leia escola, campina grande, vol. 7, nº 1, 2007 – issn

93

Upload: others

Post on 21-Jun-2022

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN
Page 2: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

1

LEIA ESCOLA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO

Os trabalhos publicados são da responsabilidade exclusiva de seus autores

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE (EDUFCG)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

Reitor: THOMPSON FERNANDES MARIZ Vice-Reitor: JOSÉ EDILSON AMORIM

Diretor do Centro de Humanidades: LEMUEL DOURADO GUERRA

UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS

Coordenadora Administrativa: PROFª MARIA SANTANA MEIRA RAMOS Coordenadora de Graduação: PROFª ÂNGELA SUSANNE H. JEUNON

Coord. Pós-Graduação: PROFª MARIA MARTA DOS S. SILVA NÓBREGA Coord. de Pesquisa e Extensão: PROFª MARIA AUXILIADORA BEZERRA

REVISTA LEIA ESCOLA 2007

Comissão Editorial

MARIA MARTA DOS SANTOS SILVA NÓBREGA JOSILENE PINHEIRO MARIZ DENISE LINO DE ARAÚJO

Editor Geral ALOÍSIO DANTAS

Conselho Consultivo ANA CRISTINA MARINHO LÚCIO - UFPB

ANA LÚCIA MARIA DE SOUZA NEVES - UEPB JOSÉ HÉLDER PINHEIRO ALVES - UFCG

LILIAN DE OLIVEIRA RODRIGUES - UERN MARIA AUXILIADORA BEZERRA - UFCG

ISSN 1518-7144

_______________________________________________________________ Leia Escola: Revista da Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG Vol. 7, nº 1, 2007 / Campina Grande: 2007

1. Linguística 2. Linguística aplicada 3. Análise de Discurso 4. Ensino

_______________________________________________________________

Page 3: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

3

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................... p. 7 1 - A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: UMA ANÁLISE DE O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA Alixandra GUEDES Aloísio de Medeiros DANTAS............................................................... p. 9 2 - PALETRAS NO VESTIBULAR DA UFCG: CORRELAÇÃO ENTRE PRÁTICAS LETRADAS E HISTÓRICO DE LETRAMENTO DOS CANDIDATOS Elizabeth Maria da Silva - UFCG Denise Lino de Araújo – UFCG............................................................ p. 23 3 – INTERDISCIPLINARIDADE EM PLANOS DE AULA E EM PROJETOS PEDAGÓGICOS: CONFLITOS EM ABORDAGENS DIDÁTICAS EM CONSTRUÇÃO Wagner Rodrigues Silva - UFT/Campus Universitário de Araguaína Elem Kássia Gomes - UFT/Campus Universitário de Araguaína........ p. 45 4 - CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA: DO GÊNERO ÀS PRÁTICAS SITUADAS Fernanda Valim Côrtes Miguel – UNICAMP......................................... p. 67 5 - O DISCURSO SOBRE O POLÍTICO NAS CHARGES: QUE IDENTIDADES SÃO REPRESENTADAS? Luciana Fernandes Nery....................................................................... p. 81 ARGUMENTAÇÃO E DISCURSO POLÍTICO: O PAPEL ESTRATÉGICO DA PRESSUPOSIÇÃO COMO INTRODUTORA DE INFORMAÇÃO PARTILHADA Paulina de Lira Carneiro / UFRR........................................................ p. 97 A CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLINGUISTICA NO ENSINO DA LINGUA INGLESA Mônica de L .N. Santana / UEPB.......................................................... p. 109

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

4

A (RE)CONFIGURAÇÃO E/OU (RE)CONSTRUÇÃO DA(S) IDENTIDADE(S) DE PROFESSORA: UM ELEMENTO DA INOVAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA? Milene Bazarim / UNICAMP/CNPq..................................................... p. 119 MACHADO DE ASSIS EM QUADRINHOS: UMA ANÁLISE MULTIMODAL DAS ADAPTAÇÕES DE CLÁSSICOS DA LITERATURA PARA HQS Fabiane Dalben de Faria Inês Signorini...................................................................................... p. 139

ANÁLISE DO DISCURSO E PRÁTICAS DE LEITURA NA SALA DE AULA Viviane Brito Silva.............................................................................. p. 155

A CRIAÇÃO DE ANIMAÇÕES PARA VISUALIZAÇÃO DA ARTICULAÇÃO DOS SONS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Juliano Desiderato Antonio / UEM Laís Hissae Ito / PIBIC/UEM............................................................ p. 169 DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS EM 2007................................. p. 182 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO................................................. p. 183

Page 4: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

5

APRESENTAÇÃO A Revista Leia Escola reúne artigos que tratam de língua, linguagem e

ensino em sua dupla face de reflexão teórica e prática de ensino, caracterizados de modo heterogêneo pelos pesquisadores. Alixandra Guedes e seu orientador Aloísio de Medeiros Dantas, no texto A construção do ethos discursivo na literatura infanto-juvenil: uma análise de o fantástico mistério de Feiurinha, investigam as diferentes construções imagéticas que resultam da elaboração de personagens femininas.

