revista princípios, vol. 14, número 22, 2007

Upload: principiosufrn

Post on 10-Apr-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    1/328

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007.

    Revista de Filosofia

    Universidade Federal do Rio Grande do NorteCentro de Cincias Humanas, Letras e Artes

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    ISSN 0104-8694

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    2/328

    Princpios Revista de Filosofia ISSN 0104-8694

    Editor responsvelJaimir Conte

    Editor de resenhasGlenn Walter Erickson

    Conselho editorial

    Cinara Maria Leite Nahra (UFRN)Claudio Ferreira Costa (UFRN)

    Juan Adolfo Bonaccini (UFRN)

    Maria da Paz Nunes de Medeiros (UFRN)

    Markus Figueira da Silva (UFRN)

    Oscar Federico Bauchwitz (UFRN)

    Conselho cientficoAndr Leclerc (UFPB)

    Colin B. Grant (UFRJ)

    Daniel Vanderveken (Qubec/Canad)

    Elena Morais Garcia (EERJ)Enrique Dussell (UNAM Mxico)

    Franklin Trein (UFRJ)

    Gottfried Gabriel (Friedrich Schiller Universitt, Jean/Alemanha)

    Guilherme Castelo Branco (UFRJ)

    Jess Vzquez Torres (UFPB)

    Joo Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)

    Joo Jos Miranda Vila-Ch (Universidade Catlica Portuguesa, Braga/Portugal)

    Jos M Zamora Calvo (Universidad Autnoma de Madrid)

    Marcelo Pimenta Marques (UFMG)

    Marco Zingano (USP)

    Maria Ceclia M. de Carvalho (PUC Campinas)

    Maria das Graas Moraes Augusto (UFRJ)

    Mario P. M. Caimi (UBA/Argentina)

    Matthias Schirn (Universitt Mnchen/Alemanha)

    Roberto Machado (UFRJ)

    Articles published in Princpios are indexed in The Philosophers Index

    Solicita-se permuta / Exchange desired

    Revista Princpios:

    Departamento de Filosofia

    Campus Universitrio, UFRNCEP: 59078-970 Natal RN

    Tel: (84) 3215-3643 / Fax: (84) 3215-3641

    E-mail: [email protected]

    Home page: www.principios.cchla.ufrn.br

    Princpios, UFRN, CCHLA

    v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, Natal (RN)

    EDUFRN Editora da UFRN, 2007.

    Revista semestral

    1. Filosofia. Peridicos

    ISSN 0104-8694RN/UF/BCZM CDU 1 (06)

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    3/328

    Revista de Filosofia

    v. 14, n. 22, jul./dez. 2007

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007.

    SUMRIO

    ARTIGOSO inefvel sentido da vidaClaudio F. Costa

    05

    A noo deontolgica de justificao epistmicaFelipe de Matos Muller

    21

    Logic of induction: a dead horse? some thoughts on the logicalfoundations of probabilityRicardo Sousa Silvestre

    43

    A polissemia do sujeito cartesianoBenes Alencar Sales

    79

    Habermas, tica da espcie e seus crticosCharles Feldhaus

    93

    A fundamentao das cincias compreensivas: a posio deDilthey reconstruda a partir de Leibniz, Wolff e KantMarcos Csar Seneda

    123

    Segunda natureza e justia em Blaise PascalJoo Emiliano Fortaleza de Aquino

    145

    O Eu e a existncia em PascalIvonil Parraz

    167

    Pascal e Camus: o pensamento dos limitesEmanuel R. Germano

    179

    Giordano Bruno: o uno e o mltiplo

    Jairo Dias Carvalho

    205

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    4/328

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jan./jun. 2007.

    Formao Social da Conscincia Jurdica: observaes sobrea conexo entre intersubjetividade e normatividade em Kant eFichteErick Calheiros de Lima

    221

    Como diria Nietzsche, pensar (antes de tudo) uma atividadecriativaFernanda Machado de Bulhes

    253

    TRADUOPaul Thagard e a revoluo qumica de LavoisierApresentao de Marcos Rodrigues da Silva e Miriam Giro

    261

    A estrutura conceitual da revoluo qumica, de Paul ThagardTraduo de Marcos Rodrigues da Silva e Miriam Giro 265

    RESENHASNmero e razo, de Glenn W. Erickson e John A. FossaTassos Lycurgo

    305

    Filosofia e educao: confluncias, de Amarildo Luiz Trevisane Noeli Dutra Rossatto

    Maria Aparecida Roseane Ramos

    310

    O pote e a rodilha, de Abraho Costa AndradeGlenn W. Erickson

    318

    De Narciso a dipo: a criao do artista, de Jos Ramos CoelhoIvanaldo Santos

    322

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    5/328

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, p. 05-20.

    O inefvel sentido da vida

    Claudio F. Costa*

    Resumo: Neste artigo o conceito de sentido da vida analisado em termos dafelicidade ou do bem que a vida de uma pessoa trs para ela mesma e para as outraspessoas. No curso do argumento essa tese discutida e justificada em algumdetalhe.Palavras-chave: Felicidade, Significado, Vida

    Summary: In this paper the concept of meaning of life is analyzed as the happinessor good that the life of a person brings to herself or to the others. In the course of

    the argument this thesis is discussed and justified in some detail.Keywords: Happiness, Life, Meaning

    Ame a vida acima de tudo no mundo e s entocompreenders o seu sentido.

    Dostoievsky

    O que queremos quando nos perguntamos pelo sentido da vida? Ora,queremos saber de coisas como o valor, o propsito, a finalidadeltima da existncia humana. Aes humanas geralmente tmpropsito, elas fazem sentido. Mas qual ser o sentido do conjuntodas aes de uma pessoa em um perodo prolongado de sua vida, oumesmo do seu nascimento at a sua morte? Eis uma breve lista derespostas parciais, ingnuas ou superficiais, que so demonstrativasdas perplexidades produzidas pelo problema1:

    1) O sentido da vida servir a Deus. (Essa a velha respostareligiosa, cuja desvantagem ser dogmtica.)

    * Professor do Departamento de Filosofia da UFRN. E-mail: [email protected] recebido em 23.07.2007 e aprovado em 10.12.2007.

    1 Escolho esses exemplos da longa lista apresentada no captulo 2 do livro de R. C.Solomon: The Big Questions (Wadsworth: Belmont 2002).

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    6/328

    Claudio F. Costa6

    2) O sentido da vida a luta, o que importa vencer: A vida combate/ Que os fracos abate/ Que os fortes, os bravos/ S podeexaltar, diz a Cano do Tamoio. (Essa concepo tem o

    inconveniente de produzir um nmero muito grande de infartos.)3) O sentido da vida o enriquecimento interior. (A pergunta : paraque?)

    4) O sentido da vida a preservao da espcie, ou seja, areproduo. (Vale especialmente para touros e cavalos de raa.)

    5) O sentido da vida a satisfao dos desejos. Fausto, que viviapara a satisfao de seus desejos, era quem sabia viver. (Pena quenem todos possam ter um Mefistfeles a seu servio.)

    6) O sentido da vida a paz interior. (Assim pensam alguns adeptosda meditao transcendental.)

    7) O sentido da vida est no amor. ter um bom relacionamentocom os parentes, com amigos, com a sociedade. Onde nohouver amor, ponha amor, e o amor florescer, escreveu SoJoo da Cruz. (Isso parece ser um condimento necessrio boavida, mas no a sua finalidade.)

    8) A vida no tem sentido. Essa a posio do existencialismo ateu,particularmente de Albert Camus, que considerava a vida semsentido, logo absurda. Ele achava que devemos nos revoltarconscientemente contra a absurdidade da vida, vivendo-aintegralmente, pois s assim lhe devolvemos o valor e amajestade2. (Contudo, por que a constatao do absurdo da vidadeve levar revolta e no, por exemplo, ao estupor? E comopode a revolta consciente devolver vida algum valor, se a vida

    absurda? Ora, se for s pela revolta, a definio de Shakespeareparece-me mais contundente: A vida uma sombra ondulante.Um pobre ator que brada e se pavoneia em sua hora sobre o palco

    2 Albert Camus, An Absurd Reasoning (excertos de The Myth of Sysiphus) S.Sanders & D. R. Channey (eds.): The Meaning of Life: Questions, Answers and

    Analysis (Prentice Hall: Englewood Cliffs, N.J. 1980), p. 73-74.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    7/328

    O inefvel sentido da vida 7

    e depois no mais ouvido. Ela uma mentira, contada por umidiota, cheia de som e fria, significando nada3.)

    Nenhuma dessas teses parece muito satisfatria. Contudo, oque existencialistas, como Camus, mais queriam fazer notar aoafirmarem que a vida individual no tem sentido que ela nopossui nenhuma finalidade pr-estabelecida. E nisso eles estavamcertos. H muitos propsitos vlidos para a vida humana, desdeLawrence da Arbia, chefiando a revolta rabe, at Spinozaescrevendo, em solido, a sua tica. Tanto quanto, como notouBorges, no existe uma nica, mas muitas naturezas humanas, o

    propsito especfico da vida de uma pessoa precisa ser forjado porela mesma4.

    Um conflito de sentidos

    A discusso acerca do sentido da vida tem uma longa, confusa,tortuosa e conflituosa histria. Na histria da filosofia crist atendncia era a de fazer a pergunta pelo valor e propsito da vida embusca de um sentido csmico, religioso, que a transcendesse, e

    no de algum desprezvel sentido terrestre, para usar umadistino de Paul Edwards5. O reverso dialtico dessa atitude veiona primeira metade do sculo XX, quando filsofos da linguagem secomprazeram em descobrir que a vida no tem sentido, pois o quetem sentido so sentenas lingsticas, e a vida no tem nada a ver

    3 Life is but a walking shadow. A poor player that struts and frets his hour uponthe stage, and then is heared no more. It is a tale, told by an idiot, full of soundand fury, signifying nothing, William Shakespeare: Macbeth, 5.5. A passagemilustra, alis, a virtude mxima do teatro shakespeariano, que se encontra naredescoberta do homem em sua integridade, na grandeza que decorre doautodevassamento, da contemplao sem iluses, e na vivncia plena que decorreda contemplao ativa do destino. Ver Paulo Francis: Opinio Pessoal(Civilizao Brasileira: Rio de Janeiro 1966), p. 236.

    4 Ver E. D. Klemke, Living without Appeal: an Affirmative Philosophy of Life,em E. D. Klemke (ed.): The Meaning of Life (Oxford University Press: Oxford2000).

    5 Paul Edwards em The Meaning and Value of Life, em E. D. Klemke (ed.) TheMeaning of Life, ibid. p. 144.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    8/328

    Claudio F. Costa8

    com a linguagem6 (a vida, porm, tal como a linguagem, um tearde regularidades, nisso residindo o que prprio do sentido).Tambm os existencialistas procuraram garantir, por oposio

    herana crist, o fato de que cada um de ns livre para outorgar osentido que quiser vida, no se preocupando mais com algumsentido csmico do que com os prprios sentidos terrestres, quepodem variar do trabalho comunitrio ao bom uso de uma pranchade surfe.

