e religiosa cujos actores procuram já lançar as bases e definir o conteúdo. Entretanto, um século mais tarde, o ensino altamente universitário ministrado entre 1614 e 1640 pelo neo-aristotélico Teófilo Coridáleo (ca. 1570-1646) permite um progresso considerável da instrução e uma mudança radical da sua organização e do seu conteúdo. O sistema educativo coridaleano conhecerá o seu pleno desenvolvimento no século XVIII, nas Academias dos príncipes de Bucareste e de Jassy; nessa altura, preparará os espíritos para a recepção das Luzes europeias. Estas foram introduzidas no sistema educativo ortodoxo graças ao ensino (1742-1765), principalmente na Academia do Monte Atos (1753-1757), e nas obras científicas do monge Eugênio Vulgaris (1716-1806). Além da abertura do mundo ortodoxo às ciências e às idéias novas da Europa das Luzes, o "século das Luzes neogregas" (1750-1821) caracteriza-se pela multiplicação das escolas, pelo aumento considerável do número de professores e alunos em todos os territórios ortodoxos submetidos, pela elevação significativa do nível dos estudos e por uma sede ávida de aceder o mais rapidamente possível a um saber até então desconhecido. É neste contexto que se deve situar a formidável renovação espiritual conhecida geralmente pelo nome de movimento filocálico, que, partindo do Monte Atos e da renovação espiritual grega, gozou no século XIX de um desenvolvimento e de uma disseminação extraordinários no meio eslavo. Os intelectuais, em geral eclesiásticos, fazem os seus estudos no Ocidente (inicialmente em Itália, depois um pouco por toda a parte), nas universidades europeias, onde têm ocasião de conhecer as correntes de pensamento e as querelas religiosas da Europa. Foi também no Ocidente que se editaram os livros (primeiro em grego, depois em árabe, eslavónio, arménio, copta, etc.) destinados ao culto, à educação e à formação intelectual e religiosa em geral. E, se a edição e a difusão de obras contra o islão se mostram uma empresa perigosa, os tratados antilatinos são particularmente numerosos. São igualmente escritas e publicadas outras obras, como as colectâneas de sermões, de hagiografias e de histórias edificantes, os manuais de catecismo, as traduções em línguas vernáculas dos escritos dos doutores da Igreja antiga. A natureza da organização da Igreja e as condições miseráveis de existência conduzem, pouco a pouco, ao nascimento e ao desenvolvimento 351

de uma consciência unitária de todos os povos ortodoxos submetidos. Esta coincidência de pertencer à nação ortodoxa, desenvolvida sobretudo pelos altos prelados e pelo ensino secundário e superior, não exclui certamente a consciência étnica que é cultivada no seio das

Page 227: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

comunidades, não só pelo baixo clero e pelas escolas elementares, mas também pelos ofícios religiosos em língua vernácula - porque a fé cristã é vivida, antes de tudo, como que enxertada na história, na língua e na cultura de cada povo. Em nenhum outro momento da história de todos estes povos a consciência étnica e a consciência religiosa, a identidade cultural e a autenticidade da fé estiveram tão intimamente unidas, confundidas e fundidas. Mas, independentemente desta consciência étnica particular, o conjunto dos rayas ortodoxos tem o sentimento de formar o povo eleito a que Deus faz sofrer todas as desgraças para o provar e lhe testemunhar o seu amor. Estas provações são tão-somente passageiras. Deus intervirá de novo na história para abreviar os sofrimentos dos seus fiéis servidores e para os recompensar, quer oferecendo-lhes a vida eterna depois da Parusia de Cristo, muito próxima, quer ajudando-os a restaurar um império ortodoxo oriental maior, mais poderoso e mais glorioso que no passado. Esta última idéia, nascida antes mesmo do desaparecimento do Império Bizantino, atravessa todo o período de dominação otomana, enriquece-se com múltiplos contributos, conhece orientações diversas e gera uma literatura escatológica riquíssima; alimenta a resistência dos rayas ao ocupante, ao mesmo tempo que é alimentada pelos diversos movimentos insurreccionais e também por uma propaganda hábil das potências cristãs, nomeadamente pela política oriental da Rússia ortodoxa. Durante a segunda metade do século XVIII, as duas guerras russo-turcas (1767-1792) e os movimentos insurreccionais que as acompanham ou as seguem galvanizam os espíritos e amplificam as aspirações relativas à libertação do jugo otomano. Em finais deste século e durante os primeiros decénios do século XIX, as idéias políticas das Luzes referentes à igualdade, à identidade linguística e cultural e à independência nacional desfazem em pedaços a consciência ortodoxa unitária e o sonho da restauração de um império ortodoxo oriental. Desde então, os povos sujeitos - nomeadamente os balcânicos - preparam, cada um por si e para si, secreta mas activamente, a sua libertação e a criação de um Estado nacional independente. De facto, perseguem três objectivos: a criação de um Estado independente, de uma Igreja nacional independente e de uma cultura nacional independente. Apesar da completa desorganização do patriarcado e dos fanariotas perante o esboroamento da consciência ortodoxa unitária e o abandono do sonho do império restaurado, a Igreja de cada povo põe-se ao serviço das lutas travadas por ele. A conquista da independência exigirá lutas encarniçadas e sacrifícios enormes. Entre as reivindicações territoriais ambiciosas de cada povo balcânico, as oposições da Turquia e os interesses das grandes potências, o caminho será longo, 352

tortuoso e semeado de emboscadas. Com efeito, será preciso mais de um século de gestação dolorosa entre o rebentar da insurreição sérvia (1804) e o reconhecimento da independência do Estado albanês (1913). O mesmo acontecerá com a independência das Igrejas em relação ao patriarcado ecuménico: embora tenha bastado um espaço temporal de vinte anos entre a proclamação unilateral da autocefalia da Igreja da Grécia (1833) e o seu reconhecimento pelo patriarcado (1850), a regulação da Igreja búlgara durará um século (1860-1961). Mas, enquanto os cristãos dos Balcãs lutam pela sua independência, nos territórios do Próximo e do Médio Oriente estabelecem-se os mandatos francês e britânico. E, desde então, os problemas tanto políticos como religiosos surgem de uma maneira completamente diferente. Astérios Argyriou 353

