história do cristianismo - alain corbin

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HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Sob a direcção de ALAIN CORBIN com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Para compreender melhor o nosso tempo Tradução de António Maia da Rocha 72 EDITORIAL PRESENÇA FICHA TÉCNICA Título original: Histoire du Christianisme Direcção de Alain Corbin com a colaboração de Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon e Catherine Vincent Autores: Vários Copyright (c) Éditions du Seuil, 2007 Tradução (c) Editorial Presença, Lisboa, 2008 Tradução: António Maia da Rocha Capa: Ana Espadinha Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, Dezembro, 2008 Depósito legal 283 313/08 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (excepto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Email: [email protected] Internet: http://www.presenca.pt ÍNDICE PREÂMBULO.............................11 PRIMEIRA PARTE No princípio Os inícios da história do cristianismo (séculos I-V) I - SURGIMENTO DO

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História do Cristianismo - Alain Corbin

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HISTRIA DO CRISTIANISMO

Sob a direco de ALAIN CORBIN

com NICOLE LEMAITRE, FRANOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT

HISTRIA DO CRISTIANISMO

Para compreender melhor o nosso tempo

Traduo de Antnio Maia da Rocha

72 EDITORIAL PRESENA

FICHA TCNICA

Ttulo original: Histoire du Christianisme

Direco de Alain Corbin com a colaborao de Nicole Lemaitre, Franoise Thelamon e

Catherine Vincent

Autores: Vrios

Copyright (c) ditions du Seuil, 2007

Traduo (c) Editorial Presena, Lisboa, 2008

Traduo: Antnio Maia da Rocha

Capa: Ana Espadinha

Composio, impresso e acabamento: Multitipo - Artes Grficas, Lda.

1. edio, Lisboa, Dezembro, 2008

Depsito legal 283 313/08

Reservados todos os direitos

para a lngua portuguesa (excepto Brasil)

EDITORIAL PRESENA

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730-132 Barcarena

Email: [email protected]

Internet: http://www.presenca.pt

NDICE

PREMBULO.............................11

PRIMEIRA PARTE

No princpio

Os incios da histria do cristianismo (sculos I-V)

I - SURGIMENTO DO CRISTIANISMO.............................................----17

Jesus de Nazar. Profeta judeu ou Filho de Deus? ..........................----17

No seio da primeira aliana. O ambiente judeu ...............................--- 22

As comunidades crists de origem judaica na Palestina..................--- 26

Paulo e a primeira expanso crist....................................................--- 30

II - VIVER COMO CRISTO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO"

(A DIOGNETO).................................................................................--- 39

Perseguidos, mas submetidos ao Imprio Romano (at 311)...........--- 39

"Vivemos convosco", mas... Os cristos e os costumes do seu

tempo..............................................................................................--- 43

Respondendo s crticas. Os apologistas, de Aristides a Tertuliano .--- 46

III - QUANDO O IMPRIO ROMANO SE TORNA CRISTO..........--- 50

De Constantino a Teodsio. Da converso do imperador converso

do Imprio......................................................................................--- 50

Pensar o Imprio cristo. Teologia poltica e teologia da Histria...--- 54

Roma christiana, Roma aeterna. O lugar adquirido pela Igreja de

Roma durante a Antiguidade tardia..................................................--- 57

IV - DEFINIR A F .................................................................................--- 61

Heresias e ortodoxia..........................................................................--- 61

Concorrentes do cristianismo. Gnose e maniquesmo......................--- 64

A elaborao de uma ortodoxia nos sculos IV e V .........................--- 68

V - EDIFICAR ESTRUTURAS CRISTS ............................................--- 71

Estruturar as igrejas...........................................................................--- 71

Iniciao crist, culto e liturgia.........................................................--- 75

Cristianizao do espao e cristianizao do tempo ........................--- 79

Dignidade dos pobres e prtica da assistncia .................................--- 83

Em busca da perfeio. Ascetismo e monaquismo ..........................--- 87

VI - INTELECTUAIS CRISTOS PARA CONFIRMAR A F.

OS PADRES DA IGREJA................................................................--- 91

Baslio, Gregrio de Nazianzo e Joo Crisstomo...........................--- 91

Jernimo e a "Vulgata" .....................................................................--- 96

Santo Agostinho e a irradiao do seu pensamento.........................---100

VII - ANUNCIAR O EVANGELHO "AT AOS CONFINS DA TERRA"--- 107

A cristianizao da bacia mediterrnica no sculo V nas fronteiras

do Imprio Romano.......................................................................---108

Povos cristos nas fronteiras do Imprio Romano...........................---114

Brbaros cristos, dentro e fora do Imprio Romano ......................---119

SEGUNDA PARTE

A Idade Mdia

Nem lenda negra nem lenda dourada... (sculos V-XV)

I _ CONSOLIDAO E EXPANSO .................................................---127

So Bento (+ ca. 547). Pai dos monges do Ocidente.......................---127

Gregrio Magno. Um pastor dimenso do Ocidente.....................---132

Por volta do ano 1000. As "cristandades novas".............................---136

Roma, cabea da Igreja latina (a partir do sculo XI) ......................---142

Bizncio/Constantinopla e o Ocidente. Comunho e diferenciao ..---146

So Bernardo de Claraval (+ 1153) e os cistercienses ......................---150

A catedral ..........................................................................................---153

II - AFIRMAO, CONTESTAES E RESPOSTA PASTORAL ...---157

A primeira cruzada (1095) e os seus prolongamentos .....................---157

As heresias (sculo XII).....................................................................---161

A Inquisio (sculo XIII)..................................................................---165

O fim dos tempos..............................................................................---169

Latro IV (1215). O mpeto pastoral ................................................---173

Francisco, o pobre de Assis (+ 1226) ...............................................---177

As ordens mendicantes......................................................................---181

Toms de Aquino (+ 1274) ...............................................................---185

III - TRABALHAR PARA A SUA SALVAO...................................---188

O Purgatrio e o alm.......................................................................---188

Culto dos santos, relqias e peregrinaes......................................---192

Nossa Senhora...................................................................................---196

A multiplicao das obras de caridade (sculos XII-XIII).................-- 200

O culto do Santssimo Sacramento (sculo XIII) ..............................-- 204

i (+ 1415)............................................................................-- 207

A busca de Deus. Msticos do Oriente e do Ocidente .....................-- 211

A Imitao de Cristo.........................................................................-- 218

TERCEIRA PARTE

Os tempos modernos

A aprendizagem do pluralismo

(sculos XVI-XVIII)

I - OS CAMINHOS DA REFORMA....................................................-- 229

Erasmo e Lutero. Liberdade ou escravido do ser humano.............-- 229

At ao fim das Escrituras. Os radicais das reformas........................-- 233

Calvino. Eleio, vocao e trabalho................................................-- 236

A via mdia anglicana. Uma lenta construo .................................-- 240

I - RIVALIDADES E COMBATES......................................................-- 244

Incio de Loiola e a aventura jesuta................................................-- 244

As Inquisies na poca moderna.....................................................-- 248

Liturgias novas ou liturgias de sempre? ...........................................-- 251

Mstica do corao, do fogo e da montanha.....................................-- 256

Mstica da Encarnao e da escravido ............................................-- 260

O jansenismo. Entre seduo rigorista e mentalidade de oposio .-- 264

III - EVANGELIZAR E ENQUADRAR O MUNDO.............................-- 268

Cristianismos longnquos ..................................................................-- 268

"Instruir na cristandade"...................................................................-- 275

A imagem tridentina. Ordem e beleza..............................................-- 279

Roma e Genebra. Novas Jerusalm da comunicao.......................-- 283

V - NOVOS HORIZONTES DE SENSIBILIDADE..............................-- 286

Bach. A msica sem fronteiras .........................................................-- 286

Nascimento da crtica bblica (sculos XVI e XVII) ..........................-- 289

A renovao protestante. Do pietismo ao pentecostalismo, passando

pelos despertares ............................................................................-- 293

Os santos e a sua nao (sculos XIV-XX)........................................-- 296

A Ortodoxia russa. Monolitismo e cises (sculos XVI-XVIII)..........-- 299

QUARTA PARTE

O tempo da adaptao ao mundo contemporneo (sculos XIX-XXI)

I - A EVOLUO DA EXEGESE BBLICA E DAS FORMAS DA

PIEDADE...................309

A Bblia e a histria das religies (sculos XIX-XX)....................309

Joo Maria Baptista Vianney, cura d'Ars (1786-1859) ...................-- 313

A renovao da teologia e do culto marianos ..................................-- 316

Teresa do Menino Jesus (1872-1897)...............................................-- 319

Pio X, a infncia espiritual e a primeira comunho..........................-- 323

Dois sculos de querelas em torno da arte sacra..............................-- 327

II -A DOUTRINA CRIST PERANTE O MUNDO MODERNO......-- 330

Um catolicismo intransigente. O "momento Pio IX" (1846-1878)..-- 330

A encclica Rerum novarum (1891) e a doutrina social da Igreja

catlica...........................................................................................-- 334

O cristianismo e as ideologias do sculo XX....................................-- 337

O Concilio Vaticano II (1962-1965).................................................-- 340

O catolicismo perante a limitao dos nascimentos.........................-- 343

III - O CRISTIANISMO DIMENSO DO PLANETA......................-- 347

Regresso histria longa do cristianismo oriental na poca otomana

(sculos XV-XIX).............................................................................-- 347

A aco missionria nos sculos XIX e XX.......................................-- 354

O protestantismo na Amrica do Norte ............................................-- 358

Do ecumenismo ao inter-religioso? ..................................................-- 361

GLOSSRIO.................................................................................................-- 365

SUGESTES BIBLIOGRFICAS ..............................................................-- 367

REFERNCIAS BBLICAS.........................................................................-- 369

OS AUTORES...............................................................................................-- 371

NDICE DOS MAPAS..................................................................................-- 377

10

PREMBULO

O cristianismo impregna, com maior ou menor evidncia, a vida quotidiana, os valores e as opes estticas, mesmo daqueles que o ignoram. Contribui para o desenho

da paisagem dos campos e das cidades. Por vezes, faz a actualidade. Entretanto, os conhecimentos necessrios interpretao desta presena vo-se apagando rapidamente

e, ao mesmo tempo, vai crescendo a incompreenso.

Admirar o monte Saint-Michel e os monumentos de Roma, de Praga ou de Belm; deleitar-se com a msica de Bach ou de Messiaen; contemplar os quadros de Rembrandt ou

saborear verdadeiramente determinadas obras de Stendhal ou de Victor Hugo implica poder decifrar as referncias crists que constituem a beleza destes lugares e

destas obras-primas. Tambm a existncia dos debates mais recentes sobre a colonizao, as prticas humanitrias, a biotica e o choque das culturas pressupe um

conhecimento do cristianismo, dos elementos fundamentais da sua doutrina, das peripcias que marcaram e ritmaram a sua histria, das etapas da sua adaptao ao mundo.

Foi nesta perspectiva que nos dirigimos a especialistas eminentes. Propusemos-lhes que pusessem o seu saber disposio dos leitores de um grande pblico culto.