    A resposta que pretendo esboar um termo de umcompromisso secular entre os sentidos csmico e terrestre. De umlado, admito que a vida adquire inumerveis propsitos particulares,

    que mudam de pessoa para pessoa, at mesmo em diferentesperodos de suas existncias. Mesmo assim, minha resposta retmum elemento essencial da velha idia tradicional, pois sustenta queesses sentidos particulares caem todos sob o escopo de um sentidomais geral da vida, que importante analisar. Segundo esse sentidogeral, uma vida humana ter tanto mais sentido quanto maisfelicidade ou bem ela for capaz de trazer ao mundo, o que costumaincluir a contribuio da pessoa para a felicidade de outros, alm dasua prpria. Advogo essa posio em ateno ao fato de que pornossa prpria natureza estamos de tal forma envolvidos uns com osoutros, que a transcendncia de nossos interesses puramenteparticulares acaba se tornando um destino inescapvel. Como JohnDonne resumiu na mais famosa de suas Meditaes:

    Nenhum homem uma ilha, inteiramente em si mesmo; todo homem parte de um continente... a morte de qualquer homem me diminui, porqueestou envolvido pela espcie humana; e por isso nunca perguntes porquem os sinos dobram; eles dobram por ti7.

    6 Wittgenstein, alis, situou o problema do significado da vida alm do discursosignificativo, devendo por isso desaparecer. Ver Ludwig Wittgenstein: Tractatus

    Lgico-Philosophicus 6.52, 6.521.7 John Donne,Meditao XVII: No man is an island, entire of itself; every man is

    a piece of a continent... any mans death diminishes me, because I am involved inmankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls forthee.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    9/328

    O inefvel sentido da vida 9

    Harmonizaes ascendentes

    Tentemos articular melhor a idia indicada na seo anterior. Que afinalidade geral da vida humana tem a ver com a felicidade o que

    todos ns irrefletidamente sabemos. Mesmo um masoquista busca oprazer, pois na dor ele quer encontrar o prazer da dor, quando no oalvio de alguma culpa.

    Para aclarar a noo de felicidade, podemos comeardistinguindo-a do simples prazer. O prazer uma excitaoagradvel e pouco duradoura, enquanto a felicidade costuma servista como um estado de esprito perdurvel, completo, profundo,acompanhado por um fundo de paz interior. A felicidade pode

    depender do prazer, mas no se reduz a ele. Ela , em outraspalavras, um estado de contentamento criado quando todas asnossas necessidades fsicas, emocionais, intelectuais e espirituais,racionalmente compreendidas e avaliadas so duradouramentegratificadas. No a toa, pois, que a felicidade improvvel. Elaseria melhor entendida como um ideal do qual podemos estar maisou menos prximos.

    Contra uma suposta identificao entre sentido da vida efelicidade parece haver um bom nmero de contra-exemplos. Sodescries de vidas felizes, mas sem sentido, ou infelizes, masplenas de sentido.

    Considere, como um caso do primeiro tipo, a vida doplayboy Porfrio Rubirosa, que conquistou as mais belas atrizes decinema e que alcanou a prosperidade por ter se casado commulheres milionrias. Uma vida provavelmente feliz, mas no plena

    de sentido ou valor. A resposta a essa objeo que ela confundefelicidade pessoal da qual s pode ser derivado o sentidomeramente pessoal de uma vida com a felicidade e o bem que avida de algum trs ao mundo, que aquilo que ordinariamenteentendemos como o verdadeiro sentido da vida, o seu sentidoprprio. A vida de Rubirosa teve um sentido pessoal, mas osomatrio de felicidade coletiva, do contentamento elevado eduradouro que a sua vida trouxe ao mundo, no parece ter sidomuito alto. Eis porque ela no exemplo de vida plena de sentido.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    10/328

    Claudio F. Costa10

    E quanto aos casos de vidas infelizes, mas plenas desentido? Alguns so esprios. Quando Nietzsche escreveu: Acasoaspiro felicidade? Eu aspiro a minha obra!, ele no estava sendo

    sincero, pois como a sua obra era a sua felicidade, no era isso o queele estava realmente negando, mas apenas formas mais mundanas defelicidade. Do mesmo modo, quando um monge busca, atravs dafome e recluso, obter purificao pelo sofrimento, talvez devamosver nesse esforo uma tentativa radical de se desvencilhar dainfelicidade originada de um profundo sentimento de culpa.

    H, no entanto, vidas significativas, cuja infelicidade evidente demais para ser colocada em dvida8. Que dizer das vidas

    desgraadas mas para ns plenas de sentido que se tornaram asde um filsofo mendicante como C. S. Peirce, de um escritordesonrado como Oscar Wilde, ou de um pintor desesperado e insanocomo Van Gogh? A resposta aqui tambm a mesma: o que tornoua vida dessas pessoas plena de sentido foi a contribuio que elasderam para a felicidade ou bem coletivo, e no as suas infelizesvidas pessoais.

    A questo que aqui se levanta : como se relacionam afelicidade individual de uma pessoa e a felicidade ou o bem que elatraz ao mundo? Para poder responder, gostaria de distinguir nveisde satisfao ou felicidade em termos de proximidade edistanciamento do eu. A felicidade de um solteiro misantropo, cujonico prazer na vida apostar em corridas de cavalo, pode daralgum sentido sua vida, mas ele parece-nos pobre. J a felicidadede uma senhora ditosamente casada, que soube educar e encaminhar

    os seus filhos parece-nos, em comparao, fazer derivar uma vidamais enriquecida de sentido. A segunda forma de felicidade contmmais altrusmo, no sentido de estar mais voltada para uma interaoconstrutiva com as outras pessoas, enquanto a primeira individualista, autocentrada, quando no egosta.

    8 Essa provavelmente a razo pela qual um filsofo hedonista como A. J. Ayer,por exemplo, no identifica a maximizao da felicidade com o sentido da vida.Ver o seu ensaio The Claims of Philosophy, in E. D. Klemke (ed.): The

    Meaning of Life, ibid. p. 226.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    11/328

    O inefvel sentido da vida 11

    O problema que muito de nossa felicidade dependeintrinsecamente da interao com outras pessoas. A formainterpessoal de felicidade quase inevitavelmente beneficial e

    edificante, pois ela inclui como condio um estado de conscinciaplenamente satisfeito, que pela prpria natureza humana s podevingar sob o suposto da satisfao de certas virtudes ou perfeies,como a da verdade, da beleza e do bem. S sociopatas derivam a suafelicidade da infelicidade alheia, mas a sua prpria falta dehumanidade lhes desqualifica para uma felicidade em sentido pleno.Como notou John Cottingham:

    Os seres humanos no podem viver inteiramente e saudavelmente, a noser na aceitao dos valores da verdade, da beleza e do bem. Se elesnegam esses valores, ou tentam subordin-los aos seus prprios interessesegostas, eles percebem que o significado lhes foge9.

    Talvez nada ilustre melhor o que estou tentando fazer notardo que uma das lendas de Fausto, segundo a qual ele s teria a suaalma perdida para Mefistfeles se, na incessante busca de satisfaode seus desejos, ele encontrasse alguma que o fizesse desejar apermanncia do momento presente. Ora, aps inmeras peripciasfugazes, Fausto acabou por construir, como engenheiro, uma represacapaz de melhorar a vida dos camponeses do lugar. Motivado pelaalegria ele pronunciou ento as palavras fatdicas, que lhe deveriamcondenar danao eterna: Permaneas, momento, tu s to belo!(Verweile doch, Augenblick, du bist so schn!). Contudo,Mefistfeles foi frustrado em receber o prmio combinado. Pois

    movido pela deciso contrria, Deus entrou em cena, fazendo comque Fausto fosse conduzindo aos cus, ladeado por um coro deanjos.

    Como interpretar essa lenda? A felicidade edificante que,mais do que outras, contribui para dar sentido vida, a encontradapor Fausto em auxiliar os seus semelhantes. Ela interpessoal ealiada virtude. Ela o resultado daqueles afazeres construtivos,

    9 John Cottingham: On the Meaning of Life (Routledge: London 2003), p. 103.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    12/328

    Claudio F. Costa12

    enriquecedores, benficos, que mesmo envolvendo interessesparticulares, terminam por transcend-los. O desejo de permannciado prazer proveniente do comprazer-se com resultados associados

    a virtudes ou perfeies. Esse desejo de permanncia do prazeraliado virtude poeticamente aproximado por Nietzsche, quandoele escreve: A dor diz: passa! / Mas todo prazer quer eternidade... /Quer profunda, profunda eternidade10. o carter potencialmentebeneficial do prazer que envolve felicidade aquilo que nos conferetal desejo de esttica permanncia, de profunda eternidade, no dizerde Nietzsche.

    Em outras palavras: a satisfao constitutiva da felicidade

    pode ser autocentrada, limitando-se prpria pessoa (como no casodo misantropo que apostava em corridas de cavalo). Alguns dessescasos (como aprender filosofia) so enriquecedores do indivduo,outros (como colecionar selos) no. Mas h uma tendncia,originada da prpria natureza social do homem, de que nossas fontesde felicidade se espraiem, como que em anis crescentes, que cedotranscendem os limites das demandas individuais auto-centradas.Essa transcendncia dos limites individuais se demonstra,primeiramente, como resposta aos que esto mais prximos dapessoa (como no caso da me que se realiza na felicidade dos filhosou, mais altruisticamente, no caso de Madre Teresa). Mais alm,essa transcendncia dos limites individuais se mostra como respostaaos que se encontram mais e mais distantes dela (como nos esforosde Gandhi, de Wiston Churchill, de Martin Luther-King, ou na obrade um artista como Beethoven...), podendo inclusive se demonstrar

    em termos de zelo pela natureza, que no s parcialmenteconstituda por seres vivos (animais e plantas), mas que tambmum bem frudo por outros seres humanos (considere o caso doermito que tinha o hbito de plantar rvores, acabando por fazernascerem florestas que a ningum pertenciam).