Page 228: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

A acção missionária nos séculos XIX e XX

Nos séculos XIX e XX, as missões exteriores conhecem o seu segundo grande impulso, depois do dos séculos XVI e XVII, que permitira a cristianização das Américas e das Filipinas, e a implantação de comunidades cristãs na Ásia ou na África Equatorial, criações efémeras no Japão e no Congo-Angola, e duradouras na índia e no Vietname. Durante muito tempo consideradas como uma actividade secundária das Igrejas, as missões são hoje objecto de uma reavaliação que realça a sua importância decisiva, tanto para os países de partida como para os países de destino.

Uma mobilização internacional

Na Europa, a expansão missionária confirma a vitalidade do cristianismo, apesar da crise revolucionária. Partindo da Inglaterra protestante no fim do século XVIII, durante o século XIX, a mobilização missionária contemporânea ganha todos os grandes países protestantes, primeiro os da Europa do Norte, depois os Estados Unidos. Para as Igrejas da Reforma, até então reticentes a qualquer proselitismo entre os pagãos, a missão exterior é uma experiência nova que contribui para a sua transformação. No caso do catolicismo, trata-se, ao contrário, de um despertar que surpreende pelo seu vigor. A França desempenha um papel central neste compromisso católico. Vê florescer novas congregações religiosas que se destinam à missão (maristas, padres brancos, missões africanas de Lião, etc.) e faz nascer poderosas associações que apoiam o movimento (Obra da Propagação da Fé, fundada em Lião em 1822). Em 1900, mais de um terço dos missionários masculinos e a maioria das mulheres são franceses. Mas a internacionalização das sociedades missionárias explica a participação sempre crescente no século XX da Bélgica, dos Países Baixos, da Itália, da Suíça ou da Alemanha. 354

As missões católicas são colocadas em Roma sob a autoridade da Congregação (no sentido de "ministério do governo pontifício") para a Propagação da Fé, em latim, Propaganda Fide. É esta que delimita os territórios, atribuindo-os a uma congregação religiosa masculina, nomeia o chefe de missão (prefeito ou vigário apostólico), envia instruções que insistem sobre a formação rápida de um clero indígena, exige relatórios periódicos, decide a transformação em diocese de pleno direito. Perante este modelo centralizado, as missões protestantes caracterizam-se por uma profusão de sociedades que se formam no seio das Igrejas históricas (missões anglicanas, luteranas, metodistas, etc.) ou, pelo contrário, preconizam a superação das clivagens eclesiásticas (Sociedade Missionária de Londres, Missão de Paris). Têm como prioridade a formação de Igrejas locais autónomas. Mas evitam uma concorrência selvagem no terreno, com acordos de comum acordo, e contribuem para o surgimento de uma consciência

Page 229: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ecuménica intraprotestante que se traduz na organização de conferências missionárias internacionais (Edimburgo, 1910).

Redes mundiais para resultados desiguais

Católicas e protestantes, as missões têm em comum o facto de funcionarem em redes mundiais que se apoiam nos fiéis, reúnem fundos, suscitam vocações e racionalizam investimentos. Desde muito cedo, os meios de informação mais modernos são utilizados para sustentar a missão. Eles dão conta dos progressos realizados e testemunham o bom uso dos fundos recolhidos, ao mesmo tempo que sensibilizam os leitores para os mundos longínquos. A imprensa missionária conta centenas de periódicos no mundo e atinge tiragens consideráveis, antes de, por sua vez, a rádio, a imagem fixa e o cinema contribuírem para fazer circular a informação, para manter o entusiasmo e para obter as ajudas indispensáveis. Os resultados obtidos em termos de conversões são desiguais, no tempo e no espaço. Depois de um período de latência, que pode ser breve ou durar várias gerações, certas populações aderem em massa ao cristianismo, que, assim, se torna a religião maioritária na África subsariana equatorial, oriental e austral. O Pacífico é o outro grande espaço que se tornou maioritariamente cristão. Inversamente, a Ásia fica largamente impermeável à evangelização, à excepção da Coreia do Sul. Os sinais de interesse pelo cristianismo manifestados pelas sociedades indiana, chinesa e japonesa não desaguaram num movimento importante de conversão. O cristianismo permanece ultramarino no mundo asiático, com excepção de alguns países: Filipinas (90%), Timor Leste (95%), Coreia (25%), Vietname (9%), Indonésia (10%), Singapura (13%) e Sri Lanka (8%). 355

