revista terceira margem - dossie kafka - jul-dez 2013

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ISSN: 2358-727X TERCEIRA MARGEM (ONLINE) DOSSIÊ KAFKA, UM POETA DA PROSA MIÚDAREVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA DA UFRJ ANO XVII. Nº 28. JULHO-DEZEMBRO / 2013

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Revista Terceira Margem - Dossie Kafka - Jul-Dez 2013

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issn: 2358-727x

TERCEIRAMARGEM

(ONLINE)

dossiê kafka, um poeta da “prosa miúda”

REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM CIÊNCIA DA LITERATURA DA UFRJ

ANO XVII. Nº 28. JULHO-DEZEMBRO / 2013

TERCEIRAMARGEM

(ONLINE)

terCeira marGemRevista semestral publicada pelo Programa de Pós-graduação em Letras (Ciência da Literatura) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Divulga pesquisas nas áreas de Teoria Literária, Literatura Comparada e Poética, voltadas para literaturas de língua portuguesa e línguas estrangeiras, clássicas e modernas, contemplando suas relações com filosofia, história, artes visu-ais, artes dramáticas, cultura popular e ciências sociais. Tam-bém se propõe a publicar resenhas críticas, para avaliação de publicações recentes. Buscando sempre novos caminhos teóri-cos, Terceira Margem segue fiel ao título roseano, à inspiração de um pensamento interdisciplinar, híbrido, que assinale supe-rações de dicotomias em busca de convivências plurívocas capa-zes de fazer diferença.

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura

Coordenadora

Danielle dos Santos Corpas

Vice-coordenador

Ricardo Pinto de Souza

Editor Executivo

Ricardo Pinto de Souza

Editores Organizadores deste número

Alberto Pucheu e Flavia Trocoli

Revisão deste número

Sofia Nestrovski

Conselho Consultivo

Alberto Pucheu, Ana Maria Alencar, Danielle Corpas, Edu-ardo Coutinho, Flavia Trocoli, João Camillo Penna, Manuel Antônio de Castro, Vera Lins

Conselho Editorial

Cleonice Berardinelli (UFRJ), Emmanuel Carneiro Leão (UFRJ), Ettore Finazzi-Agrò (Universidade de Roma La Sa-pienza — Itália), Helena Parente Cunha (UFRJ), Jacques Leenhardt (École des Hautes Études en Sciences Sociales — França), Leandro Konder (PUC-RJ), Luiz Costa Lima (UERJ/PUC-RJ), Manuel Antônio de Castro (UFRJ), Marcus Lasch (UniFESP), Maria Alzira Seixo (Universidade de Lisboa — Portugal), Pierre Rivas (Universidade Paris X-Nanterre — França), Roberto Fernández Retamar (Universidade de Ha-vana — Cuba), Ronaldo Lima Lins (UFRJ), Silviano Santiago (UFF)

universidade federal do rio de janeiro

Reitor

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa

Debora Foguel

Centro de letras e artes

Decana

Flora de Paoli

faCuldade de letras

Diretora

Eleonora Ziller Camenietzki

Diretora Adjunta de Pós-graduação e Pesquisa

Angela Maria da Silva Corrêa

issn: 2358-727x

TERCEIRAMARGEMdossiê kafka, um poeta da

“prosa miúda”

REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM CIÊNCIA DA LITERATURA DA UFRJ

ANO XVII. Nº 28. JULHO-DEZEMBRO / 2013

terCeira marGem© 2013 Copyright dos autores

Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura

Homepage: http://www.revistaterceiramargem.com.br

e-mail: [email protected]

Todos os direitos reservados

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura

Faculdade de Letras / UFRJ

Av. Horácio Macedo, 2151 — Bloco F — Sala 323

Cidade Universitária — Ilha do Fundão

21941-917 — Rio de Janeiro — RJ

Tel: (21) 2598-9702 Fax: (21) 2598-9795

Homepage: www.ciencialit.letras.ufrj.br

e-mail: [email protected]

Layout e produção da versão online:Laboratório de Edição do PPG

Homepage: http://labedicao.com

e-mail: [email protected]

Os textos publicados nesta revista são de inteira responsabilida-de de seus autores.

TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janei-ro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-gradua-ção, Ano XVII, n. 28 jul. -dez. de 2013. (versão online)

328 p.

1. Letras — Periódicos I. Título

II. UFRJ/FL — Pós-graduação

CDD: 405 CDU: 8 (05) ISSN: 2358-727x

SUMÁRIO

Apresentação: Kafka, um poeta da “prosa miúda” p. 11Alberto Pucheu e Flavia Trocoli

Quatro glosas a Kafka p. 25Giorgio Agamben

Escritas de luz: Der Prozess — The trial p. 43Michael Löwy

Kafka, Benjamin e Derrida: diante da lei p. 79Carla Rodrigues

Rapina de pombos e a extensão do abismo — Kafka, se-creto ao outro p. 106

Piero Eyben

Kafka e Josefina ou: a solidão da singularidade p. 140Ricardo Timm de Souza

No arco da luz obscura p. 162Claude Le Manchec

Uma leitura da “Carta ao pai”, de Kafka p. 201Filipe Pereirinha

A quem pertence Kafka? p. 222Judith Butler

“Um afogado sonhando com salvação”: a doutrina das portas em Franz Kafka p. 261

Márcio Seligmann-Silva

Ulisses em Kafka p. 292Stéphane Mosès

Sobre os autores p. 330

Chamada de artigos p. 330

Colaboradores deste número p. 336

TERCEIRAMARGEMdossiê kafka, um poeta da

“prosa miúda”

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Apresentação, a. pucheu; f. trocoli | p.11-24

APRESENTAÇÃO: KAFKA, UM POE-TA DA “PROSA MIÚDA”

Alberto Pucheu e Flavia Trocoli

Teoria Literária | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ — Rio de [email protected] | [email protected]

Em “Catorze contos exemplares”, Modesto Carone nos deixa saber que, em um intervalo de seis meses, Franz Ka-fka se recolheu na minúscula casa da rua dos Alquimistas, em Praga, para dedicar-se à escrita, longe da repartição e da casa paterna. Nesse conjunto de casinhas, que lembram imediatamente aquelas dos contos de fada, alquimistas da Idade Média travavam uma luta de vida e morte para transformar chumbo em ouro. Para aqueles que desespe-ravam do êxito, a saída era se atirar no precipício que se abria nos fundos daquelas portas baixas e estreitas. É nes-se cenário que Kafka escreverá aquilo que ele chamou de “prosa miúda”.

Após tal designação, Kafka afirma duas vezes a seu edi-tor, Kurt Wolff, que “O veredicto” se confunde com um po-

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ema. Primeiramente, em um cartão postal de 14 de agosto de 1916: “‘O veredicto’, ao qual atribuo uma importância particular, é seguramente bem pequeno, mas também é mais um poema que uma narrativa, ele precisa de espaço livre em volta dele e não é indigno de tê-lo”; cinco dias de-pois, ele retoma a colocação:

Isso que para mim fala, sobretudo, a favor de O veredicto ser publicado separado é: essa narrativa depende menos da for-ma épica que do poema, por isso, ele precisa de um espaço livre diante dele se ele deve produzir todo o seu efeito. E, ain-da, ele é, dos meus textos, o que eu prefiro, de onde vem o desejo que eu sempre tive de deixá-lo se impor, se possível, de modo independente.

Se, em agosto de 1912, enviando Contemplação ao mes-mo editor mencionado, ele qualificou os escritos que com-põem tal livro de kleine Prosa, “prosa miúda”, com “O ve-redicto”, dele, poderia dizer keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes era um movimento pequeno ou miúdo de sua prosa, transformando-se, ganha explicitamente a desig-nação de “poema”. Poemas, prosas miúdas, poemas em prosa, romances, novelas, contos, aforismas, diários, car-tas, fragmentos, testemunhos, parábolas, apólogos... Uma abundância de modos dispersivos de escrita que quer se expandir ao extremo, retirando, a cada momento, o espe-cificamente literário de sua zona de conforto.

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O excessivo dessa turbulenta propagação discursiva rompe a fronteira entre o literário e sua anterioridade. É significativo que, como nos relata Gustav Janouch, Kafka denomine esse estado pré-literário de seus escritos de “no-tas para uso pessoal”, “brincadeiras”, “documentos pesso-ais”, “testemunhos de minha solidão”, dizendo que quem o torna “literatura”, quem, em algum grau, institucionaliza sua escrita, retirando-a de sua ambiência pré-literária são seus amigos:

Max Brod, Felix Weltsch, todos os meus amigos se apoderam regularmente de tal ou qual coisa que escrevi, e em seguida me surpreendem chegando com um contrato de edição em boa e devida forma. Não quero causar-lhes dificuldades e é assim que, para acabar, se publicam coisas que de fato só eram notas para uso pessoal, ou brincadeiras. Documentos pessoais, atestando minha fraqueza de homem, estão im-pressos e mesmo vendidos, porque meus amigos, a começar por Max Brod, encasquetaram torná-los literatura e porque eu, por meu lado, não tenho força para destruir esses teste-munhos de minha solidão.

A importância da pregnância de diversos modos de es-crita, inclusive dos que são habitualmente chamados de autobiográficos, arrasta a exclusividade do que seria o li-terário (em qualquer uma de suas positividades) para uma zona periférica e deixa um centro vazio — motor de todo escrever — que, questionando o próprio conceito histórico

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de literário, não permite, com sua força centrífuga, hierar-quizar os modos de escrita em turbilhão.

Deleuze e Guattari iniciam o seu Kafka: por uma literatura menor justamente com a seguinte pergunta: “Como entrar na obra de Kafka?”, as inúmeras portas são proporcionais aos infinitos obstáculos. O leitor de Kafka sabe que seus textos são avessos à expressão, à comunicação, à interpre-tação e necessariamente nos privam de uma chave de leitu-ra prévia à leitura e releitura de cada texto. Há, em Kafka, múltiplos modos de escrita — contos, novelas, roman-ces, aforismos, diários, cartas — que se desdobram ainda em fragmentos, esboços, narrativas de sonhos, projetos, apontamentos circunstanciais, descrições de processos de escrita, tornando a entrada do leitor nesse conjunto de textos sempre parcial, problemática e, consequentemente, estratégica. De modo que tal leitura nos conduza ao cerne de sua escrita, em seu caráter não-unívoco, residual, enig-mático, ardiloso e silencioso.

Kafka remete-nos ao jogo enigmático entre obra/canto e destruição/silêncio; a cada texto são produzidos novos quiasmas entre esses termos. Como entrar no canto e ain-da assim escutar o silêncio? Aliás, poder-se-ia dizer que o que está em jogo são modalidades do silêncio: como ver-gonha, como perda da palavra humana, como veredicto, como artifício, como resto, como construção. E, certamen-te, não se pode pensar o silêncio como construção sem an-

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tes pensar na perda da palavra como mortificação.

A certa altura de Kafka: pró e contra, Günther Anders afir-ma que o trauma é o elemento a partir do qual o analista pode explicar o Kafka inteiro. Embora não seja por essa porta que o crítico entre na obra de Kafka, e, embora, não tenhamos como proposta explicar “o Kafka inteiro”, fare-mos do trauma, como ferida muda, e também como aquilo que permanece não decifrado, silenciado, uma primeira fenda para a impenetrabilidade dos textos de Kafka.

Há a maçã cravada no flanco de A metamorfose, antes de o corpo de Gregor Samsa ser descartado como puro deje-to. Há a ferida que o médico rural não pode curar: “Pobre rapaz, não é possível ajudá-lo. Descobri sua grande ferida; essa flor no seu flanco vai arruiná-lo”. (KAFKA, 1999, pp. 18-19) Há os ferimentos nas costas dos condenados em Na colônia penal: o aparelho de tortura deve funcionar inin-terruptamente durante doze horas: “Nas primeiras seis o condenado vive praticamente como antes, apenas sofre dores”. Ou seja, essa máquina de escrita prolonga a vida e faz da sobrevivência o próprio evento traumático. O con-denado ainda não conhece a sua própria sentença, vai co-nhecê-la literalmente na própria carne. Eis um trecho que apontaria para um modo de ler imanente à obra kafkiana:

[...] o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu

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como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos.(KAFKA, 1998, p. 44)

Nesse tempo, não há um a posteriori para a elaboração do trauma ou da decifração com os olhos pela leitura e pela in-terpretação, o que se lê com o ferimento é uma sentença de dor e morte, como aquele que Georg Bendemman realiza ao final de O veredicto. A palavra do pai se faz ato no corpo que cai da ponte. Não há espaço para o equívoco ou para uma outra possibilidade de escuta e de leitura, enunciação e enunciado se costuram em um silêncio mortífero do lado do filho que se deixa cair. Releitura do Édipo na medida em que o herói grego é realização de uma fala que vem de alhures e que o atravessa (LACAN, 1985, p. 289), “O veredic-to” de Kafka, na sua supressão das coordenadas explicati-vas, efetiva a passagem da metáfora e do romance para o literal, a carta, o poema. Talvez por saber dessa passagem, da solidão da palavra que não se pode transpor em metáfo-ra, Kafka tenha desejado que “O veredicto” fosse publicado sozinho, destacado como um poema. Afogado no silêncio branco que o antecede e o precede.

Como anteriormente a “prosa miúda” e, em seguida, o “poema”, naquele que seria seu último texto, emerge o canto, o canto enquanto testemunho da solidão. Em seu monólogo, o animal que escava, em A construção, afirma

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que “A coisa mais bela da minha construção é o silêncio”. A pergunta que se torna, então, necessária fazer é: se o animal escavador pode dizer a frase anteriormente citada, como entender o silêncio? No âmbito do mundo subterrâ-neo desse animal que fala, a questão não é propriamente o que é o silêncio (pergunta que seria demasiadamente metafísica), mas: quando ele ocorre? Quando ocorre o si-lêncio no labirinto subterraneamente entocado? O que há de ser preciso ter por garantia é que, no que diz respeito à toca, o silêncio reina inalterado dia e noite. Se, entretanto, no infinito de tempo da construção, o silêncio reina con-tinuamente inalterado e se ali tudo é silencioso, por qual motivo o animal escavador não faz, a todo momento, sua experiência reconfortante? Como se sabe que na toca há diversos tipos de sons, a primeira assunção é a de que, rei-nando inalterado, o silêncio não é, certamente, a ausência de todo e qualquer som, mas de certos tipos de barulhos insistentemente chamados ao longo do monólogo de ru-ídos, zumbidos e assobios. Por que, então, a experiência frequente do animal na toca não é, prioritariamente, a do silêncio ou a do silenciar, mas, antes, a dos ruídos, a dos zumbidos e a dos assobios? O que são esses ruídos, zumbi-dos e assobios que afastam o animal escavador do silêncio que reina inalterado no vazio da toca?

Há duas experiências similares que demarcam o cami-nho de amadurecimento do personagem, que o levam de,

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nos primeiros tempos da obra, “pequeno aprendiz” a, ao fim do monólogo, um “velho mestre de obras”. De certa maneira, a primeira funciona como uma experiência trau-mática capaz de acionar um devir, que vem. No texto, ela é caracterizada como a em que, naquele momento, em uma pausa do trabalho (antes da experiência ele já construía, portanto, o começo de sua toca), o então jovem animal ouve subitamente um ruído à distância, que o absorve a ponto de levá-lo a, abandonando o trabalho que realizava, pôr-se a escutá-lo, com algum medo e muita curiosidade. Chegamos ao que, para o caso, mais interessa: esse ruído escutado se diferenciava dos outros sons na medida em que o animal escavador “podia discernir bastante bem que se tratava de alguma escavação semelhante à minha. [...] Talvez eu esteja em alguma construção alheia e o dono agora cave seu caminho até mim, pensei comigo mesmo”. Saberemos depois que o outro animal que fazia o ruído foi em outra direção que não a do protagonista.

A experiência atual, a que, no exato momento em que se lembra da anterior, está vivendo, é similar. Em uma pausa do trabalho, fica escutando com o ouvido na pare-de o zumbido que revela a presença próxima do inimigo intimidador, mostrando que a construção, mesmo agora em sua velhice, quando enorme, continua indefesa. Com-patíveis com a sobre a sua juventude, duas falas são, nes-se instante, reveladoras: 1) “talvez eu não precisasse cavar muito longe até a origem do ruído, talvez tivesse bastado

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a escuta nos condutores”; 2) “De resto, procuro decifrar os desígnios do animal”. Se, na rememoração da juventude, pelos ruídos, o animal escavador podia discernir o sentido do que os provocava, na experiência atual, trata-se igual-mente de os zumbidos terem uma origem, de decifrar “os desígnios do animal inimigo, que os provocam”. Em todos esses casos, ruídos e zumbidos estão atrelados ao que tem uma causa entendida enquanto sentido determinado: o da proximidade do inimigo a causar alguma curiosidade e, cada vez mais, o temor da morte possível. Em ambas as experiências, o significado, a interpretação a ofertar um sentido à origem ou à causa, cola ao som, impedindo o som de ser puro som, lendo-o como um significante a receber um significado o mais preciso possível.

Já tendo sido dito, o silêncio não é a ausência de todos e quaisquer sons, mas tão somente desses que são chama-dos de ruídos, zumbidos, assobios, desses que estão atre-lados ao sentido de suas causas e origens, perturbando a tranquilidade do animal escavador. O silêncio é a garantia de que, entre os sons existentes que reverberam pelo labi-rinto da toca, nenhum está relacionado a ele, animal, ou seja, nenhum indica ruídos que tenham como causa a exis-tência de outros animais, sobretudo de o grande animal, a querer matá-lo ou conquistar sua toca. O silêncio se dá quando ocorre exatamente a descontinuidade, a interrup-ção, a não conformidade, entre os sons e os sentidos.

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Poder escutar os sons sem que os sentidos lhes sejam imediatamente decalcados é fazer a experiência do silen-ciar; poder ouvir os sons sem que com eles venha conjun-tamente a lógica do entendimento e da representação. Repete-se as palavras do animal:

Silêncio profundo; como é belo aqui, ninguém se preocupa como a minha construção, todos têm seus interesses, ne-nhum deles está relacionado comigo, como é que cheguei a isso?

E de novo:

[...]lá a paz estaria assegurada e eu seria sua sentinela, não teria de ficar escutando com repulsa as escavações das criatu-rinhas, mas sim ouvindo deliciado aquilo que agora me foge completamente: o sussurro do silêncio na praça do castelo.

Isso posto, a pergunta de Deleuze e Guattari sobre o como entrar se metamorfoseia em como escrever sobre a obra de Kafka sem encobrir a experiência do silenciar? Sem declarar a pena de morte do som pelo sentido?

Construir uma resposta possível para essas perguntas implicam uma ética da narração e da leitura que remete a Odradek. No começo de “A preocupação de um pai de fa-mília”:

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Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva do alemão, tendo sido apenas influenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas interpre-tações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhu-ma delas procede, sobretudo porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido para a palavra.

Como os eslavos englobam os tchecos, Odradek escapa tan-to do tcheco quanto do alemão, em direção ao sem sentido da palavra que seu nome designa. Uma das etimologias de “eslavo” coloca o sentido de sua proveniência no que quer dizer “palavra”, “conversa”, “fala”, “língua”, sinalizando o povo que fala a mesma língua. Estar fora do eslavo é es-tar mudo ou murmurando sons desconexos, é estar fora da palavra, fora da língua, fora da conversa e fora da pos-sibilidade de sentido. Quem está fora do eslavo está fora igualmente do alemão, fora ou no desconexo de qualquer língua. Odradek é o personagem para o incapturável pela língua em sua articulação, que, por existir, precisa ser, de algum modo, nomeado.

Se Kafka escreve “poemas” ou “cantos”, é por escrever o incapturável que o nome Odradek evoca, mas não apenas no momento da nomeação. Enquanto nome do “poema”, Odradek coloca seus leitores fora da língua ou diante de uma língua muda, desconexa, ilegível e sem sentido. Pa-

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radoxalmente, é preciso nomear essa perda e, ainda mais, não parar na pura nomeação do que se perdeu, mas se deixar ser tomado por uma gramática contaminada pela negação de si própria e por uma língua contaminada por esse fora, por essa mudez, por esse incapturável, por essa desconexão.

Os textos críticos aqui reunidos, com seu alto valor transmissivo, não propõem um sentido geral e unívoco para Kafka, ao contrário, respeitam esse silêncio que cada texto a seu modo põe em obra e partem de um Kafka, sem-pre outro, ou de uma problemática muito bem delimitada, ou seja, os leitores também operam com o recorte miúdo que, talvez fora da lógica universalizante do pai, da pro-priedade, do falo, do conceito, se constrói como porta de entrada para cada obra kafkiana em suas tensões internas, hesitações, mudanças de direção, irresoluções, privações e silêncios. Longe de uma multiplicidade de sentidos como mero jogo, a resistência em Kafka à interpretação e ao comentário convoca uma ética que não pode ser da apro-priação, da propriedade, do estabelecido, mas sim do ina-propriável, do esquecido, do descartado, do ato que surge de sua própria impotência. Por isso, ainda perguntamos “Como entrar na obra de Kafka?”, e deixamos com os leito-res as passagens, que seguem, por seus escritos.

Aproveitamos para agradecer a generosidade de todos os pensadores que participaram do respectivo periódico. Como se sabe, Michael Löwy tem o livro Franz Kafka, sonha-

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dor insubmisso publicado no Brasil pela Azougue Editorial. Agradecemos igualmente a Michel Valensi, editor da Edi-tions de l’éclat (http://www.lyber-eclat.net ), por ter nos autorizado a publicar o extrato de Stéphane Mosès, reti-rado do livro Exégèse d’une légende: Lectures de Kafka, saído em 2006 pela editora mencionada. Agradecemos ainda a gentileza de Susana Scramim e Nilceia Valdati em terem respondido a nossa solicitação enviando-nos o texto de Giorgio Agamben, tão difícil de hoje ser encontrado. Como se sabe, “Quattro Glosse a Kafka” foi publicado pela Rivista di Estetica, em 1986, em seu número 22, jamais tendo sido reeditado integralmente.

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referênCias

ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Tradução de Modesto Ca-rone. São Paulo: Perspectiva, 1993.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Revisão de Luiz B. L. Orlandi. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

JANOUCH, Gustav. Conversas com Kafka. Tradução do francês, introdução e notas de Bernard Lortholary. Tradução de Celina Luz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

KAFKA, Franz. “A preocupação do pai de família”. In: O médico rural. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1999.

______________. Contemplação e Foguista. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

______________. O veredicto/ Na colônia penal. Tradução de Mo-desto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______________. Um artista da fome/A construção. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LACAN, Jacques. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradu-ção de Marie Christine Lasnik-Penot com colaboração de Anto-nio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

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Quatro glosas a Kafka, g. agamben | p. 25-42

QUATRO GLOSAS A KAFKA

Giorgio Agamben

Università della Svizzera Italiana — Mendrisio

Tradução de Cláudio Oliveira

Publicado originalmente em “Quattro glosse a Kafka”. In: Rivista di Estetica . Torino: Rosenberg & Sellier, 1986. Ano XXVI, n. 22. pp. 37-44. “Quatro glosas a Kafka” foi publicado, em 1986, em Turim, no número 22 da Rivista di Estetica , cujo editor era Gianni Vattimo, jamais tendo sido reeditado integralmente em nenhum dos livros de Giorgio Agamben. As segunda e quarta glosas se encontram no livro Ideia da Prosa, sob os títulos “Ideia da linguagem II” e “Ideia do estudo”. A presença de Kafka na obra de Agamben se desdobra desde seu primeiro livro até seus últimos estudos. (N. do T.)

Resumo: Na experiência excepcional da escrita de Kafka, lê--se não aquilo que, ao modo de um sentido dado, lá se encon-tra, mas o que se pode ler em tais escritos quando deles se retorna. Nas quatro glosas a partir de Kafka, ao modo de ano-tação e comentário, (1) atrela-se a morte aparente, ou seja, a volta de onde nunca estivemos, à linguagem, na medida em que a palavra nunca esteve no não linguístico de onde ela, entretanto, retorna; (2) atrela-se o aparelho de tortura de “A colônia penal”, com sua fabulação da justiça e da punição, à linguagem e seu sentido; (3) a partir da história do cavalei-ro do balde, pensa-se a tensão entre leveza e gravidade, em

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Quatro glosas a Kafka, g. agamben | p. 25-42

diálogo com Paul Celan e Nietzsche, entendendo-se a leveza como um nunca retornar; e (4) pensa-se a figura do estudante a partir de Kafka, de Walser, de Melville e, especialmente, do judaísmo.

Palavras-chave: Franz Kafka; Lei; Linguagem.

Resumée: Dans cette expérience extraordinaire qu’est l’écriture de Kafka, nous lisons non pas ce qui est là, au mode d’un sens donné, mais ce que nous pouvons lire dans tels écrits lorsque nous en revenons. Dans les quatre gloses qu’Agamben propose de l’oeuvre de Kafka sous forme de re-marque et de commentaire, (1) la mort apparente, c’est-à-dire le retour d’où l’on n’a jamais été, est associée au langage, étant donné que la parole n’a jamais été dans le non-linguistique d’où néanmoins elle retourne; (2) il s’agira encore d’associer l’appareil de torture présente dans “ La colonie pénitentiaire ” avec sa fable sur la justice et le châtiment au langage et à son sens; (3) à partir de l’histoire du chevalier du seau il est possible de penser la tension entre légèreté et gravité en un dialogue avec Paul Celan et Nietzsche, qui comprend la légè-reté comme un ne jamais revenir; et (4) la figure de l’étudiant est pensée ici à partir de Kafka, de Walser, de Melville et en particulier du judaïsme.

Mots-clés: Franz Kafka; Loi; Language.

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Quatro glosas a Kafka, g. agamben | p. 25-42

i. sobre a morte aparente

Em toda experiência, o essencial não é jamais o que nela se encontra, mas o que podemos extrair dela para a vida de todo dia. Por isso, tanto no mito platônico da caverna quanto no apólogo kafkiano sobre a morte aparente, ver-dadeiramente decisivo é apenas o momento do retorno. Mas isso significa também que toda experiência excepcio-nal é, num certo sentido, apenas aparente. Se tivesse sido real, não teríamos retornado dela, não estaríamos agora a falar dela: teríamos permanecido fora da caverna, ofusca-dos pelo sol ou na tumba, a decompormo-nos lentamente. Podemos, de fato, ter conhecimento apenas daquilo de que pudemos retornar, mas aquilo de que se pode retornar não está, na verdade, para além do mundo e da vida comum; quem pretende estar falando da morte verdadeira — e hoje são muitos a pretendê-lo — não fala a sério ou não sabe o que diz, porque a morte é, antes de tudo, a impossibilidade de voltar e, seja como for, não há lugar, nela, para nós.

Por isso, nem mesmo Cristo, querendo viver até o fundo a condição humana, demorou-se na morte, mas depois de três dias ressuscitou para retornar à sua morada celeste.

Isso não tira nada da seriedade da morte aparente. Quem retornou dela, de fato, sabe certamente que da mor-te real não poderia ter retornado; mas esse saber, que entre os mortais compete unicamente ao homem, ele o alcançou

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somente através da pressuposição do retorno. Em última análise, a ideia de uma morte verdadeira, ele a arrancou precisamente da morte aparente; que haja algo de que não se possa retornar, ele o descobriu somente fingindo ter re-tornado. Essa morte aparente, esse retorno de onde jamais estivemos, é a linguagem. A palavra, certamente, jamais esteve fora da palavra, no não-linguístico, e é inútil que-rer-lhe mal por isso; se lá tivesse estado, não poderia falar disso, não seria mais uma palavra. O próprio não-linguís-tico, o próprio indizível não são, na verdade, senão uma invenção da palavra, somente nela poderíamos conceber uma semelhante ideia (um animal, de fato, de que modo poderia tê-la concebido?). E, do não-linguístico, a lingua-gem já sempre retornou; como na poesia de Caproni, ela é apenas esse incessante retornar antes de ter estado em algum lugar. (Por isso, o verbo ser, que exprime a pura relação com a linguagem, em todas as línguas indo-euro-peias, não tem passado e deve suprir esse defeito tomando de empréstimo formas de outros radicais verbais.) Mas, no ponto em que compreendemos a palavra como palavra, cessamos de imaginar palavras para além da palavra, ces-samos de fingir ter estado na verdadeira morte. De volta de onde jamais estivemos, estamos finalmente aqui, aonde não poderemos mais voltar. O não-linguístico, calado pela palavra, é, então, perfeitamente dizível.

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ii. na Colônia penal1

1 Uma versão idêntica deste texto foi publicada em Idea della prosa , com o título “Ideia da linguagem II”. Cf. Giorgio Agamben. Ideia da prosa . Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. pp. 113-116. (N. do T.)

A fábula2 se ilumina singularmente se se compreende que o aparelho de tortura inventado pelo ex-comandante da co-lônia penal é, na verdade, a linguagem. Mas, com isso, ela também se complica em uma medida não menor. Na fábu-la, de fato, a máquina é, antes de tudo, um instrumento de justiça e de punição. Isso significa que também a linguagem é, sobre a terra e para os homens, um tal instrumento. O se-gredo da colônia penal seria, então, aquele mesmo que um personagem de um romance contemporâneo trai com estas palavras: “te confiarei um segredo terrível: a linguagem é a punição. Nela todas as coisas devem entrar e nela devem pe-recer segundo a medida da sua culpa”.

2 Cf. edição brasileira: Franz Kafka. O veredicto/ Na colônia penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 27-70. (N. do T.)

Mas, se se trata de expiar uma culpa (e disso o oficial está absolutamente certo: “a culpa está sempre fora de questão”),

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em que consiste o sentido da pena? Também aqui as ex-plicações do oficial não deixam dúvidas: naquilo que ocor-re em torno da sexta hora. Quando se passaram, de fato, seis horas desde o momento em que a máquina começou a transcrever na carne do condenado o mandamento que foi por ele transgredido, este começa a decifrar o seu texto:

Mas, então, depois da sexta hora, como se torna silencioso o homem! Até ao mais idiota se lhe abre a inteligência. Começa com os olhos e dali se difunde. É um espetáculo que poderia induzir qualquer um a se colocar, também ele, sob a máqui-na. Mas nada acontece, a menos que o homem comece a deci-frar o escrito, prendendo os lábios como se estivesse à escuta. O senhor viu que não é fácil decifrar o escrito com os olhos, mas o nosso homem o decifra com as suas feridas. É um tra-balho difícil, lhe são necessárias seis horas para cumpri-lo. Mas, nesse ponto, a máquina o atravessou de parte a parte e o lança na fossa onde ele cai sobre o algodão e sobre a água ensanguentada.

Aquilo que o condenado chega, portanto, a compreen-der, silenciosamente, na sua última hora, é o sentido da linguagem. Os homens — poder-se-ia dizer — vivem a sua existência de seres falantes sem entender o sentido que nela está em questão; mas vem para cada um uma sexta hora na qual até para o mais idiota deve se abrir a razão. Não se trata, naturalmente, da compreensão de um senti-do lógico, o qual se poderia também ler com os olhos; mas

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de um sentido mais profundo, que pode ser decifrado so-mente com as feridas e que compete unicamente à lingua-gem enquanto pena. (Por isso, a lógica tem o seu âmbito exclusivo no juízo: o juízo é, na verdade, imediatamente juízo penal, sentença.) Entender esse sentido, medir a pró-pria culpa, é um trabalho difícil e somente no momento em que esse trabalho foi levado a termo se pode dizer que justiça foi feita.

Essa interpretação não exaure, porém, o sentido da fá-bula. Antes, este começa propriamente a revelar-se somen-te quando o oficial, compreendendo não poder convencer o viajante, libera o condenado e entra, ele próprio, em seu lugar, na máquina. Decisivo, aqui, é o texto da inscrição que deverá ser-lhe gravada na carne. Este não tem, como para o condenado, a forma de uma mandamento preciso (“honra o superior”), mas consiste na pura e simples injun-ção: “seja justo”. Mas é precisamente quando tenta trans-crever essa injunção que a máquina não somente se des-pedaça, mas falha na sua tarefa: “a máquina não escrevia mais, apenas perfurava… não era mais uma tortura… era um verdadeiro assassinato”. Assim, sobre a face do oficial não era dado distinguir no final nenhum sinal da redenção prometida: “aquilo que todos os outros tinham encontrado na máquina, o oficial não o tinha encontrado”.

Duas interpretações da lenda são, nesse ponto, possí-veis. Segundo a primeira, o oficial tinha efetivamente, na

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sua função de juiz, violado o preceito “sê justo” e por isso deve pagar a sua punição. Mas, com ele, também a má-quina, cúmplice necessária da injustiça, deve ser destru-ída. Que o oficial não possa encontrar na punição aquela redenção que outros tinham acreditado encontrar nela, explica-se facilmente com a circunstância de que ele co-nhecia antecipadamente o texto da gravação.

Mas uma outra leitura é igualmente possível. Segundo esta, o preceito “sê justo” não se refere ao ditado que o ofi-cial transgrediu, mas é, antes, a ilustração destinada a fa-zer em pedaços a máquina. E o oficial está perfeitamente consciente disso, a partir do momento em que o anuncia ao viajante: “‘então, chegou a hora’ disse por fim e olhou subitamente o viajante com olhos límpidos que continham quem sabe qual convite, quem sabe qual apelo a ser com-preendido”. Não há dúvida: ele introduziu a instrução na máquina com a intenção de destruí-la.

O sentido último da linguagem — parece então dizer a fá-bula — é a injunção “sê justo”; e todavia precisamente o sentido dessa injunção é o que a máquina da linguagem absolutamen-te não está em condição de nos fazer compreender. Ou, antes, pode fazê-lo somente cessando de desenvolver a sua tarefa penal, somente despedaçando-se e tornando-se, de puni-dora, em assassina. Desse modo, a justiça triunfa sobre a injustiça, a linguagem sobre a linguagem. Que o oficial não tenha encontrado na máquina aquilo que os outros

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tinham encontrado nela é, então, perfeitamente compre-ensível: àquela altura, não havia, para ele, na linguagem, mais nada a compreender. Por isso, a sua expressão per-maneceu verdadeiramente tal qual tinha sido em vida: o olhar límpido, convencido, a fronte perfurada pelo grosso aguilhão de ferro.

iii. sobre a Gravidade3

3 A última vez que vi Italo Calvino foi para falar da primeira conferência que estava preparando para a universidade de Harvard, a qual me tinha dado para ler em uma redação provisória. O tema da conferência era a leveza. [As conferências foram publicadas no Brasil com o título Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas , pela Companhia das Letras.] Ela se abria, se me recordo bem, com o verso de Cavalcanti (que eu sabia lhe ser caro e de que tínhamos tantas vezes falado): “e bianca neve scender senza venti” [“e branca neve cair sem ventos”] e terminava com a imagem kafkiana do cavaleiro do balde. Sobre este último, acabou por concentrar-se o nosso discurso. Esta meditação — que nasce daquela conversação com Italo e procura prolongá-la — lhe é dedicada. Mas que a sua voz falte à resposta, faz para sempre deste texto, para além da sua provisória inconclusividade, um torso e um fragmento. (Nota do Autor)

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Todos conhecem a história do cavaleiro do balde, que desce para pegar o carvão a cavalo com o seu balde vazio.

Mas embaixo meu balde sobe, soberbo, soberbo: camelos aga-chados no solo não se levantam tão belos estremecendo sob o bastão do cameleiro. Pela rua dura de gelo avança-se em trote regular; muitas vezes sou alçado à altura dos primeiros andares, não mergulho nunca até o nível da porta do prédio. E diante da abóbada do depósito do carvoeiro pairo extrema-mente alto….4

A razão pela qual o balde pode assim docilmente transfor-mar-se em cavalo é logo explicada: “Carvoeiro! Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele”.5 É um excesso de leve-za, uma falta de peso que confina com a miséria, aquela que, contra toda força de gravidade, levanta para o alto o cavaleiro. Mas o que ele deseja sobre todas as outras coi-sas é apenas adquirir um pouco de peso, apenas uma pá de carvão: “e se me derem duas, vão me fazer muito, muito feliz”. A sua cavalgadura, mesmo sendo boa, tem um defei-to: é leve demais, e basta um avental feminino para fazê-lo lançar as pernas no ar. Aquele que, desse modo, é lançado ao voo, o fez, em verdade, porque constrangido pela pró-pria leveza a andar em busca de gravidade. E é apenas a perfídia da mulher do carvoeiro, que se recusa a escutá-lo, que o condena a vagar sem retorno na gélida região das

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Montanhas de Gelo.

4 Uma tradução deste texto de Kafka por Modesto Carone foi publicada na Folha Online (Biblioteca da Folha) em 22/10/1995. Disponível em: <http://biblioteca.folha.com.br/1/17/1995102201.html>. (N. do T.); 5 Ibidem. (N. do T.)

Muitos anos depois, Paul Celan tentou contar de novo esse apólogo. Como a sua versão é menos conhecida, a transcrevemos aqui por inteiro:

“Ensinava a lei da gravidade, apresentava prova por prova, mas não era escutado. Então se lançou no ar e, planando, continuou a ensinar aquela lei — agora acreditavam nele, mas ninguém se espantou quando, do ar, não retornou mais”.

O encurtamento não mudou o sentido da história: ape-nas o abreviou no sentido feroz da urgência. Que o cava-leiro (cujo cavalo desapareceu: tão leve é o ensinante da gravidade, que não precisa mais dele) ensinasse a lei da gravidade está, agora, descontado; se levantou voo é ape-nas porque, como os seus precedentes pedidos de carvão, nem mesmo as suas provas encontraram escuta. Agora que, desmentindo a lei, o veem planar no ar, acreditam nele: existe talvez, para a gravidade, uma prova melhor que o voo? Precisamente por isso, porém, não se espantem

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se, do ar, não retornar mais.

O apólogo kafkiano sobre a gravidade tem um prece-dente no episódio do Zaratustra que traz o título: “Da visão e do enigma”. Também aqui o problema do andar no alto e do seu oposto, o “espírito de gravidade”, personificado por um anão que o profeta traz sobre os ombros (“meio anão, meio toupeira”, decididamente uma criatura kafkiana!). “Zaratustra”, sussurra o anão, “tu, pedra da sabedoria! Te lançaste ao alto, mas toda pedra lançada deve tornar a cair”. Em um outro episódio, que se intitula “O espírito de gravidade”, o homem é comparado a um camelo, imagem, aqui, não da leveza, como na historinha de Kafka, mas do fardo: “Somente o homem é um peso para si mesmo! Por-que traz sobre os ombros coisas que não lhe dizem respei-to. Como o camelo, ele se ajoelha e se deixa por bem carre-gar”. Zaratustra aceita substancialmente o juízo do anão (“toda pedra lançada deve tornar a cair”), mas o inverte, com uma astúcia, em seu contrário: a pedra que eternamen-te torna a cair é a coisa mais leve de todas.

Difícil imaginar uma mais antipódica simetria do que aquela que liga profeta e cavaleiro. Zaratustra se encarre-gou do maior de todos os pesos e quer transformar esse fardo inaudito em asas levíssimas; o cavaleiro do balde, privado como está de todo peso, gostaria, ao contrário, de descer à terra para encontrar a gravidade. Para um, a le-veza suprema faz uma unidade com o maior de todos os

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pesos: o eterno retorno do mesmo. No momento em que o pastor morde a cabeça da serpente que se enfiou no seu pescoço, o peso se converte no voo mais excelso.

Totalmente ao contrário, o cavaleiro do balde. O seu des-tino não é o eterno retorno, mas a leveza de uma pluma que o vento leva embora para sempre “para nunca mais ser vista”. A verdadeira leveza — parece dizer — não é o eterno retorno, mas um não retornar nunca mais. Assim desolada é, em aparência, a sua lição. Podemos acreditar nele, preci-samente porque não voltará nunca mais a repeti-la. (O seu contrário é o caçador Graco,6 que não conseguiu se separar da terra e cuja barca é condenada a singrar águas terrenas, impelida pelo vento “que sopra nas mais baixas regiões da morte”.) No reino das Montanhas de Gelo, o cavaleiro en-contra, por sua vez, a sua paz. Um projeto de epílogo no-lo mostra enquanto, desmontado da sua cavalgadura, vaga no frio trazendo-a sobre os ombros. Assim no alto, a leve-za não serve mais: tanto faz carregá-la sobre as costas. “As lendas, que se afastam da terra, voltam para a humanida-de”.

6 Referência ao conto intitulado “O caçador Graco” [Der Jager Gracchus], um texto póstumo de Kafka que pertence ao conjunto de suas pequenas narrativas que vieram a público somente no ano de 1931, quando foram editadas por Max Brod. Main. Ver tradução de Modesto Carone, “O caçador Graco” . In: Narrativas do espólio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 66-72. (N. do T.)

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iv. estudantes7

7 Este texto foi publicado no livro Idea della prosa com o título “Ideia do estudo”. Cf. a edição brasileira: Giorgio Agamben. Ideia da prosa . Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. pp. 52-55. (N. do T.)

Talmud significa estudo. Durante o exílio babilônico, os judeus, uma vez que o Templo tinha sido destruído e não podiam mais celebrar os sacrifícios, confiaram a conserva-ção da sua identidade não tanto ao culto, mas ao estudo. Torah, de resto, não significava, na origem, Lei, mas dou-trina, e até mesmo o termo Mishnah, que indicava a coleção das leis rabínicas, provinha de uma raiz cujo sentido era, antes de tudo, “repetir”. Quando o édito de Ciro permitiu o retorno dos judeus à Palestina, o Templo foi reconstru-ído; mas a partir daquele momento a religião de Israel ti-nha sido marcada para sempre pela piedade do exílio. Ao Templo único, no qual se celebrava o solene sacrifício san-grento, vieram se juntar as múltiplas sinagogas, simples lugares de reunião e de oração, e o domínio dos sacerdotes foi substituído pela influência crescente dos fariseus e dos escribas, homens do livro e do estudo.

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No ano 70 d.C., as legiões romanas destruíram nova-mente o Templo. Mas o douto rabino Joahannah ben--Zakkaj, saído secretamente da Jerusalém sitiada, obteve de Vespasiano autorização para continuar o ensinamento da Torah na cidade de Jamnia. Desde então, o Templo não foi mais reconstruído e o estudo, o Talmud, se tornou as-sim o verdadeiro templo de Israel.

Entre os legados do judaísmo, há, portanto, também essa polaridade soteriológica do estudo, própria de uma religião que não celebra o seu culto, mas faz disso objeto de estudo. A figura do estudioso, respeitada em todas as tradições, adquire assim um significado messiânico des-conhecido para o mundo pagão: uma vez que nela está em questão a redenção, a sua pretensão se confunde com a pretensão de salvação do justo.

Mas, com isso, ela se torna carregada de tensões contra-ditórias.

O estudo é, de fato, em si, interminável. Qualquer um que tenha conhecido as longas horas de vagabundagem entre os livros, quando todo fragmento, todo código, toda inicial com a qual nos deparamos parece abrir uma nova estrada, que é depois subitamente perdida em um novo encontro, ou tenha provado a labiríntica ilusoriedade da-quela “lei do bom vizinho”, com a qual Warburg tinha mar-cado a sua biblioteca, sabe que o estudo não apenas não pode propriamente ter fim, como nem sequer deseja tê-lo.

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Aqui a terminologia do termo studium se faz transpa-rente. Ele remonta a uma raiz st- ou sp-, que indica as co-lisões, os chocs. Estudar e espantar-se são, nesse sentido, parentes: quem estuda está na condição de quem recebeu um choque e permanece estupefato diante daquilo que o abateu, sem conseguir dar conta disso e, ao mesmo tempo, incapaz de se desligar disso. O estudioso é, portanto, sem-pre também um estúpido.8 Mas se, por um lado, ele está tão atônito e absorto com isso, se o estudo é, portanto, es-sencialmente padecimento e paixão, por outro, a herança messiânica que ele contém o empurra, ao contrário, inces-santemente para a conclusão. Esse festina lente,9 essa alter-nância de estupor e de lucidez, de descoberta e de extravio, de paixão e de ação é o ritmo do estudo.

8 Em italiano, estúpido (stupido) e espantar-se (stupire) têm a mesma raiz. (N. do T.); 9 Oxímoro latino que significa “apressa-te devagar”. (N. do T.)

Nada mais semelhante a isso que aquela condição que Aristóteles, contrapondo-a ao ato, define como “potência”. Potência é, por um lado, potentia passiva, passividade, pai-xão pura e virtualmente infinita; por outro, potentia activa, tensão irrefreável para a realização, urgência em direção ao ato. Por isso, Fílon compara a sabedoria acabada com Sara, que, sendo em si estéril, impele Abraão a unir-se à sua serva Hagar, isto é, ao estudo, para poder gerar. Mas,

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uma vez prenhe, o estudo é devolvido às mãos de Sara, que é sua patrona. E não é por acaso se Platão, na carta sétima, se serve de um verbo aparentado a estudar (σπουδαζω) para indicar a sua relação com o que mais lhe importa: so-mente depois de um longo, estudioso friccionar, uns com os outros, nomes, definições e conhecimentos, se produz na alma a centelha que, inflamando-a, assinala a passagem da paixão à realização.

Isso explica também a tristeza do estudioso: nada é mais amargo que uma prolongada demora na potência. Nada mostra melhor que tipo de desconsolada tenebrosidade pode derivar dessa incessante procrastinação do ato do que aquela melancholia philologica que Pasquali, fingindo transcrevê-la do testamento de Mommsen,10 colocou como cifra enigmática da existência de estudioso.

10 Theodor Mommsen, historiador e jurista alemão. (N. do T.)

O fim do estudo pode não chegar jamais — e, nesse caso, a obra permanece para sempre no estádio de fragmento e de fichamentos — ou, ainda, coincidir com o momento da morte, no qual aquela que parecia uma obra acabada se revela como simples estudo: é o caso de S. Tomás, que, pouco antes de morrer, confia em segredo ao amigo Rinal-do: “vem o fim da minha escrita, agora que me foram reve-

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ladas coisas, para as quais tudo o que eu escrevi e ensinei me parece uma ninharia, e por isso espero que com o fim da doutrina venha também em breve o da vida”.

Mas a última e mais exemplar encarnação do estudo na nossa cultura não é o filólogo nem o santo doutor. É, antes, o estudante, tal qual aparece em certos romances de Kafka ou de Walser. O seu protótipo está no estudante de Melvil-le, sentado em um quarto com a abóbada baixa, “em tudo semelhante a uma tumba”, com os cotovelos sobre os joe-lhos e a cabeça entre as mãos. E a sua figura mais extrema é Bartleby, o escrivão que deixou de escrever. Aqui a ten-são messiânica do estudo se inverteu ou, antes, foi além de si mesma. O seu gesto é aquele de uma potência que não precede, mas segue o seu ato, que o deixou para sempre às suas costas; de um Talmud que não apenas renunciou à re-edificação do Templo, mas o esqueceu absolutamente. Es-ses estudantes estudam como, depois do fim dos tempos, poderiam estudar, no limbo, as crianças não batizadas ou os filósofos pagãos, que não têm mais nada a esperar, nem do futuro nem do passado. Com isso, o estudo se liberta da tristeza que o desfigurava e retorna à sua mais verdadeira natureza. Esta não é a obra, mas a inspiração, o autonutri-mento da alma.

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ESCRITAS DE LUZ: DER PROZESS — THE TRIAL

Michael Löwy

Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) — ParisTradução do francês de Paulo Sérgio de Souza Jr. (OUTRARTE — Unicamp)Publicado originalmente em Raison Politique, 39. Disponível em http://www.cairn.info/zen.php?ID_ARTICLE=RAI_039_0097.

Resumo: Literatura e cinema  constituem duas linguagens distintas, irredutíveis. Suas gramáticas, léxicos e sintaxes são radicalmente diferentes. Toda imagem, e a fortiori toda suces-são de imagens, é necessariamente, inevitavelmente, “infiel” ao texto. No seu filme The trial, Orson Welles apropriou-se do romance de Kafka — O processo — para recriá-lo nos seus pró-prios termos. O romance não exprime uma mensagem polí-tica ou doutrinária; mas, sobretudo, um certo estado de espí-rito antiautoritário. Reencontramos, sob uma outra forma, e com outros meios estéticos, esse mesmo estado de espírito no filme.

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Palavras-chave: Cinema; Orson Welles; Kafka; O processo

(filme); O processo

Abstract: Literature and cinema are two distinct and irreduc-ible languages. Their grammar, vocabulary and syntax are radically different. All image, and more so any succession of images is necessarily, inevitably, “unfaithful” to the text. In his movie The trial Orson Welles took possession of Kafka’s novel Der Prozess and recreated it in his own terms. The novel does not express a political or doctrinaire message, but rath-er a certain anti-authoritarian state of mind. One finds, in a different form, and with other aesthetic means, the same state of mind in the movie.

Keywords: Cinema; Orson Welles; Kafka; The trial (film); The

trial

Resumée: Littérature et cinéma  constituent deux langages distincts, irréductibles. Leur grammaire, leur lexique, leur syntaxe sont radicalement différents. Toute image, et à for-tiori toute succession d’images est nécessairement, inévita-blement, “  infidèle ” au texte. Dans son film The trial Orson Welles s’est approprié du roman de Kafka — Le procès — pour le récréer dans ses propres termes. Le roman n’exprime pas un message politique ou doctrinaire, mais plutôt un certain état d’esprit anti-autoritaire. On retrouve, sous une autre forme, et avec d’autres moyens esthétiques, ce même état d’esprit dans le film.

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Mots-clés: Cinema; Orson Welles; Kafka; Le Procès (film); Le

procès

introdução

O filme de Orson Welles, sem dúvida uma das grandes obras do cinema do século XX, é ou não fiel ao romance? A pergunta está mal feita. Trata-se de duas criações artísti-cas diferentes, ainda que o filme siga, em grande medida, a trama do romance.

Literatura e cinema constituem duas linguagens distin-tas, irredutíveis. Suas gramáticas, seus léxicos, seus voca-bulários, suas sintaxes são radicalmente diferentes. Toda imagem, e a fortiori toda sucessão de imagens, é necessa-riamente, inevitavelmente, “infiel” ao texto, e vice-versa. Isso não quer dizer, muito pelo contrário, que Orson Wel-les “traiu” o romance de Franz Kafka. Como Henri Chapier observa tão bem, numa célebre resenha do filme em Com-bat (24/12/1962),

o sentido profundo do livro, ali, não é traído. […] Orson Wel-les […] encontrou, aos moldes de Baudelaire, um sistema de “correspondências” entre a escrita e a imagem, a ponto de a angústia de Joseph K. ir nos tomando aos poucos e sub-rep-

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ticiamente […].

Decerto o cineasta “interpretou” o livro, ele apagou ou condensou capítulos, acrescentou outros inexistentes, re-manejou o início e o fim; em resumo, ele se apropriou da obra de Kafka para recriá-la nos seus próprios termos. As diferenças entre os dois são evidentes: elas resultam não apenas da distância necessária entre palavra e imagem, mas também de duas estéticas radicalmente opostas: a re-serva, a discrição e a atmosfera constrita e sufocante do romance são substituídas no filme pela desmesura, o gran-dioso, o ciclópico, o páthos. Como Y. Ishaghpour observa tão bem, “o essencial em The trial é a arquitetura, a luz, o movimento. Enredo, personagem e ideia são quase os efei-tos disso”.1 Certamente o estilo de Kafka é também uma escrita de luz,2 mas esta é oculta e só irradia nas margens, nos contornos do negror do relato.

1. Cf. Yussuf Ishaghpour, Orson Welles cinéaste: une camera visible. Paris: Ed. de la Différence, 2001, vol. 3. Esta obra é, sem duvida, o que há de mais completo e de mais interessante escrito sobre o cineasta.; 2. Lembremos que a palavra ‘“fotografia” — esta, por sua vez, em íntima relação com o cinema — é composta a partir dos seguintes termos gregos: φωτός (/phōtos/, genitivo de φῶς , /phōs/, ‘ luz’) e γραφή (/graphé/, ‘escrita’). (N. do T.)

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O contraste entre as duas obras é também o produto da diferença dos contextos históricos. Vamos começar, pois, to-mando nota dessa distinção, antes de discutir o alcance de certas modificações trazidas pelo cineasta.

o Contexto históriCo

a) Franz Kafka

Não é num porvir imaginário, mas em fatos históricos contemporâneos que é preciso buscar a fonte de inspiração para a trama do Processo.3 Entre esses fatos, os grandes processos antissemitas de sua época eram um exemplo flagrante da injustiça de Estado. Os mais célebres foram o processo Tisza (Hungria, 1882), o processo Dreyfus (França, 1894-1899), o processo Hilsner (Tchecoslováquia, 1899-1900) e o processo Beilis (Rússia, 1912-13). Apesar das diferenças entre as formas de Estado — absolutismo, monarquia constitucional, república — o sistema judiciário condenou, por vezes à pena de morte, vítimas inocentes cujo único crime era o de serem judeus.

3. Apoio-me, aqui, nas pesquisas de Rosemarie

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Ferenczi, Kafka. Subjectivité, Histoire et Structures . Paris: Klincksiek, 1975. Cf. p. 62: “Kafka não quis, pois, ser o profeta de catástrofes futuras, limitou-se a decifrar os aspectos da desgraça do seu tempo. Se as suas descrições aparentam ser, com frequência, efetivamente proféticas, é porque épocas ulteriores constituem sequências lógicas da de Kafka”.