    10 Die Welt is tief, und tiefer als der Tag gedacht / Tief ist ihr wehr / Lust tiefer noch als Herzenleid: / Weh spricht vergeh! / Doch alle lust will Ewigkeit / will tiefe, tiefe Ewigkeit. A esplndida poesia de Nietzsche encontra-se emAlsoSprach Zaratustra, parte IV, sec. 3.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    13/328

    O inefvel sentido da vida 13

    Mesmo o ltimo caso permanece dentro do crculo dosinteresses humanos no-autocentrados, pois no s a naturezabiolgica viva, mas -nos inerente a disposio para am-la,

    respeit-la, cuid-la, para deixarmo-nos maravilhar por ela. JohnCottingham notou que a natureza circundante capaz de ter umainfluncia avassaladora sobre os nossos sentimentos, e que a isso sedeve a nossa nostalgia do mundo de alguns sculos atrs, tal comoele foi preservado em algumas pinturas paisagsticas e intimistas.Essas pinturas, diz-nos ele, mostram as florestas e lagos e rios, talcomo eram quando ainda nos integrvamos suficientemente natureza, quando sua exuberncia se juntava ainda uma atmosfera

    translcida e suave, quando a pura luz do dia vinha se derramarsobre os objetos comuns, que pareciam mais brilhantes e vvidos,intimando-nos felicidade11.

    O contentamento constitutivo da felicidade pode, pois, serhaurido:

    1) em um nvel auto-centrado,2) em um nvel interpessoal prximo,3) em um nvel interpessoal distante,4) ao nvel da relao do homem com a natureza.

    A partir do nvel (2) de satisfao, temos o que chamei defelicidade beneficial, que depende da transcendncia do bemexclusivamente individual para espraiar-se no domnio do coletivo emesmo dos seres vivos em geral, fazendo-se acompanharinevitavelmente da virtude ao ter de demonstrar-se boa para todos os

    envolvidos. curioso notar que a felicidade que inclui as formas de

    contentamento beneficial aproxima-se do conceito aristotlico deeudaimonia, uma noo por ele definida como a atividade emconformidade com a excelncia12, a saber, como realizaovirtuosa, como florescimento do que existe de mais humano em

    11 John Cottingham: On the Meaning of Life, p. 101.12 Aristteles: The Complete Works of Aristotle, ed. J. Barnes (Princeton University

    Press: Princeton 1985), v. II, 1177a12.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    14/328

    Claudio F. Costa14

    ns13. Foi aplicando esse conceito que Aristteles explicou porque omais feliz dos homens que ele conhecera havia sido o atenienseTellus, em um dilogo reproduzido por Hertodo:

    Primeiro porque o seu pas estava florescendo em seus dias, e ele mesmoteve filhos belos e bons. E ele viveu para ver os netos crescerem. Almdisso, ele passou a sua vida buscando conforto para outras pessoas e o seufinal foi glorioso; ele morreu valentemente em uma batalha entre osatenienses e os seus vizinhos; e os atenienses lhe deram um funeralpblico com as mais altas honrarias14.

    Essa indistino entre a felicidade individual e o bem

    coletivo inerente ao conceito de eudaimonia era facilitada pelaprofunda identificao que os gregos sentiam entre o cidado e apolis. Mas ela parece bem mais fugidia, quando no ilusria, emtempos como os nossos.

    Foi Robert Nozick quem notou, usando palavras um poucodiferentes das minhas, que a transcendncia dos limites individuaisalcanada pelo que chamo de felicidade beneficial tende a estar emproporo direta ao significado de uma vida. Assim escreveu ele:

    Tentativas de encontrar significado na vida transcendem os limites daexistncia individual. Quanto mais estreitos forem os limites de uma vida,menos significado ela ter. ... A frase O significado que voc d suavida refere-se aos modos que voc escolhe para transcender os seuslimites, ao pacote e modelo particular de conexes externas que voc comsucesso escolheu exibir15.

    13 Ver W. K. C. Guthrie: A History of Greek Philosophy (Cambridge UniversityPress: Cambridge 1981), v. VI, p. 340-1.

    14 Citado por Alfred Mortimer Adler em Aristotelic Ethics: The Theory ofHappiness (AdlerArchive, internet). Para Aristteles era mais fcil definir osentido da vida como algo prximo felicidade individual sem criar tenses, poiso homem grego se identificava com a polis de uma maneira que se tornouimpossvel para o homem contemporneo.

    15 Robert Nozick: Philosophical Explanations (Harvard University Press:Cambridge Mass. 1981), p. 594-5. Nozick tambm quis mostrar que no somente a felicidade o que importa. Tambm nos importa conhecer os aspectosobscuros da existncia, os riscos, a realidade enquanto tal. Importa-nos preservaro que Freud chamava de princpio de realidade, mesmo que ao preo da

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    15/328

    O inefvel sentido da vida 15

    Com efeito, a vida humana ganha mais valor quanto maistranscende as demandas egostas ou puramente individuais. Por issofaz-se esperar do ser humano livre, em sua aspirao felicidade,

    que ele seja em princpio aberto a esse espraiamento de suasexpectativas em direo ao coletivo. Fazendo disso um ideal, R. M.Rilke escreveu no Livro das Horas: Vivo a minha vida em aniscrescentes./ Que deslizam por sobre as coisas./ O ltimo talvezjamais venha a completar/ Mas alcan-lo irei tentar16.

    Claro que esses anis crescentes de aspirao felicidade,que vo do prximo ao distante, tambm podem conflitar entre si aponto de se anularem, por vezes brutalmente, uns aos outros.

    Gauguin abandonou uma terna e envolvente famlia para ir buscarinspirao (e encontrar tambm a sfilis) nas ilhas do pacfico.Rousseau abandonou os seus cinco filhos recm-nascidos, um apsoutro, em uma instituio de caridade, para poder refletir em pazsobre a educao para a virtude. Picasso tornou-se um egosta cruel,dominador, sdico com as mulheres, usando o sofrimento delascomo material esttico. Mas no h como negar que os crculos maisafastados, quando efetivamente alcanados, so coletivamente maisbeneficiais e duradouros, tendo predominncia de valor e mritosque superam em significao o possvel esvaziamento dos outros,relevando em alguns casos o indesculpvel sob a gide da fatalidade.

    Podemos agora entender de que maneira vidas pessoalmenteinfelizes, como as de C. S. Peirce, Oscar Wilde e Van Gogh,puderam ser to plenas de sentido. O sentido geral dessas vidas seencontra muito menos na felicidade para eles prprios (ainda que

    postergao ou renncia de satisfaes pulsionais. Contudo, em uma conceposuficientemente abrangente de felicidade, nada disso pode ser excludo, poiscomo a felicidade simplesmente tudo o que buscamos, deve ser constitutivodesse conceito que nada do que nos importa fuja do seu escopo. Ver Nozick:Examined Life: Philosophical Meditations (Touchstone: New York 1989), cap.10, p. 110.

    16 Ich lebe mein Leben in wachsenden Ringen,/ die sich ber die Dinge ziehen./Ich werde den letzten vielleicht nie vollbringen,/ Aber versuchen will ich ihn. R.M. Rilke: Das Buch vom mnchischen Leben, in Das Stundenbuch (InselVerlag: Frankfurt 1972).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    16/328

    Claudio F. Costa16

    isso inclusse o prazer da inveno, do enriquecimento pessoal, aconscincia narcisista da importncia do que faziam), mas,sobretudo, na contribuio para formas profundas de felicidade

    beneficial que as suas vidas foram capazes de produzir para muitosoutros em um tempo sem limite definido. O sentido de suas vidas foiessencialmente para outros. principalmente isso o que explicaporque admitimos hoje que as vidas dessas pessoas foram plenas desentido, mesmo que no tenha sido assim para elas mesmas, mesmoque em s conscincia ningum possa se desejar semelhante destino.(Paradoxal que a vida fazer sentido ou no pode se tornar meraquesto de acaso: se Theo, o irmo de Van Gogh, por alguma razo,

    tivesse decidido destruir os quadros do pintor, a vida do ltimo teriasido um esforo vo e sem significado.).

    O caso oposto, um exemplo trgico de vida cujo sentido seperdeu, foi o de Rimbaud. No podendo mais suportar os conflitosde sua existncia na civilizao europia, conflitos estes que poralgum tempo foram sublimados na forma de uma produo poticafulgurante, ele procurou evaso no trabalho fsico, como umaventureiro sem rumo nem descanso no deserto rabe, o que acaboupor maltrat-lo e esgot-lo at a morte prematura, sem que issotrouxesse benefcio para ningum, a no ser talvez o ridculo ganhomaterial dos familiares, que herdaram as barras de ouro que eletrazia amarradas cintura.

    Pode-se objetar, por fim, que h vidas significativas, comoas de Hitler, Stalin e Mao Ts-Tung, que produziram inominvelsofrimento para um imenso nmero de pessoas. Mas isso seria um

    erro. Uma maneira de responder a isso seria dizer que essas vidasforam plenas de conseqncias, no de significado. Elas s foramentendidas como ricas de sentido para eles prprios e para os queneles acreditaram. Hoje qualquer pessoa esclarecida considera a vidadessas pessoas um paradigma de despropsito, de desvalor. Umamaneira mais refinada de responder a mesma objeo seriaintroduzindo uma distino entre sentidos positivo e negativo davida, o sentido positivo sendo o usual, e o negativo consistindo nainfelicidade ou no mal que uma pessoa traz ao mundo. No balano

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    17/328

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    18/328

    Claudio F. Costa18

    da finalidade da vida humana tm parecido to cerceadoras edogmticas.

    Consideremos, primeiro, as demandas, que para serem

    capazes de produzir felicidade precisam ser satisfeitas de formaprodutiva e duradoura. Elas so muito variveis porque, como jnotamos, a prpria natureza humana diversificada, o que semostra, por exemplo, nas mltiplas diferenas de temperamento, degosto, de necessidades afetivas, intelectuais etc., o que emcombinao tende a singularizar as demandas de cada indivduo.

    Tambm mltiplas e variveis no tempo so ascircunstncias concretas da vida de cada um, as quais tornam ou no

    possvel a realizao de suas demandas individuais. Considere ocaso de Aisin-Gioro Puyi, o ltimo imperador chins, que comeoua sua vida como um semi-deus na Cidade Proibida e terminou-acomo simples jardineiro a servio da revoluo cultural. Ele teve defazer uma adaptao extrema de suas demandas individuais s novascircunstncias.

    O que chamo de sentido de uma vida pessoal um cursoefetivo de vida, que costuma ser tortuoso e por isso repetidamente evariadamente escolhido, planejado e realizado. assim porque essecurso decorre da tentativa de coadunar, acomodar, harmonizarracionalmente as demandas particulares, originadas da naturezaprpria da pessoa, com as circunstncias concretas que a envolvem,no objetivo de satisfazer tais demandas de forma produtiva eduradoura, aproximando-a da felicidade ou diminuindo-lhe ainfelicidade.