Uma interface entre dois mundos

Mas um balanço fiável dá somente uma imagem parcial do papel desempenhado pelas missões contemporâneas nos países em que se instalam. Com efeito, a sua influência exerceu-se muito para além do círculo dos seus fiéis, nomeadamente nas regiões reticentes à cristianização. Para muitas populações, elas são o intermediário que introduziu no seu seio a modernidade através das escolas ou da acção sanitária e social. Em volta das missões constrói-se um conjunto de serviços cuja eficácia é desmul-tiplicada pelo concurso de autóctones. O primeiro círculo, cujo centro é ocupado pelos missionários masculinos, conta com um número importante de mulheres, religiosas ou leigas, encarregadas de ajudar e de formar as mulheres autóctones. Também comporta agentes especializados (irmãos leigos de congregações religiosas entre os católicos), encarregados de tarefas materiais (construção dos edifícios, agricultura, marcenaria, fábricas de tijolos, telhas e ladrilhos...) e do ensino. No total, este pessoal estrangeiro atinge, sem dúvida, por alturas de 1930, uma trintena de milhares de pessoas, tanto entre os católicos como entre os protestantes. Mas a eficácia da organização missionária vem do recurso a um segundo círculo: o dos "auxiliares indígenas", muito mais

Page 230: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

numerosos e, freqüentemente, os únicos capazes de atingir as populações. Catequistas, chefes de aldeias ou de comunidades e professores primários fornecem progressivamente os quadros locais das Igrejas. Eles permitem o surgimento das Igrejas autóctones, cuja voz fazem ouvir nas instâncias internacionais (assembleias ecuménicas protestantes, sínodos episcopais católicos).

Missão e expansão ocidental

A vitalidade missionária do cristianismo contemporâneo foi alimentada durante muito tempo pelas Igrejas da Europa e da América do Norte, que forneceram os homens e os meios da expansão. Num sentido, o movimento missionário é indissociável da expansão ocidental. Além disso, denunciou-se a missão como uma forma particular do domínio ocidental, a que ela dava legitimidade moral e boa consciência. De facto, a missão foi muitas vezes instrumentalizada pelas nações colonizadoras e até se colocou sob a protecção das grandes potências, para obter a liberdade religiosa e a segurança dos seus fiéis ou bens. Consoante os países e os períodos, estas interferências vão dar boa vizinhança à colusão anunciada e reivindicada. Embora esta conivência tenha favorecido largamente a implantação material, raramente teve os efeitos que se lhe atribuíram em termos de adesões. Na África subsariana, a descolagem estatística opera-se no decénio de 50 do século XX e amplifica-se depois das independências. Deste modo, o número dos católicos passa de dez a vinte milhões entre 1950 e 1960, e a 356

cento e seis milhões em 1995. A evolução da segunda metade do século XX realça principalmente um processo de apropriação das igrejas missionárias pelos fiéis, que encontraram nela um meio de acesso à modernidade e um lugar de afirmação da sua identidade, inventando maneiras originais de viver e de pensar o cristianismo. Neste sentido, o objectivo proposto pelas missões, que as distingue fundamentalmente do processo colonial, isto é, a implantação das Igrejas locais, foi realmente extinto. E conduziu a uma emancipação progressiva em relação aos missionários estrangeiros, em vez de suprimir a dependência financeira em relação às Igrejas ocidentais. Por uma autêntica reviravolta da situação, neste início do século XXI, as Igrejas saídas da missão já se encontram em condições de fornecer clérigos e pastores às Igrejas que lhes deram origem.

Crise e mutação da missão no Ocidente

O dinamismo das Igrejas saídas da missão contrasta com a grave crise que atravessa o movimento missionário na Europa nos anos 70. De facto, este movimento conhece uma diminuição do recrutamento e sofre uma perda de legitimidade que, doravante, alimenta a desconfiança relativamente a qualquer forma de domínio religioso ou cultural. No entanto, a crise não acabou no desaparecimento da idéia missionária, mas na sua transformação e no seu

Page 231: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

deslocamento. No seio do cristianismo, daqui em diante a missão realça a colaboração, a interdependência e o respeito dos destinatários. A transferência para o ultramar dos modelos elaborados nas antigas cristandades recua em proveito da valorização de todas as culturas (inculturação) e da adaptação (contextualização). O cristianismo da era pós-missionária aprende a viver a unidade em regime de pluralismo à escala do mundo. Mas a idéia missionária, na medida em que é portadora da afirmação de uma solidariedade universal entre os homens, também se secularizou e investiu noutros domínios: nomeadamente, desempenhou um papel importante na fundação de numerosas organizações não-governamentais voltadas para a acção humanitária e para o desenvolvimento. Claude Prudhomme 357

O protestantismo na América do Norte

Se a América do Norte ainda continua a ser o maior pólo protestante do mundo, deve-o à sua história. Na verdade, as colónias americanas foram originalmente povoadas por dissidências religiosas protestantes que a Europa não queria. O mito da fundação de uma América como "nova Israel", terra de esperança que acolhia o povo de Deus saído do Egipto, é indissociável da identidade protestante americana que durante muito tempo considerou a alteridade católica como ameaçadora. Entretanto, esta realidade confessional é menos forte hoje do que já foi. Cerca de 60% da população total estado-unidense ostenta hoje uma etiqueta confessional protestante, contra 40% que se reconhecem de outros credos (a começar por 26% de católicos). No Canadá, 29,2% da população define-se hoje como protestante (recenseamento de 2001), contra 34,9% dez anos antes (recenseamento de 1991). Actualmente, o protestantismo norte-americano é confrontado com um duplo movimento: o da secularização, com um lento recuo dos credos religiosos (mais claro no Canadá do que nos Estados Unidos) e o da pluralização (alargamento da diversidade confessional nas religiões monoteístas). Assim, continua a haver uma força religiosa dominante que pesa na vida social, cultural e, até, política. Esta influência tem colorações diferentes no Canadá e nos Estados Unidos. Foi nos Estados Unidos que a identificação entre o protestantismo e a idéia de um novo povo eleito foi mais longe. Isto explica-se pelo facto de, ao contrário do futuro Canadá, povoado principalmente por anglicanos e católicos (acadianos), os futuros Estados Unidos terem tido no seu primeiro povoamento uma forte proporção de puritanos, quer dizer, de protestantes em ruptura com a Igreja anglicana da mãe-pátria. Para estes puritanos, a Europa e a Inglaterra faltaram à sua aliança com Deus. E é a eles que incumbe a missão de restaurar o que foi falseado, constituindo o Novo Mundo uma tabula rasa sobre a qual se pode construir o projecto divino 358

com bases bíblicas. Este excepcionalismo estado-unidense, fundado na cultura puritana dos primeiros colonos, articula-se, classicamente, com a temática da cidade sobre a colina desenvolvida pelo governador John Winthrop (1588-1649), num sermão pronunciado diante dos Pais Peregrinos (Pilgrim Fathers), aquando do seu périplo oceânico para o Novo Mundo