O caso Tisza — um processo por assassinato ritual con-tra quinze membros da pequena comunidade judia de um vilarejo no norte da Hungria, em 1882-83 — não po-dia ter atingido Kafka diretamente, já que ele nasceu em 1883. Contudo, numa carta de outubro de 1916 para Felice Bauer, encontra-se uma referência comovente a uma peça do escritor judeu-alemão Arnold Zweig, Assassinato ritual na Hungria (Berlim, 1914), dedicada a esse caso:

Li recentemente uma tragédia de Zweig, Ritualmord in Ungarn […]. As cenas mundanas são dotadas de uma vida convincen-te, oriunda, sem dúvida, em grande parte, dos grandiosos documentos do processo. Seja lá como for, é bem custoso analisá-lo em detalhe; ele está ligado ao processo e se encon-tra, dali em diante, no seu círculo encantado. Agora o vejo de um modo completamente diferente de como via antes. Numa certa passagem tive de parar de ler, sentei no sofá e caí no choro. Fazia anos que eu não chorava.4

4. KAFKA, Franz. “Lettres à Felice”. In: Oeuvres Complètes , IV. Ver o capítulo intitulado “Kafka chorou” (Kafka wept) no livro de Sander Gilman,

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Franz Kafka. The Jewish Patient . Londres: Routledge, 1995.

Em contrapartida, não sabemos o que ele pensava do processo Dreyfus, raramente mencionado nos seus es-critos, e somente de passagem, como numa carta de 1922 para Max Brod5 — ainda que se possa estar quase certo de que, como todo cidadão europeu (e judeu) dessa geração, ele conhecesse os principais episódios desse acontecimen-to traumático. Quanto ao processo Hilsner, apesar de sua pouca idade em 1899 (dezesseis anos), Kafka não deixou de captar seu alcance inquietante. Condenado por “assassi-nato ritual” à pena de morte, apesar da ausência de provas, o jovem judeu-tcheco Leopold Hilsner só teve a vida salva graças a uma campanha conduzida pelo líder político de-mocrata Thomas Masaryk (futuro presidente da República Tchecoslovaca); quando da revisão do processo, sua pena foi comutada para prisão perpétua. Numa conversa rela-tada por Gustav Janouch, Kafka menciona esse episódio como o ponto de partida — especialmente no decorrer de discussões com seu amigo e colega de liceu, Hugo Berg-mann — da sua tomada de consciência da condição do Ju-deu: “um indivíduo desprezado, considerado pelo mundo ao redor como um estrangeiro apenas tolerado”,6 noutros termos, um pária...

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5. KAFKA, Franz. Briefe 1902-1924 . Frankfurt/M.: Fischer Taschenbuch Verlag, 1975. Sander Gilman acha que “o caso Dreyfus assombrou Kafka durante toda a sua vida adulta” e que teria fornecido o modelo para O processo , mas ele não fornece nem um único indício documental que possa justificar uma afirmação como essa. Cf. Gilman, op. cit. pp. 69-70.; 6. JANOUCH, Gustav, Kafka und seine Welt . Viena: Verlag Hans Deutsch, 1965. Sobre o caso Hilsner e o seu impacto na opinião tcheca, ver Rosemarie Ferenczi, op. cit. , pp. 46-58.

Decerto os testemunhos de Janouch podem ser questio-náveis, mas nós temos, na correspondência de Kafka com Milena, uma referência direta ao caso Hilsner como exem-plo paradigmático da irracionalidade dos preconceitos antissemitas: “Não imagino como as pessoas […] puderam chegar à ideia do assassinato ritual”; numa espécie de es-petáculo fantasmagórico, “vê-se ‘Hilsner’ cometer seu gra-ve delito passo a passo”. Encontra-se, aliás, nessa mesma correspondência, várias outras referências ao antissemi-tismo, para o qual todos os judeus “figuram como negros” e constituem uma “raça lazarenta”.7

7. KAFKA, Franz. Lettres à Milena . Tradução de Alexandre Vialatte. Paris: Gallimard, 1988; pp. 66, 164, 255.

Por fim, é provável que o processo do sapateiro judeu Mendel Beilis (Kiev, 1913), que também concerne a uma

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acusação de “assassinato ritual”, o tenha abalado ainda mais. O jornal Selbstwehr, que ele assinava, mobilizou-se com o caso, que manifestava, de forma chocante, a con-dição de “pária” dos judeus no Império Russo — isto é, a sua ausência de direitos, exclusão social e perseguição pelo Estado. E é sabido que, entre os papéis que Kafka queimou pouco antes da sua morte, encontrava-se um relato sobre Mendel Beilis.8

8. BROD, Max. Franz Kafka: eine Biographie . Frankfurt/M.: S. Fischer, 1954. Brod cita o testemunho de Dora Dymant, a última companheira de Kafka: “Entre os papéis queimados encontrava-se, segundo Dora, um relato de Kafka que tinha como tema o processo por assassinato ritual contra Beilis, em Odessa”. Ver, sobre esse assunto, Arnold J. Band, “Kafka and the Beiliss Affair”, Comparative Literature , vol.  32, n. 2, Spring 1980.

Esse papel dos processos antissemitas, e particularmen-te do último, como fonte do Processo não passa de uma hi-pótese. Mas ela tanto é plausível que, a partir de 1911, de-pois do seu encontro com o teatro iídiche e o nascimento da sua amizade com o ator Itzhak Löwy, Kafka foi tomado por um crescente interesse pelo judaísmo — que se tradu-ziu, entre outros meios, pelo envio dos seus escritos a pu-blicações judaicas tais como Selbstwehr (a revista dos sio-nistas praguenses) ou Der Jude, a revista de Martin Buber. No entanto, ele sentiu na pele esses processos não apenas

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como judeu, mais também como espírito universal, des-cobrindo na experiência judaica a quintessência da experiência humana na época moderna. Em Der Prozess, o herói, Joseph K., não tem nacionalidade ou religião determinadas: a pró-pria escolha de uma mera inicial em lugar do sobrenome da personagem reforça a sua identidade universal — ele é o representante, por excelência, das vítimas da máquina legal do Estado.9

9. Segundo Rosemarie Ferenczi, o caso Hilsner, manipulado pelo Estado, ensinou a Kafka, para além dos limites da realidade judaica, até onde podia ir “o arbitrário de um poder sem escrúpulos” (Kafka, subjectivité, histoire et structures , p. 61). Cf. também p. 205: “O processo é um precatório contra a História da sua época, que possibilitou casos como o de Hilsner”.

Nessa reinterpretação universalista dos processos an-tissemitas, a sua simpatia pelas ideias libertárias teve, sem dúvida, um papel não negligenciável. Como sabemos, Kaf--ka frequentou os meios anarquistas praguenses durante alguns anos. Ora, a questão da “injustiça de Estado” ocupa um lugar importante na cultura libertária, que comemora todos os anos o Primeiro de Maio, a lembrança dos “márti-res de Chicago” — líderes anarcossindicalistas executados em 1887 sob uma acusação falsa. Em 1909, outro caso havia suscitado a indignação dos meios anarquistas e progres-sistas do mundo inteiro: a condenação à morte e a execu-

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ção de Francisco Ferrer, o eminente pedagogo libertário, fundador da Escola Moderna, acusado erroneamente de ter inspirado um levante anarcossindicalista em Barcelo-na. Segundo o testemunho de Michal Marès, Kafka teria participado de uma manifestação praguense em protesto contra a execução de Ferrer pela monarquia espanhola.10

10. Para uma discussão detalhada sobre o tema das questões libertárias de Kafka e os seus laços com os meios anarquistas praguenses, remeto ao meu livro Franz Kafka, rêveur insoumis. Paris: Stock, 2004.

b) Orson Welles

Meio século de história separa a redação do romance e a rodagem do filme. O acontecimento decisivo desses anos, que reorientou amplamente a leitura de Kafka, foi, sem dúvida, o advento do totalitarismo. A partir dos anos 1930 fomos atingidos pelo caráter profético do romance; ele pa-rece designar, com a sua imaginação visionária, a justiça dos Estados de exceção. Bertolt Brecht foi um dos primei-ros a fazerem essa constatação, a partir de 1937:

as democracias burguesas carregavam, no mais profundo de-las mesmas, a ditadura fascista, e Kafka retratava com uma grandiosa imaginação aquilo que viria a ser os campos de

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concentração, a ausência de toda e qualquer garantia legal, a autonomia absoluta do aparelho estatal […].11

11. BRECHT, Bertolt. “Sur la littérature tchécoslovaque moderne”. In: Le siècle de Kafka . Paris: Centre Georges Pompidou, 1984. Num ensaio publicado em 1974, Joseph Peter Stern traça um paralelo interessante — mas um pouco forçado — entre O processo de Kafka e a legislação nazi ou a prática dos tribunais do III Reich (Joseph Peter Stern, “The Law of the Trial”. In: F. Kuna, On Kafka: Semi-centenary Perspectives . New York: Harper & Row, 1976).

O mesmo raciocínio também não vale, mutatis mutandis, para a URSS stalinista? É Brecht, mais uma vez — embo-ra companheiro de estrada leal do movimento comunista pró-soviético — que o afirma, numa conversa com Walter Benjamin a propósito de Kafka, em 1934 (isto é, antes mes-mo dos Processos de Moscou):

Kafka só teve um único problema, o da organização. Aquilo que o tomou foi a angústia perante o Estado-formigueiro, a forma com que os homens se alienam eles próprios pelas for-mas da suas vidas comuns. E ele previu certas formas dessa alienação, como, por exemplo, os métodos da GPU.12

12. O “Diretório Político do Estado”(Государственное Политическое Управление — ГПУ [Gossudártsvenoe

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Politítcheskoe Upravlénie — GPU]) foi proposto por Lênin em 1922 para substituir a primeira polícia secreta soviética, criada em 1917: a “Comissão Extraordinária de Toda a Rússia para o Combate à Contra-Revolução e a Sabotagem”, também lembrada pelas suas iniciais ЧК [Tchê-Ka]. (N. do T.)

E Brecht acrescenta: “Vê-se, com a Gestapo, o que a Tcheka pode se tornar”.13

13. Citado em Walter Benjamin, Essais sur Brecht . Paris: Maspero, 1969, pp. 132, 136. Segundo Brecht, “a perspectiva de Kafka [é] a do homem que caiu nas engrenagens” do poder.

Uma leitura como essa é uma legítima homenagem à clarividência do escritor praguense, que soube captar as tendências, presentes em condição de potencialidades sinistras, nos Estados europeus “constitucionais” do início do século XX. Entretanto, essas referências a posteriori aos Estados ditos “de exceção” correm o risco de obscurecer o que constitui uma das ideias mestras do romance: a “exceção”, isto é, o esmagamento do indivíduo pelos aparelhos de Estado, em desprezo aos seus direitos, é a regra — estou parafraseando uma fórmula de Walter Benjamin nas Teses “Sobre o conceito de história”. Noutros termos: O processo confronta a natureza alienada

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e opressiva do Estado moderno, inclusive aquele que se autodesigna “Estado de Direito”. Por isso que, desde as primeiras páginas do romance, está dito claramente: “K. ainda vivia em um Estado de Direito, reinava paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousaria cair de assalto sobre ele em sua casa?”14 Como seus amigos anarquistas praguenses, Kafka parece justamente considerar toda forma de Estado existente como sendo uma hierarquia autoritária fundamentada na ilusão e na mentira.

14. KAFKA, Franz. O processo . Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras (Bolso), 2005.

Orson Welles se esqueceu de incluir essa frase sobre o Estado de Direito no roteiro, o que é mesmo uma pena… Todavia, ele não lê o romance do ângulo exclusivo do tota-litarismo. Decerto uma das cenas do filme, inexistente no romance, mostra o encontro de Joseph K. com indivíduos que aguardam, perante as portas do Tribunal, que se de-cida a sorte deles: são idosos, estão seminus e carregam plaquetas numeradas. A referência ao universo concentra-cional é evidente. Mas essa cena está relativamente isolada no roteiro; não se pode dizer que este sugere que Joseph K. esteja enfrentando uma ditadura totalitária. As insígnias idênticas que os indivíduos do público carregam no tribu-

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nal, que alguns críticos quiseram interpretar como uma referência ao partido único, já se encontram no romance…

O interesse de Welles pela opressão estatal é anterior à rodagem. Numa entrevista de 1958 aos Cahiers du Cinema ele explicava: “de agora em diante estou me interessando mais pelos abusos da polícia e do Estado do que pelos do dinheiro, porque hoje o Estado é mais poderoso que o di-nheiro. Busco, então, algum meio de dizer isso”.15 A obra de Kafka parece, então, fornecer-lhe um magnífico “meio de dizer isso”. Numa entrevista a Jean Clay (verão de 1963) ele retorna às razões do seu interesse por Der Prozess:

É um grande livro. Um dos textos que marcaram época. Eu ressituei a história em 1963. Quis estampar um pesadelo mui-to atual, um filme sobre a polícia, a burocracia, a potência to-talitária do Aparelho, a opressão do indivíduo na sociedade moderna.16

O ângulo de ataque inclui o totalitarismo, mas é bem mais amplo.

15. Citado por Jean-Philippe Trias. Le procès d’Orson Welles . Paris: Cahiers du Cinema, Les petits cahiers, 2005, pp. 5-6.; 16. Citado por Jean-Philippe Trias, op.cit , p. 68.

Como observa, com razão, Yussuf Ishaghpour, a buro-

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cracia não reina somente alhures (Hitler, Stalin), mas tam-bém na terra de Welles, a América. Recordar brevemente os engajamentos políticos de Welles é aqui necessário: ele fazia parte desses intelectuais denunciados, na época da Guerra Fria, como “antifascistas prematuros”. Havia mi-litado pelos republicanos espanhóis e se oposto ao fascis-mo muito antes da entrada dos Estados Unidos na guerra; membro ativo do Fronte Popular e de inúmeros comitês impulsionados pela esquerda, ele havia sido, no pós-guer-ra, objeto de uma vigilância cerrada do FBI. Decerto não foi pessoalmente molestado, mas muitos de seus amigos e dos atores que participaram de seus filmes foram vítimas do macarthismo.17 Talvez seja a essa “caça às bruxas”, e à in-quietude que ela pôde nele suscitar, que ele esteja fazendo referência em sua grande entrevista a Peter Bogdanovich:

[The trial] é o filme mais autobiográfico de todos os que eu já fiz, o único do qual me sinto próximo […]. Tive sonhos de culpa recorrentes […] Estou na prisão, não sei por que, vão me julgar, e eu não entendo o porquê.18

17. Cf. Yussuf Ishaghpour, Orson Welles cinéaste: une caméra visible. Paris: Ed. de la Difference, 2001, vol. 3, pp. 8 e 479.; 18. BOGDANOVICH, Peter. Moi, Orson Welles . Paris: Point Seuil, 1996, p. 299

É, pois, muito provável que a experiência do macarthis-

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mo fosse uma das referências históricas que o inspiram a interpretar o romance de Kafka como um “pesadelo atual”. Não é um acaso, portanto, se ele retoma, quase que literal-mente, uma passagem do Prozess que parece prefigurar as tristemente célebres inquisições da HUAC — a comissão parlamentar de inquérito sobre as unamerican  activities;19 trata-se do conselho de Leni para Joseph K.: “Na próxima oportunidade, faça a confissão completa. Só aí existe a pos-sibilidade de escapar — só aí. Você vai continuar sob o mando deles. Para sempre”.20 As passagens grifadas foram acrescen-tadas no roteiro por Welles… Visivelmente, esse texto o lembrava de alguma coisa, e ele quis reforçá-lo.

19. O House Un-American Activities Committee [“Comitê de atividades antiamericanas”], criado em 1938, foi um órgão de investigação de atividades supostamente subversivas realizadas por pessoas ou organizações das quais se suspeitava proximidade ou vínculo com os ideais comunistas. (N. do T.); 20. KAFKA, Franz. O processo , op. cit. , p. 110. (N. do T.)

O contexto histórico e político americano de Welles é, pois, muito diverso do judaico e centro-europeu de Kafka. Isso fez parte da tendência radicalmente universalista do filme. Welles parece lamentá-lo: “Acredito que a maior fra-queza do filme é essa tentativa de universalidade. Talvez, num certo plano, um filme perca sempre um pouco da sua força ao se querer universal”.21 Isso talvez seja verdade,

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mas é preciso reconhecer que a “tentativa de universali-dade” já se encontra, como observamos acima, no próprio romance.

21. Ibidem p. 299.

Para discutir “correspondências” e dissonâncias entre romance e filme, vamos nos limitar a três momentos de-cisivos: o prólogo, a questão da culpabilidade do herói e a conclusão (a execução).

o próloGo: “diante da lei”

Como se sabe, Welles introduz o filme com a parábola “Diante da lei”, que figura num dos últimos capítulos do romance. Ele conta essa lenda através da maravilhosa pins-creen de Aleksêieff,22 um procedimento extraordinário, que reforça a aura bíblica — ou talmúdica — do texto. Essa escolha nos parece legítima, na medida em que esse texto resume, de certa forma, “o espírito” do romance. Welles dá sequência ao relato com alguns comentários. O mais in-teressante é este: “Disseram que a lógica dessa história é a lógica de um sonho”. Pode ser que “Disseram” seja uma

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referência ao livro acadêmico de Marthe Robert, Kafka, pu-blicado na Gallimard em 1960, que propunha essa leitura; mas o próprio Kafka havia, por diversas vezes, comparado a sua escrita à descrição de um sonho. A atmosfera onírica na qual banha The trial é, pois, perfeitamente compatível com a do Prozess, ainda que a representação das imagens oníricas seja profundamente diferente nos dois casos.

22. Aleksándr Aleksándrovitch Aleksêieff (Александр Александрович Алексеев , 1901-1982) foi um artista, ilustrador e cineasta russo que, ao lado de sua esposa — a engenheira e animadora Claire Parker (1906-1981) —, é tido como o inventor de uma técnica que, se valendo de uma tela constituída por milhares de pinos móveis que produzem sombra à medida que diferentemente posicionados, é denominada pinscreen (écran d’épingles).

O outro comentário de Welles é muito mais contestável. Na primeira versão do roteiro está escrito:

[...] o erro é acreditar que o problema possa ser resolvido só com conhecimentos especiais ou perspicácia: que há um enigma para se resolver… Um verdadeiro mistério é insondá-vel e nada se esconde nele. Não tem nada para explicar… […] Você se sente perdido num labirinto? Não procure a saída, você não conseguiria encontrá-la… Não tem saída.

No roteiro definitivo está dito simplesmente: “Essa his-

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tória é contada num romance intitulado O processo. O que ela significa? […] Não tem nem mistério, nem enigma para resolver”.23

23. WELLES, Orson. Le procès. Découpage intégral. Paris: Seuil/Avant-Scène, 1971, p. 12.

Essa leitura da parábola é respeitável, e partilhada por vários intérpretes, começando com Jacques Derrida, que declarava que o texto é “inapreensível” e “incompreensí-vel”.24 A nosso ver, entretanto, pode-se captar e compreen-der a parábola, contanto que ela seja situada num contexto mais amplo: a espiritualidade de Kafka, suas convicções ético-sociais e, em particular, o seu antiautoritarismo — de inspiração libertária. Como é que esse antiautoritaris-mo — uma atitude existencial, Sitz im Leben, mais do que uma escolha política — poderia não se traduzir também no terreno religioso? Ele assume, então, a forma de uma recusa em face de todo poder que pretenda representar a divindade e impor dogmas, doutrinas e interdições em seu nome. Não é tanto a autoridade divina — se é que ela existe — que é questionada, mas a das instituições religiosas, dos clérigos e de outros guardiões da Lei. A religião de Kafka, na medida em que se pode utilizar essa expressão, seria um tipo de religião da liberdade — o termo é do seu amigo judeu praguense Felix Weltsch — no sentido mais forte e

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mais absoluto do termo, de inspiração judaica heterodoxa.

24. DERRIDA, Jacques, “Préjugés”. In: La faculté de juger . Paris: Minuit, 1985, p. 113.

Entre as múltiplas escolas de interpretação que esse tex-to misterioso e fascinante suscitou no decorrer do século, a mais pertinente nos parece ser aquela que vê no guardião das Leis o representante não da insondável justiça divina — em face da qual o homem do campo, como Jó, se encon-traria desarmado (tese pouco convincente defendida por Max Brod) —, mas sobretudo dessa Weltordnung funda-mentada na mentira de que fala Joseph K. no debate com o sacerdote na catedral. O primeiro intérprete a propor essa leitura da parábola não é outro que não o amigo de sem-pre, Felix Weltsch, que, fiel à sua filosofia da liberdade, su-blinha, num artigo publicado em 1927: o homem do campo fracassou porque não quis tomar o caminho rumo à Lei, atravessando essa porta sem autorização.25

25. WELTSCH, Felix. “Freiheit und Schuld in F. Kafka’s Roman “Der Prozess””, Jüdischer Almanach aus dem Jahr 5687 , 1926-1927, pp. 115-21.

Noutros termos, o homem do campo se deixou intimidar: não é a força que o impede de entrar, mas o medo, a fal-

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ta de confiança em si, a falsa obediência à autoridade, a passividade submissa.26 Se ele está perdido, é “porque não ousa colocar sua lei pessoal acima dos tabus coletivos cujo guardião personifica a tirania” (Marthe Robert).27 Em cer-tas considerações, o guardião das portas é uma imagem paternal superpotente, que impede ao filho a entrada em sua própria vida independente. A razão profunda pela qual o homem não atravessou a barreira rumo à Lei e rumo à vida é o medo, a hesitação, a falta de ousadia. O temor, a Angst daquele que implora o direito de entrar, é precisa-mente o que dá ao guardião a força de lhe barrar o cami-nho.28

26. SOKERL, Walter. Franz Kafka. Tragik und Ironie . Munique: Albert Langen, 1964, p. 215; FISCHER, Ernst. “Kafka Conference”. In: Kenneth Hughes (org.), Franz Kafka, an Anthology of Marxist Criticism . Londres: University Press of New England, 1981, p. 91.; 27. ROBERT, Marthe. Seul, comme Franz Kafka . Paris: Calmann-Lévy, 1979, p. 162. Cf . também Ingeborg Henel: “A obediência à lei externa impede a entrada na verdadeira lei”, que é “a lei de cada indivíduo” (Ingeborg Henel, “The Legend of the Doorkeeper and its Significance for Kafka’s Trial”. In: James Rolleston (org.), Twentieth Century Interpretations of “The Trial” . Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1976, pp. 41, 48.; 28. BORN, Jürgen. “Kafkas Türhütter legende. Versuch einer positiven Deutung”, Jenseits der Gleichnisse. Kafka und sein Werk . Berna: Verlag Peter Lang, 1986, pp. 177-80. Uma leitura interessante, que vai no mesmo sentido, é a proposta por Leandro Konder: o pecado do homem fora a obediência — inversamente àquele

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atribuído pela Bíblia a Adão. A parábola kafkiana nos ensina que, “para atingir a Justiça verdadeira… é preciso afrontar vigorosamente e resolutamente as contrafações de Justiça que autoridades ilegítimas tentam nos impor”. A lenda contém, pois, um “chamado à ação” (KONDER, Leandro. Franz Kafka , p. 144).

O guardião das portas da Lei, como os juízes do Processo, os funcionários do Castelo ou os comandantes de “A Colô-nia penal” não representam em nada, aos olhos de Kafka, a divindade (ou os seus servos, anjos, mensageiros etc.). Eles são precisamente os representantes do mundo da não liberdade, da não redenção, o mundo sufocante do qual Deus debandou. Face à sua autoridade arbitrária, mesqui-nha e injusta, a única via para a salvação seria seguir a sua própria lei individual, recusando a submissão e atravessan-do as barreiras interditas. Somente assim se pode ter aces-so à Lei divina cuja luz está escondida pela porta.

Diversas passagens dos Diários sugerem que, para Ka-fka, o atravessamento de um limiar ou o ato de “forçar a porta” são um tipo de alegoria da autoafirmação do indiví-duo e da sua liberdade. Segundo um fragmento de relato de 1911, “atravessar sem rodeios o limiar” é um tipo de im-perativo categórico: “é somente assim que se age como é preciso para consigo mesmo e para com do mundo”. Numa outra passagem, onde o escritor fala em primeira pessoa (6/11/1913), o atravessamento de “todas as portas” é sinô-

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nimo de audácia e de confiança em si: “De onde me vem essa repentina segurança? Pudera ela durar! Pudera eu assim entrar e sair por todas as portas, como ser humano se mantendo quase ereto”. Enfim, numa notinha de 1915, a atitude passiva, “ficar tranquilamente deitado”, é oposta àquela, ativa, de “forçar a porta do mundo”.29

29. KAFKA, Franz. Journal . Tradução de Marthe Robert. Paris: Grasset, 1954, pp. 35, 296, 423 [apenas esta última referência se encontra na versão brasileira, que trazemos aqui em tradução modificada: Diários . Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 111 (N. do T.)]. Certamente essas passagens não são sem ambiguidade e são passíveis de leituras diversas. Por exemplo, a de 1913 conclui com uma fórmula dubitativa: “eu não sei se é isso que eu quero”.

Orson Welles, que reivindica que não há “nada para ex-plicar” na parábola, compreendeu muito bem, no entanto, a importância do tema da porta fechada — e de sua trans-gressão — no romance. Como Yussuf Ishaghpour observa com perspicácia, a oposição inicial entre K. e a porta fe-chada é

[...] praticamente a matriz do filme. Ela está no centro da parábola da lei. O limiar, o atravessamento, a porta e o seu cruzamento estão entre os motivos principais do filme, cons-tantemente presentes e significativos em diversos registros.

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Numa cena inventada por Welles, K. “sai do advogado quebrando a porta, que, a partir da parábola e do começo do filme, é ali como que a própria marca do interdito. Ele ultrapassa o limiar”.30 Noutros termos: a intuição do dire-tor conduziu à decifração do enigma que ele reivindicava, em seu comentário inicial, como sem explicação possível…

30. ISHAGHPOUR, Yussuf. op.cit. , pp. 488, 530.

a Culpabilidade

Para compreender o sentido do Processo é preciso, so-bretudo, evitar a armadilha das leituras conformistas do romance, aquelas que supõem a culpabilidade de Josef K. e, logo, a legitimidade da sua condenação. Assim, Eri-ch Heller — que tem certas análises totalmente dignas de interesse —, após uma discussão detalhada da parábola “Diante da lei”, conclui:

[...] há uma certeza que é deixada intacta pela parábola bem como pelo conjunto do romance: a Lei existe e Josef K. deve tê-la ofendido terrivelmente, visto que é executado, no fim,

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com uma faca de açougueiro de dois gumes — sim, de dois gumes — que é mergulhada em seu coração e ali é girada duas vezes.31

Aquilo que, aplicado aos acontecimentos do século XX, desembocaria na seguinte conclusão: se essa ou aquela pessoa, ou até mesmo alguns milhões de pessoas, são exe-cutadas pelas autoridades é, sem dúvida, porque elas ofen-deram terrivelmente a Lei… De fato, nada no romance dá a entender que o pobre Joseph K. tenha “terrivelmente ofen-dido a Lei” (qual?), e menos ainda que ele mereça a pena de morte!

31. HELLER, Erich. Franz Kafka . Princeton: Princeton University Press, 1982, pp. 79-80.

Decerto, reconhecem outros leitores mais atentos, nada no livro indica a culpabilidade do herói, mas, nos capítulos que Kafka não teve tempo de escrever, encontra-se, sem dúvida, “a explicação da falta de Josef K. ou, ao menos, as razões do processo”.32 Ora, pode-se especular infinitamen-te sobre o romance que Kafka teria escrito — ou deveria ter escrito —, mas no manuscrito, tal como ele existe, uma das ideias mestras do texto é precisamente a ausência de toda e qualquer “explicação das razões do processo”, e a recusa obstinada de todas as instâncias em questão — policiais,

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magistrados, tribunais — a fornecer uma.

32. SCHLINGMANN, Casten. Franz Kafka . Stuttgart: Reclam, 1995, p. 44.

Todas as tentativas dos intérpretes para “culpar” Joseph K. esbarram inevitavelmente na primeira frase do roman-ce, que afirma muito simplesmente: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.33 É importante observar que essa frase não é, de forma alguma, apresentada como a opinião subjetiva do herói — como a que ele exprime nas numero-sas passagens do romance, em que reclama sua inocência —, mas como uma informação “objetiva”, tão fatual quan-to a frase seguinte: “A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, [...] dessa vez ela não veio”.34

33. KAFKA, Franz. O processo , Ibidem . , p. 7.; 34 KAFKA, Franz. O processo , Ibidem , p. 7. Ao proclamar ao longo de todo o romance a sua inocência, Joseph K. não está mentindo, mas expressando uma íntima convicção. É a razão pela qual, no momento em que os policiais lhe anunciam a sua prisão, ele acredita numa farsa organizada pelos seus colegas de escritório… É a reação de alguém que tem a consciência tranquila! Decerto, nos Diários , Kafka designa Joseph K. como “culpado”, contrariamente a Karl Rossmann, o inocente — ainda que ambos sejam “condenados à morte” (Journal , p. 445). Fica a pergunta: culpado aos olhos de quem? Do autor do romance ou do estranho tribunal que o condenou, sem dar a ele a

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possibilidade de se defender? A segunda resposta é a única que corresponde à letra e ao espírito do livro.

O que é comum a esses diferentes tipos de exegese é que elas neutralizam ou apagam a formidável dimensão crítica do romance, cujo tema central é, como compreendeu tão bem Hannah Arendt, “o funcionamento de uma máquina burocrática dissimulada na qual o herói fora inocente-mente apanhado”.35

35. ARENDT, Hannah. “F. Kafka”. In: Sechs Essays.

Como esta questão é abordada no filme? Infelizmente a frase inaugural do romance, de importância capital, como tentamos mostrar, desaparece no roteiro. Muitos comen-tários sobre The trial insistem na “falta” sexual de K., seu pecado carnal, suas relações culposas com as personagens femininas: Srta. Bürstner, Hilda, Leni. Joseph K. teria até confessado o seu crime, dizendo para sua vizinha, antes de beijá-la: meus pensamentos não são “cem porcento puros”, porque “até mesmo os Santos conhecem a tentação”. Esse argumento nos parece pouco sério. Certamente o filme evidencia, muito mais do que o romance, a dimensão sen-sual das relações entre o herói e as personagens femininas. Mas em que o fato de beijar a sua vizinha, ou de fazer amor com a criada do advogado — nos dois casos com o con-

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sentimento da parceira — é um crime, e ainda por cima passível de pena de morte? O próprio Orson Welles não utiliza de modo algum esse argumento. Seus comentários sobre a questão da culpabilidade de Joseph K. são contra-ditórios. Na entrevista a Jean Clay ele afirma: “A meu ver, para Kafka, Joseph K. era culpado. Para mim também”. Por que razão? “Ele é funcionário, chefe de repartição […]. K. é vaidoso, arrivista. Vítima do aparelho, ele tenta resistir a ele, mas ao mesmo tempo é cúmplice”. Muitíssimo bem, mas o Tribunal não pode, ainda assim, condenar K. porque ele é funcionário e cúmplice do aparelho… Quanto aos seus defeitos morais, vaidade e arrivismo, eles merecem a exe-cução? Welles conclui: “Ele é culpado porque faz parte da condição humana”. Uma culpabilidade tão geral não quer dizer grande coisa, e não explica em nada por que Joseph K. — e não outras personagens que partilham dessa condição humana — é objeto de um processo. Na entrevista a Bog-danovich, o cineasta termina por desviar a questão: “Que ele seja culpado ou não, isso não tem sentido nenhum”.36

36. In: Jean-Philippe Trias, Le procès d’Orson Welles , pp. 68-69.

O roteiro parece inspirado mais por essa última obser-vação. Não se encontra no filme nenhuma sugestão de uma “falta” ou culpabilidade de Joseph K., e nada permite

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compreender de que o acusam e por que o executam. Wel-les até inventou uma cena, que não figura no romance — ele a retira da decupagem definitiva — em que K. consulta um computador, com a ajuda de uma especialista, para sa-ber de que crime o acusam: a resposta do aparelho é que o consideram capaz de cometer um único crime: o suicídio… Welles atribui a K. esse comentário: “Mas isso é ridículo… ridículo”.37

37. WELLES, Orson. Le procès , p. 109.

ConClusão: a exeCução de joseph k.

Como resistir à engrenagem assassina da justiça de Es-tado? Para os amigos sionistas de Kafka, era preciso que os párias judeus organizassem a sua autodefesa — “Selbs-twehr” era o nome de sua revista, onde Kafka havia publica-do a parábola “Diante da lei” — aliás, primeiro passo rumo a uma dignidade recobrada. Para seus amigos anarquistas praguenses, a única defesa era a ação direta dos oprimi-dos contra os poderes opressores. Kafka provavelmente simpatizava com essas opiniões, mas o que ele mostra no Processo é menos otimista e mais “realista”, é a derrota e

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a resignação da vítima. A primeira reação de Joseph K. é a resistência, a rebelião (individual): ele denuncia, protes-ta e manifesta, com sarcasmo e ironia, o seu menosprezo pela instituição que deveria julgá-lo. Ele tende, também, a subestimar o perigo. As personagens às quais ele pede ajuda aconselham-no a submissão: “contra esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa confissão”, lhe explica Leni, a criada do advogado; quanto ao próprio advogado, a sua recomendação para K. é muito simplesmente a de “se resignar (abzufinden) às condições existentes” e de não se agitar: “Tudo, menos despertar a atenção! Comportar-se com calma, ainda que seja contra os próprios desígnios!”.38 Joseph K. recusa esses conselhos “amigáveis”; ele sente apenas desprezo pelas naturezas submissas e servis, des-critas como “caninas”.

38. KAFKA, Franz. O processo , op. cit. , pp. 110, 122. Retifiquei ligeiramente a tradução. Cf. Der Prozess . Frankfurt: Fischer, 1985, pp. 94, 104.

O cão, em muitos romances de Kafka, é a figura alegó-rica da servidão voluntária, do comportamento daqueles que se deitam aos pés dos seus superiores hierárquicos e que obedecem cegamente a voz de seus mestres. Assim, em O processo, o advogado Huld “humilhava-se diante do Tribunal de uma maneira francamente canina”.39 No grau

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hierárquico inferior, o comerciante Block fica de joelhos aos pés de Huld e se comporta de forma abjetamente ser-vil:

Não era mais um cliente, era o cão do advogado. Se este lhe tivesse ordenado que rastejasse para debaixo da cama, como se fosse para uma casinha de cachorro, e dali latisse, ele o te-ria feito com gosto.40

39. KAFKA, Franz. O processo , op. cit. , p. 178. (N. do T.); 40. KAFKA, Franz. O processo , op. cit . , p. 195.

Porém, no último capítulo do romance o comportamen-to de Joseph K. muda radicalmente. Depois de uma breve veleidade de resistência — “Não vou continuar andando”41 —, ele tira como conclusão, em seguida a uma misteriosa e distante aparição de sua vizinha, Srta. Bürstner, a “inu-tilidade” de toda e qualquer resistência e se comporta com complacência (Entgegenkommen)42 para com os algozes, isto é, em “pleno acordo” (vollem Einverstandnis) com seus obje-tivos. Contudo, no momento em que os algozes lhe mergu-lham a faca no coração, ele chega ainda a articular, antes de entregar a alma: “como um cão”. E a última frase do ro-mance é um comentário: “Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele”.43 Que vergonha? Sem dúvida a de morrer “como um cão”, isto é, de forma submissa, em estado de servidão voluntária (no sentido que Étienne de La Boétie

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dá a esse termo).

41. Ibidem , p. 224. (N. do T.); 42. Na tradução brasileira aqui utilizada, “facilidade”: “Os senhores sentaram K. no chão, inclinaram-no junto à pedra e acomodaram sua cabeça em cima. A despeito de todo o esforço que faziam, e de toda a facilidade que K. lhes oferecia, sua posição permanecia muito forçada e inverossímil”. Cf. Franz Kafka, O processo , op. cit. , p. 227. (N. do T.); 43. Ibidem , pp. 223-8. Cf. Der Prozess , pp. 191-4.

É preciso ver nessa cena uma referência críptica à servi-dão voluntária dos soldados que, em agosto de 1914, mar-chavam, com alegria e entusiasmo, para o fronte, impa-cientes para sacrificar suas vidas pela pátria? Lembremos simplesmente que Franz Kafka — que havia participado em 1909-12 das reuniões públicas do Clube Antimilitarista Vilém Körber — começou a redigir O processo em agosto de 1914, apenas alguns dias depois do início da Primeira Guerra Mundial… É também ali naquele momento — em 6 de agosto de 1914 — que ele anota em seus Diários: “Desfile patriótico. […] Assisto a isto com o meu olhar sarcástico. Tais desfiles são um dos mais nojentos fenômenos que se-guem acessoriamente a guerra”.44

44. KAFKA, Franz. Diários , op. cit. , p. 103.

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Seja como for, a conclusão do romance é, ao mesmo tempo, “pessimista” e resolutamente anticonformista. Ela exprime a sensibilidade de pária rebelde em Kafka, que manifesta nessas páginas, ao mesmo tempo, compaixão pela vítima e uma crítica à sua submissão voluntária. Po-demos lê-las como um chamado à resistência…45

45. É esta a interpretação proposta pelo grande escritor não-conformista austríaco Peter Handke: “Não existe nos escritos dos povos, desde a origem, outro texto que pode ajudar tanto o oprimido a resistir na dignidade e, ao mesmo tempo, na indignação com uma ordem do mundo que se mostrou ser o inimigo mortal quanto o final do romance O processo — em que Joseph K., o herói, é arrastado ao abate e onde ele mesmo acelera a sua própria execução […]”. (HANDKE, Peter. [1979] “Discours de réception du prix Kafka”. In: Le siècle de Kafka . Paris: Centre Georges Pompidou, 1984).

Orson Welles modificou significativamente a conclu-são. A frase “como um cão” desaparece, assim como aquela sobre a vergonha ser a única sobrevivente. Provavelmente o cineasta não captou o alcance crítico e subversivo do fi-nal do romance. Parecia-lhe pessimista demais; e o com-portamento de Joseph K., passivo demais. Ele se explicou a esse respeito numa entrevista de 1964 à revista Film Ideal:

Esse final não me apetece. […] depois da morte de seis mi-lhões de judeus, Kafka não diria isso. Isso me parece pré-Aus-

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chwitz. Não estou querendo dizer que o meu final era bom, mas era a única solução. Eu tinha de passar para uma marcha acima, nem que fosse por alguns instantes […].

Em resposta à pergunta “Joseph K. devia ter lutado?” ele responde: “Ele não fez isso, talvez devesse tê-lo feito […] Eu lhe permito, apenas, desafiar os seus algozes no final”.46

46. TRIAS, Jean-Philippe. op. cit. , p. 69

No roteiro, K. não é mais executado com uma faca, mas com uma dinamite — cuja fumaça foi, erroneamente, se-gundo Welles, confundida com a de um cogumelo atômico —, e ele se recusa a imolar a si mesmo (isso também vale para o romance); enfim, sua revolta consiste em tratar os algozes como “frouxos”, de rir às tampas, e de lançar uma pedra na direção deles. Compreende-se o desejo de Welles de fazer de Joseph K. um indivíduo que resiste, que protes-ta. A sua última cena é impressionante, e de uma enorme força expressiva. Mas, no fim, a revolta permanece bastan-te limitada, leviana e singularmente ineficaz; ela não muda fundamentalmente o sentido da conclusão, na medida em que a vítima não luta contra os seus algozes.

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para ConCluir

Kafka teve sucesso em prestar contas, como ninguém antes dele — e provavelmente ninguém depois —, do fun-cionamento da máquina judiciária do Estado moderno do ponto de vista das suas vítimas. Ele o faz sem qualquer pa-thos, com sobriedade e rigor, num estilo que se caracteriza pela austeridade e o despojamento — o que só o torna mais impressionante. A universalidade do romance e sua forte carga de subjetividade — com o olhar daqueles que caem por sob as rodas do tanque triunfal da “Justiça” — contri-buíram para fazer do Processo uma das obras literárias que mais sacudiram a imaginação do século XX. O romance não exprime uma mensagem política ou doutrinária; mas, sobretudo, um certo estado de espírito antiautoritário, uma distância crítica e irônica para com as hierarquias de poder burocráticas e jurídicas. Reencontramos, sob outra forma, e com outros meios estéticos, esse mesmo estado de espírito no magnífico filme de Orson Welles.

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KAKFA, BENJAMIN E DERRIDA: DIANTE DA LEI

Carla Rodrigues

Filosofia | Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFICS) | UFRJ — Rio de [email protected]

Resumo: Este artigo propõe articular três autores judeus — Kafka, Benjamin e Derrida, dispostos por mim nessa ordem a partir de uma perspectiva temporal — a partir da percepção de que suas obras podem ter em comum a experiência da lin-guagem como experiência de impossibilidade e como resis-tência à passagem para a modernidade. Para isso, discuto a parábola “Diante da lei”, de Kafka, comparada por Benjamin aos ensinamentos judaicos e percebida por Derrida como condição intrínseca do leitor: estar diante de um texto cuja lei de acesso nunca é dada.

Palavras-chave: linguagem; desconstrução; judaísmo.

Abstract: This paper intends to discuss three Jewish authors — Kafka, Benjamin and Derrida, arranged by me in that or-der from a temporal perspective — from the perception that

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their works share the experience of language as an experi-ence of impossibility and as resistance against the passage into modernity. To do so, I discuss Kafka’s parable “Before the Law”, which was compared by Benjamin to Jewish teach-ings and perceived by Derrida as an intrinsic condition of the reader: standing before a text whose access law is never given.

Keywords: Language; deconstruction; judaism.

Aquilo que Jacques Derrida chamou de parergon — ter-mo grego que pode ser entendido como ornamento, como algo que, não pertencendo ao objeto nem sendo sua parte integrante, ainda assim participa do objeto como acrésci-mo — é uma denominação que poderia ser usada para as epígrafes. Parergon é pensado por ele como um elemento fora da obra que participa da obra, um suplemento, em-baralhando as distinções entre o dentro e o fora da obra. Uma epígrafe não está fora do texto, mas, ao mesmo tem-po, não é o texto em si. Faz ao texto uma moldura, anuncia uma intenção, promove a partir de si um indício. O termo parergon aparece nas primeiras páginas de “O carteiro da verdade”,1 no debate sobre as relações entre psicanálise e literatura, e será aprofundado em texto posterior, La vérité en peinture,2 como parte do questionamento sobre a impos-sibilidade de distinção entre o que está dentro e o que está

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fora da obra de arte. Iniciado por Kant, desdobrado nas leituras de Nietzsche e Heidegger,3 o debate é seguido por Derrida como parte de uma estratégia de pensamento que amplia as interrogações sobre os pares nos quais se sus-tentavam o pensamento moderno.

1. DERRIDA, 2007 [1975]; 2. DERRIDA, 1978.; 3. Mais sobre o debate entre Derrida, Heidegger, Nietzsche e Kant em RODRIGUES, 2013.

Se este artigo não tem uma epígrafe, é menos por ter re-nunciado à intencionalidade que as epígrafes carregam, e mais por pretender trazer para o texto seu elemento inspi-rador, o miniconto Framboesa, do escritor judeu Alex Eps-tein:

Um judeu chamado Franz Kafka — é possível haver uma his-tória que comece de outro modo — uma vez visitou o sonho de minha bisavó. Ela estava colhendo framboesas no bosque, nua como no dia em que nasceu; Kafka tinha um chapéu na cabeça — ele se apressou em tirá-lo para esconder as próprias vergonhas. “Onde estou?”, perguntou assustado, em alemão. “Onde cresce a pimenta preta”, respondeu minha bisavó, em iídiche, e acrescentou: “Se você quiser, eu corto seu cabelo para ficar na moda”. Acho que ela realmente o entendia.4

4. EPSTEIN, 2014, p. 17.

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Se os escritos de Kafka se apresentam como um desa-fio a qualquer leitura literal, ao mesmo tempo prestam-se à arte — como no miniconto de Epstein — e a inúmeras releituras, novas parábolas, infinitas interpretações. Dois textos dedicados a “Diante da lei” serão sujeitos da e à mi-nha leitura, por um caminho que pretende encontrar no judaísmo os pontos de contato entre Kafka, Benjamin e Derrida. Na minha hipótese, é na “esfera onde linguagem e expressão se acham excluídas”,5 como na tradição judai-ca, que Kafka toca o pensamento de ambos os filósofos.

5. SCHOLEM, 2008, p. 16.

línGua, linGuaGem, lei, literatura

Para falar de linguagem, convoco o filósofo/filólogo do elogio à metáfora, de um estilo de escrita que modifica de tal modo a tarefa do filósofo que, depois dele, torna-se im-possível separar conteúdo e forma, filosofia e vida, pensa-mento e poesia. Nietzsche, quem primeiro percebeu que a escrita não está originalmente assujeitada ao logos e à verdade; Nietzsche, cujos cursos sobre retórica, entre 1871

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e 1875, defendem a essência artística da linguagem, acres-centando que todas as palavras são em si, desde o começo, equívocos, enganos. Metáfora, metonímia, sinédoque e alegoria são termos mais ou menos equivalentes, a partir dos quais Nietzsche propõe que toda linguagem é sempre figurativa. A língua será, para Nietzsche, resultado de uma criação individual, e a metáfora ocupará um lugar estraté-gico no seu objetivo de questionar o ideal de próprio e de propor novas relações entre filosofia, arte e ciência. Se só o que há na linguagem é metáfora, a metaforização será o gesto primeiro, preservação da pulsão criadora e do fluxo ardente da imaginação.

Aproximo essa criação da e na linguagem, em Nietzs-che, da nomeação em Benjamin, quando ele diz que “o ser humano comunica sua própria essência espiritual (na medida em que ela seja comunicável) ao nomear todas as coisas”.6 Dois aspectos me interessam nessa curta citação. O primeiro é o trecho que assinala haver algo de incomuni-cável na experiência humana, questão presente, ainda que em abordagens diferentes, em Kafka, Benjamin e Derrida. Esse limite do comunicável na linguagem faz parte das condições de possibilidade de toda linguagem. Aparecerá, por exemplo, quando Benjamin reitera essa percepção do não comunicável que “resta” em todas as línguas: “Resta em todas as línguas e em suas composições, afora o elemento comunicável, um elemento não comunicável”.7 Benjamin

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diz que “a essência linguística do homem está no fato de ele nomear as coisas”,8 e o faz a partir de uma proposição que destitui a linguagem de um caráter comunicativo. Lin-guagem deixa de ser médio, meio, mediação, deixa de ser caminho pelo qual o mundo é comunicado pelo homem. Aquele que nomeia é também aquele que cria o mundo:

Será que o homem comunica a sua essência espiritual atra-vés dos nomes que ele dá às coisas? Ou nos nomes? O para-doxo da questão contém a sua resposta. Quem acredita que o homem comunica sua essência espiritual através dos nomes não pode, por sua vez, aceitar que seja a sua essência espiri-tual o que ele comunica, pois isso não se dá através de nome de coisas, isto é, não se dá através das palavras com as quais ele designa uma coisa. […] O nome é aquilo através do qual nada mais se comunica, e em que a própria língua se comu-nica a si mesma, e de modo absoluto. […] O homem é aquele que nomeia, nisso reconhecemos que por sua boca fala a pura língua.9

6. BENJAMIN, 2011, p. 54; 7. Ibidem , p. 116; 8. Ibidem , p. 55; 9. Ibidem , pp. 55-56.

Quando fala em “pura língua”, Benjamin me permi-te pensar em aproximações com o hebraico, entendido na tradição judaica como a linguagem que alcança Deus. Para os cabalistas com os quais Benjamin parece aqui se aliar, o hebraico é a “língua sagrada” e “tudo que vive é uma

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expressão da linguagem de Deus”.10 Linguagem, se não é meio, se não é mero transporte, se não é apoiada, funda-mentada, fundada sobre um ideal de verdade, se não pode ser pensada assim, então a linguagem necessariamente perde seu estatuto de representação do mundo e torna-se a condição da fusão imperfeita entre mundo e escrita.

10. SCHOLEM, 2008, p. 19.

Língua e linguagem são distintivos da entrada de Derri-da no campo filosófico francês nos anos 1960. O problema da linguagem não é para ele um entre outros, e, embora não tenha pretendido fazer filosofia da linguagem, é na, com, e a partir da linguagem que seu pensamento se desdobra em direção ao fim do século XX como uma linha a partir da qual fica difícil recuar. Os anos 1960, nos quais Derrida começa a sua trajetória filosófica, se configuraram como uma renovação da filosofia depois do estruturalismo. No que diz respeito a Derrida, seu percurso seguirá, ao mes-mo tempo, um distanciamento da fenomenologia na qual iniciou seus estudos e uma crítica ao estruturalismo, so-bretudo no debate sobre o problema da linguagem. Estilos de linguagem, como o uso da metáfora no texto filosófico e o recurso das aspas para a suspensão da verdade, serão para Derrida problemas filosóficos, como já haviam sido para Nietzsche. Como ampliação do gesto de Nietzsche,

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Derrida suspende entre aspas todos os conceitos filosófi-cos,11 marca da radicalidade do seu pensamento. Se todos os conceitos filosóficos estão suspensos entre aspas, todo discurso, toda linguagem e todo logos estão sob suspeita.

11. DERRIDA, 2013

No seu já clássico debate com a linguística de F. Saus-sure,12 Derrida propõe um deslocamento do conceito de linguagem para o quase-conceito de escrita [écriture]. Aqui, faço o que pode parecer uma digressão, justificada quando se trata de escrever sobre dois pensadores dos problemas de tradução. Em minhas pesquisas sobre o pensamento de Derrida, comecei adotando o termo escritura, tal qual es-tabelecido pelos seus tradutores desde as primeiras obras publicadas no Brasil. Assim, mesmo nas minhas tradu-ções, segui o uso de escritura como equivalente a écriture, em alguns momentos diferenciando escrita e escritura, sendo este segundo termo usado para designar o quase--conceito proposto por Derrida a partir do deslocamento do conceito de linguagem. Recentemente, ao iniciar novas pesquisas sobre linguagem e judaísmo como pontos de contato entre Derrida e Benjamin — pesquisas das quais este artigo faz parte —, deparei-me com um incômodo no uso do termo escritura, pela sua referência às escrituras sagradas ou mesmo, em uso corrente no Brasil, às escri-

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turas jurídicas, assinadas em cartório, que têm valor de verdade. Em Rego,13 há uma opção pelo uso de escrita em detrimento de escritura. A escolha ganha coerência na ar-ticulação proposta pela autora entre a escrita na psicanálise e a escrita em Derrida, escrita aqui entendida como traço (Freud) ou rastro (Derrida), escrita como “tentativa de re-cuperar o objeto perdido”,14 escrita como aquilo que, na fala, presentifica, em ausência, o inconsciente.15

12. Sigo o comentador Patrice Maniglier (2011), para quem o debate entre Derrida e Saussure em Gramatologia é “essencial para a compreensão do que fez dos anos 1960 um verdadeiro momento filosófico” tendo operado a passagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo, da filosofia da estrutura para a filosofia da diferença. No argumento de Maniglier, um momento filosófico não é apenas uma época, que pode ser definida por um certo número de teses ou de pressupostos, mas a abertura de um pensamento que demanda incessantemente ser relido e retomado, como as questões levantadas por Derrida têm sido desde então.; 13. REGO, 2006, p. 16.; 14. Ibidem , p. 141.; 15. FREUD, 1977, volume IV, p. 297, citado por REGO em p. 111.

Essa escrita que é sempre da ordem de uma tentativa não me parece representada na tradução por escritura, o que indica que há uma tarefa de tradutor a ser feita em relação à recepção da filosofia de Derrida no Brasil. Mas agora sim, digressiono. Sigamos para dizer ainda que escrita, se já não é firmação de verdade em texto escrito, também pode

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ser aquilo que aproxima Kafka, Benjamin e Derrida, por ser só aquilo que há. Se escrita não é meio, se não é mero transporte, e se a linguagem não está dotada de uma sig-nificação apoiada, então escrita pode ser aquilo que aponta para a impossibilidade de representação do mundo e, ao mesmo tempo, torna-se o mundo, destituído de um senti-do original a ser resgatado pela linguagem.

Benjamin expressa o problema do original quando dis-cute o impasse entre a fidelidade e a liberdade da tradução; a primeira entendida como condição de restituição do sen-tido; a segunda, como tarefa de recriação e renomeação. Por isso, para ele, “a tradução apenas toca fugazmente o sentido original”.16 Derrida (2002) retoma o impasse ben-jaminiano para problematizar o ideal de original, origem, originário, e pensar que estar na linguagem é estar aparta-do da possibilidade de origem, é estar desde sempre lança-do na experiência do outro, alteridade cuja herança grega do pensamento filosófico havia recalcado.