    Por isso tambm os sentidos ou propsitos particulares denossas vidas so na verdade dinmicos, encontrando-se, tantoquanto elas prprias, em perptuo fluxo. Eles so finalidades queprecisam ser criadas e recriadas por cada um de ns no curso denossas prprias existncias, uma vez que nossas demandasparticulares tendem a se alterar e, alm delas, as prpriascircunstncias concretas de nossas existncias. Essa alterao podeacontecer de forma lenta e gradual ou mesmo inesperada e abrupta,sendo a falha em alcanar uma mediao adaptativa uma das

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    19/328

    O inefvel sentido da vida 19

    maiores fontes de infelicidade. Viver, disse certa vez Einstein, como andar de bicicleta: voc precisa continuar se movimentandopara manter o equilbrio17.

    por causa dessa dinmica que na dependncia da pessoae das circunstncias que a envolvem as mais variadas finalidadesde vida podem impor-se como as mais adequadas, o que permite agerao de uma imensamente rica variedade de seres humanos, cadaqual com os seus prprios propsitos produtores do sentido ou valor.Quero resumir essas relaes em um esquema:

    (a) Demandas particulares das naturezas

    individuais

    (b) Circunstncias concretas e variveis

    das existncias individuais

    Esforo para conciliar racionalmente(a) e (b)

    A felicidade individual consiste na satisfao suficientedas demandas, disso resultando o sentido pessoal da vida.

    Quando ento algum consegue alcanar a felicidadepessoal no sentido pleno? Ora, se uma pessoa for flexvel paraescolher para a sua vida, em cada perodo, finalidades realizveisque maximizam a felicidade para ela mesma e para as outras, semdeixar de coadunar de forma razovel as suas demandas particulares

    com as circunstncias concretas de sua existncia, se ela conseguirfazer isso consistentemente durante o tempo que lhe for dado, entodiremos que ela ter sido capaz de conquistar para a sua vida umafelicidade pessoal, tanto quanto um coextensivo sentido pessoal.

    fundamental que a lacuna entre as demandas particulares eas dificuldades impostas pelas circunstncias concretas seja

    17 Life is like cycling you have to keep moving to keep your balance. In DenisBrian: Einstein: a Life (John Willey & Sons: New York 1996).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    20/328

    Claudio F. Costa20

    transponvel. Quanto maior e mais intransponvel for essa lacuna,mais infeliz se sentir o ser humano. Um triste exemplo disso mostrado pela comparao entre a vida dos Inuits da Groelndia,

    antes e depois da chegada da civilizao. Antes eles viviam sobcondies mnimas de subsistncia, caando focas com os seusminsculos caiaques entre os blocos de gelo. Como os seus prpriosrostos sorridentes o demonstram nos documentrios da poca, elespareciam imensamente felizes. Hoje, pelo contrrio, sentem-semiserveis. Vivem subsidiados pelo governo, assistindo pelateleviso uma vida que nunca conseguiro ter e passam o tempo sealcoolizando. que no passado eles eram o que desejavam ser e

    tinham tudo o que podiam imaginar, mesmo que o que eles eram etinham fosse quase nada. J hoje, embora tendo mais do queimaginavam poder ter, o que eles gostariam de ser e ter se lhestornou inalcanvel.

    Finalmente, verdade que talvez para a grande maioria dens as dificuldades sejam tantas que no conseguiremos, no final dascontas, alcanar mais do que uma pequena frao da felicidade plenaque almejamos. Contudo, se as consideraes feitas aqui socorretas, resta ainda a muitos o ligeiro consolo de saberem que assuas vidas no deixaram de fazer sentido, posto que nesse brevelapso de tempo eles de um modo ou de outro contribuiram para agerao de um bem capaz de perdurar para alm dos seus prpriosinteresses pessoais18.

    18 Isso explicaria a frase proferida por Wittgenstein pouco antes de morrer, dirigidaaos seus amigos ausentes: Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa. NormanMalcolm, autor do relato, nota que esta frase sempre lhe pareceu estranha emisteriosa, considerando o quo atormentada havia sido a vida de Wittgenstein.Mas se o sentido da vida compreende uma felicidade e um bem que podemtranscender o indivduo, ento o sentido dessa frase se torna inteligvel. VerNorman Malcolm & G. H. Von Wright: Wittgenstein: A Memoir (OxfordUniversity Press: Oxford 2001).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    21/328

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, p. 21-41.

    A noo deontolgica de justificao epistmica

    Felipe de Matos Muller*

    Resumo: Neste ensaio apresentamos uma introduo noo deontolgica de justificao epistmica. Mostramos que a noo deontolgica de justificaoepistmica surge de um paralelo traado entre tica e epistemologia mediante autilizao de um vocabulrio deontolgico para a avaliao de um status epistmicode nossas crenas. Indicamos que a noo deontolgica de justificao encontra suaorigem em uma tradio que tem John Locke como um de seus representantes maisilustres. Depois disso, exploramos a relao entre justificao e normatividade,mostrando que os juzos epistmicos so mais naturalmente entendidos em linhas

    teleolgicas. Por fim, consideramos o que caracteriza um dever epistmico.Palavras-chave: Deontologismo Epistmico, Dever Epistmico, Justificaoepistmica

    Abstract: In this assay we present an introduction to the deontological conceptionof epistemic justification. We show that the deontological conception of epistemic

    justification appears of a parallel traced between ethics and epistemology by meansof the use of a deontological vocabulary for the evaluation of an epistemic status ofour beliefs. We indicate that the deontological conception of epistemic justificationfinds its origin in a tradition that has John Locke as one of its more illustriousrepresentatives. After this, we explore the relation between justification andnormatividade, showing the epistemic judgments are more understood inteleological lines. Finally, we consider what characterizes an epistemic duty.Keywords: Epistemic deontologism, Epistemic justification, Epistemic duty

    Epistemlogos tendem a supor que justificao epistmica umconceito normativo. No entanto, a fonte e a natureza da

    normatividade tm sido colocadas em questo. O debate temdividido as teorias da justificao em dois grupos, a saber, asdeontolgicas, que usam termos denticos, semelhantes quelesutilizados na tica, para mostrar o carter normativo dos conceitosepistmicos, e as no-deontolgicas, que no se valem de taistermos. Proveniente de uma larga tradio, a noo deontolgica de

    *

    Professor adjunto do Departamento de Filosofia da PUC-RS. E-mail:[email protected]. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 03.12.2007.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    22/328

    Felipe de Matos Muller22

    justificao epistmica explica conceitos epistmicos utilizandotermos normativos. Numa linha de pensamento tangenciada porJohn Locke, Roderick Chisholm e, mais recentemente, por Matthias

    Steup, ela recorre noo de deveres intelectuais para explicar oconceito de justificao epistmica. Entretanto, Roderick Firthdefendeu, frente posio de Chisholm, que conceitos epistmicosno so redutveis a conceitos ticos. Aps esse debate, a conexoestabelecida entre tica e Epistemologia tem sido meramenteanalgica. A tendncia , ento, que epistemlogos utilizem, no seuprprio sentido, argumentos j estabelecidos no campo da tica.Entretanto, a discusso mais recente tem colocado em dvida

    algumas analogias fundamentais.

    1 Normatividade epistmica1.1 Problema de Gettier e a irrepreensibilidade epistmicaExiste um sentido no qual o melhor que algum pode fazer, atravsda reflexo filosfica, assegurar para si mesmo que no possuiuma crena epistemicamente injustificada. Se o sujeito tem ou noconhecimento, isso uma questo de sorte. Em outras palavras, ter

    conhecimento uma questo de se o mundo coopera a ponto deretribuir crena justificada com verdade1. Essa viso sobre a noode justificao epistmica pode ser percebida no modo comoEdmund Gettier a identifica em seu famoso artigo Is Justified TrueBelief Knowledge?

    2Seguindo as observaes de Robert Fogelin3, sobre os

    exemplos apresentados por Gettier, seria oportuno considerar que,

    no caso das dez moedas, Smith est justificado em crer em umaproposio atmica falsa e que Smith infere corretamente de uma proposio verdadeira . Nesse caso, estaria Smith justificadoem crer que ? Note que no houve algo errado no modo comoSmith adquiriu essa crena. A sua performance epistmica foiirrepreensvel. Ele possua fortes evidncias para , e a sua

    1

    Fumerton, R., 2001, p. 49.2 Gettier, E. 1996.3 Fogelin, R. J. 1994.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    23/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 23

    inferncia de para foi impecvel. Logo, no houve qualquerdefeito epistmico no modo como Smith adquiriu sua crena que .Considerando como Gettier avalia o processo pelo qual Smith obtm

    a crena que , observar-se- que Smith adquiriu a crena que justificadamente. Se Smith pode estar justificado em crer em umaproposio falsa, e no houve algo errado no modo como Smithadquiriu sua crena , parece plausvel supor que o sentido de justificao epistmica que Gettier estava pensando, ao apresentarseus contra-exemplos, era o de ser epistemicamente irrepreensvelao crer.

    Essa viso sobre a natureza da justificao est associada idia de que justificao epistmica possui um componentedeontolgico inerradicvel. Entre os epistemlogos que criticaramseveramente essa viso da justificao epistmica, esto WilliamAlston, Alvin Plantinga e Alvin Goldman. No entanto, antes deapresentar suas objees, cada um deles parece colocar emevidncia que a explicao usual do conceito de justificaoepistmica est associada a algum elemento deontolgico, como

    podemos perceber: William Alston4

    afirmou que estar justificadoem crer que p consiste em algum tipo de status deontolgico, porexemplo, estar livre de culpa para crer que p ou ter satisfeito suasobrigaes intelectuais. Alvin Plantinga5 assegurou que estar justificado estar dentro do nosso direito, no desconsiderandodeveres epistmicos, fazendo no mais do que permitido... sujeitoa nenhuma culpa ou desaprovao. E, Alvin Goldman6 afirmou que[d]eontologistas epistmicos comumente mantm que estar

    justificado em crer em uma proposiop consiste em estar(intelectualmente) obrigado ou autorizado em crer que p; e estarinjustificado em crer quep consiste em no estar permitido, ou estarproibido, em crer que p. Considerando o conceito de justificaodessa perspectiva, pode ser afirmado que, se a viso de justificaoepistmica proposta por Gettier a de ser epistemicamente

    4

    Alston, W. 1989, p. 84 e 1991, p. 72-73.5 Platinga, A. 1993a, p. VII e 13-14.6 Goldman, A. 2001, p. 116.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    24/328

    Felipe de Matos Muller24

    irrepreensvel em crer, ento algum est justificadoepistemicamente em crer em uma proposiop qualquer, somente seno est sujeito a alguma culpa ou desaprovao epistmica.

    Conseqentemente, pode dizer-se que a noo de justificaoepistmica invocada por Gettier vai ao encontro da noodeontolgica.

    1.2 A origem da justificao epistmica baseada em dever

    No incio de seu artigo, Gettier invoca os nomes de RoderickChisholm e Alfred Ayer como base para a noo de justificaoepistmica que ir apresentar. Ambos utilizam termos normativos

    importados da tica para explicar o conceito de justificaoepistmica7. O uso de tais termos quer demonstrar a normatividadedos termos epistemolgicos8.