Elizabeth Maria da Silva e Denise Lino de Araújo, na escrita do artigo, intitulado Palestras no vestibular da UFCG: correlação entre práticas letradas e histórico de letramento dos candidatos, têm dois objetivos, averiguar as práticas letradas requeridas na produção da palestra proposta na prova de redação aplicada no vestibular da UFCG em 2007 e analisar as associações entre a mobilização de práticas letradas nas palestras e o histórico de letramento dos candidatos. Trata-se de uma pesquisa descritivo-interpretativa de cunho qualitativo, cujo corpus foi constituído por quatro conjuntos de dados, a saber: prova de redação aplicada no vestibular; amostragem de palestras produzidas; questionário socioeconômico e cultural respondido pelos candidatos e entrevista semi-estruturada realizada com os mesmos. Wagner Rodrigues Silva e Elem Kássia Gomes, no texto Interdisciplinaridade em planos de aula e em projetos pedagógicos: conflitos em abordagens didáticas em construção, realizam um estudo sobre materiais didáticos de planejamento e suas implicações para o ensino.

Fernanda Valim Côrtes Miguel, no texto Crítica cinematográfica: do gênero às práticas situadas, investiga o papel da atividade midiático-jornalística na constituição de suas próprias produções escritas, através de uma discussão elaborada com base em textualizações de entrevistas realizadas com integrantes desta comunidade e de uma comunidade de estudantes universitários, além de outras fontes textuais, orais e escritas, em circulação na internet.

Luciana Fernandes Nery, no texto O discurso sobre o político nas charges: que identidades são representadas?, elabora conceitos da Análise do Discurso para uma aproximação e conclusões provisórias sobre a constitutividade do político em um gênero textual de humor. Paulina de Lira Carneiro, no texto Argumentação e discurso político: o papel estratégico da pressuposição como introdutora da informação partilhada, enfoca o fenômeno semântico-pragmático da pressuposição, investigando sua presença no discurso político, recorrendo a uma análise sucinta de um conjunto de excertos extraídos de dois discursos do presidente Lula, para comprovar que o uso de conteúdos implicitados sob a forma de

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

6

pressupostos se reveste de caráter eminentemente argumentativo, constituindo mesmo uma estratégia discursiva do locutor, na medida em que impõe ao interlocutor a aceitação de um conjunto de informações colocadas como (supostamente) pertencendo ao domínio partilhado pelos interlocutores. Mônica de L .N. Santana, no texto A contribuição da Sociolingüística no ensino da língua inglesa, parte do pressuposto de que professores sensíveis às diferenças sociolingüísticas terão mais material para suas aulas, desde que estejam fundamentados em variado material linguístico, do que resultará o desenvolvimento de estratégias interacionais mais positivas. Milene Bazarim, no texto A (re)configuração e/ou (re)construção da(s) identidade(s) de professora: um elemento da inovação no processo de ensino-aprendizagem de língua materna?, descreve e analisa como os alunos de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental de uma escola pública da periferia de Campinas-SP (re)configuram e/ou (re)constroem a(s) identidade(s) de professora em cartas trocadas entre esses alunos e a sua professora de Língua Materna (LM) durante os anos de 2004, 2005 e 2006. Este trabalho se insere no campo de estudos da Linguística Aplicada, podendo ser caracterizado como uma pesquisa qualitativa de base interpretativista.

Fabiane Dalben de Faria, no texto Machado de Assis em quadrinhos: uma análise multimodal das adaptações de clássicos da literatura para HQs, analisa, sob a ótica da Lingüística Aplicada e da teoria da multimodalidade, três adaptações do conto machadiano “O Alienista” para História em Quadrinhos, verificando como a multimodalidade atua na construção desse gênero e procurando compreender qual é o impacto que essa união entre imagem e palavra traz para esse novo texto/gênero.