16. BENJAMIN, 2011, p. 116.

atenas e jerusalém, helenismo e judaísmo

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“Hebraísmo e Helenismo — entre esses dois pontos de influência, move-se o mundo. Ora tende ele mais forte-mente para um, ora para outro; e devia estar, embora nun-ca esteja, calma e prazerosamente equilibrado entre ele”,17 escreve Derrida como epígrafe — ou como um parergon, ao mesmo tempo dentro e fora — do primeiro texto que ele dedica ao pensamento do filósofo judeu lituano Emma-nuel Lévinas. Trata-se de Violência e metafísica (DERRIDA, 2009 [1963]), cujo debate com a fenomenologia de Husserl e Heidegger se dá pela visada de Lévinas e pela crítica levi-nasiana às origens gregas do pensamento. Judeu magrebi-no, vindo da África, mais especificamente de uma Argélia francesa onde viveu a experiência da perda da cidadania,18 Derrida faz da sua filosofia uma desconstrução do pensa-mento tradicional, do pensamento que tem origem em um lugar — a Grécia — e permanece em torno de uma — a verdade. Lévinas será uma influência explícita em Derrida e na sua relação com a tradição judaica, onde ele vai encon-trar caminhos para pensar sobre a herança do helenismo e sua possibilidade de crítica.

17. ARNOLD, 1869, p. 144, citado em DERRIDA, 2009, p. 111. O trecho escolhido por Derrida compõe o livro Cultura e anarquia , de Matthew Arnold, e reúne uma coletânea de ensaios escritos originalmente para a Cornhill Magazine entre 1867 e 1868; 18. DERRIDA, 1996.

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Em muitos outros aspectos, a obra de Lévinas foi impor-tante para o pensamento de Derrida. Em Duque-Estrada (2008), o destaque é para como a crítica de Lévinas a Hei-degger influenciou a leitura de Derrida ao filósofo alemão. Em Haddock-Lobo (2006), há uma ênfase na influência de Lévinas em relação à ética como relação com a alteridade. Em Rodrigues (2013), há um desdobramento desta influ-ência na proposição derridiana de hospitalidade incondi-cional, formulada a partir da palavra acolhimento. Lévinas é parte do movimento de resgate do judaísmo na França do pós-guerra, quando ele passa a se dedicar à leitura do Talmude19 sob influência de um mestre da interpretação talmúdica, M. Chouchani, nas aulas de quem é admitido quando volta a Paris.20 Em 1945, terminada a Segunda Guer-ra, Lévinas reencontra a mulher e a filha — únicas sobrevi-ventes da família ao Holocausto — e assume a direção da Escola Normal Israelita Oriental, onde se responsabiliza pelo estudo do Talmude. Em 1957, é um dos fundadores do Colóquio de Intelectuais Judeus de Língua Francesa, que promove encontros anuais em Paris, dos quais participará até 1990. A ideia, tanto da escola quanto dos colóquios, era reconstituir a comunidade de judeus franceses, identifica-dos pelas ligações entre questões políticas e filosóficas e as tradições judaicas, o que se torna para Lévinas uma tarefa ético-política.21

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19. O Talmude é um conjunto de 63 livros de leis, tratados, textos éticos e históricos que formam a tradição oral do pensamento judaico e foram escritos pelos antigos rabis — classificação originalmente destinada aos mestres da leitura dos Mishnas, parte do Talmude relativa às leis religiosas — durante sete séculos. O Talmude é constituído por dois conjuntos de livros, o Mishna, que interpreta diretamente o texto bíblico, e a Guemara, que faz essa interpretação com o apoio do Mishna; 20. POIRIÉ, 2007, p. 123; 21. CRITCHLEY; BERNASCONI, 2002.

A recuperação do judaísmo em Lévinas se dá, portanto, a partir do momento da solução final, do Holocausto, da Shoah. Em uma palavra, Auschwitz, ponto de ruptura a partir do qual a tradição judaica se impõe como tarefa fi-losófica e crítica à modernidade. Derrida se vale da leitura de Lévinas para pensar como a — pelo menos a fenome-nologia de Husserl e Heidegger — não conseguiu romper com uma história da filosofia pensada a partir da sua fonte grega.

Se um diálogo está aberto entre a fenomenologia husserlia-na e a “ontologia” heideggeriana, em toda parte em que elas se encontram mais ou menos diretamente implicadas, é so-mente no interior da tradicionalidade grega que ele parece poder ser ouvido.22

Em Lévinas, Derrida encontra a “saída da Grécia”, num gesto parricida a partir do qual “faz-se necessário matar o

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pai grego que ainda nos mantém sob sua lei”.23

22. DERRIDA, 2009, p. 115; 23. Ibidem , pp. 119 e 127.

A leitura da obra de Lévinas será um dos caminhos pelos quais Derrida se engajará numa retomada do judaísmo. É em torno desse judaísmo — possibilidade de questiona-mento da origem grega, forma de rejeição ao pensamento moderno e à passagem da tradição para a modernidade — que proponho promover o encontro entre Kafka, Ben-jamin e Derrida, ainda que haja uma separação temporal importante entre eles que me faz apresentá-los nesta or-dem. Enquanto Kafka escreve antes da Primeira Guerra, Benjamin é um judeu exilado durante a Segunda Guerra, Derrida já é um autor comprometido com o pensamento crítico pós-guerra. Essa temporalidade deixará traços dis-tintos na escrita de cada um desses autores, que fazem de suas obras uma forma de resistência. Em Kafka, à perda da tradição e à passagem para a modernidade. Suas nar-rativas fabulosas são descritivas de um mundo cujo senti-do se perdeu nessa passagem. Em Benjamin, a resistência está na crítica à modernidade, expressa no espanto com o momento de ruptura com um mundo que ele percebia estar deixando de existir com a construção das passagens parisienses.

Em Derrida, a resistência faz da estratégia da descons-

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trução o que Sloterdijk chama de descrições de segunda or-dem, condição da filosofia depois da modernidade, quando

[...] toda teoria se vê alçada ao nível de uma observação de segunda ordem: não se tenta mais fazer uma descrição dire-ta do mundo, mas descrevem-se novamente as descrições já existentes — e, com isso, elas são desconstruídas.24

Derrida faz desta descrição de segunda ordem o motor de seu pensamento e, por isso, muitas vezes é acusado de ser um mero leitor de textos. Para seus críticos, tudo se passa como se, nessas leituras, Derrida não estivesse mais à altu-ra do projeto filosófico de descrição primária do mundo. Para Derrida, estar diante da impossibilidade de descrição primária do mundo é matéria-prima para seu pensamen-to. “Estar diante de” será, para ele, a condição de (im)pos-sibilidade da filosofia contemporânea, marca do paradoxo de que só é possível pensar o mundo a partir do reconheci-mento da inacessibilidade do mundo. Fazer filosofia pas-saria a ser, nessa perspectiva, ver-se diante da necessida-de de reconhecer o mundo como inacessível e, ainda sim, permanecer nesse lugar impossível, fazendo dele a própria experiência de pensamento.

24. SLOTERDIJK, 2009, p. 20.

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diante da lei

Se, como já disse, os escritos de Kafka apresentam-se como um desafio a qualquer leitura literal, aqui torna-se importante observar que essa qualidade servirá tanto a Benjamin quanto a Derrida na leitura que fazem de “Dian-te da lei”, entendida como uma parábola de Kafka diante da qual se podem retirar infinitas interpretações sem que haja uma interpretação mais adequada à verdade do tex-to. Quando escreve sobre Kafka, Walter Benjamin (1993 [1934]) compara as parábolas kafkanianas ao haggadah, narrativa talmúdica cujo ensinamento depende de sua in-terpretação, entendida na tradição judaica como drash, “a arte de retirar do texto aquilo que não aparece numa leitu-ra literal”.25

25. SORJ, 2010, p. 39.

Uma das possíveis referências à tradição judaica, além da forma parabólica, está já no título. Para duas importan-tes correntes da mística judaica — o sabatinismo e o hassi-dismo —, há um ponto em comum em relação ao que deve ser a característica do líder religioso. Dele não se exige ne-

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nhuma iluminação espiritual especial. “O que ele precisa é conhecimento muito profundo das fontes da Sagrada Lei, a fim de que possa indicar o caminho certo à comunidade e interpretar para ela a eterna e imutável palavra de Deus.”26 No judaísmo, estar diante da lei é condição intrínseca da existência.

26. SCHOLEM, 2008, p. 370.

Na curta parábola de Kafka, um camponês se apresenta “diante da lei” ao se colocar diante de uma porta, a porta da lei, a qual ele jamais atravessará. O camponês decide esperar e, acomodado pelo guarda próximo à porta, ele só pode esperar. Em todas as inúmeras tentativas que faz de entrar, ouve do guarda a mesma negativa. Até que, depois de toda a espera, quando o camponês está prestes a mor-rer, tem com o guarda o último diálogo:

— O que você ainda quer saber? — pergunta o porteiro — Você é insaciável.

— Todos aspiram à lei — diz o homem — Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para en-trar?

— Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.27

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27. KAFKA, 2011 [1915], p. 107.

A dupla injunção entre a necessidade e a impossibilida-de de acesso à lei faz o leitor da parábola performatizar o lugar do camponês, o leitor que espera pela lei do texto, sem que esta se apresente a ele, assim como o camponês espera pela lei, sem que esta se apresente a ele. Todos as-piram a essa lei, que, na tradição judaica, seria apreensível na presença imanente de Deus, lei perdida na entrada na modernidade, cuja razão instrumental Kafka prenuncia.

O indecifrável do texto de Kafka que dispõe o leitor à es-pera da lei do texto se apresenta como um paradoxo de sua escrita. Na impossibilidade de uma leitura literal — por ser a literalidade propositalmente destituída de sentido —, Kafka oferce um texto que só pode ser lido literalmente, porque não há nada por trás do texto. Só o que há é o texto, sua impossibilidade de penetração, perpetração, entrada, acesso. Um texto que, na mesma estratégia, se recusa a uma leitura literal e só oferece uma leitura literal,28 resis-tindo a qualquer ordem de explicação. Como no miniconto de Epstein, e como observa Agamben,

Sobre o inexplicável correm as mais diversas lendas. A mais engenhosa — encontrada pelos atuais guardiões do Templo ao remexerem as velhas tradições — explica que, sendo inex-plicável, ele permanece como tal em todas as explicações que

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dele foram dadas e continuarão a sê-lo nos séculos vindouros. São precisamente essas explicações que constituem a melhor garantia da sua inexplicabilidade.29

28. Agradeço ao amigo e editor Alberto Pucheu os comentários ao texto, que tanto contribuíram para essas reflexões; 29. AGAMBEN, 2013, p. 134.

Já na sua leitura, Derrida percebe que a permissão do guarda, aparentemente apenas recusada, foi “retardada, adiada, diferida”,30 o que levaria não a uma mera interdi-ção, mas a uma différance, um adiamento infinito daquilo que nunca chega, que será sempre uma promessa vã de restituição, uma promessa na qual se está para sempre en-gajado.

Isso que nos mantém parados diante da lei, como o campo-nês, não é também o que nos paralisa e nos retém diante de uma narrativa, sua possibilidade e impossibilidade, sua lisi-bilidade e sua inlisibilidade, sua necessidade e sua interdição, que são também as da relação, da repetição e da história?31

30. DERRIDA, 1985, p. 102; 31. Ibidem , p. 114.

Derrida parte da ideia de que o camponês diante da lei é a demonstração da inacessibilidade da lei, a mesma inacessibilidade de toda a estrutura do pensamento. A lei,

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como tal, é inacessível, é definida pela sua inacessibilida-de, interditada mesmo quando, como no texto de Kafka, as portas estão abertas. “O que permanece invisível e escon-dido em cada lei se pode então supor que é a lei ela mesma, isso que faz com que as leis sejam leis, o ser-lei das leis”.32 A lei do texto — perfomatizada pelo texto de Kafka — é seu segredo indecifrável, sua cripta, aquilo que resiste a toda interpretação, a toda hermenêutica, a toda leitura. Se na tradição judaica o acesso à lei divina se dá pela Torá, é me-nos porque o texto contenha uma verdade, e mais por estar infinitamente aberto a (re)intepretações.

32. Ibidem , p. 110.

“aGora eu vou embora”

Do ponto de vista da moralidade, Nietzsche nos chama a atenção para a impossibilidade de ignorar o hífen de li-gação entre a tradição judaico-cristã, o que nos impediria de fazer uma completa separação entre a origem grega e a origem judaica no Ocidente. Para Nietzsche, judaísmo e cristianismo estão unidos pelo ideal ascético, pela nega-ção da vontade de potência e de tudo que signifique culpa,

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renúncia ao corpo e à alegria. Do ponto de vista da rela-ção com a verdade, hebraísmo e helenismo pretendem se diferenciar no que diz respeito ao ideal de verdade como origem, originário, inaugural. A experiência judaica mais originária seria a de exílio, expressa na condição do sujei-to-refém em Lévinas, influência para Derrida, ou no exílio francês de Benjamin, inspiração para estas belas linhas da filosofia contemporânea:

No ano de 1932, quando me encontrava no estrangeiro, co-meçou a tornar-se claro para mim que em breve teria de me despedir por longo tempo, talvez para sempre, da cidade em que nasci. Por mais de uma vez tinha sentido, no mais íntimo de mim, que o procedimento da vacinação me era benéfico. Guiei-me por essa intuição também nessa nova situação e apelei deliberadamente àquelas imagens que no exílio costu-mam despertar mais fortemente a nostalgia — as da infân-cia. Mas o sentimento de nostalgia não podia, nesse caso, so-brepor-se ao espírito, tal como a vacina não pode tomar conta de um corpo saudável.33

33. BENJAMIN, 2009, p. 69.

Exílio e nostalgia são elementos que Sloterdijk percebe na ligação entre Derrida e outro judeu que muito o influen-ciou, Freud, e na formulação de différance, termo necessário para pensar a condição de estar diante de. Différance como

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adiamento, diferimento, indica não apenas uma ruptura temporal com o presente, mas “primordialmente e antes de tudo o deslocamento no espaço e a redisposição, duran-te a distribuição dos papéis numa peça de teatro teológi-ca”.34 Depois de Freud, argumenta Sloterdijk, o Egito como berço do judaísmo nunca mais será um lugar. Sua função será “designar o lugar a partir do qual a fuga só poderá re-sultar numa alteridade singular”.35

34. SLOTERDIJK, 2009, p. 26; 35. Ibidem , p. 26.

Fuga, exílio e nostalgia nos remetem a Benjamin, mas também podem nos remeter ao jovem Derrida, nascido Jackie numa Argélia dominada pelos franceses, judeu--magrebino, pied noir. Como relata seu biógrafo, Derrida era muito reticente a reduzir a sua infância e juventude ao sintagma “nasci-em-E-Biar-no-subúrbio-de-Argel-numa--família-judia-pequeno-burguesa-assimilada”.36 Aos pou-cos, sua obra foi dando pequenas pistas de sua herança e seus textos foram ganhando caráter mais autobiográfico. Essa nostalgia de origem é uma questão que se apresenta em O monolinguismo do outro ou a prótese de origem, no qual o filósofo parte da apresentação de um paradoxo: “eu só tenho uma língua, e essa língua não é minha”.37 Ao postular essa dupla lei da linguagem, essa duplicidade contraditó-ria que se daria numa divisão ativa entre língua materna e

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língua estrangeira, língua ao mesmo tempo minha e sem-pre do outro, Derrida pensa monolinguismo como aquilo que nos lança em uma experiência de não pertencimento, porque o dono de uma língua não possui naturalmente aquilo que chama de “sua língua”. A língua não é um bem natural, não é propriedade nem domínio. A língua própria é desde sempre língua inassimilável, outro paradoxo com o qual eu poderia articular Kafka, Benjamin e Derrida.

36. PEETERS, 2013, p. 33; 37. DERRIDA, 1996, p. 13

Aqui, a questão se reaproxima do inacessível da língua, perfomatizado nas obras de Kafka, cujo paradoxo já men-cionado está em oferecer-se e recusar-se a uma leitura li-teral, mas também em Benjamin, para quem a linguagem não comunica, não representa, é também apenas litera-lidade, tão inacessível quanto o próprio mundo. A língua benjaminina nomeia e cria o mundo, um mundo ao qual não se tem acesso na própria língua. A expressão torna-se impossível a partir de Derrida, porque a própria língua será sempre a do outro, e o exílio será condição intrínseca da existência. Exílio como experiência moderna, em Kafka; exílio concreto, em Benjamin; exílio como condição do su-jeito da linguagem, em Derrida.

A família de Derrida chegou à Argélia vinda da Espanha antes da ocupação francesa. Foi na Espanha também, al-

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guns séculos antes, que a Cabala conheceu sua decadên-cia em relação ao messianismo. Se, como ensina Scholem (2008), Cabala, messianismo e hassidismo são grandes correntes da mística judaica, penso que Benjamin e Der-rida são judeus ligados a correntes distintas do judaísmo, sendo o primeiro herdeiro da Cabala e de sua relação mís-tica com a linguagem, e o segundo herdeiro do messianis-mo e das leituras talmúdicas que o aproximam de Lévi-nas e da ideia de filosofia como interpretação infinita, de uma religião sem religião — como diz John Caputo (1997) — porque já destituída de sua possibilidade de religação. Messianismo sem Messias, deus sem Deus, deus abscon-ditus, “Deus escondido em si mesmo”,38 deus como um se-gredo para sempre encriptado. Segredo que se expressa no desafio a qualquer leitura literal das parábolas de Kafka, segredo como condição do sujeito diante de.

38. SCHOLEM, 2008, p. 13.

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RAPINA DE POMBOS E A EXTEN-SÃO DO ABISMO — KAFKA, SECRE-

TO AO OUTRO

Piero Eyben

Teoria da Literatura | Universidade de Brasília (UnB) — Brasí[email protected]

Resumo: O presente ensaio tem por objetivo discutir a rela-ção entre escritura e o ato de nomeação a partir dos textos de Franz Kafka. A imagem-ficção do morto que segue pe-regrinando no âmbito da vida colhida no conto “O caçador Gracchus” serve também como alegoria da experiência do escrever, dessa expectativa que surge diante da imortalidade autoral e da indecidibilidade, essa ainda tomada como possi-bilidade de morrer pela literatura.

Palavras-chave: experiência; escritura; aporia; autoria; mor-

te.

 

 

Abstract: This paper aims to discuss the relationship between

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writing and the act of nominating from the texts of Franz Kafka. The fiction-image of the dead that follows sojourning within the life harvested in the tale “The Hunter Gracchus” also serves as an allegory of the experience of writing, of this expectation that arises before the authorial immortality and the undecidability, still understood as a possibility of dying, for literature.

 

Keywords: experience; writing; aporia; authorship; death.

“K. a été appelé, et il est bien vrai que la mort semble un appel; mais il est vrai aussi que répondre à cet appel, c’est le trahir, faire de la mort quelque chose de réel et de vrai”.

Maurice Blanchot

Muito embora fosse anunciada, desde seu título, a vinda de uma gralha, chegaram primeiramente as pombas — die Tauben fliegen vor mir her —, logo, os pássaros que acom-panham o cortejo infinito do caçador Gracchus formam um bando diverso de seu nome, de sua anunciação, de seu chamado. Diria até duplamente diferente entre a língua que fala o caçador da Floresta Negra e aquela que se fala em Riva. Certamente isso se conta em alemão, mas, com a língua italiana insinuada entre os lábios, com a referên-

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cia de um pequeno vilarejo portuário, entre água e falésias, entre a vida e a morte. Disso muito se falou, do gracchio italiano ao Gracchus do nome do personagem que substitui o alemão Dohle, mas, sobretudo, o kavka tcheco, o nome da gralha, o nome do próprio Kafka. Importa-me, no entanto, uma outra cadeia substitutiva, aquela que implica a aporia da morte, do último limiar, da soleira entre a matéria con-tável e a matéria esquecida, entre aquilo do que se pode tratar e aquilo que participa do impensável desse falató-rio, do gênero garrulus. Importa-me, portanto, a relação infranqueável entre o ato do dizer, do espaço confessional na escritura e a coluna da morte, do transitório.

Palra. Assuada. Essa moldura pretende dizer, deve di-zer. E, como todo dizer, marca muito mais a ausência de algo, o aquém de algo, o voo furtado de algo que ainda não se mostrou, que ainda permanece como que por vir, como concessão desapropriada em uma tensão entre aquilo que se fala e aquilo que se deve falar, entre a expressão maior da passividade da fala e a implicação imperativa de um fala tu. Nessa dupla injunção da fala e do dizer está a inscrição da passagem do limite; da disjunção, de fato, do lugar em que o sujeito se impossibilita como tal e de sua violação pelo outro, em um dizer deliberadamente imperioso e apelati-vo, em um chamado que evoca seu nome, em hesitações e oscilações que não deixam nunca de ser violentas — e é impossível esquecer-se da entrada unilinear no diário de

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Franz Kafka, de três de novembro de 1921: “Der Anruf [O chamado]”.1 Limite, então, entre o vocativo, a necessida-de de uma linguagem dizer um nome e a necessidade de fazer-se ouvir por esse nome; de a linguagem construir o chamamento como dizer, como rastro desmedido de uma proximidade, como significação primária, mas extrema. Na linha do diário há a condensação das entradas desse ano emblemático, trata-se de um chamado da vida (“wieder ein Ruf des Lebens”, como está escrito no dia 18 de outubro), de uma infância eterna que se pode chamar pela palavra certa, para que venha [ruft man sie mit dem richtigen Wort, beim richtigen Namen, dann kommt sie], achegue-se como acontecimento. Logo, um chamado quer dizer desde a vida, desde o limite marcado desse tempo da palavra, do nome e da própria vinda. Aquilo que vem parte do porvir e é daí a fonte de um dizer que apela à obrigação de escrever que Kafka manteve até o último instante, mesmo que o ano de 1921 inicie com a dúvida e com a decisão de mantê-lo escondido e até mesmo inexistente [vielmehr es wird sich verkriechen, es wird gar nicht sein]. Trata-se, desde logo, de um dizer furtado, de uma ave de rapina que toma a pala-vra por sua inexistência necessária, da frase que se diz ris-cando e arriscadamente. Dito assim, o dizer dessa palavra pode até mesmo não vir a ser, não chegar, manter-se como que encriptado, na distância do contrário e permanecer como diferença.

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1. KAFKA, Franz. Tagebücher — Band 3: 1914-1923 , p. 195.

Não conduzido por um desejo de escrever, mas por seu dever, Kafka fez do dizer de Gracchus uma espécie de con-fissão excessiva, de testemunho vindo para além de sua mortalidade, como envio além-túmulo. Em sua pura inca-pacidade, a escritura espraia-se pelo impossível, por um di-zer que, sendo matéria impossível, começa ali onde finda o mundo, onde o fim do mundo é seu dever e sua falta, onde o sentido pode, onde começa o fim, fazer-se desde sua che-gada ao outro. É o próprio Kafka quem lamenta a irrup-tiva de sua incapacidade, seu desajuste. A descompostura diante do menor e de suas incertas formas de pensamento, no entanto, faz com que ele compreenda que sua escrita se decide desde a “violência da vida” — nur die Gewalt des Lebens fühle ich (em 19 de novembro de 1913) —, ali onde seu esvaziamento predica todo dizer como mais uma forma do desvio. Incapaz até mesmo de escrever — Gestern unfahig, auch nur ein Wort schreiben (em 08 de abril de 1914) — seu dizer é, ainda, a forma de expansão desmesurada da pró-pria vitalidade, daquilo que, em vida, se pode chamar de fa-latório.2 O dizer algo, assim, implica o discorrer expansivo da relação um com o outro, de sua ocupação apropriativa, o que equivaleria dizer que o é preciso dessa fala se move, se articula como que dentro do percurso que impossibili-ta, ao menos ao personagem, sua mortalidade, seu fim; o

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fim do fim. É o dizer que, indefinido enquanto potência, descobre em sua articulação a possibilidade de uma morte, daquela que parece impossível para Gracchus. Essa gralha impotente, que perambula entre os dois mundos (ao além), se deixa conduzir por uma fala apropriativa apesar de sua falta de solidez (Bodenlosigkeit) e de seu fechamento fala-tório. Está aqui o limite entre a comunicação (entendida no sentido heideggeriano do com-partilhado, Mitteilung) que partilha (“teilt”) uma movência de discurso entre um e outro, entre a discursividade do um com o outro e sua ocu-pação na compreensão — como prefere Heidegger: “mas o ser-um-com-o-outro [sondern das Miteinandersein] move-se no discorrer-uns-com-os-outros [bewegt sich im Miteinan-derreden] e no ocupar-se [und Besorgen] daquilo-de-que-o--discurso discorre [des Geredeten]”.3

2. Aqui não estamos muito afastados do § 35 de Ser e tempo , quando Heidegger resolve falar do falatório [das Gerede], como modo de entendimento e interpretação do Dasein cotidiano [alltaglichen Dasein], no sentido de sua conformidade do imediato e do já interpretado e do fechamento desse discurso, que se pretende aberto e com-partilhado, como comunicação [Mitteilung]. Sem solidez e, ainda, sem prévia apropriação da coisa [der Zueignung der Sache], o falatório protegeria o entendimento, para, encobrindo o ente do-interior-do-mundo [verschließen und das innerweltlich Seiende], fecha-se como ser descobridor [entdeckendes]; 3. HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit . Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977, Gesamtausgabe — I. Abteilung:

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Veröffentlichte Schriften 1910-1976 — Band 2, p. 168. Na tradução de Fausto Castilho, p. 475.

Uma fala que carece. Assim, intransitiva. Parece-me que todo escrito de Kafka vale-se dessa instância: uma ca-rência de solo, uma expansão do abismo — double bind: ali onde o abismo se expande, se alarga sobre seu ser que quer compreender-se por si mesmo (o que Heidegger chamará de Selbstverstandlichkeit) e, com isso, lança-o na derrisão; e, por outro lado, ali onde o abismo é já uma expansão em que o próprio equilíbrio é demasiado inquietante (die Unheimlichkeit der Schwebe, como propõe Heidegger ainda no § 35) e, logo, sua suspensão mantém como que corta-das as relações entre ser e mundo. Trata-se, logo, de uma fala carente, por mais que diga, por mais que se arrisque no dizer precário da lamentação e da incapacidade. A exi-gência por escrever, no fundo, arrisca sua impossibilidade de não escrever — ou como pergunta Roger Laporte: “[c]ombien précaire, douloureuse est cette cohabitation entre l’homme et l’écrivain?”4 — ali onde se pode pensar em uma clareira, o dizer é tomado da própria vida. Em um rapto, a palavra carente suspende-se sobre o abismo em extensão, sobre aquilo que, sem solo, constitui a palavra precária e insuficiente, eternamente buscada e rascunhada, prenhe de um cotidiano no qual o sentido parece já ter se feito e conduzido à estranha possibilidade de um ato suspensivo de testemunhar. A exigência dolorosa de escrever consti-

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tui-se, em Kafka, a partir da imagem dessa gralha — sím-bolo comercial do próprio Kafka no começo de uma car-reira que não aquela de escritor — que não há. O dizer de Gracchus (e o dizer de “O caçador Gracchus”) é rapto e rap-tado do próprio dizer da vida, isto é, do estado cotidiano em que os apagamentos, as distâncias e o silêncio formam um cerne fracassado do tempo vivenciável e, como que por revide, tornam-se tempo da experiência do dever escrever, da exigência sobredeterminada de um dizer que, rapta-do, deve arriscar-se a sua impossibilidade, a sua abertura completa, ao outro que, de modo público, seja capaz de se incapacitar ao também dizer.

4. LAPORTE, Roger. Études , p. 201.

Gracchus descobre a imagem da gralha ao mesmo tem-po em que recobre o nome de Kafka. Raptando-se o nome, o que resta? Dizer o nome já não implica um chamado, sua demanda? O nome pode constituir uma paixão, rendendo--se à sua veracidade, à sua exceção sobre tudo e, assim, constituir-se naquilo que lhe é próprio, sobre aquilo que é de si, mais próximo de si. Dizer o nome é já trocar um nome por outro é, em certa medida, ousar falar em seu lugar, dizendo o próprio apenas pela voz, pela escrita, do outro. O nome, dessa forma, assinala a abertura abso-luta; tomando-se ao vocativo, ele preserva a nomeação e

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sua propriedade. Ao trocar Kavka por Gracchus, o nome permanece como resto e como descarte, como rastro de algo que ali é o outro — e não do mesmo, mas do outro que o chamará na distância, na transposição de sua in-finita hipérbole — que assume um limite impossível ao nome próprio, ao próprio do nome. Assim, raptar o nome significa um esquivamento, na linguagem, daquilo que no nome excede a própria linguagem. O corpo da linguagem, enquanto corpo do próprio nome, é em si sua própria ex-ceção. Gracchus significa essa tomada violenta da borda ilegível daquilo que é Kafka, que é o próprio de Kafka em extensão. O que nomeia esse nome senão seu próprio rap-to, sua própria violação? Trata-se do nome como caminho ao sentido e, então, como nomear para além do próprio nome; exige-se nomear o nome. Gracchus pode ser o corpo de uma linguagem tornada seu fora, sua transposição (me-tafórica então) ao espaço do distanciamento entre Kafka e o texto, entre Kafka e Kafka. Seu corpo é um corpo falan-te que localiza a palavra pelo nome e pela profissão quase mágica de caçador no tempo dos lobos. Assim, todo texto pode ser lido desde sua abertura intransponível — está aí sua aporia — à experiência com a exigência de escrever, com o pensar em nomear desde uma linguagem sem fim, sem morte. Um corpo imortal porque sobrevivente, um ato que, de seu gesto, nomeia e, logo, o perfaz em forma de vinda. O texto, assim, precisa ser tomado de uma memória de seu feito nomeador, de um falar que, sendo desde si,

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produz-se como apêndice daquilo que pode vir a signifi-car, pode manter-se em seu por vir: estremadura da expe-riência. Dito de outro modo, a ponta extrema do texto é, por certo, essa carência de corpo — da própria gralha que não aparece, que não tem sua presença em termos sintag-máticos — nessa profusão de voz — da própria chegância do caçador, buscando porto onde se atracar, buscando au-torização entre a falésia e o mar. É preciso que Gracchus diga, é preciso que ele confesse sua culpa (ou pergunte-se por ela ao menos), endereçando-se ao estranho, ao estran-geiro que constitui sua eterna deriva.

A violação do narrador vai ao nome, mas também à es-pécie. Da gralha à pomba, a imagem aqui é a do remeti-mento, do envio e da destinação. A pomba voa até o ouvido e diz, e pelo discurso direto temos o destino do caçador exposto à mulher do prefeito. A pomba, em plena ma-drugada, vem alertar a chegada daquele que não poderia chegar, do morto que, no entanto, precisa ser recebido pelo representante da cidade. O remetente é anunciado e apresenta-se em um tempo confuso, destoante, em uma noite interminável. A pomba anuncia a chegada na noite mais profunda do presente — [s]ie wurden mir heute in der Nacht angekündigt.5 Não se trata sempre disso? A noite mais noturna do hoje? O destino final, limiar absoluto da vinda desde a morte, desde seu anúncio (que vem voando e diz que o caçador morto Gracchus chega pela manhã). Duas

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instâncias aqui, para compreender essa temporalidade: essa do anúncio (Ankündigung) e a do destino (Schicksal). O acontecer desse caminho trilhado (que não leva a canto algum, mas a todos os portos errantes6) implica uma com-preensão do próprio acontecimento como lançado à prova da aporia, ou melhor, como diz Derrida, o que chega diz respeito “[…] à l’événement comme ce qui arrive à la rive, aborde la rive ou passe le bord, autre manière de se pas-ser en outrapassant. Autant de possibilités du se passer au regard d’une limite”.7 Transgredir o passo faz do aconte-cimento uma chegância, “là où l’attendait sans l’attendre, sans s’y attendre, sans savoir quoi ou qui attendre, ce que ou qui j’attends”.8

5. A sentença é, inclusive, traduzida por Modesto Carone por “Ontem à noite me anunciaram sua chegada”. Fórmula tranquilizadora para a língua portuguesa que não mantém a estranheza da frase alemã. O hoje da madrugada , que ainda é ontem, mas que também já é agora há pouco, instantes atrás, muito pouco tempo (e sempre é pouco o tempo para se decidir) para responder à demanda do pássaro misterioso que anuncia a vinda de um morto ; 6. Como não pensar na imagem impossível de “Chuva oblíqua”, de Pessoa: “Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito”? Onde o porto, onde o sonho? Como a paisagem é passível de ser pensada no impensado. Destronamento do elemento representativo por uma divergência de possíveis referentes e, por isso mesmo, caminho de um envio errante ao sentido, ao derradeiro caminho de suas bordas e abordagens; 7. DERRIDA, Jacques. Apories ,

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pp. 65-66; 8. Ibidem , p. 66.

O chegante absoluto, dirá Derrida, não possui nome, nem identidade, não é esperado e não pode estar previsto que o anfitrião torne-se anfitrião de seu hóspede. O che-gante absoluto chega intempestivamente. Ora, nessa dupla injunção do texto kafkiano o anúncio e o porvir estão co-locados a partir de uma impossibilidade. A pomba anun-cia a vinda do caçador — “Morgen kommt der tote Jäger Gracchus, empfange ihn im Namen der Stadt” — com seu nome, seu estado e ainda solicita a recepção em nome da cidade. Nesse sentido, todo anúncio é envio como presen-te da chegada, como implicação do sujeito na escritura, como previsibilidade, sem que, no entanto, essa chegância seja efetivamente possível, sem que essa chegância consti-tua a tolerância do próprio no próprio, da necessidade viva em se receber o tote Jager. Trata-se de um anúncio violador, uma vez que anuncia a chegada não do vivente, mas da-quele que ultrapassou o fim, que, pelo perecimento, com-parece por um presente irremediável, infinitamente irre-mediável: heute in der Nacht, Morgen kommt. O sujeito aqui se anuncia como que vindo desse presente eternamente anterior. O anúncio escreve-se pelo pretérito (wurden... an-gekündigt) marcado pela circunstância temporal presente (da madrugada do hoje). O presente da chegada, portan-to, permanece chegante, mesmo que o próprio Gracchus,

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quando se sua chegada, pergunte “devo permanecer em Riva?” [ich in Riva bleiben soll?]. A segunda violação, aquela do destino, faz com que o próprio personagem e, portanto, a escritura constituam-se pelo envio como vinda do por vir. O voo e fala da pomba raptam a chegância intempestiva, mas não subtraem sua condição de morto e muito menos aquela de possuidor de “um destino infeliz” [ein schlimmes Schicksal]. Trata-se de seu remetimento. A pergunta quase retórica do caçador não possui reposta possível por parte do prefeito, ele mesmo não sabe se poderá ficar. É nesse sentido que a pomba é ao mesmo tempo uma ave de ra-pina, pois toma o dizer do porvir, lançando-se como um dizer inesperado, como um aperto entre lábios daquele fa-latório que constitui o conto.

No Diário de Kafka se pode ler a primeiro de julho de 1913: “o desejo de uma solidão indo até a perda de cons-ciência. Só diante de mim mesmo. Talvez o obtenha em Riva” [Der Wunsch nach besinnungsloser Einsamkeit. Nur mir gegenübergestellt sein. Vielleicht werde ich es in Riva haben]. Daqui, algo como o destino desse endereçamento do dizer do conto. Foi Roger Laporte quem, buscando a ideia de au-torretrato nos diários e cartas de Kafka, pergunta, a meu ver de modo um tanto ingênuo, “se esse retrato de Kafka por Kafka é fiel, ou ainda, na medida em que ele não esca-pa a certa dramatização [mise en scène], se ele não dá lugar a uma espécie de idealização”.9 Ora, a fidelidade de Kafka

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não leva o problema a seu cerne, a pergunta pela fidelidade pressupõe sempre mais de um estando em cena, pressu-põe a alteridade. Quando diz tratar-se de um retrato por si mesmo, de um autorretrato, portanto, a pergunta deve recair em: quem é o outro de Kafka? Fiel a quem? Seu texto é a própria colocação desse segundo Kafka em cena, desse lugar em que apenas a literatura importa e é realidade e é espaço para estar consigo mesmo, sem, no entanto, tratar--se como causa em si do sofrimento, coisa por si de sua escrita. Kafka confessa a si mesmo — a entrega de si dian-te de si mesmo, colocando-se diante de si — o lugar dessa solidão: Riva. Aí reside o ajuntamento do si consigo, de um desejo de escrever que coloque esse ser — incapaz — no desafio de tudo escrever, mas para não ler, mas para deixar de ler. O caçador, anos depois de morto, diz que “ninguém vai ler o que aqui escrevo, ninguém virá me ajudar” [nie-mand wird lesen, was ich hier schreibe, niemand wird kommen, mir zu helfen]. Sem dúvida, uma sentença estranha no cerne de um diálogo. No entanto, o que vale saber aqui é de uma solidão que se atira ao evento público do texto. Mesmo que a resposta seja dada a ninguém, o que se coloca em jogo é a própria escritura, que, todavia, por não ter propriedade exclusiva, exerce-se na exigência do outro, na experiên-cia com o limite da presença, justo ali onde a errância do vento que carrega o barco de Gracchus “sopra nas regiões mais baixas da morte” [in den untersten Regionen des Todes blast]. Trata-se, portanto, de um texto que também não se

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dá a ler, endereça-se sem que com isso o leitor precise in-corporar aquela culpa, aquela solidão que é a do próprio caçador morto. Feita para ser queimada, essa escrita é o cerne da impossibilidade da literatura, a própria impos-sibilidade de distinção entre matéria cotidiana e matéria performada. Ato último da escritura, o incêndio propõe não deixar rastros, tornando tudo cinza. O limite entre quem escreve e sua destinação marca a própria violação, de sua violência a não deixar rastro. O ato último violaria esse elo inquebrantável entre vivência e escrita, o ato últi-mo, por mais que seja desejado, existe apenas como lei re-versa, como passividade de onde nasce toda escritura. Em um dos cartões-postais de 4 de setembro de 1977, Derrida diz o cerne dessa aporia “Garde ce que tu brûles, voilà la demande. Fais ton deuil de ce que je t’envoie, moi-même, pour m’avoir dans la peau”.10 Sem dúvida, demanda última: preservar o que se queima (o que, no entanto, não se pode preservar), mantendo-se na pele (desse envio). Ou ainda Derrida, no mesmo dia, mas em outro postal:

Je t’ai aussitôt mise dans une situation impossible : ne me lis pas, cet énoncé organise sa transgression à l’instant même où, par le seul événement d’une langue comprise (rien ne se passerait de tel pour qui n’est pas instruit dans notre langue), il fait la loi. Il oblige à violer sa propre loi, quoi qu’on fasse, et il la viole lui-même. Voilà à quoi il se destine, à la seconde. Il est destiné à se violer, et c’est toute sa beauté, la tristesse de

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sa force, la faiblesse désespérée de sa toute-puissance.

Mais j’y arriverai, j’arriverai à faire que tu ne me lises plus. Non seulement à devenir pour toi plus illisible que jamais (ça commence, ça commence), mais à faire en sorte que tu ne te rappelles même plus que j’écris pour toi, que tu ne rencontres même plus, comme par chance, le “ne me lis pas”.11

9. laporte , Roger. Études , p. 196  ; 10. DERRIDA, Jacques. La carte postale , p. 67 ; 11. Ibidem , p. 66-67.

A forma de guardar o que se queima — os cinquenta e dois toques que esburacam o texto — implica a situação impossível. Derrida não rescende a exigência de escrever, nem mesmo a de ler, uma vez que é ainda preciso ler a fra-se “não me leia”. É essa a fórmula, como o I would prefer not to é a fórmula de Bartleby, como esse personagem é também o celibatário de Kafka, visto por Deleuze.12 Como tarefa impossível, escrever demanda fazer o luto dessa de-cisão de tudo queimar, de inviabilizar o arquivo e de, por um instante, representar o instante, remontar a presença incorporante do outro — peça fulcral do luto — como que encriptado, como que trazido desde seus alhures. Reten-ção na corporeidade do escrito, naquilo que de um envio ainda é corpo. Para organizar sua transgressão no instante em que a lei se faz, o postal — carta aberta — demanda uma não leitura, demanda a tarefa impossível dessa língua que é compartilhada em segredo por um e outro. É pre-

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ciso escrever, mas também instruir-se nessa língua que compreende a partilha das vozes, a disjunção e o afasta-mento dessas vozes que, apartadas, são elas também num instante o celibatário que precisa passivamente deixar a vida para que a escritura seja possível. Uma vez que há o anúncio — e digo aquele da pomba na janela da casa do prefeito — qual o espaço real do envio, da destinação e do destino dessa história? A escrita do caçador reinscreve sua errância no ninguém me lerá, a escrita de Derrida, deman-da a quem leia que não se leia. Lei que existe violando-se, lei que exige que se leia a violação do destino e de sua his-toricidade. A sentença, pós espaçamento, mantém esse li-miar: mais j’y arriverai. Esse pronome (y) que pretenderia ser de retomada está invertido na sentença. Seu referente é posposto e, logo, Derrida não nos fala da lei (do “não me leia mais”) senão a posteriori (Nachtraglichkeit, après coup), quando coloca a preposição à justo antes da enunciação do que ele fará, com essa escrita. Veja-se que se trata de uma questão de posição, de deslocamento dentro da frase. A ilegibilidade torna-se sua legislação e, cada vez mais, esse afastamento torna-se um esquecimento, um desencontro, sua perdição. Isso só depois, isso depois de se ter lido o que se está a fazer. Escreve-se para tornar-se para ti uma ilegi-bilidade, para ser, de certo modo, infiel nessa troca íntima de envios e impossíveis correspondências. O segredo tro-cado toca sua própria destinação, o que equivale dizer que seu dizer erra a própria destinação e a mantém no espectro

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de envio sempre por vir, posposto portanto. “Mas chega-rei a isso, chegarei a fazer que tu não me leia mais”. Trata--se disso, de uma sentença que demanda o outro ao outro, que, por imprescindível de futuro, espera dele a aceitação dessa legislação “não me leia mais”. Como que por risco, a sentença chega a ser escrita para, a. O encontro impossí-vel entre a leitura e essa lei marca também o espaço desse Niemand de Gracchus, visto que se escreve talvez já morto, talvez ainda vivo, talvez morta a própria destinatária.

12. DELEUZE, Gilles. Critique et clinique , p. 96.

E, ainda nesse espectro, sem rodeios, ou melhor, sem maiores rodeios, surge a sentença do prefeito de Riva, na narrativa do Caçador Gracchus:

“Aber Sie leben doch auch” [Mas você ainda também vive].

Frase arriscada, frase riscada. No entanto, digo a ela: sentença. Uma sentença é também uma oração, uma frase, um enunciado, uma proposição, uma pena, uma decisão. Essa sentença é dita em discurso direto, de Salvatore a Gracchus, dita assim, face a face, um diante do outro. O risco aqui é de essa frase ser ilegível. Como uma senten-ça pode ser adversativa? Como introduzir, na presença,

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essa demanda pela infinição da vida? E ainda de forma incisiva, reiterando-se em duas adversativas (aber... doch)? Salvatore diz a sentença de vida a Gracchus, que não a pode negar. A questão se coloca como oposição daquilo que marca a temporalidade da afirmação do eu do caça-dor: “Seitdem bin ich tot” [desde que estou morto]. Esse passado é remotivado por essa sentença dada por Salva-tore. A morte anulada é tomada como acontecimento do presente, da colocação da morte em suspenso, ou, como diz Derrida, sobre L’instant de ma mort, de Blanchot, “elle va venir, la mort, il y a un sursis, un dernier délai suspensif, un arrêt de l’arrêt de mort”.13 A vinda do derradeiro prazo, mas, também, dessa interrupção da pena, da interrupção da sentença final de morte. A referência da morte elimi-naria a própria sentença impossível “Aber Sie leben doch auch”. Em certo sentido, contudo, é apenas isso o que se pode testemunhar. Existe então a sentença e é por isso que é preciso falar. É por isso que a sentença impossível é a única a ser dita, é ela que suspende o término, que produz essa demora testemunhal da própria vitalidade. É preciso falar, como é preciso que “tu não me leias mais”, justamen-te essa sentença em que há sem haver — como o sabre que não existe na mão do monumento do herói e que, apenas no relato de Kafka, passa a ser possível, cria-se como desli-ze do narrador a testemunhar uma verdade que seria a do próprio relato, naquilo que seria o “limite perverso entre Dichtung und Wahrheit”.14 Está aí certa paixão — seu sofrer

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enquanto sentença — da literatura, justamente no campo de uma morte que se torna impossível para que o limite entre ficção e testemunho, entre poesia e verdade, possa dizer de um eu por quem ninguém responde. E sua deman-da ainda deve estar nesse haver da possibilidade de verda-de encontrar-se adiada pelo adverso dessa sentença. O que se afirma como proposição aqui não é apenas a introdução de uma frase de verdade, mas justamente a sofrência da própria sentença, que deve ser tomada no modo múltiplo, em sua intraduzível densidade adversativa, pelo tamanho de uma decisão acerca da própria escrita a se fazer.

13. DERRIDA, Jacques. Demeure , p. 60  ; 14. Ibidem , p. 93.

E se, como diz Blanchot, “la mort finit-elle notre vie, mais elle ne finit pas notre possibilité de mourir; elle est réelle comme fin de la vie et apparente comme fin de la mort”,15 Gracchus guarda sua escrita sobre essa possibili-dade de fim real e fim aparente, como fim da vida, como fim da própria morte. É nesse nome que a morte se guar-da como resposta possível. Aquela que o próprio caçador, morto e também vivo, responde reiteradamente: “Em cer-to sentido, disse o caçador, em certo sentido também vivo” [Gewissermaßen, sagte der Jager, gewissermaßen lebe ich auch]. Dessa resposta o nome, do texto e de Gracchus, deve portar

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seu além, sua parte no além [Teil am Jenseits] que assegura a responsabilidade, mas também seu risco de tornar-se apenas enunciado ético, apenas a marca de um si consi-go para justificar uma resposta diante do outro (que não o absolutamente outro). O porte do nome, sua propriedade exige, para que esteja justo na tarefa dessa resposta ao cha-mado, ao apelo do outro, que o responder responda a uma unicidade, à não substituição e ao segredo. Nesse sentido, responder ao outro — responder ao caçador, responder ao prefeito — não deve ser uma simples substituição de nomes, como que em uma autojustificativa, ela deve per-manecer secreta (selada) enquanto responsabilidade dian-te daquela singularidade última, levando-se a falar. Não é isso que faz o prefeito e o caçador quando permanecem guardadas suas representações, suas apresentações? Res-ponder, portanto, ao chamado da vida. É preciso respon-der a essa (necessária) afirmação de não morrer, de estar também (e, no entanto) vivo. Ao mesmo tempo em que não morrer torna-se a maldição extrema — como escreve Blan-chot:

Kafka […] semble avoir reconnu dans l’impossibilité de mourir la malédiction extrême de l’homme. L’homme ne peut écha-pper au malheur, parce qu’il ne peut échapper à l’existence, et c’est en vain qu’il se dirige vers la mort, qu’il en affronte l’angoisse et l’injustice, il ne meurt que pour survivre.16

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15. BLANCHOT, Maurice. La part du feu , p. 16; 16. Ibidem , p. 87.

Tomar essa parte do compartilhado, tomar o sentido último da sobrevida, da impossibilidade de uma morte a qual o homem não é mais capaz de escapar, está aí uma responsabilidade: resistir, sobrevivendo. Essa resistência sobrevém ao cadáver de Gracchus, sobrevivendo, uma vez que “il n’y a pas de fin, il n’y a pas de possibilité d’en finir avec le jour, avec le sens des choses”.17

17. Ibidem , p. 15.

Assim, dedicar-se à morte, a uma morte que não chega, que apesar de tudo é impossível, é também uma forma de confessar a própria morte, de fazer da confissão sempre uma confissão de morte. Desse modo, a escrita de Kafka pode seguir dois caminhos suplementares pela lógica da confissão. (1) De um lado, aquele que intenta entregar o ins-tante da morte como espaçamento para a compreensibili-dade da voz narrativa, naquilo em que ela pode devotar-se como possibilidade última de uma experiência limítrofe de responsabilidade. Duas entradas do diário de Kafka chamam atenção quanto ao instante da morte enquanto instante de escritura, (a) a da “noite do cometa”, entre 17 e 18 de maio de 1910, quando diz que “o cadáver não retor-

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nará à vida, nem mesmo estará a salvo, mas ele pode afun-dar o homem” [Die Leiche wird nicht lebendig, ja nicht einmal geborgen werden, aber den Mann kann sie hinunterziehen], e (b) a 4 de dezembro de 1913: “Morrer não significaria nada mais que acrescer um nada ao nada” [Sterben hieße nichts anderes, als ein Nichts dem Nichts hinzugeben]. Trata-se disso a resposta da fórmula confessional exigida pelo prefeito a Gracchus: um saber da morte que arrasta ao mais profun-do (às instâncias infernais, como termina o conto) a errân-cia desse caçador que reincide na singularidade de sua his-tória. O espaço da distância e do sem porto configura esse nada ao nada, essa entrega de Kafka à nulidade da morte e, ainda mais grave, à impossibilidade dessa entrega, a ne-cessária sobrevivência sobre todas as profissões possíveis, sobre todos os estados civis desejáveis. O espaço da escri-tura parece ser aquele que, embora o cadáver não se torne novamente vivo, não há salvação diante da morte — que a ele não é dada, que a ele é impossibilitada. Escrever esse espaço é um abandono que se acresce por um viver inter-mitente, um viver que se desloca, de anúncio em anúncio a uma destinerrância historial. Confessa-se, com isso, o quê da morte, sua espacialidade dentro do corpo, dentro da estru-tura adversa de se estar, na escritura, vivo e morto. (2) De outro, a configuração da temporalidade da confissão toma-da como dimensão problemática da presença, como diâ-metro e espectralidade de uma representação possível des-se morrer impossível. Agostinho de Hipona diz ser o fruto

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de suas confissões “não aquilo que fui, mas aquilo que sou” [non qualis fuerim, sed qualis sim], justo entre aqueles que são “consortes em mortalidade comigo” [et consortium mor-talitatis meae].18 O tempo presente que confere a possibili-dade da mortalidade, sua garantia e seu fiador. A confis-são, não sendo um relato do passado, configura-se desde o presente, desde aquilo que é o sujeito enunciador. O que confessa Agostinho, enquanto se confessa a deus? Parece--me que sua mortalidade, na medida em que ela é tomada como testemunha da mortalidade do outro, na medida em que ela pode ser a garantia dos consortes guardarem con-sigo a temporalidade e a obrigação de viver a morte do ou-tro, como única morte possível. Nesse sentido, Agostinho somente confessaria sua imortalidade — e, claro, isso por sua escrita — uma vez que mantém o instante da confissão como tempo em que seja possível não se julgar (sed neque me ipsum diiudico), mas ser no instante presente e ainda ser como presença (sed quis iam sim et quis adhuc sim). Assim, o ato confessional, aquele que Agostinho realiza, aquele que Gracchus se vê obrigado a realizar, por confirmação infi-nitamente adversativa (do Aber Sie leben doch auch), é sem-pre presente, sempre articulada desde o instante no qual o tempo só faz sentido como sentença, como um dizer pro-ferido que, por si, performa o próprio instante de seu ato testemunhal, de seu ato secreto de responsabilidade. Essa violência do tempo presente abre a exigência de escrever ao limiar mais extremo e mais agudo, cada vez mais im-

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plicado naquilo que é possível dizer como verdade no ins-tante do próprio dizer. Na mesma noite do cometa de 1910, Kafka escreve: “mas o celibatário nada tem diante de si e, portanto, também nada atrás de si. No instante, isso não faz diferença, mas o celibatário não tem senão o instante”. [Der Junggeselle aber hat nichts vor sich und deshalb auch hinter sich nichts. Im Augenclick ist kein Unterschied, aber der Jung-geselle hat nur den Augenblick]. O que escrever diante disso? Apenas restam equívocos e tempos equívocos na exigência de escrever, apesar do presente. A confissão, como sempre confissão da morte do outro, se dá como presente e, com isso, em seu impensável, desmonta toda presentificação, apenas pode se dar na ausência do próprio autor que, mor-rente, é impossibilitado no entanto de morte. A presença é aqui seu próprio equívoco como instante. Nada diante, nada detrás. Apenas esse jovem que se confessa sendo ar-rastado cada vez mais para baixo, carregando a infinita culpa por não ter sequer morrido.

18. AGOSTINHO de Hipona. Confessions , p. 82.

passemos à sombra do herói

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(Guardo com Derrida, mas também com Agostinho, cer-ta proximidade com o rastro de minha mãe. Nesse ponto, algo diverso com Kafka. É, pois, preciso dizer isso — espe-ro bem longe de sua morte, como os dois escrivam sob o sinal desta morte que os obrigava a controlar as lágrimas — que algo que esteve na infância pode fazer-se surgir, aparecer, evidentemente, em um só estado, em seu grão de estado. Além de diversos, esses pontos são obscuros e pre-firo pensar um, apenas um deles: o lugar do nascimento. Derrida, em sua Circonfession, perífrase 17, refere-se a “saint Jean Népomucène, martyr du secret de la confession”.19 Ora, trata-se, sem dúvida, da proximidade dessa confissão da mãe — Georgette, no caso de Derrida, Monica, no caso de Agostinho — a qual eles deveriam, como o mártir, guardar segredo, manter-se em segredo e não destinar ao público seus estados sofrentes. Derrida e Agostinho, no entanto, confessam-se, confessando o outro, como sempre. A morte da mãe, iminente, como toda morte é iminente, é o assun-to por uma demanda autobiográfica, por uma escrita que possa expiar-se desse crime: dizer o lugar de nascimento da mãe. Ora, dizia que guardava com eles algo de semelhança. Minha mãe nasceu — por uma coincidência escrupulosa e quase inverossímil como aquela que Derrida conta da rua Saint Augustin, que ele morou na Argélia, como escrever sobre Agostinho em Santa Monica, nos Estados Unidos — em São João Nepomuceno, MG. Talvez isso devesse per-manecer secreto a um trabalho de análise literária, talvez.