Mas, sem o peso da erudio, sem o emprego de um vocabulrio demasiado especializado, sem eventuais aluses a um pressuposto conhecido que j no tem existncia

real e, evidentemente, sem vises proselitistas.

Esta obra colectiva interessar aos leitores cristos desejosos de aprofundar o seu saber e, ainda mais, a todos aqueles que, por simples curiosidade intelectual

ou para compreender melhor o seu ambiente e a cultura dos outros, desejam conhecer a histria de uma religio que, at agora, no lhes tem sido revelada deforma

suficientemente ntida.

Alain Corbin, Nicole Lemaitre, Franoise Thelamon, Catherine Vincent

11

PRIMEIRA PARTE

NO PRINCPIO

OS INCIOS DA HISTRIA

DO CRISTIANISMO

(sculos I-V)

Componente da cultura do nosso tempo, o cristianismo nasceu numa poca precisa da histria do mundo mediterrnico e do Prximo Oriente, na Antiguidade, num pas,

a Judeia, que ento fazia parte do Imprio Romano; enrazado na f e na cultura judaicas, desenvolveu-se rapidamente na cultura greco-romana.

O cristianismo surgiu com a pregao do profeta judeu Jesus de Nazar, em quem os cristos reconhecem o Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado para a salvao

dos homens. A sua f fundamenta-se no testemunho dos primeiros discpulos, que reconheceram em Jesus o Messias ou Cristo (daqui o nome de cristos que lhes foi dado),

anunciado pelos profetas. Proclamaram que aquele que tinha sido condenado morte pelas mos dos homens foi ressuscitado por Deus com o seu corpo, em que eles tocaram

- fundamento da crena dos cristos na ressurreio da carne - e que, depois, desapareceu diante dos seus olhos, tendo enviado o Esprito Santo que os amava para

anunciarem esta Boa-Nova (Evangelho) "at aos confins da Terra", conforme com a misso que Jesus lhes tinha confiado.

Na Palestina, entre judeus e no-judeus (ou gentios), foram-se formando pequenas comunidades de crentes; depois, na parte oriental do Imprio Romano e em Roma; e,

logo a seguir, no s na sua parte ocidental, mas tambm nas regies exteriores - Mesopotmia e talvez a ndia desde a poca apostlica, Armnia, Gergia e Etipia

- e, nos sculos IV e V, entre os povos brbaros: visigodos, ostrogodos e vndalos.

Os crentes cristos dos primeiros sculos viveram e praticaram a sua f nas condies concretas do mundo do seu tempo. Foi em grego que a Boa-Nova de Jesus Cristo

e os outros textos que formam o Novo Testamento foram passados a escrito, embora o aramaico, o hebraico e o siraco tenham sido conjuntamente utilizados nalguns

casos. A Bblia (Antigo e Novo Testamento - o primeiro j tinha uma traduo grega, a dos Setenta) foi traduzida nas diferentes lnguas: latim, gtico, siraco,

copta, armnio e eslavnio. Foi tambm em grego que as primeiras frmulas de f foram conceptualizadas e fixadas. Os cristos da Antiguidade usaram modos do pensamento

judaico, categorias filosficas do pensamento grego, tcnicas de discurso da retrica grega e latina para formular uma teologia que se foi apurando ao longo do tempo.

Aqueles que o fizeram - bispos reunidos em conclios, apologistas e Padres da Igreja - estavam convencidos de que se exprimiam sob a inspirao do Esprito Santo.

15

Quando se tornou evidente que o regresso de Cristo, que os primeiros cristos tinham esperado, no estava iminente, as comunidades organizaram-se e estruturaram-se,

unidas por um lao de comunho. Embora, espiritualmente, a Igreja se defina como corpo mstico de Cristo, que a sua cabea, e todos os baptizados sejam os membros,

concretamente a Igreja constituiu-se a partir das Igrejas locais unidas por um fundo comum de crenas e de ritos essenciais (baptismo e eucaristia). Com a ajuda

dos conceitos de heresia e ortodoxia, elaborados pouco a pouco, definiu-se uma doutrina que conduziu, marginalizando certas correntes, construo da "Grande Igreja".

Perseguidos pelas autoridades judaicas desde o incio, os cristos tambm o so, logo que identificados como tais, pelas autoridades romanas, que podem punir a sua

recusa de venerar os deuses comuns a todos. Apesar de sujeitos ao Estado e ao poder, pelo qual oram, os cristos distinguem-se pela sua f e apego a valores e modos

de vida que os levam a viver com os seus contemporneos, mas "no mundo sem ser do mundo". Por isso, so alvo da hostilidade popular e do desprezo das pessoas cultas.

Tanto a uns como a outros, os intelectuais cristos respondem, enquanto, em tempo de perseguio, homens e mulheres do testemunho da sua f e, at morte, reivindicam

a sua identidade crist; estes mrtires tornam-se modelos venerados; mas os pastores aceitam reconciliar, depois de uma penitncia apropriada, os que falharam e

caram. Com o fim das perseguies, o ascetismo substituiu o martrio como meio para atingir a santidade atravs de uma perfeita identificao com Cristo.

O reconhecimento da liberdade religiosa perante o fracasso das perseguies e a adeso pessoal do imperador Constantino f crist (a partir de 312), depois a dos

seus sucessores, excepto de Juliano, criam condies radicalmente novas. Doravante, o imperador concede favores aos cristos, o que permite uma certa cristianizao

do espao e do tempo. Ele tambm intervm nos negcios da Igreja e at na definio da prpria f, o que foi, durante o sculo IV, fonte de conflitos. Pouco a pouco,

tambm reprime os cultos tradicionais at os proibir no final do sculo IV, fazendo do cristianismo a religio do Estado. A esta evoluo estava subjacente uma teologia

crist do poder poltico e da histria. Os cristos tinham de pensar no s no soberano cristo e no seu lugar na Igreja, mas tambm na funo do Imprio Romano

no plano providencial de Deus para, finalmente, quando Roma foi ameaada, compreenderem que a sorte da Igreja no estava ligada a nenhum Estado, mesmo que fosse

cristo. Assim, os cristos aprendiam a ver-se como "cidados do Cu" e a aspirar ao "Reino que nunca ter fim" (Agostinho, Cidade de Deus, XXII, 30).

Franoise Thelamon

16

I

SURGIMENTO DO CRISTIANISMO

Jesus de Nazar Profeta judeu ou Filho de Deus?

Como se conhece a vida de Jesus de Nazar?

Jesus falou, mas no escreveu nada: nenhum documento dele nos chegou mo. Portanto, as fontes documentais de que dispomos so todas indirectas; mas so mltiplas.

A mais antiga a correspondncia do apstolo Paulo, redigida entre 50 e 58. Falava da morte do Nazareno por crucifixo e da f na sua Ressurreio; alm disso,

o apstolo conhece uma coleco de "palavras do Senhor" que utiliza (s vezes, sem as citar) na sua argumentao. Depois, por ordem de antigidade, vm os Evangelhos:

por volta de 65, o de Marcos foi redigido tendo por base tradies que remontam aos anos 40; os de Mateus e Lucas foram redigidos entre 70 e 80, ampliando Marcos;

o de Joo data de 90-95. Estes escritos no so crnicas histricas: fazem memria da vida do Nazareno, mas numa perspectiva de f que apresenta simultaneamente

factos e a sua leitura teolgica. Evangelhos mais tardios ausentes do Novo Testamento, ditos apcrifos, foram, por vezes, herdeiros de tradies no consideradas

pelos quatro anteriores: nomeadamente o Evangelho de Pedro (120-150), o Proto-Evangelho de Tiago (150-170) e o Evangelho copta de Tom (por volta de 150).

As fontes no crists so raras: os historiadores romanos no julgaram o acontecimento digno de ser contado. Mas um historiador judeu, Flvio Josefo, apresenta nas

suas Antiguidades Judaicas (93-94) esta notcia: "Naquela poca, houve um homem sbio chamado Jesus, cuja conduta era boa; as suas virtudes foram reconhecidas. E

muitos judeus e de outras naes fizeram-se seus discpulos. E Pilatos condenou-o a ser crucificado e a morrer..." (18, 3, 3). Mais tardiamente, o Talmude judeu

apresenta uma quinzena de aluses a "Yeshu"; estas falam da sua actividade de curador e da sua condenao morte, por ter - diz-se - extraviado o povo (Baraitha

Sanhedrin 43a; Abodoh Zara 16b-17a).

17

O que h de certo?

A reconstituio da vida de Jesus objecto de pesquisas literrias minuciosas; mas, como para todas as personagens da Antiguidade, as certezas absolutas so pouco

numerosas. Entretanto, podemos apresentar alguns factos com alguma segurana.

Jesus nasceu numa data desconhecida, que poderia ter sido o ano 4 antes da nossa era (antes da morte de Herodes, o Grande). Foi baptizado no Jordo por Joo Baptista,

de quem se tornou discpulo, antes de fundar o seu prprio crculo de aderentes. maneira de Joo, Ele espera a vinda iminente de Deus histria; tambm partilha

a convico de que, para se ser salvo, no basta pertencer ao povo de Israel: indispensvel praticar o amor e a justia. Pelos trinta anos, Jesus um pregador

popular que alcana algum sucesso na Galileia. Ao contrrio dos rabinos (doutores da Lei) da poca, Ele ensina com uma linguagem simples; as suas parbolas retomam

o quadro familiar dos seus ouvintes (o campo, o lago, as vinhas) para falar surpreendentemente de um Deus prximo e acolhedor. Simplifica a obedincia Lei, centrando-a,

como outros rabinos antes dele, no amor aos outros. Os seus numerosos actos de cura revelam que Ele era um curador talentoso e apreciado. Com o seu grupo de aderentes,

leva uma vida itinerante; vo-se aumentando e alojando nas aldeias onde param. Alm de um crculo prximo de doze galileus, h outros homens e mulheres que o acompanham

e partilham o seu ensino dirio.

A subida a Jerusalm ir causar a sua morte. Comete um acto violento no Templo, um gesto proftico que atrai a hostilidade da elite poltica de Israel: derruba as

bancas dos vendedores de animais de sacrifcio, talvez para protestar contra a multiplicao dos ritos que se interpem entre Deus e o seu povo. Ento, por instigao

do partido saduceu, decide-se denunciar Jesus ao prefeito Pncio Pilatos por causa da agitao popular. Pressentindo que a hostilidade iria apanh-lo, Jesus despedira-se

dos seus amigos durante uma ltima refeio (a Ceia), em que instaurou um rito de comunho no seu corpo e no seu sangue: o po partido e a taa de que todos bebem

simbolizavam a sua morte futura e relembrariam a sua memria. Depois da sua deteno, facilitada por um discpulo, Judas, Jesus foi levado perante o prefeito, condenado

morte e entregue aos legionrios que o pregaram numa cruz. A sua agonia durou apenas algumas horas, facto que espantou Pilatos; o homem de Nazar devia ter uma

constituio fraca. Pouco depois da sua morte, correu o boato de que os seus discpulos o tinham visto vivo e de que Deus o atrara a si.

