revista semana da África na ufrgs – 2016

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MAHFOUZ AG ADNANE: A LUTA PELA LIBERDADE DOS KEL TAMACHEQUE NO SAARA MAHOMED BAMBA: A RECEPÇÃO DO “CINEMA AFRICANO” NO BRASIL ENTREVISTA COM MANZAMBI VUVU FERNANDO, PROFESSOR DE ANGOLA REVISTA v.3, n.1 Maio 2016 : : ISSN 2357-9668

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Publicação que visa sistematizar e compartilhar os conhecimentos produzidos nos diferentes momentos das edições da Semana da África da UFRGS, possibilitando aos leitores a oportunidade de conhecer mais sobre o pensamento africano e sobre este continente. Além disso, cada edição traz um encarte que pode ser utilizado como ferramenta didática por educadores.

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  • MAHFOUZ AG ADNANE:

    A LUTA PELA LIBERDADE

    DOS KEL TAMACHEQUE

    NO SAARA

    MAHOMED BAMBA:

    A RECEPO DO

    CINEMA AFRICANO

    NO BRASIL

    ENTREVISTA COM

    MANZAMBI VUVU

    FERNANDO, PROFESSOR

    DE ANGOLA

    R E V I S TA

    v.3,

    n.1

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  • ApresentaoA Revista da Semana da frica na UFRGS chega s suas mos mais uma vez

    como resultado da Semana da frica, realizada de 26 a 29 de maio de 2015, em sua 3 edio. O evento promoveu a reflexo e o dilogo a partir da apresentao dos trabalhos dos estudantes africanos de graduao e ps-graduao e pesquisadores brasileiros das temticas africanas. Foi uma oportunidade de aproximar a comuni-dade acadmica da UFRGS de realidades, atores e interpretaes diversas, interme-diados com professores das redes pblicas de ensino e a sociedade em geral.

    O tema Pensamento Africano Contemporneo serviu de mote para abor-dar aspectos da economia, religio, histria, cultura, gnero, desenvolvimento so-cial, urbano e rural dos pases africanos e sua relao com a sociedade brasileira. A carga horria de 23 horas da Semana da frica, contou com a presena de cerca de 150 pessoas por turno, oportunizando aprendizados e aproximando interesses comuns entre brasileiros e africanos. Embora as determinaes legais que tornam obrigatrio o ensino escolar e acadmico desses assuntos, eles ainda assumem car-ter introdutrio nesses sistemas. Os grandes eixos das histrias e culturas africanas e afro-brasileiras e as relaes entre si so pouco conhecidas e pouco pesquisadas, ocupando espaos limitados nas salas de aulas.

    A Revista da Semana da frica na UFRGS tem sido uma das formas de pe-renizar o evento, suas principais discusses e aprendizados, tornar pblico um contedo diferenciado, construdo pelos prprios africanos no dilogo conosco. A entrevista com o professor Manzambi Vuvu Fernando, da Universidade Agostinho Neto, e o encarte especial sobre os imigrantes africanos que chegam ao Brasil, espe-cialmente, so dois tpicos da Revista que descortinam aspectos muito diversos das relaes que estabelecemos com o continente originrio.

    Os deslocamentos de pessoas, servios e mercadorias so parte de uma longa histria entre o Brasil e o continente africano. A Revista que est em suas mos apenas um gro de areia nesse vasto horizonte, abra e sinta essa maresia que cruza o Atlntico em todos os tempos e direes e chega at ns.

    Jos Antnio dos SantosDEDS/PROREXT

  • Sumrio

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    59 IMAGINAES AFRICANAS : LITERATURA, MSICA E CINEMAO conceito de imaginao africana segundo Francis Abiola Irele

    Deserto musical: expresso potica e poltica na luta pela liberdade e emancipao dos Kel Tamacheque no Saara.

    A recepo do Cinema Africano no Brasil: os micro-espaos de renegociao dos sentidos dos filmes africanos.

    A poesia de autoria feminina na frica lusfona.

    INTERPRETAES AFRICANASEtnofilosofia africana e saberes endgenos na obra de Paulin Hountondji

    O CODESRIA e a produo do conhecimento no contexto da globalizao

    Vises de Brasil e Estados Unidos por africanas

    DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADEDesenvolvimento urbano sustentvel na frica: alguns apontamentos para a realidade moambicana

    A agricultura familiar africana e os desafios para o desenvolvimento humano

    frica: em busca do desenvolvimento sustentvel

    Homenagem a Mahomed Bamba

    95COOPERAO INTERNACIONAL UFRGS - FRICA

    Conversando com o Prof. Manzambi Vuvu Fernando

  • a China uma boa alternativa de cooperao para frica?

    Prtica de gesto do conhecimento na Guin-Bissau: o caso da empresa MTN Guin-Bissau.

    Polticas pblicas africanas: os 7 milhes em Moambique, estudo de caso do distrito de Boane, 2007 2011.

    Transio e consolidao democrtica em perspectiva comparada: Guin Bissau e Cabo Verde.

    A sustentabilidade na sociedade africana: uma questo cultural.

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    Moambique rumo incluso digital e cultural em redes educativas: desafios para o ensino bsico.

    Internet na frica: dilemas e desafios.

    125 RESUMOS SEMANA DA FRICA 2015

    Mudana estrutural do socialismo para o capitalismo na Guin-Bissau de 1974 ao sculo XXI e as perspectivas para o desenvolvimento do milnio: uma anlise sob a tica institucionalista.

    Aes antrpicas, proteo jurdica e matatransfronteiria de NComp

    As questes de gnero nas polticas de energia renovvel na frica Ocidental

    SABENDO MAIS

    DEPOIMENTOS

    Os talentos africanos na dispora:Idowu Akinruli e Mamadou Abdoul SnePesquisas recentes na UFRGS

    Em anexo, encarte :

    IMIGRAO AFRICANA NO BRASIL

  • Adinkra o nome dado ao conjunto de smbolos africanos que representam ideias expres-sas em provrbios. Alm da representao grafada, os smbolos adinkra eram estampados em tecidos e adereos, esculpidos em madeira ou em peas de ferro para pesar ouro. Muitas vezes so associados realeza, identificando linhagens ou soberanos.

    O adinkra, dos povos ac da frica ocidental (notadamente os asante de Gana), um entre os vrios sistemas de escrita africanos fato que contraria a ideia de que o conhecimento ances-tral africano se resumia apenas oralidade e expande a noo ocidental de que a escrita esteja adstrita apenas letra grafada.

    Smbolos adinkra foram utilizados em todas as artes desta revista.

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    Smbolo adinkra que remete ao amor, proteo, segurana.

    Fonte: NASCIMENTO, ELISA LARKIN. Adinkra, Sabedoria em smbolos africanos. Rio de Janeiro: Pallas / IPEAFRO, 2009.

  • DESENVOLVIMENTOE SUSTENTABILIDADE

    As interpretaes africanas sobre o passado e o presente esto consolidadas nas publicaes dos prin-cipais centros universitrios e de pesquisa, resultado do trabalho de cientistas, filsofos e intelectuais. Um exemplo o Conselho para o Desenvolvimento da Pes-quisa em Cincias Sociais em frica CODESRIA, cria-do, em 1973, no Senegal, e hoje considerado uma refe-rncia na produo do conhecimento no continente.

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    DESENVOLVIMENTO

    URBANO SUSTENTVEL

    NA FRICA: ALGUNS

    APONTAMENTOS PARA

    A REALIDADE

    MOAMBICANA

    Elmer Agostinho Carlos de Matos | Moambicano, doutorando em Geografia na UFRGS

    principalmente das cidades ao sul do Saha-ra, implica compreender como essa forma de organizao socioespacial desmontou as anteriores e implantou processos algenos e estranhos realidade desses povos. Se nos associarmos a Queiroz (1978) e consi-derarmos que as sociedades passaram por etapas nas formas de organizao do/no espao com implicaes no seu relaciona-mento com os diferentes objetos, podemos perceber que a passagem de uma socieda-de tribal para a sociedade agrria signi-ficou uma evoluo quantitativa no for-necimento de alimentos, permitindo que surgissem determinados grupos de pessoas que pudessem se desvincular da atividade agrcola e desenvolverem outros tipos de atividades, reproduzidas em novas formas de organizao socioespacial. Essa possibi-lidade permitiu o surgimento de cidades polticas e/ou administrativas onde, com o

    Pedir para abordar a sustentabili-dade urbana nos pases africanos pedir para tratar de parte desta problemtica que, para esses pases, deveria ser pensada de uma forma mais abrangente, envolven-do no s as reas rurais, como tambm a sociedade urbana que vem demandando o consumo energtico e mineiro prove-niente dos pases da periferia. Como pen-sar a sustentabilidade urbana na frica quando a pobreza e a sua incidncia au-mentam nas reas rurais? Como pensar a sustentabilidade urbana quando ainda no somos uma sociedade urbana com-pleta ou em consolidao? Como entender a sustentabilidade dos espaos urbanos em pases do continente africano sem compre-ender o transplante dessa forma de organi-zao socioespacial para esse continente? Entender o atual estgio de desen-volvimento urbano das cidades africanas,

    O autor inicia o texto com uma srie de questionamentos sobre a sustentabilidade urbana em frica, demonstrando, de certa forma, que muitos dos problemas que devem ser enfrentados so comuns maioria dos pases. Ao deter-se nas realidades das principais cidades moambicanas, aponta o crescimento desordenado das reas urbanas e a relao direta com o meio rural, que acarretam problemas em servi-os sociais bsicos, como: abastecimento de gua, saneamento bsico e recolha de resduos slidos.

  • Cidade de Angoche, Moambique.