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No entanto, não leio as confissões sem me arriscar, talvez mesmo como pede o próprio Derrida — que gostaria de compartilhar a culpa, como Gracchus — sem nenhum sa-ber literário, científico, político, mas “seulement la mémoire et le cœur”,20 além de toda e qualquer outra hipótese históri-ca ou filosófica. Desse modo, algo aqui nos une, diante do segredo da confissão, diante das imagens da infância e das sofrências da mãe, dessa a quem, para escrever, é preciso foracluir o nome, como diz também Derrida. O lugar do nascimento é, por certo, o espaço desse mas que se torna imperativo falar, desse mas... também, que relatam um pre-sente guardado no interior da própria confissão, naquilo que constitui o amor por ti que diz a palavra de confissão sem verdade. “Confidência prometida ou segredo refutado, logo, sem literatura”,21 isso justamente no sentido de sua confissão no instante em que se escreve ali, diante da fo-lha, que se pôde ler uma figura do morrente, daquele que é um “outro presente desde o qual [...] apenas um imortal pode morrer”22 em uma reserva de escrita que apenas esse dizer sem verdade pode também dizer o nome secreto que sofre e faz perecer desde uma memória presente, desde um selo inquebrável, quando se diz à voz baixa sua confi-dência, esse ato irremediavelmente público. Enquanto São João Nepomuceno seja o mártir do segredo da confissão, o rastro dessa escritura faz coincidir memória e coração em uma mesma palavra, portanto o nome para além do nome secreto, para além de uma gralha escondida sobre a pena

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da pomba anunciadora. Bem, trata-se ele também do herói com sabre suspenso no Caçador Gracchus — outro tempo de coincidências?).

19. DERRIDA, Jacques. Circonfession , p. 80; 20. Ibidem , pp. 80-1; 21. Ibidem , p. 177; 22. Ibidem , pp. 175-6.

Assim, confessa-se sempre a morte do outro — do au-tor. Em sua exigência desproporcional de escrever, abre-se o abismo da confissão como um dizer que se diz em se-gredo, como a literatura, como o texto que, ao poder tudo dizer, precisa também não dizer, silenciar, calar, apagar. As viagens de Kafka a Riva, relatadas no diário, evidente-mente constituem a matéria não vivencial, mas o próprio experimento e a indistinção entre o nada do Kafka real e o nada desse Kafka autor. Importa-me sobretudo esse con-to que, além do espelhamento evidente com seu nome, faz uso desse santo submerso e apartado (como são todos os santos), Jan Nepomucký, que se negou a divulgar os se-gredos da confissão. O santo é escolhido e escondido por Kafka não apenas por ser o santo nacional entre os tche-cos, mas também, de forma impetuosa parece-me dizer muito sobre o cerne do texto confessional, aquele que não pode ser arrancado do silêncio. O texto desse filho que pa-rasitariamente devotou-se à escrita do imperdoável é, ele também, um selo — “tout ce à quoi il avoue avoir impar-

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donnablement voué sa vie”.23 Confessar ter devotado sua vida, imperdoavelmente. Isso em uma consonância que faz do confessar (avouer) um ter (avoir) devotado (voué). É pelo jogo paronomástico que Derrida — que por vezes analisou o texto de Kafka, ao menos três vezes com afin-co e outras muitas citações e enxertos em textos que não tratam propriamente do autor — intenta compreender a circunstância do perdão no cerne do segredo da confissão e, desse modo, a própria origem da literatura. A confissão, portanto, sela a história do santo — esse antiministro da Purloined letter, de Poe, que pretende não guardar o segredo da rainha, que pretende barganhar com a carta e a letra de sua significação, ao contrário de João Nepomuceno que tem suas partes íntimas queimadas e seu corpo atirado no Moldava por não revelar nenhum segredo de confissão — como uma história também do escritor. Não apenas do escritor Kafka, mas de todo aquele que testemunha esse dizer que, parasitário, confessa imperdoavelmente ter de-dicado a vida à ficção, à filiação impossível, ao tempo do outro, à frase (calada) ao outro.

23. DERRIDA, Jacques. Donner la mort , p. 183.

Assim, confessa-se sempre a morte do outro, a única que é possível confessar em segredo, a única a qual é pos-sível ser ainda fiel — “à pura singularidade do face a face

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com Deus, o segredo dessa relação absoluta”.24 Trata-se de uma relação dentro do texto que, evidentemente, compor-ta esse lançar-se à extensão última da distância que con-figura o outro. O segredo demanda uma decisão — um é preciso decidir-se passando pela prova da aporia — e, logo, uma tomada de responsabilidade absoluta diante do ou-tro, diante daquele que, indecidível, faz oscilar minha he-rança, daquilo que é “indecidivelmente decidido por mim sem mim, pelo outro em mim”,25 o silêncio. E é, desde a “Carta ao pai”, que Derrida formulará a proposição sobre o estatuto do texto literário que faz a própria exigência da obra seja indissolúvel de sua relação autorizada:

[...] considerando que a literatura é o lugar de todos esses segre-dos sem segredo, de todas essas criptas sem profundidade, sem outro fundo senão o abismo do chamado ou do endere-çamento, sem outra lei senão a singularidade do aconteci-mento, a obra26

— condensação da própria escrita, desde Kafka. Como ci-catriz, a fala de Gracchus sela e guarda o rastro da errância infinita do texto, que ninguém lerá, mas que — guardado em silêncio — articula minha responsabilidade diante da morte do outro.

24. Ibidem , p. 203; 25. DERRIDA, Jacques. “Abraham, l ’autre” , p. 17; 26. DERRIDA, Jacques. Donner la mort ,

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p. 206.

O segredo da confissão guarda o sentido primeiro do se-cretum latino, “lugar isolado, solidão” — trata-se da solidão de Kafka, trata-se da Riva buscada —, mas também daqui-lo que se cala e se mantém em reserva, da discrição e do distanciamento. Está in secreto o sem testemunha, a con-fidencialidade que não porta um terceiro, isto é, o oposto do próprio segredo. Sob condição de guardar segredo, o selo do segredo cunha o próprio envio como selo aberto/fechado. Na origem desse fantasma, está o acontecer do ficto, do relato como acontecimento narrativo e ficcional ao mesmo tempo, dessa demanda por um dizer inesquecí-vel e ao mesmo tempo constitutivo de uma lei de si mesmo que se produz na “necessidade imperiosa de seu dizer”.27 Diante da lei, é preciso decidir e ao mesmo tempo “deve-se encontrar a linguagem sem linguagem, a linguagem para além da linguagem, essas relações de forças mudas, mas já assombradas pela escritura, onde se estabelecem as con-dições do performativo, as regras do jogo e os limites da subversão”.28 É diante dessa lei, imperiosa, que a porta está sempre aberta, como também está lá a escada ao caçador, seu martírio por escrever o que ninguém lerá, seu descon-tentamento absoluto por um confessar-se, estando já em segredo. É preciso decidir, como é preciso escrever. Tare-fa impossível, por ocupar o espaço da justiça, por fazer-se

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deslizar pelos equívocos da narratividade. É possível ainda demorar-se na cidade, sem salvação (sem Salvatore)? Res-ta o selo inesgarçado de uma proposição adversativa. Ali onde talvez ele já estivesse morto, talvez, tendo queimado tudo, daria mortalidade a cada um desses personagens, mas ele preferiu o destino da ponte, que se confessa sobre o abismo: “Estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo” [Ich war steif und kalt, ich war eine Brücke, über einem Abgrund lag ich]. Trata-se do santo, do herói, do autor? Extensão suficiente do abismo, o limite último diante do outro se dá nesse tempo, que é o mesmo da ima-gem, e o tempo da imagem é aquele do abismo como ima-gem da aporia.

27. DERRIDA, Jacques. “Préjugés” , p. 117; 28. Ibidem , p. 134.

Deriva. Impossível retorno a Riva. Restam santo e herói no meio da praça. Repara a mão do sabre que não há. No entanto, guia-o o gesto, ausente de toda escultura.

Brasília, 24 de junho de 2014.

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KAFKA E JOSEFINA OU: A SOLIDÃO DA SINGULARIDADE

Ricardo Timm de Souza

Filosofia | Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) — PUCRSwww.timmsouza.blogspot.com.br.

Resumo: O texto tem como objetivo avançar na direção de uma interpretação mais ampla da última grande obra de Kafka, “Josefina a cantora ou O povo dos camundongos”, no sentido de compreender a posição de Josefina na narrativa não apenas como prototípica em relação ao artista ou escritor na solidão do exercício de seu métier, mas, muito mais, como uma lógica da narratividade da solitária singularidade do in-telectual como tal.

Palavras-chave: Kafka; Josefina; solidão; singularidade; in-

telectual.

Abstract: The text aims to advance in the direction of an en-larged interpretation of Kafka’s last great work, “Josephine die Sängerin, oder das Volk der Mäuse”, as a means of un-derstanding Josephine’s position in the narrative not only as is generally accepted, as prototypical of the artist or writer in

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the execution of their métier, but also, and more importantly, as a logic of narration regarding the intellectual’s lonely sin-gularity as such.  

Keywords: Kafka; Josephine; loneliness; singularity; intel-

lectual.

— Sim, o homem é de afligir de tristeza, porque em meio à subida constante das massas ele fica cada vez mais solitário, de minuto em minuto.

Franz Kafka1

1. Cit. por Gustav Janouch. Conversas com Kafka, p. 211.

O texto de Kafka “Josephine die Sängerin oder Das Volk der Mäuse”2 costuma ser analisado na tradição literária principalmente ou como um libelo de testemunho da so-lidão do artista em meio à multidão, ou como uma espécie de candente testamento de vida do próprio Kafka (lembre-mos que esse texto foi o último escrito por Kafka, que mor-reria cerca de dois meses após a sua finalização — e ainda com a característica de que Kafka, a essa altura, atingido pela tuberculose na laringe, já praticamente não conseguia

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falar, e o texto trata de uma ratinha cantora).3

2. In: KAFKA, Franz. Gesammelte Werke in zwölf Banden nach der kritischen Ausgabe . Frankfurt am Main: Fischer, 1994, vol. Ein Landartzt und andere Drucke zu Lebzeiten , pp. 274-294. As citações em português referem-se a duas traduções brasileiras: “Josefine, a cantora ou o povo dos ratos”. In: KAFKA, F. Um artista da Fome seguido de Na colônia penal e outras histórias . Tradução de Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: L&PM, 2009, e “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. In: KAFKA, F. Um artista da Fome e A construção . Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1994, as quais utilizaremos conforme nosso parecer de estilo e fidelidade ao original; 3. Não enfocaremos aqui outras linhas de interpretação, como as ligadas à especificidade de um judaísmo em transição etc.

O objetivo do presente ensaio é ampliar, a partir da análise de excertos escolhidos, o escopo interpretativo de significação dessa obra extraordinária, procurando de-monstrar como, muito além do testemunho da solidão de uma determinada especificidade — ser artista, musicista em meio a a-musos, sensível na multidão, ter voz harmo-niosa em meio aos guinchos da cacofonia —, trata-se de testemunhar uma espécie de solidão muito mais profunda e essencial, aquela da singularidade perdida em meio à indi-ferenciação, à massa.

É importante que se destaque inicialmente que por mas-sa entendemos o seguinte:

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A unidade e a unicidade são negadas: compõe-se a massa — é a mais óbvia das potencialidades humanas; primeiro e vio-lento espasmo da Totalidade, mundo primevo e sem diferen-ciação, baseado na segurança monolítica: sem intervalos. Seres individuais renunciam à sua origem particular e agrupam-se em massa compacta: a massa é a ideologia concreta e concreti-zada. Declinam de toda dignidade: delegam-na à autoridade. Criam a política, e tentam imediatamente destruí-la, quan-do a percebem como um possível recurso de emancipação e crítica da tautologia. Passam-se mutuamente um atestado de inépcia existencial e coletivizam-se. Proliferam, e, ao pro-liferar, ao multiplicar sua mediocridade, negam aquilo que procuram ainda que não o saibam: a dimensão sócio-solidá-ria. Enxergam-se em suas projeções. Disseminam-se e, ao se disseminar, negam o novo; no automatismo desenfreado da multiplicação, tudo é já antigo, tautológico, pesadamente massivo. Abdicam do sonho de liberdade: ocupam um espaço excessivo, onde o virtual não tem vez, apenas as passadas de elefante da grande Ideologia. O pequeno, o fraco, o imprová-vel, desaparecem: não deveriam ter nascido. Apenas as gran-des respirações podem ser ouvidas. Sua grande esperança é não necessitar ter esperanças, poder chegar rapidamente ao fim da História e de todas as histórias; sua gloriosa utopia é fazer da Utopia algo demais para sempre.4

4. SOUZA, Ricardo Timm de. Ainda além do medo: Filosofia e Antropologia do preconceito . pp. 31-32.

Nesse sentido, a massa é compreendida como o de-

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sembocadouro informe da falência das singularidades; a compreensão de cada um se dá como que exclusivamente através da “compreensão” do grupo no qual se identifica e que o identifica; sua realidade é realidade enquanto indi-ferenciação da realidade grupal, e exclusivamente nessas circunstâncias. A massa é o resultado de uma calibração da diversidade em um espectro de mediania. A consciên-cia particular pode abandonar-se à inconsciência massiva, pois essa parece àquela uma consciência de mais alto nível.

A obra de Kafka inicia exatamente com um narrador que irá descrever a lógica de pertença possível e estranhamento crescente da singularidade de Josefina, esse estranho acontecimento que emerge no cotidiano do povo dos camundongos:

Nossa cantora chama-se Josefine. Quem nunca a ouviu não conhece a força do canto. Não existe quem não fique deslum-brado com o canto dela, um fato ainda mais admirável por-que, em geral, nossa espécie não aprecia a música. A música que mais apreciamos é a paz silenciosa; nossa vida é dura, por mais que tentemos deixar de lado as preocupações do dia a dia, não conseguimos elevar-nos a coisas tão afastadas do nosso cotidiano como a música.5

5. “Josefine, a cantora ou o povo dos ratos”. In: KAFKA, F. Um artista da Fome seguido de Na colônia penal e outras histórias . Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 49 — doravante J1. Note-se que a palavra Maus refere-se em alemão antes a “camundongo” que a

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“rato” ou “ratazana”.

Há inicialmente uma generalização absoluta: todos se deslumbram com seu canto, apesar do apreço de todos pelo silêncio, pela paz silenciosa.6 A música é apresenta-da como algo “elevado”, muito distante do cotidiano. Essa primeira frase já evidencia uma das formas características de construção de linguagem kafkiana: o dizer diz à medi-da que diz, ou seja, não há um arcabouço pretensamente “lógico” que possa abreviar ou dispensar o dizer da lingua-gem enquanto tal, em seu, por vezes exasperante, tempo próprio.7

6. Compare-se o desejo de paz com as inquietudes da toupeira construtora em “Der Bau”; 7. Sobre esse tema, cf. nosso Kafka, a justiça, o Veredicto e a Colônia Penal.

Também característico de muitos dos personagens de Kafka: uma certa abdicação da excitante possibilidade da diferença realizada que advém da constatação da pressão do estatuído — no caso, seguida por um início de demar-cação do lugar especial de Josefina na comunidade:

Mas não fazemos muitas queixas; jamais chegamos a tal ponto; consideramos uma certa astúcia prática, da qual sem dúvida necessitamos com a maior premência, nossa maior

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virtude, e com o riso dessa astúcia cuidamos de consolar-nos de todo o resto, mesmo se algum dia desejássemos — o que no entanto não acontece — a felicidade que talvez emane da música. Josefine é uma exceção; ela ama a música e ademais sabe transmiti-la; é a única; quando ela nos deixar, a música desaparecerá — quem sabe por quanto tempo — de nossas vidas.8

8. Ibidem , p. 49.

Aprofundando a questão, porém, o narrador constata, junto a círculos de confiança, a ausência de algo de extra-ordinário no canto de Josefina, aquele a respeito do qual “Não existe quem não fique deslumbrado”. Aqui assoma a frase da cisão: pensa o povo entender seu canto, porém Jo-sefina nega esse entendimento:

Muitas vezes refleti sobre o que se passa de fato com essa música. Não temos a menor inclinação musical; como é que entendemos o canto de Josefine, ou, uma vez que Josefine nega esse entendimento, ao menos julgamos entendê-lo? A resposta mais simples seria que a beleza do canto é tanta que nem os mais estúpidos seriam capazes de resistir-lhe, mas essa resposta não convence. Se assim fosse, ter-se-ia sempre diante desse canto, o sentimento de algo extraordinário, o sentimento de que daquela garganta emana algo que jamais ouvimos antes e que tampouco tínhamos a capacidade de ou-vir. Não penso, no entanto, que seja este o caso, não é o que sinto, e tampouco percebi algo parecido nos outros. Aos cír-

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culos de nossa confiança, dizemos abertamente que o canto de Josefine não tem nada de extraordinário enquanto canto.9

9. Ibidem , pp. 49-50.

Josefina assume crescentemente sua solidão. A inteli-gibilidade possível da expressão particular de seu canto inicia um processo irrefreável de diluição. As forças da racionalidade coletiva, prática, entram em pleno funcio-namento. O narrador testemunha ao leitor um crescente processo identificatório entre o agora já pretenso canto de Josefina e o assobio geral:

Será que é mesmo um canto? Apesar da nossa inaptidão mu-sical, temos uma tradição de canto; nos antigos tempos do nosso povo cantava-se; há lendas que falam disso e algumas canções sobreviveram, mas decerto ninguém mais sabe can-tá-las. Também temos uma noção sobre o que seja o canto, mas, a bem dizer, essa noção não corresponde à arte de Jose-fine. Será que é mesmo um canto? Não seria um simples as-sobio? Afinal, todos conhecemos o assobio, é o dom artístico por excelência de nosso povo, ou melhor, não exatamente um dom, mas uma manifestação comum em nossa vida. Todos nós assobiamos, mas a verdade é que ninguém pensa no as-sobio como arte, nós apenas assobiamos sem prestar aten-ção, sim, sem perceber, e existem muitos de nós que nem ao menos sabem que o assobio é uma de nossas peculiaridades. Se fosse também verdade que Josefine não canta, mas apenas assobia e, a bem dizer, pelo ao que me parece, talvez mal se

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diferencie de um assobio comum — sim, talvez a força dela não seja sequer suficiente para o assobio comum, ao passo que um simples camponês não tem dificuldade alguma em passar o dia inteiro assobiando enquanto trabalha —, se tudo isso fosse verdade, então o suposto talento artístico de Josefi-ne estaria refutado de uma vez por todas, mas restaria deci-frar o enigma de sua enorme influência.10

10. Ibidem , pp. 50-51.

Agora é Josefina que, mobilizando todos os seus recur-sos, se insurge contra essa identificação indevida. Trans-parece seu desprezo profundo, quase indizível, ante a ra-cionalidade que pretende identificar o que ela faz e o que outros pretendem fazer; a distância, imperceptível para muitos, é incomensurável para ela, e praticamente lhe fal-tam possibilidades de expressar essa incomensurabilida-de; sua expressão tangencia o ódio e a maldade, abreviados apenas pela sua sensibilidade, num sutil jogo de inconve-niência e desconforto:

[...] Talvez ocorra algo parecido com o canto de Josefine; ad-miramos nela o que, em nós mesmos, não desperta admi-ração alguma; quanto a isso, aliás, ela está de pleno acordo conosco. Certa vez eu estava presente quando alguém, tal como às vezes acontece, chamou-lhe a atenção para o asso-bio popular em toda parte usando termos bastante modera-

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dos, mas para Josefine aquilo foi demais. Eu ainda não tinha visto um sorriso tão atrevido, tão orgulhoso como o que ela abriu; ela, que aparenta ser a delicadeza em pessoa, delicada mesmo para o nosso povo tão rico em figuras femininas, pa-receu naquele instante francamente má; Josefine, aliás, deve ter sentido o mesmo graças à sua profunda sensibilidade e, assim, recompôs-se. Ademais, ela negava qualquer relação entre sua arte e o assobio. Em relação aos que discordassem dessa opinião, nutria apenas desprezo e provavelmente um ódio inconfessado. Não é uma vaidade comum, pois a oposi-ção, na qual em parte incluo-me, não a admira menos do que a multidão, porém Josefine não deseja apenas ser admirada, mas ser admirada exatamente a seu modo, pois não tem in-teresse na admiração pura e simples. E quem se senta diante dela compreende; a oposição só se faz à distância; quem se senta diante dela sabe: o que ela assobia não são meros asso-bios.11

11. Ibidem , pp. 52-53.

E não apenas reação contidamente irada aos arremedos grosseiros de sua arte, também um improvável idealismo a habita; o idealismo do compartilhamento do sublime, que ela, heroicamente, enceta com todas as débeis forças de sua débil garganta:

O que leva o povo a atribuir tamanha importância a Josefine? Essa pergunta não é mais fácil de responde do que a outra, re-lativa ao canto de Josefine, com a qual, aliás, está relacionada.

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Seria possível riscá-la e combiná-la com a segunda pergunta, caso se pudesse afirmar que o povo está incondicionalmen-te entregue a Josefine em virtude de seu canto. Mas não é o caso; a entrega incondicional é quase desconhecida de nosso povo; esse povo, que acima de tudo ama a astúcia inofensiva, os cochichos pueris, as fofocas inocentes, que põem apenas os lábios em movimento, um povo assim não tem condições de entregar-se incondicionalmente, Josefine sem dúvida também percebe, é isso o que ela combate com todas as forças de sua débil garganta.12

12. Ibidem , pp. 56-57.

Não se pode dizer porém que, segundo o narrador, no fundo, não permaneça no interior desse povo pueril, in-capaz de apreciar a arte de Josefina, algo de mal explica-do, de incômodo, que o leva a atitudes diversas e muitas vezes contraditórias entre si, variando entre uma espécie de proteção da fragilidade e uma desconfiança obstinada sobre sua real fragilidade; uma dialética que, aliás, aparece ao longo de todo o texto:

Todavia não se podem levar esses juízos demasiado longe, pois o povo está entregue a Josefine, apenas não de forma in-condicional. Não seria possível rir de Josefine, por exemplo. Admitamos: há muita coisa em Josefine que incita o riso; e o riso, a bem dizer, está sempre próximo a nós; apesar de toda a desgraça em nossa vida, um riso discreto vem sempre em boa

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hora, por assim dizer; mas não rimos de Josefine. Por vezes tenho a impressão de que o povo concebe sua relação para com Josefine como se ela, essa criatura frágil, desamparada, de certa forma notável e, segundo pensa, notável graças ao canto, estivesse sob sua responsabilidade e dependesse de seus cuidados; a razão para tal não está clara a ninguém, ape-nas o fato parece evidente. Mas ninguém ri diante de uma responsabilidade, rir de algo assim seria faltar ao dever; é o cúmulo da maldade o que os mais vis entre nós impingem a Josefine quando às vezes dizem: “O riso nos abandona quan-do vemos Josefine”.13

13. Ibidem , pp. 57-58.

O fulcro do mal-entendido é agora escancarado; não só Josefina declina da possibilidade de ser protegida por esse povo, como julga ela, pelos seus diferenciais, proteger o povo de crises, desastres e situações difíceis. A expressão física dessa potência que ela se atribui se expressa na ca-pacidade raríssima que tem de, ante problemas e ameaças os mais variados, “fechar a boca”, e não assobiar na caco-fonia da multidão. Sua arte sonora se converte na arte do silêncio e contrasta perfeitamente com o comum e o usual:

Mas existe ainda outra coisa mais difícil de explicar nessa re-lação entre o povo e Josefine. Josefine é da opinião contrária, acredita ela quem protege o povo. Supostamente seu canto

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salva-nos de crises políticas e econômicas, o que não é pouco, e, quando não afasta os desastres, pelo menos nos dá forças para enfrentá-los. Ela não comenta o assunto nesses termos nem em termo algum, fala muito pouco, cala-se diante dos falastrões, mas em seu olhar é isso o que brilha, em sua boca fechada — entre nós são poucos os que conseguem ficar de boca fechada, e ela consegue — é isso o que se pode ler.14

14. Ibidem , p. 59.

E a narrativa é reforçada pela eterna luta de Josefina pelo reconhecimento de sua habilidade. Na verdade, tal re-conhecimento praticamente se confunde com sua arte. Ele — ou sua ausência — significa a profunda solidão que retira de Josefina sua capacidade de ser simplesmente mais uma na inenarrável saga de seu povo; não desiste de suas tentati-vas porque, para ela, tal equivaleria a desistir de si mesma:

Há muito tempo, talvez desde o início de sua carreira artís-tica, Josefine luta para que em consideração a seu canto, seja dispensada de qualquer outro trabalho; para que isentem das preocupações com o próprio alimento e com tudo o que faz parte de nossa batalha pela sobrevivência e — ao que tudo indica — transfiram-nas ao povo como um todo. Um entu-siasta precipitado — também os há —, ao defrontar-se com a simples extravagância dessa exigência, com uma disposi-ção anímica capaz de conceber tal exigência, poderia con-cluir por sua justeza intrínseca. No entanto, nosso povo tira conclusões diferentes e, com a consciência tranquila, rejeita

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essas exigências. Tampouco nos preocupamos em refutar o embasamento dessa petição. Josefine alega, por exemplo, que o esforço do trabalho prejudica sua voz, que na verdade o esforço do trabalho é ínfimo em comparação àquele exigi-do pelo canto, mas ainda assim lhe rouba a oportunidade de, após o canto, repousar e fortalecer-se para novas cantorias, de modo que ela fica completamente exausta e, nessas condi-ções, jamais consegue explorar todo o potencial de sua voz. O povo a escuta e segue em frente. Há vezes em que nosso povo tão sensível não se deixa sensibilizar. A recusa é às vezes tão taxativa que mesmo Josefine se espanta, ela parece aceitar, trabalha como se deve, canta melhor que pode, mas tudo só por um tempo, e então, com forças renovadas — para isso as reservas parecem inesgotáveis —, recomeça a batalha.15

15. Ibidem , pp. 67-68.

Essa luta pela solidão do reconhecimento da diferença radical entre o canto de Josefina e os infindos assobios do povo indiferenciado vem se acirrando ultimamente, diz o narrador. Josefina está postada em posição de confronto aberto, que não se restringe mais a argumentos e contra--argumentos. Trata-se agora de uma espécie de combate vital no qual ela mesma se expõe de forma cada vez mais clara, oriundo de uma “lógica interna” que escapa à eluci-dação e cujo segredo só a cantora detém, e que se traduz na pertinácia de Josefina de ir sempre além e mais longe; e essa pertinácia, esse impulso quase insano, equivale igual-

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mente à expressão de sua luta pela solidão do reconheci-mento:

[...] Josefine não evita esse confronto. Nos últimos tempos o confronto vem se acirrando; se antes ela conduzia apenas com palavras, agora começa a valer-se de meios a seu ver mais eficazes, mas, a nosso ver, mais perigosos para ela pró-pria. [...] Muitos acreditam que essa urgência de Josefine sur-giu porque ela se sente velha, porque sua voz apresenta sinais de fraqueza e porque parece-lhe ter chegado a hora de travar a última batalha pelo reconhecimento. Eu não. Josefine não seria Josefine se isso fosse verdade. Para ela não existe velhice nem fraqueza da voz. Se Josefine faz alguma exigência, não é por nenhum fator externo, mas por conta de alguma lógica interna. Ela tenta alcançar as láureas mais altas não porque em dado instante estejam pairando um pouco mais baixo, mas justo porque são as mais altas; se lhe fosse possível trata-ria de alcançá-las ainda mais alto.16

16. Ibidem , p. 71.

Kafka-Josefina? Todas as invectivas, ainda as tentativas mais desajeitadas e patéticas de separar-se pela raciona-lidade singular da racionalidade geral parecem fracassar. Agora o que temos é o recolhimento, a ausência da pre-sença incômoda, o vazio para todos insignificante, a bre-ve memória da incapacidade de lidar com as atribulações práticas que a vida, e especialmente a vida da massa, im-

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põe continuamente. A solidão altiva, que não pôde ser alcan-çada lá fora, nas alturas, introjeta-se cá embaixo, no interior da cantora, sob a forma de uma solidão de ausência.

Assim foi até recentemente, mas agora a novidade é que, numa certa ocasião em que a esperavam para cantar, ela su-miu. Não apenas os seguidores saem à sua procura, muitos empenham-se na busca, tudo em vão; Josefine sumiu, não quer cantar, não ouvirá sequer as súplicas do povo, dessa vez ela nos abandonou por completo. [...] Estranho como ela faz previsões erradas, a esperta, tão erradas que nem parece fa-zer previsões, mas deixar-se levar pelo destino, sempre muito trágico em um mundo como o nosso. Ela mesma se afasta do canto, ela mesma destrói o poder que conquistou sobre os corações. Como é que ela pôde conquistar tamanho poder sabendo tão pouco sobre os corações? Ela se esconde e não canta, mas o povo, tranquilo, sem nenhuma decepção visível, altaneiro, uma massa serena que, a bem dizer, mesmo que as aparências surgiram o contrário, só é capaz de dar, jamais de receber presentes, tampouco de Josefine, esse povo segue em seu caminho.17

17. Ibidem , p. 75.

Agora os acontecimentos, a narrativa, assumem o ar de uma estranha fatuidade. Josefina em breve desaparecerá; seu povo continuará como sempre; como povo prático, sua razão permanece a mesma, desejando respostas simples para questões complexas; a memória faz sua discreta en-

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trada, terá fracassado a laboriosa solidão de Josefina?

Mas para Josefine o caminho aponta para baixo. Logo che-gará o momento em que seu último assobio há de ressoar e silenciar. Ela é um breve episódio na interminável história de nosso povo, e o povo há de superar a perda. Para nós, não será fácil; como será possível conduzir assembleias em silêncio to-tal? Mas será que já não eram silenciosas mesmo com Jose-fine? Será que seus assobios eram mesmo mais altos e mais enérgicos do que as memórias deles serão? Será que mesmo durante a vida de Josefine eles eram mais do que simples lembranças? Não seria o caso de o povo, em sua sabedoria, ter atribuído um valor tão alto ao canto de Josefine justo porque, de certa forma, era imortal?18

18. Ibidem , pp. 75-76.

Josefina foi única, embora, “num povo sem história”, esteja de antemão destinada a desaparecer da própria memória. Criou seu próprio mundo, procurou como que desesperadamente compartilhá-lo, lidou com a diferença de forma dolorosa, encontrou mal-entendidos de toda es-pécie e deixará lembranças fátuas de sua energia e de suas ações. Procurou — e alcançou — a sua unidade, sua unici-dade, sua singularidade inconfundível

Mas, apesar de tudo, a perspectiva pela qual cada um cres-ce, percebe o sentido ou o significado, pelo menos, do inves-

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timento na busca de sentido, vai caracterizar a unidade do procurante de forma inequívoca — e isto ainda antes que a consciência destes fatos esteja disponível. Pode-se romper a massa. Pois cada perspectiva — da qual o desdobramen-to concreto em busca de algo realmente significante é a ex-pressão mais clara — é perfeitamente única, credora de um mundo humano particularíssimo, inconfundível, de uma perspectiva que nunca houve e que nunca se repetirá, e carac-teriza a unidade e a unicidade das humanidades particulares. Unidade, no sentido de que há no humano uma irrepetível interpenetração e um entrecruzamento de significados que, instantâneos em sua origem, assumem necessariamente uma feição durável, compondo um todo menos frágil, menos efêmero que os instantes que compõem sua matéria-prima, e onde estes instantes se fazem presentes de forma mui par-ticular. Unicidade, porque esta unidade, este mundo, é ca-balmente irrepetível, assumindo assim um valor inigualável, não-reproduzível ainda que pelo ourives mais delicado ou pela mais sutil manipulação genética. Uma vez para sempre, mas apenas uma vez: eis a essência do drama humano, sua incontornável solidão essencial, solidão igualmente irrepetí-vel. O jogo da existência não se dá abstratamente mas, apenas e definitivamente, no processo de interpenetração e mútua fecundação de existências únicas. [...] A unicidade humana é o resultado da tensa dialética entre o gozo e o sofrimento, dialética essa expressa na incomunicabilidade profunda das experiências vitais; a ninguém é dada, em verdade, a habili-dade real em penetrar na unicidade de outrem (seja qual for o poder empático envolvido no processo): a con-fusão, a fusão dos únicos em uma unidade de sentido, é negação do especi-ficamente humano e, portanto, em última análise, a negação da possibilidade da própria humanidade.19

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19. SOUZA, Ricardo Trimm de. Ainda além do medo — Filosofia e Antropologia do preconceito , p. 32.

e pagou todo o preço que isso significou. Josefina-Kafka atingiu sua solidão, seu gozo íntimo, o gozo de sua lógica interna,

A unicidade não é apenas solidão; ela é, também, gozo de so-lidão, gozo em solidão — a anti-massa em sua primeira forma. O ser que se desenvolve em uma determinada direção só sua, que se alonga por um milímetro que seja, ainda que por um ínfimo segundo, na ocupação e na penetração dos espaços “externos” (os que, anteriormente, não pertenciam a seus domínios humanos), conquista um estatuto próprio, uma centralidade de referência de sua própria dinâmica. Neste milímetro, neste segundo, absolutamente ninguém o acompa-nhou (muito embora possa haver alguém que tenha admira-do a façanha, a uma distância mínima mas não congruente) - uma tarefa solitária por excelência. Se é verdade que o ser humano se alimenta de ingenuidades, esta é uma instância privilegiada delas: a solidão é o primeiro gozo possível, raiz de toda fruição, ainda das não-solitárias; o ser às voltas com suas conquistas está primariamente ocupado consigo mes-mo, reafirma seu próprio verbo e reifica de alguma forma a realidade que o circunda, alimenta-se dela, a objetiva dentro de um determinado contexto particular. Esta é sua ingenui-dade mais original: perceber-se, comprazer-se, julgar-se só em meio à infinidade de mundos e coisas; mas é uma inge-nuidade grave, de conseqüências sérias, que obriga irrevoga-

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velmente ao assumir da unicidade, no paradoxo do prazer eivado de desprazer e vice-versa, mais um paradoxo legitimamente humano. [...] A unicidade congênita de cada ser humano tem assim uma dimensão de prazer originária, combinada ab ini-tio com o peso de tal fato. Todo prazer é por definição não--multiplicável e irrepetível; as elaboradas construções poste-riores no sentido do compartilhamento do prazer não seriam absolutamente necessárias, caso a mais intensa solitude não acompanhasse intimamente a própria gênese da unicidade — e esta solidão é o imenso preço que se paga pela definitiva irrepetibilidade.20

20. Ibidem , pp. 32-33.

...e agora lhe resta apenas, segundo uma das mais belas frases de Franz Kafka, entregar-se ao Outro da redenção:

Possivelmente, portanto, não sentiremos muita falta, mas Jo-sefina, redimida da canseira terrena — a seu ver preparada para os eleitos — se perderá alegremente na incontável mul-tidão dos heróis do nosso povo e em breve — uma vez que não cultivamos a história — estará esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da redenção.21

21. KAFKA, Franz. “Josefina, a Cantora ou O povo dos Camundongos”. In: KAFKA, F. Um artista da Fome e A construção . Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 58-59.

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NO ARCO DA LUZ OBSCURA

Claude Le Manchec

Institut Universitaire de Formation des Maîtres de Chambéry (IUFM Chambéry) — ChambéryTradução do francês de Flavia Trocoli (UFRJ)

Resumo: Em Kafka, criação literária, escrita epistolar, anota-ções íntimas e escritos gnômicos estão dispostos sobre uma tela que comporta escritos como a “Carta ao pai”, orientada pela dupla compreensão da singularidade de seu percurso na sociedade e de sua vocação de escritor. A escrita nasce do vazio existencial e a ele reconduz. Este ensaio se propõe a refletir sobre os movimentos da escrita de Kafka em sua di-mensão ética.

Palavras-chave : criação literária ; escrita epistolar ; ética.

Résumé  : Chez Kafka, création littéraire, écriture épistolai-re, notations intimes et écrits gnomiques se positionnent sur une immense toile qui enserre des écrits comme la Lettre au

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père orientée par la double compréhension de la singularité de son parcours dans la société et de sa vocation d’écrivain. L’écriture naît du vécu existentiel et elle y reconduit. Cet es-sai se propose à réfléchir sur les mouvements de l’écriture de Kafka dans sa dimension éthique.

Mots-clés: création littéraire; écriture épistolaire; éthique.

dos laços

No início de uma vida de casados existem os conselhos, verdadeiras “bridas”, graças às quais um homem mantém sob suas asas um jovem casal:

É certo que para Strong, que tinha aberto um comércio de móveis com o dinheiro de sua mulher, o fato de conhecer Blenkelt apresentava muitas vantagens; de fato, ele mantinha a maior parte de suas relações com jovens em vias de se casar e que, mais cedo ou mais tarde, deveriam pensar em procurar móveis novos e em geral se resguardavam bem, talvez pelo hábito, e até mesmo neste domínio, de negligenciar os conse-lhos de Blenkelt. “Eu os mantenho em rédea curta”, Blenkelt tinha o costume de dizer. Em um outro mundo, emprestado, talvez, dos jornais pela juventude, a brida se transforma em

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“rédeas” que os Peles-Vermelhas [Peaux-Rouges] rejeitam: “Se fosse possível ser um Pele-Vermelha, sempre pronto e mon-tado no cavalo de fogo, de pé sobre as patas traseiras, vibran-do sobre o chão tremulante, até desfazer-se da espora, pois não havia espora, até jogar fora a rédea, pois não havia rédea, e ver a terra diante de si como um campo ceifado, já sem pes-coço e sem cabeça de cavalo”.1

1. Na tradução de Modesto Carone: “Se realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do cavalo na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por um átimo sobre o chão trepidante, até que se largou a espora, pois não havia espora, até que se jogou fora a rédea, pois não havia rédea, e diante de si mal se viu o campo como pradaria ceifada rente, já sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo. KAFKA, Franz. “Desejo de se tornar índio”. In: Contemplação e Foguista. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 47. No entanto, na maioria das vezes, citei diretamente as traduções publicadas de Modesto Carone. No caso dos Diários e Cartas , optei por traduzir as citações do autor em francês. (N. da T.)

É assim que o cavalo entra na obra, a qual pertence o diário íntimo, para nunca mais deixá-la: “Como sou mise-rável! Chicoteia seriamente o cavalo! Crava as esporas em seu corpo, depois as retira de uma só vez, e, em seguida, coloca toda a sua força para cravá-la na carne”. O cavalo, animal destinado à flagelação, torna-se pouco a pouco um dos “símbolos ardentes” (Imre Kértz) mais retomados por Kafka. São necessários muitos fragmentos de narrativa

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para que um cavalo excepcional ganhe forma e é um “ca-valo branco”, aparecido por acaso, desconhecido de todos, que movimenta toda uma cidade. Primeiro, um trabalha-dor, em seguida um cocheiro e finalmente uma louca se lançam, em vão, a persegui-lo. Somente um agente da po-lícia saberá dar um fim ao incidente:

É precisamente este incidente que um policial tinha nota-do; ele foi em direção ao cavalo que ainda tentou tomar uma direção diferente no último momento, segurou-o pela brida (embora não tivesse completamente abatido, estava preso como um animal de carga) e disse de resto muito amigavel-mente: “Pare! Para onde corre?”. Ele o manteve preso por al-guns instantes bem no meio do caminho, pensando que seu proprietário não tardaria a vir procurar o animal fugitivo.

A revolta contra esse cavalo selvagem, “preso como um animal de carga”, não estava ainda dirigida a nenhum fim. Pouco a pouco, o motivo da luta se torna clara. A brida gra-ças a qual se faz o cavalo obedecer conhece muitos avata-res ao longo dos anos de escrita de Kafka: por exemplo, as correias — sempre renovadas — com as quais o condena-do da colônia penal é mantido sobre a máquina durante a execução:

Havia aqui um armazém onde eram guardadas todas as peças de reposição possíveis. Confesso que desse modo eu chegava

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quase ao desperdício — digo antes, não agora, como afirma o novo comandante, para quem tudo serve de pretexto para combater as velhas instituições. Agora ele próprio administra o fundo para a máquina, e se eu solicito uma correia nova, é exigida a que rebentou como prova, a nova só vem em dez dias, mas é de qualidade inferior e não serve para quase nada (kafka, 1998, p. 46).

No entanto, educadores, treinadores de animais e exe-cutores de sentenças não se confundem. Um estudante se especializa no ensinamento dado ao cavalo. De forma pedagógica, não usa o chicote e, por esse motivo, é à noite que age:

Se o estudante escolheu a noite para dar as lições a seu cavalo, não foi somente por causa de sua situação material desfavo-rável, mas porque os princípios novos que queria introduzir no ensino de cavalos os interditava, por diversas razões, qual-quer momento que não fosse a noite.

Um cavalo de circo volta a assombrar os escritos não pu-blicados do outono de 1920: “Eis o que fiz: passei um ano com um cavalo um pouco como faz um homem com uma moça que corteja, mas por quem é repelido caso nada lá fora viesse fazer obstáculo para que atingisse o objetivo”. Esse romance não pode ter um final feliz:

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O cavalo tropeçou e caiu sobre as patas dianteiras, o cavaleiro foi desacorçoado. Dois homens que descansavam preguiço-samente à sombra das árvores, cada um de um lado, aparece-ram e examinaram o homem caído. Os dois acharam aquilo vagamente suspeito, a luz do sol, o cavalo que se recolocara de pé, o cavaleiro, o homem que aparecera subitamente, atra-ído pelo acidente. Eles se aproximaram lentamente, de cara fechada e, a mão que eles tinham colocado dentro das pró-prias camisas abertas passaram pelo peito e pescoço com um ar indeciso.

O assujeitamente do cavalo ao seu cavaleiro é uma regra que não pode ser violada: “A besta toma o chicote do mes-tre e se autochicoteia para tornar-se mestre; e ignora que isso não é mais que um fantasma resultante de um novo nó na correia do chicote do mestre”. Amarrados, arreados, freados, vários personagens são como cães presos em suas coleiras (“Ele se sente atraído como um cão muito jovem pelas ruas de uma grande cidade”) ou mordidos pelos cha-cais e mantidos no chão como o narrador de Chacais e ára-bes: “Eles estão segurando a cauda do seu vestido — disse o velho chacal num tom de esclarecimento e seriedade. — É um testemunho de respeito!” (KAFKA, 1999, p. 32). Os se-res assujeitados são presas de caravanas, mestres sempre prontos a fustigar um jovem casal:

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Foi um encontro de mestres do chicote, de senhores fortes mas finos, sempre prontos; foram chamados de mestres do chicote, mas tinham paus em suas mãos; puseram-se contra a parede da sala de recepção, de frente e entre os espelhos. Entrei com minha noiva; era o dia do casamento, por uma porta em nossa frente entraram os parentes, mulheres gran-des que tinham à direita homens menores vestidos de rou-pa de cerimônia fechada até o colarinho e andando devagar. Diante da minha noiva, muitos parentes perplexos levanta-vam os braços, mas tudo ainda estava tranquilo.

Chicotes, açoites, cordas, até flagelos, são instrumentos de adestramento entre as mãos dos cocheiros, palafrenei-ros [noivo], adestradores de tigre, caravaneiros e outros bandidos que batem, prendem, amarram: “Os ladrões ti-nham me amarrado; eu estava estendido perto do fogo do capitão”. Este treinamento chegou ao seu paroxismo à noi-te: “Só a noite é favorável ao adestramento”.

Adestrar, inculcar, educar, isto é, agir através da coer-ção sobre os seres que é preciso formar, inculcar valores e normas. Entre eles, primeiramente, as crianças. Em suas cartas, Kafka não cessa de criticar os modos de educação coercitivos que reinam em torno dele:

Eis, nascidos do egoísmo, os dois modos de educação dos pais: tirania e escravidão em todos os graus, o que não im-

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pede que a tirania seja expressa muito ternamente (“Você deve acreditar em mim porque sou sua mãe!”), e a escravi-dão orgulhosamente (“Você é meu filho e farei de você meu salvador!”), esses são dois modos terríveis de educação, dois modos contra a educação, próprios para pisar sobre a criança e para fazer com que ela volte ao chão de onde tinha saído (Carta a Elli Hermann, outono de 1921).

A aprendizagem de normas sociais e de valores não é se-parável da situação das crianças que preocupa muitos pais no corpus de fragmentos narrativos do outono de 1920:

A tarefa difícil. “Eduque as crianças”, me disseram. A salinha estava cheia. Muitos estavam espremidos contra as paredes, o que inquietava; entretanto eles se defendiam e rejeitavam os outros, de modo que a massa estava sempre em movimen-to. Só algumas crianças mais velhas, que ultrapassavam as outras no tamanho e não temiam nada vindo delas, se manti-nham na parede do fundo e me olhavam.

A educação é uma das principais direções tomadas pelo questionamento de Kafka, principalmente entre 1919 e 1921. De um sistema de imagens, ela toma a forma de car-tas a suas irmãs que argumentam a favor de uma educação mais livre.

Na “Carta ao pai”, escrita alguns meses antes, Kafka mostra-se constantemente preocupado com o modo pelo

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qual o conjunto de seus conhecimentos sobre o mundo, experiências de si, relações com os outros e sobretudo com seu pai, Hermann, se incorporou pouco a pouco a sua per-sonalidade, conferindo-lhe uma forma e uma identidade específicas que, consecutivamente, autorizam a qualificar (“Sou de tal ou tal modo, mas não de outro porque…”) e sobretudo discernir as dificuldades de sua existência in-terior:

[...] mas de qualquer forma o resultado geral em termos de conhecimento, e sobretudo em fundamentação do conheci-mento, é extremamente lastimável diante do dispêndio de tempo e dinheiro, principalmente em compração com qua-se todas as pessoas que eu conheço. É lastimável, mas, para mim, compreensível. Desde que comecei a pensar, tive uma preocupação tão profunda com a afirmação espiritual da mi-nha existência que tudo o mais me foi indiferente (KAFKA, 1997, p. 53).

À narrativa da vida, incluída nesta carta, acompanha um esforço para dar forma ao vivido da experiência e para mostrar que as verdades que se extraem dela fundam-se sobre as singularidades irredutíveis do indivíduo Franz Kafka, mas que possuem também uma ancoragem em um mundo social, historicamente determinado (Praga, cidade multicultural e multilíngue do fim do século XIX e início do XX, em que seu pai chegou em torno de 1880 depois de

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ter vivido no campo) e vínculos familiares precisos (a vida da família Kafka tinha como centro a loja dirigida pelo pai). Tendo o papel de Hermann Kafka no coração da nar-rativa, a “Carta...” dá uma atenção paciente aos principais determinantes da formação e da transformação da identi-dade de Franz (escolha dos estudos e da vida profissional, relação com o resto da família, fragilidade de sua educação religiosa…) Essa identidade é, segundo o autor, marcada por certos traços de caráter que o apraz opor justamente aos de seu pai: primeiramente a inquietude de jamais agir segundo as expectativas sociais e familiares, em seguida a aptidão para a culpabilidade e, por fim, a dificuldade ou a impossibilidade em que se encontra de realizar certas es-colhas da vida, em especial o casamento, assunto que ocu-pa uma parte importante da carta.

Esse texto excepcional foi lido sempre, em razão das te-máticas abordadas, como um documento importante para a compreensão do conjunto da obra. No entanto, o que chama a atenção não é tanto as questões levantadas, e sim a ordem que Kafka escolheu para apresentá-las. Depois de ter evocado a primeira infância e os métodos de educação de Hermann, a adolescência, o sentimento de inferiorida-de física do filho em relação ao pai, depois o início da vida adulta, os conflitos abertos e as reprovações endereçadas aos filhos em relação a suas escolhas de vida, na última parte do texto, Kafka detém-se longamente no fracasso de

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suas tentativas de casamento e as consequências de seu afastamento do ideal de vida familiar defendido pelo pai. A “Carta...” se apresenta, portanto, como uma configuração bem coordenada de acontecimentos ou fatos que Kafka expõe segundo uma ordem cronológica marcada e que se esclarece restrospectivamente pela explicação dada para o seu celibatarismo. Ambiciona, assim, revelar, com preci-são, tenacidade e rigor notáveis, um continuum de afetos, imagens e pensamentos que participam desde a infância da atmosfera interior do sujeito Franz Kafka, inapto a toda serenidade. Evidencia as causas de um “desvio” de percur-so na sua vida em relação àquilo que poderia ter aconteci-do se ele tivesse se conformado às vontades — à “lei” — de seu pai. Fracasso que engendra “falta”, “culpa”, “vergonha”, “ferimento”…

Documento excepcional, o texto estabelece pela primei-ra vez uma continuidade rigorosa entre os fatos, os acon-tecimentos, os afetos, os valores, e não se encontra traço disso em parte alguma das cartas mais elaboradas desti-nadas a Felice Bauer, Max Brod ou Milena Jesenská, nem em outros escritos íntimos. Se o jornal íntimo destina-se a “pensar o si-mesmo”, ou seja, não somente se pensar, mas pensar o escritor que ele se tornou, a “Carta ao pai”, por sua vez, ambiciona revelar um caminho implacável na crono-logia dos acontecimentos, a incompatibilidade entre sua “escolha” pela vida de escritor e uma união conjugal, uma

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tensão dramática entre uma libertação e uma aceitação re-signada de normas culturais e sociais. Pensar o si mesmo é querer que aquele que escreveu se veja de fora, persiga a gênese de sua personalidade num tempo regressivo ou como Kafka diz radicalmente no Diário “pensar-se a partir de sua própria morte”. É também instaurar uma distân-cia em relação ao corpo — à medida que este é apreendido como um obstáculo ao pensamento de si —, aos outros, às pessoas, às figuras que, também elas, ordinariamente, re-querem seu pensamento. Escrever é, então, submeter-se a muitos imperativos e antes de mais nada à exatidão do que “se é” apesar da incerteza: “Quero escrever com um tremor perpétuo sobre a testa” (Diário, 5 de julho de 1913). Mas que ao menos esse tremor seja exato. Para isso, Kafka utiliza e coloca uma exigência quase inumana no que diz respeito ao seu diário íntimo: que ele seja um modo de existir, em uma língua porvir, para se ver, mesmo que seja por um ins-tante, tal como se é.

O Diário, interrompido durante a escrita de “Carta ao pai”, prepara e se aproxima deste último de múltiplas maneiras. Certos temas maiores, dispersos na escrita do diarista, se unificam e se radicalizam na escrita epistolar comprometida a remontar as causas distantes ou mais re-centes de seu estado atual, caracterizado por uma autono-mia incompleta, malograda no plano social, mas também pelo exercício plenamente assumido — ao menos em 1919

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— da vocação de escritor. A Hermann, caberia, se possível, a ligação entre os dois. Este é, ao menos, o projeto da carta que, como se sabe, nunca foi remetida ao seu destinatário.

uma Grande diversidade de Gêneros

Entretanto uma tal continuidade não é a regra na obra de Kafka: entre o diário movido pela escrita de si e essa carta excepcional movida pelo seu projeto, seus escritos confundem o leitor tanto pela diversidade de gêneros ado-tados quanto pelo nível de análise e de elaboração do pen-samento aos quais parecem responder: notas longas sobre o programa narrativo acabado (A metamorfose, “Na colônia penal”, “Um artista da fome”, “A construção”, “Josefina, a cantora ou o povo dos camundongos”…), romances inaca-bados, apólogos, fragmentos narrativos, aforismos, anota-ções de status indefinido, cartas, diários íntimos… O leitor percebe, entre esses escritos, uma forte coerência, mas mal pode explicitar os elos que os une e às vezes se deixa ten-tar pela explicação mais conciliadora: os escritos literários seriam a transposição dos escritos íntimos. Entretanto, a leitura de cadernos e “folhas soltas” em que Kafka registra o essencial de seus escritos entre 1920 e 1921, ou seja, pouco

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tempo depois da escrita de “Carta ao pai”, dificulta essa in-terpretação conciliadora. Eis três páginas sucessivas des-ses cadernos:

16 de setembro de 1920. Às vezes parece que as coisas se apre-sentam assim: Você tem a tarefa, você tem, para cumpri-la, o tanto de forças necessárias (nem muita, nem muito pouca, é verdade que você deve mantê-las reunidas, mas não tem que ter medo), tem tempo suficiente e igualmente boa vontade para trabalhar. Onde, então, está o obstáculo que se opõe ao sucesso dessa enorme tarefa? Não perca tempo na busca do obstáculo, talvez ele não exista. 17 de setembro de 1920. Existe a meta, mas não o caminho. Isso que chamamos de caminho é hesitação. Nunca me encontrei sob o peso de outra res-ponsabilidade a não ser aquela que me foi imposta pela exis-tência, o olhar, o julgamento dos outros. 21 de setembro de 1920. Recolher os restos; os membros felizmente relaxados. Sob a varanda ao luar. Ao fundo, um pouco de folhagem. Cas-tanha como os cabelos. Um objeto qualquer proveniente de um naufrágio, fresco e novo quando caiu na água, submer-so, reduzido à impotência durante anos, finalmente se de-compõe. No circo, hoje se encenará uma grande pantomima, uma pantomima aquática; todo o picadeiro ficará coberto de água; Posêidon atravessará as águas com seu cortejo, a nave de Ulisses aparecerá e as sereias cantarão, em seguida Vênus emergirá da água, nua, o que permitirá uma transição para a representação da vida à beira-mar de uma família moderna. O diretor, um velho senhor de cabelos brancos mas ainda um firme escudeiro de circo, depende enormemente do suces-so dessa pantomima. Um sucesso seria muito bem-vindo, o ano anterior foi muito ruim, uma série de turnês fracassadas

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causaram grandes perdas. É que estamos em uma cidade pe-quena.