Page 232: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

(1639). Afirmando que "os olhos de todos os povos" (the eyes of all peoples) estão fixos neles, o calvinista Winthrop exorta os seus ouvintes a não decepcionarem o apelo recebido, sob pena de serem rejeitados por Deus. Este tema querido dos primeiros puritanos de Nova Inglaterra encontra a sua fonte na Bíblia, particularmente no Evangelho segundo Mateus (5,15-16). Neste trecho do Sermão da Montanha, discurso célebre atribuído a Jesus Cristo, o texto sublinha o testemunho pelo exemplo, comparando o crente (e a sociedade dos discípulos) a uma cidade colocada sobre uma colina. Ela não poderá ficar escondida, mas deve ser vista, para servir de exemplo ao mundo ainda nas trevas. Aplicando à letra esta recomendação divina, quando se estabeleceram no Massachusetts, os puritanos protestantes que acompanhavam Winthrop apressaram-se a construir a "cidade" utópica. Na sua esteira, os colonos de Nova Inglaterra trabalharam para edificar a nova Israel, terra exemplar liberta das impurezas europeias. Esta centralidade do protestantismo no projecto americano original não se desmentiu nos séculos seguintes. Os "despertares", quer dizer, os movimentos de mobilização de massas, caracterizados por conversões individuais e criações de Igrejas novas, vão reactualizar periodicamente a temática da eleição. Para serem fiéis ao maravilhoso desígnio divino para a América, os cidadãos devem soldar a sua aliança com o Todo-Poderoso, Lord Almighty. Estes sonhos estruturam-se em quatro vagas. A primeira vaga de fundo manifesta-se durante os anos 1730-1740, classicamente considerados como o período do Grande Despertar (Great Awakening). Levado por um pregador e teólogo puritano de Nova Inglaterra, Jonathan Edwards (1703-1758) e por um evangelista metodista inglês, George Whitefield (1714-1770), prestigia a conversão, a autoridade absoluta da Bíblia aos olhos do indivíduo e o congregacionalismo (autonomia das assembleias locais "despertadas"), dimensões que irão constituir a ossatura de um protestantismo que, em breve, será qualificado como evangélico (Evangelicalism). Esta confissão traduz-se no desenvolvimento de Igrejas revivalistas (chamadas as New Lights), povoadas de crentes prosélitos que alimentam principalmente dois campos de influência protestante em pleno crescimento: o metodismo (impulsionado por Wesley e Whitefield no interior e, depois, no exterior do anglicanismo) e o baptismo [confissão dos protestantes baptistas] (nascido no início do século XVII). Com o Grande Despertar, é o modelo oscilante de uma sociedade hierarquizada a partir de cima, cimentada por uma Igreja estabelecida, que se vê abalada de maneira decisiva, preparando os acontecimentos que iam conduzir, nos anos 1770-1780, à independência dos Estados Unidos. Temas como a escolha pessoal, a partilha da autoridade e a noção de "virtude" transitaram do campo 359

religioso para o campo político. Enquanto no Canadá ainda se está num protestantismo maioritariamente "estabelecido", ligado à coroa britânica, o protestantismo evangélico estado-unidense levado pelos despertares continua a opção dissidente dos puritanos. O protestantismo afirma-se como subversivo, força de independência e de emancipação da tutela colonial. Desde então, a figura do despertar como momento de remobilização cristã pela base conhecerá, na história dos Estados Unidos, numerosos avatares. Um segundo Grande Despertar, que se estendeu pelo primeiro terço do século XIX e, depois, uma terceira vaga revivalista, em finais do mesmo século, abalam a paisagem protestante. Actualmente, discute-se a hipótese de um quarto momento revivalista, iniciado depois dos anos 1960 com o evangelista Billy Graham. Uma coisa é certa: o protestantismo estado-unidense conheceu, desde o século XVIII, um refortalecimento regular do protestantismo de tipo evangélico,

Page 233: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

fundado na conversão, na comunidade local e num biblicismo conservador. No início do século XX, é acompanhado por duas novas orientações: o fundamentalismo (ramo radical, ultra-ortodoxo e separatista do movimento evangélico) e o pentecostalismo (corrente que valoriza o milagre e o Espírito Santo). O protestantismo pluralista, herdeiro das Igrejas estabelecidas, qualificado como mainline, decaiu fortemente, depois de ter mantido um alto nível de influência até aos anos 1940. O National Council of Churches (NCC), que agrupa os representantes deste protestantismo mainline, é actualmente menos influente do que a National Association of Evangelicals (NAE), órgão que reúne os evangélicos, ou que a nova direita cristã, sustentada depois dos anos 1970 pela maior parte dos fundamentalistas. Reactivando a mitologia calvinista da aliança fundadora entre Deus e a América, estes protestantes conservadores batem-se hoje contra o que entendem ser o declínio dos valores cristãos na sociedade (luta contra o divórcio, o aborto e pelo restabelecimento da oração na escola). Ao invés do vizinho do sul, a evolução do Canadá está marcada por uma secularização mais precoce e mais nítida. Menos ligado à identidade nacional do que nos Estados Unidos, o protestantismo decaiu bastante desde os anos 1940, especialmente com uma diminuição da prática religiosa no seio da Igreja Unida do Canadá, principal Igreja protestante, com carácter ecuménico (baixa de 8,2% dos efectivos entre 1991 e 2001). Em compensação, as correntes evangélicas conhecem um relativo progresso, mas sem chegar a inflectir o programa federal (legalização do casamento homossexual em 2005). Tanto no Canadá como nos Estados Unidos, é nas suas formas conversionistas, empresariais e associativas que o protestantismo parece resistir melhor à secularização, reactualizando o modelo do self-made-saint numa sociedade de consumo em que primam o indivíduo e a performance. Sébastien Fath 360