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    passar do tempo, a atividade comercial foi se desenvolvendo e se consolidan-do. Com a evoluo tcnico-cientfica, acompanhada da revoluo industrial, as cidades passaram a dominar o campo, demogrfica e economicamente, surgin-do, ento, as cidades industriais e, com elas, a formao da sociedade urbana, como nos demonstra Lefbvre (1999). Este foi o caminho trilhado pelos pases atualmente considerados desenvol-vidos. Os mesmos no permitiram que esse processo seguisse o seu rumo no continente africano, ou seja, no permitiram que essa transio se desse segundo as suas realida-des sociais, culturais e espaciais. As cidades poltico-administrativas e comerciais j existentes foram destrudas e substitudas por outras cidades comerciais, dominadas por mercenrios, que reproduziam estilos de vidas ocidentais. O domnio completo dos territrios do continente africano per-mitiu que a produo do espao urbano se processasse moda ocidental e, com ela, o surgimento de cidades duais, prontas para

    responder aos interesses da metrpole. Muitas das cidades africanas tm a sua origem e desenvolvimento ligados ao processo de extrao e exportao de recur-sos naturais, sendo cidades porturias ou ainda cidades com a funo de controle mi-litar e administrativo de reas do interior. As mesmas produziram duas formas de or-ganizao interna da cidade, onde uma era a reproduo clssica do modelo ocidental e a segunda era uma rea de concentra-o de indgenas prontos para responder s necessidades dos cidados europeus. Arajo (2003), estudando a organizao interna das cidades africanas, com desta-que para as moambicanas, desenvolveu um modelo de organizao interna dessas cidades, denominado por modelo de man-chas circulares concntricas. O autor de-fende que no perodo colonial a cidade era constituda por duas manchas, uma deno-minada de cidade de cimento, construda para os europeus, com bairros organizados numa planta ntida, com ruas e avenidas amplas, edifcios de diversos pisos e con-

  • Vista de Maputo a partir da vila de pescadores, Catembe.

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    tendo infraestruturas e servios urbanos. A segunda mancha, denominada de cida-de de canio, localizada logo no entorno da cidade de cimento, era caracterizada por bairros sem uma planta definida, de crescimento espontneo e anrquico, com ruas estreitas e tortuosas, carente de in-fraestruturas e servios sociais bsicos. A questo racial tambm marcava a organizao interna da cidade, ou seja, a cidade estava organizada em funo da cor da pele e de sua origem, refletindo-se, tambm, no acesso a determinados servi-os pblicos e de lazer que a cidade ofe-recia. Nessa altura, a cor da pele indicava os locais por onde morar e consequente-mente a sua posio socioeconmica na cidade. Os indgenas negros estavam con-denados a viver na periferia. importan-te destacar que entendemos a periferia na acepo de Milton Santos, que amplia o conceito de periferia para a questo de acessibilidade, desprendendo-o da questo fsica. Esse conceito, para ns, corresponde ao lugar ocupado tendo em conta o sta-tus social, econmico e, sobretudo, racial. As cidades so espaos de atrao da populao rural, principalmente pela iluso de uma provvel melhora na qua-lidade de vida. Tambm, a migrao pode estar associada modernizao da agricul-tura e dos servios no campo, fraca pro-dutividade agrcola no campo ou ainda s guerras civis que afetam, muitas vezes, os espaos rurais. O acelerado crescimento demogrfico urbano que marcou e marca a realidade dos pases africanos tem in-cio com o alcance da independncia, onde se inicia uma corrida para a recuperao do tempo perdido e para a materializao do sonho renegado por muito tempo. Em Moambique, entre 1970 e 1980, perodo em que o pas alcana a independncia, o crescimento da populao urbana chegou a ser de 20%, sendo alimentado pela mi-grao campo-cidade e periferia-centro. Durante esse perodo, a populao urba-na transitou de 9%, em 1974, para 13%, em 1980, ocupando principalmente os lu-gares vagos deixados pelos portugueses em funo da independncia. Na dcada seguinte, o crescimento demogrfico con-tinuou a ser significativo, porm foi cin-

    co vezes menor que no perodo anterior. O aumento da populao urbana esteve li-gado s condies climticas adversas com impactos na produo agrcola, o intensifi-car da guerra civil que afetou mais as reas rurais e a decadncia do projeto desenvol-vimentista moambicano. Com o fim da guerra civil e a estabilidade poltico-econ-mica, o pas realizou, em 1997, o II Recen-seamento Geral da Populao e Habitao, onde se constatou que a populao urbana havia alcanado cerca de 29% da populao total. Em 2007, quando da realizao do III Censo, a populao urbana passou a ser de 30%, alcanando mais de seis milhes de habitantes vivendo em espaos urbanos. At 1980 as cidades moambi-canas eram constitudas principalmen-te por duas malhas urbanas. A exploso urbana que ocorreu nesse perodo foi para ocupar esses espaos, com maior in-cidncia para a cidade de cimento. No perodo seguinte, em funo da reclassi-ficao urbana, as cidades aumentaram o seu espao fsico, passando a incorpo-rar reas rurais como forma de assegu-rar o crescimento da populao urbana.

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    Esse fenmeno que confunde o conceito de cidade com o de urbano possibilitou que v-rias famlias dormissem rurais e acordas-sem urbanas, com os mesmos deveres que a populao da cidade de cimento, mas sem os mesmos direitos. Esse perodo marca-do pela imploso urbana e pela ruraliza-o das reas mais perifricas da cidade. Dessa forma, as cidades moam-bicanas passaram a ser formadas por trs manchas, com o acrscimo das reas ru-rais ao espao da cidade. Essa nova rea, considerada rea periurbana, marcada por uma convivncia entre agricultores e populao de renda mdia que vai aban-donando as duas outras manchas para construir nesse espao. A miscelnea de populaes com status social e econmi-co diferente vai permitindo uma segrega-o interna, como tambm a expropria-o da terra das famlias mais carentes. Apesar de nos atermos rea-lidade moambicana, a exploso ur-bana e a ruralizao de reas peri-fricas das cidades tambm marcou a maioria das cidades africanas. Ara-jo et al. (2008) referem que os ritmos

    de crescimento da populao urbana na frica so acelerados e que os mesmos no vm acompanhados pelo crescimento das infraestruturas sociais bsicas, o que de-grada a qualidade de vida dentro dos cen-tros urbanos, com maior enfoque para as reas perifricas. Os mesmos autores cons-tatam que essa dinmica de crescimento demogrfico est concentrando a popula-o nos bairros de canio, os muceques, os slums, aonde chegam a aglomerar mais de metade da populao urbana. Esse processo de produo dos es-paos urbanos em frica, resultantes de um modelo de desenvolvimento urbano o qual chamaremos de Karaok, tem sido responsvel por tornar esses espaos ina-dequados para a implantao de um estilo de vida urbano sustentvel. Adotamos a expresso estilo de vida por considerar-mos que as cidades (ou mesmo os espaos urbanos) por si s no podem ser susten-tveis, por apresentarem caractersticas marcadas pela sociedade urbana e, prin-cipalmente, por serem consumidoras de espao e de recursos minerais e energ-ticos. Tambm, nos associamos a Ribeiro (2004), que sustenta a sua defesa no fato das cidades no serem organismos vivos, autnomos e dotados de desejos, pois elas so o resultado da realizao humana, ou seja, obra do ser humano, construda ao longo do tempo. Imbudos do esprito Karaok, aceitamos debater a questo da sustenta-bilidade nas cidades dos pases africanos. De uma forma geral, concordamos com Satterthwaite (2004) que divide os proble-mas ambientais em dois grupos, sendo o primeiro aquele que est mais relacionado com as necessidades dos moradores, isto , restringindo-se ao nvel interno (intra--urbano) e influenciando na qualidade de vida dos moradores. O segundo grupo de problemas est relacionado com a trans-ferncia dos problemas para ecossistemas e populaes que vivem fora da cidade ou mesmo a sua transferncia para as gera-es futuras. Sendo assim, o autor divide os problemas ambientais em cinco categorias, nomeadamente: (i) os problemas relaciona-dos com as doenas contagiosas e infeccio-sas (ou podemos denominar de saneamen-

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    to bsico) (ii) problemas relacionados com os perigos qumicos e fsicos no lar, no local de trabalho e na cidade em geral (iii) pro-blemas relacionados com a falta de espaos verdes e espaos pblicos; (iv) problemas relacionados com a sua transferncia para habitantes e ecossistemas no entorno da cidade e (v) os relacionados com a transfe-rncia de problem as ambientais para outros pases ou mesmo para as geraes futuras. Trabalharemos com a primeira ca-tegoria de problemas ambientais, pois con-sideramos que esses so os principais pro-blemas que afetam a qualidade de vida dos habitantes urbanos nas cidades africanas. claro que os dois segundos problemas tambm afetam, mas, por uma questo de rigor acadmico, decidimos enveredar por aquela rea na qual j possumos pro-dues e teremos a possibilidade de me-lhor derrapar nesse terreno pantanoso. A exploso e imploso urbanas a que as cidades africanas passaram no fo-ram acompanhadas por construes e me-lhorias dos equipamentos urbanos, bem como dos servios prestados. No tendo como lidar com o crescimento demogr-fico acelerado, alguns pases adotaram estratgias de conter o crescimento, mas quase sempre sem resultados positivos. A estratgia para forar a retirada dos con-siderados improdutivos das cidades ou de conter a migrao campo-cidade fracassou e foi bastante criticada, sendo substituda pela aceitao da expanso urbana como um fenmeno natural e que a preocu-pao deveria centrar-se na melhoria do nvel de vida dos citadinos. Adotou-se o slogam more urban, less poor, aceitando--se que no o controle da cidade que re-solver os problemas estruturais e conjun-turais que os pases africanos atravessam. Se em 1970 o nmero da populao urbana moambicana era de duzentos mil habitantes, verifica-se que em 1980 o nme-ro cresceu para dois milhes de habitantes. Esse crescimento no foi acompanhado da melhora de infraestruturas e nem do for-necimento dos servios urbanos bsicos. Durante esse perodo de exploso urbana, a populao urbana cresceu dez vezes e, em 1997, a populao dobrou, aproximando-se dos quatro milhes e meio de habitantes,

    sendo, principalmente, resultante de um saldo fisiolgico positivo e da mi-grao campo-cidade. Esse crescimento teve implicaes na imploso urbana, afetando ainda mais as infraestruturas existentes. A marca dos seis milhes de ci-tadinos foi ultrapassada em 2007, impon-do mais presso sobre as infraestruturas. As transformaes que foram ocor-rendo no processo de urbanizao em Mo-ambique apenas incidiram ao nvel do m-bito demogrfico e no nos mbitos social e econmico. As trs manchas que caracte-rizavam o espao urbano das cidades mo-ambicanas no deixaram de existir, elas se consolidaram. A principal alterao esteve ligada mudana de cor da pele da popula-o vivendo nessas reas. A cidade de cimen-to que era fundamentalmente branca pas-sou a ser negra, como o restante das reas. A cidade de cimento, com o tempo, passou a ser apropriada pela elite poltica e econmica do pas. Passou a ser o espa-o de ocupao de residentes com rendas mdias e altas, enquanto que a cidade de canio continuava a ser de populao de renda baixa e que necessitava ocupar esses espaos em funo do acesso aos postos de trabalho, s suas atividades comerciais e s oportunidades que o centro oferecia. Essa rea da cidade deixou de ser constituda por casas edificadas com material prec-rio, como o canio, para ser construda por material convencional, principalmente o zinco. A rea periurbana ocupada por agri-cultores comeou a ser espao de cobia dos jovens recm-formados e empregados. As trs manchas apresentam dife-renciaes no acesso aos servios sociais bsicos, sendo a cidade de cimento a que melhor se posiciona. Isso explicado pelo fato de ser a rea que concentra esses equi-pamentos, construdos quando da presena colonial. Os investimentos urbanos ps--independncia so insignificantes e, muito pouco se destinou para a cidade de canio e rea periurbana. Uma anlise da presta-o dos servios urbanos bsicos ao nvel dos espaos urbanos demonstra como as condies de acesso foram se deteriorando com o tempo. Ao nvel da sua distribuio interna demonstra grandes diferenciaes com a rea periurbana a ser marginalizada.