Um reformador de Israel

Jesus de Nazar no tinha o projecto de criar uma nova religio. A sua ambio era reformar a f de Israel, simbolizada pelo crculo dos doze

18

ntimos que o seguiam. Estes homens representam simbolicamente o povo das doze tribos, o Israel com que Jesus sonha. Ele queria reformar a f judaica, mas fracassou.

Porqu?

Jesus era um mstico, dotado de uma forte experincia de Deus. A seus olhos, Deus estava prximo dos humanos, to prximo que, para lhe orar, bastava chamar-lhe

"pap" ou "paizinho" (abba em aramaico). As suas palavras e os seus gestos esto marcados por um sentimento de urgncia inadivel. O apelo para seguir Jesus comea

a quebrar as solidariedades mais intocveis: j no h necessidade de despedir-se dos seus nem de cuidar das exquias do seu pai (Lc 9,59-62). Este atentado aos

ritos funerrios e aos deveres familiares deve ter sido considerado totalmente indecente, escandaloso. Outro sinal de urgncia: a necessidade de anunciar o Reino

de Deus to imperiosa que os seus discpulos recebem a ordem de ir dar testemunho sem levar alforge nem sandlias nem saudar ningum pelo caminho (Lc 10,4).

A sua transgresso do repouso sabtico tambm chocou. Por vrias vezes, Jesus cura em dia de sbado; para se justificar, reivindica a necessidade imperiosa de salvar

uma vida (Mc 3,4). Quando Jesus comenta a Tora (a Lei), que a colectnea das prescries divinas, o imperativo do amor ao outro desvaloriza todas as outras prescries;

at o rito sacrificial no Templo de Jerusalm deve ser interrompido perante a exigncia de se reconciliar com o seu adversrio (Mt 5,23-23). Em suma: tanto as curas

como a leitura da Tora participam num estado de urgncia provocado pela iminncia da vinda de Deus. Jesus est convencido de que, dentro de pouco tempo, acontecer

a vinda de Deus que, com o seu julgamento, suprimir todas as causas de sofrimento e reunir os seus sua volta. J nada importa seno chamar converso.

Opes chocantes de solidariedade social

Os Evangelhos e o Talmude judeu falam concordantemente da tolerncia chocante de Jesus quanto s suas atitudes e amizades. Tornou-se solidrio com todas as categorias

sociais marginalizadas pela sociedade judaica daquele tempo, fosse por desconfiana social, por suspeio poltica ou por discriminao religiosa. Provocou escndalo

o acolhimento que, no seu grupo, reservava s mulheres, aos doentes e s pessoas marginalizadas; de facto, Ele considerava que as regras de pureza que probem todo

o contacto com estes so contrrias ao perdo que Deus oferece. "Eu no vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mc 2,17). Jesus no concorda com o ostracismo que

atinge os cobradores de impostos por razes polticas e os samaritanos por razes religiosas. Admite mulheres no seu crculo (Lc 8,2-3), quebrando a desqualificao

religiosa de que elas sofriam. Deixa que os doentes se aproximem dele, fazendo com que, atravs das suas curas,

19

sejam integrados no povo santo. Dirige-se ao povo dos campos, aquele "povo da terra" depreciado pelos fariseus pela sua incapacidade de cumprir o cdigo de pureza

e de pagar os dzimos sobre tudo o que produziam. As refeies de Jesus com os reprovados e as mulheres de m vida oferecem o sinal mais impressionante desta recusa

de todos os particularismos (Mc 2,15-16). Estas refeies no indicam apenas uma opo de tolerncia social e religiosa, mas tambm antecipam o banquete do fim dos

tempos, englobando desde logo todos os que o Reino de Deus acolher no futuro. Estar mesa com os desclassificados o anncio da esperana de Jesus num Reino que

visa a sociedade do seu tempo; esta esperana contradiz a estrutura fechada que a ordem religiosa fundada na Tora e no Templo tinham construdo na sociedade judaica.

Este ataque estrutura da piedade judaica - considerado blasfemo - e a sua abertura aos desclassificados atraram contra Jesus a animosidade mortal das autoridades

religiosas da sua poca.

A f no Messias

Jesus declarou-se Messias ou Filho de Deus? Se deixarmos de lado o Evangelho de Joo, que uma recomposio teolgica tardia da tradio de Jesus, os Evangelhos

mais antigos nunca pem na boca dele uma declarao sobre a sua identidade formulada na primeira pessoa. "O que dizem as multides a meu respeito? - pergunta Ele

aos seus discpulos; e depois - E vs quem dizeis que Eu sou?" (Mc 8,29). Sobre a sua identidade, Ele cala-se. O nico ttulo que os primeiros evangelistas pem

nos seus lbios "Filho do homem", o antigo ttulo daquele cuja vinda sobre as nuvens do cu era, segundo o profeta Daniel, esperada por Israel. Jesus solidarizou-se

com este ser celeste vindo de Deus. E de tal modo se lhe comparou, que se identificou com ele.

Em contrapartida, os ttulos "Filho de Deus", "Messias", "Filho de David" foram-lhe atribudos pelos primeiros cristos. Mas no devemos admirar-nos. Jesus evitou

apropriar-se do ttulo de Messias, provavelmente porque estava sobrecarregado de expectativas nacionalistas e de uma dimenso de poder violento que Ele no queria.

Depois da sua morte, os seus aderentes tomaram conscincia do que significava a sua vinda e a sua aco. E propuseram um nome sobre o que Jesus tinha deixado suspenso.

Em suma, Jesus no disse quem era, mas fez quem Ele era. Afirm-lo o papel do crente na sua confisso de f. O evento da Pscoa, a que os cristos chamam a Ressurreio,

pode ser compreendido como aquela iluminao que os seus amigos conheceram, pouco depois da morte dele, ao aperceberem-se de que Deus no estava do lado dos carrascos,

mas se solidarizava com a vtima suspensa no madeiro. A Pscoa este acontecimento visionrio em que os amigos de Jesus compreenderam que o que tinham recebido

dele e com Ele

20

vivido lhes advinha do prprio Deus; ento, eles proclamaram-no: "Deus ressuscitou-o dos mortos e ns somos testemunhas disso" (Act 3,15). Rapidamente, os primeiros

discpulos anunciaram que Deus tinha reabilitado Jesus, restituindo-o vida; e esta crena, reafirmada ao longo dos sculos, capital para a compreenso da histria

do cristianismo.

Daniel Marguerat

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No seio da primeira aliana

O ambiente judeu

O judasmo da poca de Jesus no era nada monoltico. Repartido entre o antigo reino da Judeia, tendo por capital Jerusalm, e uma importantssima dispora desde

a Babilnia ao Mediterrneo ocidental, divide-se em vrias correntes, mesmo na Judeia.

O aparecimento de vrias correntes

Quase nada se sabe do judasmo judeu na poca do Segundo Templo, entre o regresso do exlio da Babilnia (dito de Ciro, 538 a. C.) e a revolta dos macabeus que

rebenta sob o domnio do rei selucida da Sria, Antoco IV Epifnio.

Durante este perodo conturbado, o sumo sacerdcio tinha sido tirado dinastia legtima. Em 164 a. C, Judas, chamado Macabeu, conseguiu restabelecer o culto do

Templo, interrompido durante trs anos. Depois da sua morte, o seu irmo Jnatas, aproveitando as querelas de sucesso na Sria, aumentou o seu territrio, tendo-lhe

sido oferecido o sumo sacerdcio em 152 a. C. O seu irmo Simo, depois o filho deste, Joo Hircano, sucedem-lhe na dupla funo poltica e religiosa. Finalmente,

a partir de 104 a. C, Judas Aristbulo [Aristbulo I], depois o seu irmo Alexandre Aristbulo [Alexandre Janeu] (103-76 a. C.) acumulam definitivamente a realeza

e o sacerdcio nesta dinastia chamada "asmoneia".

neste contexto que aparecem as divises que, durante mais de sculo e meio, iriam agitar o judasmo da Judeia. O historiador judeu Flvio Josefo (37-95 d. C.)

menciona trs correntes a partir da poca de Jnatas: saduceus, fariseus e essnios. Segundo o seu nome, os saduceus parecem remontar a Sadoc, o sumo sacerdote do

tempo de Salomo, fundador da nica dinastia sacerdotal legtima. Literalmente, os fariseus so os "separados", os "dissidentes"; mas de quem? Os essnios levam

uma vida monacal margem da sociedade. Segundo uma parte da sua literatura, que [a partir de 1947]

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foi encontrada em Qumrn entre os manuscritos do mar Morto, o fundador da sua "seita", o "mestre de justia", teria sido perseguido por um "sacerdote mpio", em

quem muitos estudiosos querem reconhecer Jnatas, usurpador do pontificado.

Tambm h divergncias polticas a opor estas trs correntes na poca asmoneia. Os saduceus, inicialmente contrrios dinastia, acabaram por se unir a ela. Os fariseus,

sem dvida sados daqueles homens piedosos (assideus ou hassidim) que tinham combatido ao lado de Judas Macabeu, manifestam a sua hostilidade ao acumular das funes

sob Joo Hircano. Foram duramente perseguidos durante o reinado do seu filho e do seu sucessor Alexandre Janeu que, ao aperceber-se da influncia crescente dos fariseus

entre o povo, legou, antes de morrer, o trono a sua mulher Salom Alexandra (76-67 a. C), aconselhando-a a governar com os fariseus.

As tenses entre fariseus e saduceus desempenham um papel notvel na querela entre os dois irmos, Hircano II e Aristbulo II, de que Pompeu se aproveita em 62 a.

C. para instalar um controlo mais ou menos directo de Roma na Judeia. Mas quando Herodes, filho do conselheiro idomeu de Hircano II, Antipter, chega ao trono da

Judeia, graas ao apoio romano, os fariseus j se encontram na oposio.

No ano 6 da nossa era, quando Roma impe o seu domnio directo, aparece uma "quarta filosofia" que, mais tarde, inspira sicrios e zelotes, motores da revolta contra

Roma que acaba na destruio do Templo no ano 70.

Outros grupos aparecem esporadicamente na obra de Josefo: os que seguem diferentes lderes surgidos aps a morte de Herodes, os que acompanham at ao deserto os

pregadores exaltados que anunciam milagres, os que respondem ao apelo de Joo Baptista e mergulham no Jordo para se lavarem dos seus pecados. Numa clebre passagem

conhecida como Testimonium Flavianum, Josefo tambm menciona um "homem sbio", chamado Jesus, que est na origem de um novo grupo, os "cristos", do grego christos,

correspondente ao hebraico mashiah, "ungido", de que deriva a palavra "messias".

Crenas e prticas

Sobre as crenas e as prticas que distinguem alguns destes grupos, a nossa fonte principal continua a ser Flvio Josefo. Podem-se recolher alguns ensinamentos no

Novo Testamento, apesar da apresentao polmica dos fariseus e saduceus que neles encontramos. Os essnios so igualmente conhecidos pelo filsofo judeu Flon de

Alexandria (20 a. C.-50 d. C.?), mas so ignorados tanto pelos Evangelhos como pelas fontes rabnicas. Alm disso, toda a literatura judaica no cannica, transmitida,

as mais das vezes, pela Igreja nas vrias tradues, atesta a fora da corrente apocalptica bem representada em Qumrn.