Do ecumenismo ao inter-religioso?

Depois das feridas e cisões dos séculos XI e XVI, raras são as épocas que não conheceram tentativas que visaram remediar a separação das confissões cristãs. Mas todas fracassaram. E seguiu-se-lhes a dispersão, sobretudo no mundo anglo-saxónico protestante. Com o aparecimento do neologismo "ecumenismo", o século XX marca, neste aspecto, uma viragem de tendência decisiva pelo triplo desafio lançado ao cristianismo pelo seu ambiente. Primeiro, o desafio missionário. A primeira conferência ecuménica, a de Edimburgo, em 1910, que reuniu as principais sociedades anglo-protestantes, ouve os delegados daquele a que então ainda não se chamava Terceiro Mundo deplorarem que os missionários se preocupem mais com as suas querelas de capelas do que com o anúncio do Evangelho. E, assim, nasce em 1921 o Conselho Internacional das Missões, que, quarenta anos mais tarde, se juntará ao Conselho Ecuménico. Depois, o desafio de uma guerra em que se defrontam, entre 1914e 1918, muitas vezes em nome de Deus e com uma brutalidade inédita, cristãos de todas as confissões, prontos a confundir a sua fé religiosa com o fervor patriótico. Este contratestemunho perante a descrença suscita como reacção, a partir de meios anglo-protestantes e ortodoxos, as conferências de Estocolmo sobre o "cristianismo prático" (1925) e de Lausana sobre "a fé e a constituição da Igreja" (1927). Em 1928, Pio XI condena vigorosamente este ecumenismo nascente, sob o nome de "pancristianismo". Por fim, o desafio das ideologias e dos regimes

Page 234: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

totalitários, cujo fim último não é outro senão a erradicação das crenças estranhas às suas concepções do "homem novo". Tema maior das conferências de Oxford e de Edimburgo de 1937, este desafio provoca a fusão dos dois ramos deste movimento num Conselho Ecuménico das Igrejas cuja criação é retardada dez anos pela Segunda Guerra Mundial. Na assembleia de Amesterdão, em 1948, cento e quarenta e sete Igrejas não-romanas federaram-se tendo por "base" o reconhecimento de Jesus Cristo como Deus e salvador, sem no 361

entanto renunciarem às suas convicções próprias. Nascera o Movimento Ecuménico, cuja sede se instala em Genebra. Mas padece de dois handicaps: de um lado, em plena Guerra Fria, a oposição das Igrejas orientais de influência moscovita, que vêem nele um apêndice do imperialismo americano; do outro, a recusa de Roma de abandonar a sua própria concepção da unidade: regresso ao seu seio das Igrejas "dissidentes", do Oriente, principalmente, mediante as comunidades "uniatas", solução energicamente combatida pelos principais interessados. Contudo, no seio dos catolicismo alemão, belga, neerlandês ou francês, padres e religiosos convertidos à causa da unidade advogam uma convergência sem fronteiras na oração e no diálogo teológico. Inicialmente ameaçados com sanções disciplinares, vão pouco a pouco obtendo de Roma um reconhecimento precário que é testemunhado pela criação, em 1952, da Conferência Católica para as Questões Ecuménicas. Entretanto, é preciso esperar pelos anos 1960, marcados, tanto nas Igrejas como fora delas, com um sopro de optimismo, para que estes obstáculos sejam derrubados e o ecumenismo se imponha como uma das dominantes do cristianismo contemporâneo. Em 1961, a aplicação ao domínio religioso da estratégia da coexistência pacífica traduz-se na adesão das Igrejas do bloco soviético-ao Conselho genebrino, que, então, chega à sua representatividade máxima, sem perder o seu carácter federador: nem Superigreja nem matriz de futura Igreja unida, mas associação fraterna de Igrejas que confessam um Deus trinitário. Paralelamente, sob o impulso de João XXIII, eleito papa em 1958, realiza-se a conversão da Igreja católica ao ecumenismo. Não terá sido, porventura, a aproximação dos cristãos separados um dos dois objectivos do Concílio, cuja convocação ele anunciou em Janeiro de 1959? A criação do Secretariado Romano para a Unidade dos Cristãos e o convite de observadores não-católicos para as diversas sessões da assembleia dão ao concílio um cunho ecuménico que não se limita à adopção dos dois documentos em que encarna essa conversão: o decreto sobre o ecumenismo (1964) e a declaração sobre a liberdade religiosa (1965). A multiplicação dos gestos simbólicos, dos quais o levantamento das excomunhões mútuas entre Roma e Constantinopla, em Dezembro de 1965, é tão-só o mais espectacular, e a multiplicação conjunta dos diálogos interconfessionais a todos os níveis induzem um novo ambiente, bastante eufórico nos meados dos anos 1960. A oração pela unidade ganha terreno, mesmo onde as tensões eram, ainda recentemente, mais vivas; desenvolvem-se relações cordiais dbase ao cimo, até ao balão de ensaio, logo esvaziado, de uma possível adesão da Igreja romana ao conselho genebrino, em finais dos anos 1960. Quarenta anos mais tarde, o balanço é menos positivo. É verdade que a atitude ecuménica permanece como regra, enquanto antes era apenas excepção. É verdade que as Igrejas trabalharam na análise e resolução dos mais dolorosos contenciosos do passado. É verdade que os teólogos trabalharam na eliminação dos obstáculos, como o provam o acordo de 362