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    melhores na cidade de cimento, onde a co-bertura era superior a 70%, enquanto que na periferia esse percentual era inferior a 10%. Matos (2012), estudando a cidade de Mocuba, considerada pequena, apurou que a cidade de cimento tinha uma cobertura de 40%, enquanto que na rea periurbana a cobertura era de 5%. Nessa rea, o autor coloca que perto de 20% da populao en-trevistada recorria aos rios e lagos, con-sumindo gua sem nenhum tratamento. Em relao ao saneamento bsi-co, Arajo et al. (2008) demonstra que as condies de saneamento para a maio-ria da populao urbana sempre foram precrias, pois as fossas spticas apenas beneficiavam menos de 20% da popula-o urbana em 1980. Para o ano de 1997 as condies se deterioraram mais com o aumento do nmero de populao urba-na recorrendo a sistemas precrios, como os banheiros precrios. O percentual de populao sem banheiros aumentou sig-nificativamente, passando a ser de 34%. Para a cidade de Maputo, Arajo (1999) atestou que cerca de 25% da populao ti-nha acesso a banheiros e localizavam-se majoritariamente na cidade de cimento,

    Para analisarmos a primeira cate-goria dos problemas ambientais urbanos, selecionamos trs servios sociais bsicos, nomeadamente: abastecimento de gua, saneamento do meio e recolha de resduos slidos. De acordo com Arajo et al. (2008), em 1980 o acesso gua encanada abrangia cerca de 55% da populao urbana nacional, destacando-se as provncias de Maputo, Zambzia e Sofala, onde a cobertura era de 81,9%, 71,9% e 71,5%, respectivamente. As provncias de Niassa e Inhambane eram as mais prejudicadas, com uma cobertura de 20,2% e 36,1%, respectivamente. No Censo realizado em 1997, as condies de abaste-cimento de gua se deterioraram significa-tivamente, constatando-se que apenas 27% da populao urbana nacional tinha acesso gua encanada. Apenas Maputo cidade e Maputo provncia apresentavam uma co-bertura prxima de 50%. As provncias de Manica, Zambzia e Niassa apresentavam uma cobertura inferior a 13%. Se analisado ao nvel da organiza-o interna das cidades, as condies dete-rioram do centro para a periferia. Arajo (1999) refere que as condies de acesso gua potvel na cidade de Maputo eram

    Polana Canio, bairro de Maputo - Moambique.

  • Avenida Eduardo Mondlane, uma das principais avenidas de Maputo / Moambique.

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    es sanitrias das cidades moambica-nas, podemos associar primeira catego-ria os problemas ambientais urbanos. Das principais doenas ligadas a essa categoria, destacam-se a malria e as diarrias. Estas doenas afetam mais a populao que vive na cidade de canio e na rea periurbana, onde se registram deficincias no acesso aos servios urbanos bsicos. Com base nos estudos realizados por Arajo (1999) e Matos (2012), observa-se que para a cida-de de Mocuba o Hospital Rural de Mocuba registrou, em 2008, as diarreias como as principais doenas contagiosas. Segundo o hospital, a maior parte dos pacientes diag-nosticados est aglomerada nos bairros da periferia da cidade, principalmente os lo-calizados nas margens dos rios Licungo e Lugela. Em relao cidade de Maputo, as informaes provenientes dos principais hospitais demonstram que o nico hospi-tal que registrou um nmero relativamen-te reduzido de doenas ligadas primeira categoria o Hospital Central de Maputo (com menos de 4% dos casos de diarreias e malria), que se localiza na cidade de ci-mento. Os restantes hospitais esto loca-lizados na cidade de Canio. Sendo assim, atesta-se que essas doenas afetam mais a populao residente na periferia da cidade.

    enquanto que as latrinas preenchiam as lacunas das populaes residentes nas duas manchas da cidade. Para a cidade de Mocuba, a tendncia a mesma, verifi-cando-se que menos de 15% da populao tem acesso a banheiros e concentram--se na cidade de cimento (MATOS, 2012). A recolha de resduos slidos um dos problemas que as prefeituras mu-nicipais enfrentam, principalmente pelo fato desses servios no serem regulares e abrangentes. A recolha dos resduos s-lidos ao nvel da cidade de Maputo discri-minatria, pois apenas a cidade de cimento que se beneficia de uma recolha quase completa, enquanto que na rea periur-bana mais de 40% das habitaes no se beneficiam desse servio. Para o caso da cidade de Mocuba, observa-se a mesma tendncia, notando-se que a frequncia de recolha mais ampla, apesar da mesma ser realizada com certa regularidade na cidade de cimento. Para a rea periurba-na, a recolha quase que no existe. Como se trata de uma rea cujas caractersticas se aproximam do meio rural, as formas de destinao dos resduos slidos so as que caracterizam os espaos rurais moambi-canos, como a queima e o enterramento. Depois de uma anlise nas condi-

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    Com base na informao trabalha-da ao longo desta apresentao, podemos concluir que as cidades moambicanas so insustentveis, no respondendo primei-ra categoria dos problemas ambientais. A produo do espao urbano moambica-no resultado de um processo estranho realidade socioespacial local, produzin-do trs realidades numa s cidade, que nem mesmo os 40 anos de independn-cia foi capaz de solucionar. As trs reali-dades do espao urbano se diferenciam,

    REFERNCIAS

    ARAJO, Manuel G. M. Cidade de Maputo espaos contrastantes: do urbano ao rural. In: Finisterra, XXXIV, 1999, p. 67-68, p. 175-190.

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    principalmente, na oferta dos servios ur-banos bsicos, que progride em funo da localizao e do nvel de renda dos seus habitantes. As prefeituras parecem ter de-clarado a sua incompetncia em garantir qualidade de vida adequada para os seus moradores. A entrada no mundo do Karaok necessitar de mais afinamentos e ajusta-mentos para que possamos atingir qualida-de prxima dos responsveis pelas pro-dues disponibilizadas aos participantes.

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    A AGRICULTURA

    FAMILIAR AFRICANA E

    OS DESAFIOS PARA O

    DESENVOLVIMENTO

    HUMANO

    Antnio Elsio Jos | Moambicano, doutorando no Instituto de Cincias e Tecnologia de Alimentos da UFRGS

    INTRODUO A histria e os conceitos da agricul-tura familiar foram larga e profundamente abordados por vrios pesquisadores e po-dem ser considerados temas completamen-te conhecidos pelo que este trabalho no faz referncia a eles, at porque cada autor os aborda sob o seu ponto de vista, localiza-o geogrfica e mesmo sua posio socio-econmica. O importante a ser destacado que o referente concernente expresso agricultura familiar pode ser diferente de acordo com a bibliografia consultada, ape-sar da unanimidade no sentido de que a ati-vidade exercida e/ou gerida pela famlia. Pequenas exploraes familiares continuam a dominar o sector agrrio em grande parte da frica subsaariana poden-do reduzir a pobreza rural e a insegurana alimentar, apoiar a economia rural e aju-dar a conter o xodo rural. De acordo com a Unio Europeia (2012), na sia e na frica,

    atualmente, cerca de 500 milhes de pe-quenas exploraes com menos de dois hectares proporcionam meios de subsistn-cia a dois mil milhes de pessoas sendo que, se forem aplicados os sistemas agropecu-rios sustentveis adequados, que tenham em conta as caractersticas, as necessida-des, as tradies e as capacidades locais, essas exploraes podem realizar ganhos de produtividade substanciais. Para mais de um tero da populao mundial, a agri-cultura a principal fonte de rendimento, representando 29% do PIB e 65% dos pos-tos de trabalho nos pases em desenvolvi-mento. , portanto, necessrio apoiar os sistemas agrrios que se mostrem viveis a longo prazo para se assegurar os meios de subsistncia das populaes rurais, gerar um rendimento digno e proporcionar uma base para o crescimento inclusivo e a redu-o da pobreza. A Organizao para a Alimentao

    O presente trabalho faz uma reflexo sobre a agricultura familiar como atividade de sustento, preservao e desenvolvimento de famlias e comunidades na frica subsaariana. Embora seja a base da produ-o alimentar, a agricultura familiar enfrenta dificuldades de diversas ordens como a falta de apoio e investimento financeiro, acesso a mer-cados e preos justos, e a migrao urbana. So desafios de longa data cuja superao fundamental para o desenvolvimento sustentvel da regio.

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    e Agricultura das Naes Unidas (FAO) - Es-tado da Insegurana Alimentar para 2010 avalia que quase um bilho de pessoas es-timada sendo subnutrida, o que representa quase 16% da populao dos pases em de-senvolvimento. Embora o forte compromisso das instituies internacionais e os esforos realizados para reduzir estes nmeros para metade, dentro do ano de 2015, o nmero de pessoas que sofre de fome e insegurana alimentar ainda representa um dos maio-res desafios para uma grande parte da po-pulao mundial e deve ser tratado com a mxima urgncia. At recentemente, o espectro agr-rio africano foi caracterizado por cresci-mento lento, baixa produtividade dos fa-tores e, muitas vezes, tambm por prticas que agravaram os problemas ambientais.Segundo Salami (2010), desde o final dos anos 1970 a meados dos anos 1980, muitos pases africanos tm implementado refor-mas macroeconmicas, setoriais e institu-cionais destinadas a assegurar um cresci-mento econmico elevado e sustentvel, a segurana alimentar e a reduo da pobreza.