Entre esses textos, o primeiro situa-se a meio caminho entre a anotação do diarista e o aforismo; o segundo está, por sua concisão, mais perto ainda do aforismo; o tercei-ro inclui-se no tipo de enunciação que encontramos no Diário; o quarto é um poema; o quinto e o sexto são nar-rações curtas. O leitor custa a encontrar uma ligação en-tre eles. Entretanto, sem poder nomear uma propriedade comum entre eles, sua intepretação parece estar relacio-nada às semelhanças que não são uma identidade total, mas remetem àquilo que Ludwig Wittgenstein nomeou “ar familiar” (Cahier bleu, Gallimard, p. 51). Se não se visa apressadamente a generalidade, pode-se admitir que esses textos não compartilham uma propriedade essencial, mas parecem provenientes de uma mesma fonte de pensamen-to que busca se relançar em direções diferentes e comple-mentares. Como acontece com frequência nos cadernos do outono e do inverno de 1920, os textos ficcionais mais ou menos desenvolvidos, simples fragmentos ou narra-tivas acabadas, se sucedem e reagrupam, logo depois ou algumas páginas mais adiante, segundo Max Brod, Kafka teria o projeto de reagrupá-los e publicá-los sob a bandeira de um comentário geral ou de um aforismo. Seriam pági-nas “exemplares”; é com maior frequência por conta dessa

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disparidade de gêneros do que pela redação de um texto fortemente talhado como “Carta ao pai” que a criação ga-nha forma em Kafka.

Sobre as páginas dos cadernos se sucedem e se avizi-nham elementos de gênero, de nível e domínio diferen-tes, e, no entanto, submetidos visivelmente a momentos de retomada interpretativa que lhes permite ganhar uma forma mais precisa e delimitada. Consequentemente, é tentador postular que, em Kafka, criação literária, anota-ções íntimas e escritos gnômicos se posicionam sobre uma imensa tela que comporta escritos como a “Carta ao pai”, orientada pela dupla compreensão da singularidade de seu percurso na sociedade e da vocação de escritor. Diante dos escritos íntimos, certos textos literários, próximos ao apólogo, que não atingiram, como em nosso corpus, o grau de desenvolvimento das narrativas incluídas sobretudo na coletânea intitulada Um médico rural, foram excluídos dos projetos de publicação do autor, mas poderiam ser uma outra formulação possível dessa deformação de uma vida que a “Carta...” apresenta como “fora da norma” tanto no plano familiar e social quanto moral.

Os textos do outono de 1920 não são uma ruptura com essas narrativas. Nenhum dos personagens presentes nesses textos literários poderia passar pela representação completa e explícita de um indivíduo singular. Da mesma forma não existem relações estreitas entre a cena da ação

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e o mundo real, nenhum personagem está “conectado” ao espaço cultural de uma época precisa, que serviria ao leitor como ponto de referência, daí sua dificuldade de retirar de sua leitura qualquer certeza que seja sobre o sentido des-ses textos. Situado fora de toda hierarquia funcional ou moral — inversamente, por exemplo, ao romance natura-lista — o personagem kafkiano não encarna nenhum valor ideológico, positivo ou negativo, de uma sociedade preci-sa, antiga ou contemporânea, familiar ou distante. Ele pa-rece existir somente no interior do universo ficcional onde funciona primeiramente como um “objeto textual” insepa-rável das ações em que está mergulhado e, sobretudo, do comentário produzido sobre elas por um narrador sempre interno à ficção e antagonista à imagem da breve narrativa “Preocupação do pai de família”. O personagem é aqui for-temente ambíguo e incompleto: às vezes, ele tem nome ou sobrenome, mas é desprovido de densidade psicológica. Abordado essencialmente através de seu comportamento em sociedade, ele não parece “encarnado” até o fim. Fun-cionando às vezes através de pares opostos (Odradeck/o pai), ele não remete inteiramente a uma realidade do mun-do exterior. A indeterminação na qual o autor o mantém forma em torno dele uma atmosfera enigmática cuja ori-gem não se sabe: parece ser um exemplo, mas de quê? Nó de sentido “interrompido” em pleno desenvolvimento, ele parece, todavia, reclamar um comentário sobre a ação na qual ele está envolvido. É quase sempre desviado por uma

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série de obstáculos em seu caminho, a deliberação que ele parece induzir não é levada em conta pelo narrador; ela permanece exterior ao sujeito. Os personagens são con-frontados com as consequências com certas ações que são mantidas em um registro de generalidade (solidão, exílio, deslocamento para fora de casa, adoecimento, metamor-fose, aprendizagem…) e geralmente leva a um impasse, a um fracasso ou a uma sucessão de ações secundárias vivi-das sob o modo de sanção.

Existiria um elo sólido entre todos esses escritos a des-peito de sua aparente disparidade: a situação narrativa exposta brevemente transpõe as consequências de uma situação-problema em que se encarna uma falha ou uma incompreensão face às normas sociais, morais ou compor-tamentais que, por outro lado, Kafka evoca, tanto em seu diário íntimo como em sua correspondência, para, geral-mente, deplorar o fato de que ele é incapaz de segui-las. Alguns comentadores reduziram rapidamente a distância que separa esses escritos. Segundo eles, entre esses textos, referindo-se às cartas e ao diário íntimo, se tecem elos que mostram (para o leitor que hoje dispõe de todo o corpus) os escritos literários como uma forma de restituição (de anamnese?) ao mesmo tempo de eventos e de momentos subjetivos da vida interior e de certas experiências mar-cantes da infância. A “Carta ao pai” é sempre solicitada para sustentar essa tese e é, de fato, bastante tentador fa-

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zer essas relações com a última parte em que Kafka recapi-tula a influência negativa (o “dano”) da educação dada por seu pai. Não há nenhuma razão para excluir o fato de que os elementos pessoais, que aparecem nos escritos íntimos, não são retomados nos textos de nosso corpus. Entretan-to, será preciso admitir que, neste caso, trata-se menos de uma transposição de dados biográficos do que da resti-tuição, em uma linguagem pessoal, forjada pela escuta de múltiplas tradições narrativas, e por uma rede de imagens e de situações narrativas mais ou menos dramáticas, de momentos sucessivos e essenciais que escandem ou es-candiram os ciclos de intenções e de atos do autor, do sen-timento que necessariamente acompanhou seus sucessos mas, sobretudo, seus fracassos, seus progressos, suas difi-culdades diante dos obstáculos interiores que se acumula-vam. O problema é, assim, deslocado: como se opera essa restituição? De onde provém esse mundo de imagens? E, sobretudo, qual é seu sentido? Embora Kafka jamais trans-ponha diretamente o vivido bruto — uma atmosfera que acompanha um lugar, uma conversa, sensações — o esta-tuto do texto frequentemente nos escapa. A cada vez que se tenta saber com certeza sobre ele, surgem os exemplos contrários: é uma parábola, uma narrativa fantástica, um mito? Os cadernos e folhas soltas de 1920 servem, para este assunto, como um testemunho insubstituível do “método” de Kafka. O escritor não estabelece relações explícitas e definitivas entre seus escritos; ele percebe entre eles um

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“ar familiar” que os aforismos, em seguida, virão sublinhar como se sublinha, algumas vezes, em uma fotografia de família uma característica física comum a muitos de seus membros. Enquanto os textos de nosso corpus colocam em cena, segundo seu interesse narrativo, todos ou uma parte de motivos que formam um obstáculo encontrado na vida da personagem (por exemplo, a admissão de K. na família do castelão), os extratos das cartas ou do diário íntimo, por sua vez, destinam-se a recolher a significação pessoal atri-buída aos obstáculos interiores (a impossibilidade de se re-signar à ideia do casamento), a despeito de todo obstáculo para isolar os dados interligados e de tentar responder a certas questões obsedantes (como e por que, por exemplo, o homem que ele se tornou acolheu tal apelo, fez sua tal lei ou tal dever, atribuiu tal valor a tal fato? De acordo com qual constituição sensível? Por que uma e não outra obri-gação ressoou nele, intepelando-o e ecoando em outra? Os aforismos desse período parecem recolher e ampliar a significação e o alcance desses obstáculos, ressituando--os em uma cadeia rigorosa e equilibrada pelo ritmo das frases inseridas em um conjunto de palavras formalmente perfeito. Conhecimento e escrita literária reforçam-se mu-tuamente.

Por necessidade, o questionamento de Kafka relança--se ininterruptamente em diferentes formas e direções. A “Carta ao pai” unifica uma série de questões problemáticas

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(a preocupação — “Sorge” — do ponto de vista da família da qual ele afasta-se progressivamente, a vergonha — “Scham” — e a culpa — “Schuld” — de não poder obedecer às exigências do pai) dispersas através dos textos literários anteriores a 1919, os enunciados gnômicos, as cartas e os jornais íntimos; estes últimos destacam-se pela vocação para interrogar os afetos que acompanham certos atos ou as bases de certas situações encontradas na vida real de Kafka e intensamente carregadas de emoções, por exem-plo, a convocação ao hotel Askanischer Hof que antecipou a ruptura definitiva do noivado com Felice Bauer, o perío-do de repouso em Zürau como de fuga para longe de sua família, o encontro em Gmünd com Milena Jesenská (seus preparativos e consequências). As conexões entre esses eventos e certos textos literários de nosso corpus, com os quais eles apresentam afinidades, não são jamais diretas e unívocas pois não “traduzem” o vivido bruto, as circuns-tâncias precisas, os ambientes e falas reais. Elas mantêm distância, dirigem um olhar “frio” a toda experiência ínti-ma — condição, talvez, para integrar a experiência à obra de arte. São as ressonâncias interiores dessas experiências, seu impacto moral, que parecem se cristalizar em torno de certos motivos que Kafka retoma entre um escrito e outro: em especial a lei, a vergonha, a ferida, a culpa, a alimenta-ção, a salvação, o segredo…

A “Carta ao pai” é, sob todos os aspectos, um texto excep-

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cional pois abarca e relaciona épocas diferentes da vida de Kafka, tendo como objetivo revelar os fundamentos de sua individualidade. Esse texto reinstala em um tempo objeti-vo e em uma cronologia a maioria dos principais “motivos” presentes em sincronia nos outros escritos e principalmen-te nos aforismos que precedem a carta em alguns meses. Nela, Kafka constata que não chegará jamais a um ideal de afetividade moderada e que sua afetividade é marcada por um estilo particularmente dramático, oscilando entre um sentimento de culpa e uma propensão para criar para si obstáculos a que ele nomeia “impaciência”. É por isso que ele lamenta não poder escapar de uma forma de ascetismo e de solidão que encontraremos mais tarde como fonte de uma narrativa como “Um artista da fome”. O movimento de oscilação e de relançamento do pensamento, presente em numerosas cartas e que exprime as aporias de sua vida moral dividida entre as exigências contraditórias (vida so-cial/solidão, amor/desapego, reconhecimento/indiferen-ça), é retraduzido nos textos do corpus, às vezes não sem humor, em narrativas de discussão e luta. Os personagens não estão jamais em repouso, em paz. Ao contrário, assim que o narrador se põe a contar a história deles, ou melhor, a expor o seu “caso”, eles são imediatamente envolvidos em uma luta vigorosa contra forças hostis das quais procu-ram se libertar. Com frequência, há uma combate concre-to, físico; há duelo verbal que, todavia, não é menos mortal (aquele que opõe Georg Bendemann a seu pai — O veredicto

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—, ou Joseph K. ao homem que vem prendê-lo — O processo —, ou ainda o guardião do túmulo ao príncipe — “O guar-dião do túmulo”). Enfim, como neste último texto, existe uma discussão que parece retraduzir o combate interior entre duas vozes antagonistas que se afrontam no seio da consciência.

humor e laConismo

Os textos de Kafka, retirados do corpus de 1920 que ci-tamos e que não foram escolhidos pelo autor para figurar nas coletâneas editadas nos últimos anos de sua vida ou para serem publicados em volume separado, fazem o leitor hesitar por um instante: são esboços de narrativas ou escri-tos concisos, fechados em si mesmos, sem apelar para des-dobramentos narrativos, muitas vezes crus, mas exigindo um modo diferente de leitura daquele que os romances ou mesmo as novelas mais longas, como A metamorfose ou “Jo-sefina, a cantora...”, convocam? Das folhas destacadas que sucedem um período de interrupção que vai da primavera de 1918 ao outono de 1920 e depois reagrupadas em qua-tro conjuntos denominados A, B, C e D por especialistas nos manuscritos do autor, assim como os cadernos mar-

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rom in-quarto que datam de 1921 e 1922, é possível extrair um conjunto de escritos em que a concisão coincide com a afirmação, em Kafka, de um estilo inteiramente marca-do pelo laconismo e muitas vezes pelo humor, em que a brevidade situa-se em oposição à escrita romanesca. Se aceitarmos ler esses textos de uma grande força sugestiva não como fragmentos, mas como escritos suspensos sobre o vazio, ansiosos para retornar ao silêncio, ao mistério e à dor de onde provêm, brilhando plenamente sobre o espí-rito do leitor que procura descobrir seu sentido, eles ofe-recerão um olhar novo sobre um período decisivo de vida e da obra do autor, que abrange, grosso modo, a época de suas relações com Milena Jesenská. Esses textos são auto-biográficos em um nível profundo, isto é, no nível do ser e do afeto, e não no nível de circunstâncias evocadas aqui e ali. Parece-nos, ainda, revelador o fato de que Kafka, du-rante todo esse período, tenha confiado a esses textos, as-sim como às cartas destinadas a Milena, escritas de Praga ou do sanatório em Matliary no Tatras, o cuidado de repre-sentá-lo como nos célebres esboços em que o traço tomou o lugar das palavras para dar corpo à imagem que ele faz de si. Porque esses textos formam uma série de autorre-tratos ou de autoexames nos quais Kafka se representa segundo pontos de vista a cada vez diferentes, transpon-do, colocando em cena e em imagens suas relações com o outro, com a sociedade e com a comunidade. Diálogos, narrativas ou anotações lapidares, eles se oferecem a nós

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como uma série de pequenos quadros nos quais, em uma ordem mais associativa do que cronológica, aparecem não o detalhe de uma vida exterior, mas diversas imagens da-quilo que o inquieta e oprime; cada texto possui seu élan e sua força em uma expressão inédita e concreta daquilo que ele nomeia comumente de seu “erro”, seu “deserto”. Esses retratos esparsos, mas de contornos precisos, têm a carac-terística de se aproximar do ser íntimo sem jamais conter “confidências”, insistindo sobre as dificuldades. A falha em existir experimentada por Kafka o conduz a aparecer de maneira múltipla — quer seja como ser humano, ani-mal, ou objeto — e dispersa, instalada com dureza por seu combate interior. Exposto ao olhar dos outros, à espreita, como se perseguido, o ser que aparece nesses textos possui também a coragem para lutar contra aquilo que o invade e desola. Há tanta força em jogo que o retrato não pode ser senão brilhante, desarticulado, em “ziguezague” como ele o escreve. As linhas do rosto estão em constante movimen-to. Cada texto parece querer desembaraçar os fios emba-ralhados dessa identidade sempre provisória, jamais em repouso. A escrita é o lugar decisivo do questionamento desassossegado e da travessia das armadilhas que foram armadas diante dele. Ela cava, exaspera a ferida, cria dra-gões e, também, conduz ao refúgio. Pouco a pouco, diante dos nossos olhos, surge uma geografia pessoal e cerebral, fora do tempo, constituída de mares gelados:

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Vamos partir daqui, justamente daqui! Você não precisa me dizer para onde me conduz. Onde está sua mão, ah! Não pos-so encontrá-la no escuro. Se eu pudesse conhecer sua mão, talvez você não me rejeitasse. Você me ouve? Você está mes-mo no quarto? Talvez você não esteja aqui. Isso poderia atrair você para o gelo e o nevoeiro do mar do Norte, onde não se pode ver os homens? Você não está aqui. Você fugiu do local. Mas eu, eu espero a decisão que me dirá se você está aqui ou não.

as imaGens provenientes dos Grandes mitos

O laconismo não impede de discernir, nesse conjunto de textos, o retorno de certos motivos, a insistência de certas imagens, não como construídas, mas como reveladas, em que se encontram elementos que excedem sua significa-ção ordinária e são provenientes de mundos conhecidos e, no entanto, ainda inexplorados, desviados, muitas vezes, dos grandes mitos. Esses textos se povoam de símbolos ar-dentes e ambíguos, associados a experiências que, em sua origem, não parecem mais humanas e nos escapam. Em algumas edições francesas, os textos destinados segundo a vontade do autor à publicação, são intercalados com ou-

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tros tirados de cadernos diversos em que Kafka escrevia, o que, muitas vezes, provoca uma confusão entre os ver-dadeiros fragmentos de narrativa e outros textos curtos, marcados, às vezes, por pontos de suspensão, mas den-tro do “programa” narrativo acabado. Kafka, obedecendo como sempre a uma exigência rigorosa, não achou que eles respeitavam os critérios de publicação que fixoue não julgou que seria bom mostrá-los até mesmo ao seu amigo Max Brod. Contudo, ele os conservou em seus pacotes e cadernos e, sem dúvida, relia-os atentamente como fazia com o diário íntimo ou com algumas de suas cartas. É a partir desse conjunto de escritos, retirados da coletânea Cenas de um casamento no campo [Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande und andere Prosa aus dem Nachlass], publicado pela primeira vez quase simultaneamente pela Schoken Books, em Nova York, e pela S. Fischer Verlag, em Frankfurt, em 1953, sob a supervisão de Max Brod, depois na França, em 1957, pela Gallimard, que pensamos ser possível isolar os textos inacabados do mesmo período. De fato, esses escri-tos têm um notável interesse. Nem meros esboços, nem novelas de grande amplitude, eles oferecem uma magnífi-ca introdução ao último período literário de Kafka, aquele que a escrita das narrativas publicadas em 1919 na coletâ-nea intitulada Um médico rural inaugura e vê, no decorrer do tempo, uma concentração narrativa sempre crescente a ponto de reduzi-la a uma única frase. Longe dos roman-ces, esses textos devem ser colocados em relação, através

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dos temas abordados, não só com as grandes narrativas dos últimos anos (reagrupadas sobretudo na coletânea Um artista da fome em 1924) mas também com o Diário e a cor-respondência.

Estamos lidando com um conjunto de escritos próximos das anotações do diário íntimo ou dos aforismos, muito numerosos no período precedente (1917-1919). Os textos se apresentam sob uma forma notavelmente homogênea, primeiramente por sua concisão, depois pela unidade ge-nérica. Os textos em que a enunciação se faz com Ele ou com o Eu estão mais próximos da narrativa, da parábola ou da fábula, enquanto os outros, feitos com Tu, estão mais relacionados ao aforismo, ao apotegma ou à máxima. Além da força sugestiva desses textos, pensamos que eles ilumi-nam a contribuição de Kafka para a criação de gêneros narrativos. De fato, esses escritos portam uma ação redu-zida, da qual se exclui toda anedota, todo desenvolvimento supérfluo, e parecem não se fechar, mas sim, se abrir ao infinito. Estamos aqui no coração da invenção literária e dos desafios estéticos da obra de Kafka, dos quais Inge-borg Bachmann falou com vigor. Para a poeta austríaca, a palavra “literatura” abre um “reino” (“Leçons de Francfort”. In: Œuvres. Arles: Actes Sud, 2009, p. 709 ss.) mas sofre de dois defeitos graves: não sabe dizer o que ela é e se reco-nhece por violar a linguagem comum. Intimida ou, pior, é desprezada justamente pela “utopia” da linguagem que

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representa. O emprego da língua dos pais, uma língua cor-rompida, levanta a questão. Da mesma forma, o emprego do nome próprio contém uma grande dificuldade. O escri-tor experimenta a necessidade de não utilizar seu nome judeu, Amschel, e utiliza apenas uma inicial para designar suas personagens. O Ele da ficção é difícil de conquistar: “Depois da dissolução do Eu, nem o Eu da história nem o Eu da narração estão garantidos. Aquele que diz Eu não está mais inteiramente certo em relação ao compromisso que pode manter com o Eu que enunciou, nem de cobrir este mesmo Eu. Que provas poderiam ser apresentadas a favor desse Eu, já que seus lábios não fazem mais do que se agitar e produzir sons, mas não há ninguém para garantir a sua mais banal identidade?” (Ingeborg Bachmann, em “Le Je de l’écrivain”, Ibidem. p. 679ss.) Essa ausência de provas está refletida nas escolhas enunciativas de Kafka — narrativa em primeira pessoa, narrativa que se reescreve passando da terceira para a primeira e vice-versa —, e na maneira de nomear ou, antes, de não nomear seus personagens. Mas aquilo que, em Kafka, estava apoiado em uma dificuldade existencial foi esvaziado de seu sentido tornando-se, nos outros, simples procedimento de escrita. A influência do Processo e do Castelo sobre muitos romancistas obriga a re-formular a “lição” do escritor de Praga: é preciso escrever como um inventor real da língua. Admira-se Kafka por sua determinação em não utilizar uma experiência que o pre-cedeu e que o aguardava, por estar arrancado das deter-

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minações de seu tempo, das formas do passado. Relendo esses escritos do outono de 1920 e do inverno de 1920-1921, compreende-se quanto o escritor de Praga reivindica uma língua nova, próxima à criação poética, que deve obedecer a uma nova abordagem e que esta como tal é habitada por um espírito novo. Nesses textos, em que o humor não está excluído, pois guarda sua eficácia, com as forças refeitas, é na distância entre o Eu que escreve e o Eu, o Tu ou o Ele da narração que se desenrola a criação ficional e é nas dobras mais escondidas do ser que nascem certas personagens da narrativa que exploram as possibilidades extremas da pa-lavra. Em todos esses textos, Kafka vai ao seu próprio en-contro através de uma multiplicidade de pessoas, no senti-do em que se diz que o Eu é a primeira pessoa do singular:

Quando, à noite, volto do passeio ao longo da água, como a água turva e pegajosa é, cada noite, lentamente fabricada, tal como um corpo sob a luz da lanterna. É como se eu agitasse minha lanterna sobre um homem adormecido e como se, por causa da luz, ele se virasse e se espreguiçasse, sem despertar.

Uma busca única funda-se em diversos aspectos, relan-ça-se por trás de cada duplo. Cada pessoa, nesses textos, é uma máscara, como sugere a etimologia. Ela dissimula e, ao mesmo tempo, desvela o ser sob o pronome e o revela no movimento de uma encenação. O Eu da confissão que representa a parte mais puramente subjetiva e fortemente

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desenvolvida nas cartas a Milena e no Diário, destinado à relação entre o que se passou e o que se sentiu, cede aqui lugar a um Eu que mediatiza a constituição de um imagi-nário, que carrega em si um ponto de partida de uma fic-ção. Esse Eu da narração — às vezes substituído por um Nós — relata uma anedota ou uma aventura que não têm um caráter de realidade concreta, relacionada à ação real de um indivíduo. Essa pessoa exprime também impres-sões, sentimentos que o seu caráter violento, excessivo, não pode ser apreendido em testemunhos primeiros. Mas, nos dois casos, o Eu impõe-se a nós, leitores, com um valor de relação subjetiva tão notável que ficamos confusos: “Eu a amo e não posso falar com ela; eu a espreito para não encontrá-la”. Como não ficar impressionado com essa fala que utiliza a língua mais simples para relatar um fato, um acidente, uma briga, uma perda, sob o signo de um prono-me que parece o centro mais íntimo dos diários de bordo. Esses textos constituem as etapas principais do périplo do Eu que atravessa as regiões mais inóspitas. O Eu da nar-ração absorve finalmente o Eu da confissão. O leitor das cartas a Milena compreende rápido que entre as duas sé-ries de escritos, há tanto continuidade quanto diferença. No interior desse corpus, certos textos são marcados pela presença de um Ele que é geralmente o pronome para a distância mas que, aqui, parece encarnar uma forma mais distante do Eu, uma espécie de duplo de seu primeiro du-plo. Este Ele é, todavia, mais ficcional: ele pode colocar em

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cena um ser de contornos precisos, com uma vida mais imersa em uma realidade social, profissional:

Não tinha sacada, no lugar da janela, uma porta que condu-zia diretamente do terceiro andar ao vazio. Ela estava aberta nesta noite primaveril. Um estudante trabalhava e andava de um lado pro outro em seu quarto; a cada vez que ele chegava à janela, tocava o limiar de sua superfície como passamos a lín-gua furtivamente sobre um doce que guardamos para mais tarde.

Trata-se de um ser cuja existência está assegurada por uma sucessão de acontecimentos, de acidentes ou de ta-refas a fazer. Mesmo se, na maior parte do tempo, Ele não tem nome, Ele é qualquer um, um personagem. Ele é um homem ou, talvez, uma criança, um brinquedo como em um conto de Adersen ou, ainda, uma casa:

Pobre casa esquecida! Algum dia habitada? Isso não foi rela-tado. Ninguém tem interesse em sua história. Como você é fria! Que o ventro sopre através de seus terríveis corredores; nada o detém. Se você nunca foi habitada, os seus traços fo-ram incompreensivelmente apagados.

Talvez este Ele represente melhor que o Eu a impor-tância das metamorfoses dos seres submetidos a nume-

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rosas forças, incarnadas por especialistas em chicote ou por poderosos guardiões. E, quando não é a presa desses personagens identificados a sua função, este ser deve ir ao encontro de uma série de criaturas que, muitas vezes, perderam toda característica humana, habitantes de mun-dos desconhecidos, dos quais só pode erguer um pouco o véu. Alguns dos textos do diário de Kafka, durante o ou-tono de 1920, são ecos dessas descobertas. Mas o Ele aqui não está afastado do Eu: apenas quando o autor ultrapassa o estágio de atribuição do nome próprio (Karo, Kalmes e outros avatares do K.): “Sou um cão de caça. Meu nome é Karo. Odeio tudo e todos. Odeio meu mestre, o caçador, eu o odeio apesar de esta pessoa duvidosa não o merecer”. Não há raízes próprias nem existência autônoma. Ele per-mite assinar diferentemente esses textos, de poder expri-mir de outro modo que não seja através da confissão direta de “Carta ao pai”, escrita alguns meses antes. Ele é o outro duplo da luta e da derrota. Ele multiplica os poderes da criação literária e traz outras nuances a esse retrato outo-nal que Kafka busca de si mesmo, consciente de abordar os limites últimos de sua existência. O Ele refrata essa busca. São outras imagens do ser que, talvez, retornarão para as-sombrar O castelo, “A construção” ou “Um artista da fome” aqui em gestação.

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ConClusão

É significativo que o Eu, o Ele ou o Nós carreguem com eles o leitor para mundos que não são naturalistas e que à semelhança das Anedotas de Kleist, que Kafka tanto ad-mirava, eles nos pareçam os meios de uma conquista da verdade, como um “patrimônio de experiências” para me-ditar:

A vida inteira de Kleist desenrolou-se sob a pressão de ten-sões visionárias entre o homem e o destino: ele as trouxe à luz e as fixou em uma língua límpida. Sua visão está destinada a ser um patrimônio de experiências ao qual cada um pode ter acesso. A arte não é uma questão de espanto momentâneo mas de exemplo durável (JANOUCH, 1978, p. 218).2

2. Devido às variações nas edições brasileira, francesa e americana, optei por traduzir as citações do autor em francês. O leitor brasileiro, contudo, poderá ter acesso à publicação: JANOUCH , Gustav . Conversas com Kafka . Tradução de Celina Luz. Introdução e Notas: Bernard Lortholary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. (N. da T.)

A literatura de Kafka é, no caso que nos interessa aqui, esse exemplo durável de “tensão entre o homem e o desti-

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no”. Parece-nos também altamente significativo que Kafka tenha escrito esses textos pouco tempo depois de a “Car-ta ao pai” em que culmina sua reflexão ética. Na verdade, parece que, em nenhum outro lugar senão nesses textos, Kafka penetra, como em uma oração, tão agudamente nas profundezas da consciência:

A oração, a arte e a pesquisa científica são três chamas dife-rentes mas feitas do mesmo fogo. Queremos ultrapassar as possibilidades pessoais atribuídas à vontade no instante de se pôr além dos limites estreitos do eu. A arte e a oração são mãos estendidas no escuro. Imploramos para fazer de nós mesmo um dom. Lançamo-nos no arco de luz que liga isso que passa a isso que vem para deitar o ser no estreito berço do eu. É isso que fazem a ciência, a arte e a oração. Descer em si mesmo não é mergulhar no inconsciente mas içar à super-fície clara da consciência aquilo que pressentimos no escuro (JANOUCH, 1978, p. 151).

Kafka procura a verdade através da arte e não somente a verdade da arte, e entre ele e a arte, a doença foi uma opor-tunidade: “A doença nos oferece a possibilidade de fazer nossas provas” (Ibidem, p. 145). A tuberculose é uma “gra-ça”: “Sou um ser cheio de orgulho e pretensão. Não que-ro levar plenamente em conta o peso da existência. Sou o filho único de pais ricos. Creio simplesmente que a vida é alguma coisa bem natural. É por isso que a doença está

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lá para me mostrar sem cessar a que ponto sou frágil e ao mesmo tempo a que ponto a existência é maravilhosa” (Ibi-dem, p. 145), “Toda arte verdadeira é documento, testemu-nho. Um povo que tem um rapaz como o desse livro não desaparecerá” (Ibidem, p. 132; a propósito de um livro sobre Tachkent escrito por Alexandre Neverov em 1921).

As cidades imaginárias dos textos do corpus de 1920 e a Praga real se juntam. Modernas, vastas, providas da como-didade moderna, elas têm, todavia, sua parcela de excluí-dos: “A vida não é uma colina de Ziska. Qualquer um pode parar debaixo das rodas. Mais provavelmente o fraco e o pobre do que o rico que tem sua cota de calor. O fraco é es-magado antes mesmo de ser pego pelas rodas” (Ibidem, p. 84). Esses textos são mãos humildes estendidas para nós, ainda não aprefeiçoados pelo gesto de publicação. Permi-tem ultrapassar a “bílis” que os separa dos outros: “Há que se tomar em si mesmo… Não resta outra coisa a não ser ter paciência e sufocar sem uma palavra a bílis que sobe em nós. É tudo que podemos fazer se não quisermos ter vergo-nha dos homens e de nós mesmos” (Ibidem, p. 78). Segundo Kafka, a língua é um vínculo e não uma fuga da realidade:

A criação de um escritor é uma condensação, uma concentra-ção. A produção de um literato, ao contrário, é uma diluição, resulta em um produto excitante que facilita a vida incons-ciente, um narcótico.

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A criação desperta como uma oração. A caneta é um es-tilete, um “sismógrafo do coração”(Ibidem, p. 60). A arte trata da personalidade integralmente. É por isso que é no fundo trágica. É o contrário do sonho: um confronto com a realidade. É por isso que, como nossos textos o mostram, se centra nas “escórias do vivido” (Ibidem, p. 53), evita os li-vros “reflexo tremulante da atualidade” (Ibidem, p. 51), pois passar da impressão ao conhecimento implica um longo caminho: “Aquilo que a vida tem de assustador, a arte tem de desconcertante” (Ibidem, p. 40).

O encontro e depois a relação difícil com Milena Je-senská impeliram Kafka a escrever esses pequenos textos em forma de autorretrato que complementam a “Carta ao pai”. Esses escritos, são eles próprios uma etapa de um processo libertador. Situam-se entre a ruptura com Felice e o encontro com Julie Wohrycek, em um momento de ten-são extrema mas que lhe permite entrever uma questão na partida de Praga. Logo Kafka se instalará em Berlim para livrar-se das normas que o sufocam e viver, como disse a Janouch, seu “destino”. Devido à heterogeneidade que os constitui mas também ao “solo” ético sobre o qual eles se assentam, os Cadernos in-octavo desses anos cruciais ofere-cem uma visão resumida do conjunto da obra. Permitem ver as diferentes camadas de sua escrita, de aproximar esse conjunto de “motivos” ao sentido musical do termo que fazem a singularidade da língua de Kafka e que recla-

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mam o isolamente para serem melhor compreendidos.

A questão da ética não é a da moral, ou seja, da “boa conduta” da qual convém testemunhar diante de outro. A questão é sim aquela da virada que é preciso dar em sua própria vida para poder vivê-la justamente. O objetivo de Kafka situa-se na ética e não na moral porque a moral não trata da realidade, mas daquilo que deveria ser. Em outras palavras, o que é primordial em Kafka é uma certa relação com a escrita, buscada menos pelas suas qualidades estéti-cas do que por sua capacidade de sondar os fundamentos da ação humana. A dimensão ética do objetivo de Kafka é, assim, uma adesão (a um projeto pessoal de conhecimento de si) e não uma construção abstrata (conceitual, discursi-va), que ele poderia separar de si mesmo. De fato, ele pode submeter-se completamente à ética que ele criou, pois o escrito é um lugar confiável e imperativo, o momento de uma “legislação”.

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referênCias

KAFKA, Franz. “Carta ao pai”. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

______________. “Chacais e árabes”. In: Um médico rural. Tradu-ção de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______________. Contemplação e Foguista. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

______________. O veredicto/Na colônia penal. Tradução de Mo-desto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Edições utilizadas pelo autor:

JANOUCH, Gustav. Conversations avec Kafka. éd. Maurice Na-deau. Paris: Les Lettres Nouvelles, 1978.

KAFKA, Franz. Œuvres complètes. éd. Claude David. Paris: Galli-mard, coll. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1976-1989, 4 vol.

______________. Cahiers in-octavo (1916-1918). éd. Pierre Deshusses. Paris: Payot & Rivages, 2012.

______________. Aphorismes. éd. Guy Fillion. Nantes: Joseph K., 1994.

______________. Le Château, Dans la colonie pénitentiaire et autres nouvelles, La Métamorphose, Description d’un combat, Le Procès, Un jeûneur et autres nouvelles. éd. Bernard Lortholary. Paris: Flamma-rion, coll. “GF”, 1983-1991.

______________. Tagebücher, Gesammelte Werke, Briefe, 1902-1924, Briefe an Milena, Briefe an Felice. Frankfurt: Fischer, 1966-1986.

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UMA LEITURA DA “CARTA AO PAI” DE KAFKA

Filipe Pereirinha

Psicanalista | Antena do Campo Freudiano (ACF); Universidade Lusófona (ULHT) — Lisboa

Resumo: Pode uma carta chegar ao seu destino mesmo quan-do não é enviada? A “Carta ao pai”, de Kafka, serve-nos aqui de balão de ensaio para esboçar uma possível resposta a esta questão. Não se trata, porém, de ler esta carta como se ela tra-duzisse finalmente, ao pé da letra, o conflito edipiano entre Kafka e o seu pai, mas antes de ver neste suposto conflito — e seus impasses — o limiar de outra coisa bem mais real.

Palavras-chave: Kafka; Lacan; letra; sintoma; real.

Resumée: Une lettre pourrait-elle arriver à sa destination, même si n’ayant pas été envoyée? La Lettre au père de Kakfa nous sert ici de ballon d’essai pour esquisser une réponse pos-sible à cette question. Il ne s’agit cependant pas de lire cette lettre comme si elle venait traduire finalement et au pied de la lettre le conflit œdipien de Kafka, mais plutôt de voir dans ce conflit supposé — et ses impasses — le seuil de quelque chose d’autre de bien plus réelle.

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Mots-clés: Kafka; Lacan; lettre; symptôme; réel.

i. Como ler kafka sem errar Completamente o alvo?1

1. O texto é o resultado da intervenção efetuada no âmbito do Seminário do Centro de Estudos de Psicanálise, ULHT, nos dias 12 e 19 de fevereiro 2014, por Filipe Pereirinha. Filipe Pereirinha é Doutor em Filosofia Moderna e Contemporânea, com uma tese sobre a problemática do sujeito em Jacques Lacan. Membro da Antena do Campo Freudiano (ACF-Portugal) e da EuroFédération de Psychanalyse. Ex-professor e investigador do departamento de Psicologia da ULHT. Membro do Centro de Estudos de Psicanálise (ACF — CEP). Colaborador da revista Afreudite — Revista Lusófona de Psicanálise Pura e Aplicada. Convidado e colaborador regular, desde 2007, do Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná (Curitiba, Brasil). Autor de diversos artigos editados em publicações nacionais e estrangeiras.

Há uma acusação recorrente a Freud e, por extensão, aos freudianos, sobre o modo, supostamente redutor, como encaram a obra literária, como se esta fosse apenas o reflexo, mais ou menos direto, dos conflitos ou impasses que sacodem interiormente o seu autor. No limite, haveria uma espécie de monotonia interpretativa: qualquer que fosse a obra, tudo serviria nela para confirmar a grelha

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de leitura, sempre a mesma, com que seria abordada. Po-deríamos dizer, resumindo, que esta grelha de leitura é o que se chama, em termos freudianos, complexo paterno ou edipiano. Nesse caso, haveria sobretudo que procurar, sob a variedade da obra, a mesma e única verdade monótona que ela encerraria, como uma espécie de tesouro escondi-do. Segundo Gilles Deleuze, por exemplo, tratar-se-ia aqui de uma conceção infantil da literatura.2

2. Cf. Gilles Deleuze. Critique et Clinique . Paris: Éditions du Minuit, 1993, p. 12: “[…] é o eterno papá-mamã, a estrutura edipiana, que se projeta no real ou que se introjeta no imaginário. É um pai que se vai procurar no fim da viagem, como no interior do sonho, numa conceção infantil da literatura”.

Foi talvez contra essa redução da variedade à verdade que Lacan cunhou, já na última fase do seu ensino, o neologis-mo varidade (varité), ou seja, uma vez que a verdade nunca pode dizer-se por inteira, importa sobretudo apreender como ela se declina variamente, caso a caso.3 E no campo da arte, mais do que em qualquer outro, na medida em que estamos no domínio da criação por excelência, o cuidado em não reduzir a variedade múltipla, sempre diferente e singular, a uma qualquer verdade monótona, é tanto mais importante.

3. Cf. Jacques Lacan(1976-1977). L’Insu que sait de l ’une

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bévue s ’aile à mourre , inédito, lição de 19 de abril 1977.

De resto, já antes Lacan, homenageando a escritora Marguerite Duras, se dirigira aos psicanalistas, aconse-lhando-os a não brincar ao psicólogo em matéria de arte, uma vez que o artista sempre os precede, abrindo-lhes a via.4 É o que Fernando Pessoa, antecipando-se ao crítico futuro da sua obra, dizia nos seguintes termos: “devemos seguir o autor e não querer que ele nos siga”.5

4. Cf. Jacques Lacan. “Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein”. In: Skakespeare, Duras, Wedekind, Joyce . Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 125; 5. Cf. Fernando Pessoa. Páginas Íntimas e de Autointerpretação . Lisboa: Edições Ática, S/d, p. 116.

Pois bem! E quando é o próprio autor, como acontece no caso de Kafka, de forma explícita em muito daquilo que escreveu, a conduzir-nos por essa via tão cara aos psicana-listas: o conflito insanável entre um pai e um filho? Ele che-ga mesmo a dizer, nos seus Diários, que a leitura de Freud o acompanhou durante toda a escrita do “Veredicto”, uma novela onde o conflito entre ambos tem um desenlace trá-gico.6

6. Não é seguro, não obstante, como advertia recentemente Sarah Chiche, responder em espelho a

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este “convite” de Kafka, lendo demasiado depressa, como se estivesse aqui a resposta (edipiana) e não simplesmente um novo problema. (Cf. “En nous, les trois cercles de l ’enfer”, Le Magazine Littéraire , janeiro 2014, pp. 56-57.)

Mas não é só nesta novela que a relação problemática entre o pai e o filho é explicitamente evocada; ela é a cau-sa próxima de muitas das reflexões que Kafka nos deixou nos seus Diários (escritos de forma ininterrupta, se bem que intermitente, ao longo de mais de dez anos, de 1910 a 1923, um ano antes da sua morte), bem como de inúmeros outros textos, em particular a famosa “Carta ao pai”, es-crita em 1919. Além disso, é o próprio Kafka a dizer, tanto nos Diários como na “Carta ao pai”, que grande parte das suas criações (como A metamorfose ou O processo, por exem-plo) teria na difícil relação entre o pai e o filho parte da sua mola impulsionadora.7 Deve haver, por conseguinte, alguma verdade em tudo isto, se bem que ficcionada, como Kafka não deixa igualmente de pôr em destaque em certas passagens dos Diários, fazendo lembrar, avant la lettre, uma certa consonância da verdade com a ficção, tal como Lacan irá sublinhar mais tarde.8

7. Num ensaio sobre Kafka, Maurice Blanchot relembrava, a certa altura o seguinte: “[…] o debate com o pai é essencial e todos os novos apontamentos do Diário o confirmam, mostram que Kafka não se dissimula nada do que a psicanálise lhe poderia

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revelar”. (Cf. “Kafka et l ’exigence de L’oeuvre”. In: L’Espace Littéraire . Paris: Éditions Gallimard (Folio-Essais), 1999, p. 90; 8. Cf. Jacques Lacan. Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 19.

Dito isto, porém, devemos seguir o conselho de Lacan, frequentemente repetido, e não procurar compreender demasiado depressa. Mais do que propor uma interpreta-ção edipiana da relação conflituosa, melhor dizendo, devas-tadora, entre o pai e o filho, talvez seja porventura mais conveniente interrogar o caráter defensivo que uma tal re-lação possa significar. Ou seja, em que medida essa relação não é ainda um véu, isto é, um modo de velar algo, tanto no sentido de ocultá-lo, como de fazer-lhe o velório? E, nes-se caso, quem seria o morto? Dizendo de outro modo: não será o conflito entre o pai e o filho uma espécie de barreira última antes de outra coisa, digamos, ainda mais assusta-dora, dessa coisa de que algumas criações de Kafka, no ex-tremo do dizível, nos aproximam perigosamente?

Estamos, assim, perante um dilema: com o intuito de não compreender demasiado depressa, evitando o peri-go de reduzir o autor a uma chave interpretativa, seja ela psicanalítica ou outra,9 podemos incorrer no perigo inver-so, isto é, não tomar em consideração este ou aquele texto unicamente porque o autor faz aí algo muito parecido com uma abordagem “psicanalítica”, como acontece de forma clara na “Carta ao pai”. Para evitar o referido dilema, o que

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propomos aqui é reler essa carta, não como algo que nos dá uma resposta fechada, mas antes como uma questão em aberto, que nos interroga e merece ser interrogada por nós.

9. Segundo Walter Benjamin (Kafka, Hiena, 1994, p. 47), há dois modos de errar completamente na apreciação dos textos de Kafka: um consiste na interpretação natural (psicanalítica), o outro na sobrenatural (teológica).

ii. a “Carta ao pai”

Aparentemente, a “Carta ao pai”, de Kafka, parece des-mentir a afirmação lacaniana de que “uma carta chega sempre ao seu destino”,10 uma vez que ela não chegou efeti-vamente a ser enviada e, como tal, o pai também não pôde recebê-la de facto.

10. Cf. Jacques Lacan. Escritos , op. cit. , p. 45.

No essencial, essa carta é uma longa e detalhada res-posta a uma pergunta que o pai, certo dia, lhe teria feito. Kafka inicia a carta retomando a questão atribuída ao pai:

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perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Está assim dado o mote: como se este “medo” fosse a causa e o centro (móvel) que atrai e em torno do qual vai girando a argumentação de Kafka.11

11. Cf. Franz Kafka. A carta ao pai . Lisboa: Relógio D’Água, 2004.

É ele mesmo quem o afirma desde o princípio: a respos-ta que não foi capaz de dar no momento certo, não saben-do na altura o que dizer — justamente por causa do medo que sentia em relação ao pai — aparece agora sob a forma escrita. A escrita mostra assim, como diria Wittgentein, aquilo que não foi possível dizer de viva voz. O impossível de dizer transmuda-se em causa de desejo: o desejo de res-ponder por escrito à pergunta do pai.

Neste aspecto, a escrita constitui uma outra resposta ao “Veredicto” paterno, isto é, à condenação proferida por este no conto homônimo em relação ao filho: condeno-te a morreres afogado!12 Em vez de correr loucamente em direção à água, isto é, ao suicídio, tal como acontece com o protagonista desse conto, que corre como se fosse movido unicamente pela força desta frase imperativa e condenatória do pai, Kafka experimenta aqui uma outra solução: a escrita como resposta não suicida, poderíamos dizer, parafraseando Enrique Vila-Matas, tal como este

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parafraseia Pessoa.13

12. Cf. Franz Kafka. “O veredicto”. In: O covil . Lisboa: Edições Europa-América, S/d, pp. 82-91; 13. “Viajar, perder suicídios: perdê-los todos. Viajar até que se esgotem no livro as nobres opções de morte que há”. (Cf. Suicídios exemplares . Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p. 8.)

Se bem que a “Carta ao pai” seja longa e difícil de resu-mir, é possível, em meu entender, destacar nela pelo me-nos duas grandes vertentes, separadas e unidas ao mes-mo tempo por um eixo comum. Na sua maior parte, ela é composta por uma série de recriminações que Kafka di-rige ao pai, como se este fosse o grande culpado dos seus problemas, em particular os que dizem respeito ao relacio-namento com os outros, nomeadamente com as mulheres da sua vida, como Felice Bauer ou Julie Wohryzek, entre outras — acerca desta última o seu pai terá dito, quando teve conhecimento do namoro entre ela e o filho, que seria preferível este ir a um bordel do que desposar a primeira que aparecesse —, bem como da imagem de si próprio, do seu corpo ou até mesmo da relação, cada vez menos pacífi-ca, com a escrita, como é de resto evidente numa das últi-mas notas dos Diários, escrita em 1923: “Sempre com mais medo de escrever. É incompreensível”.14 Mesmo se Kafka modera por vezes a crítica ao pai, reconhecendo que tal-vez ele não seja o único culpado e que uma parte da culpa

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resida em si mesmo, o tom recriminatório é o que domina substancialmente em grande parte do texto nesta primei-ra vertente. De tal forma que aquilo que sobressai é a ideia de que o pai funciona, para Kafka, essencialmente como um sintoma; como algo, digamos, que faz sintoma, que não o deixa dormir (e quanto ele se queixa das insónias que o atormentam!) nem, quando acorda, viver em paz.15

14. Franz Kafka. Diários . Lisboa: Difel, S/d, p. 376; 15. “O pai é um sintoma (symptôme), ou um sinthoma (sinthome), como quiserem” (Cf. Jacques Lacan (1975-1976). Le Séminaire , Livre XXIII, Le Sinthome . Paris: Éditions du Seuil, 2005, p. 19.

Dizer que o pai é um sintoma pode significar pelo me-nos duas coisas diferentes: ou que o sintoma é ainda, em última análise, um dos nomes do pai (tal como este foi sen-do pluralizado no ensino de Lacan) ou, pelo contrário, que o pai é somente um dos nomes do sintoma. Ou seja: o pai é apenas um caso particular de uma função mais geral. A relação do sujeito com o (seu) sintoma é mais básica, mais primordial, sendo uma espécie de infraestrutura, como diria Marx, relativamente à qual o pai é da ordem da supe-restrutura. O que pode enganar é que esta superestrutura é, digamos, o que primeiro salta à vista, como acontece em Kafka; ou seja, aquilo que vemos — ou lemos — em primei-ro lugar é o que, porventura, é secundário.

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Porém, há uma dobra, uma viragem no texto que é pre-ciso ter em conta. É já quase no fim da “Carta ao pai”. Como se recebesse do Outro a sua própria mensagem de forma invertida, como diria Lacan, Kafka escreve o seguinte: “Ao teres uma panorâmica geral da justificação do medo que tenho de ti, podias responder o seguinte”.16 Aquilo que se segue é uma objeção, ponto por ponto, ao raciocínio que Kafka expusera em detalhe ao longo da carta. Uma objeção que desemboca no seguinte: “A isso respondo que, antes de mais”, escreve Kafka, colocando-se de novo no papel de emissor, “toda esta resposta […] não parte de ti mas de mim”.17

16. KAKFA, op. cit . , p. 72; 17. Ibidem , p. 74.

Não se trata aqui apenas, em meu entender, de um sim-ples pormenor, mas de uma verdadeira placa giratória. Na verdade, esse pai, a quem o autor endereça as suas recri-minações, a quem dá a oportunidade de objetar, a quem responde de novo, não será finalmente um sintoma, êxti-mo, de si mesmo, isto é, algo que é a sua coisa mais familiar (íntima) e estranha ao mesmo tempo?18 Talvez por isso a carta — que foi escrita e reescrita — não tenha sido nunca enviada, uma vez que o remetente coincidia, afinal, com o seu destinatário. O pai é um outro nome do sintoma--Kafka.

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18. Sirvo-me aqui de um termo (“extimité”) que Lacan desenvolveu no Seminário A ética da psicanálise . Cf. Jacques Lacan (1959-1960). Le Séminaire, Livre VII, L’éthique de la psychanalyse . Paris: Éditions du Seuil, 1986, p. 167.

Há um sonho de Kafka, aliás, dos muitos que ele ano-tou nos seus Diários, que pode eventualmente ajudar-nos a precisar ainda melhor o que está em causa.

Sonhei há pouco tempo: vivíamos no Graben, perto do Café Continental. Um regimento virou da Herrengasse a caminho da estação. O meu pai: ‘Eis uma coisa para se contemplar, en-quanto se pode’; e arroja-se para o peitoril […] e com os braços abertos estendeu-se lá fora na borda larga mas muito incli-nada da janela. Eu agarrei-o por duas casas por onde passa o cinto do roupão. Cheio de maldade, ele ainda se debruça mais, eu faço toda a força para o agarrar. Penso em como seria bom se conseguisse amarrar os pés com cordas que se segurassem a qualquer coisa para que o meu pai não me pu-desse arrastar. Mas para fazer isso eu teria de largar o meu pai, pelo menos durante uns instantes, e isso é impossível. O sono — o meu sono em especial — não consegue suportar toda esta tensão e eu acordo.19

19. KAFKA, op.cit. , p. 314.

Falando à maneira de Hamlet, poderíamos formular o

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impasse kafkiano com que sonho nos confronta do seguin-te modo: largar ou não largar o pai? Ou ainda: ser ou não ser… largado? O facto de o sonho desembocar numa tensão insuportável, que faz acordar o sonhador, parece consti-tuir a prova de que ele se aproxima de algo real, no sentido lacaniano do termo, isto é, impossível (e o termo é de Ka-fka), como se o desejo de largar o pai, deixando-o à sua sor-te, ficasse impossivelmente preso num outro desejo: o de não o largar. Mas por quê? O que leva Kafka a queixar-se tanto do pai, como testemunha em particular a carta que lhe é dirigida, e, ao mesmo tempo, considerar que seria impos-sível largá-lo? Dizendo de outro modo: o que leva Kafka a guardar para si a carta que deveria ter sido enviada ao pai, ou seja, a não largar da mão essa carta(da)?

Num texto escrito a 18 de dezembro de 1910, Kafka pro-curou esclarecer a difícil relação que mantinha com as cartas,20 tanto as que enviava quanto as que recebia, nos seguintes termos:

[...] se não fosse absolutamente certo que a razão por que dei-xo cartas […] sem as abrir durante um tempo é apenas fraque-za e covardia, que hesitaria tanto em abrir uma carta como hesitaria em abrir a porta de um quarto onde um homem estivesse, talvez já impaciente à minha espera, poderia expli-car-se muito melhor que era por profundidade que deixava ficar as cartas. Ou seja, supondo que sou um homem profun-do, tenho então de tentar estender o mais possível tudo o que

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se relacione com a carta, portanto, tenho de a abrir devagar, lê-la devagar e várias vezes, pensar durante muito tempo, fa-zer uma cópia a limpo depois de muitos rascunhos, e final-mente hesitar ainda em pô-la no correio. Tudo isto posso eu fazer, só que receber de repente uma carta não se pode evitar. Ora é precisamente isto que eu atraso com um artifício, não a abro durante muito tempo, ela está em cima da mesa, à minha frente, oferece-se a mim continuamente, recebo-a continua-mente, mas não a aceito.21

20. Ele que é um homem das cartas em muitos sentidos: não só porque escreveu a “Carta ao pai”, mas também porque muito daquilo que se passa entre ele e as mulheres da sua vida (Felice Bauer, Milena…) acontece através das cartas que escreve. Vale a pena relembrar aqui o equívoco significante entre carta e letra [ lettre], a que Lacan, no texto inaugural dos Escritos, deu grande realce. Tendo a letra uma importância assinalável para ele, talvez mais do que enviar ou receber as cartas, seja o facto de escrevê-las que conte para Kafka; 21. KAFKA, op.cit . , p. 22.