    Todavia, essa abordagem no surge aqui, mas encontra suaorigem em uma tradio que tem John Locke9 como um de seusrepresentantes mais ilustres. John Yolton comenta que distinguir asboas das ms bases para a crena constitui o que foi chamada atica da crena de Locke10. Dentro dessa perspectiva, se podefalar de uma viso, ainda mais estreita, diretamente iniciada porJohn Locke e recentemente defendida por alguns filsofoscontemporneos. Em nossos dias, a discusso ultrapassa os limitesda perspectiva lockeana. Recentemente, ela foi representada porRoderick Chisholm e, nos ltimos tempos, tem sido defendida,sobretudo, por Matthias Steup. Essa viso recorre noo dedeveres epistmicos para explicar o conceito de justificao

    epistmica. O rtulo dado, muito recentemente, a essa viso o de

    7 Roderick Chisholm utiliza o termo dever enquanto que Alfred Ayer emprega otermo direito. Chisholm fala em deveres intelectuais e Ayer em ter o direitode estar certo.

    8 Conceitos epistmicos, como justificao, mostram-se normativos, no sentidode contrastarem com aqueles que so meramente descritivos.

    9 De acordo com Earl Conee, essa abordagem tem suas origens em Descartes eLocke e recentemente aparece nos trabalhos de Bonjour (1985) e Kornblith

    (1983). O conceito de justificao epistmica explicado em termos de condutadoxstica responsvel. Conee, E. 1998.10 Yolton, 1996, p. 67.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    25/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 25

    Deontologismo Epistmico. Compreender alguns pontos dessaviso, que j esto presentes na sua origem, pode iluminar a razo dealgumas posies contemporneas. Entretanto, no h aqui espao

    para fazer uma investigao histrica. O objetivo a ser alcanado naabordagem que segue no mais que apontar uma direo, mas umadireo importante, que leva ao corao do DeontologismoEpistmico.

    Uma passagem muito citada do An Essay Concerning Human Understanding fornece algumas pistas importantes paracompreender o Deontologismo Epistmico. Nessa passagem, JohnLocke afirma:

    Aquele que cr, sem ter razo alguma para crer, pode estar enamorado desuas prprias fantasias; nem busca a verdade como deveria buscar, nempresta a devida obedincia ao seu Criador, o qual quer que se faa usodaquelas faculdades de discernimento de que est dotado o homem parapreserv-lo do equvoco e do erro. Quem no recorre a estas faculdadesna medida de todo o seu empenho, por mais que s vezes encontre averdade, no est no bom caminho seno por sorte; e eu no saberia dizerse a felicidade do acidente basta para desculpar a irregularidade do

    procedimento. Por isso, pelo menos, seguro: que ser responsvel peloserros em que incorre, enquanto que quem faz uso da luz e das faculdadesque Deus lhe deu e se empenha sinceramente em buscar a verdade,valendo-se dos auxlios e habilidades de que dispe, pode ter estasatisfao: que, ao estar cumprindo seu dever como criatura racional, seno consegue alcanar a verdade, nem por isso deixar de gozar de suarecompensa, porque, quem assim procede, sabe governar bem seuassentimento e o coloca onde deve, quando, qualquer que seja o caso ou oassunto, cr ou deixa de crer, segundo o comando de sua razo. Quem agede outro modo peca contra suas luzes e emprega mal essas faculdades ques foram dadas para o fim de buscar e seguir a evidncia mais clara e amaior probabilidade11.

    O excerto doEssay deixa claro que, para Locke, a noo dedever tem um papel central no empreendimento epistmico. Emboraele nem sempre seja claro sobre quando est falandonormativamente e quando est mais interessado em descrevercomoas crenas so formadas, quando usa termos deontolgicos, como

    11Locke, 1959, p. 231.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    26/328

    Felipe de Matos Muller26

    dever, ele est garantindo a normatividade do seu discurso sobre asbases da crena.

    Violar um dever significa negligenciar uma importante

    qualidade epistmica. E no violar um dever epistmico significano tomar qualquer atitude doxstica alm da permitida, isto , noestar sujeito culpa ou reprovao epistmica. Algum epistemicamente culpvel, se cr que p, quando p no lhe pareceprovvel. Portanto, aquilo que torna a atitude doxstica de umagente justificada est em funo do que no lhe epistemicamenteimprprio da sua perspectiva. Alvin Plantinga comenta a passagemacima, mostrando claramente a origem da noo de justificao

    epistmica. Ele argumenta nos seguintes termos:

    Aqui ... existe a clara afirmao de que temos um dever doxstico ouepistmico: um dever, por exemplo, no para produzir um firmeassentimento da mente para qualquer coisa, mas por meio de boasrazes. Agir de acordo com estes deveres ou obrigaes estar dentrodaquilo que correto; fazer somente aquilo que permitido; no estarsujeito a alguma culpa ou desaprovao; no ter desprezado qualquerdever; ser aprovvel deontologicamente; , em uma palavra, estar

    justificado. De fato, toda a noo de justificao epistmica tem suaorigem e residncia nesse territrio deontolgico do dever e da permisso,e somente por meio desse sentido da extenso anloga que o termojustificao epistmica aplicado em outros sentidos. Originalmente ena realidade, justificao epistmica justificao deontolgica;

    justificao deontolgica com respeito norma da crena12.

    Observe-se, tambm, que no basta alcanar a verdadeacidentalmente. Adquirir crena verdadeira no suficiente para

    tornar algum epistemicamente irrepreensvel. Por outro lado, o fatode um agente doxstico encontrar-se na situao de ter ou ter tidocrenas falsas no implica que sua performance epistmica censurvel. Nesse sentido, algum pode estar justificado em crer,mesmo que a maioria de suas crenas seja falsa. No necessrioque a maior parte das crenas justificadas de um agente doxsticoseja verdadeira, sejam quais forem as circunstncias consideradas.

    12 Platinga, A. 1993a, p. 13-14.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    27/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 27

    Justificao epistmica, nessa perspectiva, no depende de nenhumfator externo ao agente doxstico. Tudo o que o sujeito necessitapara estar justificado pertence a sua vida mental.

    O que alcana o mrito ao agente doxstico e, portanto, otorna irrepreensvel no o crer verdadeiramente, mas crer ou deixarde crer segundo o comando da sua razo. Parece ser importante, paraLocke, no correr riscos quando se trata do empreendimentoepistmico. O destino epistmico de um sujeito deveria sempreencontrar-se em suas mos. O sujeito sempre deveria poder cumpriros seus deveres epistmicos. Assim, estaria dentro do poder dosujeito sempre fazer o seu melhor e estar longe da censura.

    Outro aspecto a considerar que Locke est pensandoclaramente em dever ou obrigao subjetiva, visto que ele estpensando em inocncia e culpa, responsabilidade eirrepreensibilidade. Nesse sentido, estar justificado depende daquiloque acessvel ao agente. Mas alm do subjetivo, ele tambm estfalando de um dever objetivo. Locke afirma que algum deve crernaquilo que epistemicamente provvel em relao a sua evidnciatotal. Em outras palavras, algum deve crer somente em proposiespara as quais tem boas razes. Algum que no faz assim, ele diz,vai contra sua prpria luz e usa de maneira errada aquelasfaculdades que lhe foram dadas. Regular as crenas deste modo oseu dever objetivo.

    Assim, poderia dizer-se que como seres intelectuais, nstemos, o que podemos chamar, um fim epistmico: a verdade. Aperseguio deste fim nos impe certos deveres: deveres

    epistmicos objetivos e subjetivos. Quando no utilizamoshabilmente nossas faculdades intelectuais, podemos serresponsabilizados e censurados pela violao de tais deveres.

    1.3 O uso de termos normativosFreqentemente, quando discutimos problemas em teoria doconhecimento, nos percebemos utilizando uma terminologia que tipicamente tica13. Na tica, as pessoas regularmente avaliam aes

    13 Firth, R. 1978.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    28/328

    Felipe de Matos Muller28

    como certas ou erradas, justificadas ou injustificadas, permitidas,obrigatrias ou proibidas; avaliam indivduos como bons ou maus,virtuosos ou imorais. Na Epistemologia, as pessoas fazem

    julgamentos comparveis entre opinies e outros atos cognitivos,usando, s vezes, a mesma linguagem normativa.Ambos, Roderick Firth14 e Roderick Chisholm15, alegaram

    que existem componentes de natureza deontolgica16 na base dosconceitos epistemolgicos. Pode-se pensar exigncia, proibio epermisso como os termos deontolgicos bsicos, em obrigao edever como espcies de requerimento, e em responsabilidade,culpabilidade e outros termos semelhantes como derivados17.

    Todavia, Firth sustentou, atravs de boas razes, que conceitosepistmicos no so redutveis a conceitos ticos. A utilizao dovocabulrio deontolgico, para fazer juzos epistmicos, apenasanalgica. Da mesma forma, a conexo entre justificao epistmicae justificao tica , tambm, analgica. Existe pouca dvida deque existam ao menos semelhanas superficiais entre tica eEpistemologia18. Jonathan Dancy comenta que, em geral, a ticatem sido mais exaustivamente investigada, e a tendncia tem sido deepistemlogos utilizarem no seu prprio sentido os resultados queconsideram estabelecidos do outro lado19.

    William Alston alegou que os termos justificado,justificao e seus cognatos so mais naturalmente entendidos noque podemos chamar um sentido deontolgico, como fazemos comobrigao, permisso, requerimento, culpa e semelhantes.Isso sugere que o conceito de justificao pode ser analisado

    utilizando termos deontolgicos em um sentido especificamenterelevante para a perseguio do conhecimento.

    14 Firth, R. 1978.15 Chisholm, R., 1977, p. 12.16 Do grego don (o que obrigatrio). No h uma conexo direta com a posio

    normativa da tica na qual dever o conceito fundamental. O termo usado nosentido teleolgico.

    17

    Alston, W. 1989, p. 115.18 Feldman, R., 1998.19 Dancy, J., 1992.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    29/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 29

    Se justificao est em funo de cumprir deveres, ento elapossui um carter normativo. Essa viso que utiliza os termosdever e obrigao visa expressar a normatividade do conceito de

    justificao epistmica. Afinal, ter um dever estar sujeito a umaexigncia normativa20. Assim, se um sujeito S possui um dever parafazer uma ao x, ento exige-se que S faa x. Deveres fornecemalguma razo justificada para a ao. Se algum explica por que fezalguma coisa, dizendo que era seu dever, ento oferece uma justificao para a sua ao. De forma semelhante, ter um deverepistmico significa estar sujeito a uma exigncia normativa. Logo,se um sujeito S possui um dever para tomar a atitude doxstica A,

    ento exige-se que S tome A. Se necessrio ter razes para crer,ento o sujeito que cumpre os seus deveres epistmicos capaz defornecer alguma razo suficiente para tomar a atitude doxstica A.Assim, se S capaz de explicar por que tomou A, alegando que eraseu dever, ento oferece uma justificao para sua atitude doxstica.