    Atendendo ao Banco Mundial (2005), algu-mas recentes aceleraes de crescimento agrcola, no obstante, o crescimento do setor manteve-se insuficiente para enfren-tar adequadamente a pobreza, alcanar a segurana alimentar, e levar a um cres-cimento sustentado do PIB no continente. No continente africano, a agricul-tura majoritariamente exercida em ex-ploraes familiares. A agricultura familiar corresponde a uma determinada camada de agricultores capazes de se adaptar s modernas exigncias do mercado, ao con-trrio dos demais pequenos produtores in-capazes de assimilar tais modificaes - so aqueles que tm condies de se consolidar em curto prazo. Mesmo na agricultura ca-pitalista mais moderna do mundo, que a norte-americana (NAVARRO; PEDROSO, 2014), aproximadamente 98% dos estabe-lecimentos so definidos como familiares, significando que so geridos por membros da famlia de proprietrios. Quer dizer que intitular de familiar um tipo de agricultu-ra, na verdade, nada acrescenta em termos de tipificao do conjunto de produtores.

    Foto: Georgina Smith / CIAT

  • Segundo FAO (2009), como unidade de to-mada de deciso, a famlia o lugar onde as decises mais importantes so toma-das em relao a como gerenciar eventos incertos, tanto ex-ante quanto ex-post, incluindo aquelas que afetam a seguran-a alimentar, como as atividades gera-doras de rendimentos para se dedicar, e como alocar alimentos e consumo no alimentar entre os membros do agrega-do familiar, e quais as estratgias a imple-mentar para gerir e lidar com os riscos.

    IMPORTNCIA E CARACTERSTICAS A relevncia da agricultura fami-liar pode ser referenciada tendo em conta a produo sustentvel de alimentos con-siderando a diversificao de sua base de produo e manuteno da biodiversidade e novas tecnologias menos custosas. Para a FAO (2009), originalmente a agricultura familiar era exclusivamente um meio de

    prover alimentos para as famlias, mas que, mais recentemente, as famlias tambm tm usado a atividade como fonte de ren-da. Isto mostra que existe uma preocupa-o crescente para rentabilizar a atividade. Em muitos pases africanos, pelas suas ca-ractersticas, ela no est virada para o de-senvolvimento da comunidade ou pases como tal, mas, sim, para a disponibilizao do alimento e bem estar familiar, deixan-do aquela questo em segundo, terceiro ou mesmo ltimo plano. Contudo, os agricul-tores familiares constituem, sem dvidas, a maioria dos agricultores no mundo, contri-buindo na criao de riqueza, de empregos e na garantia de vrias funes, da produo de alimentos ao ordenamento territorial. Os agricultores familiares, cujo n-mero significativo proprietrio de um lote menor que cinco hectares, tamanho que, na maior parte dos pases, dificulta, seno inviabiliza, o exerccio da atividade

    Foto: Dominic Chavez / World Bank

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    (BUAINAIN; ROMERO; GUANZIROU, 2003), quando recebem apoio suficiente, so capazes de produzir uma renda total, incluindo a de autoconsumo, superior ao custo de oportunidade do trabalho, sendo, portanto, no corretas as analogias com a situao nos pases desenvolvidos, onde as remuneraes obtidas com atividades no--agrcolas elevam a renda mdia do setor rural, porque, aqui, o potencial de gerao de renda do setor agrcola familiar est longe de ser plenamente utilizado a explo-rao dos estabelecimentos agropecurios. Em reas com alta densidade populacional, esses agricultores geralmente cultivam menos de um hectare de terra, o que pode aumentar em at dez hectares ou mais em reas semiridas de baixa densidade po-pulacional, por vezes em combinao com gado (at dez animais). Em quase toda frica, concordam Buainain, Romero e Guanzirou (2003), his-toricamente a agricultura familiar enfren-tou um quadro macroeconmico adverso, caracterizado pela instabilidade monetria e inflao elevada, discriminao nega-tiva da poltica agrcola que favorecia os produtores patronais, poltica comercial e cambial desfavorvel e deficincia dos servios pblicos de apoio ao desenvolvi-mento rural. Diferente do que ocorre na propriedade capitalista, a caracterstica da propriedade familiar o de servir como instrumento de trabalho ao proprietrio. A jornada de trabalho no est centrada na rigidez da produo capitalista, sen-do o ritmo conforme a poca do ano e os produtos cultivados. A jornada de traba-lho ainda tem, segundo Conceio, Fraxe e Schor (2009), a preocupao de resguardar a biodiversidade da rea onde ocorrem as atividades produtivas, sendo comum evi-tar o empobrecimento do solo e de demais recursos naturais. As agriculturas familiares so tan-tas quantos seus contextos, tratando de realidades econmicas e sociais muito di-versas conforme a histria e as caracters-ticas do meio. Abrangem desde a grande propriedade de uma centena de hectares nos pases ocidentais at a pequena agri-cultura de subsistncia asitica ou africana com menos de dois hectares, e mesmo os

    agricultores sem-terra. As rendas so hete-rogneas, evidenciando uma escala muito larga dos tipos de agricultura familiar, sen-do, por isso, muito mais pertinente falar de agriculturas familiares. Para Buainain e Filho (2006), a diferenciao dos agriculto-res familiares est associada prpria for-mao dos grupos ao longo da histria, s heranas culturais variadas, experincia profissional e de vida particulares, ao aces-so e disponibilidade diferenciada de um conjunto de fatores, entre os quais os re-cursos naturais, o capital humano, o capital social, o acesso diferenciado aos mercados e insero socioeconmica dos produto-res, potencialidades e restries associa-das disponibilidade de recursos e de ca-pacitao adquirida, bem como insero ambiental e socioeconmica que podem variar radicalmente entre grupos de pro-dutores em funo de um conjunto de va-riveis, desde a localizao at as caracte-rsticas particulares do meio ambiente no qual esto inseridos. O universo diferencia-do de agricultores familiares est compos-to de grupos com interesses particulares, estratgias prprias de sobrevivncia e de produo, que reagem de maneira diferen-ciada a desafios, oportunidades e restries semelhantes e que, portanto, demandam tratamento compatvel com as diferenas. A agricultura familiar tem um papel muito importante para o desen-volvimento de uma regio ou de uma sociedade. Afigura-se como um forte meio de transio rumo a uma agricultu-ra mais sustentvel pela sua capacidade de diversificao de culturas, adequao aos ecossistemas locais, formas de pro-duo e uso de tecnologias endgenas. Segundo artigo de Helder Mute-la, responsvel pelo escritrio da FAO em Portugal, para o jornal O pas: No se justi-fica que cerca de 250 milhes de africanos (1/4 da sua populao) passem fome, num continente em que 70% da populao se dedica produo de alimentos. Alm dis-so, 70% das pessoas vivem da agricultura. o que parece logo primeira vista, mas importante referir que a agricultura afri-cana resume-se principalmente na descri-o j apresentada acima: agricultura em terras marginais e vulnerveis a situaes

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    calamitosas, falta de investimento e tecno-logia, etc., o que frequentemente resulta em fracassos. No se trata de procurar justifica-tiva para aquele fato, mas evidenciar seu significado. Mais uma vez aquela afirma-o refora a necessidade de se direcionar mais apoio agricultura na frica sabido que a maioria dos 70% referidos constitui--se de agricultores familiares cujas carac-tersticas j foram discutidas. A situao tem que ser melhorada no s atravs do envolvimento massivo na produo agr-ria, mas tambm pela facilitao do acesso a terras frteis para os agricultores familia-res, investimentos em infraestruturas, vias de acesso e envolvimento de servios de extenso de modo a estimular os produto-res no sentido desses produzirem alimen-tos para suas famlias, em primeiro lugar, e excedentes para venda, respeitando as tradies locais. Em suma, envolver todos os africanos no processo de produo de alimentos. Na frica so vrios os projetos governamentais e no governamentais de produo de alimentos, s que dificilmen-te eles sucedem bem. A razo principal do fracasso que os agricultores familiares e/ou comunidades no se sentem donos,

    partem desses projetos e procuram pro-duzir seus alimentos em terras de suas propriedades ainda que sejam marginais. Isto to verdade que, como dizia Baiardi (2014), mesmo diante de grandes vicissi-tudes, como a falta de chuvas, o produtor familiar resiste a encerrar a atividade e migrar para a cidade, e essas percepes e evidncias explicam por que a agricultura familiar se mantm alm das razes eco-nmicas. Se o agricultor nesse caso me-nos avesso ao risco, porque no apoi-lo na melhoria da produo daquilo que ele acre-dita ser sua pertena. A vontade de traba-lhar grande entre os africanos, isso pode ser visto por extensas reas lavradas ma-nualmente e ficando dependente da ocor-rncia de chuvas. A mesma frase da FAO pode tambm ser vista como uma tentati-va de comparar a frica a outros continen-tes. Nesse caso a histria defenderia em si o continente africano e que claramente ele est na sua fase de desenvolvimento, no importando se os outros continentes esto ou no adiantados so sortes diferentes.