Não só estamos perante uma antecipação do que vai acontecer mais tarde relativamente à carta (não enviada) ao pai — talvez porque o próprio remetente, Kafka, não a queria receber, sabendo que era ele o seu verdadeiro desti-natário, “o homem impaciente atrás da porta”22 —, como, ao mesmo tempo, perante uma espécie de “instinto de defesa”, como Kafka dirá a 31 de janeiro de 1922, numa passagem dos Diários: “[…] há em mim um instinto de defesa que não permite que eu tenha o mais pequeno grau de bem-estar

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duradouro e despedaça irremediavelmente a cama de ca-sal, por exemplo, mesmo antes de ela estar pronta”.23

22. De tal forma o tema da (im)paciência obceca Kafka que ele chega a dizer que todos os erros humanos são impaciência e que foi devido a esta que fomos expulsos (do paraíso) e é por causa dela que não voltamos atrás. (Cf. Considerações sobre pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho . Lisboa: Hiena Editora, 1994, pp. 11-12). Não será esta, porventura, uma das formas de ler o “gesto” kafkiano — sobre o qual Walter Benjamin dizia que era impossível de iludir por todo aquele que se ocupasse de Kafka — ao deixar em testamento a vontade expressa de que a sua obra, ou grande parte dela, fosse destruída? Um gesto de impaciência, uma “interrupção prematura”, como escreve Kafka? (Cf. Considerações…, op.cit . , p. 11); 23. Franz Kafka, op.cit . , p. 365.

Instinto de defesa em relação a quê? O que ficaria des-nudado ou se revelaria finalmente se, porventura, o filho tivesse largado o pai, ao contrário do que acontece no so-nho?

No comentário a um sonho analisado por Freud (o so-nho do pai que estava morto e não o sabia, segundo o dese-jo do filho), Lacan diz o seguinte:

Aqui o desejo de morte ganha todo o seu sentido. É o desejo de não acordar — de não acordar para a mensagem, a men-sagem mais secreta que o sonho transporta, e que é a de que

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o sujeito, por meio da morte do seu pai, é daí em diante con-frontado à morte, de que fora protegido até aí pela presença do pai. Confrontado à morte, quer dizer a quê? — a este x que está ligado à função do pai, que está presente nesta dor de existir, que é o ponto chave em torno do qual gira tudo o que Freud descobriu no complexo de édipo, a saber, a significa-ção da castração.24

24. Jacques Lacan (1958-1959)., Le séminaire, Livre VI, Le désir et son interprétation . Paris: Éditions de la Martinière et le Champ Freudien Éditeur, 2013, p. 122.

Largando o pai, de quem se queixa, a quem recrimi-na, Kafka teria de confrontar-se, sozinho e sem álibis, não apenas com sua própria morte (a morte que se abate, com efeito, precocemente sobre ele, apenas com 41 anos), mas, antes disso, com suas dificuldades mais básicas ao nível do real do gozo, não só o gozo próprio, de um corpo que se rebela, mas também do difícil, se não mesmo impossível, relacionamento com o Outro sexo. Como escrevia Kafka em 1916, no dia 6 de julho: “Impossível viver com F. Into-lerável viver com alguém. Não lamento isto; lamento a mi-nha impossibilidade de viver sozinho”.25 Ou, em 10 de abril de 1922:

Quando era rapaz eu desconhecia e não estava interessado em assuntos sexuais (e assim teria ficado durante muito tem-

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po se eles não tivessem sido lançados sobre mim) tal como hoje estou, digamos, desinteressado pela teoria da relativida-de.26

25. KAFKA, Diários , op.cit . , p. 322; 26. Ibidem , p. 372.

A relação ambivalente de Kafka com o pai está bem mani-festa na seguinte passagem:

A escrever cartas no quarto dos meus pais — as formas que o meu declínio assume são inconcebíveis! Este pensamento ultimamente, que em criança fui derrotado pelo meu pai e que por ambição nunca fui capaz de sair do campo de batalha durante todos estes anos apesar das contínuas derrotas que sofro…27

27. Ibidem , p. 352.

Por que não abandona ele o campo de batalha? Não se dará o caso de estar não apenas vencido (continuamente), mas já morto e não o saber? Eis o que parece confirmar o próprio Kafka, como se tivesse atravessado a sua fantasia fundamental, a 23 de janeiro de 1922: “A minha vida é o he-sitar antes do nascimento”. Tal como as personagens dos seus romances estão condenadas, por exemplo, a errar em vão, a transformar-se em estranhos insetos ou a morrer

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como cães,28 o próprio Kafka parece condenado a não ter nascido. Não se trata apenas de ocupar o lugar do morto ou dos mortos (efetivamente os seus dois irmãos rapazes morreram muito cedo, queixando-se Kafka, por vezes, de que todo o peso paterno caiu por essa razão unicamente sobre ele), mas, mais do que isso, de aproximar-se de uma zona onde, como diz Édipo em Colono, seria preferível não ter nascido.29 E, nesse caso, toda a obra é vã, como nos lem-bra o testamento de Kafka para que a mesma fosse destru-ída.

28. Aliás, segundo a tese de José Martinho, Kafka é, verdadeiramente, um “homem dos cães”: “Pelo que sabemos da vida e da obra é quase certo que ele se sentiu como um cão na sua família, que na sociedade foi chamado ‘cão judeu’, que encarou os seus estudos em direito como as Investigações de um cão (título de um dos seus últimos livros), e que pensou que o seu ‘longo combate’ numa existência de mentira e subversão apenas se podia realizar num mundo de cão”. (Cf. José Martinho. “Como se esta vergonha devesse sobreviver-lhe”. In: Direito e Psicanálise, Interseções a partir de “O processo” de Kafka . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp 247-248); 29. “Não ter nascido — supera qualquer tipo de argumento e regressar, bem depressa, lá para o seio original, após ter vindo à luz, é o que mais se lhe aproxima”. (Cf. Sófocles. Édipo em Colono . Coimbra: Minerva Editora, 1996, p. 120.)

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iii. suCesso ou fraCasso

É uma pergunta de Kafka, em jeito de balanço: o ba-lanço de uma vida. A 17 de janeiro de 1922, ele escrevia o seguinte:

Um momento de pensamento: resigna-te (aprende, quaren-tão) a ficar contente no momento (sim, já foste capaz de o fazer). Sim, no momento, o terrível momento, não é terrível, o medo que tens do futuro é que o faz assim. E também, olha para trás, para ele. Que fizeste como dom do teu sexo? É um fracasso, no fim é tudo o que vão dizer. Mas poderia ter sido facilmente um sucesso. Uma ninharia, de facto tão pequena que não se via, decidiu entre o fracasso e o sucesso. Porque estás surpreendido? Foi assim nas grandes batalhas da histó-ria do mundo. Ninharias decidem sobre ninharias.30

30. KAFKA, Diários , op.cit . , p. 355.

Estaria, pela minha parte, tentado a dizer, em jeito de conclusão, que o real é isso: ninharias decidindo ninha-rias. Ninharias sem lei. Acasos que fazem série, que nos tramam. E é por isso, talvez, que, em certa medida, somos todos kafkianos. Todos tramados, embora cada qual à sua

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maneira, pelos acasos de um real sem lei.

E não será, finalmente, porque se defendem desta au-sência de lei (deste nonsense do real) que muitas persona-gens kafkianas, incluindo o próprio Kafka, não param de se torturar a si mesmas ou de gravar na própria carne, como acontece por exemplo na “Colónia penal”, uma lei insensata e que parece ter sido feita à medida de cada um? Ou, como escrevia recentemente Georges-Arthur Goldsch-midt, sendo cada um, incluindo o leitor, capturado na sua própria armadilha, a saber, a tentação obstinada do senti-do aí onde há apenas acasos do real?31

31. Georges-Arthur Goldschmidt. “Tout un chacun pris à son propre piège”, Magazine Littéraire , op.cit. , pp. 74-75.

Deste ponto de vista, não se trata de compreender a verdade de Kafka, muito menos da obra, por meio da sua relação problemática com o pai, mesmo se podemos fa-cilmente cair na armadilha, mas antes ver nesta relação o nome e o modo de uma “defesa contra o real sem lei e sem sentido”.32 Um real de que as maiores criações de Kafka se aproximaram de tal modo que, para nós, elas se tornaram no seu nome próprio: o nome próprio de um certo real.

32. Cf. Jacques-Alain Miller. “Un réel pour le XXIe Siècle”. In: Un réel pour le XXIe siècle . Scilicet . Paris:

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École de la Cause Freudienne, 2013. p. 26.

É por isso que, muitas vezes, quando nos falta um nome ajustado para aquilo que queremos nomear, mas que não conseguimos, nos ocorre dizer: kafkiano. Como se o real, um certo real, se tivesse tornado kafkiano por antonomá-sia. Não só por culpa do “medo” que o filho dizia sentir em relação ao pai, na carta que lhe escreveu, mas essen-cialmente graças ao talento por meio do qual soube trans-formar tudo isso em algo que permanece para lá dele (e apesar dele) e, sobretudo, para além do pai. Neste aspeto, somos todos herdeiros e devedores de uma traição: o gesto de Max Brod, que decidiu não destruir a obra contra a von-tade expressa do seu melhor amigo.

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A QUEM PERTENCE KAFKA?

Judith Butler

Retórica | Universidade da Califórnia — BerkeleyTradução do inglês de Tomaz Amorim Izabel

Publicado originalmente em:  <http://www.lrb.co.uk/v33/n05/judith-butler/who-owns-kafka>, Março de 2011.

Resumo: O artigo discute a questão do pertencimento cultu-ral de Franz Kafka a partir de uma questão jurídica concreta: a disputa pelos espólios do autor que se desenrola principal-mente entre a Biblioteca Nacional de Israel e o Arquivo Lite-rário de Marbach, na Alemanha. Butler busca na literatura de Kafka, através da análise de textos biográficos e narrativas curtas do autor, indícios sobre sua relação com o sionismo, a língua alemã e as (im)possibilidades do deslocamento e da comunicação.

Palavras-Chave: Franz Kafka; Sionismo; pertença cultural.

Abstract: The article discusses Franz Kafka’s cultural belon-ging from a specific legal issue: the dispute by the author’s spoils which unfolds mainly between the Library  Israel and

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the National Literature Archive Marbach, Germany. Butler seeks at Kafka’s literature, by analyzing his short narratives and biographical texts, some evidence on his Zionism, the German language and the (im) possibilities of displacement and communication.

Keywords: Franz Kafka; Zionism; cultural belonging.

Um processo em andamento em Tel Aviv foi estabeleci-do para determinar quem será o gestor das muitas caixas de escritos de Kafka, incluindo os primeiros rascunhos de suas obras publicadas, atualmente armazenadas em Zuri-que e em Tel Aviv. Como é sabido, Kafka deixou sua obra, publicada e não publicada, para Max Brod, junto a instru-ções explícitas de que o trabalho fosse destruído na morte de Kafka. De fato, o próprio Kafka aparentemente já havia queimado muito do seu trabalho. Brod recusou-se a hon-rar o pedido, embora não tenha publicado tudo o que lhe foi legado. Ele publicou os romances O processo, O castelo e Amerika entre 1925 e 1927. Em 1935, publicou as obras es-colhidas, mas então guardou o restante em malas, talvez honrando o desejo de Kafka de não publicá-lo, mas certa-mente recusando o desejo de tê-la destruída. O compro-

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misso de Brod consigo mesmo acarretou consequências e, em algum sentido, nós agora estamos vivendo as conse--quências da não resolução do legado de Kafka.

Brod fugiu da Europa para a Palestina em 1939 e, ape-sar de muitos dos manuscritos em sua custódia terem terminado na Bodleian Library em Oxford, ele manteve um número substancial deles até sua morte em 1968. Foi para sua secretária Esther Hoffe, com quem ele aparente-mente teve um relacionamento amoroso, que Brod legou os manuscritos, e ela manteve a maior parte deles até sua morte em 2007, com a idade de 101 anos. No geral, Esther fez como Max, mantendo as várias caixas, armazenando--as em cofres, mas em 1988 ela vendeu o manuscrito de O processo  por dois milhões, quando se tornou então claro que era possível obter um grande lucro a partir de Kafka. O que ninguém poderia ter previsto, no entanto, é que um processo ocorreria depois da morte de Esther, no qual suas filhas, Eva e Ruth, reivindicariam que ninguém preci-sa inventariar os materiais e que o valor dos manuscritos deveria ser determinado por seu peso — literalmente pelo quanto eles pesassem. Como um dos advogados represen-tantes do patrimônio de Hoffe explicou:

Se nós conseguirmos fechar um acordo, o material será ofe-recido para venda como uma entidade única, em um pacote. Ele será vendido por peso… Eles dirão: “Tem um quilo de pa-péis aqui, o licitante mais alto poderá se aproximar e ver o

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que há dentro”. A Biblioteca Nacional [de Israel] pode entrar na fila e fazer uma oferta também.

Como Kafka tornou-se uma mercadoria — na realida-de um novo padrão de excelência — é uma questão im-portante, e para a qual eu retornarei. Nós todos estamos muito familiarizados com a maneira com a qual o valor de um trabalho literário e acadêmico vem atualmente sendo estabelecido através de meios quantitativos, mas eu não tenho certeza se alguém já propôs que nós simplesmente pesemos nosso trabalho em balanças. Mas para começar, consideremos quais são as partes do processo e as várias alegações que elas fazem. Primeiro, há a Biblioteca Nacio-nal de Israel, que alega que o testamento de Esther Hoffe deveria ser posto de lado, já que Kafka não pertence a essas mulheres, mas ao “bem comum” ou então ao povo judeu, que às vezes parecem se confundir. David Blumberg, pre-sidente do conselho dos diretores da Biblioteca Nacional, coloca o caso da seguinte maneira:

A biblioteca não pretende desistir dos ativos  pertencentes ao povo judeu… Pois como não se trata de uma instituição comercial e os itens mantidos lá são acessíveis a todos sem custo, a biblioteca continuará com seus esforços em obter a transferência dos manuscritos que foram encontrados.

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É interessante considerar como os escritos de Kafka podem de uma só vez constituir um “ativo” do povo judeu e ao mesmo tempo não ter nada a ver com atividades co-merciais. Oren Weinberg, o diretor executivo da Biblioteca Nacional, fez uma observação semelhante mais recente-mente: “A biblioteca olha com preocupação a nova posição expressa pelos executores, que querem misturar conside-rações financeiras com a decisão sobre para quem o patri-mônio será dado. Revelar os tesouros, que estão escondi-dos em cofres há décadas, servirá ao interesse público, mas a posição dos executores é passível de minar essa medida, por razões que não irão beneficiar nem Israel, nem o mun-do”.

Então parece que deveríamos compreender a obra de Kafka como um “ativo” do povo judeu, embora não ex-clusivamente financeiro. Se Kafka é reivindicado primei-ramente como um escritor judeu, ele vem a pertencer primeiramente ao povo judeu, e sua escrita aos ativos cul-turais do povo judeu. Esta alegação, já controversa (pois ela afeta outros modos de pertencimento ou, mais, não--pertencimento), torna-se ainda mais quando percebemos que o caso legal parte do pressuposto de que é o Estado de Israel que representa o povo judeu. Esta pode parecer uma alegação meramente descritiva, mas ela carrega consigo consequências extraordinárias e contraditórias. Primei-ro, a alegação ultrapassa a distinção entre judeus que são

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sionistas e judeus que não são, por exemplo, judeus na di-áspora para quem a terra natal não é um lugar de retorno inevitável ou um destino final. Segundo, a alegação de que é Israel que representa o povo judeu tem também consequ-ências domésticas. De fato, o problema de Israel de como melhor alcançar e manter uma maioria demográfica sobre sua população não judia, agora estimada em mais de vinte por cento da população dentro de suas fronteiras existen-tes, baseia-se no fato de que Israel não é um estado estrita-mente judeu e que, se é para representar sua população de maneira justa ou igualitária, ele precisa representar tanto cidadãos judeus quanto não judeus. A afirmação de que Is-rael representa o povo judeu nega assim o vasto número de judeus fora de Israel que não são representados por ele, tanto legal quanto politicamente, mas também os palesti-nos e outros cidadãos não judeus do estado. A posição da Biblioteca Nacional parte de uma concepção da nação de Israel que lança a população judaica fora de seu território como vivendo no Galut, em um estado de exílio e desalen-to que deveria ser revertido, e pode ser revertido apenas através de um retorno a Israel. O que fica subentendido é que todos os judeus e ativos culturais judaicos — seja lá o que isto possa significar — fora de Israel pertencem devi-damente a Israel em algum momento, já que Israel repre-senta não apenas todos os judeus, mas toda a significante produção cultural judaica. Eu mencionarei simplesmente que existe uma grande quantidade de comentários inte-

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ressantes no problema do Galut por acadêmicos como Am-non Raz-Krakotzkin, que em seu extraordinário trabalho sobre exílio e soberania, argumenta que o exílico é caracte-rístico do judaísmo e até da judaicidade, e que o sionismo erra ao pensar que o exílio precisa ser superado através da evocação da Lei do Retorno, ou, na verdade, a noção popu-lar de “direito de nascimento”. O exílio pode ser, na verda-de, um ponto de partida para pensar sobre a coabitação e para trazer valores diaspóricos de volta àquela região. Este foi também, sem dúvida, o argumento de Edward Said quando, em Freud e o não-europeu, ele invocou as histórias exílicas tanto de judeus quanto de palestinos para servir de base para um novo regime na Palestina.

O Galut não é, portanto, um reino caído que necessita de redenção, muito embora seja precisamente o que as for-mas culturais e estatais do sionismo procurem ultrapassar através da extensão dos direitos de retorno a todos aqueles nascidos de mães judias — e agora através da reivindica-ção de que trabalhos significativos daqueles que por aca-so são judeus são capital cultural judaico que, como tais, pertencem por direito ao Estado israelense. De fato, se o argumento da Biblioteca Nacional for bem sucedido, en-tão a reivindicação representativa do Estado de Israel seria grandemente expandida. Como Antony Lerman colocou no The Guardian,

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[...] se a Biblioteca Nacional reivindica o legado de Kafka para o Estado judaico, ela, e as instituições semelhantes em Isra-el, podem passar a reivindicar praticamente qualquer sina-goga, obra de arte, manuscrito ou objeto ritual valioso pré--Holocausto existentes na Europa. Mas nem Israel como um estado, nem qualquer estado ou instituição pública têm esse direito. (E embora seja verdade que Kafka é uma figura chave do passado cultural judaico, como um dos autores mais sig-nificativos do mundo, do qual os temas encontram ecos em muitos países e culturas, a atitude patrimonial de Israel está certamente fora de lugar.)

Embora Lerman lamente a “subserviência implícita de comunidades judaicas europeias a Israel”, o problema tem implicações globais mais amplas: se a diáspora é concebi-da como o reino caído, não redimido, então toda a produ-ção cultural por aqueles que são discutivelmente judeus de acordo com as leis rabínicas que governam a Lei do Retorno estará sujeita à apropriação legal póstuma, já que o traba-lho é considerado um “ativo”. E isto me leva ao meu tercei-ro ponto, a saber, que onde há ativos, há também passivos. Então, não é suficiente que uma pessoa ou uma obra sejam judaicas; elas precisam ser judaicas em uma maneira que possam ser capitalizadas pelo Estado de Israel enquanto ele luta correntemente em muitas frentes contra a deslegi-timação cultural. Um ativo, imagina-se, é algo que amplia a reputação mundial de Israel, que muitos concordariam, precisa de reparos: a aposta é que a reputação mundial de

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Kafka irá se tornar a reputação mundial de Israel. Mas um passivo, e um passivo judaico, é alguém de quem a pessoa ou o trabalho, discutivelmente judaico, constitui um défi-cit de alguma maneira; considere, por exemplo, os esforços recentes para perseguir organizações de direitos humanos israelenses, como B’tselem, por documentar publicamen-te o número de casualidades civis na guerra contra Gaza. Talvez Kafka possa ser instrumentalizado para superar a perda de posição que Israel sofreu em virtude de sua contí-nua ocupação ilegal da terra palestina. Importa que Israel tenha posse da obra, mas também que a obra seja alojada dentro do território estabelecido do estado, de forma que ninguém que queira ver ou estudar a obra precise cruzar a fronteira de Israel e lidar com suas instituições culturais. E isso também é problemático, não apenas porque cidadãos de muitos países e não cidadãos dentro dos Territórios Ocupados não têm permissão de cruzar aquela fronteira, mas também porque muitos artistas, performers e inte-lectuais estão atualmente honrando um boicote cultural e acadêmico, se recusando a comparecer em Israel a me-nos que as instituições que os convidam se pronunciem de maneira forte e sustentada em oposição à ocupação. O processo de Kafka não apenas acontece com esse pano de fundo, mas intervém ativamente em sua reconfiguração: se a Biblioteca Nacional de Jerusalém ganhar o processo, alguém que queira ter acesso aos materiais não publicados e não vistos de Franz Kafka terá de desafiar o boicote e terá

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de reconhecer implicitamente o direito do Estado de Isra-el de se apropriar de bens culturais, dos quais o alto valor assume-se que será convertido contagiosamente em alto valor do próprio Estado de Israel. Os pobres ombros de Ka-fka conseguem suportar tal fardo? Ele pode mesmo ajudar o Estado israelense a superar a má fama da ocupação?

É estranho que Israel esteja confiando nos restos frágeis de Franz Kafka para estabelecer sua reivindicação cultural dos trabalhos que são produzidos por aquela classe de pes-soas que nós poderíamos chamar de “indiscutivelmente judeus”. E provavelmente também interessa que os adver-sários aqui são as filhas da então amante de Max Brod, um sionista dedicado, cujos interesses políticos parecem estar vastamente ofuscados pela perspectiva de ganho financei-ro. A busca delas por uma saída lucrativa parece não co-nhecer fronteiras nacionais e nem honrar qualquer alega-ção especificamente nacional de pertencimento — como o próprio Capitalismo. Na verdade, o Arquivo Literário Ale-mão provavelmente estaria em melhor posição para pagar as somas imaginadas por essas irmãs. Em um movimento desesperado, o conselho israelense da Biblioteca Nacional solicitou a derrubada das alegações de posse das irmãs lan-çando mão de uma carta de Brod acusando sua parceira de desrespeitá-lo, e insistindo que ele preferiria deixar esses materiais para alguém que o levasse em consideração. Já que a carta não nomeia tal pessoa, deve ser difícil susten-

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tar a alegação de que ela sobrepõe a estipulação explícita do testamento. Nós veremos se esse documento de uma querela entre amantes sustenta-se na corte.

O adversário mais poderoso da Biblioteca Nacional é o Arquivo Alemão de Literatura em Marbach, que, inte-ressantemente, contratou advogados israelenses para os propósitos do processo. Presume-se que, com aconselha-mento jurídico israelense, isso não toma a aparência de uma luta alemã-israelense, e assim não faz lembrar aquele outro processo — o de Eichmann em 1961 — no qual o juiz subitamente irrompeu do hebraico ao alemão para dirigir--se a Eichmann diretamente. Aquele momento causou uma controvérsia sobre a questão de qual língua pertence a uma corte jurídica israelense, e se Eichmann deveria ter recebido uma tal cortesia. Muitos acadêmicos alemães e jornais argumentaram recentemente que Marbach é o lar apropriado para os novos escritos descobertos de Kafka. Marbach, de acordo com eles, já possui a maior coleção de manuscritos de Kafka no mundo, incluindo o manuscrito de O processo, que comprou por 3,5 milhões de marcos ale-mães na Sotheby’s1 em 1988. Esses acadêmicos argumen-tam contra uma maior fragmentação da obra, e apontam para a capacidade superior das instalações de Marbach de conservar esses materiais. Parece haver uma noção de que a Alemanha poderia ser, em todos os aspectos, uma loca-lização mais segura. Mas é claro que outra parte do argu-

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mento é de que Kafka pertence à literatura alemã e, espe-cificamente, à língua alemã. E embora não haja nenhuma tentativa de dizer que ele pertence à Alemanha como um dos seus cidadãos passados ou virtuais, parece que a ger-manidade aqui transcende a história da cidadania e gira em torno da questão das competências e realizações lin-guísticas. O argumento do Arquivo Alemão de Literatura apaga a importância do multilinguismo para a formação de Kafka e para sua escrita. (De fato, teríamos as parábolas sobre Babel sem a pressuposição de um multilinguismo? A comunicação vacilaria tão insistentemente em suas obras sem o pano de fundo do tcheco, iídiche e alemão conver-gindo no mundo de Kafka?)

1. Sotheby’s é uma corporação multinacional especializada em leilões de obras de arte, jóias e colecionáveis. (N. do. T.)

Focando apenas no quão perfeitamente alemã é a sua linguagem, o arquivo se junta a uma longa e curiosa tra-dição que preza o alemão “puro” de Kafka. George Steiner louvou “a translucidez do alemão de Kafka, sua quietu-de inoxidável”, observando que seu “vocabulário e sinta-xe são da mais extrema abstenção ao desperdício”. John Updike referiu-se à “comovente pureza” da prosa de Ka-fka. Hannah Arendt também escreveu que sua obra “fala a mais pura prosa alemã do século”. Então, embora Kafka

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tenha certamente sido tcheco, parece que este fato é su-plantado por sua escrita em alemão, que é aparentemente o mais puro — ou, deveríamos dizer, purificado? Dada a história da valorização da “pureza” no nacionalismo ale-mão, incluindo o Nacional Socialismo, é curioso que Kafka seja colocado diante dessa norma rigorosa e exclusiva. De quais maneiras o multilinguismo de Kafka e suas origens tchecas têm de ser “purificadas” para que ele possa ser co-locado como um alemão puro? Será que o que há de mais extraordinário ou admirável nele seja que tenha purifica-do a si mesmo, exemplificando as capacidades de autopu-rificação do Auslander?

É interessante que estes argumentos sobre o alemão de Kafka estejam recirculando agora, bem quando Angela Merkel anunciou o fracasso do multiculturalismo na Ale-manha e somou, como evidência adicional, a alegação de que os novos imigrantes, inclusive seus “filhos e netos”, fracassam em falar alemão corretamente. Ela advertiu pu-blicamente essas comunidades a livrar-se de qualquer so-taque e a “integrar-se” nas normas da comunidade linguís-tica alemã (uma queixa rapidamente rebatida por Jürgen Habermas). Com certeza, Kafka poderia ser o modelo do imigrante bem-sucedido, embora ele tenha vivido apenas brevemente em Berlim e, claramente, não tenha se iden-tificado nem mesmo com os judeus alemães. Se os novos trabalhos de Kafka forem recrutados para o arquivo em

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Marbach, então a Alemanha terá fortificado seu esforço de transferir seu nacionalismo para o nível da língua. A inclusão de Kafka acontece pela mesma razão que as imi-grações menos bem faladas são denunciadas e vistas com resistência. É possível que o frágil Kafka possa tornar-se norma de integração europeia?

Nós encontramos na correspondência de Kafka com sua amante Felice Bauer, uma berlinense, que ela corrigia constantemente o seu alemão, o que sugere que ele não está completamente à vontade na segunda língua. E sua aman-te tardia, Milena Jesenská, que também foi a tradutora de suas obras para o tcheco, ensina-lhe constantemente fra-ses em tcheco que não sabe nem como escrever, nem como pronunciar, sugerindo que o tcheco também é algo como uma segunda língua. Em 1911, ele vai para o teatro iídiche e entende o que é dito, mas o iídiche não é uma língua que ele encontra muito frequentemente em sua família ou vida cotidiana. O iídiche permanece como uma importação do leste atraente e estranha. Então, existe aqui uma primei-ra língua? E, é possível argumentar que mesmo o alemão formal no qual Kafka escreve — que Arendt chamou de o alemão “mais puro” — carrega sinais de alguém que entra na língua pelo lado de fora? Este foi o argumento do ensaio de Deleuze e Guattari “Kafka: Por uma literatura menor”.

Realmente, esta questão parece antiga, uma questão que o próprio Kafka invoca em uma carta para Felice em

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outubro de 1916 com referência aos ensaios de Max Brod sobre escritores judeus, “Nossos escritores e a comunida-de”, publicado no Der Jude.

E, por acaso, você poderia me dizer o que eu realmente sou? Na última Neue Rundschau, a Metamorfose é mencionada e re-jeitada com argumentos sensatos, e então o escritor diz: “Há algo de fundamentalmente alemão sobre a arte narrativa de Kafka”. No artigo de Max Brod, por outro lado: “As histórias de K estão entre os documentos mais tipicamente judeus de nosso tempo”.

“Um caso difícil”, escreve Kafka, “Serei eu um cavaleiro circense sobre dois cavalos? Ai, não sou nenhum cavaleiro, estou é prostrado no chão”.

Consideremos mais alguns escritos de Kafka — suas cartas, algumas entradas dos diários, duas parábolas e uma história — para iluminar a questão de seu pertenci-mento, seus pontos de vista sobre o sionismo e seu jeito mais geral de pensar sobre como alcançar (ou falhar em alcançar) um destino. Já que estamos preocupados em ava-liar os direitos de propriedade reivindicados no processo, provavelmente não importa se Kafka era ou não sionista ou se ele planejou seriamente mudar-se para a Palestina. O fato é que Brod era sionista e trouxe a obra de Kafka com ele, embora o próprio Kafka nunca tenha ido e nunca realmente tenha planejado ir. Ele considerou a Palestina

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como um destino, mas referiu-se aos planos de ir para lá como “sonhos”. Não que ele não tivesse a vontade, mas ele tinha uma ambivalência paralisadora em relação a todo o projeto. O que eu espero mostrar é que uma poética da não-chegada permeia essa obra e afeta, ou talvez, aflige, suas cartas de amor, suas parábolas sobre jornadas e suas reflexões explícitas tanto sobre o sionismo quanto sobre a língua alemã. Eu compreendo que alguns gostariam de olhar especificamente ao que Kafka escreveu sobre proces-sos para ver qual luz poderia ser lançada sobre o processo atual em torno de seus escritos, mas há algumas diferen-ças que precisam ser observadas. Este processo presente é sobre propriedade e apoia-se em parte em reivindicações de pertencimento nacional e linguístico, mas a maior par-te dos processos e procedimentos sobre os quais Kafka es-creve envolvem alegações infundadas e uma culpa inomi-nada. Agora o próprio Kafka tornou-se propriedade, senão bem móvel (literalmente, um item de propriedade tangível móvel ou imóvel não anexado a terra), e o debate sobre sua destinação final está acontecendo, ironicamente, em uma corte familiar. A própria questão sobre aonde pertence Ka-fka já é algo como um escândalo, dado o fato de que sua escrita traça as vicissitudes de não pertencer ou de per-tencer demais. Lembremos: ele rompeu todos os noivados que teve, nunca possuiu um apartamento e pediu para seu executor literário que destruísse seus papéis, e que então a relação contratual terminasse. Então, os acordos sobrevi-

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veram além dos seus propósitos originais e tempo de vida intencionado. Mesmo que o trabalho de Kafka tenha sido deliberar reivindicações administrativas de seguro e vin-cular contratos, sua vida pessoal foi curiosamente vazia deles, exceto por um ocasional contrato de publicação. Cla-ro, eu estou pronta para aceitar que o gerenciamento legal de seus papéis requer uma decisão que leve em conta sua administração, e que este problema de pertencimento le-gal tem de ser resolvido de maneira que os papéis possam ser inventariados e tornados acessíveis. Mas se nós voltar-mos à sua escrita para nos ajudar a ordenar essa bagunça, talvez possamos também descobrir que ela é, pelo contrá-rio, extremamente pertinente para ajudar-nos a pensar mais profundamente sobre os limites de pertencimento cultural e as armadilhas de certas trajetórias nacionalistas que têm como objetivo destinos territoriais específicos.

  Não há dúvida de que a judaicidade de Kafka foi im-portante, mas isto não implicou de maneira nenhuma em uma visão estática sobre o sionismo. Ele estava imerso na judaicidade, mas também procurou sobreviver a suas de-mandas sociais às vezes prementes. Em 1911, foi ao teatro iídiche quase toda semana e descreveu em detalhe o que viu lá. Nos anos subsequentes, leu — “avidamente”, como ele coloca —L’Histoire de la littérature Judéo-Allemande  de Meyer Pines, que estava cheia de lendas hassídicas, se-guido de Organismus des Judentums de Fromer, que detalha

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tradições talmúdicas rabínicas. Ele compareceu a eventos musicais na Sociedade Bar Kokhba, leu trechos da Cabala e os discutiu em seus diários, estudou Moses Mendelssohn e Sholem Aleichem, leu diversas revistas judaicas, assistiu a palestras sobre o sionismo e peças em iídiche, e ouviu histórias hebraicas em tradução. Aparentemente, em 25 de fevereiro de 1912, Kafka deu uma palestra sobre o iídiche, embora eu não tenha conseguido encontrar uma cópia. Talvez ela esteja enfiada em uma caixa em Tel Aviv aguar-dando sua adjudicação.

Ao lado dessa impressionante imersão em coisas judai-cas — talvez nós pudéssemos chamá-la de uma maneira de ser envolto —, Kafka também manifestou ceticismo sobre essa maneira de pertencimento social. Hannah Arendt, cujo senso de pertencimento era vexado de maneira se-melhante (e se tornou tema de discussão com Gerschom Scholem), tornou famosa uma das piadas de Kafka sobre o povo judeu: “Meu povo, supondo que eu tenha um”. Como Louis Begley recentemente deixou claro em um ensaio bio-gráfico bastante cândido, Kafka não apenas manteve duas opiniões sobre a judaicidade, mas permaneceu às vezes claramente dilacerado. “O que eu tenho em comum com os judeus?”, ele escreveu em uma entrada de diário em 1914. “Eu quase não tenho nada em comum comigo mesmo e deveria ficar quieto em um canto, feliz de poder respirar”. Às vezes suas próprias observações sobre os judeus eram

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ásperas, se não violentas, como quando, por exemplo, ele chama o povo judeu de “lagartos”. Em uma carta a Milena, uma não judia, ele vai além em uma fantasia genocida e suicida em que finalmente ninguém consegue mais respi-rar:

Eu poderia muito bem reprová-la por ter uma opinião boa demais dos judeus que conhece (inclusive a mim) — há ou-tros! — às vezes eu gostaria de abarrotar todos como judeus (incluindo eu mesmo) em uma gaveta do baú da lavanderia, e então esperar, aí abrir a gaveta só um pouco para ver se todos já haviam sufocado, se não, fechar a gaveta de novo e seguir assim até o fim.

A judaicidade é associada repetidamente à possibilida-de de respiração. O que eu tenho em comum com os ju-deus? Tenho sorte o bastante por poder respirar. Então, são os judeus que dificultam sua respiração ou é Kafka que se imagina privando os judeus de respiração?

As fantasias de sufocamento de Kafka reiteram uma vacilação fantasmática do tamanho que nós encontramos também, por exemplo, em “O veredicto”. Na fantasia, Ka-fka é impossivelmente grande, maior do que todos os ju-deus que ele imagina colocar na gaveta. E ainda assim, ele também está na gaveta, o que o torna insuportavelmente pequeno. Em “O veredicto”, o pai é alternadamente gigan-te e minúsculo: em um dado momento o filho, Georg, ob-

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serva que quando ereto, ele é tão grande que sua mão toca levemente o teto, mas em um momento anterior, o pai é reduzido ao tamanho de uma criança e Georg o carrega à cama. O filho sobrepõe o pai apenas para ser sentencia-do à morte pela força das palavras dele. Onde se localiza Kafka nessa fantasia de sufocamento, e onde está Georg? Eles estão sujeitos à vacilação perpétua na qual ninguém, no fim, é mantido em uma escala manejável. Na fantasia de sufocamento, Kafka é ao mesmo tempo agente e vítima. Mas esta dualidade persistente permanece irreconhecível por aqueles que usaram a carta para chamá-lo de “judeu antissemita”2. Tal conclusão não é mais garantida pelas va-cilações em seu texto do que a alegação triunfante de que as observações ocasionais de Kafka de admiração pelo sio-nismo fazem dele um sionista. (Ele está, no fim das contas, flertando com alguma destas instâncias.) A fantasia de su-focamento, escrita em 1920, talvez possa ser compreendi-da de maneira mais útil em relação a uma carta para Felice escrita quatro anos antes, depois da leitura da peça de Ar-nold Zweig, Assassinato ritual na Hungria (1916). A peça en-cena um drama de 1897 baseado no libelo de sangue contra judeus. Os judeus em um vilarejo húngaro foram acusados de usar uma faca de açougueiro para matar cristãos e usar seu sangue para fazer pão ázimo. Na peça, os acusados são trazidos à corte, onde as acusações são rejeitadas. Um tu-multo antijudeu toma as ruas e a violência é dirigida a lojas e instituições religiosas judaicas. Depois de ler a peça de

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Zweig, Kafka escreveu a Felice: “Em um momento eu tive de parar de ler, sentei no sofá e chorei. Fazia anos que não chorava”. A faca do açougueiro, ou facas como essa, rea-parece então em seus diários e cartas e aparece até muitas vezes em sua ficção publicada: em O processo, por exemplo, e de novo, mais vívida, em “Um médico rural”. A peça nos dá alguma noção dos limites da lei, e até da estranha ma-neira com que a lei dá espaço a uma a-legalidade que ela não pode controlar.

2. “Self-hating Jew”, no original. (N. do T.)

O fato de que Kafka chorou por causa de uma história de falsas acusações — na verdade, poucos relatos o fizeram chorar como este — pode nos parecer surpreendente. O tom de O processo, afinal, é o de uma acusação falsa ou obs-cura contra K. que é transmitida nos termos mais neutros, sem afeto ressonante. Parece que a dor confessada nas cartas é precisamente o que é retirado da peça na escrita; e ainda assim a escrita transmite precisamente uma série de eventos que estão ligados entre si, sem qualquer causa provável, nem indução lógica. Então a escrita efetivamen-te abre uma disjunção entre a claridade — nós poderíamos até falar em uma certa lucidez e pureza da prosa — e o hor-ror que é normalizado precisamente como consequência daquela lucidez. Ninguém pode reprovar a gramática ou

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sintaxe da escrita de Kafka, e pessoa alguma jamais en-controu excesso emocional no seu tom; mas precisamente por causa desse aparente modo objetivo e rigoroso de es-crever, um certo horror abre espaço no meio do cotidiano, talvez também uma dor indizível. A sintaxe e o tema estão efetivamente em guerra, o que significa que nós talvez de-vamos pensar duas vezes antes de celebrar Kafka apenas por sua lucidez. Afinal, o lúcido só funciona como estilo na medida em que trai sua própria pretensão de autossufici-ência. Algo obscuro, se não indizível, abre espaço dentro da sintaxe perfeita. Na realidade, se nós considerarmos que as acusações recorrentes e difamatórias espreitam no pano de fundo dos seus muitos tribunais, poderemos ler a voz da narrativa como a neutralização de uma revolta, um empacotamento linguístico da dor que paradoxalmente o traz para frente. Então os judeus são sua família, seu pe-queno mundo, e ele já é de alguma maneira encurralado por aquele apartamento pequeno, por aquela comunidade implacável e, naquele sentido, sufocado. E, no entanto, ele estava atento às história e perigos presentes do antisse-mitismo que vivenciou diretamente em um tumulto que aconteceu em 1918 no qual se encontrou em meio a uma multidão “que nadava em ódio aos judeus”. Ele teria, en-tão, olhado para o sionismo como um caminho para fora da ambivalência profunda entre a necessidade de fugir das restrições da família e da comunidade e a necessidade de encontrar um lugar supostamente livre de antissemitis-

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mo?

Consideremos a primeira carta que Kafka escreveu para Felice em Setembro de 1912. Na linha inicial, ele pede a ela que os imaginem juntos na Palestina:

Considerando a possibilidade de que você já não tenha a menor lembrança de mim, apresento-me novamente: meu nome é Franz Kafka, e eu sou a pessoa que te saudou pela primeira vez naquela noite na casa do Diretor Brod em Pra-ga, aquele que em seguida te passou sobre a mesa, uma por uma, as fotografias de uma viagem a Thalia, e que, finalmen-te, com esta mesma mão que aperta as teclas, segurou sua mão, aquele que confirmou uma promessa de te acompanhar no próximo ano à Palestina.

Ao desenrolar da correspondência nos próximos anos, Kafka avisa-lhe repetidamente que não poderá realmente acompanhá-la, nem nesta viagem nem em outra, e com certeza não à Palestina, pelo menos não nesta vida como a pessoa que ele é: a mão que aperta as teclas não segu-rará a mão dela. Além disso, ele tem suas dúvidas sobre o sionismo e não sabe se algum dia chegará àquele destino. Ele subsequentemente chama de “sonho” e a repreende alguns anos depois por considerar o sionismo tão a sério: “Você flertou com a ideia”, ele escreveu. Mas, na verdade, foi ele quem introduziu a Palestina como estrutura de fler-te: venha comigo, pegue a minha mão rumo ao além. Na

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realidade, conforme o relacionamento afunda e se quebra durante os próximos poucos anos, ele deixa claro que não tem intenção de ir, e que ele acha que aqueles que vão estão perseguindo uma fantasia. A Palestina é um outro lugar figurativo para onde os amantes vão, um futuro aberto, o nome de um destino desconhecido.

Em Kafka vai ao cinema, Hanns Zischler argumenta que imagens fílmicas proporcionaram a Kafka um meio pri-mário de acesso ao espaço da Palestina, e que a Palestina era-lhe uma imagem de filme, um campo fantástico pro-jetado. Zischler escreve que Kafka viu a terra amada em filme, como filme. Na realidade, a Palestina era imaginada como não povoada, o que foi habilidosamente confirmado pelo trabalho de Ilan Pappe no começo da fotografia sio-nista, na qual as habitações palestinas foram rapidamen-te renomeadas como parte da paisagem natural. A tese de Zischler é interessante, mas provavelmente não com-pletamente verdadeira, já que os primeiros destes filmes não foram vistos até 1921 de acordo com os registros que temos, e Kafka lia jornais e participava avidamente de reu-niões, criando uma concepção da Palestina tanto a partir de histórias escritas quanto das narradas em debates pú-blicos. No decorrer desses debates e relatos, Kafka enten-deu que havia conflitos emergindo na região. Na verdade, sua breve narrativa “Chacais e árabes”, publicada em Der Jude em 1917, registra um impasse no coração do sionismo.

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Nessa narrativa, o narrador, que vagou inadvertidamente para o deserto, é saudado pelos chacais (die Schakale) uma referência discretamente disfarçada aos judeus. Depois de tratá-lo como uma figura messiânica por quem eles têm esperado por gerações, eles explicam que sua tarefa é as-sassinar os árabes com um par de tesouras (talvez uma piada sobre como os alfaiates judeus da Europa oriental estavam mal equipados para o conflito). Eles não querem ter que fazê-lo eles próprios, já que não seria “limpo”, mas o próprio Messias aparentemente não se prende às restri-ções kosher. O narrador então fala com o líder árabe, que explica que

[...] é sabido por todos que desde quando os árabes existem aquela tesoura vaga pelo deserto e vagará conosco até o fim dos nossos dias. A cada europeu ela é oferecida para a grande obra; cada europeu é justamente aquele Homem que o Desti-no escolheu para eles.

A história foi escrita e publicada em 1917, o ano em que o relacionamento de Kafka com Felice chegou ao fim. Na-quele mesmo ano, ele esclarece para ela em uma carta: “Eu não sou um sionista”. Pouco antes, escreve sobre si mes-mo para Grete Bloch que, por temperamento, ele é um ho-mem “excluído de toda comunidade que alimente a alma por conta de seu judaísmo não praticante e não-sionista (sinto admiração e nojo pelo sionismo)”. Depois de parti-

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cipar de uma reunião de sionistas em março de 1915 com Max Brod, na qual judeus do leste e do oeste da Europa se encontraram para acertar suas diferenças, ele descreve os vários personagens, um com seu “paletozinho esfarrapa-do” e observa o “sorriso diabolicamente desagradável” de um pequeno companheiro descrito como um “argumento ambulante” com uma “voz de canário”. Esta sequência vi-sual, finalmente, inclui ele mesmo: “Eu, como se feito de madeira, um cabide de roupas empurrado para o meio da sala. E ainda assim, esperança”.

De onde exatamente emerge essa esperança? Aqui como em outros lugares, o problema da destinação toca a questão da emigração para a Palestina, mas também do problema, de forma mais geral, da possibilidade de uma mensagem chegar e uma ordem ser compreendida corre-tamente. Não-chegada descreve o predicamento linguísti-co de escrever num contexto multilíngue explorando as re-gras sintáticas do alemão formal para produzir um efeito de estranhamento, e também o de escrever em uma Babel contemporânea onde os tiros n’água da linguagem vêm caracterizar a situação diária da fala, seja ela amorosa ou política. A questão que reemerge em parábolas como “Uma mensagem imperial” é se a mensagem pode ser enviada daqui para lá, ou se uma pessoa pode viajar daqui para lá, ou ainda para lá longe — se uma chegada que se espera é realmente possível.

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Eu gostaria de considerar brevemente duas parábolas que tocam neste problema da não-chegada, inclusive na estranha forma de esperança que pode emergir da socia-bilidade quebrada e o impasse contramessiânico que ca-racterizam a forma da parábola. “A partida” [Der Aufbruch] começa com o problema de uma ordem que não é enten-dida: “Eu ordenei que meu cavalo fosse tirado do estábu-lo. O servo não me entendeu”. A ordem é dada talvez em uma linguagem que o servo não entende, ou então alguma hierarquia pressuposta não funciona mais como se espe-rava. Segue mais confusão cognitiva na fala do narrador em primeira pessoa: “Ouvi na distância uma trombeta soar e perguntei a ele o que aquilo significava”. Dessa vez, pa-rece que o servo entende a questão, mas o narrador ain-da não vive em um mundo comum de som: “Ele não sabia de nada e não tinha ouvido nada”. Aparentemente o ser-vo deu apenas sinais que indicavam isto, embora na linha seguinte ele estabeleça sua competência linguística: “No portão ele me parou e perguntou: — Para onde o senhor cavalga?”, que é seguido por uma resposta imediata: “— Eu

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não sei — eu disse — apenas para-longe-daqui [Weg-von--hier],3 apenas para-longe-daqui”. E então uma terceira vez: “Sempre adiante, para-longe-daqui, só assim eu posso alcançar meu objetivo”. O servo, que aparentemente não entendeu a primeira ordem, ou não entendeu que ela re-feria-se a ele, agora parece ansioso para verificar o que o mestre realmente sabe sobre seu objetivo (das Ziel). Mas a resposta do mestre é confusa: “— Sim — eu respondi — eu já disse” e então oferece o nome de um lugar, o lugar hi-fenizado “para-longe-daqui” (que se torna um termo pelo qual Deleuze conecta Kafka com um projeto de desterri-torialização). No entanto, o que significa dizer que “para--longe-daqui” é “meu objetivo”?4 Qualquer lugar que não é aqui pode ser longe daqui, mas qualquer lugar que se torne um “aqui” não será longe daqui, mas apenas outro aqui. Há realmente algum caminho para longe daqui, ou “aqui” nos segue para onde quer que formos? O que significaria es-tar liberto das condições espaço-temporais do “aqui”? Nós não apenas teríamos que estar em algum outro lugar, mas este próprio outro lugar teria de transcender as condições espaço-temporais de qualquer lugar existente. Então, para onde quer que ele pretenda ir, lá não será um lugar como nós sabemos que um lugar é. Seria isto uma parábola te-ológica, que figura um além inefável? Ou é uma parábola sobre a Palestina, o lugar que na imaginação do europeu, de acordo com Kafka, não é um lugar povoado, um lugar que não pode ser povoado por ninguém?

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3. Optamos por traduzir “away-from-here” por “para-longe-daqui” a fim de preservar o jogo de palavras da autora nesta parte do texto. Uma outra tradução possível, considerando o “Weg-von-hier” original alemão, seria “embora-daqui”; 4. Butler refere-se aqui ao título da tradução anglófona que chama esta narrativa de “My Destination”, “Minha destinação”. (N. do T.)

Na verdade, ele parece estar indo para algum lugar em que o sustento do corpo humano se provará desnecessário. O servo ressalta:

— Você não está levando nenhuma provisão [Eßvorrat] de co-mida — ele disse. — Eu não preciso de nenhuma. — eu disse. — A viagem é tão longa que eu devo morrer de fome se não receber nada no meio do caminho. Nenhuma provisão pode me salvar [Kein Eßvorrat kann mich retten].

E então vem a estranha sentença de conclusão: “Pois tra-ta-se, felizmente, de uma viagem verdadeiramente imen-sa”. Em alemão, é “por sorte” (zum Glück eine wahrhaft un-geheure Reise). Esta palavra, ungeheure, significa “estranho“, “monstruoso“, até “insondável”. Então nós bem que pode-mos perguntar o que é esta jornada monstruosa e insondá-vel para a qual não será necessária nenhuma comida. Ne-

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nhuma comida poderá salvá-lo dessa afortunada ventura para dentro da zona estranha. Por sorte, parece que a via-gem não só lhe exigirá a inanição, mas falhará em salvá-lo, em mantê-lo em um lugar que é um lugar. Ele irá para um lugar que não é um lugar e onde não será necessária qual-quer comida. Se esse lugar além do lugar é ele próprio uma salvação — o que não é exatamente dito —, então será uma de um tipo diferente daquela que a comida oferece a uma criatura viva. Nós poderíamos chamar isto de uma pulsão de morte em direção à Palestina, mas nós também poderí-amos lê-lo como uma abertura para uma viagem infinita, ou uma viagem para dentro do infinito, que irá gesticular em direção a outro mundo. Eu digo “gesticular” porque é um termo que Benjamin e Adorno usam para falar desses momentos paralisados, essas emissões que não são exata-mente ações, que congelam ou se solidificam em sua con-dição frustrada e incompleta. É isto o que parece acontecer aqui: um gesto abre um horizonte como um objetivo, mas não há partida real e com certeza não há chegada real.

A poética da não-chegada pode ser encontrada nova-mente na parábola de Kafka “A vinda do Messias”, onde nós descobrimos, por uma voz aparentemente oficial, que o Messias “virá… quando não houver ninguém para destruir esta possibilidade e ninguém para sofrer sua destruição”. A parábola refere-se a um “individualismo desenfreado da fé” que precisa primeiro tornar-se possí-

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vel; o termo em alemão para “desenfreado” [zügellos] está mais próximo de “deixar solto” — um individualismo solto no mundo, até mesmo fora de controle. Aparentemente, ninguém fará isto acontecer, e parece que o Messias não tomará nenhuma forma antropomórfica: o Messias virá apenas quando não houver “ninguém” para destruir a possibilidade ou para sofrer a destruição, o que significa que o Messias não virá enquanto houver alguém, apenas quando não houver ninguém, e isto também significa que o Messias não será alguém, não será um indivíduo. Isto deve ser resultado de um certo individualismo que destrói cada um dos indivíduos. Seguindo o Livro de Mateus, a parábola afirma que “as covas se abrirão” e assim, nova-mente, nós somos levados a crer que elas não serão abertas por nenhum agenciamento humano. Quando o narrador afirma que isto “também é doutrina cristã”, ele retroativa-mente marca a abertura da parábola como judaica, mas, na verdade, já existe uma Babel de religiões acontecendo: judaísmo, cristianismo, individualismo e, então, depois de uma explicação obtusa, parece que também existem peda-ços de Hegel na descrição — de fato, nas partes mais ilegí-veis. Na verdade, parece que nenhuma descrição coerente é possível, e nós somos trazidos aos limites do que pode ser pensado. “O Messias virá apenas quando não for mais necessário. Ele virá apenas no dia depois de sua chegada. Ele virá, não no último dia, mas no último dos últimos”. Parece que o Messias virá precisamente quando não hou-

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ver ninguém aqui para sofrer a destruição do mundo como nós o conhecemos, quando não houver ninguém que possa destruir sua vinda. O messias não virá como um indivíduo e, certamente, não dentro de nenhuma sequência tempo-ral que utilizamos para organizar nosso mundo de seres vivos. Se ele vier no último dos últimos dias, mas não no úl-timo, ele virá em um “dia” — agora hiperfigurativo — que está além de qualquer calendário de dias, e além da pró-pria cronologia. A parábola postula uma temporalidade na qual ninguém sobreviverá. A “chegada” é um conceito que pertence ao calendário dos dias, mas a “vinda” [das Kom-men] aparentemente não. Ela não se dá em um momento no tempo, mas apenas depois de a sequência de todos os momentos ser completada.