    Na Epistemologia contempornea, Chisholm21 foi ogrande precursor e defensor dessa abordagem22. Ele afirmou

    que ns temos um dever epistmico fundamental. E esse detentar fazer o melhor possvel para alcanar o fim epistmicode crer em verdades e no crer em falsidades. Chisholm fala deum requisito que temos como seres intelectuais. De acordocom Chisholm, isso nos exigido intelectualmente, parafazermos nosso melhor, a fim de crer em proposies, se esomente se elas forem verdadeiras.

    1.4 Normatividade teleolgica

    Filsofos tm traado numerosos paralelos entre o discurso tico e odiscurso epistemolgico em relao ao carter avaliativo dosconceitos de justificao, racionalidade e garantia. Uma distino

    20 Frazier, R. L. 1998.21

    Chisholm, R. 1966, p. 14.22 Antes de Chisholm, podemos citar William James (1967) e William Clifford(1877).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    30/328

    Felipe de Matos Muller30

    fundamental em tica, que pode, tambm, ser aplicada emEpistemologia, entre os modelos normativos. Embora osepistemlogos no concordem sobre como analisar o conceito de

    justificao epistmica, eles parecem concordar que ele , em algumsentido, um conceito normativo. A preocupao descrever normasque no podem ser violadas por um agente. Parece ser igualmenteimportante orientar os agentes que buscam decidir entre essa eaquela atitude doxstica, quando desempenham o papel de agentes(doxsticos) epistmicos.

    Em relao normatividade dos juzos morais, os filsofosoferecem dois pontos de vista, a saber, o teleolgico e o

    deontolgico23. De acordo com William Alston, juzos epistmicosso mais naturalmente entendidos em linhas teleolgicas24. Deacordo com o modelo teleolgico, uma atitude deve ser praticada,se e somente se o ato ou a regra produzir ou provavelmente produzirou tiver por objetivo produzir uma maior quantidade de um estadode coisas favorveis, em relao a um estado de coisasdesfavorveis, do que qualquer possvel alternativa. Nesse sentido,se algum assume uma viso teleolgica, ento todos os juzosticos so, em ltima anlise, juzos sobre o sentido no qual aesprovavelmente produzem coisas de valor intrnseco. Qualquer

    23 Linda Zagzebski, explorando a analogia entre o modelo tico e o modeloepistemolgico, afirma: ... no surpresa que o tipo de teoria moral da qual estasteorias tomam emprestados conceitos morais so quase sempre uma teoriabaseada em ato, ou deontolgica ou conseqencialista (Zagzebski, L. 1996, p. 7).

    24 Alston, em The Concepts of Epistemic Justification, apresenta a noo

    deontolgica de justificao epistmica como modelo de uma teoria teleolgica.Ele escreve na nota (4) de seu artigo que o leitor deveria ser advertido quedeontolgico, tal como usado aqui, no contrasta com teleolgico, tal como comum na teoria tica. De acordo com essa distino, uma teoria ticadeontolgica , como a de Kant, no considera princpios de dever ou de obrigaocomo devendo seu status ao fato de que agir de maneira que eles prescrevamtende a realizar certos estados de coisas desejveis, enquanto uma teoriateleolgica, como o Utilitarismo , sustenta que isto o que torna um princpio deobrigao aceitvel. O fato de que ns no estamos usando deontolgico comesta fora mostrado pelo fato de que ns estamos pensando nas obrigaes

    epistmicas como devendo sua validade ao fato de que cumpri-las ir tender alevar a realizao de um estado de coisas desejvel; neste caso, um amplo corpode crenas com uma razo verdade-falsidade favorvel (Alston, W. 1989, p. 84).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    31/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 31

    explicao sobre o significado normativo dos termos envolveinevitavelmente a referncia a algo que possui valor intrnseco.

    De acordo com Roderick Firth, crenas sem qualquer

    valor epistmico podem alcanar o status de justificadassimplesmente porque servem como meio para alcanar algumvalor epistmico com o tempo.

    Existem circunstncias em que crenas falsas podem precedercausalmente crenas verdadeiras, crenas garantidas podem precedercausalmente crenas falsas, e assim sobre todos os possveis modos nosquais crenas com e sem mrito epistmico intrnseco podem produziroutras crenas com e sem mrito epistmico25.

    Para um teleologista, o valor epistmico das atitudesdoxsticas depende de um valor no-epistmico que faz surgir ouque busca fazer surgir. Se o valor epistmico de uma crenadependesse do valor epistmico que ela pode fazer surgir , entrar-se-ia em um crculo vicioso. Por causa disso, as teorias teleolgicascolocam o obrigatrio e o epistemicamente bom na dependncia do

    no-epistemicamente bom. Para saber qual a atitude doxsticacorreta, deve-se primeiro averiguar o que bom, no sentido no-epistmico, e depois indagar se a atitude doxstica em questopromove ou se destina a promover o bem naquele sentido.

    Mas qual o valor no-epistmico escolhido pelosepistemlogos? Marian David comenta que epistemlogos de todasas convices tendem a invocar a meta de obter verdades e evitarfalsidades... Nenhuma outra meta invocada to freqentemente

    como esta26. Em sua clebre passagem, William James afirma:Acredite na verdade! Evite o erro! essas, vemos, so duas leismaterialmente diferentes; e, por escolher dentre as mesmas,podemos terminar por colorir diferentemente toda a nossa vidaintelectual27. Note-se que James apresenta sua viso em termos de

    25

    Firth, R. 1980, p. 8.26 David, M. 2001, p. 151.27 James, W. 1967, 242-243.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    32/328

    Felipe de Matos Muller32

    leis. Todavia, de acordo com Richard Feldman28, parece razovelinterpretarmos o termo lei, no como dever, mas comoobjetivo ou fim , uma vez que ele apenas nos diz o que

    devemos obter, mas no os meios e os modos como obter tais fins ouobjetivos. Portanto, isso no quer dizer que algum tenha o dever decrer em verdades e no crer em falsidades. Mas, se possvelinterpretar a passagem de James como tratando de fins, ainda preciso compreender o que ele quer dizer, quando afirma que, porescolher dentre as mesmas, podemos terminar por colorirdiferentemente toda a nossa vida intelectual. Dois pontos devemser considerados nessa passagem. Primeiro, so dois e no um nico

    fim epistmico. E segundo, o tipo de mescla adotada para acombinao desses dois fins indicar a perspectiva da vidaintelectual de um agente. Portanto, frente a duas posies extremas,crer em tudo, a fim de crer em muitas ou todas as verdades; e crerem pouca coisa, a fim de crer em menos falsidades possveis, faz-senecessrio achar uma mescla adequada, a fim de atingir a excelnciaepistmica. Se o estado de coisas favorveis for crer em verdades eevitar o erro, como sugeriu Alston, ento algum estar justificadounicamente em funo da aquisio desses dois fins. Mas, se essesdois fins no podem ser reduzidos um ao outro, ento a melhoratitude doxstica, em relao a um, pode no ser a melhor atitudedoxstica em relao ao outro; mesmo porque algum podeconsiderar crer em verdades como prioritrio e considerar evitar oerro como secundrio; ou evitar o erro como fundamental e crerem verdades como um acrscimo.

    2 Deontologismo epistmicoDizer que um sujeito S possui um dever significa que exigido de Sfazer . De forma semelhante, dizer que um sujeito S possui umdever doxstico significa que S exigido a crer que . RoderickChisholm29 afirma, em uma passagem muito citada, que podemossupor que todas as pessoas estejam sujeitas a uma exigncia

    28 Feldman, R. p. 244-245.29 Chisholm, R. 1966, p. 14.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    33/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 33

    puramente intelectual aquela de fazer o melhor possvel para queacontea que, para qualquer proposio h que elas considerem, elasaceitem h, se e s se h for verdadeiro. Ao comentar essa passagem,

    em Epistemic Obligations, Richard Feldman30

    assegura queconseqncias epistmicas de longo prazo no so importantes paraquem deve cumprir o seu dever agora:

    Para ver o que Chisholm tem em mente, til considerar as seguintes questes:dado que eu estou na situao em que estou e dado que eu estou considerando aproposio p, o que eu deveria fazer acredit-la, deneg-la ou suspender o

    juzo sobre ela? Qual dessas trs opes epistemicamente a melhor? Aopensar sobre essas questes, preciso considerar somente essas trs opes e

    somente o fim de atingir a verdade sobre p... a verdade de p, agora, queinteressa. Assim, se crer em alguma coisa agora me levaria de alguma forma acrer em muitas verdades mais tarde, esse benefcio epistmico de longo prazo tambm irrelevante para esse julgamento31.

    O ponto fundamental em relao aos deveres epistmicos que, ao explic-los, por meio do evidencialismo, est-se assumindouma teoria da justificao sincrnica32. O que aconteceu ou o queacontecer no conta para estar justificado agora. O que determina odever epistmico ou acessvel agora ou ser acessvel com otempo. Isso depende de quando algum deve tomar uma atitudedoxstica em relao a uma proposio. Se algum tem de tomaruma atitude doxstica agora, ento o que determina o seu deverprecisa ser acessvel agora. Matthias Steup afirma:

    Deontologistas deveriam dizer que, se eu devo agir naquele momento, oque meu dever no pode ser determinado pela informao que eu posso

    adquirir somente depois. Antes, meu dever pode somente ser determinado

    30 Richard Feldman, assume as seguintes estratgias argumentativas: (a) defender alegitimidade do uso da linguagem deontolgica sobre crenas; (b) defender aafirmao de que ns podemos ter exigncias, permisses epistmicas, etc.,mesmo se o voluntarismo doxstico for falso; e (c) manter a conjuno entre o

    Deontologismo Epistmico e o Evidencialismo.31 Feldman, R. 1988.32 Swinburne, p. 3 e 23-24.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    34/328

    Felipe de Matos Muller34

    pela informao acessvel a mim naquele momento em que eu devoagir33.

    Entretanto, se o sujeito no tem acesso ao que o seu dever,

    ento no pode haver autocondenao ou a linguagem da culpa. Terum dever implica pelo menos que seja acessvel ao sujeito saberqual o seu dever. Se for impossvel ao sujeito saber qual o seudever epistmico, ento no apropriado alegar que o sujeito tenhatal dever. Por outro lado, o dever epistmico subjetivo de algumsempre acessvel agora, visto que ele sempre acessvel porreflexo. Nesse caso, o sujeito sempre ser culpado, se falhar emcumprir o seu dever epistmico subjetivo. Nesse sentido, algumpode ser culpado ou censurado, somente se desprezaconscientemente o seu dever. Portanto, algum pode ser censuradopor falhar em cumprir o seu dever epistmico, s se crcontrariamente sua conscincia epistmica.