Page 235: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Balamand [Líbano] entre ortodoxos e católicos sobre a proscrição do "uniatismo" (1993) e o de Augsburgo entre luteranos e católicos sobre a justificação pela fé (1999). Mas a intensificação identitária que se apoderou do conjunto do planeta depois da recuperação da depressão económica em meados dos anos 1970, reconduz cada uma das confissões cristãs à sua tentação própria, o que trava a sua aproximação: osmose da fé ortodoxa com nacionalismos renascentes, que contesta a evolução liberal do cristianismo ocidental em matéria de doutrina e de costumes; separação do anglo-protestantismo entre este liberalismo e um fundamentalismo bíblico que viu com bons olhos o ecumenismo; exaltação católica do papado a que a personalidade carismática de João Paulo II deu um novo impulso. Por vezes contestado como a heresia do século XX pelos tradicionalistas de todas as proveniências, continua a ser a linha directriz tanto em Roma como em Genebra, em Cantuária ou em Constantinopla e, portanto, uma das principais inovações religiosas do século XX. A amplitude inédita do desafio muçulmano e a expansão das religiões asiáticas tendem a restringir às dimensões de uma questão de somenos aquela entre cristãos, ultrapassada pelas urgências do momento. É preciso dizer claramente: o recente diálogo inter-religioso não é exactamente a dilatação do ecumenismo. Aliás, ele foi precedido, antes e sobretudo depois da Shoah, por um esforço de "amizade judeo-cristã" pela qual os cristãos, católicos e protestantes, tentaram esvaziar-se do seu passado anti-semita. Uma vez mais, o conselho Ecuménico das Igrejas e o Vaticano II foram determinantes: a passagem consagrada aos judeus, na declaração conciliar sobre as religiões não-cristãs, risca séculos de perseguição e de desprezo. Mesmo não satisfazendo plenamente os judeus, João Paulo II fez bastante para alargar e aprofundar esta abertura. Do mesmo modo, se bem que menormente, as amizades islâmico-cristãs conduziram à passagem da mesma declaração que presta homenagem à fé dos muçulmanos. Mas estes dois movimentos não comunicam de maneira nenhuma: no organigrama romano, as relações com o judaísmo continuam da competência do ecumenismo, enquanto as relações com o islão dependiam das religiões não-cristãs, antes de serem ligadas ao Conselho Pontifício para a Cultura. Foi preciso esperar pelo encontro de Assis, em 1986, para que tomasse forma, por iniciativa de Roma, um diálogo inter-religioso, multilateral por definição. Em relação ao ecumenismo, apresenta uma diferença de natureza: enquanto diálogo entre cristãos ou entre judeus e cristãos saídos da mesma cepa, versa sobre a fé que os une e os separa, o diálogo inter-religioso, face à diversidade das crenças implicadas, só pode viver da aptidão dos seus protagonistas para dar testemunho em comum diante do mundo sobre questões tão urgentes como a rejeição da guerra, o respeito dos direitos do homem, a supressão das desigualdades gritantes ou a preservação ecológica do planeta. Assenta na elaboração de uma visão comum do futuro da humanidade e não na busca de uma eventual unidade orgânica na fé. Étienne Fouilloux 363

GLOSSÁRIO Catequese De um verbo grego que quer dizer "instruir de viva voz"; instrução. Ensinamento oral da fé dado aos candidatos ao baptismo, aos catecúmenos, pela voz do catequista, e considerado como eco da palavra de Deus. A partir do século II, o catecumenato organizou-se - com diferenças consoante as Igrejas - e pode durar vários anos. Comporta instruções sobre o símbolo de fé, o Pai-Nosso, os sacramentos, a vida moral e os deveres do cristão; são testemunho disto as catequeses dos Padres da Igreja. Confissão auricular Forma de disciplina penitencial, secreta e renovável, instaurada no Ocidente a partir do século XII e que consiste na confissão das faltas pelo fiel ao ouvido do padre. Devotio moderna Corrente

Page 236: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

espiritual fundada na meditação pessoal e na ascese que nasceu nos actuais Países Baixos durante a segunda metade do século XIV. Evemerismo Tese segundo a qual os deuses não são senão humanos divinizados, sustentada por Evémero de Messina (340-280 a.C.) e retomada pelos apologistas e pensadores cristãos. Grande Cisma Período (1378-1417) durante o qual a Igreja do Ocidente esteve dividida em duas obediências pontifícias, uma em Roma e a outra em Avinhão; acabou durante o Concílio de Constança, com a demissão dos dois papas rivais e a eleição de Martinho V. 365

Indulgências Perdão de uma pena ou de uma penitência pela Igreja, em nome de Deus; impõe um sacrifício pessoal (não somente financeiro) e baseia-se nos méritos acumulados de Cristo e dos santos através dos tempos e do espaço na Igreja. Lutero, como muitos outros, critica a falsa segurança sobre a salvação que estas podem dar. Simonia Designa a venda ou a compra de um sacramento ou de um cargo eclesiástico; esta palavra refere-se a Simão, o Mago, que quis comprar aos apóstolos o poder de comunicar o Espírito Santo (Act 8,19). Uniata O termo designa Igrejas de tradição e de ritos orientais que estão em comunhão com Roma. 366