    DIFICULDADES E DESAFIOS Operando sob condies marginais, a agricultura familiar afro-subsaariana en-frenta dificuldades de diversas ordens que

    Foto Albert Gonzlez Farran / UNAMID

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    podem ser resumidas na falta de apoio e investimento financeiro, acesso a merca-dos, preos injustos e migrao urbana. A agricultura familiar enfrenta tambm restries de longa data (SALAMI; KAMA-RA; BRIXIOVA, 2010), como posse da terra, direitos de acesso e gesto da terra, finan-ciamento da agricultura e do acesso ao cr-dito, infraestrutura, extenso e inovao agrcola, polticas, alteraes climticas e relacionadas com a alimentao, desafios de segurana e restries relacionadas com a crise financeira e alimentar, como os pequenos agricultores no contexto da cri-se alimentar, implicaes da volatilidade nos preos internacionais de combustvel e implicaes da crise econmica e finan-ceira mundial. igualmente incontestvel a falta de apoio aos agricultores familiares, existncia de polticas pblicas incoeren-tes e falta de direitos assegurados quanto ao acesso a seus recursos. Os participantes de um dilogo re-gional sobre agricultura familiar africana, ocorrido recentemente na cidade de Cabo, concluram que a maior ambio do conti-nente africano era a capacidade de forne-cer seus prprios alimentos e contribuir para a segurana alimentar global, e que para alcanar esse objetivo torna-se neces-srio um setor da agricultura familiar mais produtivo capaz de combater a pobreza e a fome e engajar homens, mulheres e gera-es futuras de modo efetivo. Isto demos-tra os grandes desafios que a agricultura familiar tem pela frente, a saber: (i) tornar a agricultura familiar lucrativa na frica; (ii) aquisio de tecnologia e conhecimen-to - so necessrios investimentos em tec-nologia e equipamentos mais modernos, os agricultores precisam estar atualizados sobre novos mtodos; (iii) reforo do fi-nanciamento para modernizar o modelo de agricultura familiar para estruturas mais comerciais; (iv) cooperao e parti-cipao envolvimento dos agricultores familiares na elaborao das polticas, por estarem totalmente conscientes das suas necessidades e dos desafios enfrentados, fundamentalmente (BUAINAIN, ROME-RO; GUANZIROU, 2003) a poltica agrcola deve melhorar para o conjunto dos produ-tores, no apenas para alguns, os incenti-

    vos, o acesso, a disponibilidade e as insti-tuies; (v) promover o fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar como eixo central de uma estratgia de re-duo da pobreza urbana e rural, gerao de empregos rurais e urbanos, distribuio de renda e fortalecimento das economias regionais e do mercado interno; (vi) in-sero no mercado; (vii) defender as agri-culturas familiares diante das crticas e do abandono das quais elas so vtimas (a agricultura familiar, e, mais precisamente (ALPHA; CASTELLANET, 2007), as agri-culturas familiares levando em conta sua diversidade sofrem geralmente de uma imagem negativa aos olhos dos polticos com poder de deciso dos pases em de-senvolvimento e dos doadores dos pases desenvolvidos, associada, especialmente, ao arcasmo e baixa eficincia econmica); (viii) reduzir as consequncias relaciona-das segurana alimentar e nutricional.

    CONSIDERAES FINAIS A agricultura familiar na frica tem potencial para responder aos desafios de combate fome e insegurana alimen-tar, bem como para um desenvolvimento sustentvel, se condies mnimas so pre-enchidas: acesso aos recursos, ao capital, ao mercado e assistncia tcnica. Apesar do seu enorme potencial, o desempenho da agricultura familiar africana tem sido, at agora, decepcionante, sendo que sua revi-talizao uma condio prvia para alcan-ar um crescimento elevado e sustentvel, reduo da pobreza e segurana alimentar na frica. So necessrios esforos concer-tados de todas as partes interessadas, in-cluindo os governos, ONGs e profissionais de desenvolvimento a eliminar os estran-gulamentos existentes ao crescimento da produtividade na agricultura. Do mesmo modo fundamental a melhoria dos direi-tos de propriedade da terra e acesso ter-ra, o aumento do acesso dos agricultores ao crdito e o incentivo sua formao para que sejam mais inclinados a usar mtodos modernos de produo. Analogamente o saber tradicional dos camponeses, passado de gerao em gerao, no mais suficien-te para orientar o comportamento econ-mico (WANDERLEY, 2004), sendo que o

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    exerccio da atividade agrria exige do cam-pons tradicional cada vez mais o domnio de conhecimentos tcnicos necessrios ao trabalho com plantas, animais e mquinas, e o controle de sua gesto por meio de uma nova contabilidade. Est-se diante da mo-dernizao que vai transformar a atuao do agricultor em uma forma profissional e multidimensional. Quando se fala da mo-dernizao da agricultura familiar no sig-nifica uma reproduo do modelo clssico do empreendimento capitalista, mas um modelo familiar integrado ao mercado e ao mesmo tempo respeitando a tradio cam-ponesa. Como se referiu o autor anterior, a tradio camponesa, que por um momento parecia ter uma conotao negativa, dian-te do saber universal, renovado pela apli-cao da cincia e de novas tecnologias, torna-se, nesse novo contexto, uma quali-dade positiva j que o agricultor familiar se apresenta em tal cenrio como aquele que conhece de modo especial e detalhado a terra, as plantas e os animais que so seus, sentindo-se, por esta razo, comprometido com o respeito e a preservao da natureza.Certos estudos e/ou relatrios tm ques-tionado a eficcia da agricultura familiar no combate fome e insegurana ali-

    mentar e seu papel no desenvolvimento econmico sem, contudo, convidar os agri--cultores familiares a produzir nos moldes achados corretos limitando-se a critic-los. Do outro lado, muitas projees de quan-tidade de alimentos necessrios para ali-mentar o mundo nos prximos 10, 25 e at 50 anos j foram feitas, mas muito poucas ou quase nenhumas aes concretas so sugeridas para garantir a produo de tais quantidades. No caso especfico da frica subsaariana, as projees so necessrias, mas o mais importante realmente convi-dar e motivar os africanos a engajarem-se na produo de alimentos em larga esca-la, at porque o futuro da frica hoje, e a agricultura familiar pode ser uma apos-ta certa para uma produo sustentvel. Em ltima anlise, vale ressaltar que a valorizao dos agricultores fami-liares uma importante estratgia para o combate da fome e desenvolvimento do continente, tendo em conta que o forta-lecimento e o desenvolvimento da agri-cultura familiar requerem a integrao das polticas macroeconmica, agrcola e de desenvolvimento rural, de forma a reduzir os atritos e aumentar a conver-gncia entre os diversos nveis de inter-

    Foto: Neil Palmer / CIAT

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    veno. Buainain, Romero e Guanzirou (2003) enfatizaram em seu trabalho quea grande maioria dos produtores familia-res necessita de recursos de terceiros para operar suas unidades de maneira mais eficaz, rentvel e sustentvel, sendo que a ausncia desses recursos, seja pela in

    suficincia da oferta de crdito, seja por-causa das condies contratuais inade-quadas, impe srias restries ao fun-cionamento da agricultura familiar mais moderna e, principalmente, a sua capacida-de de manter-se competitiva em um mer-cado cada vez mais agressivo e exigente.

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    Naloan Coutinho Sampa | Guineense, doutorando em Engenharia Civil na UFRGS

    FRICA: EM BUSCA DO

    DESENVOLVIMENTO

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    FRICA E A HISTRIA Durante sculos, a frica integrou na economia mundial principalmente como provedora de mo-de-obra barata e de matrias-primas. Isso provocou a dre-nagem dos recursos africanos para outros continentes, ao invs da sua utilizao para o desenvolvimento da frica. Assim, o con-tinente africano permaneceu mais pobre, embora sendo uma das regies mais dota-da de recursos do mundo (NEPAD, 2001). Os modelos e costumes tradicionais existentes em frica antes do colonialismo foram transformados pelo regime colonial de forma a servir s necessidades econmi-cas e polticas das potncias imperiais. Essa converso e a apropriao dos espaos, bens e tempos dos africanos retardaram igual-mente o desenvolvimento de um povo do-tado de aptides e de capacidade de gesto.

    INTRODUO Os pases do continente africa-no tm trilhado caminhos difceis, aps o perodo da independncia, em busca das melhores condies para os seus povos. Embora percorrendo um caminho feito de inmeros obstculos e desafios, a maioria dos pases africanos conseguiu implantar um regime democrtico, eliminar o esp-rito de guerra como nica via para resolu-o dos problemas, diminuir o sofrimento da populao no que se refere fome e doena, eliminar as taxas de mortalidade e analfabetismo, proporcionar um clima favorvel para o investimento estrangei-ro e o desenvolvimento econmico. Con-tinuando os objetivos do ontem, de uma forma tmida e serena, muitos pases afri-canos esto na luta para afirmao de um desenvolvimento sustentvel em frica.

    Desenvolvimento sustentvel entendido como a capacidade de desenvolver ou satisfazer as necessidades da gerao atual sem com-prometer a possibilidade (ou capacidade) de desenvolvimento das gera-es futuras. O progresso social, o crescimento econmico e a preserva-o ambiental devem andar de mos dadas numa relao sustentvel. Segundo o autor, o desenvolvimento sustentvel na frica passa pela consolidao das democracias nacionais, boa governao dos bens p-blicos, paz, segurana, cuidados com os ecossistemas e respeito aos di-reitos humanos.

  • Corre-se o risco de pecar pelo des-conhecimento da histria quando se faz uma comparao linear entre os ndices de desenvolvimento da frica com os do restante dos continentes. O enfraqueci-mento e/ou o retardamento do processo de acumulao de riqueza na frica expli-cado pelo fato de que, aps a independn-cia, praticamente todos os novos Estados africanos eram caracterizados pela falta de pessoal qualificado, fraca classe de in-vestidores, instituies fragilizadas ou ine-xistentes e, ainda, desprovidos de tcnicas e tecnologias modernas. A frica ps-co-lonial herdou Estados fracos e economias disfuncionais que foram agravados ainda por uma liderana fraca, pela corrupo e pela m-governao em muitos pases. Esses fatores, combinados a divises cau-sadas pela Guerra Fria, minaram o desen-volvimento de vrios governos africanos. Atualmente, os elevados fluxos de investimento no se refletem signifi-cativamente em desenvolvimento eco-nmico e social. O continente parece ser vulnervel em um contexto de sub-desenvolvimento e pobreza endmica. Se, por um lado, a chegada do em-preendimento fortalece e dinamiza a eco-nomia local (trazendo trabalho e renda), por outro, traz novos desafios, como a ruptura da estabilidade social, a perda de conhecimentos e saberes locais, os cho-ques culturais com migrantes internacio-nais e o incremento de patologias sociais

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    IMAGENS

    1. Mulheres massai produzem, vendem e apresen-tam seus produtos em Kajiado, Qunia. Foto: Georgina Goodwin / World Bank

    2. Aquacultura no Cairo, Egito.Foto: Jamie Oliver / WorldFish

    3. Estacionamento de bicicletas na Rapblica do Gana.Foto: Arne Hoel / The World Bank

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    (criminalidade, drogas etc), alm da alte-rao no meio fsico e bitico. Portanto, est claro que a disjuno entre custos e benefcios ou melhor, entre ganhadores e perdedores o elemento de potenciais conflitos trazidos pelos novos fluxos de in-vestimento (NEPAD, 2001).

    DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL Com projetos e polticas relaciona-dos sustentabilidade, vrias organizaes governamentais e no governamentais vm disseminando junto comunidade a percepo de que o mundo possui recur-sos finitos que esto sendo utilizados de maneira inadequada, e que deve haver a descontinuidade desse comportamento. Uma das definies do desenvolvimen-to sustentvel aceitada internacional-mente : um desenvolvimento que vai ao encontro a satisfazer s necessidades da gerao atual sem comprometer a possi-bilidade (ou capacidade) das geraes fu-turas em satisfazer as suas necessidades. O desenvolvimento sustentvel busca proporcionar simultaneamente um progresso social, um crescimento econ-mico e uma preservao ambiental. Quan-

    do um desses componentes prejudicado ou beneficiado em detrimento dos outros, o desenvolvimento passa a ser no sus-tentvel. Assim, configura-se como de-senvolvimento socioeconmico quando ao componente ambiental no dada a devida ateno no processo de desenvol-vimento. Desenvolvimento socioambien-tal e econmico so desenvolvimentos em que s parcelas econmica e social, respectivamente, no dada a devida ateno no processo de desenvolvimento. Os pases mais desenvolvidos do mundo procuram incessantemente tomar medidas visando no prejudicar as po-lticas sociais, a economia e nem o meio ambiente. Na maioria dos casos, princi-palmente nos pases no desenvolvidos ou em via de desenvolvimento, quase impossvel conciliar esses trs componen-tes. Dessa forma, o tema sustentabilidade tratado como um desafio para pases de-senvolvidos e como um desafio em escala maior para os pases no desenvolvidos. O componente relacionado com o progresso social, devido ao alto crescimen-to populacional, tem-se pautado em as-suntos de: recursos energticos e hdricos,

    Cidade do Cabo, frica do Sul - Foto: Damien du Toit / Flickr

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    estruturar as polticas econmicas para que as necessidades da sociedade sejam atendidas sem aumento dos impactos ne-gativos socioambientais, gerao de em-prego, novas oportunidades de negcio, criao de riqueza e investimentos efetivos.

    10% da populao mundial vivia em cidades; atualmente, mais de 50%, e estima-se que sero mais de 75% at 2050 (SUSSKIND; ELLIOTT, 1983; ROMEIRO, 1999; NOBRE, 2004). Segundo Haughton e Hunter (1994), o desenvolvimento urbano susten-tvel consiste em revalorizao das densi-dades urbanas mais elevadas combinadas diversidade de usos, e sistemas de trans-porte de maior capacidade em oposio s baixas densidades monofuncionais asso-ciadas ao automvel. Com relao aos im-pactos ambientais causados at o presente momento, existe uma grande correlao entre padres mdios dos continentes com a gerao do impacto ambiental. Ou seja, a frica, tendo menores padres mdios de consumo, gera menos impactos ambientais comparada Amrica do Norte, que de-tm maiores padres mdios de consumo. No mundo, a maioria das pessoas vive em um ambiente urbano com cresci-mento desordenado, crescente falta de mo-bilidade, consumo irracional de energia, esgotamento de recursos hdricos, gerao contnua e cumulativa de resduos sli-dos, utilizao irresponsvel de defensivos agrcolas e industrializao sem critrio da alimentao cotidiana, tudo isso agregado

    descarte e tratamen-to de resduos slidos e lquidos, sade p-blica, distribuio de renda, qualidade de vida, bem-estar social, etc. No componente da preservao ambiental vm sendo discutidos assuntos relacionados com: uso da gua doce, gases de efeito estufa, mudana no uso de terra (desmatamento), perda de biodiversi-dade, poluio do ar, poluio qumica dos corpos de gua (rios, mares e oceanos), etc. Os assuntos largamen-te discutidos no tercei-ro componente, cres-cimento econmico, concentram-se em: re-

    O conceito do desenvolvimen-to sustentvel em muitas vezes alinha-do ao conceito do de-senvolvimento urba-no sustentvel pelo fato das polticas do d e s e nvo l v i m e n t o se concentrarem no ambiente urbano. Esse conceito surgiu na dcada de 60 com a reformulao das teorias urbansticas e teve a sua redis-cusso na dcada se-guinte, aps as crises de petrleo. A partir da dcada de 80, as teorias urba-nsticas ganharam novo mpeto com o surgimento do paradigma do desenvolvi-mento sustentvel. H cem anos, apenas

    a uma degradao ambiental acelerada. Em busca de possveis solues para a materializa-o de cidades sus-tentveis, vrios pases tm traado metas, como: mini-mizar o consumo de espao e recursos na-turais, racionalizar e gerenciar eficien-temente os fluxos urbanos, proteger a sade da populao urbana, assegurar a

    igualdade de acesso a recursos e servios, manter a diversidade social e cultural, en-tre outros. Mesmo com elevado nvel de crescimento econmico observado em al-guns pases africanos, na maioria desses

    Essa gerao est traba-

    lhando para corrigir os erros da

    segunda gerao e para propor-

    cionar um crescimento econ-

    mico slido para a frica. im-

    portante frisar que o continente

    precisa, mais do que nunca, de

    lderes servidores, ou seja, de

    lderes com responsabilidade

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    pases se verifica a dificuldade no cumpri-mento das metas que visam buscar um desenvolvimento sustentvel. Essas metas so geralmente traadas por organismos nacionais e/ou internacionais. A par dos outros continentes, as questes relacionadas com o desenvolvi-mento sustentvel vm sendo debatidas nos ltimos tempos no continente africa-no. Essas questes no se limitaram somen-te na reduo da pobreza e na busca de um desenvolvimento humano sustentvel, mas tm-se alargado para os problemas am-bientais do continente, procurando abran-ger os trs pilares do desenvolvimento sus-tentvel: social, econmico e ambiental.

    FRICA E O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL Em funo dos vrios fatores que contriburam para o empobrecimento do continente africano, as questes de desen-volvimento sustentvel so tidas como me-tas de longo prazo para a maioria de seus pases. Em mdio prazo, os pases africanos esto trabalhando em polticas vocaciona-das diminuio de pobreza e da desigual-dade social, aumento da taxa de alfabeti-zao, diminuio da taxa de mortalidade, criao de infraestruturas que permitem investimento de capitais nacionais e estran-geiros, fortalecimento das instituies do Estado, combate corrupo, entre outros. A explorao dos depsitos mine-rais, petrleo e gs, recursos haliuticos, espaos abertos para a explorao agrco-la, clima, fauna e flora, cultura, e outros fizeram crescer a economia do continen-te africano nos ltimos anos a taxas ele-vadas, em comparao ao crescimento da economia da Europa e da Amrica. Esse crescimento, em consequncia dos ele-vados fluxos de investimento, aumentou o dinamismo econmico africano e im-pulsionou a receita fiscal do continente. Porm, os resultados em termos de me-lhorias significativas em vertentes sociais no foram vistas. Como sempre, os piores ndices de desenvolvimento humano, se-gundo os relatrios das Naes Unidas, correspondem aos dos pases africanos. A concretizao de um desen-

    volvimento sustentvel exige o conhe-cimento das tcnicas e tecnologias, re-cursos econmicos e humanos, polticas relacionadas sustentabilidade e cola-borao de todos os setores da sociedade. Nessa tica, a frica considerada atrasa-da em termos de desenvolvimento, quan-do comparada com outros continentes. Para caminhar em um ritmo ace-lerado em busca de um desenvolvimento sustentvel, evitando distraes ao longo do percurso, faz-se urgente, necessrio e imperativo que os pases africanos co-mecem a aplicar todas as suas riquezas econmicas, sociais e culturais, energias e conhecimento ao servio da frica. Des-sa forma, as seguintes etapas precisam ser encaradas com seriedade: liderana ser-vidora e boa governana, formao dos recursos humanos, fortalecimento das instituies do Estado e combate cor-rupo, promoo de iniciativas de paz e estabilidade social, mudana da ima-gem do continente, explorao sustent-vel dos recursos naturais e investimento em infraestruturas sociais e econmicas.

    Solo preparado em terraos para evitar desmoronamento e eroso em Lushoto, Tanznia.

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    Passaram na frica vrias geraes de lderes com misses, objetivos e desa-fios diferentes durante os ltimos 70 anos. Pode-se considerar que a primeira gera-o trabalhou durante o perodo colonial, imbudo do esprito de pan-africanismo, lutou contra o regime colonialista com o intuito de proporcionar a liberdade e a independncia aos pases africanos. Aps a independncia, surgiu outra gerao de lderes que tinham como objetivo conso-lidar a paz, a democracia, o bem-estar so-cial e fortificar as instituies do Estado. A segunda gerao dos lderes no teve grandes xitos, uma vez que durante esse perodo ocorreram muitas guerras e so-frimentos na frica. Acredita-se que, nos dias atuais, vive-se a terceira gerao dos lderes africanos. Essa gerao est traba-lhando para corrigir os erros da segunda gerao e para proporcionar um cresci-mento econmico slido para a frica. importante frisar que o continente pre-cisa, mais do que nunca, de lderes ser-vidores, ou seja, de lderes com respon-sabilidade de trabalhar e servir frica.

    A promoo de iniciativas de paz e estabilidade social um dos requisitos b-sicos e fundamentais para a busca de um desenvolvimento sustentvel na frica. Em muitos pases africanos ainda persis-tem aes praticadas pelo Estado e pela sociedade que violam os direitos bsicos dos cidados. Constitui uma tarefa difcil e demorada, mas preciso que constem nas agendas do continente as questes re-lacionadas com: respeito aos Direitos Hu-manos (diferenas e minorias); reduo das desigualdades sociais (fome, doena e distribuio de renda); fortalecimento da democracia africana; solidificao das ins-tituies do Estado; e criao de polticas robustas que visem proteger o continen-te contra aes externas de instabilidade. O alargamento de polticas sociais nos espaos urbanos e rurais deve merecer tambm maior ateno quando se fala do desenvolvimento sustentvel. Questes de gnero, sade e educao das famlias de baixa renda, saneamento e gua pot-vel na cidade e no campo, agricultura fa-miliar, emprego para jovens, distribuio de terras, proteo das camadas desfavo-recidas contra choques sociais, climti-cos e econmicos so fundamentais para diminuir a pobreza em frica e prepa-rar a sociedade para os futuros desafios. Uma boa parte dos recursos eco-nmicos proveniente da explorao dos recursos naturais da frica extraviada em forma de corrupo. O sistema que cria corruptores e corrompidos est ganhando cada vez mais fora devido s fragilida-des do sistema judicial e das instituies que fiscalizam o branqueamento do bem pblico. O desenvolvimento sustentvel exige a luta constante pelo combate cor-rupo, uma vez que os recursos desviados por meio desse poderiam ser investidos noutras reas para beneficiar toda a comu-nidade. Assim, para diminuir a prtica de corrupo nos pases africanos, preciso: fortalecer e tornar autnomos os rgos judiciais e os de controle e investigao da corrupo, criar polticas de sensibilizao e de denncia sobre atos de corrupo e pu-nir sem reserva os corruptos e corruptores. Escassez de recursos humanos em quantidade e de qualidade constitui um

    Solo preparado em terraos para evitar desmoronamento e eroso em Lushoto, Tanznia.