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A principal discrdia entre saduceus e fariseus refere-se "lei oral" desenvolvida por estes: "Os fariseus tinham introduzido no povo muitos costumes que mantinham

dos Antigos, mas que no estavam inscritos nas leis de Moiss e que, por isso, a seita dos saduceus rejeitava, argumentando que s devia considerar-se lei o que

estava escrito" (Antiguidades Judaicas, XIII, 297).

As correntes judaicas apoiavam-se todas nos mesmos textos sagrados hebreus, cujo corpus j estava constitudo. Os fariseus tinham a reputao de serem os melhores

intrpretes dos textos e esforavam-se mais que os outros por instruir a juventude. Os mais sbios de entre eles recebiam o ttulo de rabino ("mestre"), tambm aplicado

a Jesus pelos Evangelhos. Enquanto o Evangelho de Mateus, escrito depois do ano 70, numa atmosfera polmica entre judeus e judeo-cristos, particularmente hostil

aos fariseus, Josefo, que - depois de ter descrito as trs correntes principais - optou pelo farisasmo, insiste na moral elevada e na afabilidade que o caracterizam.

A popularidade dos fariseus obrigava os saduceus a seguirem os seus usos no Templo "porque, de outro modo, o povo no os suportaria" (Antiguidades Judaicas, XVIII,

17).

Ao apresentar as trs correntes principais do judasmo de antes de 70 como trs "filosofias", Josefo volta questo da liberdade humana. Os saduceus afirmam-na

plena e inteira; os essnios, pelo contrrio, sustentam a predestinao e os fariseus conciliam as duas doutrinas. Cada um destes grupos devia apoiar-se em argumentos

escritursticos fceis de encontrar. Os essnios tinham fama de saber predizer o futuro, o que nada tem de espantoso, se se considerar que tudo est escrito. Comentrios

dos profetas encontrados em Qumrn levam-nos a descobrir uma tcnica de exegese, o pesher, que v no presente o cumprimento das profecias antigas.

A quarta corrente, nascida no ano 6 d. C, no momento do recenseamento imposto pelos Romanos s regies - Judeia, Samaria e Idumeia - que acabavam de perder a sua

independncia, segue a doutrina fariseia, mas proclama: "S Deus o mestre." Animada pela convico de combater a favor da chegada do reino divino, alimenta a resistncia

mais encarniada ao poder romano.

As idias difundidas pela literatura apocalptica puderam influenciar sicrios e zelotes. Tinha havido grandes imprios, mas doravante o Reino de Deus estava prximo.

O Livro de Daniel, composto durante a revolta dos macabeus, descrevia ao lado de Deus "um filho de homem" que representava "o povo dos santos do Altssimo". O Livro

de Henoc fazia dele uma figura individual soteriolgica. Depois da decepo causada pela dinastia asmoneia e pelo reinado de Herodes, houve quem sonhasse com um

verdadeiro rei legtimo, descendente de um David idealizado que receberia a uno real. Deste modo, a expectativa de um "ungido" ou "Messias" sobrepunha-se do

"filho de homem".

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Esta atmosfera de expectativa e espera febris, reforada pelas desgraas daquele tempo, pode explicar a busca activa de pureza que se encontra sob formas diferentes

entre os fariseus, observadores da Lei, em Joo Baptista que, pela imerso, oferece a purificao fsica e moral, e entre os essnios que, na sua grande maioria,

preferem o celibato e vivem em comunidade, numa ascese rigorosa. Ao contrrio dos saduceus, todos estes grupos partilhavam a crena na ressurreio. Esta crena,

difcil de fundamentar escrituristicamente (da, a zombaria dos saduceus expressa nos Evangelhos sinpticos), s explcita no Livro de Daniel (12,2) e no Livro

2 dos Macabeus. Na doutrina fariseia que a propaga, ela essencial para assegurar que a justia se manifestar no "mundo vindouro" ligado ao Juzo Final anunciado

pelos profetas. Este aspecto consolador explica, em grande parte, a popularidade do farisasmo. A crena nos anjos e nos demnios tambm estava bastante desenvolvida

entre os fariseus e os essnios, mas era rejeitada pelos saduceus.

O ensino de Jesus, tal como no-lo descrevem os Evangelhos, concorda em muitos pontos com a doutrina dos fariseus e visa reform-la noutros. Desde as descobertas

de Qumrn, s vezes, o "mestre de justia" tem sido visto como uma prefigurao de Jesus; pelo menos, freqente afirmar que Joo Baptista era essnio. Mas todas

as descries antigas do essenismo no-lo mostram como um grupo que vive encerrado em si mesmo, enquanto Joo e Jesus pregam diante das multides.

Entre os crentes na ressurreio, nos anjos e nos demnios e os que no acreditavam; entre os que s observavam a Lei escrita e os que lhe juntavam a Lei oral; entre

os que viviam ao redor do Templo e os que, como os essnios, viviam longe do Templo; entre os judeus da Judeia e os da numerosssima dispora, muitos cismas poderiam

ter surgido; mas a histria no regista quando aconteceram. A revolta dos judeus contra os romanos (66-73), que provocou a tomada de Jerusalm e a destruio do

Templo no ano 70, levou consigo saduceus, sicrios, zelotes e essnios. S deixou, face a face, os judeus que criam que o Messias tinha chegado e os que ainda esto

sua espera.

Mireille Hadas-Lebel

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As comunidades crists de origem judaica na Palestina

Construir a histria das comunidades crists de origem judaica na Palestina tocar no nascimento do cristianismo, o que no nada fcil; dado o estado parcelar

da documentao, o historiador obrigado a avanar por etapas sucessivas que no permitem uma sntese real.

Jesus no o fundador do cristianismo como religio independente. , quando muito, o fundador da comunidade crist de Jerusalm no quadro do judasmo do seu tempo.

Falar das comunidades crists de origem judaica na Palestina implica um estudo sobre os discpulos de Jesus, sobre as grandes figuras como Tiago, o Justo, Pedro

e Paulo, que difundiram progressivamente a sua mensagem no s nos meios judaicos como tambm pagos.

No ano 30 da nossa era, em Jerusalm, Jesus de Nazar, originrio da Galileia, que h dois anos pregador itinerante e profetiza a iminncia do reino de Deus,

preso, julgado e executado por razes poltico-religiosas - sendo Pncio Pilatos prefeito da provncia romana da Judeia. No dia seguinte morte do seu mestre, num

primeiro momento, os seus discpulos parecem ter-se dispersado por toda a Palestina. Contudo, num segundo momento, encontram-se em Jerusalm a proclamar que "aquele"

que tinha sido crucificado foi ressuscitado. Anunciam um tempo novo e a realizao, aquando do regresso de Jesus, da antiga promessa de salvao feita pelo Deus

de Israel aos antepassados do seu povo. Est prestes a nascer um movimento religioso com origens profticas e tendncias cada vez mais messinicas, constitudo por

judeus que, discpulos de Jesus, vivem do seu Esprito, de quem eles herdaram o poder criador, curando os doentes e expulsando os demnios como o seu mestre j fizera

antes deles.

Isto acontece em Jerusalm, a cidade santa do judasmo, dominada pelos romanos havia quase um sculo. A nova comunidade dos discpulos de Jesus relativamente pouco

homognea, constituda por judeus oriundos de horizontes extremamente diferentes: alguns so de cultura e de lngua hebraicas (os hebreus), outros de cultura e de

lngua gregas (os helenistas).

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Ela subsiste graas ao facto de todos porem em comum os bens vendidos para socorrer as necessidades de todos e parece ter como centro uma "sinagoga" situada no monte

Sio, no lugar onde Jesus tomou a sua ltima refeio com os discpulos mais chegados (os apstolos).

Os novos adeptos so admitidos no grupo dos "santos", como chamam a si mesmos, mediante uma iniciao em forma de uma abluo lustral - um baptismo em nome de Jesus,

o Messias. Os seus membros freqentam o Templo com assiduidade; o caso do seu primeiro responsvel, Tiago, o Justo, o irmo de Jesus.

s vezes, esta comunidade perseguida pelas autoridades religiosas judaicas, o que obrigar alguns dos seus membros a dispersarem-se, motivando a difuso da mensagem

do Reino de Deus entre as comunidades judaicas da dispora. No ano 33, um cristo de origem judaica de lngua grega chamado Estvo foi condenado morte por apedrejamento

por blasfmia contra o Templo; no mesmo ano, sem dvida, Paulo de Tarso torna-se membro do movimento dos discpulos de Jesus, vindo a ser um dos maiores missionrios

cristos conhecidos. Ento, estes cristos espalham o que consideram a "Boa-Nova" (quer dizer, o Evangelho de Jesus, o Messias): assim, em 33, Filipe, um dos sete

escolhidos pelos helenistas para o "servio das mesas" (quer dizer, para a administrao da sua comunidade), propaga-a na Samaria; em 34, cristos de origem judaica

de lngua grega so levados a criar uma comunidade em Antioquia onde os crentes recebero pela primeira vez o nome de "cristos", ou seja, "messianistas".

Cristos de origem judaica de lngua hebraica como Pedro e Tiago (o irmo de Joo, e no de Jesus) so ambos perseguidos em 43-44; o segundo executado por decapitao

por ordem de Herodes Agripa I, enquanto o primeiro obrigado a fugir em condies apresentadas como miraculosas. Ento, Pedro levado a propagar a "Boa-Nova" da

crena messinica em Jesus at Roma, a capital do Imprio. Tiago, o Justo, tambm executado por lapidao em 62, por ordem do sumo sacerdote em exerccio, por

violao da lei de Moiss - aquando de uma vacatura da procuradoria romana. Nessa ocasio, a comunidade de Jerusalm parece desorganizar-se, sendo obrigada a refugiar-se

em Pela (Transjordnia) em 68, durante o cerco da cidade pelas legies romanas; s l voltar, parcialmente, depois de 70.

No incio, a difuso da mensagem crist foi realizada em meio judaico; depois, em meio pago. Mas, na realidade, a maior parte dos no-judeus atingidos por esta

mensagem so pagos simpatizantes do judasmo, relativamente numerosos nesta poca nas comunidades judaicas do Imprio Romano.

Durante os anos 30-135, a entrada dos pagos nas comunidades provocar dificuldades pelos confrontos entre as diferentes tendncias existentes no movimento cristo.

Tiago, Pedro e Paulo esto no centro dos conflitos, cujos contornos podem resumir-se nestes termos: deveria a nova

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crena messinica impor as observncias judaicas aos pagos, nomeadamente a circunciso? Parece que as respostas foram vrias e diversificadas: para os crentes de

origem judaica mantm-se as observncias que no sero necessariamente impostas aos de origem pag - uns e outros devero partilhar a mesma mesa, pelo menos durante

a eucaristia.

Antes do conflito de Antioquia e da reunio de Jerusalm, em 49-50, quando Tiago e Pedro, de um lado, e Paulo, do outro, se enfrentaram sobre esta questo, j Pedro,

em Cesareia, tinha feito entrar para os "santos" um incircunciso e toda a sua casa, o que obrigou a explicar-se comunidade de Jerusalm: trata-se de Cornlio,

um centurio antigo simpatizante do judasmo.