    Quando ns pensamos que talvez seja necessrio ter razespara crer que uma proposio verdadeira, precisamos distinguiraquelas razes que so epistmicas daquelas que no o so. Da

    mesma maneira, mister distinguir um dever doxstico epistmicode outros que no so epistmicos.

    Um modo de fazer essa distino distinguir os objetivosque essas razes propriamente tendem a promover. Existem vriostipos de objetivos que algum poderia ter e, portanto, vrios tipos derazes que promoveriam a conquista desses objetivos. Assim,podem distinguir-se os tipos de razes em funo dos objetivos cujaconquista elas promovem. Existem, por exemplo, objetivos morais,

    prudenciais, legais, epistmicos, etc. De modo semelhante, pode-sever a diferena entre os tipos de deveres doxsticos, se for estimadasua eficcia para alcanar metas ou fins34. Entretanto, RichardFeldman argumentou que nem sempre o mrito prudencial, moral eepistmico coincidem. Por outro lado, possvel imaginar umasituao em que algum, ao fazer x, cumpre ao mesmo tempo com

    33

    Steup, 1996, p. 85.34 Sobre esse ponto ver Foley, R. 1987; Feldman, R. 1988; Steup, M. 1996; eFumerton, R. 1996.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    35/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 35

    ios tipos.

    seu dever ou obrigao prudencial, epistmica e moral. Todavia,pode haver conflito entre os vrios tipos de dever. Se cumprir seudever epistmico , em um dado momento, incompatvel com

    cumprir naquele mesmo momento seu dever moral, ento qual delesdeve ser cumprido? Deveres morais sempre superam deveresepistmicos? Feldman35 comenta que no h qualquer problemacom a idia de que deveres do mesmo tipo podem ter igualimportncia. O ponto relevante que pode existir alguma escala devalores. Cumprir com um dever contribui mais que cumprir com ooutro para alcanar o que possui valor intrnseco. O problema,segundo Feldman, que no h clareza em como conduzir uma

    avaliao com uma escala valorativa de deveres de vrExistem diferentes deveres doxsticos, porque existem

    diferentes metas ou fins que podem ser enfatizadas. Assim, aperseguio de uma determinada meta ou fim impe certos deveresa um agente doxstico. Por exemplo, quando um sujeito S considerasua crena justificada moralmente (o que S moralmente deve crer), ameta relevante pode ser algo como alcanar ou provavelmentealcanar o que moralmente bom (ou evitar o mal), e o deverdoxstico moral que S obrigado a cumprir conducente meta oufim de crer no que bom moralmente.

    Um dever doxstico prudencial pode ser distinguido domesmo modo. Assim, quando um sujeito S considera sua crena justificada prudencialmente, a meta relevante pode ser algo comoalcanar ou provavelmente alcanar aquilo que prudencialmentevalioso, e o dever doxstico prudencial que S obrigado a cumprir

    conducente meta ou fim de crer no que prudencialmente valioso.Os deveres doxsticos prudenciais consideram relevantes os mritosprticos antes de qualquer atitude proposicional epistmica36.

    Quando um sujeito S considera sua crena justificadaepistemicamente (o que S epistemicamente deve crer), a meta

    35 Feldman, 2000, p. 692.36

    Podem descrever-se as atitudes proposicionais epistmicas, de modosimplificado, como sendo trs: crer que p, descrer que p, e suspender o juzofrente a uma proposio.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    36/328

    Felipe de Matos Muller36

    relevante pode ser algo como alcanar ou provavelmente alcanaraquilo que epistemicamente valioso, e o dever doxsticoepistmico (DDE) que S obrigado a cumprir conducente meta

    ou fim de crer no que epistemicamente valioso. Os deveresdoxsticos epistmicos adotam uma posio totalmente imparcial edesinteressada de um ponto de vista moral ou prudencial, tendocomo irrelevante qualquer mrito moral ou prudencial. Assim, emalguns casos, os fatores epistmicos podem conduzir a resultadosdiferentes daqueles atingidos pelos deveres morais ou prudenciais. Aviso de que o conceito de justificao definido em termos dedeveres doxsticos epistmicos denominada Deontologismo

    Epistmico37. De acordo com Matthias Steup, ele pode ser definidodo seguinte modo:

    (DE) Um sujeito S est justificado em crer em uma proposio p se (esomente se) merece um elogio (ou no merece culpa) para crer que p ouquando S cumpre seus deveres ou obrigaes epistmicas para crer quep(ou crer quep no viola quaisquer deveres ou obrigaes epistmicas).

    A diferena entre dever epistmico e moral que algumdeve crer, descrer, ou suspender o juzo frente a uma proposio,enquanto algum pode licitamente realizar ou no realizar uma ao.No existem atitudes epistmicas meramente permissveis, enquantopode ser meramente permissvel realizar uma ao. Se minhaevidncia pr e contra a existncia de inteligncia extraterrestre temigual relevncia, ento eu devo suspender o juzo. Eu no posso,indiferentemente, suspender o juzo, crer ou descrer. No entanto,

    considere que eu tenha razes morais, prs e contras de igual peso,para beber uma taa de vinho. Ento, permitido fazer uma ououtra.

    3 Consideraes finais

    Vimos que existe uma viso, dentre aquelas que utilizam termosdeontolgicos para expressar a normatividade do conceito de

    37 Contemporaneamente, os defensores mais influentes do Deontologismo soBonjour (1985), Chisholm (1966) e (1977), Ginet (1975) e Steup (1988-).

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    37/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 37

    justificao epistmica, denominada Deontologismo Epistmico.E que essa viso recorre noo de deveres epistmicos paraexplicar uma intuio fundamental sobre o conceito de justificao

    epistmica, a saber, a noo de irrepreensibilidade epistmica.Todavia, no se trata aqui de deveres morais, nem prudenciais, masepistmicos. Se a normatividade teleolgica, ento os deveresepistmicos esto em funo de um determinado fim o de crer emverdades e evitar crer em falsidades. Todavia, os deveresepistmicos podem ser concebidos tanto em relao a aes quantoem relao a crenas. O Deontologismo Epistmico tratapropriamente dos deveres epistmicos em relao a crenas. Nesse

    sentido, o Deontologismo Epistmico explica a justificaoepistmica por meio de deveres epistmicos doxsticos. Portanto, osdeveres no exigem do sujeito buscar ou considerar mais evidncias,apenas tomar atitudes doxsticas de acordo com alguma regraepistmica.

    Entretanto, a discusso mais recente tem colocado emdvida algumas analogias fundamentais. H uma suposio, na

    tica, de que cumprir ou no violar deveres implica ahabilidade para cumpri-los ou no os violar. Desse modo, umapessoa pode ser responsabilizada pela execuo de um ato,somente se a execuo resulta do controle voluntrio que elatem sobre o prprio ato. No entanto, o resultado dafenomenologia da crena colocou em dvida que pessoastenham habilidade para controlar suas crenas como a tm

    para controlar suas aes. Essa dessemelhana tem colocado anoo deontolgica de justificao epistmica sob suspeita,visto que, na melhor hiptese, raramente pessoas tm controlevoluntrio sobre suas crenas. Conseqentemente, ou no apropriado utilizar termos deontolgicos, para avaliar crenas,ou tais termos no so utilizados com o mesmo sentido quetm na tica.

    Mas, o problema do involuntarismo doxstico no o nicoa ameaar a noo deontolgica de justificao epistmica. H quem

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    38/328

    Felipe de Matos Muller38

    pense que, mesmo que tal teoria seja possvel, ela ainda no sequalificaria como condio necessria para o conhecimento. Algumpoderia violar seus deveres intelectuais e, ainda, poderia ter

    conhecimento. Encontrar uma resposta adequada para essa objeorequer se investigue um problema anterior. Cumprir ou no violardeveres intelectuais suficiente para tornar uma crena justificada?A busca por uma resposta para essa questo conduz novamente auma outra dessemelhana com a tica: a distino entre justificaoobjetiva e subjetiva. Alguns identificam a noo deontolgica com justificao epistmica subjetiva. No entanto, ter justificaoepistmica subjetiva parece no ser suficiente para alcanar a

    desejada excelncia epistmica. Por outro lado, alguns tentamidentificar a noo deontolgica com justificao epistmicaobjetiva, mas isso parece colocar de lado a caractersticafundamental dessa noo, a saber, a irrepreensibilidade epistmica.

    Por fim, essas so questes que esto no topo da agenda dodebate epistemolgico contemporneo sobre a noo deontolgicade justificao epistmica, e, em qualquer caso, a possibilidade e aimportncia epistemolgica do Deontologismo Epistmico parecemestar comprometidas at que se tenha uma resposta satisfatria paraessas questes.

    Referncias

    ALSTON, W . The Deontological Conception of EpistemicJustification. Reprinted. In ALSTON, W. Epistemic Justification; Essays in the Theory of Knowledge. Ithaca: Cornell University

    Press, 1989, p. 115-152._____. Concepts of Epistemic Justification. Reprinted. In ALSTON,W. Epistemic Justification; Essays in the Theory of Knowledge.Ithaca: Cornell University Press, 1989, p. 81-114.AYER, A. J. O problema do conhecimento.Lisboa: Ulisseia, 1970.AYERS, M. Locke, John (1632-1704). In CRAIG, E. (Ed.). Routledge Encyclopedia of Philosophy. London and New York:Routledge, 1998.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    39/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 39

    BONJOUR, L. The Structure of Empirical Knowledge. Cambridge,MA: Harvard University Press, 1985.CHISHOLM, R. Theory of Knowledge. Englewood Cliffs: Prentice-

    Hall, 2. ed. 1966._____ . Theory of Knowledge. 2. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1977._____ . Theory of Knowledge. 3. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1989.CLIFFORD, W. The Ethics of Belief. Disponvel em:http://www.infidels.org/library/historical/w_k_clifford/ethics_of_belief.html. Acesso em: 08/05/2004. Originally published in

    Contemporary Review, 1877. Reprinted in Lectures and Essays,1879. Presently in print in The Ethics of Belief and Other Essays.Amherst, NY: Prometheus Books, 1999, p. 70-96.CONEE, E. Normative Epistemology. In CRAIG, E. 1988.CRAIG, E. (Ed.). Routledge Encyclopedia of Philosophy.London and New York: Routledge, 1998.DANCY, J. Ethics and Epistemology. In DANCY, J. and SOSA, E.