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    dos entraves para um desenvolvimento sustentvel na frica. O pouco espao de tempo decorrido desde a independncia at a presente data no foi aproveitado da melhor forma possvel para inves-tir na formao dos quadros africanos. Para alm da baixa taxa de alfabetizao, verifica-se que a maioria dos quadros for-mados possui somente a licenciatura. A no valorizao e o no aproveitamento dos poucos recursos humanos disponveis criam uma fuga de conhecimento e pouco resultado nas funes pblicas e privadas. necessria a criao e a implementao de polticas voltadas para formao dos quadros, trocas de conhecimentos, tcni-cas e tecnologias com parceiros nacionais e internacionais, e mais, se faz pertinen-te fomentar o esprito de meritocracia no exclusiva nos ambientes de trabalho. Vrios estudos desenvolvidos na frica concluram que a aplicao do con-ceito da sustentabilidade muito mais complicada para os pases africanos do que para pases dos outros continentes. Atual-mente, as consequncias provenientes da ausncia de financiamentos devido crise econmica mundial; da mudana climti-ca; da crise alimentar, hdrica e energtica; da urbanizao rpida e no planificada; da

    pobreza e desemprego obrigaro aos Es-tados africanos a escolher melhor as in-meras prioridades urgentes do continente. Os pases africanos precisam ur-gentemente mudar a imagem da frica. Com o potencial que ela dispe, o conti-nente no pode e nem deve ser visto como um continente de sofrimento, de dor, de desespero, de guerra, de injustia, de po-breza e de instabilidade. Essa a hora de atrair investimentos que possibilitem a construo de uma frica nova. Essa a hora de investir numa nova imagem, quebrando mitos e divulgando as poten-cialidades do continente para atrair inves-timentos e turistas. Essa a hora de fazer com maior solidez e urgncia os projetos que tiram os africanos da misria, da fome e da doena. Essa a hora de fortalecer a democracia e combater a corrupo. Essa hora de formar lderes servidores e re-cursos humanos em quantidade e de qua-lidade para servirem frica. Essa a hora de proteger a fauna e a flora, e cuidar do ecossistema/planeta como um todo. Essa hora de integrar as economias africanas, tornando-as mais robustas para financia-rem a construo de infraestruturas ne-cessrias para o desenvolvimento dos pa-ses africanos. Essa a hora de aproveitar

    Trens carregados de minrio de ferro na frica do Sul

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    a energia da populao jovem, para aten-der s necessidades do mercado virgem para consumo, trabalho, produo. Essa hora de fazer o que foi proibido durante vrios sculos de colonizao.

    CONCLUSO

    Seguindo a mesma linha do rela-trio do PNUD (2012), notrio e conclu-sivo que a frica tem o conhecimento, a tecnologia e os meios ao seu dispor para diminuir os problemas sociais e caminhar rumo a um desenvolvimento duradou-ro. O desafio grande, o espao de tempo curto e os investimentos necessrios so significantes, mas os ganhos poten-ciais para o desenvolvimento humano da

    Addis Ababa, Capital da Etipia, tornou-se um importante centro administrativo e de negcios - reflexo do recente crescimento econmico do pas.

    regio so imensos. A consolidao do desenvolvimen-to sustentvel na frica no exige, mas obriga que os Estados africanos proporcio-nem uma democracia slida, uma boa go-vernao, a paz, a segurana, o respeito pe-los direitos humanos, uma gesto coerente dos bens pblicos, o cuidado pelo ecossiste-ma e uma explorao racional dos recursos naturais. Alm disso, o caminho do desen-volvimento sustentvel obrigar aos Esta-dos africanos a avaliao de impactos em to-dos os campos de ingerncias polticas para decidir sobre a utilizao da melhor forma possvel dos recursos limitados de que dis-pem, de modo a intensificar a competiti-vidade econmica, melhorar o ambiente e aumentar a coeso social dos seus pases.

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    REFERNCIAS

    HAUGHTON, G.; HUNTER C. (1994), Sustainable Cities. London: Jessica Kingsley Publishers,1994. NEPAD. A nova parceria para o desenvolvimento da frica. Relatrio. Abuja, Nigria, 2001.

    NOBRE, E. A. C. Desenvolvimento urbano e sustentabilidade: uma reflexo sobre a grande So Paulo no comeo do sculo XXI. NUTAU, 2004.

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    PNUD. Rumo a um futuro de segurana alimentar. Relatrio de Desenvolvimento Humano para a frica, 2012.

    ROMEIRO, Adema. Desenvolvimento sustentvel e mudana institucional: notas preliminares. Econmica: Revista de Ps-Graduao em Economia da Universidade Federal Fluminense, vol. 1, n. 1. Rio de Janeiro: 1999, p. 75-103.

    SUSSKIND, L; ELLIOTT, M. Paternalism, conflict and coproduction. Nova York, plenum Press, 1983.

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    INTERPRETAES AFRICANAS

    Cada vez mais reconhecemos as espe-cificidades culturais, polticas, geogrficas e a pluralidade de signos e contextos com os quais os africanos se autorreferenciam. Lite-ratura, msica e cinema so parte das ima-ginaes africanas que foram acionadas no entendimento e representao dessas ml-tiplas realidades.

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    Jos Rivair Macedo | Brasileiro, docente do Departamento de Histria da UFRGS

    ETNOFILOSOFIA

    AFRICANA E SABERES

    ENDGENOS NA OBRA DE

    PAULIN HOUNTONDJI

    A obra do filsofo marfins radicado na Repblica do Benin, Paulin Hountondji (1942), vem sendo construda desde o in-cio dos anos 1970, quando concluiu o dou-toramento na cole Normale Suprieure com uma tese sobre Edmund Husserl. De l para c, lecionou na Repblica do Congo, Frana e Estados Unidos, mas fixou-se de-finitivamente na Universit Nationale du Bnin (atual Universit dAbomey-Calavi), em Cotonou, e diretor do Centro Avan-ado de Estudos Africanos, em Porto Novo. Ocupou cargos pblicos no Benin, como Ministro da Educao (1990-1991) e como Ministro da Cultura e das Comunicaes (1991-1993). Destacou-se no plano interna-cional por suas atividades como professor, pesquisador e consultor da UNESCO, atu-ando desde sempre no campo da filosofia e participando ativamente dos sinuosos debates em torno das condies atuais da elaborao do conhecimento na frica. A contribuio terica de Houn-tondji tem sido reconhecida desde 1977, data da publicao do livro Sur la phi-

    losophie africaine, que pode ser conside-rado um divisor de guas nos debates aca-dmicos do conhecimento na, e sobre a, frica. As aspas no ttulo indicam desde a uma tomada de posio na questo da existncia ou no de uma filosofia africa-na com aspectos particulares, genunos, questo levantada ainda no perodo co-lonial aps a publicao, no ento Congo--Belga, pelo missionrio catlico Placide Tempels, da obra intitulada La philosophie bantoue (A filosofia bantu) (1945), depois retomada e ampliada pelo telogo ruands Alexis Kagame em La philosophie bantu--rwandaise de ltre (A filosofia bantu--ruandesa do ser) (1956). Aquelas obras postulavam, a partir de uma cosmologia haurida do pensamento tradicional de po-vos de matriz lingustica banto, uma on-tologia, uma forma particular de pensar e agir no mundo, expressa pelos mitos e transmitida oralmente, que seria comum a todos os povos negro-africanos, embo-ra sob uma forma inconsciente. A essa filosofia africana tradicional, transcen-

    A partir da obra do filsofo Paulin Hountondji, da Costa do Mar-fim, o autor problematiza a sua contribuio terica sobre a origem, existncia ou no, de uma filosofia africana. A capacidade de pensar dos africanos, a partir de referenciais analticos e interpretativos pr-prios, fora das lgicas racionais, cientficas e modernas nos leva a falar em racionalidades que lhes so intrnsecas e norteadoras do que entendemos como filosofia africana.

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    dental, reagiram alguns filsofos alm de Hountondji, como os camaroneses Fabien Eboussi Boulaga (1934) e Marcien Towa (1935), e o gans Kwasi Wiredu (1931), que logo identificaram, no que denominam de etnofilosofia, uma tentativa equivocada de associar tradio coletiva, ontologia e viso de mundo ao pensamento filosfico tout court, erudito, individual, com capacidade de crtica e autocrtica do conhecimento. O problema maior da etnofilosofia seria, na opinio de Hountondji, a negao aos africanos daquilo que mais precio-so na filosofia: a capacidade de pensar de modo autnomo. Na perspectiva de Tem-pels, os elementos constituintes do sistema de pensamento dos povos bantos existiam, mas no eram percebidos como tais pelos que os enunciavam, os africanos. Por no terem conscincia de sua prpria filoso-fia, apenas os analistas ocidentais, que os observavam do exterior a partir de refe-renciais analticos e interpretativos, pode-riam traar um quadro sistemtico dela. O conhecimento do sistema de pensamen-to tradicional africano tornava-se, deste modo, um instrumento a mais para a sua assimilao ao modo de pensar elaborado dos europeus. Nas palavras do missionrio,

    da etnofilosofia africana com a hierarquia do saber pretendida pelo colonialismo o que explica a tomada de posio de Houn-tondji. Para ele, haveria que se distinguir entre a filosofia propriamente dita, sem as-pas, quer dizer, um conjunto de textos e dis-cursos explcitos, com inteno filosfica; a filosofia africana em sentido imprprio, com aspas, que se reduziria a uma hipot-tica viso de mundo de um dado povo; e a etnofilosofia, que se fundamenta, no todo ou em parte, na hiptese de uma tal viso de mundo, restringindo-se ao ensaio de re-constituio de uma suposta filosofia co-letiva. A crtica dirigia-se potencial capa-cidade de essencializao e petrificao dos conhecimentos africanos, enclausurados no anonimato da tradio, do mito e da ora-lidade. Sua resposta a tudo isso muito clara e contribuiu positivamente para o avano das discusses: denomino de filosofia afri-cana um conjunto de textos: ao conjunto, propriamente, de textos escritos por afri-canos e qualificados por seus autores como filosficos (HOUNTONDJI, 1977, p. 11).