A repartio dos campos de misso entre Pedro e Paulo uma idia que aparece tardiamente na literatura crist; de facto, entre estas duas grandes figuras h concorrncia

na propagao da mensagem crist, como se pode verificar no s na Anatlia, mas tambm em Roma. Sem contar que enviados de Tiago desempenharam um papel no desprezvel

nesta rivalidade. Com efeito, h um conflito nas interpretaes: alguns consideram que, para a salvao, basta acreditar no Messias (Paulo, no que concerne unicamente

os cristos de origem pag); outros julgam que necessrio observar e crer na Lei e, conjuntamente, no Messias (Tiago e, em menor escala, Pedro).

Seja como for, nos anos 60 da nossa era, h cristos por todo o Oriente romano e tambm em Roma. No so, claro, muito numerosos e vivem secretamente a sua condio

para se protegerem por todos os lados. Mas, embora constituam comunidades dispersas, partilham essencialmente, de uma forma ou de outra, a crena de que Jesus

o Messias ou Cristo enviado pelo Deus de Israel e que, apesar de condenado morte, foi arrancado aos poderes das trevas para se sentar direita do seu Pai, enviando

o seu Esprito capaz de transformar os coraes e de perdoar os pecados na expectativa e espera do seu prximo regresso.

Estas comunidades ainda permanecem no judasmo, apesar de nelas haver j a presena de cristos de origem grega. Durante um perodo dificilmente determinvel com

preciso, manter-se-o no seio do judasmo, no obstante as conseqncias das revoltas judaicas contra Roma de 66-74, de 115-117 e de 132-135. difcil falar de

cristianismo antes da segunda metade do sculo II - no melhor dos casos. Melhor dito, o cristianismo est tanto dentro do judasmo, como fora dele, mas sem constituir

uma religio desligada das suas razes judaicas.

Em meados do sculo II, o cristianismo adquire autonomia relativa em relao ao judasmo, mas sem pretender quebrar as pontes; na verdade, esta corrente religiosa

no tem data de nascimento, porque a sua edificao durou mais de um sculo, at tentativa de emancipao - um divrcio que nunca ser pronunciado, no obstante

as excomunhes mtuas. A separao ou a ruptura (?) com o judasmo ser o resultado de um

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percurso semeado de conflitos que, inicialmente, tomaro uma forma inter-judaica (entre judeus cristos e judeus no-cristos), antes de se revestir de uma forma

antijudaica (entre cristos e judeus).

Ao longo do sculo II, assiste-se marginalizao das comunidades crists de origem judaica (o judeocristianismo), em proveito das comunidades crists de origem

pag (o paganocristianismo) que havero de, progressivamente, erigir-se em "Grande Igreja".

Durante os anos 30-150/180, os cristos ainda no realizaram a utopia da unidade, embora as fontes, transmitidas pelos que se proclamam pertencentes "Grande Igreja",

afirmem evidentemente o contrrio. Na verdade, o cristianismo da "Grande Igreja" construiu-se no decurso dos sculos II e III, elaborando conceitos novos, como os

de heresia e de dogma. Foram eles que permitiram que esta se construsse custa das outras tendncias relegadas para a sombra da marginalidade, tanto judaizantes

(nazoreus, ebionitas, elcasatas...) como gnosticizantes (basilidianos, valentinianos...) ou marcionitas (Marcio), montanistas (Montano) ou, ainda, encratitas (Taciano).

De algumas destas franjas emergiro outras correntes religiosas: no sculo III, do elcasasmo nascer o maniquesmo.

Simon C. Mimouni

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Paulo e a primeira expanso crist

A cristianizao do Imprio Romano, realizada em trs sculos, foi espantosamente rpida. Pressupe um duplo processo: a expanso geogrfica da nova religio a partir

de Jerusalm e a sua penetrao nas redes e nos meios de vida do mundo greco-romano. Embora a primeira histria crist, os Actos dos Apstolos, d a impresso de

poder reconstituir as etapas de uma progresso geogrfica na bacia do Mediterrneo oriental, de Jerusalm a Roma, no seguimento das viagens de Paulo, trata-se de

uma viso hagiogrfica, destinada a mostrar a passagem do cristianismo do judasmo ao helenismo, deixando na sombra numerosos aspectos da misso, como a chegada

do cristianismo a Roma ou a Alexandria, e no tendo na devida conta a totalidade das misses de Paulo, de que no se fala a partir da sua chegada a Roma. Os escritos

do Novo Testamento contm bastante mais informao sobre os meios evangelizados do que sobre os itinerrios da misso e permitem uma anlise minuciosa da penetrao

do cristianismo em certas regies, entre as quais se deve privilegiar a sia Menor, isto , a actual Turquia, onde convergem fontes de informao variadas e contnuas.

De facto, a actividade missionria est no centro das Epstolas apostlicas, a comear pelas de Paulo, que representam um testemunho autobiogrfico insubstituvel;

das atribudas a Joo para as comunidades destinatrias do Apocalipse jonico; das colocadas sob o nome de Pedro que so dirigidas s fundaes deste apstolo na

sia Menor; e das chamadas pastorais, que emanam de comunidades paulinas desta mesma regio durante a terceira gerao. A histria local das comunidades crists

bastante mais tardia e foi construda, sobretudo, sobre os relatos de mrtires a partir de meados do sculo II.

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Paulo, o "ltimo dos apstolos"... que tambm o maior

Paulo domina toda a gerao apostlica, tanto pela sua teologia como pela sua estratgia missionria... e pela sua escrita fulgurante que, ainda hoje, constitui

uma presena excepcional. Paulo no era um discpulo como os outros porque no tinha conhecido Jesus em vida. A sua f e a sua adeso a Cristo resultam de uma srie

de experincias msticas que fundaram e fundamentaram a sua concepo antropolgica de uma re-criao do crente, mediante a unio mstica a Cristo. A primeira teve

lugar em Damasco: como fariseu militante, partira para arrasar uma seita que ele considerava desviante e mpia, teve uma viso e um chamamento que imediatamente

o converteram e comprometeram a pregar o Evangelho com o mesmo ardor que ele tinha posto em combat-lo. Paulo foi sempre independente do grupo dos discpulos, mas

reconhecia a autoridade especial de Tiago, de Joo e de Pedro, de quem recebeu ensinamentos. Portanto, seria abusivo fazer dele o fundador de uma religio nova,

muito distante da pregao de Jesus pelo facto de se dirigir aos gregos. Na realidade, toda a vida de Paulo o predestinava para se tornar um transmissor de cultura:

judeu da dispora em pas grego, poliglota, associava uma educao grega, recebida em Tarso, sua cidade natal, a uma formao de fariseu recebida em Jerusalm. Pertencendo

certamente a uma famlia de nvel internacional (sem dvida no comrcio do txtil), imediatamente viu e serviu-se das possibilidades de mobilidade e de encontros

que o Imprio Romano lhe oferecia. A sua rota cruzou algumas vezes a de Pedro em Antioquia, Corinto e Roma.

Os grande plos do cristianismo

Com efeito, as misses apostlicas no tm o objectivo de percorrer o maior espao possvel, mas o de implantar o cristianismo localmente. As tradies da Igreja

sugerem a existncia de plos que desempenharam um papel mais importante como pontos de partida da misso. O primeiro , evidentemente, Jerusalm. No dia de Pentecostes,

o horizonte missionrio do grupo dos discpulos de Jesus abre-se em trs direces. Em primeiro lugar, est a dispora oriental da Mesopotmia e dos contrafortes

iranianos, para l de Damasco - regies que efectivamente se relacionavam com Jerusalm, mas sobre as quais no temos depois nenhuma informao at ao aparecimento

da cristandade siraca e das tradies relativas ao apstolo Tom, a partir do sculo III. O segundo eixo da misso sada de Jerusalm desenvolve-se na sia Menor,

de leste para oeste, comeando nas regies continentais do planalto anatlio e terminando nas cidades mais helenizadas da costa. Segundo o testemunho das Epstolas,

isto corresponde s misses de Paulo e de Pedro, que convergiram com o desenvolvimento das comunidades jonicas

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na provncia da sia volta de feso; , portanto, o campo missionrio mais bem documentado. A terceira rea missionria corresponde ao espao dominado por Alexandria

- Creta, Cirenaica, deserto arbico e Egipto -, onde, em meados do sculo II, depois de um sculo de silncio, emerge um cristianismo intelectualmente brilhante.

Eram constantes as deslocaes e as trocas entre Jerusalm e Alexandria. No Oriente, o primeiro horizonte cristo inscreve-se no quadro geogrfico bastante convencional

dos judeus helenizados do sculo I: o de Flon, por exemplo. Quer dizer que o suporte da dispora foi determinante na elaborao dos primeiros projectos missionrios.

Roma, capital do Imprio, j est presente no horizonte do Pentecostes, na meno de judeus de Roma idos a Jerusalm para a festa. A religio de Cristo atingiu a

cidade antes da chegada de Pedro e de Paulo, sem dvida desde o reinado de Cludio, em 49 e durante os anos seguintes, no momento em que as fontes romanas e crists

assinalam perturbaes no seio das sinagogas da capital. Roma foi realmente o ponto de partida do movimento de cristianizao das provncias ocidentais - Glia,

frica e Pennsula Ibrica. verosmil que o cristianismo tenha sido levado para frica, onde s entra na histria aquando das primeiras perseguies em 180, por

judeus idos de stia, o porto de Roma, dado tratar-se de uma comunidade de lngua latina. Na Glia - onde o cristianismo emerge na mesma data, em 177, aquando da

perseguio sofrida pelas Igrejas de Lio e de Viena [a actual Vienne Isre no ls-nordeste da Frana] -, as primeiras comunidades localizam-se no vale do Rdano

e reivindicam uma origem asitica, mas parece que Roma teria servido de intermediria no envio de missionrios. A cristandade de Lio uma comunidade helenfona

como as Igrejas e as sinagogas de Roma; mergulhou num meio de negociantes e de outros profissionais idos do Oriente, todos de lngua grega. impossvel datar os

incios do cristianismo na Pennsula Ibrica. Paulo teria fixado este objectivo no final das suas trs misses no mundo grego, quando preparou a sua chegada a Roma.

Nesse momento, nos anos 60, um objectivo absolutamente inovador, porque os orientais helenizados limitavam as suas perspectivas de viagem ao Mediterrneo oriental,

que, alis, o quadro limitado dos Actos dos Apstolos. Conseqentemente, Paulo tinha sido um dos primeiros a integrar a totalidade do espao controlado por Roma

e o universalismo do Imprio, o que o conduzia progressivamente concepo da universalidade da Igreja. Este objectivo extremo-ocidental reafirmado por Clemente

de Roma nos anos 90.