    (Ed.).A Companion to Epistemology. Oxford, UK: Blackwell, 1992.DAVID, M. Truth as the Epistemic Goal. In STEUP, M. (Ed.).Knowledge, Truth, and Duty. Oxford and New York: OxfordUniversity Press, 2001, p. 151-169.FELDMAN, R. Epistemic Obligation. Philosophical Perspectives 2,1988, p. 235-256._____. Epistemology and Ethics. In CRAIG, E., 1998._____. The Ethics of Belief. Philosophy and Phenomenological

    Research 3, 2000, p. 667-695.FIRTH, R. Are Epistemic Concepts Reducible to Ethical Concepts?In GOLDMAN, A. I. & KIM, J. Values and Morals. D. Reidel:Dordrecht, 1978, p. 215-225._____. Epistemic Merit, Intrinsic and Instrumental. APAPROCEEDINGS, 1980, p. 5-23.FOGELIN, R.J. Pyrrhonian Reflections on Knowledge andJustification. New York/Oxford: Oxford University Press, 1994.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    40/328

    Felipe de Matos Muller40

    FOLEY, R. The Theory of Epistemic Rationality. Cambridge, MA:Harvard University Press, 1987.FRAZIER, R. L. Duty. In CRAIG, E., 1998.

    FUMERTON, R. Epistemic Justification and Normativity. InSTEUP, M., op. cit.,p. 49-60.GETTIER, E. Is justified true belief knowledge? Reprinted. InMOSER, P. Empirical Knowledge; Reading in ContemporaryEpistemology. 2. ed. Lanham, USA: Rowman & LittlefieldPublishers, Inc, 1996, p. 237-240.GINET, C. Knowledge, Perception, and Memory. Dordrecht: Reidel,1975.

    GOLDMAN, A. Epistemology and Cognition. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1986._____ . Internalism Exposed. Reprinted. In STEUP, M. 2001, p.115-133.JAMES, W. Pragmatismo e outros ensaios. Rio de Janeiro: Lidador,1967.KORNBLITH, H. Justified Belief and Epistemically ResponsibleAction. The Philosophical Review 92, 1983, p. 33-48.LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. NewYork: DOVER, 1959. (Collated and annotated, with prolegomena,biographical, critical, and historical by Alexander CampbellFRASER).MLLER, F. M. Deontologismo epistmico:uma abordagemsubjetivista. Veritas (Porto Alegre), v.50, n.200, 2005.p. 219-233.PLANTINGA, A. Warrant: The Current Debate. Oxford: Oxford

    University Press, 1993a.STEUP, M . An Introduction to Contemporary Epistemology. NewJersey: Prentice-Hall, 1996._____ . Doxastic Voluntarism and Epistemic Deontology. ActaAnalytica 15, 2000, p. 25-56._____ . Epistemic Deontologism. In AUDI, R. (Ed.). TheCambridge Dictionary of Philosophy, Second Edition. New York:Cambridge University Press, 1999.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    41/328

    A noo deontolgica de justificao epistmica 41

    _____ . Epistemic Duty, Evidence, and Internality. STEUP, M., op.cit., p. 134-148._____ . Tidman on Critical Reflection.Analysis 56.4, 1996, p. 277-

    281._____. The Deontic Conception of Epistemic Justification.Philosophical Studies 53, 1988, p. 65-84.SWINBURNE, R. Epistemic Justification. Oxford: ClarendonPress, 2001.YOLTON. J. W. Dicionrio Locke. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1996.WOLTERSTORFF, N. John Locke and the Ethics of Belief.

    Cambridge: Cambridge Press, 1996.ZAGZEBSKI, L. T. Virtues of the mind :an inquiry into the natureof virtue and the ethical foundations of knowledge. Cambridge(UK): Cambridge Univ., 1996.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    42/328

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    43/328

    Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, p. 43-78.

    Logic of induction: a dead horse?

    some thoughts on the logical foundations of probability

    Ricardo Sousa Silvestre *

    Resumo: So dois os propsitos deste artigo. Primeiro desejamos examinar porque

    o projeto de Carnap de construir uma lgica indutiva no foi bem sucedido. De

    forma a realizar isso, nos apoiaremos na distino entre o problema da justificao

    da induo e o problema da descrio da induo. Tentaremos mostrar que a

    principal razo pela qual o projeto de Carnap falhou foi sua relao com o

    problema da justificao da induo. Nosso segundo objetivo propor algumas

    idias de como seria um lgica da induo que propositadamente evite o problema

    da justificao e possa consequentemente ser chamada de uma lgica puramentedescritiva da induo. Utilizaremos para isso um conceito de probabilidade

    presente no Logical Foudations of Probability de Carnap chamada por ele de

    probabilidade pragmtica.

    Palavras-chave: Carnap, Induo, Probabilidade pragmtica, Problema da

    descrio da induo

    Abstract: Our purpose in this paper is twofold. The first is to understand why

    Carnaps project of building a logic of induction as a whole was not successful. In

    order to achieve that we shall make use of the important distinction between theproblem of justification of induction and the problem of description of induction.

    We shall try to show that the main reason why Carnaps project failed was its

    connection with the problem of justification of induction. As a secondary purpose,

    we want to advance some ideas on how a logic of induction which deliberately

    avoid the problem of justification and therefore could be called a purely descriptive

    logic of induction would look like. In order to do that we shall make use of a

    concept of probability contained in Carnaps Logical Foundations of Probability

    called by him the pragmatical notion of probability.

    Keywords: Carnap, Induction, Pragmatical probability, Problem of justification ofinduction

    1 Introduction

    For the last 15 years or so, it has been commonplace among

    philosophers to consider the whole project of building a logic of

    * Professor adjunto da Universidade Federal do Cear. E-mail: [email protected].

    Artigo recebido em 28.09.2007, aprovado em 19.12.2007.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    44/328

    Ricardo Sousa Silvestre44

    induction as conceived by Rudolf Carnap as fundamentally

    misleading. In a paper entitled Why There Cant be a Logic of

    Induction, Stuart Glennan for example compares such project to a

    dead horse

    1

    :

    Carnaps attempt to develop an inductive logic has been criticized on a

    variety of grounds, and I think it is fair to say that the consensus is that

    the approach as a whole cannot succeed. In writing a paper on problems

    with inductive logic I might therefore be accused of beating a dead

    horse.

    A similar statement is found in the entry for Inductive Logic in J.

    Pfeifers Philosophy of Science: An Encyclopedia, written by

    Branden Fitelsen2 :

    Moreover, there are further (and some say deeper) problems with

    Carnapian approaches to logical probability, if they are to be applied

    to inductive inference generally. The consensus now seems to be that the

    Carnapian project of characterizing an adequate logical theory of

    probability is (by his own standards and lights) not very promising.

    Our purpose in this paper is twofold. The first one is to

    understand the rationale behind theses claims and why Carnaps

    project of building a logic of induction as a whole was not

    successful. In order to achieve that we shall make use of the

    important distinction between the problem of justification of

    induction and the problem of description of induction. We shall try

    to show that the main reason why Carnaps project failed was its

    connection with the problem of justification of induction. As a

    secondary purpose, we want to advance some ideas on how a logic

    of induction which deliberately avoid the problem of justification

    and therefore could be called a purely descriptive logic of induction

    would look like. In order to do that we shall make use of a concept

    1 Glennan (1994), p. 78.2 Fitelsen (2006), p. 9.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    45/328

    Logic of induction: a dead horse? 45

    of probability contained in Carnaps Logical Foundations of

    Probability called by him the pragmatical notion of probability3 .

    The structure of the paper is as follows. In the Sections 2

    and 3, after briefly surveying the main conceptions of induction, weanalyze the main features of the logical conception of induction

    associated with Carnaps school. In Sections 4 and 5 we explore

    some important relationships between induction and probability. In

    Section 6 we examine Carnaps system in order to illustrate what we

    have said in the previous sections and better understand claims such

    as the ones quoted in this introduction. Finally, in Section 7, we

    advance some ideas about how a logic which avoids Carnaps

    justificatory flaws would look like.

    2 From inductive generalization to ampliative inferences

    The most traditional use of the term induction is that which

    equates induction with what today is known as inductive

    generalization or inference from the particular to the general.

    Taking a widely used example, if we observe, let us say, 100 ravens

    and notice that all of them are black, we may generalize that and

    conclude that all ravens are black. This act of inferring a general

    statement from particular instances is the first important feature of

    this traditional meaning of induction. The other is the purpose

    associated with this kind of reasoning. Induction in this sense is

    conceived as a way of discovering or generating hypotheses, laws or

    principles; or, broadly speaking, as a sort of logic of discovery.

    This use of induction has been first taken by Aristotle

    (at least was him who first used a specific technical term epagg to refer to this inferential process 4), to whom scientific knowledge

    is obtained by demonstration from indemonstrable first principles,

    and knowledge of these first principles is in turn obtained by

    induction. It is important to remark however that to Aristotle the

    3 Here we shall follow Carnap and use the adjective pragmatical instead of

    pragmatic.4 The term induction comes from Cicero, who introduced the word inductio as an

    exact equivalent for epagg.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    46/328

    Ricardo Sousa Silvestre46

    generalization resultant from an induction is not necessarily of an

    empirical character. In the words of J. R. Milton 5 :

    Among the truths which Aristotle describes as being reached by induction

    What we do not find are what we are accustomed to think of as

    empirical generalizations. Aristotle uses the word epagg and its

    derivatives over fifty times in his various writings, and the only example

    of a proposition derived by epagg which could reasonably be described

    as an empirical generalization is the discussion example of all bileless

    animals being long-lived which appears in Prior Analytics, II.23.

    Another important conception of induction is the so-called

    singular predictive induction, or the non-demonstrative inferencefrom the particular to the particular. Taking again our raven

    example, rather than concluding that all ravens are black, in a

    singular predictive induction we would conclude that the next raven

    to be observed will also be black. Despite the obvious differences

    between this meaning and the first one, singular predictive induction

    can be very fairly taken as a particular case of inductive

    generalization. We will call this conception of induction understood

    as inductive generalization and/or singular predictive induction the

    classical conception of induction.

    The shift to what we call the modern conception of

    induction took place in the seventieth century with Francis Bacons

    Novum Organum. While induction in this new sense remained

    chiefly conceived as generalization from particulars and as a method

    of discovery, it started to be taken (as explicitly suggested by

    Bacon) as the chief method (of discovery) of the newly born naturalsciences. Accordingly, all aspects of inductive reasoning, in special

    its conclusions, were taken as being empirical in essence. In this

    way, we arrive at the modern idea (still in vogue today) according to

    which all science starts from observation and then slowly and

    cautiously proceeds to theories, which consist basically of

    generalizations of such observations.

    5 Milton (1987), p. 53.

  • 8/8/2019 Revista Princpios, Vol. 14, nmero 22, 2007

    47/328

    Logic of induction: a dead horse? 47

    Another very important part of Bacons philosophy of

    science is that he considered pure inductive generalization as a

    puerile thing, incapable per se of generating any kind of

    knowledge. In order to generate authentic scientific knowledge, ithas to be supplemented with some additional method, in Bacons

    case a method of exclusion intended to obtain the right conclusion.

    As he puts it 6 :

    But the greatest change I introduce is in the form itself of induction and

    the judgment made thereby. For the induction of which the logicians

    speak, which proceeds by simple enumeration, is a puerile thing;

    concl