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

Sobre cada um dos pontos tratados nesta obra, o leitor pode consultar as duas obras seguintes: J.-M. Mayeur, Ch. e L. Pietri, A. Vauchez, M. Venard (dir.), Histoire du christianisme, des origines à nos jours, Paris, Desclée, 1990-2001. - vol. I, L. Pietri (dir.), Le Nouveau Peuple: des origines à 250 (2000); - vol. II, Ch. e L. Pietri (dir.), Naissance d'une chrétienté: 250-430 (1995); - vol. III, L. Pietri (dir.), Églises d'Orient et d'Occident (1991); - vol. IV, A. Vauchez (dir.), Évêques, moines et empereurs: 612-1054 (1993); - vol. V, A. Vauchez (dir.), Apogée de la papauté et extension de la chrétienté (1994); - vol. VI, M. Mollat do Jourdin, A. Vauchez (dir.), Un temps d'épreuves: 1274-1449 (1990); - vol. VII, M. Venard (dir.), De la Reforme à la Réformation 1450-1530 (1994); - vol. VIII, M. Venard (dir.), Le Temps des confessions: 1530-1620/30 (1992); - vol. IX, M. Venard (dir.), L'Âge de raison (1995); - vol. X, B. Plongeron (dir.), Défis de la modernité (1995); - vol. XI, J. Gadille, J.-M. Mayeur (dir.), Libéralisme, industrialisation, expansion européenne: 1830-1914 (1995); - vol. XII, J.-M. Mayeur (dir.), Guerres et totalitarismes 1914-1958 (1990); - vol. XIII, J.-M. Mayeur (dir.), Crises et renouveau: de 1958 à nos jours (2000); - vol. XIV, F. Laplanche (dir.), Anamnésies: origines, perspectives, índex (2001). 367

Os volumes VI e XII foram publicados em co-edição com as Editions Fayard. The Cambridge History of Christianity, Cambridge, Cambridge University Press, 2005-2006. - vol. I, M. M. Mitchell, F. M. Young (dir.), Origins to Constantine (2006); - vol. V, M. Angold (dir.), Eastern Christianity (2006); - vol. VI, R. Pochia Hsia (dir.), Reform and Expansion 1500-1660 (2006); - vol. vII, S. J. Brown, T. Tackett (dir.), Enlightenment, Reawakening and Revolution 1660-1815 (2006); - vol. VIII, S. Gilley, B. Stanley (dir.), World Christianities c. 1815-c. 1914 (2005); - vol. IX,

Page 237: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

H. McLeod (dir.), World Christianities c. 1914-c. 2000 (2006). Citemos ainda, sobre um ponto mais particular: Philippe Levillain (dir.), Dictionnaire historique de la papauté, Paris, Fayard, 1994. 368

REFERÊNCIAS BÍBLICAS Abreviaturas utilizadas Antigo Testamento Gn---Génesis Ex---Êxodo Is--- Isaías Novo Testamento Mt---Evangelho segundo São Mateus Mc-- Evangelho segundo São Marcos Lc---Evangelho segundo São Lucas Jo--- Evangelho segundo São João Act-- Actos dos Apóstolos Rm-- Epístola aos Romanos 1-Cor Primeira Epístola aos Coríntios 2 Cor Segunda Epístola aos Coríntios Ef---Epístola aos Efésios Cl--- Epístola aos Colossenses Tt--- Epístola a Tito Heb--Epístola aos Hebreus 369

OS AUTORES Alain Corbin Professor emérito de História da França no século XIX. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne, Instituto Universitário da França Nicole Lemaitre Professora de História Moderna. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne Françoise Thelamon Professora emérita de História Antiga. Universidade de Rouen Catherine Vincent Professora de História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre Contributos de: Astérios Argyriou Professor emérito de Literatura Grega Moderna. Universidade Marc-Bloch-Strasbourg II Sylvie Barnay Maitre de conférences em História do Cristianismo e História das Religiões. Universidade de Metz Marie-Françoise Baslez Professora de História Antiga. Universidade de Paris XII-Val-de-Marne Guy Bedouelle Dominicano, professor de História da Igreja (Universidade de Friburgo, Suíça) 371

Jean-Louis Biget Professor emérito de História Medieval. Escola Normal Superior de Letras e Ciências Humanas (Lião) Neal Blough Director do Centro Menonita de Paris, Professor de História da Igreja (Faculdade Livre de Teologia Evangélica de Vaux-sur-Seine) Philippe Boutry Professor de História Contemporânea (Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne), director de estudos (Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais, Centro de Antropologia Europeia) Henri Bresc Professor de História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre Isabelle Brian Maitre de conférences em História Moderna. Universidade Paris I-Panthéon-Sorbonne Gilles Cantagrel Musicólogo. Membro correspondente do Institut (Academia das Belas-Artes) Marianne Carbonnier-Burkard Maitre de conférences em História do Cristianismo Moderno. Faculdade de teologia protestante de Paris Béatrice Caseau Maitre de conférences em História Bizantina. Universidade Paris IV-Sorbonne Philippe Denis Professor de História do Cristianismo. Universidade do KwaZuluNatal (África do Sul) Bruno Dumézil Maitre de conférences em História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre Yves-Marie Duval Professor emérito de Língua e Literatura Latinas Tardias. Universidade Paris X-Nanterre Sébastien Fath Investigador no CNRS, encarregado de conferências (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas) 372