As misses paulinas na estrutura do Imprio Romano

Postos assim em evidncia os grandes plos, possvel analisar mais exactamente o processo da expanso do cristianismo, graas s Epstolas de

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Paulo, que cobrem as suas misses em Antioquia, em Chipre, na Anatlia, na Macednia, na Grcia e, finalmente, na regio de feso. Felizmente, possumos referncias

cronolgicas: em 52, Paulo encontrava-se em Corinto, o que inscreve o conjunto da sua misso nos anos 50-60, mas o seu ritmo mantm-se bastante hipottico. A concepo

que ele tem das suas viagens missionrias inteiramente tradicional, j que se trata sempre de priplos ou circuitos a partir de Jerusalm com regresso ao seu ponto

de partida para prestar contas Igreja de Jerusalm ou, na terceira vez, para uma peregrinao. Freqentemente, Paulo considerado um grande viajante, mas no

podemos consider-lo um aventureiro ou um descobridor. Nessa poca, estas viagens nada tinham de extraordinrio. Ele no se esforou por ocupar o maior espao possvel,

mas antes por criar plos cristos, utilizando a infra-estrutura do Imprio para transmitir o seu Evangelho.

Em suma, Paulo passou pelas capitais provinciais do Oriente romano: Antioquia, capital da Sria; Pafos, capital de Chipre; Tessalnica, capital da Macednia; Corinto,

capital da provncia da Acaia, que corresponde Grcia antiga; feso, capital da provncia da sia. A isto, junte-se a evangelizao de colnias de veteranos romanos,

que controlavam os ns rodovirios, como Antioquia da Pisdia e Filipos da Macednia, que Paulo sempre considerou como o ponto de partida e o suporte da sua misso

na Grcia. Igualmente, numa escala muito maior, foi sempre a partir das capitais provinciais, de Alexandria, de Cartago ou de Lio, que se difundiu o cristianismo

nas provncias. As capitais provinciais eram plos de reunio para os habitantes da regio que l iam regularmente, chamados pela presena da administrao romana

e pela realizao de sesses judicirias; esta funo decuplicava-se quando estas cidades tambm eram sede de peregrinaes ou de festivais, como Corinto ou feso.

Neste lugares cimeiros da romanidade, Paulo talvez visasse a elite romana, o crculo familiar, clientelar e oficial do governador; assim que os Actos dos Apstolos

o pem em cena em Chipre. Sobretudo, como ele explica na sua Carta aos Tessalonicenses, utiliza as redes de difuso das notcias, embora a sua mensagem preceda sempre

a sua chegada a cada terra. Pode calcular-se em cerca de trs centenas de quilmetros a circulao da informao a partir de uma capital. Quando, na Carta aos Romanos,

faz o balano da sua misso na Grcia, Paulo diz que atingiu a "Ilria": mas esta expresso no pode designar a regio de lngua ilria, onde acaba o grego e comea

o mundo brbaro setentrional, porque o pas dos ilrios, nas margens do Adritico, s foi evangelizado mais tarde. Este limite lingustico situa-se na regio do

lago de Ochrid, no centro dos Balcs, a cerca de trs centenas de quilmetros de Filipos, mais ou menos a mesma distncia entre feso e as fundaes paulinas de

Hierpolis, Colossos e Laodiceia. Compreende-se por que motivo Paulo se deteve to longamente nestas capitais, que eram ns de comunicao e retransmissoras de informaes;

por isso, ficou dezoito meses em Corinto e trs anos em feso.

33

O exame dos itinerrios de Paulo e das suas passagens de uma regio para outra revelam-no como homem de recursos. Como enviado da Igreja de Antioquia, tinha sido

adjunto de Barnab, originrio da ilha de Chipre, numa misso nesta ilha; l, os dois apstolos estavam num universo familiar, porque Chipre era uma etapa intermdia

entre a Sria e a Cilcia, ptria de Paulo. A primeira escolha, estranha e significativa, foi a passagem de Chipre para a Pisdia, no centro da Anatlia. Antioquia

da Pisdia era o lugar de origem da famlia do procnsul de Chipre com quem Paulo se encontrara e mantinha relaes de amizade. Como ento faziam os viajantes notveis,

Paulo, cidado romano, usou o apoio das infra-estruturas oficiais da poca: cartas de recomendao, escolta das delegaes oficiais... A segunda passagem, tambm

determinante, a da sia para a Europa, de Trade para a Macednia. Os Actos dos Apstolos, que solenizam este acontecimento atravs de uma viso, no explicam

as suas razes secretas, mas pode deduzir-se, da estrutura do relato, que Paulo responde, sem dvida, a um convite de macednios de Filipos que, desde ento, desempenharam

um papel determinante no seu crculo pessoal. A misso desenvolve-se atravs dos conhecimentos pessoais de cada um, servindo-se dos encontros e das relaes de hospitalidade.

Mesmo que a passagem para a Europa parea altamente simblica, a verdade que havia travessias e intercmbios contnuos entre as duas margens do mar da Trcia.

A figura de Ldia, uma negociante de prpura de Filipos, originria de Tiatira na sia, corresponde perfeitamente ao que as inscries revelam sobre o comrcio txtil

e os movimentos migratrios entre as cidades da Macednia e as da Ldia. Em feso, e depois em Roma, Paulo foi precedido e chamado por um dono de loja-oficina itinerante,

quila, para quem trabalhou em Corinto. Da Macednia at Corinto, apoiou-se num certo nmero de familiares seus, como acontecia freqentemente nas disporas orientais,

fencia ou judaica.

As redes da misso crist

A misso paulina, a nica que podemos realmente estudar, foi organizada como uma penetrao por capilaridade, que utiliza as redes da cidade antiga que funcionava

como uma imbricao de comunidades, da mais pequena - que a famlia - at maior - que a cidade. A clula-me da misso a "gente da casa", o oikos, que

simultaneamente comunidade familiar e comunidade de actividade, explorao agrcola, oficina e armazm. Contrariamente famlia nuclear moderna, o oikos antigo

rene pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianas, escravos e libertos, em maior nmero nas famlias dos notveis; por isso, a sua composio transcende

as clivagens da cidade antiga entre gregos e brbaros, homens e mulheres, livres e no-livres. Os cristos de uma cidade

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reuniam-se quer por oikos, quer na morada mais espaosa de um notvel que juntava os seus vizinhos e amigos. Esta prtica continuou durante dois sculos. Tanto em

Roma como em Doura Europos, na Sria, os primeiros edifcios cristos referenciados no tecido urbano, em meados do sculo III, resultam da adaptao de grandes moradias

urbanas: so "casas-igrejas".

As actividades e as relaes dos membros do oikos inserem-no em todas as espcies de redes de sociabilidade, em funo do desenvolvimento familiar ou por afinidades,

para responder a interesses profissionais ou a servios de entreajuda, tanto em associaes e comunidades de imigrados como nas sinagogas e nas associaes desportivas

ou culturais. A vida associativa um trao caracterstico das cidades do Oriente romano na poca em que se difunde o cristianismo. Paulo utilizou claramente as

solidariedades profissionais do meio txtil, a que ele pertencia e em que trabalhava aquando das suas escalas: a oficina de quila fornece o exemplo de uma Igreja

itinerante que se desloca de Corinto para feso e para Roma. A preponderncia das relaes associativas, baseadas no convvio, justifica a importncia alcanada

em Corinto pelas questes de promiscuidade mesa e de partilha das carnes sacrificiais. De facto, a maneira como os cristos desenvolveram as suas estruturas de

entreajuda impressionou os contemporneos, desde o escritor Luciano ao imperador Juliano, dando ao cristianismo a sua primeira visibilidade, falta de imagens e

de monumentos. Portanto, os cristos organizavam-se em pequenas comunidades muito personalizadas, de seis, dez, doze indivduos, uma estrutura que ainda subsiste

na poca dos primeiros relatos de mrtires no sculo II e III. Nas cidades, constituam grupos a par de outros, sujeitos ao risco de parecerem sectrios, de que

Paulo tem perfeita conscincia em Corinto.

Esta descrio da misso paulina deve poder ser generalizada. Alis, as misses de Paulo, de Pedro e do movimento jonico seguiram os mesmos itinerrios e adoptaram

as mesmas perspectivas na sia Menor, com problemas de usurpao entre os paulinianos e os outros na regio de feso, embora a pregao jonica e a de Pedro privilegiassem

as cidades de numerosa populao judaica. A partir de implantaes pontuais em meio urbano, em volta de personalidades carismticas, a unidade da Igreja foi-se construindo

progressivamente segundo a mesma dinmica, ao redor dos bispos como personalidades de referncia e graas s novas redes que estes estabeleceram com as suas viagens

e, sobretudo, com a troca de correspondncia.

O universalismo cristo

O pensamento e a reflexo teolgicos do apstolo Paulo fizeram evoluir um messianismo judeu para uma religio de salvao para todos os habitantes do Imprio. Pode

considerar-se que o cristianismo assenta no acto de f de um grupo de galileus diante de um tmulo vazio. A Ressurreio

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est no corao da nova f: era uma esperana j viva em certas correntes judaicas, fariseias e essnias, bem como no orfismo e nos mistrios dionisacos e egpcios

do mundo greco-romano. O cristianismo conserva a concepo bblica da ressurreio dos corpos, sem entrar nas idias gregas do renascimento ou de transmigrao das

almas, divergncia que explica sem dvida o fracasso de Paulo em Atenas.

A confisso de f crist reconhece Jesus como o Cristo, o Messias anunciado pela revelao bblica, e considera que Ele veio realizar os orculos dos profetas. Os

autores do Novo Testamento referem-se sem cessar ao Antigo Testamento para p-lo em evidncia. A identificao do Messias cria a separao entre judeus e cristos,

apesar de concepes teolgicas comuns, que se acelera depois da insurreio messinica de Bar Kochba, em 135, que obriga os cristos de origem judaica a uma escolha.

Mas, mesmo depois desta data, no obstante a tentativa de Marcio, o cristianismo permanece uma religio bblica que se apropria da Bblia hebraica, ao mesmo tempo

que vai surgindo uma literatura de propaganda dirigida a notveis do mundo greco-romano.

Como as outras religies de salvao do Imprio, o cristianismo dirige-se a indivduos, independentemente da sua origem tnica e do seu estatuto: na vivncia das

comunidades paulinas, j no h diferena entre judeus e gregos, homens e mulheres, pessoas livres e escravos, habitantes do Imprio e brbaros. Assim, a eclesiologia

paulina baseia-se na paridade e na reciprocidade, o que exclui, por exemplo, toda a misoginia original que s aparece no sculo II, em conformidade com uma evoluo

geral da sociedade. A tica crist assenta inteiramente na imitao de Cristo: em perodo de perseguies, termina no martrio. A nova religio a nica cujos membros

foram designados pelos romanos em referncia ao seu fundador, christiani, "os de Cristo".

Mais do que qualquer outra, a religio crist baseia-se na adeso pessoal, o que a faz parecer uma seita, ambigidade de que Paulo tem conscincia, ao observar a

exploso da cristandade de Corinto volta de personalidades opostas e que ultrapassou ao afirmar a vocao universal da Igreja no espao do Imprio e ao trabalhar,

com a sua correspondncia, na unio das primeiras comunidades que ele fundara.