    No pretendemos que os bantos se-jam capazes de nos presentear com um tratado filosfico acabado, j com todo o vocabulrio prprio. graas nossa prpria preparao intelectual que ele ser desenvolvido de uma forma sistemtica. Cabe-nos forne-cer-lhes um quadro preciso da sua concepo das entidades, de forma a que eles se reconheam nas nossas palavras e concordem, dizendo: Vs percebestes-nos, agora conheceis--nos completamente, conheceis da mesma forma que ns conhece-mos (HOUNTONDJI, 2008, p. 152).

    por isso que, ao final do ensaio biogrfico dedicado a Anton Whilhelm Amo, tambm conhecido como Amo Gui-nea Afer (1703?-1753), que atuou durante dcadas como professor de filosofia nas universidades germnicas de Halle e Wit-tenberg, aps a indagao do que have-ria de africano em suas ideias, e de ter respondido com um categrico nada, ele argumenta sobre o porqu da neces-sidade de haver, nos seguintes termos:

    Digamos claramente: nossa decep-o no de no ter encontrado em Amo teses que se poderia reivindi-car de origem africana, conceitos ou temas, que se poderia dizer carac-tersticos do pensamento africano, da viso de mundo dos povos ne-gros, da metafsica negra ou sim-plesmente da negritude. preciso rever, pelo contrrio, o que haveria Esta cumplicidade, desejada ou no,

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    Longe de negar protagonismo aos africanos, o que Hountondji pretendia desde suas primeiras obras era recolocar em outros termos as relaes desequili-bradas de produo intelectual de conhe-cimento. A filosofia seria uma instncia, letrada, erudita, acadmica, pela qual os filsofos africanos, como autores, pode-riam a justo ttulo expressar os pontos de vista sobre si e sobre os outros, a partir de categorias de pensamento de validade local ou universal. Tanto essa instncia quanto a cincia, amplamente valorizada, e tomada durante o sculo XX pelo pen-samento ocidental como foco principal de enunciao de conhecimento, deveriam ser submetidas a exame e reavaliadas a partir do cotejamento com as instncias mais amplas, e mais profundas, dos co-nhecimentos acumulados pelas experi-ncias ancestrais, cunhadas por ele de saberes endgenos, aspecto sistematiza-do na obra coletiva sob sua coordenao intitulada Les savoirs endognes: pistes pour une recherche (Os saberes endge-nos: pistas para uma investigao) (1994). A finalidade de Hountondji reco-locar em outros termos os conhecimentos locais, prticos, hauridos das estruturas de pensamento antigas, criados e transmitidos pelos africanos, das tecnologias e sistemas

    de pensamento transmitidos atravs das geraes, fora da lgica do escrito e de prin-cpios que se poderiam chamar racionais, cientficos ou modernos. Entre o uni-versalismo dos paradigmas ocidentais, e o relativismo cultural, aposta na possibili-dade de se falar em racionalidades, assim, no plural. Distanciando-se de uma pers-pectiva eminentemente etnocntrica, pre-ocupada em detectar o que haveria de ge-nuno, de particular, evita a denominao saberes tradicionais, rodeado de qualifica-tivos petrificantes, entificantes, e opta pela valorizao das criaes locais expressas na ideia maior de endogenia ou auctoctonia. Saber, nesse caso, ganha sentido englo-bante e inclui no apenas o seu significado stricto sensu de conjunto de conhecimen-tos abstratos, tericos, mas tambm o de saber-fazer, as normas que presidem a ao das pessoas no mundo e os diferentes mo-dos de sua transmisso. Entre os saberes ditos antigos, orais, ancestrais, e os saberes modernos, escritos, filosficos, cientficos, o que busca no a oposio ou uma hierar-

    de inadmissvel, de altamente con-traditrio de uma tal expectativa. Exigir de um pensador que ele se contente em reafirmar as crenas de seu povo ou de seu grupo social, impedi-lo de pensar livremente e conden-lo a uma asfixia intelectu-al. H no fundo dessa exigncia um profundo ceticismo, um relativismo teimoso; e mais, pior ainda, talvez, por detrs destas aparentes tomadas de posio anti-racistas e anti-euro-cntricas, um secreto desprezo pelo pensador no-ocidental, a quem se nega sutilmente toda pretenso ao universal, quer dizer, verdade, re-cusando-lhe o direito a uma pesqui-sa autntica e esperando dele apenas que manifeste, atravs de suas pala-vras, as particularidades de uma cul-tura (HOUNTONDJI, 1977, p. 168).

    Livro organizado por Paulin Hountondji: O antigo e o moderno: a produo do saber na frica contem-pornea. Edies Pedago, 2012.

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    quia de competncias, mas as variadas for-mas de apropriao, articulao e circulao, onde os africanos respondem como sujeitos. Diminuem-se por esse meio as fronteiras entre um pensamento dito tra-dicional e outro dito moderno, porque elas no so vistas como fixas, nem imut-veis, mas como sendo redesenhadas e rede-finidas em cada poca, com novos valores e em novas bases, em funo dos projetos e perspectivas sociais dadas em seus respec-tivos contextos; e de acordo com suas es-pecificidades e meios de transmisso, seja o carter pblico e escrito do texto, ou o carter secreto dos conhecimentos mgi-co-religiosos restritos aos iniciados e trans-mitidos oralmente mediante rituais apro-priados (HOUNTONDJI, 2012, p. 13-29). A finalidade social dos saberes en-dgenos ou dos saberes acadmicos o que lhe d sentido, motivo pelo qual Houn-tondji considera prioritria uma reviso crtica das prprias condies em que tem sido produzido o conhecimento sobre a frica e os africanos. Segundo ele, nas re-laes de produo cientfica e tecnolgica do mundo globalizado, o conhecimento elaborado pelos pesquisadores do Terceiro

    OBRAS DO AUTOR

    HOUNTONDJI, Paulin J.. Sur la philosophie africaine. Paris: Franois Maspero, 1977.

    ___________. Le savoir mondialis: desequilibres et enjeux actuels. In: La mondialisation vue dAfrique (Univ. Nantes), 2001. Disponvel em: . Acessado em: 10 mai 2014.

    ___________ . Conhecimento de frica, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estu-dos africanos. Revista Crtica de Cincias Sociais (Coimbra), n. 80, 2008, p. 149-160.

    HOUNTONDJI, Paulin J. (Org). O antigo e o moderno: a produo do saber na frica contempor-nea. Mangualde (Portugal), Luanda (Angola): Edies Pedago; Edies Mulemba, 2012.

    Mundo permanece essencialmente ex-travertido, isto , organizado e direcio-nado para responder a uma demanda (terica, cientfica, econmica) que vem do centro do mercado mundial, e no para atender s demandas e necessida-des locais (HOUNTONDJI, 2001, p. 8).

    Paulin Hountondji

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    Anselmo Panse Chizenga | Moambicano, mestrando em Sociologia da UFRGS

    Frederico Matos Alves Cabral | Guineense, mestre em Sociologia na UFRGS

    O CODESRIA E

    A PRODUO DO

    CONHECIMENTO

    NO CONTEXTO DA

    GLOBALIZAO

    sociais, juntamente com as demais reas do conhecimento, precisam lanar novas tarefas do pensamento s inteligncias africanas a fim de desenvolver uma ca-pacidade de reflexo sobre os problemas e solues que as diferenciem daquelas vindas do exterior. Nesse sentido, Mogobe Ramose enfatiza que a era da globalizao representa um processo de acelerao da hegemonia sociocultural e econmica do Ocidente, que difunde o neoliberalismo centrado na difuso da lgica do mercado a custo do respeito e da dignidade humana. Para ele, esta nova forma de colonialismo, sustentado pela busca incansvel da mo--de-obra barata, conduziu fragmenta-o da atividade econmica de um centro

    As cincias sociais em frica, na maior parte dos casos, dependem total-mente das Instituies de Ensino Supe-rior (IES) e universidades locais. Muitas no dispem de condies mnimas em termos estruturais e de recursos finan-ceiros, carecem de incentivos e no con-seguem realizar pesquisas e atividades acadmicas em perspectiva crtica, em que os sujeitos se veem como atores das sociedades onde esto inseridos, mas se li-mitam a ser um espao de reproduo de ideias e teorias oriundas do Norte. Apesar de demonstrarem um grande esforo, em algumas situaes elas se encontram no mesmo estado dos liceus da poca colonial. Diante desse desafio, as cincias

    O Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cincias So-ciais em frica (CODESRIA) foi fundado, em 1973, e, desde ento, vem contribuindo na produo e disseminao do conhecimento produzi-do no continente. Os autores, no entanto, levantam algumas questes, como o uso das lnguas dos colonizadores, ingls e francs, preferen-cialmente, que dificultam o reconhecimento e maior insero do Con-selho na resoluo das principais questes africanas.

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    para mltiplas periferias (RAMOSE, 2010, p. 142-143). Esse novo esprito de colonialismo dos pases desenvolvidos sobre os menos desenvolvidos afeta principalmente as na-es consideradas frgeis em sua autono-mia, com maior dificuldade de reagir diante das determinaes internacionais. O novo mundo dito plano, atravs da sua horizon-talidade, cria oportunidades de crescimen-to para alguns e desastres para outros. A comear pelas importaes e exportaes de matria prima, produtos de bens de con-sumo, culturas polticas e sociais exteriori-zadas e interiorizadas nas sociedades. Tudo isto afeta negativamente as bases sociais e culturais africanas, mas convm assinalar que, no obstante este quadro, algumas na-es do continente esto se destacando nes-sa nova configurao geopoltica mundial.

    ORIGEM E OBJETIVOS DO CODESRIA Da mesma forma, no setor educa-cional algumas instituies vm se des-tacando na produo do conhecimento cientfico diferenciado, principalmente no campo das humanidades. O maior desta-que cabe ao Conselho para o Desenvolvi-mento da Pesquisa em Cincias Sociais em frica (CODESRIA), que durante dcadas vem contribuindo na disseminao do co-nhecimento intra e intercontinental nas reas das cincias sociais. Desde a sua fun-dao, este rgo tem como misso e obje-tivo desempenhar do