Étienne Fouilloux Professor emérito de História Contemporânea. Universidade Louis-Lumière-Lyon II Benoit Gain Professor de Língua e Literatura Latinas. Universidade Stendhal-Grenoble III

Page 238: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

Pierre Gonneau Professor de História e Civilização Russas (Universidade Paris IV-Sorbonne), director do Centro de estudos Eslavos (CNRS-Paris IV), director de estudos (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Históricas e Filológicas) Jean Guyon Director de investigação no CNRS (Centre Camille-Jullian, Casa Mediterrânea das Ciências do Homem, Aix-en-Provence) Mireille Hadas-Lebel Professora de História das Religiões. Universidade Paris IV-Sorbonne Marie-Élisabeth Henneau Maitre de conférences em História das Religiões. Universidade de Liège Ruedi Imbach Professor de Filosofia Medieval. Universidade Paris IV-Sorbonne Dominique Iogna-Prat Directora de investigações no CNRS Bruno Judie Professor de História Medieval. Universidade François-Rabelais-Tours Claude Langlois Director de estudos emérito (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas) François Laplanche Director de investigações honorário no CNRS Daniel Le Blevec Professor de História Medieval. Universidade Paul-Valéry-Montpellier III 373

Alain Le Boufluec Director de estudos (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas) Jean-Marie Le Gall Maitre de conférences em História Moderna. Universidade Paris I-Panthéon-Sorbonne Philippe Lécrivain Jesuíta, professor de História da Igreja (Faculdades Jesuítas de Paris) Claude Lepelley Professor emérito de História Antiga. Universidade Paris X-Nanterre Philippe Levillain Professor de História Contemporânea. Universidade Paris X-Nanterre, Instituto Universitário de França Pierre Maraval Professor emérito de História das Religiões. Universidade Paris IV-Sorbonne Daniel Marguerat Professor de Novo Testamento. Faculdade de Teologia e de Ciências das Religiões. Universidade de Lausana (Suíça) Olivier Marin Maitre de conférences em História Medieval. Universidade Paris XIII-Nord Annick Martin Professora emérita de História Antiga. Universidade de Haute-Bretagne-Rennes II Bernadette Martin-Hisard Maitre de conférences honorária em História Medieval. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne Jean-Pierre Massaut Professor emérito de História Moderna. Universidade de Liège Jean-Marie Mayeur Professor emérito de História Contemporânea. Universidade de Paris IV-Sorbonne 374

Simon C. Mimouni Director de estudos (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas) Michel Parisse Professor emérito de História Medieval. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne Michel-Yves Perrin Professor de História Romana. Universidade de Rouen Bernard Pouderon Professor de Grego Antigo. Universidade François-Rabelais-Tours Claude Prudhomme Professor de História Contemporânea. Universidade Lumière-Lyon II René Rémond Membro da Académie française, professor emérito de História Contemporânea (Universidade Paris X-Nanterre), presidente da Fondation nationale des sciences politiques Jean-Marie Salamito Professor de História do Cristianismo Antigo. Universidade Paris IV-Sorbonne Claude Savart Professor emérito de História Contemporânea. Universidade Paris XII-Val-de-Marne Madeleine Scopello Investigadora no CNRS. Universidade Paris IV-Sorbonne Alain Tallon Professor de História Moderna. Universidade Paris IV-Sorbonne André Vauchez Professor emérito de História Medieval (Universidade Paris X-Nanterre), antigo director da Escola Francesa de Roma, membro do Institut (Academia das Belas-Artes) Marc Venard Professor emérito de História Moderna. Universidade Paris X-Nanterre 375

Page 239: ³ria... · Web viewHISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender

ÍNDICE DOS MAPAS

A difusão do cristianismo nos dois primeiros séculos ...............----- 37 A organização eclesiástica na época de Justiniano (527-565) ...--112-113 O Ocidente religioso (séculos XI-XV) .........................................--140-141 As confissões na Europa no final do século XVI........................-----255 A expansão cristã no final do século XVIII.................................-----301 O cristianismo hoje .....................................................................-----364 377

1. A Era dos Extremos, Eric Hobsbawm 2. O Passado de Uma Ilusão, François Furet 3. As Regras da Arte, Pierre Bourdieu 4. Milénio, Felipe Fernández-Armesto 5. O Liberalismo Político, John Rawls 6. As Grandes Religiões do Mundo, Jean Delumeau 7. História de Espanha, Fernando Garcia Cortázar e José Manuel González Vesga 8. Deus: Uma Biografia, Jack Miles 9. História Social de Inglaterra, Asa Briggs 10. Uma História da Leitura, Alberto Manguel 11. Os Grandes Pensadores do Cristianismo, Hans Kiing 12. A Luz da Noite, Pietro Citati 13. A Civilização Europeia no Renascimento, John Hale 14. A Ideia de História, R. G. Collingwood 15. A Era das Revoluções, Eric Hobsbawm 16. Na Rota da Pimenta, Theresa M. Schedel de Castello Branco 17. Macau: Poder e Saber - Séculos XVI e XVII, Luís Filipe Barreto 18. A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses, José Manuel Garcia 19. Roteiro de Leitura da Bíblia, Frei Fernando Ventura 20. A Vida do Dalai Lama - O Homem, o Monge, o Místico, Mayank Chhaya 21. A Vida de Jesus Cristo - O Homem Que Mudou o Mundo, Corrado Augias e Mauro Pesce 22. O Mundo Islâmico - Do Século XVI à Actualidade, Pier Giovanni Donini 23. Istambul - Memórias de Uma Cidade, Orhan Pamuk 24. História do Cristianismo, Alain Corbin