Marie-Franoise Baslez

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II

VIVER COMO CRISTO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO" (A DIOGNETO)

Perseguidos, mas submetidos ao Imprio Romano (at 311)

Os cristos foram perseguidos desde que, identificados como tais, deixaram de beneficiar do estatuto privilegiado dos judeus. A perseguio, inicialmente pontual,

local e espordica, tornou-se sistemtica em meados do sculo III. Porque se perseguiam os cristos no Imprio Romano, considerado "tolerante" relativamente a tantos

cultos diferentes?

A frase de Jesus "dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus" (Mt 22,21) fundamentava no s o lealismo poltico dos cristos e a sua sujeio ao Estado,

mas tambm a separao dos domnios poltico e religioso, quando a sua intricao era a norma no mundo antigo. Porque professam um monotesmo exclusivo e recusam

o culto dos deuses, os cristos so considerados maus cidados, perigosos para a salvao do Imprio. O seu "atesmo" pe em perigo o necessrio acordo harmonioso

entre os deuses e os homens, esta paz dos deuses que garante, pelo estrito cumprimento dos ritos dos cultos pblicos, o bom funcionamento do mundo romano. Os cristos

sujeitam-se aos governantes porque todo o poder vem de Deus e, mesmo perseguidos, oram a Deus pelo imperador e seus representantes, mas recusam o culto imperial.

Na ausncia de legislao anticrist, o zelo dos governadores era determinante em relao a estes adeptos obstinados de uma "superstio perigosa e insensata": bastava

aplicar as leis da poca republicana contra as religies novas e ilcitas. Era o facto de ser cristo que era punido de morte, e no os pretensos delitos. Foi essa

a jurisprudncia estabelecida em 112, na resposta do imperador Trajano a Plnio, o Jovem, que, nomeado governador da Bitnia (na sia Menor), acabava de descobrir

a presena de numerosos cristos; todavia, o imperador recomendava que no os procurasse e recusasse as denncias annimas. Os cristos, punidos pelo

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que so e no pelo que fazem, so mais vtimas do dio que anima a opinio pblica, s vezes at ao massacre, e do zelo dos governadores, do que de uma vontade poltica

de represso.

Em Roma, no ano 64, na seqncia do incndio que devastava a cidade, foram executados cristos, "condenados no tanto pelo crime de incndio quanto pelo dio do

gnero humano", como escreveu o historiador Tcito, por volta de 115-116. Foram entregues s feras, crucificados ou transformados em tochas ardentes durante os jogos

no anfiteatro dos jardins de Nero. Foi verosimilmente no decurso deste "suplcio grandemente espectacular" que o apstolo Pedro foi crucificado. Como cidado romano,

Paulo, levado do Oriente para Roma, foi decapitado, depois de um processo, em 66 ou 67.

Houve perseguies pontuais e locais durante o sculo II: na Bitnia e em Antioquia sob Trajano (98-117); na provncia da sia, aquando e a pretexto de manifestaes

populares; sob Adriano (117-138); sob Antonino (138-161), o cristo Ptolomeu em Roma e o bispo Policarpo em Esmirna foram condenados, unicamente por serem cristos;

nota-se uma recrudescncia das perseguies no reinado do imperador filsofo Marco Aurlio (161-185) que no tem seno desprezo pelos cristos, apesar da coragem

dos mrtires diante da morte. Os cristos foram responsabilizados pelas desgraas do tempo e constituem vtimas potenciais de ritos expiatrios. Assim, o filsofo

e apologista Justino foi condenado morte em Roma, enquanto em Lio, em 177, o velho bispo Potino e vrios cristos morrem na priso; Sanctus, o dicono da Igreja

de Vienne Isre, talo, cidado romano, a escrava Blandina, o adolescente Pntco e outros foram entregues s feras no anfiteatro das Trs Glias; os seus corpos

foram oferecidos aos ces, depois queimados e as cinzas lanadas ao Rdano; em Prgamo, cristos so torturados, depois queimados vivos no anfiteatro. Em 180, pela

primeira vez na frica do Norte, so decapitados cristos por causa da sua f; em Roma, alguns so condenados aos trabalhos forados nas minas da Sardenha. Mas tambm

se vem governadores soltar cristos e o imperador Cmodo amnistiar confessores por influncia de quem o rodeia, porque o cristianismo penetrou em todos os meios,

at mesmo na corte.

Doravante, os cristos so mais numerosos; em cada cidade, a Igreja local organiza-se com o bispo cabea, assistido por presbteros e diconos; esta organizao,

conhecida tanto pelas autoridades como pelo pblico, pode ser comparada com os colgios cvicos ou corporaes, o que permite ter lugares de culto e cemitrios.

Entretanto, as perseguies continuam. Algumas visam os convertidos, catecmenos e novos baptizados bem como os seus catequistas: em Alexandria, em 202-203; em Cartago,

onde so detidos alguns catequistas, entre os quais duas jovens mulheres, Perptua e Felicidade; julgados e condenados s feras, so executados no dia 7 de Maro

de 203, com o seu catequista, depois de terem sido baptizados na priso; tinham recusado ser vestidos, os homens com os hbitos dos sacerdotes

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de Saturno e as mulheres com os das iniciadas de Ceres, para que o seu sacrifcio no se transformasse em sacrifcio aos deuses da frica romana. As denncias e

a presso popular suscitam sempre chamas de violncia, como o massacre anticristo de 249, em Alexandria. Os cristos em perigo de morte exaltaram o ideal do mrtir,

testemunho absoluto de f, realizao da perfeio crist pela imitao de Cristo crucificado, fracasso aparente que se transcende em triunfo.

Ao longo do sculo III, o Imprio confrontado com graves provaes (invaso dos godos, catstrofes naturais) interpretadas como sinais da ruptura da paz dos deuses;

para restaur-la, o imperador Dcio ordena que se faa, no dia 3 de Janeiro de 250, uma splica geral: todos os cidados (praticamente todos os habitantes livres

do Imprio desde 212) e as suas famlias devem realizar um acto religioso em honra dos deuses - oferenda de incenso, libao, sacrifcio ou consumo de carne consagrada;

e so entregues certificados - que alguns compraram. Propriamente falando, no se tratava de um dito de perseguio, mas o facto desencadeou-a porque visava condenar

ou fazer abjurar quem se recusava submeter-se. Numerosos cristos submeteram-se espontaneamente, alguns abjuraram, obrigados, outros, sujeitos tortura, resistiram:

so os confessores; alguns foram condenados morte: so os mrtires. A perseguio cessou com a morte de Dcio, em 251, mas foi retomada quando o seu sucessor ordenou

numerosos sacrifcios pblicos para afastar uma epidemia de peste; e novamente as multides hostis gritavam: "Os cristos aos lees!" Os apstatas tinham sido mais

numerosos que os mrtires e que os confessores, nomeadamente na frica. Evitando o duplo escolho do rigorismo e do laxismo, Cipriano, bispo de Cartago, preconizou

uma penitncia proporcional falta, que foi adoptada por um conclio africano, em comunho com o bispo de Roma, Cornlio. Assim, foi definida para a Igreja universal

uma disciplina de penitncia e de misericrdia.

Em 257-258, por causa da situao particularmente grave, o imperador Valeriano ordenou uma perseguio geral dos cristos, a fim de obviar ao descontentamento popular

contra os cristos, considerados responsveis. Pela primeira vez, dois ditos visam-nos explcita e exclusivamente: em 257, as reunies e o acesso aos cemitrios

so interditos; bispos, presbteros e diconos devem sacrificar sob pena de exlio e de confiscao dos bens; em 258, a morte de clrigos e pessoas de elevada

categoria social. A perseguio torna-se sangrenta: em Roma, o bispo e quatro diconos so decapitados; Cipriano e outros bispos africanos, alguns das Hispnias

e Dinis de Lutcia (Paris) tambm o foram.

Depois da captura de Valeriano pelos persas, seu filho Galiano, preocupado com a paz civil, mostra-se realista e suspende a perseguio em 260, autorizando os cristos

a recuperar lugares de culto e cemitrios. Embora a religio crist no fosse reconhecida como legal, os cristos beneficiaram durante quarenta anos de um perodo

de paz que permitiu

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Igreja desenvolver-se, certamente de maneira desigual, consoante as regies. Convm, no entanto, no sobrestimar esta expanso, que pode atingir de cinco a quinze

por cento da populao, mais no Oriente e na frica, bastante menos nas regies pouco urbanizadas do Ocidente.

A partir de 284, o imperador Diocleciano empreende a reorganizao do Imprio e chama a si trs colegas que formam, em 293, um colgio de quatro imperadores (a tetrarquia).

Esta obra implicava uma estrita coeso religiosa no quadro da religio tradicional, o que conduziu perseguio de quem a recusasse: dos maniqueus em 297 e dos

cristos a partir de 303. Quatro ditos anunciam as proibies e as penas cada vez mais severas: arrasar as igrejas, queimar as Escrituras, despedimento dos oficiais

e funcionrios cristos, depois priso dos chefes das Igrejas e, finalmente, obrigao de todos sacrificarem, sob pena de morte. A aplicao destas medidas foi varivel:

a perseguio foi muito dura no Oriente at 311 (e mesmo depois), brutal na Hispnia, na frica e na Itlia at 306, restrita na Glia, domnio do imperador Constncio,

tolerante, se no mesmo simpatizante, do cristianismo.

Em 311, o imperador Galrio, perseguidor obstinado, reconheceu o fracasso de uma perseguio que, por mais sangrenta que tivesse sido, no havia conseguido erradicar

o cristianismo. Realista, mas no contra a vontade, decide mostrar-se "indulgente". Concede o direito de ser cristo, de reedificar os lugares de reunio e acrescenta:

"Os cristos devero orar ao seu Deus pela nossa sade, pela do Estado e pela sua prpria." Havia trs sculos que eles no pediam outra coisa! O cristianismo era

legalmente reconhecido.

A deciso tomada em Milo em 313 pelos imperadores Constantino, pessoalmente convertido, e Licnio concede "aos cristos, como a todos, a liberdade de poderem seguir

a religio de sua escolha, de modo que o que h de divino na morada celeste possa ser benevolente e propcio". Era reconhecida a liberdade de religio e de culto,

algo profundamente novo. O martrio deixava de ser - pelo menos por agora - a via real de acesso santidade; o culto dos mrtires e a venerao das suas relqias

desenvolveram-se. Encontraram-se, particularmente no ascetismo, outros modos de testemunho da f, outros meios para aceder vida perfeita.

Franoise Thelamon

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"Vivemos convosco", mas...

Os cristos e os costumes do seu tempo

Animados por uma f exclusiva que no tolera compromissos, os cristos recusam toda a participao nos cultos tradicionais: no apenas cerimnias e festas em honra

dos deuses, mas tambm formas de sociabilidade que delas fazem parte, como banquetes e espectculos, e o consumo da carne de sacrifcio.