Partida e chegada foram duas questões constantes para judeus europeus que estavam considerando deixar a Euro-pa pela Palestina, mas também para outros locais de emi-gração. Em “A partida”, nós somos deixados com a questão de como é possível ir para longe daqui sem mover-se de um “aqui” para outro? Uma partida e uma chegada assim não assumem uma trajetória temporal distinta através de um continuum espacial? O amálgama “Weg-von-hier” pare-ce ser um nome de lugar apenas para confundir nossa pró-pria noção de lugar. Realmente, apesar de “Weg-von-hier” ser um nome de lugar — ele mantém o nome de um lugar dentro de uma forma gramatical reconhecível — aconte-

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ce que a gramática não apenas diverge da referencialida-de clara neste caso, mas pode, claramente, operar de ma-neira estranha com qualquer realidade inteligível. Parece não haver nenhuma maneira clara de se mover de ponto a ponto dentro do esquema oferecido nessa parábola, e isto confunde nossas ideias de progressão temporal e conti-nuidade espacial. Isto inclusive torna difícil de seguir as linhas na página, de começar a parábola e terminá-la. Se a parábola de Kafka de alguma maneira figura a partida de uma noção comum de lugar para uma noção de perpétua não-chegada, então ela não leva a um objetivo comum ou à realização progressiva de um objetivo social dentro de um lugar especifico.

Algo outro se abre, a distância monstruosa e infinita en-tre partida e chegada e o fora da ordem temporal na qual estes termos fazem sentido. Em “A vinda do Messias”, a visão de Kafka da não-chegada parte de fontes judaicas, começa a partir delas e mantém-se lá. O que se torna cla-ro é que qualquer temporalidade que seja marcada pelo messiânico não é realizável dentro do espaço e tempo. É um momento contra-kantiano, talvez, ou uma maneira de interrogar o judaísmo nos limites de uma noção kantiana de aparência e para além e contra uma noção progressiva de história cujo objetivo é ser realizada em um território povoado.

Kafka também reflete sobre formas de não-chegada em

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uma entrada dos diários escrita em 1922, menos de dois anos antes de morrer de tuberculose:

Eu não mostrei a mínima firmeza de decisão na condução de minha vida. Foi como se, como para todos os outros, me tivesse sido dado um ponto a partir do qual prolongar-se-ia o raio do círculo, e, assim como para todos os outros, eu deveria descrever meu círculo perfeito ao redor desse ponto. Em vez disso, eu estive sempre começando meu raio apenas para ser constantemente forçado a quebrá-lo de uma vez. (Exemplos: piano, violino, línguas, germanística, antissionismo, sionis-mo, hebraico, jardinagem, carpintaria, escrever, tentativas de casar, um apartamento só meu).

Parece lamentável, mas então ele acrescenta:

Se em alguns momentos eu prolonguei o raio um pouco mais além do usual, no caso dos meus estudos de direito, digamos, ou relacionamentos, tudo tornou-se pior ao invés de melhor só por causa dessa pequena distância extra.

Então, isto significa que algo tornou-se melhor devido à quebra do raio do círculo, resistindo àquele fechamento em particular? Kafka torna as implicações políticas de sua teologia oblíqua claras, ou quase claras, quando ele escreve em janeiro de 1922 sobre a “perseguição selvagem” que é

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sua escrita. Talvez não perseguição, ele conjectura; talvez sua escrita seja um “assalto à última fronteira terrestre” como “toda escrita deste tipo”. Ele então observa: “Se o sio-nismo não tivesse intervindo, ela poderia ter facilmente se desenvolvido em uma nova doutrina secreta, uma Cabala. Há indícios disso”.

Eu tentei sugerir que nas parábolas de Kafka e em seus outros escritos nós encontramos pequenas meditações sobre a questão de ir a algum lugar, de passar sobre, da impossibilidade da chegada e da irrealizabilidade de um objetivo. Eu quero sugerir que muitas dessas parábolas parecem alegorizar uma maneira de verificar o desejo de emigrar para a Palestina, abrindo ao invés uma distância infinita entre um lugar e o outro: constituindo assim um gesto teológico não-Sionista.

Nós podemos, finalmente, considerar esta poética da não-chegada como pertencente ao legado final do próprio Kafka. Como já deve estar claro, muitos dos trabalhos de Kafka são sobre mensagens escritas e enviadas onde a che-gada é incerta ou impossível, sobre ordens dadas ou mal compreendidas e assim obedecidas em parte ou simples-mente não obedecidas. “Uma mensagem imperial” figura as viagens de um mensageiro através de diversas camadas de arquitetura, enquanto ele encontra-se preso em uma malha densa e infinita de pessoas: uma barreira infinita emerge entre a mensagem e sua destinação. Então o que

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dizemos sobre o pedido que Kafka fez a Brod antes de mor-rer? “Meu caro Max, meu último pedido: tudo que eu deixo para trás… deve ser queimado sem ser lido”. A vontade--testamento de Kafka5 é uma mensagem enviada, com cer-teza, mas ela não se torna a vontade-testamento de Brod; na verdade, a vontade-testamento de Brod, figurativa e literalmente, obedece e recusa a vontade-testamento de Kafka (alguns dos trabalhos permanecerão não lidos, mas nenhum deles será queimado, ao menos não por Brod).

5.  Butler joga com os significados da palavra “will” em inglês: tanto vontade quanto testamento. (N. do T.)

Curiosamente, Kafka não pede de volta seus escritos para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrá-rio, ele deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de dar todos os trabalhos para Brod e de pe-dir que ele seja o responsável por sua destruição. Há um paradoxo intransponível aqui, já que a carta torna-se parte dos escritos, e assim parte do próprio corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meti-culosamente através dos anos. E ainda assim a carta pede para que os escritos sejam destruídos, o que logicamente envolve a nulificação da própria carta, e assim nulifica a própria ordem que ela dá. Então, essa ordem é uma dire-tiva clara ou é um gesto no sentido que Benjamin e Ador-

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no descreveram? Ele espera que a mensagem chegue à sua destinação ou ele escreve a ordem sabendo que mensagens e ordens falham em alcançar aqueles para quem são ende-reçados, sabendo que eles estarão sujeitos à não-chegada sobre a qual escreveu? Lembremos que foi Kafka quem es-creveu:

Como foi que neste mundo alguém chegou à ideia de que pessoas podem se comunicar umas com as outras através de cartas?! Podemos pensar sobre uma pessoa distante e pode-mos agarrar uma pessoa que está próxima — tudo o mais vai além da força humana. Escrever cartas, entretanto, significa desnudar-se diante de fantasmas, algo pelo qual eles aguar-dam avidamente. Beijos escritos, em vez de alcançarem seu destino, são bebidos no caminho pelos fantasmas. É nesta nutrição abundante que eles se multiplicam tão enormemen-te. A humanidade o pressente e resiste e, buscando eliminar ao máximo o elemento fantasmal entre as pessoas e criando uma comunicação natural, a paz das almas inventou a ferro-via, o carro motorizado, o avião. Mas já não adianta, estas são invenção criadas evidentemente já no momento do estrondo. O lado opositor é tão mais calmo e forte; depois do serviço postal ele inventou o telégrafo, o telefone, o radiografo. Os fantasmas não passarão fome, mas nós iremos perecer.

Se os trabalhos tivessem sido destruídos, talvez os fan-tasmas não fossem alimentados — apesar de Kafka não poder ter antecipado o quão ilimitadamente parasíticas as forças do nacionalismo e do lucro seriam, mesmo sa-

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bendo que aquelas forças espectrais estavam esperando. Então no ato de morrer, Kafka escreve que ele quer sua obra destruída depois de sua morte. Isto é dizer que sua escrita está ligada à sua vida e que com seu falecimento, também deveria passar ao falecimento sua obra? Quando morro, também deve deixar de existir minha obra. Uma fantasia, com certeza, que não irá sobreviver a ele, algo que ele acha muito doloroso. Me lembra da parábola “As preo-cupações de um pai de família”, que chamou a atenção de Adorno pela promessa de “salvação”. Há Odradek, um tipo de criatura, um carretel, uma estrela, cuja risada soa como o farfalhar de folhas, pairando sobre ou embaixo ou perto da escadaria da casa. Talvez ele seja o filho, ou o remanes-cente de um filho; de qualquer maneira, ele é parte objeto e parte eco de uma presença humana. É apenas no fim da parábola que parece que a voz rigorosamente neutra que descreve este Odradek tem uma relação geracional com ele. O Odradek não vive exatamente no tempo, já que ele é descrito como caindo pelas escadas perpetuamente, ou seja, na perpetuidade. Desta maneira o narrador que pa-rece estar na posição de um pai observa: “É quase doloro-so que ele deva sobreviver a mim”. Podemos ler isto como uma alegoria não apenas para Kafka em sua casa paterna, mas da escrita de Kafka, as páginas farfalhantes, as ma-neiras com que o próprio Kafka tornou-se parte humano e parte objeto, sem descendência, ou então com uma des-cendência literária que achou doloroso demais imaginar

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sobrevivendo a si? O grande valor de Odradek para Adorno era que ele era absolutamente inútil em um mundo capi-talista que busca instrumentalizar todos os objetos para seu ganho. Não foram, no entanto, apenas os espectros da tecnologia que se alimentariam avidamente da obra de Ka-fka, mas aquelas formas de lucro que exploram até a mais anti-instrumental das formas de arte, e aquelas formas de nacionalismo que buscam se apropriar até dos modos de escrita que mais rigorosamente lhes resistem. Uma ironia então, com certeza, que os escritos de Kafka finalmente te-nham se tornado coisas de outras pessoas, empacotadas dentro de um armário ou cofre, transmogrifado em valor de troca, esperando por sua pós-vida como ícone de per-tencimento nacional ou, simplesmente, como dinheiro.

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“UM AFOGADO SONHANDO COM SALVAÇÃO”: A DOUTRINA DAS

PORTAS EM FRANZ KAFKA

Márcio Seligmann-Silva

Teoria Literária | UNICAMP — [email protected]

Resumo: O ensaio trata da figura da “porta” na obra Kafka procurando explorar seus vários sentidos. A “porta” que Ka-fka buscava e sobre a qual insistentemente escreveu, tem uma topografia sui generis. Ora ela lembra da “porta do paraí-so”, de onde fomos expulsos depois que provamos da Árvore do Saber, ora elas podem significar, por exemplo, o senti-mento de exclusão da vida, da cultura, das regras e da justiça, em outros momentos, indicam uma busca de (finalmente) “estar no mundo”, do desejo de um “bem-estar no mundo”. Essa escrita ronda constantemente as passagens entre o cor-po e o espaço (hostil) que o (des)abriga. O “dentro” e o “fora” são constantemente vazados e interpenetrados nessa poética que procura apanhar o inapanhável, ou seja, o “recalcado”, aquilo que foi esquecido, o lixo, a escória. Ao invés de erigir mais uma barreira entre o abjeto e o mundo da lei e das for-mas claras, Kafka, como uma criança, mergulha na lama do pré-simbólico. Kafka apresentou nesse espaço de diáspora,

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nesse local assombrado das passagens, das fronteiras, a in-terface ao mesmo tempo bloqueada e aberta entre o eu e o mundo. Se a literatura desde o Romantismo tem por função encenar a relação tensa do indivíduo moderno com o espaço público, Kafka mostra que os canais que poderiam garantir uma vida pacífica nesse mundo moderno estão assombrados.

Palavras-chave: portas em Kafka; recalcado; Unheimlich; oni-

rografia; trauma e literatura.

Abstract: This essay deals with the figure of the “door” in the work of Kafka and tries to explore its multiple meanings. The “door” that Kafka searched for and always wrote about has a sui generis topography. Sometimes it reminds one of the “gates of paradise”, from where we were expelled, after ha-ving tasted from the “Tree of Wisdom”, sometimes they can mean, for instance, the feeling of exclusion from life, from culture, from the rules of Justice, at other times, indeed, they indicate a quest to (finally) “be in the world”, the desire of a “well-being in the world”. This writing is constantly concer-ned with the connections between the body and the (adverse) space that (un)shelters it. The “inside” and the “outside” are continuously blurred and interpenetrated in this poetics that attempts to catch the “uncatchable”, that is, the Unterdrückt, what has been forgotten, the rubbish, scum. Instead of cons-tructing one more barrier between the abject and the world of culture, law and clear forms, Kafka, like a child, dives into the pre-symbolic mud. He presented in this diaspora space, in this haunted space of passages and borders, an interface

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that is simultaneously open and blocked between the I and the world. If literature, since Romanticism, has as a central function the presentation of the tense relations between the modern subject and the public sphere, Kafka shows that the connections that could serve as an assurance to a peaceful life in this world are somehow haunted.

Keywords: doors in Kafka; Unterdrückt; Unheimlich; onirogra-

phy; trauma and literature.

Alguns negam a miséria indicando o sol, ele nega o sol apon-tando para a miséria

Kafka, Diários, 17.01.1920

Walter Benjamin no último de seus famosos fragmen-tos “Sobre o conceito de história”, escrito pouco antes de seu suicídio na fronteira entre a Espanha e a França, for-mulou uma ideia que pode servir de chave para nos aproxi-marmos da obra de Franz Kafka, seu contemporâneo, cuja obra foi um dos primeiros a valorizar. Lemos aí que, para os judeus,

[...] a Torá e a prece ensinam a reminiscência. Essa última desencantava para eles o futuro, ao qual sucumbiam os que

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interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias. (BENJAMIN, 2012, p. 252).

Ou seja, sem poder cair na tentação de descrever o futu-ro (e cultuar a imagem desse mundo, na qual projetamos, em doses iguais, desejo de redenção e pavor), os judeus não descartariam uma epifania pontual, nascida de cada fração do segundo. Dessa mínima brecha pode-se abrir uma pequena porta que interromperia definitivamente o curso da história.

Franz Kafka, esse judeu laico para quem, como ele afir-mou uma vez a seu amigo Max Brod, “há esperança sufi-ciente, esperança infinita — mas não para nós”, era tam-bém possuído por uma “sede de redenção”, nas palavras de Günter Anders (1993, p. 96), um de seus mais perspicazes intérpretes. Entre esse banimento da esperança (corres-pondente ao tabu de se desenhar o que seria o futuro) e o desejo de redenção, a “porta” pela qual o Messias pode-ria entrar ficou cada vez mais estreita. Podemos dizer que essa porta foi banida para um mundo “distante” do qual fantasia e sonho eram os seus porteiros. Daí Kafka fazer da literatura (ou seja, de tudo o que escreveu) um local de culto e de exorcização dessa porta. Essa literatura deslo-ca a catástrofe inicial, inaugural, ironizando-a. No seu ca-

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derno in-oitavo G ele anotou: “Fomos expulsos do Paraíso, mas ele não foi destruído. A expulsão do Paraíso foi, em certo sentido, uma sorte, pois se não tivéssemos sido ex-pulsos, o Paraíso teria que ser destruído” (KAFKA, vol.6, p. 194). Portanto, podemos pensar que esse Paraíso intacto poderia ser nosso objetivo. Mas a salvação não está garan-tida. Tudo menos isso. O mesmo Kafka declara: “Existe um objetivo, mas nenhum caminho; o que denominamos de caminho, é um hesitar” (Ibidem, vol. 6, p. 232). A vida é essa hesitação e a literatura a sua caixa de ressonância. “Quanto mais hesita-se diante da porta, tanto mais estranhos nos tornamos”. (Ibidem, vol. 8, p. 163). Estamos banidos em um limbo, no entre lugar, como o caçador Graco do conto ka-fkiano.

Kafka foi alguém que refletiu de modo profundo sobre a “alienação” do indivíduo moderno, para usarmos um ter-mo emprestado do marxismo, ou seja, pensou sobre nosso sentimento de não pertença ao mundo no qual o traba-lho tornou-se um meio de exploração que não nos realiza mais. Podemos também pensar esse indivíduo pesquisa-do, dissecado e esquadrinhado pela pena de Kafka a par-tir da noção de “mal-estar”, lembrando do conceito de Un-behagen que Freud desenvolveu em seu conhecido ensaio “Mal-estar na cultura”, de 1930. Para o pai da psicanálise esse mal-estar tinha a ver com um desabrigo fundamental, um “mal-estar no mundo”. O significado do termo behagen

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(que é negado pelo prefixo un-) é algo como “sentir-se pro-tegido”. Unbehagen remete a uma fragilidade, a uma falta de abrigo. É interessante que este termo também se apro-xima de outro termo-chave para a psicanálise, a saber o de Unheimlich (estranho, sinistro), que deu título a um famo-so e fundamental ensaio de Freud de 1919: “O estranho”. Um dos sentidos de Unheimlich, como o próprio Freud des-tacou, é justamente o de unbehaglich (o que provoca mal--estar). Se, de certo modo, podemos dizer que a psicanálise procedeu à revelação do Unheimlich da psique do indivíduo, ou seja, revelou “tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto e veio à luz” (na definição do filósofo idealista Schelling, aprovada por Freud), Kafka procedeu a essa mesma operação, mas no registro da literatura. Escre-ver, para ele, equivalia à única maneira de (sobre)viver em um mundo inóspito. A escrita construía a sua casa (Heim), o seu estar no mundo. Mas essa pesquisa das fronteiras do familiar (heimisch) com o estranho (Unheimlich) são postas por Kafka como uma tarefa ao mesmo tempo necessária e infinita. Double bind. Pois, o que achamos que se tornou familiar, apenas encobre outra cripta, outra câmara. Em uma nota de 1917 lemos:

Quão patético é o meu autoconhecimento, comparado por exemplo, com o conhecimento de meu quarto. (Noite.) Por quê? Não existe nenhuma observação do mundo interno, como existe uma do externo. A psicologia é provavelmente,

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no todo, antropomorfismo, um corroer das fronteiras.

(Ibidem, vol. 6, p. 162)

Portanto, a “porta” que Kafka buscava e sobre a qual in-sistentemente escreveu, tem uma topografia sui generis. Não se trata apenas dessa “porta” de que Benjamin nos fa-lou no fragmento citado, que lembra da famosa “porta do paraíso”, de onde fomos expulsos depois que provamos da Árvore do Saber. No universo de Kafka, as portas (e tam-bém janelas, vale ressaltar) têm outros sentidos também. Elas podem significar, por exemplo, o sentimento de ex-clusão da vida, da cultura, das regras e da justiça (como lemos na narrativa “Sobre a questão das leis”, onde se afir-ma que “a nobreza está fora da lei”, ou seja, acima dela e o povo está submetido a ela e excluído da possibilidade de justiça). Mas também essas portas podem ser o signo de uma busca de (finalmente) “estar no mundo”, do desejo de um “bem-estar no mundo”.

Nessa topografia do desejo, Kafka constrói uma série de contiguidades que desvirtuam nossa concepção espacial e também as tradicionais geografias cósmicas da redenção. O homem desabrigado, alienado e esvaziado, que se sente como um cão magro abandonado (“Investigações de um cão”), tem como paraíso a imagem de um lar, de uma “casa” que possa finalmente abrigá-lo e protegê-lo das peias do existir. Mas esse espaço familiar também é assombrado,

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na obra de Kafka (A metamorfose), sobretudo pela figura do “pai” (“Carta ao pai”), ou seja, de uma entidade castradora, discípula daquela que nos fez deixar o Elísio, que lhe tolhe a existência. O “eu”, que vai buscar um abrigo fora de casa, defronta-se aí novamente com uma continuidade dessa fi-gura castradora, seja sob a forma de um deus violento (“O brasão da cidade”), de um imperador ou de um porteiro da lei (“Diante da lei”). O “eu”, no caso de Kafka, muitas vezes um personagem chamado sintomaticamente de K., sem-pre está sob a sombra desse “Outro” dominador.

Encurralado, o eu-kafkiano busca abrigo dentro de seu corpo. Mas aí também ele encontra um espaço estreito e incômodo, no qual não pode se sentir bem. A ameaça per-siste e assalta por todos os lados nesse universo paranoico que é a obra de Kafka, um labirinto onde uma obra, um fragmento liga-se ao outro, sempre descortinando novas câmaras em que a sensação tênue de abrigo logo revela--se como mal-estar. Em uma mise en abyme, Kafka sobrepõe espaços da intimidade corpórea com o da casa, na mesma medida que o espaço para além do lar se confunde com a distância infinita que nos separa da redenção.

Daí ser praticamente impossível se diferenciar de modo essencial na obra kafkiana o que são seus fragmentos do espólio e o que é o material que ele cuidou para publicar. A fragmentação de seus textos é fruto de uma fragmentação desse eu alienado e sem abrigo. Como já o romântico Frie-

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drich Schlegel o sentia e anotou em uma carta ao seu irmão August Wilhelm Schlegel, expressando de modo emblemá-tico em que medida a fragmentação interna do indivíduo moderno é o substrato da fragmentação de sua obra teóri-ca: “Eu não posso dar uma mostra do que eu sou, do meu eu inteiro, senão como um sistema de fragmentos, porque eu mesmo o sou”. Schlegel escreve ainda, no mesmo ano dessa carta, em 1797, que “A minha filosofia é um sistema de fragmentos e uma progressão de projetos”. Nada mais cabível para pensarmos a obra de Kafka também. Na Okta-vheft G o escritor de Praga anotou, em outubro de 1917:

Fraqueza da memória para os detalhes e o caminhar do pró-prio apreender do mundo — um signo muito ruim. Ape-nas ruínas de um todo. Como você pretende apenas roçar a maior tarefa [Aufgabe], como você pretende apenas farejar a sua proximidade, apenas sonhar a sua existência, apenas re-zar pelo seu sonho, ousar aprender as letras da reza, se você não consegue se comportar, de modo que, quando chegar o momento da decisão, o seu todo mantenha-se unido em uma mão como uma pedra que se lança, uma faca que abate.

(Ibiden, vol. 6, p. 161)

Portanto, quando Kafka em agosto de 1912 enviou ao edi-tor Rowohlt os manuscritos de seu livro Betrachtung (Con-templação), ele se referiu aos textos que comporiam essa publicação com a expressão “kleine Prosa”, ou seja, “prosa

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pequena”: “Aqui apresento a prosa pequena, que o senhor gostaria de ver; decerto ela já perfaz um livro” (Ibidem, vol. 10, p. 77). Essa prosa pequena é, na verdade, a forma por excelência de toda a obra de Kafka. Seus três romances que permaneceram inacabados dão prova disso. Mesmo o mé-todo da composição de romances desse autor, que tendia a tratar cada capítulo de modo separado, aponta para esse predomínio da pequena prosa. Sua obra atravessa como um arado sua vigília e suas noites, cortando-lhe a vida, fazendo dela inscrição fragmentada: “Um tormento insu-portável, ou seja, arrastar um arado através do sono — e através do dia” (KAFKA , 2003, p. 130), ele escreveu em uma carta a Milena Jesenská, de 1920. E ainda, em seu diário de 1914, anotou: “visto da perspectiva da literatura, meu desti-no é muito simples. O impulso de representar minha vida onírica” (Ibidem, 2003, p. 86).

Desde novembro de 1916, após entrar em crise por conta da incapacidade de fechar seus romances, Kafka dedicou--se cada vez mais a seus fragmentos. É quando iniciou a redação de seus cadernos em formato pequeno in-oitavo (Oktavheften). Na sua também pequena casa, na graciosa Alchimistengasse de Praga, ele se dedica horas, dia a dia, escrevendo seus fragmentos, ou seja, arando a sua vida. Dessa fase de produtividade que se originou o volume Ein Landartzt (Um médico rural), de 1919. Para a revista Der Jude (“O judeu”), dirigida por Martin Buber, Kafka extrai e pu-

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blica em 1917 dois dos textos desses cadernos: “Chacais e árabes” e “Relato para uma academia”. Diferentemente dos fragmentos do volume Betrachtung, de 1912, esses no-vos fragmentos tendem cada vez mais à parábola, ou seja, para um gênero no qual a todo momento o leitor busca (e nunca encontra) o sentido “final”. Entre 1917-18 inclusive, Kafka substitui a escrita nos diários pela redação desses fragmentos nas Oktavheften. Daí provém sua série de “Afo-rismos”, publicados postumamente.

Essa tendência à parábola e ao aforismo é correlata à mencionada fragmentação do eu autoral kafkiano. A um mundo do qual nos sentimos alienados, corresponde me-lhor uma literatura que também nega a falsa totalidade e transparência de sentido. Nessa literatura tudo se torna enigma. Mas, como se trata de uma obra eminentemente extraída do corpo, de uma literatura visceral, ela também está contaminada com a “onirografia” kafkiana, já que seus diários são, em grande parte, “noitários” e anotações de sonhos. Em um de seus sonhos, Kafka escreve que “sen-ti fechaduras no corpo inteiro [...] o tempo todo abriam ou fechavam uma fechadura, ora aqui, ora ali” (Ibidem, p. 53): ele sabe que cada ponto de seu corpo e da superfície oní-rica torna-se a porta de entrada para um arquivo. Não por acaso, sonha constantemente com letras, cartas, pessoas lendo, com um senhor chamado Schreiber (“Escritor”) e com traduções. Refletindo sobre esta questão, anotou: “Há

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gente que flutua agarrado num traço a lápis. Flutua? Um afogado sonhando com salvação” (Ibidem, p. 140). Na ver-dade, em Kafka, a salvação é a própria escritura.

Essa escrita ronda constantemente as passagens entre o corpo e o espaço (hostil) que o (des)abriga. O “dentro” e o “fora” são constantemente vazados e interpenetrados nes-sa poética que procura apanhar o inapanhável, ou seja, o “recalcado”, aquilo que foi esquecido, o lixo, a escória. Para dar forma ao “inconsciente”, Kafka nos leva para dentro de animais e de insetos: ali viceja uma vida crua, pulsante, em sangue, contra qual a “cultura” se protege. Ao invés de eri-gir mais uma barreira entre esse abjeto e o mundo da lei e das formas claras, Kafka, como uma criança, mergulha na lama do pré-simbólico. Daí a sexualidade nele ser “infan-til”, polimórfica e “suja”. Ela é desenvergonhada e é mais um canal de comunicação com o somático amordaçado e contido pela “grande prosa” do cotidiano.

As portas e portões estão onipresentes na “prosa peque-na” de Kafka, seja na de seus diários, nas Oktaveheften, seja nos romances (fragmentados) ou nas narrativas de mais fôlego. A mais famosa dessas portas, é claro, é a da peque-na narrativa “Vor dem Gesetz” (“Diante da lei”, mas tam-bém: “Antes da lei”), de 1915. Essa parábola narra a história de um camponês que se dirige ao porteiro que guarda a porta da lei. O porteiro o barra, dizendo que no momento ele não poderia entrar, e observa:

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Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. Eu sou apenas o último dos por-teiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro. (KAFKA, 1997, pp. 261 ss.)

Esse poder infinito do porteiro, no entanto, não dissua-de o camponês, que ali fica, como que “fora da lei”, diante dela, toda a sua vida. Ao final ele fica sabendo que aquela porta “estava destinada só a você. Agora”, arremata o po-deroso último porteiro, “eu vou embora e fecho-a”. O fe-char dessa porta coincide com a morte do camponês — e com o final da narrativa: novamente vemos o fenômeno da telescopagem, ou seja, da sobreposição entre vida e es-crita, escrita e leitura/interpretação. Esta é infinita, como a distância que separa o imperador do seu súdito, em ou-tra prosa pequena fundamental de Kafka, complementar a essa e essencial para se entender a sua doutrina das portas.

Refiro-me ao texto “Eine kaiserliche Botschaft” (“Uma mensagem imperial”), de 1917. Aqui, um imperador ao morrer envia um mensageiro a um súdito.

O imperador — assim consta — enviou a você, o só, o súdi-to lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a você o impera-dor enviou do leito de morte uma mensagem. (KAFKA, 1999,

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p. 41)

Se no caso do porteiro não existe deslocamento espacial, apenas temporal, mas o tempo é achatado, pois toda uma vida se resume à espera diante da porta da lei, aqui o espa-ço entre o imperador agonizante e a entrega de sua men-sagem ao súdito é dilatado e assume proporções da ordem do absurdo, como nos teoremas de Zenão de Eleia. Isso remete também à dificuldade de se atingir a pequena por-ta da redenção, que visitamos em Benjamin. Não temos esperança de um dia ouvir da parte do mensageiro “a es-plendida batida de seus punhos na porta”. Pois são vãos os esforços do bravo mensageiro imperial kafkiano, ele

[...] continua sempre forçando a passagem pelos aposentos do palácio mais interno; nunca irá ultrapassá-los; e se o con-seguisse, nada estaria ganho; teria de percorrer os pátios de ponta a ponta e, depois dos pátios, o segundo palácio que os circunda; e outra vez escadas e pátios; e novamente um palácio; e assim por diante, durante milênios; e se afinal ele se precipitasse do mais externo dos portões — mas isso não pode acontecer jamais, jamais — só então ele teria diante de si a cidade-sede, o centro do mundo, repleto pela própria bor-ra amontoada. Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto (Ibidem, p. 42).

Essa pequena narrativa, composta apenas quatro me-ses após a morte do Imperador Francisco José I, é também

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uma parábola sobre a onipresença do poder como contra-ponto da invisibilidade dos poderosos — ou uma parábola sobre a morte da tradição — ou tantas outras coisas.

Existem inúmeros outros porteiros e portas centrais na fragmentada arquitetura da obra de Kafka, como o porteiro, tema da sua única peça teatral (também escri-ta sob o impacto da morte do mesmo imperador), Der Gruftwachter (“O guarda da cripta”), como a porta de uma grande propriedade, da narrativa “A batida no portão da propriedade”, como a porta da casa da pequena narrati-va “Volta ao lar”, como a porta do longo fragmento “Die Tür des Zimmers” (“A porta do quarto”), como as inúme-ras portas do romance O castelo etc. Também nos diários e demais escritos do espólio abundam as portas (e janelas): “Nada me detém. Portas e janelas abertas ruas amplas e vazias” (KAFKA, 1994, vol. 6, p. 118). Traduzo um fragmen-to um pouco mais longo, que já é limítrofe do que pode-mos reconhecer como sendo uma típica pequena narrati-va kafkiana, na qual elementos em estilo onírico envolvem uma cena composta por um eu-narrador em seu quarto:

Eu não havia notado até agora uma porta na minha casa. Ela fica no meu quarto de dormir, na parede que faz limite com a casa do vizinho. Eu não pensava nela, de fato, nem sabia dela. E, no entanto, ela é bem visível, sua parte inferior pode até estar coberta pela cama, mas ela ergue-se para o alto, quase não é uma porta, é quase um portão. Ontem ela foi aberta. Eu

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estava justamente na sala de jantar que ainda está separada do quarto de dormir por um outro quarto. Eu havia chegado muito atrasado para o almoço, ninguém mais estava em casa, apenas a empregada trabalhava na cozinha. Aí começou um barulho no quarto de dormir. Eu corro para lá e vejo como a porta, a porta que até então me era desconhecida, era aber-ta e dessa maneira, com grande força, deslocava a cama. Eu falo: “Quem está aí? O que quer? Cuidado! Atenção!” e espero ver entrar uma tropa de homens violentos, mas trata-se ape-nas de um jovem homem magrinho, que, mal a brecha lhe é apenas suficiente, esgueira-se para dentro e me saúda alegre-mente (Ibidem, vol. 6, p. 150).

Trata-se de um pequeno conto sinistro, com final feliz. O segredo, a “carta roubada” (lembrando da figura de Ed-gar Allan Poe), que está escondida na sua absoluta visibi-lidade, mas nunca é vista, manifesta-se, trazendo notícias do “outro lado”, portando e revelando um segredo. Pensa-mos, com o narrador, que vamos nos defrontar um uma notícia terrível, cheia de violência, mas o “esquecido”, o re-calcado, é apenas a própria imagem de um duplo do narra-dor, que se vê como que refletido nessa porta, que se revela um espelho. Nesse conto-fragmento assistimos a uma tí-pica mise en scène da ruptura da cripta, gesto frequente nos textos de Kafka. Mas ao invés de se dobrar ao gênero gó-tico, ou ao gênero terror, ele dá uma reviravolta e mostra que o “inteiramente outro” pode ser também uma parte de nós mesmos. As portas sempre dão em outros quartos se-

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melhantes aos nossos. A semelhança desconstrói os limi-tes entre o consciente e o recalcado, borra as identidades. Como nos sonhos, em Kafka, as pessoas tratam o absurdo e o fantástico como se fossem parte do dia a dia. Em uma sociedade que banaliza o monstruoso, escreve-se transfor-mando o monstruoso em banalidade.

Essa pequena narrativa, por sua vez, pode ser encarada como um duplo de uma importante passagem do romance O processo. Quando K. resolve procurar Titorelli, o pintor da corte de justiça, ele também se depara com uma porta ao lado de uma cama. No cubículo do pintor, K. estava su-focando e pede a ele que abra a “janela”. Mas Titorelli es-clarece, que o que parece uma janela é apenas um vidro fixado em uma moldura: uma falsa janela, portanto, sem nenhuma utilidade. Mas para refrescar o cubículo, afirma o pintor, seria possível abrir uma “segunda porta”. K. então se dá conta que, de fato, havia uma outra porta, além da de entrada, que ficava colada na cama. Vale lembrar que, quando K. se dirigia para esse encontro com Titorelli, o narrador afirmara que a casa do pintor ficava em um su-búrbio, em uma “direção completamente oposta àquela em que se encontravam os cartórios do tribunal” (KAFKA, 1997, p. 170). No entanto, a pequena porta ao lado da cama, quando aberta, dá direto nesses cartórios. Como em nosso inconsciente, também na arquitetura e nas cidades kafkia-nas não existe tempo nem espaço lineares. Tudo pode estar

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ao mesmo tempo no mesmo lugar. Mas K. não se assustou ao perceber essa contiguidade; ele apenas

[...] assustou-se consigo mesmo, com o seu desconhecimento das coisas do tribunal; parecia-lhe ser uma regra básica do comportamento de um acusado estar sempre preparado, não se deixar nunca colher de surpresa, não olhar desprevenida-mente para a direita quando o juiz estava à esquerda, a seu lado (Ibidem, p. 200).

Assustar-se, “sich erschrecken”, é o termo psicanalítico utilizado para tratar o conceito de trauma. Em Jenseits des Lustprinzips (“Para além do princípio do prazer”, 1920), Freud destaca a relação entre o trauma e o pavor (ou susto, Schreck) que representaria uma quebra na nossa Angstbe-reitschaft — uma angústia que tem o valor positivo de nos preparar para o desconhecido — e do nosso pára-excita-ções (Reizschutz). O trauma é descrito como uma fixação psíquica na situação de ruptura. Esse tipo de fixação Freud compara à do paciente histérico que para ele também é alguém que “sofre de reminiscências” (FREUD, 1970, vol. III, p. 223). O personagem K. deve treinar-se para não se deixar levar pelo susto — mas o Processo inteiro reproduz um personagem que justamente sofre da ruptura do seu escudo de proteção ao trauma. Na verdade, K. pensa e o narrador (em discurso indireto livre) reforça essa ideia, segundo a qual ele não estaria traumatizado. Mas isso é

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apenas uma elaboração de defesa. O tempo e o espaço do romance são não apenas característicos do inconsciente, mas também da experiência do traumatizado. Werner Bo-hleber, estudando os traumatizados sobreviventes de cam-pos de concentração, notou que os traumatismos sofridos foram além da capacidade de elaboração dos sobreviven-tes e vieram a marcar a geração seguinte (BOHLEBER, 2000, pp. 814 ss). Sobretudo nas famílias em que os pais se protegeram do trauma, negando-o e se recusando a falar dele, as crianças receberam de modo inconsciente os fa-tos, relacionam-se com ele via fantasia e — dentro de um esquema mítico-repetitivo — “agindo”. Em certos casos, a identificação com o sofrimento dos pais levou ao que já foi denominado de “télescopage” de duas ou até três gerações (Ibidem, p. 817): um desastre de engavetamento múltiplo que reduz três gerações ao espaço do tempo — fora do tempo — do trauma. A temporalidade para essas crianças identificadas com o sofrimento de seus pais torna-se frag-mentada. Nicolas Abraham e Maria Torok desenvolveram nesse contexto o importante conceito de “identificação en-docríptica”. De resto a teoria da memória críptica elabora-da por esses autores é central dentro dos desdobramentos da teoria do trauma.1 A essa decantação topográfica — em termos da psique — das recordações que são como que en-terradas vivas, corresponde um estancamento temporal.2 É uma caraterística dos pacientes traumatizados mani-festarem uma sensação de diminuição no fluxo do tempo:

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como se o seu relógio tivesse ficado parado no momento do traumatismo (Ibidem, p. 827). K. e os seus sucedâneos e duplos na obra de Kafka, é fácil notar, sofrem desse mes-mo estancamento temporal e a topografia “enlouquecida” que caracteriza essas narrativas fragmentadas é um deri-vado dessa abertura para essas recordações mortas-vivas que brotam pelas rupturas da cripta. A fragmentação da narrativa é a “corporificação na letra” dessa passagem para o registro do trauma.

1. Cf. Nicolas Abraham e Maria Torok, 1976 e também 1995; Jacques Derrida, 1999 e Sigrid Weigel, 1999; 2. Essa incorporação da vivência traumática em uma cripta foi descrita por N. Abraham e M. Torok. Maria Torok, no seu ensaio “A cripta no seio do ego. Novas perspectivas metapsicológicas”, discutindo a distinção entre introjeção das pulsões e incorporação do objeto — duas noções essenciais na distinção freudiana entre luto e melancolia — escreveu: “A especificidade de cada um dos dois movimentos surge, portanto, claramente. Enquanto a introjeção das pulsões põe fim à dependência objetal, a incorporação do objeto cria ou reforça um liame imaginal. O objeto incorporado, exatamente no lugar do objeto perdido, lembrará sempre (em nome da existência e pela alusão de seu conteúdo) alguma outra coisa perdida: o desejo atingido por recalcamento. Monumento comemorativo, o objeto incorporado marca o lugar, a data, as circunstâncias em que tal desejo foi banido da introjeção: quantos túmulos na vida do Ego. Vê-se bem que os dois mecanismos operam verdadeiramente em correntes contrárias um em relação ao outro. Designar esses dois movimentos (introjetivo das pulsões e

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incorporativo do objeto) pelo mesmo termo não traz nenhuma clareza à comunicação”. Abraham e Torok, 1995, p. 223. Assim como Freud denominara os sintomas das histéricas de “monumento”, aqui Torok faz o mesmo paralelo com a memória encriptada/incorporada. Valeria a pena pensar em que medida os monumentos não tendem a “enterrar” um passado que não foi introjetado. A literatura de Kafka faz a performance desse enterro, mas deixa os mortos-vivos circularem em seus textos.

A questão da espacialidade e da arquitetura desde há muito intriga os interpretes de Kafka. Podemos pensar que esse elemento de “construção”, como lemos por exem-plo, explicitamente, na narrativa “Durante a construção da muralha da China”, é um resultado do ponto de vista de Kafka, para quem, como ele anotou em seu diário, em no-vembro de 1913, “tudo parece-me como construção” (1994, vol. 10, p. 203). A própria muralha da China é uma metáfo-ra de uma barreira, de uma proteção, Reizschutz, fraturada. A primeira frase de seus Oktavheften afirma: “Cada pessoa leva um quarto em si”. Esse ser artificial do mundo é des-dobrado na sua literatura que busca, como vimos, cons-truir um casulo (como na narrativa “A construção”).

A série de fragmentos conhecida pelo nome de Er (“Ele”), de seus diários do ano de 1920, permite vislumbrar um pouco dessa oficina do “eu”, que precisa se desdobrar em um “ele” para sobreviver. A escrita é a inscrição desse ele. Cito alguns desses fragmentos de diário. “Ele encontrou

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o ponto arquimediano, mas se aproveitou dele contra si, evidentemente ele o encontrou apenas sob essa condição”. (1994, vol. 11, p. 174). Ou seja, vemos aqui uma arquitetura precisa de um eu desestabilizado. Por detrás do olhar en-viesado dessa literatura, existe uma estabilidade (des)en-contrada. Esse eu-ele está em uma prisão e ao mesmo tem-po não está. Ele é constante negação do eu — que assim se autoafirma. Preso a sua individualidade, ao seu corpo, a sua cama, ao seu quarto, a sua doença, ao seu mundo, o eu é “ele” também e sobretudo através de sua pena: pena no sentido de dor e de escrita.

Ele teria se conformado com uma prisão. Terminar como pri-sioneiro — esse seria seu objetivo de vida. Mas era uma gaiola de grades. Indiferente, imperioso, como em casa, flui atra-vés das grades, para dentro e para fora, o barulho do mundo, o prisioneiro estava, na verdade, livre, ele podia participar de tudo, nada de fora escapava dele, ele poderia mesmo ter abandonado a gaiola, as barras da grelha estavam na verda-de a metros umas das outras, ele nem estava preso (KAFKA, 1994, vol. 11, p. 175).3

3. Veja-se também esse outro fragmento, da mesma série: “Ele se sente prisioneiro nesta Terra, é-lhe estreita, o luto, a fraqueza, as doenças, os delírios dos prisioneiros irrompem nele, nenhum consolo pode consolá-lo, pois se trata justamente apenas de consolo, consolo dolorido de dor de cabeça diante do fato cru do estar preso. Pergunta-se a ele, no entanto, o que ele realmente quer, ele não pode

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responder pois ele não tem — essa é uma de suas mais fortes provas — nenhuma ideia da liberdade” (Ibidem , vol. 11, p. 176).

Para Fichte, o grande filósofo do “eu transcendental” do idealismo alemão, o “eu” só existe na sua relação recipro-camente determinante, de negação e de criação, com um “tu”. Já para o poeta Rimbaud, “Je est un autre”, ou seja, o eu só se dá no diferimento de si mesmo. Nessa tradição mo-derna de pensar o eu como jogo diferencial e fragmentado, Kafka anota: “Ele tem a sensação que ele, pelo fato de viver bloqueia [verstellt] o caminho. A partir desse impedimento ele deduz uma prova para o fato de que ele vive” (Ibidem, vol. 11. p. 175). Sendo que o termo alemão “verstellen” tem um significado mais amplo: significa também encobrir, dissimular, mascarar. O “ele” também dissimula, repre-senta esse caminho como bloqueado. A escrita da vida/morte, que são os diários e a literatura, é essa dissimula-ção, essa encenação dos obstáculos — que Kafka viveu na carne. Se é o próprio “eu” que constrói o seu bloqueio, ele também é capaz de construir a sua liberdade. Se Baudelai-re viu, nos seus poemas em prosa “Um hemisfério numa cabeleira”, Kafka vê o mundo no seu quarto: “Ele vive na diáspora. Seus elementos, uma horda vivendo livre, con-tornam o mundo. E apenas porque seu quarto pertence ao mundo, ele os vê algumas vezes à distância. Como ele pode se responsabilizar por eles? A isso ainda se chama respon-

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sabilidade?” (Ibidem, vol. 11, p. 176).

Kafka apresentou esse espaço de diáspora, esse local assombrado das passagens, das fronteiras, a interface ao mesmo tempo bloqueada e aberta entre o eu e o mundo. Se a literatura desde o romantismo tem por função encenar a relação tensa do indivíduo moderno com o espaço público, Kafka mostra que os canais que poderiam garantir uma vida pacífica nesse mundo moderno estão assombrados. Para mostrar isso, ele lança mão de seus “delírios de pri-sioneiro”, que ele deita no papel. Ele sobrepõe um universo arquitetônico pré-capitalista, monarquista, à vida moder-na, pontuada por seus “eus” alienados. Essa, de resto, era a realidade que Kafka viveu ao observar o triunfal naufrágio da dinastia Habsburgo na dupla monarquia, ou seja, o im-pério Austro-Húngaro, com Francisco José I no papel de imperador da Áustria (“Kaiser von Österreich”) e de rei da Hungria (“König von Ungarn”). A nomenclatura desse im-pério sabidamente era abreviada pelas iniciais “k.u.k”. Os K. onipresentes em Kafka reduplicam essa dupla monar-quia, o império sobre o império, a política se estendendo e esmagando o eu, sem império sobre si, sem casa e absolu-tamente banido do “castelo”. A Primeira Guerra Mundial, que significou o fim dessa dupla monarquia é anunciada no diário de Kafka com um tom seco, vindo logo em se-guida uma observação de âmbito privado: 2/agosto/1914: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. — De tarde aula de

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natação” (Ibidem, vol. 10, p. 165).

O mundo sem deus de Kafka faz da secularização uma nova religião. Daí a tendência ao tratamento religioso da obra de Kafka (com suas várias edições filológicas) e a atribuição a ele do papel de profeta. Ele profetizou os to-talitarismos (O processo; O castelo), Auschwitz (“Na colônia penal”) e o mundo pós-Auschwitz, marcado por um novo e profundo agnosticismo (“Nada senão uma espera, eterno desamparo” [Ibidem, vol. 10, p. 140]), ou, de modo contrário, por um gnosticismo radical,4 sem transcendência possível, onde sempre acordamos em um novo quarto que se revela, por sua vez, dentro de outro quarto. Matrix tem mais a ver com Kafka do que poderíamos suspeitar à primeira vista.

4. Günter Anders escreveu em uma nota de seu ensaio sobre Kafka: “Se existe um Credo histórico que lembra o Credo ou o ‘Dubito’ kafkiano, não é o judaico, mas (abstraindo-se o gnóstico) o calvinista, que, num certo sentido, também já fora um ‘Dubito’ secreto” (ANDERS, 1993, p. 97).

Um dos fragmentos mais impactantes da série Er de 1920 trata justamente dessa religião terrena e corpórea, cuja porta para a transcendência está bloqueada. Trata--se do fragmento que coloquei como epígrafe neste texto: “Alguns negam a miséria indicando o sol, ele nega o sol apontando para a miséria” (KAFKA, 1994, vol. 11, p. 177).

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Essa miséria (ou precisão, pena), Jammer, normalmente é indicada por um termo mais somático: “dor”, Schmerz, pa-lavra onipresente na obra de Kafka, que a atravessa, costu-rando seus fragmentos, juntando os diários às narrativas, o corpo aos seus delírios, o “individuo” aos fragmentos do mundo. Nas suas notas lemos: “Eu poderia morrer, mas não suportar a dor [...] O pior: as dores não fatais” (Ibidem, vol. 6, p. 148). Mas “Jammer” também aparece ocasional-mente, como em uma passagem de seu diário, de maio de 1913, onde o termo novamente aparece no contexto de uma passagem, dessa feita não mais entre o “eu” e o “sol” da re-denção, mas no sentido de uma porta bem concreta:

Em uma manhã cedo, as vielas ainda estavam totalmente vazias, um homem, ele estava descalço e vestido apenas de camisola e calça, abriu o portão de uma grande casa na rua principal. Ele segurou ambas folhas da porta e respirou fun-do: “Miséria, maldita miséria”, disse ele e olhou aparente-mente calmo o percurso da rua, depois para algumas casas (Ibidem, vol. 10, p. 177).

Por outro lado, as inúmeras aparições da dor nos textos kafkianos nos remetem à dialética entre o existir, a cons-ciência de si e o sentimento da dor. É como se para Kafka valesse a máxima: “Sinto dor, logo existo”. Não por acaso, essa noção que poderia estar estampada como epígrafe na sua obra pode ser encontrada em uma formulação contun-

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dente na peça de seu conterrâneo e contemporâneo Karel Čapek. Em sua peça RUR (que significa a abreviação do nome de uma firma: Rossum’s Universal Robots), de 1920, foi Čapek quem introduziu o termo “robô” na cultura mo-derna. Nessa peça, graças aos robôs, a humanidade foi li-bertada do castigo de ter que trabalhar, dando o seu suor para poder comer e sobreviver: castigo esse, vale lembrar, imposto aos seres humanos após a mencionada expulsão do Éden. O erro que de certo modo desencadeia a autocons-ciência dos robôs nessa peça e os transforma em seres com vontade e, portanto, passíveis de se revoltarem, foi a ideia do Dr. Gall, diretor do departamento de pesquisas fisioló-gicas da RUR, de introduzir nos robôs a capacidade de sen-tir dor e de sofrer. Seu objetivo era absolutamente econô-mico: “prevenir contra a degradação do material” (ČAPEK, 1997, p. 36). A partir da capacidade de sentir dor os robôs desenvolvem outros sentimentos e acabam se revoltando contra os homens, numa perfeita revolução aniquiladora. Ou seja, novamente, a “humanidade”, a consciência de si, nascem da dor. Em Kafka, esse mal-estar no corpo, nosso mínimo vaso de contensão, nossa casa e casca que nos co-necta ao mundo, reverbera por toda a existência: “Minha cela de prisioneiro — meu forte” (KAFKA, 1994, vol. 11, p. 183); “Eu sou Latüde, o velho habitante da prisão” (Ibidem, vol. 6, p. 85); “Não conheço nenhuma saída” (Ibidem, p. 114). Mas é também como se esse mal-estar nos antecedesse: “O movimento em ondas de toda a vida, auto-mortificador,

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custoso e amplamente acidentado e na verdade incessan-te, mortifica-o, porque traz consigo a coerção do pensar. Algumas vezes parece a ele que essa mortificação antecede aos fatos” (Ibidem, vol. 11, p. 177).5

5. Cf. também essa passagem do caderno in-oitavo E, de 1917: “Caso eu, em breve, deva morrer ou tornar-me totalmente incapaz de viver — essa possibilidade é grande, já que nas duas últimas noites tive uma tosse com sangue muito forte — então posso dizer que eu mesmo me rasguei. Se o meu pai antes, em ameaças selvagens, mas vazias, costumava dizer: Eu te rasgo como a um peixe — na verdade ele não me encostava um dedo —, então concretiza-se agora a ameaça, independente dele. O mundo [...] e meu eu rasgam meu corpo em um conflito sem solução” (Ibidem , vol. 6, p. 114).

Adorno, em seu ensaio sobre Kafka do volume Prismas, destacou essa centralidade do motivo das portas em Kafka ao citar a seguinte passagem de O processo: “Imediatamen-te K. fechou a porta e bateu nela com os punhos como se desse modo ela ficasse fechada mais firmemente”. Ador-no arremata: “Este é o gesto da própria obra de Kafka, que [...] se afasta das cenas mais extremas, como se nenhum olho pudesse sobreviver àquela visão” (ADORNO, 2001, p. 249). Na passagem citada de O processo, K. fechava a porta de um quarto de despejo onde dois guardas estavam sendo espancados. De fato, é uma característica dessa obra, esse jogo de abrir e fechar as portas, de mostrar o abjeto, a vio-

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lência e o censurado, de deixar vazar o que está na cripta, ao mesmo tempo que constrói narrativas e histórias que nos distraem. Como na frase final da narrativa sobre a mensagem imperial, uma alusão clara ao leitor que recebe e ao mesmo tempo nunca recebe a mensagem do autor: “Você, no entanto, está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega”.

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referênCias

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FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Revisão técnica de Márcio Seligmann-Silva. Porto Aleg-re: L&PM, 2010.

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“ULISSES EM KAFKA”

Stéphane Mosès

Literatura Comparada/Alemã | Universidade Hebraica de Jerusalém — JerusalémTradução do francês de Rodrigo Ielpo (UFRJ)

Resumo: Em sua introdução para Exegese de uma lenda, Stépha-ne Mosès afirma que a obra de Kafka não necessita de novas interpretações, mas sim de uma “análise rigorosa de sua ló-gica subjacente”. Assim, em “Ulisses em Kafka”, investigando a dialética formal de “O silêncio das sereias”, Mosès procura expor a estrutura narrativa que comandaria esse breve texto em que o escritor tcheco acrescenta à astucia de Ulisses a in-genuidade como elemento de salvação.

 

Palavras-chave: Kafka; dialética; salvação.

Abstract: In his introduction to Exegèse d’une légende, Stépha-ne Mosès affirms that Kafka’s works are not in need of new interpretations, but rather, of a “rigorous analysis of their underlying logic”. Thus, in “Ulisses chez Kafka”, by investi-gating the formal dialectic of “Das Schweigen der Sirenen”, Mosès seeks to exhibit the narrative structure that would supposedly guide this short text in which the Czech author

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adds naïveté to Ulisses’s cunning intelligence as an element of salvation.

Keywords: Kafka; dialectic; salvation.

“O silêncio das sereias”1

Prova de que até meios insuficientes — infantis mesmo — podem servir à salvação:

Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente — e desde sempre — todos os viajantes poderiam ter feito coisa seme-lhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distân-cia; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia aju-dar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvi-do coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter ven-cido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante — que tudo arrasta consigo — não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia

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conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses — que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes — as fez esquecer de todo e qualquer canto.

Ulisses no entanto — se é que se pode exprimir assim — não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um ins-tante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desa-pareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas — mais belas do que nunca — esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não que-riam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamen-te possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniqui-ladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulis-ses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido — embora isso não possa ser captado pela razão humana — que as sereias haviam silencia-do e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

1. Para todos os textos de Kafka citados por Mosès,

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remeto o leitor às traduções de Modesto Carone publicadas nos volumes Narrativas do espólio e Um

médico rural . (N. do T.)

Em seu resumo, Kafka condensou e simplificou este episódio. Na Odisseia, somente os marujos têm as orelhas tampadas pela cera, pois eles não podem ser amarrados, tendo que deixar seus movimentos livres para remar. Ulis-ses pode se prender ao mastro, o que o permite renunciar à cera e escutar sem perigo o canto das Sereias. Na citação feita por Kafka, não se trata mais de marinheiros, e é o pró-prio Ulisses que utiliza os dois estratagemas. Mas essa mo-dificação não muda nada em relação às forças entre Ulisses e as Sereias. Tanto na fonte homérica quanto no resumo de Kafka, os dois artifícios empregados são perfeitamente eficazes para aqueles que os utilizam. E essa confiança do homem mitológico em seus poderes que importa a Kafka colocar em evidência, já que para ele o homem moderno perdeu seus poderes.

i.