Certas profisses ou estados de vida so incompatveis com o baptismo que, ento, deve ser recusado ou adiado: todos quantos esto ligados aos cultos, aos templos,

adivinhao e at magia; ao anfiteatro, ao circo e ao teatro, prostituio e tambm a profisso de soldado, as magistraturas que implicam o poder da espada

e/ou o cumprimento de ritos em honra dos deuses ou dos imperadores. Portanto, os cristos mantm-se margem de uma parte da sua vida pblica; por isso, so acusados

de misantropia e de "dio ao gnero humano" (Tcito). Como a sua f informa prticas religiosas, individuais e colectivas que lhes so prprias, os cristos so

suspeitos de formar uma seita perigosa devotada a uma "v e louca superstio", porque adoram como deus um criminoso devidamente condenado por um magistrado romano

ao mais infame dos suplcios, o da cruz. So acusados de realizar ritos horrendos ou imorais - matana de crianas, canibalismo, magia - e de terem costumes sexuais

depravados. Finalmente, os intelectuais e os meios cultos desprezam-nos. Deste modo, para o filsofo Celso (ca. 178), so pessoas da "ltima ignorncia", "sem educao"

nem cultura, que enganam os espritos fracos (mulheres e crianas, artesos, escravos e libertos) servindo-se da sua credulidade, sendo gente que pe em perigo a

famlia e a sociedade.

A estas acusaes, os cristos respondem: "No fazemos nada de mal", os nossos costumes so puros. "Vivemos convosco, levando o mesmo gnero de vida", escreve Tertuliano,

por volta de 197, afirmando que os cristos cultivam a terra, comerceiam, freqentam o foro, o mercado, as termas, as lojas, as estalagens, as feiras, em suma, vivem

com os seus concidados e como eles. De facto, os cristos afastam-se dos costumes e

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das formas de sociabilidade do mundo do seu tempo, quando so incompatveis com a sua f e os seus valores.

As suas refeies em comum, os seus gapes - que provocavam tanto mexerico -, so emblemticos da sociabilidade crist: sob o olhar de Deus, esto marcados pela

modstia, pelo pudor e pela sobriedade (neles no se bebe demasiado e cantam-se hinos em honra de Deus). Um cristo pode freqentar as termas, mas s para se lavar;

pode utilizar incenso em honra dos mortos. "Quanto aos espectculos, renunciamos a eles", escreve ainda Tertuliano, que denuncia a loucura do anfiteatro, onde as

corridas provocam o desencadear frentico das paixes, a imoralidade do teatro, a atrocidade do circo, onde o espectador vive um prazer sdico de assistir morte

de seres obrigados a matarem-se - os gladiadores - ou a exporem-se s feras, a frivolidade das competies desportivas. A crtica crist, alm de se juntar de

alguns filsofos (os esticos), s corridas e aos jogos do anfiteatro, acrescenta-lhe uma denncia do carcter idoltrico e, portanto, diablico - os deuses so

identificados com os demnios - de certas prticas, de que, alis, nem os seus prprios contemporneos j teriam conscincia, como o carcter religioso do cortejo

que, no circo, preludiava o desenrolar das corridas ou, ainda, o facto de os combates dos gladiadores terem a sua origem no sacrifcio humano em honra dos mortos.

Por isso, a renncia aos espectculos realmente um sinal distintivo dos cristos. Mas teria sido sempre respeitado? As ordens e os avisos regularmente repetidos

at ao sculo V permitem que se duvide.

Ao recomendar s mulheres crists que "s agradem ao [seu] marido" e, portanto, no usem artifcios de seduo como maquilhagem, jias e vestidos luxuosos ou impudicos,

Tertuliano afirma precisamente que h uma regra comum e que um esposo, cristo ou no - o que era freqentemente o caso -, considere a castidade o mais belo dos

adornos. Neste ponto, a moral crist concorda com a moral comum, excepto nos usos. Mas Tertuliano tambm convida as mulheres crists a sarem de casa para socorrer

os pobres, participar no santo sacrifcio e ouvir a palavra de Deus; admite as visitas de amizade a no-crists para que lhes sirvam de exemplo. Igualmente, Clemente

de Alexandria (ca. 190) esfora-se por "esboar" - em O Pedagogo - "o que deve ser em toda a sua vida quem se chama cristo", d conselhos muito prticos para viver

no mundo com simplicidade, moderao e autodomnio, e usar bem o que Deus criou. Mas necessrio ter em conta o facto de estes conselhos de tica e de vida quotidiana

constiturem um discurso normativo dirigido a uma certa categoria social abastada. No sabemos grande coisa da vida concreta da maioria annima das pessoas comuns,

homens e mulheres, cristos ou no. Alm disso, o adiamento do baptismo para perto da morte tambm permitia continuar a viver "como antes", sem contar a presso

social e os cargos a que os notveis das cidades podiam eximir-se.

Ao fazer da unio de Cristo e da Igreja o modelo do casamento, os cristos estabeleceram o fundamento de uma tica especfica da unio conjugal,

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baseada no autodomnio e na fidelidade mtua dos esposos. Deste modo, o homem que vive em concubinato deve casar-se para ser admitido ao baptismo, mas a escrava

concubina do seu dono, que educou os seus filhos e no tem relaes sexuais com outros homens, pode ser baptizada. Entre as correntes sectrias, como os marcionitas,

que preconizam a continncia absoluta tanto para os homens como para as mulheres, os que negam o primado da virgindade (Joviniano) ou os que ridicularizam as mulheres

casadas (Jernimo), o equilbrio mantido pelos responsveis das comunidades que insistem no valor do casamento, embora o modelo da virgindade consagrada seja exaltado

no sculo IV, com o desenvolvimento do ascetismo. Ao reprovar o adultrio, tanto do homem como da mulher, e o uso sexual dos jovens, e sem estabelecer diferena

entre livres e escravos, os pregadores cristos contribuem para que os homens tomem conscincia da dignidade igual de todos os seres humanos. O mesmo se diga quando,

contra o uso estabelecido, os cristos se recusam a abandonar os recm-nascidos indesejveis, mesmo que se trate de crianas malformadas.

Ao responderem "Sou cristo" ao magistrado que tinha o poder de conden-los morte e, talvez mais ainda, "Sou crist", no caso das mulheres, os/as futuros/as mrtires,

ao recusarem pronunciar a sua identidade, ao recusarem apresentar a sua origem familiar patrcia ou nobre, ou a sua qualidade de cidado romano, acediam dignidade

de pessoas e de sujeitos do seu prprio destino, em nome da sua f. Tertuliano foi o primeiro a dirigir-se s mulheres num tratado sobre a toilette, inovao que

foi continuada. Pregadores, retricos e filsofos cristos trataram da educao, tanto das raparigas como dos rapazes, e depois, no sculo IV, da virgindade, do

casamento e da viuvez, em cartas e tratados freqentemente destinados s mulheres, contribuindo para desenvolver a nova tica familiar, primeiro nos meios abastados,

e depois difundindo-se gradualmente em toda a sociedade.

De facto, os cristos esto numa situao paradoxal, como explica o autor do escrito A Diogneto (redigido em Alexandria entre 190 e 210, sem dvida a um magistrado

encarregado de um inqurito sobre os cristos): "Os cristos no tm nada diferente dos outros homens [...]; no vivem em cidades parte [e] conformam-se com os

usos locais, mas tambm seguem as leis extraordinrias [...] da sua repblica espiritual." Simultaneamente semelhantes e diferentes, os cristos tm outros valores

e outros comportamentos diversos dos seus concidados. Ao contrrio dos esticos, que pretendem ser "cidados do mundo", os cristos "passam a sua vida na Terra,

mas so cidados do Cu". Habitando nas cidades do mundo, so como a alma no corpo. Como "a alma habita no corpo, mas no est no corpo, assim os cristos moram

no mundo, mas no esto no mundo". Conscientes da sua identidade e do que ela implica, os cristos no deixam de reivindicar, salvo em certas correntes sectrias,

a sua pertena a uma famlia, a uma cidade e ao Imprio Romano, e a sua ligao cultura greco-romana.

Franoise Thelamon

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Respondendo s crticas

Os apologistas, de Aristides a Tertuliano

O conflito que opunha a jovem comunidade crist massa do povo, sua elite intelectual e s autoridades levou os seus membros mais cultos a tomar a palavra para

defender (apologeisthai) os seus correligionrios, endereando splicas aos poderes ou cartas abertas aos seus compatriotas: so os autores a quem geralmente se

chama apologistas, palavra que se aplica mais especificamente aos autores de lngua grega do sculo II. Este movimento prolongou-se pela primeira metade do sculo

III, pelo IV (Eusbio e Atansio) e at ao incio do sculo V (Agostinho, Cirilo e Teodoreto).

A apologtica primitiva parece largamente tributria da tradio judaica. ilustrada pelo ateniense Aristides, que dirige o seu libelo ao imperador Adriano, aquando

da sua estada na tica, por volta de 124-125. Esta obra, de contedo bastante rude, segue um plano muito simples: depois de um exrdio sobre a existncia e a natureza

do verdadeiro Deus, Aristides passa em revista o erro dos brbaros (o culto dos elementos), o dos gregos (o politesmo associado zoolatria egpcia) e o dos judeus

que honram o verdadeiro Deus sem o conhecerem; e segue-se uma exposio sobre a piedade dos cristos. Esta diviso em quatro "raas" a primeira afirmao testemunhal

datada da separao da Igreja e da Sinagoga. Tambm se encontram em Aristides fragmentos de frmulas de f, compreendendo a afirmao da unicidade de Deus, nico

criador, e a confisso do Filho, Deus vindo carne "pelo Esprito", para assegurar a salvao dos homens, crucificado, morto e ressuscitado.

A actividade de Justino, que dirigiu ao imperador Antonino e ao Senado, entre 150 e 155, duas splicas (biblidia), marca o apogeu do gnero. Nascido em Naplusa [antiga

Siqum, Israel], de uma famlia de colonos helenizados, no circuncidados, formado na filosofia pag (afirma-se discpulo de Plato), Justino converte-se depois

e na seqncia de um itinerrio espiritual de que faz um duplo relato, realando, ora o valor exemplar da coragem dos cristos, ora a fora de convico de um didscalos

(mestre, professor) encontrado em feso e dos escritos que ele lhe deu a conhecer. Esteve em Roma por duas vezes: uma assinalada por

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disputas com o filsofo cnico Crescendo, a outra terminada com o seu martrio sob Marco Aurlio entre 163 e 168. Dele foram-nos igualmente transmitidos um dilogo

com o judeu Trifo, que contm em germe toda a argumentao contra os judeus desenvolvida nos sculos seguintes, e um tratado Sobre a Ressurreio dirigido contra

cristos heterodoxos, sem dvida os gnsticos. Justino est na origem de um gnero literrio novo, que se define mais pelo fundo que pela forma; ao servirem-se dos

seus escritos, Taciano, Atengoras e Tertuliano afirmam-se implicitamente seus seguidores. O seu uso das Escrituras, e mais particularmente dos testemunhos (testimonia)

cristolgicos, marca uma etapa importante na afirmao da exegese crist. Por fim, contribui de forma decisiva para o progresso da reflexo cristolgica: ao definir

o Filho como "outro Deus", segundo em categoria, afirmando tambm a sua unidade com o Pai, ele concilia a unidade e a distino dos dois numa perspectiva de subordinao

que ser reg