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“O silêncio das sereias” faz parte do conjunto de textos e fragmentos narrativos descobertos por Max Brod nos papéis póstumos de Kafka. Inicialmente, a narrativa não tinha título. Foi Max Brod quem lhe deu o que conhece-mos hoje, quando a publicou pela primeira vez, em 1931.2 O texto original encontrava-se em um dos oito “Cadernos in-octavo” guardados atualmente na Bodleian Library em Oxford; ele foi, provavelmente, redigido em outubro de 1917.3 Do ponto de vista temático, “O silêncio das sereias” pertence a um grupo de quatro textos cujo ponto comum é o de se referirem à mitologia clássica, sendo os três outros “O novo advogado”, “Prometeu” e “Posêidon”. Os dois pri-meiros, assim como “O silêncio das sereias”, foram escri-tos com alguns meses de intervalo, enquanto o último, três anos mais tarde, no outono de 1920.4 A proximidade cro-nológica dessas quatro narrativas, vindo acrescentar-se a seu parentesco temático, reforça o sentimento de que elas formam, na obra de Kafka, um grupo distinto, exprimindo um aspecto bem particular de sua inspiração.

2. In: Beim Bau der chinesischen Mauer. Ungedruckte Erzahlungen und Prosa aus dem Nachlass. Hrsg. Von Max Brod und Hans Joachim, Berlim, 1931; 3. Malcon Pasley/Klaus Wagenbach, “Datierung sämtlicher Texte Franz Kafkas”. In: Kafka-Symposion, München: dtv, 1965, p. 64; 4. Ibidem.

Outros textos igualmente concebidos entre 1917 e 1920

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estão próximos desse primeiro grupo, menos por seu tema, propriamente dito, que por sua concepção de con-junto, a qual, por sua vez, determina sua estrutura formal. Trata-se de um conjunto de narrativas que se referem a um dado tradicional anterior: mitologia, cultura (real ou imaginária), obra literária tornada clássica. Assim, “A ver-dade sobre Sancho Pança” remete ao Dom Quixote, “O bra-são da cidade”, à Bíblia e às mitologias médio-orientais, “Uma mensagem imperial”, a uma China de faz de conta. A unidade desses textos, assim como das quatro narrativas que remetem à mitologia clássica, provém de sua estrutu-ra interna: a oposição claramente marcada entre dois ele-mentos distintos. O primeiro é uma referência a uma fonte tradicional. Essa referência pode tomar diversas formas: reenvio à narrativa tradicional (“Sobre Prometeu dão notí-cias quatro lendas”), citação de um fragmento desta (“Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro”), menção a um simples nome próprio (Bucéfalo, Posêidon, Sancho Pança, a Torre de Babel). Em todos os casos, a função dessa referência é de citar um fragmento de um mundo cultural anterior, esse fragmento servindo de ponto de partida, ou ainda de pré--texto à fábula propriamente dita. Esta, que representa na estrutura do texto o segundo elemento, desempenha em relação à citação o papel de uma glosa; comentário, exegese ou reinterpretação do material tradicional. Essas interpre-tações são sempre marcadas por uma grande liberdade,

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um tom de irreverência em relação ao mito ao qual se re-ferem. Deuses e heróis, privados de sua aura mitológica, são reduzidos à condição de personagens cotidianos: Po-sêidon torna-se um funcionário da Companhia das Águas; Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, reencarna como advo-gado. A essa dessacralização de personagens legendários acompanha uma reviravolta do sentido que o mito os tinha atribuído: Prometeu, símbolo da eterna revolta do homem contra os deuses, não interessa mais àqueles que havia irritado, sua ferida se fecha, todo mundo se cansa dele e o esquece; Ulisses, encarnação da astúcia, passa a perso-nificar a ingenuidade; Sancho Pança é o verdadeiro Dom Quixote, e o personagem que leva este nome é apenas seu duplo imaginário. No caso da narrativa “O brasão da cida-de”, a totalidade do mito assiste à inversão de seu sentido: atentos às ações preliminares, os habitantes de Babel se esquecem de construir sua Torre. Nessas transformações do mito, nessa dessacralização de textos canônicos, pode-mos reconhecer certos traços daquilo que Mikhail Bakhtin chama de “espírito carnavalesco”: reviravolta burlesca de todos os valores estabelecidos, “lógica das mésalliances e das descidas profanadoras,5 ecos, enfim, da paródia sacra, ou seja, a paródia dos textos e rituais sagrados”.6 Mas de maneira geral, os textos de Kafka são o oposto do espírito carnavalesco. Este, que manifesta “a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação”, celebra ao mesmo tempo a abolição de uma ordem antiga e o nascimento de

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um mundo novo, do mesmo modo que o carnaval é a “festa do tempo que tudo destrói e tudo renova”.7 Ao riso carna-valesco, otimista e alegre, opõe-se em Kafka a melancolia que suscita a lembrança de um universo mítico rico em certezas, mas que perdeu para nós sua significação sagra-da, e do qual não apreendemos os últimos ecos senão sob a forma degradada do paradoxo e da paródia. O humor dos textos de Kafka, ao mesmo tempo irreverente e desencan-tado, é uma forma de “grotesco modernista” que Bakhtin opõe ao “realismo grotesco” (carnavalesco) da Idade Média e da Renascença.8

5. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski . Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. p. 106; 6. Ibidem , p. 109; 7. Ibidem , p. 107; 8. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais . Tradução de Yara Frateschi. São Paulo-Brasília: Hucitec & Edunb, 1996, pp. 1-50.

ii.

No grupo das “narrativas mitológicas” de Kafka, “O si-lêncio das sereias” se distingue por uma estrutura formal mais complexa que a indicada mais acima. Por um lado,

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de fato, o texto se articula em torno da oposição entre uma citação mitológica e sua exegese. Mas por outro, ele se apresenta como um apólogo, fundado sobre um acordo en-tre um ensinamento e a fábula que o ilustra. A combinação desses dois esquemas, a maneira pela qual seus diferentes elementos se ligam, ora opondo-se, ora completando-se, definem o caráter próprio do texto e determinam seu sen-tido.

A primeira frase do texto preenche uma dupla função: ela o constitui como apólogo: “Prova de que...”, e expri-me, sob a forma de uma máxima, o ensinamento que esse apólogo traz: “até meios insuficientes — infantis mesmo — podem servir à salvação”. Todo o resto do texto forma, então, a fábula que ilustra o ensinamento e que, em cada um de seus detalhes, deve confirmar sua precisão.

Mas essa fábula não é homogênea. É ela que, no interior do apólogo, constitui a “narrativa mitológica” propriamen-te dita, com seus dois elementos antagonistas: a citação mitológica e sua glosa. “Para se defender das sereias, Ulis-ses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro”: este resumo de uma passagem da Odisseia,9 fragmento de um texto canônico e testemunho de um mundo mítico de-saparecido, forma a referência mitológica da qual a con-tinuidade da fábula (ou seja, todo o resto do texto) será o comentário. É preciso notar aqui a ambivalência funcional da narrativa mitológica propriamente dita: a citação míti-

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ca, que serve de ponto de partida e de pretexto à narrativa, é ao mesmo tempo destinada a ilustrar o ensinamento do apólogo. Da mesma forma, a parte exegética da narrativa, que tem por função interpretar a referência mitológica, isto é, de certa maneira, de reinventá-la, deve, ela também, confirmar a validade desse ensinamento. Dito de outra maneira, cada um dos dois elementos da narrativa mito-lógica (a citação e a glosa) encontra-se inserido em uma dupla rede de relações: uma cobre o conjunto de relações internas da narrativa mitológica (relação da glosa com a citação, relação de ambas com a totalidade da narrativa); a outra visa a narrativa mitológica como uma parte do apó-logo (sua fábula, sua ilustração), e compreende o conjunto de relações da citação e da glosa com a máxima inicial do apólogo.

9. Canto XII. Eis a passagem da Odisseia que inspirou Kafka: “Assim, pois, expliquei tudo em detalhes aos meus camaradas, enquanto o bem construído barco avançava rápido rumo à ilha das sereias, impelido por uma brisa próspera. Depois, de repente, cessou a aragem; seguiu-se uma calma sem ventos; um nume adormentou as vagas. Os camaradas ergueram-se, amainaram as velas, que depositaram no porão do barco e, sentados aos remos, coloriram de branco as ondas com o pinho polido. Entrementes, eu, com meu afiado bronze, cortei em pequenos pedaços um grande pão de cera e pisei-os com minhas robustas mãos; logo se aqueceu a cera e amoleceu com a grande força e com o calor de Hélio soberano, filho de Hipérion; um a um, fui vedando os ouvidos de todos

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os companheiros; eles ataram-me de mãos e pés, de pé na carlinga, suspenderam fora de meu alcance as pontas das cordas e, sentados, feriram com os remos o mar cinzento. // Estávamos à distância de um grito, avançando rapidamente, quando elas perceberam o ligeiro barco singrando perto e ergueram um canto mavioso: // — Dirige-te para cá, decantado Odisseu, grande glória dos aqueus; detém o teu barco para ouvir-nos cantar. Até hoje ninguém passou vogando além daqui, sem antes ouvir a doce voz de nossos lábios e quem a ouviu partiu deleitado e mais sábio. Nós sabemos, com efeito, tudo quanto os argivos e troianos sofreram na extensa Tróia pela vontade dos deuses e sabemos tudo quanto se passa na terra fecunda. //Assim diziam, entoando um belo cantar. Meu coração desejava escutá-las; eu pedia aos companheiros que me soltassem, acenando-lhes com os sobrolhos; eles, porém, acurvando-se, remavam. Súbito, Perimedes e Euríloco levantaram-se e prenderam-me com laços mais numerosos e apertados. Quando, afinal, eles tinham passado além das Sereias e já não ouvíamos a sua voz e o seu canto, sem demora meus leais companheiros retiraram a cera com que eu lhes vedara os ouvidos e soltaram-me dos laços” (tradução de Jaime Bruna, pp. 144-145). Em seu resumo, Kafka condensou e simplificou este episódio. Na Odisseia, somente os marujos têm as orelhas tampadas pela cera, pois eles não podem ser amarrados, tendo que deixar seus movimentos livres para remar. Ulisses pode se prender ao mastro, o que o permite renunciar à cera e escutar sem perigo o canto das Sereias. Na citação feita por Kafka, não se trata mais de marinheiros, e é o próprio Ulisses que utiliza os dois estratagemas. Mas essa modificação não muda nada em relação às forças entre Ulisses e as Sereias. Tanto na fonte homérica quanto no resumo de Kafka, os dois artifícios empregados são perfeitamente eficazes para aqueles que os utilizam. E essa confiança do homem mitológico em seus poderes que importa a

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Kafka colocar em evidência, já que para ele o homem moderno perdeu seus poderes.

É preciso acrescentar que a parte exegética da narrativa mitológica se divide ela própria em dois. De fato, o texto nos propõe duas interpretações diferentes, e, de certa for-ma opostas, da passagem da Odisseia: a primeira, cuja ex-posição cobre a maior parte do texto de Kafka (ela começa imediatamente depois da citação e termina justo antes do último parágrafo), desenvolve a ideia da ingenuidade de Ulisses; a segunda, exposta no último parágrafo, empresta ao herói grego uma sabedoria sobre-humana. Essas duas interpretações manterão, então, relações opostas tanto com a citação mitológica quanto com a máxima do apó-logo.

Podemos resumir a estrutura geral do texto através do seguinte esquema:

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O encadeamento dos diversos elementos do texto obe-dece a um princípio de composição permanente: o princí-pio de retardamento. Após a máxima que introduz o apó-logo, aguardamos a narrativa que confirmará sua justeza. No lugar dessa narrativa, o texto nos propõe uma evocação de uma passagem da Odisseia que não confirma em nada a máxima inicial. Essa confirmação é transferida para mais tarde, para a exegese que, assim esperamos, reconciliará a citação mitológica com o ensinamento do apólogo.

Mas essa exegese não conclui nada: o comentário se desloca, e uma segunda interpretação vem contradizer a primeira; o texto termina de forma ambígua, sem que sai-bamos se o ensinamento foi ou não verificado. Esse adia-mento indefinido da solução convida-nos a retornar ao texto e suas tensões. Está provado que “até meios insufi-cientes — infantis mesmo — podem servir à salvação”? A esta questão, nem o mito nem sua exegese fornecem res-posta categórica. Mas entre os quatro elementos do texto (ensino, citação e as duas interpretações), um jogo lógico e complexo de concordâncias e de contradições institui uma mobilidade dialética, uma instabilidade do sentido que, para Kafka, dá provavelmente conta, melhor que o siste-ma monológico da afirmação e da negação, das dimensões múltiplas da questão colocada: a dos meios da salvação.

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iii.

Entre a máxima que introduz o texto e a passagem da Odisseia que pretensamente a ilustra aparece logo de início uma contradição fundamental. Essa passagem, na verda-de, longe de fornecer à máxima a confirmação anunciada (“Prova de que…”), vem, ao contrário, claramente desmen-ti-la. Pois Ulisses, na Odisseia, incarna a astúcia e não a puerilidade, e os procedimentos que ele emprega para es-capar das sereias estão presentes no poema homérico não como “meios insuficientes — infantis mesmo”, mas como subterfúgios altamente refinados. Essa ruptura brutal de sentido, esse deslocamento em relação às leis habituais da lógica, tende em primeiro lugar a provocar a oscilação do texto em um mundo de incertezas e paradoxos que não tem mais nada a ver com o tom voluntariamente monó-tono e didático da máxima precedente. Ao mesmo tempo, essa contradição já implica, como única resolução possí-vel, uma reinterpretação do fragmento mítico. Apresentar o episódio de Ulisses e das sereias como uma prova da efi-ciência dos meios de salvação insuficientes e infantis é in-verter sua significação tradicional, apresentando Ulisses como ingênuo, e seus artifícios como marcas de ingenui-dade. A contradição entre a máxima e o fragmento mitoló-gico encontra-se, então, no coração deste, sob a forma de

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uma oposição entre o argumento desse episódio e sua inter-pretação, ou ainda entre sua significação tradicional e sua significação contextual. Dito de outra forma, Kafka não mo-difica os dados da narrativa tradicional; ele resume de forma fiel a passagem da Odisseia na qual se inspira; e esse episó-dio transporta consigo o sentido que a tradição sempre lhe acordou. Mas essa mesma citação mitológica, considerada não mais em si mesma, mas como um elemento funcional de um conjunto, como um dos termos de uma sequência lógica (a prova de uma demonstração), muda radicalmen-te de sentido em relação a esse novo contexto. Comparan-do a oposição externa, máxima/citação mitológica, com a oposição interna à citação, argumento/interpretação, constatamos que nos dois casos a narrativa mítica repre-senta um dado narrativo anterior, por definição, ao texto no qual ela se insere, enquanto a máxima e a interpretação exprimem, em relação a esse dado narrativo, uma situação nova. Essa dupla oposição se resume, assim, na antinomia passado/presente. Uma análise dos pontos de vista narrati-vos nas duas primeiras frases do texto de Kafka nos levaria à mesma conclusão: a máxima inicial (a apologia da inge-nuidade) está exposta no presente, pois tem valor atual; ela é imediatamente contemporânea do discurso narrativo. Da mesma forma, a interpretação contextual da passagem da Odisseia (ingenuidade de Ulisses e pobreza de suas astú-cias) é comandada por sua função de prova no interior de um raciocínio demonstrativo que, por definição, se desdo-

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bra no presente. Em compensação, a passagem da Odisseia à qual o texto se refere aparece como um empréstimo a um texto anterior (citação), dotada há muito tempo de uma interpretação canônica. O narrador insere esse fragmento mais antigo como um elemento heterogêneo no desenro-lar atual de sua narrativa. A exegese que se segue daí terá, então, por função, reconciliar os dois termos da antinomia mostrando que, apesar das mudanças trazidas pelo tem-po, o passado (um texto antigo) pode ajudar a esclarecer o presente (um ensinamento que concerne aos meios da salvação).

A estrutura que acabamos de expor, feita da combina-ção de três elementos — uma máxima, a citação de um tex-to antigo e sua exegese —, lembra a composição dos textos pertencentes à literatura judaica antiga, os midrashim ho-miléticos. Nesse gênero literário, uma máxima de ordem bastante geral é ilustrada por uma citação bíblica que su-postamente provaria a validade daquela, enquanto a signi-ficação original desta encontra-se frequentemente bastan-te afastada da mesma máxima. É então que um comentário vem interpretar a citação bíblica, isto é, modificá-la e, por vezes, até inverter seu sentido a fim de conciliá-la com o sentido do ensinamento que se deseja transmitir. Os pro-cedimentos da hermenêutica midráshica visam acordar preocupações atuais com um sistema de referências canô-nicas; mesmo se esse acordo do novo com o antigo pode,

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frequentemente, parecer artificial e pouco convincente, o essencial é, para o midrash, afirmar a continuidade de um sistema de valores e a permanência de sua autoridade.

O que há de comum entre o texto de Kafka e o midrash homilético são as tensões internas, as séries de oposições que separam e religam ao mesmo tempo os três elementos que os constituem. Mas o que os distingue é ainda mais surpreendente: em “O silêncio das sereias”, a exegese não chega a confirmar totalmente a tese da máxima. Ela hesi-ta, muda de direção, propõe uma segunda interpretação, não reconcilia claramente presente e passado. À questão sobre os meios da salvação, a sabedoria antiga não traz se-não respostas ambíguas.

iv.

A primeira exegese visa acordar a citação da Odisseia com o ensinamento do apólogo. Para fazê-lo, ela deve con-seguir inverter o sentido da narrativa homérica e provar que o que salvou Ulisses da ameaça das sereias não é sua astúcia, mas sua ignorância. Essa exegese deverá ao mesmo tempo respeitar os dados essenciais da narrativa mitológica tais como a própria citação os expõe: o confronto entre dois

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adversários — Ulisses e o grupo das sereias —, dispondo cada lado de suas armas próprias, o canto para as sereias, o ensurdecimento voluntário e a decisão de se amarrar para Ulisses. Se o sentido tradicional do mito deve ser vi-rado de ponta-cabeça, isso se dá no interior de um quadro narrativo bem delimitado; essa fidelidade aos termos da narrativa mítica determinará a escolha dos procedimentos de interpretação: o que o mito diz não podendo ser modifi-cado, a exegese que visa virar seu sentido de ponta-cabeça se apoiará sobre aquilo que ele não diz. Os elementos de base da narrativa tradicional, aos quais a exegese perma-nece fiel, testemunharão a favor do fato que o mito con-serva, de maneira geral, seu valor de paradigma. Mas se a interpretação não toca nesses dados elementares do mito, ela se desenvolve, em compensação, com toda irreverên-cia no espaço vazio que os separa. Ela acrescenta detalhes, variantes, formula hipóteses, preenche os brancos da nar-rativa, imagina motivações, tece a rede de causas e efeitos que subentende a ação.

Essa elaboração do mito significa ao mesmo tempo sua recusa, pois os dados tradicionais da narrativa homérica não bastam para assegurar sua coerência. Ao contrário, eles suscitam mais questões que as respostas ofertadas. Por que foi necessário esperar Ulisses para que fosse in-ventado um estratagema tão elementar? Por que as sereias se deixam enganar assim tão facilmente? Se o mito neces-

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sita de uma exegese, é porque ele não é claro. Não sendo portador de evidência, ele não pode pretender ensinar. A interpretação, atualizando as incoerências do mito, lhe nega sua pretensão a uma verdade apodítica. Às afirma-ções do mito, ela substitui uma série de interrogações, a suas certezas, ela opõe hipóteses, ao seu discurso de auto-ridade, a forma da dúvida e da hesitação. Esse questiona-mento da evidência mítica é obtido graças a um conjunto de procedimentos estilísticos: formas hipotéticas (“todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante […]; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada”.); formas concessivas que evocam — sem retê-las de fato — outras possibilidades narrativas verossimilhantes (“Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvi-do coisas a esse respeito”; “Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não”; “Ulisses no entanto — se é que se pode exprimir assim — não ouviu o seu silêncio”); construções disjuntivas onde exprimem-se alternativas (“E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio pode-ria conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses — que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes — as fez esque-cer de todo e qualquer canto”); atenuações de expressões sublinhando as incertezas da exegese (“talvez”; “se é que se pode exprimir assim”); ironia em relação à fonte mitológi-

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ca (“Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos”).

Essas dúvidas, essas hesitações, provêm do fato de que a exegese deve imaginar o que o mito não diz. Os elementos da narrativa tradicional lhe parecem muito fragmentários para formar um conjunto coerente. Seria preciso admitir que o episódio de Ulisses e das sereias, tal qual a tradição nos transmitiu, nos chegou sob uma forma mutilada? Ou que seu traço mesmo de fragmento, de citação apartada do universo mitológico do qual ele fazia parte, o torna atu-almente ininteligível? Nos dois casos, a atitude crítica do exegeta traduz a distância que o separa de um texto que testemunha uma visão de mundo atualmente desapareci-da. Para compreendê-lo, ele deve aí introduzir sua própria lógica, isto é, acrescentar novos dados à narrativa. Para motivar essas adições, o exegeta finge se referir a outras fontes, a tradições paralelas, a variantes conhecidas so-mente dele; mas não há mais certezas nesse caso, e em relação à evidência do texto original, tudo torna-se conjec-tural. Mas, além dessa ficção, a estrutura mesmo de um texto que opõe uma citação mitológica à sua glosa impõe ao exegeta inventar dados narrativos diferentes daqueles que a tradição fixou; esses dados novos são os que uma vi-são moderna do episódio dita a um narrador contemporâ-neo, a situação deste condenando-o a atualizar o mito para

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torná-lo inteligível.

Em relação ao fragmento da Odisseia, o texto de Kafka propõe duas inovações que invertem sua significação. Em primeiro lugar, nenhum artifício permite escapar ao canto das sereias: “O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro”. Por outro lado, nos diz o narrador, “As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu si-lêncio”, ao chamado do qual ninguém poderia se esquivar. Pois “Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante — que tudo arrasta consigo — não há na terra o que resista”. Entre essas duas motivações, somente a segunda (o silêncio das sereias) representa, em relação à narrativa da Odisseia, um dado propriamente novo. A primeira (“O canto das sereias pene-trava tudo”) constitui uma nova interpretação de um dado tradicional. A combinação dessas duas modificações cria uma situação inteiramente nova, na qual a relação entre Ulisses e as sereias encontra-se invertida. Na Odisseia, as sereias são, de fato, definidas por sua função: sua natureza é cantar, e não há nenhuma possibilidade que elas ajam de outra maneira; elas representam uma necessidade sem nenhuma liberdade. Ulisses, ao contrário, enfrenta uma provação: depende dele escutar as sereias ou permanecer surdo ao seu canto; entre a perdição e a salvação, ele é livre para escolher. No texto de Kafka, a situação do herói mito-

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lógico e de seus adversários encontra-se invertida: as se-reias possuem, então, duas armas, seu canto e seu silêncio; entre esses dois meios elas são livres para escolher. Quanto a Ulisses, ele não pode mais permanecer surdo ao canto das sereias, pois seu canto em tudo penetra. Além disso, ele também se encontra totalmente desarmado diante do silêncio delas, pois a atração deste é ainda mais irresistível aos viajantes do que seu canto. Canto e silêncio definem o conjunto de possibilidades que Ulisses corre o risco de enfrentar; em todos os casos logicamente pensáveis, ele está ne-cessariamente condenado ao fracasso.

Na reinterpretação kafkiana do mito homérico, a pri-meira modificação diz respeito à oposição liberdade/neces-sidade, em que os protagonistas inverteram seus papéis. Em relação às sereias, livres para escolher suas armas, Ulisses parece logo de início constrangido à impotência. Essa mesma reviravolta se dá no interior de uma segun-da oposição, muito próxima da primeira: a da potência e da vulnerabilidade. Na Odisseia, a situação inicial é bastante fa-vorável a Ulisses: é armado de sua legendária astúcia que ele enfrente as sereias, enquanto estas possuem apenas seu canto, ao qual, como narra o narrador-exegeta, não é difícil de escapar (“todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante…”). Por outro lado, os dois dados novos sobre os quais se funda a reinterpretação do mito aumen-tam a tal ponto o poder das sereias que elas parecem quase

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invencíveis. Diante dessa transformação do papel das se-reias, o personagem de Ulisses, cujos atributos permaneceram sem alterações, aparece como ridiculamente ingênuo, e suas astúcias não são mais que testemunhos de sua inocência.

Podemos conceber o episódio de Ulisses e das sereias como uma variação de uma sequência clássica do mito e do conto popular: o combate do herói contra forças adver-sas. Frequentemente, esse combate também é uma prova destinada a mostrar se o herói é capaz de realizar a missão para a qual foi designado. No caso de que tratamos aqui, a prova não consiste em um combate físico, mas em um con-flito moral. As sereias representam uma tentação à qual o herói deverá provar que sabe resistir. E como da resolução desse conflito depende a continuação da missão do herói, as sereias incarnam a morte, e a vontade de Ulisses, a vida. O sentido desse episódio pode, assim, se resumir a uma série de oposições semânticas: herói/adversários, sedução/re-sistência, canto/surdez, vida/morte. É preciso acrescentar que no caso da Odisseia, a resolução do conflito é previsível; ela é determinada desde o início pelo traço de exemplarida-de do herói: Ulisses é a encarnação da astúcia, ele venceu, até o momento, todos os obstáculos; a situação inicial em que a narrativa o coloca lhe é folgadamente favorável. É essa situação inicial que a exegese kafkiana modifica radi-calmente: na provação simbólica em que o homem é con-frontado a forças que querem sua perda, a vitória não lhe

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é mais prometida desde o começo. Ao contrário, o poder da tentação é irresistível; não sendo possível ficar surdo a seu canto, o chamado da morte torna-se mais forte que a vontade de viver.

O Ulisses de Kafka não é mais um herói inesgotavelmen-te invencível, mas um personagem vulnerável e ingênuo, exposto a um perigo cuja gravidade ele ignora.

Porém, é precisamente essa ignorância que se torna instrumento de sua salvação. Como seu modelo mitológi-co, o Ulisses de Kafka escapa das sereias, mas por meios opostos. Pois é dos modos da salvação que essa exegese de Homero fala. A análise deverá, logo, descobrir como, a partir de uma situação inicial de quase desesperança, o Ulisses de Kafka chega, apesar de tudo, a triunfar. É pre-ciso notar que na narrativa de Kafka, Ulisses utiliza exa-tamente os mesmos estratagemas que na Odisseia; ele não inventa novos artifícios; ao contrário, ele emprega, diante de uma situação completamente diferente, em que todas as condições lhe são desfavoráveis, meios adaptados a um estado de coisas completamente outro, em que tudo lhe era propício. Nesse caso, Ulisses não é mais autor de sua própria salvação. Além disso, os elementos narrativos que o exegeta toma emprestado à narrativa homérica (a ten-tativa de sedução das sereias, o charme do seu canto) são, eles também, invariáveis, e não podem contribuir para a transformação de uma situação inicial quase sem esperan-

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ça em uma situação final em que o herói triunfa. Somente os dados novos introduzidos pelo narrador no esquema original (o silêncio das sereias, a impossibilidade de escapar do seu canto) permitem, então, à narrativa evoluir, passando de uma situação à outra. Isso significa dizer que o que salva Ulisses no texto de Kafka não são seus próprios artifícios, mas os procedi-mentos narrativos do autor.

Esses procedimentos reduzem-se, essencialmente, à confrontação de dois elementos heterogêneos que perma-necem sempre distintos e jamais se combinam: de um lado, uma situação radicalmente transformada pelo acréscimo de novos dados, estrangeiros ao episódio mitológico. O personagem mitológico é extraído de seu mundo familiar e transposto, como em uma colagem, em um novo contex-to, preparado pelo narrador, e cujas leis lhe são desconhe-cidas. Em toda essa sequência, os pontos de vista de Ulisses e do narrador são absolutamente distintos: Ulisses comporta-se como na Odisseia, nada sabendo da ameaça que constitui para ele o crescimento da força das sereias. Esses novos poderes expõem Ulisses a perigos desconhecidos da nar-rativa homérica; o que o salva é o fato de que ele os ignora: “Quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta”.

Para permitir que Ulisses escape das sereias, o narrador deve, por assim dizer, anular as duas armas de que elas dispõem: seu canto e seu silêncio. O primeiro desses dois

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empreendimentos parece quase impossível: o canto das sereias não é somente mortal, como na Odisseia, mas igual-mente irresistível. Entretanto, as sereias têm também a possibilidade de se calarem: a introdução desse novo dado, que aumenta seus poderes, lhes confere ao mesmo tem-po a liberdade. Porém, ser livre é ser sujeito ao erro: assim que Ulisses aparece, as sereias não cantam. O narrador serve--se aí da interação de motivos: um dos dois novos elementos da narrativa (a impossibilidade de escapar do canto das sereias) é neutralizado pelo outro (a faculdade que lhes é dada de se calarem).

Mas Ulisses, que ignora as modificações acrescentadas pelo narrador moderno à fabula mitológica, não sabe que as sereias têm o dom de se calarem. Além disso, e pela mesma razão, ele não sabe que, se as sereias cantassem, ele não poderia não escutá-las. Ele deve, então, necessariamente concluir que as sereias cantam, e que ele não as entende: “Ulisses no entanto — se é que se pode exprimir assim — não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las”. Dito de outro modo, Ulisses escapa subjeti-vamente do silêncio das sereias (elas se calam, mas ele não sabe) e objetivamente do seu canto (elas não cantam). Sua salvação provém da combinação e da correlação de dois procedimentos narrativos distintos: a introdução de no-vos motivos em relação à narrativa mitológica, e o fato de que o herói ignora essas modificações. A estrutura formal

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do texto é nesse ponto ainda mais explícita que sua fábula. Esta nos ensina que Ulisses escapou das sereias ainda que suas astúcias tenham sido inadequadas. A análise dos pro-cedimentos narrativos mostra que ele foi salvo por causa dessa inadequação. O episódio de Ulisses e das sereias, tal qual inventado pelo narrador moderno, confirma, então, a tese do apólogo: existem situações de tal forma desespe-radoras que apenas a mais total ingenuidade nos permite delas escapar.

A oposição do personagem e de sua situação é simétri-ca às outras oposições que caracterizam essa passagem: fragmento mítico/exegese, passado/presente. As novas condi-ções introduzidas na narrativa pelo narrador traduzem seu ponto de vista de homem moderno. A situação sim-ples e relativamente fácil com a qual Ulisses é afrontado na Odisseia torna-se, em sua reinterpretação moderna, de uma extrema complexidade, e parece quase sem solução. Diante de tais dificuldades, o personagem mítico, seguro de suas certezas, aparece como a testemunha anacrônica de um universo atualmente desaparecido. Ulisses em Kafka: essa “montagem” irônica acusa cruelmente a insuficiência das virtudes mitológicas em um mundo onde acontece de as sereias se calarem. Ulisses, “o mais astuto dos mortais”, é apenas alguém sem consciência em um universo cujas regras ele ignora sem saber. Mas ao mesmo tempo, essa falta de consciência o protege e salva. É por não ver o pe-

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rigo que ele escapa: “acreditou que [as sereias] cantavam” (quando de fato se calavam), “e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las (quando, de fato, seus estra-tagemas não podiam de forma alguma permiti-lo esca-par da sedução de seu canto, caso elas tivessem querido cantar)”. O tamanho de sua cegueira neutraliza as sereias: “Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta”. Quando nem o cálculo nem o raciocínio permitem mais afastar o perigo, apenas o desconhecimento oferece uma oportunidade de salvação. A ignorância tangencia, então, a clarividência, e a ingenuidade transforma-se em gênio.

v.

O mito assim reinterpretado confirma a tese do apólo-go: “até meios insuficientes — infantis mesmo — podem servir à salvação”. A exegese do episódio homérico tendo fornecido a prova desse ensinamento, a argumentação pa-rece encerrada, e o texto de Kafka deveria terminar nesse ponto. Mas no último momento, o narrador acrescenta,

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meio en passant, um apêndice à sua narrativa. Existe, ele nos diz, outra versão do episódio:

Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido — embora isso não possa ser captado pela razão humana — que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

A introdução dessa segunda versão é motivada pelas incertezas da tradição. Para o narrador que escreve no presente (“De resto, chegou até nós mais um apêndice”.), o universo do mito encontra-se tão distante que apenas lhe chegam ecos fragmentários e contraditórios. Para ele, o mito não é mais fonte de verdade absoluta, mas um ru-mor confuso, proveniente de um tempo muito longínquo e entregue ao acaso das interpretações. Como, a partir de então, atribuir ao episódio de Ulisses e das sereias um sen-tido unívoco, e como um fragmento mítico, ambíguo por natureza, pode confirmar ou infirmar um ensinamento de ordem moral, senão de maneira ambígua? Em certos pon-tos, de fato, essa segunda versão da narrativa mitológica contradiz a exegese precedente: naquela, Ulisses ignora-va que as sereias se calavam; nesta, ele sabe. Na primeira interpretação, Ulisses representa a ingenuidade e a falta de conhecimento, na segunda, encarna uma lucidez sobre-

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-humana. Além disso, a própria estrutura dessa segunda versão contradiz a da primeira. Esta era fundada na dis-tância de Ulisses em relação à situação na qual ele se en-contra; naquela, ao contrário, Ulisses é integrado ao con-texto narrativo; ele conhece todos os seus dados, mesmo aqueles que foram acrescentados pelo narrador moderno do qual ele é contemporâneo. Mas, por outro lado, certos elementos dessa segunda versão são tomados fielmente de empréstimo da interpretação precedente: os poderes das sereias não são aqueles, bastante limitados, que a narra-tiva homérica lhes atribuía, mas aquele que lhes empresta a narrativa moderna do mito. Aliás, o comportamento de Ulisses é exatamente o mesmo da primeira exegese; esta, por sua vez, recuperava a descrição dos estratagemas evo-cados na Odisseia: “Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro”.

Podemos representar pelo quadro abaixo as diversas transformações que sofreu o episódio de Ulisses e das se-reias no interior do texto de Kafka:

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Atributos das sereias

Atributos de Ulisses

Atitude de Ulisses

Mito Canto Cera e correntes Astúcia

1ª interpre-tação

Canto irresis-tível

Silêncio

Cera e correntes Ingenuidade

2ª interpre-tação

Canto irresis-tível

Silêncio

Cera e correntes Astúcia sobre--humana

Podemos constatar que as condições do combate míti-co entre Ulisses e as sereias são rigorosamente idênticos nas duas interpretações. Na segunda versão, assim como na primeira, Ulisses afronta uma situação quase sem sa-ída com armas totalmente inadequadas. Toda a diferen-ça entre as duas interpretações provém da atitude interior de Ulisses, isto é, da maneira como ele compreende a si-tuação. Porém, é dessa atitude interior que depende sua salvação ou sua perdição e, mais precisamente, de seu conhecimento ou sua ignorância sobre os novos dados

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acrescentados pelo narrador. Para escapar do silêncio das sereias, ao qual ninguém resiste, Ulisses, na primeira exe-gese do mito homérico, deve ignorar que elas se calam; ele crê que as sereias cantam e que ele é o único a não escutá--las. Na segunda versão, ao contrário, ele sabe que elas não cantam; para escapar a elas, ele não pode senão fingir não sabê-lo, fazer como se ele acreditasse que elas cantam para todo mundo e que apenas ele não as escuta. A modificação é invisível; tudo se passa no espírito de Ulisses. Entre ingenui-dade verdadeira e ingenuidade simulada, ignorância real e ignorância fictícia, nada, do exterior, permite a escolha de uma dessas opções. O cálculo extremo emprega aqui a máscara da extrema inocência: Ulisses possui um conhe-cimento total da situação, ele compreende todos os dados e sabe como eles podem se combinar. Sua ciência do jogo e de suas regras lhe ensina que o único lance vencedor é aquele que postula a ignorância de uma parte dos dados. Logo, ele reconstituirá o conjunto do processo lógico con-duzindo dessa ignorância inicial à salvação final. Essa fic-ção que ele organiza tem provavelmente todas as aparên-cias da realidade; mas é uma mise en scène (Scheinvorgang), um espetáculo montado para iludir as sereias e os Deuses, ou ainda, como sugere o duplo sentido da palavra Schild, um painel parecido com os relevos que ornamentavam os escudos antigos.

Mas Ulisses não pode aqui simular a ignorância senão

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porque seu lugar na estruturada narrativa mudou radical-mente. Se agora ele sabe que as sereias se calam, é porque, ao menos nesse ponto, sua perspectiva se confunde com a do narrador moderno. Ainda que esses artifícios (a cera e a corrente) permaneçam os mesmos que o atribuía a Odis-seia, o Ulisses dessa segunda versão não é mais idêntico ao herói legendário prisioneiro dos limites do mundo homé-rico e incapaz de perceber a nova realidade na qual o nar-rador ironicamente o transpôs. A oposição passado/presen-te, que dominava a primeira reinterpretação, muda aqui de sentido, pois o personagem tornou-se contemporâneo de uma narrativa da qual ele não compreende as leis. Entre-tanto, por outro lado, todo artifício de Ulisses consiste em fingir que ele as ignora. Por seu comportamento exterior, ele se conforma facilmente a seu próprio modelo mitológi-co. Esse papel que ele representa desdobra o personagem em dois: um Ulisses moderno, perfeitamente consciente de sua situação sem solução, e outro Ulisses mitológico, armado de sua simplicidade. Para escapar das sereias, o Ulisses moderno, privado da ignorância que engendrava sua salvação, pode apenas imitar essas atitudes, assumin-do a máscara de seu modelo arquetípico.

A função desse Ulisses moderno é muito próxima da do narrador. Partilhando seu ponto de vista sobre a narrativa, ele se situa no interior de um mundo infinitamente mais complexo que o universo do mito. Como o narrador, ele

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pertence ao presente da narrativa, não ao passado do texto tradicional. Mas seu parentesco com o narrador vai além: como este, o Ulisses moderno é criador de ficção. Certamen-te ele não chega a inventar os dados de sua situação; es-ses se impõem a Ulisses como uma necessidade exterior da qual ele é provavelmente consciente, mas que ele não criou. Porém, uma vez confrontado a essa situação, ele ima-gina o que ele teria feito se tivesse sido ingênuo, ou seja, dito de outra forma, o que teria feito em seu lugar o Ulisses da mi-tologia. Autor de sua própria história, ele reinventa por sua própria conta as atitudes que o narrador, na versão pre-cedente do episódio, havia atribuído ao herói mitológico. A hipótese de que essa segunda versão seja a verdadeira significaria que Ulisses nunca desenvolveu o raciocínio implícito que o narrador o empresta na primeira exegese, mas que ele somente fingiu desenvolvê-lo, para enganar as sereias e os Deuses. Nesse caso, seria ele o verdadeiro in-ventor. Em outras palavras, não é o narrador que, através desse raciocínio, traduziria seu ponto de vista sobre a si-tuação e o imporia a Ulisses como algo vindo do exterior, mas é a lógica interna do próprio personagem que teria se imposto ao narrador. Um Ulisses moderno, consciente de ser prisioneiro de uma situação praticamente sem solu-ção, não pode tentar se salvar senão “manipulando” seus adversários, isto é, sugerindo-lhes uma falsa imagem dele mesmo que os enganará. Podemos nos perguntar por que é tão importante para Ulisses se fazer passar por ingênuo

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aos olhos das sereias, quando de qualquer modo ele encon-trou o meio, no que lhe diz respeito, de se tornar insensível ao silêncio delas. É que na verdade, há uma ideia subjacente em toda essa manobra: os Deuses, que não toleram que o homem possa lhes escapar através da astúcia, não se dei-xam desarmar senão pelo espetáculo fascinante do desco-nhecimento absoluto.

Esse Ulisses jogador e mascarado, tão próximo do nar-rador que se confunde em parte com ele, inventor de fic-ção, imitando com perfeição uma ação arquetípica e enga-nando até os Deuses por sua falsa ingenuidade, não tem todos os atributos do escritor? Kafka não cessa de repetir: a escritura é um combate contra os Deuses, onde salvação e perdição estão em jogo, e onde a astúcia suprema consiste, talvez, em fingir ingenuidade.

vi.

No texto de Kafka, o resumo do episódio homérico, fragmento mitológico apartado de seu contexto, é como o rastro, desprovido por si próprio da significação de um universo desaparecido. Para torná-lo inteligível é preci-

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so transpô-lo para outro contexto, projetar sobre ele uma nova luz, ou seja, integrá-lo ao universo de nossas preocu-pações familiares. Tal é o sentido de sua confrontação com uma máxima que concerne à conduta de nossa vida coti-diana, mas que, ao mesmo tempo, coloca a questão infini-tamente mais geral dos modos da salvação: “até meios in-suficientes — infantis mesmo — podem servir à salvação”. É essa afirmação que o episódio de Ulisses e das sereias é convidado a confirmar ou desmentir. A questão implícita colocada pela exegese do fragmento mitológico será então: o mito ainda pode nos falar hoje? Sua verdade ainda pode nos atingir? Ao final da primeira interpretação, o mito so-mente chega a confirmar a tese do apólogo porque sua sig-nificação é ironicamente invertida: em relação à realidade quase sem saída imaginada pelo narrador. Ulisses, o mais astuto dos heróis mitológicos, aparece como a própria en-carnação de uma ingenuidade que, somente ela, permite ao homem escapar das ameaças que o cercam por todos os lados. Uma segunda interpretação, da qual a mera possibi-lidade vem instaurar a dúvida sobre aquela que a precede, confirma o ensinamento inicial somente invertendo seu sentido: a ingenuidade de Ulisses é apenas um jogo, o qual traduz, na verdade, uma astúcia sobre-humana.

Essas duas interpretações provam que o mito só nos atinge sob a forma da ironia e do paradoxo. A verdade que ele nos transmite é profundamente ambígua: para ser sal-

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vo, ele nos diz, é preciso ser ou imensamente ingênuo ou imensamente astuto, aquém da sabedoria ou além dela. A extrema simplicidade pertence àqueles que, como o Ulis-ses da primeira interpretação, ainda carregam a inocência original de um tempo desaparecido. Aqueles a quem essa graça foi recusada podem apenas entregar-se à máscara e ao artifício para reencontrar, como o Ulisses da segunda interpretação, uma ingenuidade simulada nos jogos da mimese, opondo às sereias e aos Deuses os poderes da fic-ção.

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SOBRE OS AUTORES

Alberto Pucheu é professor de Teoria Literária da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro e poeta. Seu último livro de ensaios se intitula Apoesia contemporânea.

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Carla Rodrigues é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ (PPGF/IFCS/UFRJ), doutora e mestre em Filosofia (PUC-Rio); realizou pesquisa de pós-doutorado (IEL/Uni-camp) como bolsista PDJ/CNPq. É vice-coordenadora do Khôra — laboratório de filosofias da alteridade (UFRJ/CNPq) e do GT Desconstrução, linguagem e alteridade (ANPOF). É autora, entre outros, de Coreografias do feminino (Ed. Mulhe-res, 2009) e Duas palavras sobre o feminino — hospitalidade e responsabilidade, sobre ética e política em Derrida (NAU Editora/Faperj, 2013).

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Claude Le Manchec é professor na IUFM de Chambéry, Clau-de Le Manchec é Doutor em Linguística pela Paris I (EHESS). Autor de vários livros sobre a história e sobre as práticas de linguagem oral, ele é atualmente pesquisador do NPRI. Entre diversos livros, publicou Franz Kafka; En tout, je n’ai pas fait mes preuves; choix de correspondances, tendo sido igualmente o tra-dutor de tais cartas selecionadas de Kafka (Editions de l’éclat, Paris, 2012. www.lyber-eclat.net), que traz uma longa apresen-

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tação sobre a questão da epistolografia do autor tcheco. A res-peito de Kafka, publicou ainda Kafka,contre l’oubli, le récit (Edi-tions Modulaires Européennes, 2012) e Kafka et la question étique (Editions du Cigne, 2014).

Cláudio Oliveira é doutor em Filosofia pela UFRJ, Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Fe-deral Fluminense. Organizador de Filosofia, Psicanálise e Socie-dade (Ed. Azougue) e autor de Do tudo e do todo ou de uma nota de rodapé do parágrafo 48 de Ser e Tempo: uma discussão com Hei-degger e os Gregos (Ed. Circuito, no prelo). Traduziu o “Íon” de Platão (Ed. Autêntica), O homem sem conteúdo e A comunidade que vem de Giorgio Agamben (Ed. Autêntica) e Se Parmenides de Barbara Cassin (Ed. Autêntica, no prelo).

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Filipe Pereirinha é membro da Antena do Campo Freudia-no (ACF - Portugal), associação psicanalítica ligada à New Lacanian School (NLS) e à Associação Mundial de Psicaná-lise (AMP). O seu encontro com a psicanálise de orientação lacaniana aconteceu durante a licenciatura em Filosofia, na Universidade Nova de Lisboa (UNL), e foi determinante no rumo posterior dos seus estudos, tanto ao nível do mestrado em Filosofia, com uma tese sobre o desejo em Deleuze e La-can, como ao nível do doutoramento em Filosofia Moderna e Contemporânea, com uma tese sobre a questão do sujeito em Lacan. Foi Professor e Investigador na Universidade Lu-sófona (ULHT), onde esteve ligado, em particular, desde a sua criação, ao Centro de Estudos de Psicanálise (CEP). Tem vários artigos publicados em livros e revistas, nomeadamen-te em Portugal, França e Brasil. Destacam-se os livros Psica-

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nálise & Arredores e Uma pedra no Caminho (no prelo). Está em preparação uma coletânea com os artigos mais recentes.

Flavia Trocoli é professora do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Comparada e Literatura e Psicanálise. É membro--fundador do Centro de Pesquisas Outrarte: psicanálise entre ciência e arte, no IEL/UNICAMP. É autora de A inútil pai-xão do ser: figurações do narrador moderno, 2014, e coor-ganizadora de Um retorno a Freud, 2008, e Teoria Literária e suas fronteiras, 2014.

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Giorgio Agamben é mundialmente considerado um dos filó-sofos mais importantes de nosso tempo. Em 1964, ele partici-pa do filme O evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini. Em 1966 e 1968, ele participa dos seminários de Thor ministrados por Martin Heidegger, o primeiro sobre Herá-clito e o segundo,sobre Hegel. Entre 1974 e 1975, foi bolsista do Instituto Warburg, onde começa a escrever seu segundo livro, Estâncias. Amigo íntimo de poetas, romancistas e filó-sofos, que o marcaram e frequentam seus textos, como, entre outros, Giorgio Caproni, Ingeborg Bachmann, Elsa Moran-ti, Pierre Klossowski, Guy Debord, Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida e Antonio Negri. Com Italo Calvino, planejou fundar uma revista, além de terem sido, juntos, consultores da edi-tora Einaudi. Foi o editor das obras completas de Walter Ben-jamin na Itália, tendo descoberto, muitos manuscritos seus até então perdidos. Seus livros têm sido publicados no Brasil, onde são muito bem conhecidos e trabalhados.

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Judith Butler é doutora em Filosofia pela Universidade de Yale. Deu aulas em diversas universidades americanas, atu-almente é professora da Universidade da Califórnia, Berke-ley, e uma das principais referências nos estudos de questões contemporâneas em torno do feminismo, da teoria queer e da filosofia política. É autora de diversos livros, entre eles Undo-ing gender, The psychic life of power: Theories in subjection, e Bodies that matter: On the discursive limits of “sex”.

Márcio Seligmann-Silva é doutor em Teoria Literária pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e profes-sor de Teoria Literária na UNICAMP. É autor de, entre outras obras, Ler o Livro do Mundo (Iluminuras, 1999), Adorno (Publi-Folha, 2003), O Local da Diferença (Editora 34, 2005), Para uma crítica da compaixão (Lumme Editor, 2009) e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno (Editora Civilização Brasileira, 2009). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha e México.

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Michael Löwy é um sociólogo nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e radicado na França. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), foi homenageado com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais no ano de 1994. É autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Franz Kafka: sonhador insubmisso (2005), Lucien Goldmann ou a dialéti-ca da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012) e organizador de  Revoluções  (2009) e Capitalismo como reli-

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gião (2013), de Walter Benjamin.

Paulo Sérgio de Souza Jr. é psicanalista e tradutor na cidade de São Paulo. Pós-doutorando do Programa de Pós-Gradu-ação em Ciência da Literatura da UFRJ, concluiu doutora-do em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/Unicamp. Atuou como professor-associado na Catedra de limbă română şi lingvistică generală da Universitatea Ale-xandru Ioan Cuza din Iaşi (2009) e foi tradutor residente do Institutul Cultural Român - ICR/Bucareste (2013). Traduziu, dentre outros livros: O amor da língua, de J.-C. Milner (Editora da Unicamp, 2012).

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Piero Eyben é professor adjunto de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília. Pesquisador de Produtividade do CNPq. Poeta e Tradutor. Coordena o Grupo de Pesquisa Es-critura: Linguagem e Pensamento. Autor de Escritura do retorno: Mallarmé, Joyce e Meta-signo, Ocos e Voo de rapina; organizou os volumes Derrida, escritura & diferença no limite ético-estético (co--org. Fabricia Walace Rodrigues), Demoras na aporia: bordas do pensamento e da literatura, Pensamento intruso: Jean-Luc Nancy & Jacques Derrida; além disso, traduziu textos de Nancy, Derrida e Joyce.

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Ricardo Timm de Souza (Farroupilha (RS), 1962) é Professor Titular da FFCH/PUCRS, doutor em Filosofia pela Albert-Lu-dwigs-Universität Freiburg (1994), atuante nos Programas de Pós-graduação em Filosofia, Letras e Ciências criminais da

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PUCRS. Autor de 22 livros e 12 coletâneas organizadas.

www.timmsouza.blogspot.com.br.

Rodrigo Ielpo é doutor em literatura francesa pela UFRJ e em História e Semiologia do texto e da imagem pela Université Paris VII, com pós-doutorado em Teoria Literária pela UNI-CAMP. Professor Adjunto do Departamento de Letras Neola-tinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui pu-blicações e traduções nos seguintes temas: teoria e literatura francesa contemporâneas, escrita e processos de subjetivação.

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Stéphane Mosès foi professor emérito da Universidade He-braica de Jerusalém, onde ensinou Literatura Alemã e Compa-rada, entre os seus principais interesses estavam o pensamen-to de Franz Rosenzweig e de Walter Benjamin e as literaturas de Franz Kafka e de Paul Célan. Autor de diversos livros, entre eles: L’ange de l’histoire. Rosenzweig, Benjamin, Scholem, Exégèse d’une légende, lectures de Kafka, e Rêves de Freud. Six lectures.

Tomaz Amorim Izabel, 26 anos, é poeta e doutorando em Te-oria e Crítica Literária na USP. Estuda Kafka há alguns anos e traduziu os Aforismos de Zürau (Medita, 2012).

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CHAMADA DE ARTIGOS PARA OS PRÓXIMOS DOSSIÊS

Submissões va e-mail: [email protected]

Escrever “SUBMISSÃO” no campo assunto

dossiê dramaturGia, teatro e soCiedade

Organizadora: Priscila Matsunaga (UFRJ)

No prefácio à 3ª edição de Literatura e sociedade, Antonio Candido ressalta que os estudos ali reunidos procuraram “focalizar vá-rios níveis da correlação entre literatura e sociedade”. Utilizan-do o plano traçado pelo crítico, este número pretende congregar contribuições sobre a literatura dramática e o espetáculo teatral, privilegiando estudos que buscam “averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura” e “como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a fun-ção que a obra exerce”. Do primeiro ponto, serão contempladas reflexões que buscam problematizar as alterações cênicas e tex-tuais advindas do processo social; do segundo ponto, os ensaios terão como ponto de reflexão privilegiada as modelações e expe-dientes que remetem a funções sociais e políticas extra-teatrais. As reflexões buscarão iluminar os procedimentos do fenômeno teatral, privilegiando ensaios que enfrentem a interpenetração, teórica e analítica, quanto ao fazer artístico e processo social.

Prazo para envio de artigos: 15 de janeiro de 2015.

dossiê sieGfrid kraCauer

Editora convidada: Danielle Corpas (UFRJ)

O dossiê acolhe artigos sobre o pensamento de Siegfried Kra-cauer, nos diversos campos em que atuou o “intelectual nôma-de”. As contribuições para a crítica e a teoria do cinema e da cul-tura de massa, as formas de seu peculiar ensaísmo, a produção como romancista, a discussão da historiografia, a recepção de escritores como Proust e Kafka, as relações de sua obra com as de contemporâneos como György Lukács, George Simmel, Wal-ter Benjamin e Theodor Adorno, entre outros, são alguns dos tópicos de maior interesse.

Prazo para envio de artigos: 15 de janeiro de 2015

COLABORADORES DESTE NÚMERO

Alberto Pucheu

Flavia Trocoli

Giorgio Agamben

Claudio Oliveira

Michael Löwy

Paulo Sérgio de Souza Jr

Carla Rodrigues

Piero Eyben

Ricardo Timm de Souza

Claude LeManchec

Filipe Pereirinha

Judith Butler

Tomaz Amorim Izabel

Márcio Seligman-Silva

Stéphane Mosès

Rodrigo Ielpo