Viviane Brito Silva, no texto Análise do Discurso e práticas de leitura na sala de aula, pretende desenvolver, na sala de aula, um trabalho norteado pelos princípios da AD,o que, para a autora, significa transformar esse espaço num lugar onde os discursos possam circular, promovendo reflexões realmente produtivas sobre a relação entre linguagem, poder e discurso. Juliano Desiderato Antonio, e sua orientanda Laís Hissae Ito, no texto A criação de animações para visualizações da articulação dos sons do português brasileiro, descreve o processo de criação de animações para visualização da produção dos sons do Português Brasileiro por meio de software livre. Os autores esperam que a disponibilização dessas animações na internet sirva como recurso facilitador para o ensino de Fonética e como recurso que pode promover discussões sobre o ensino de ortografia. Esperamos que o conjunto dos artigos produza outras leituras e desenvolva novas práticas docentes, que, fincadas na pesquisa, abram heterogêneas reflexões sobre a língua, a linguagem e o ensino.

Prof. Dr. Aloísio Dantas UAL - UFCG

Page 5: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

7

A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: UMA ANÁLISE DE O FANTÁSTICO MISTÉRIO

DE FEIURINHA1

Alixandra GUEDES Aloísio de Medeiros DANTAS

UFCG

Resumo

Embasado num viés discursivo, nosso artigo investiga a construção do ethos discursivo no livro O fantástico mistério de Feiurinha (BANDEIRA, 1942/1992). Partimos da hipótese de que a cenografia da narrativa contribui para a construção do “tom” e do “corpo” do narrador, o que acarreta a produção de possíveis sentidos no ato da leitura e busca pela adesão do leitor. Para tanto, analisamos sequências textuais com o objetivo de apreender o ethos discursivo do narrador na materialidade linguística do texto. Para a realização da análise, recorremos aos estudiosos inseridos no âmbito da Análise do Discurso. No que tange ao ethos, embasamo-nos teoricamente em Amossy (2005), Maingueneau (2005, 2006), Salgado & Motta (2008) e nas abordagens sobre o discurso realizadas por Bakhtin (1999, 2000), Dantas (2007) e Orlandi (2007, 2008), pelo fato destes estudiosos tecerem considerações acerca de como a linguagem é materializada na ideologia e como esta materialização reflete o mundo sócio-histórico. Palavras-chave: ethos discursivo, narrativa infanto-juvenil, discurso. Abstract

Based in a discursive inclination, our paper investigates the construction of the discursive ethos in the book O fantástico mistério de Feiurinha (BANDEIRA, 1942/1992). We start from the assumption that the scenography of the narrative contributes to the construction of the “tone” and narrator's “body”, which leads to the production of possible meanings in the act of the reading and search for adhesion of the reader. Therefore, we analyze textual sequences in order to grasp the discursive ethos of the narrator in the text materiality. For the analysis, we used the scholars included in the scope of Discourse Analysis. With regard to ethos, we base ourselves theoretically in Amossy (2005), Maingueneau (2005, 2006), Salgado & Motta (2008) and in 1 Este trabalho é parte de nossa pesquisa de mestrado, em andamento no Programa de Pós-

Graduação em Letras - Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande, sob a orientação do Professor Dr. Aloísio de Medeiros Dantas.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

8

studies about the discourse made by Bakhtin (1999, 2000), Dantas (2007) and Orlandi (2007, 2008), because these scholars weave considerations about how the language is embodied in the ideology and like this realization reflects the socio-historical world. Keywords: discursive ethos, juvenile narrative, discourse. Introdução Algumas palavras iniciais

No jogo dialógico cotidiano, percebemos as mais diversas situações conflituosas que se estabelecem entre os sujeitos no processo de interação, resultantes não apenas da linguagem, mas de forças exteriores ao discurso, fortemente demarcadas por posições sociais e ideológicas instauradas no curso da interação verbal configurando uma verdadeira arena onde a oposição e a contestação dos diferentes discursos são consolidadas.

Isto posto, entendemos que a linguagem – oral e escrita – é concebida como um instrumento social de interlocução que permeia as interações humanas e constrói os discursos através da produção e recepção de gêneros textuais, colocando-se como ação, pois permite que os indivíduos ajam sobre o mundo e sobre os outros. Assim, concebemos o discurso como o elemento “externo” à língua, repleto de ideologias e vestígios sociais, situado no âmbito social e que não encerra aspetos puramente lingüísticos; não é a língua propriamente dita, mas precisa dela para existir.

Entendemos, contudo, que a cada discurso subjaz o que Aristóteles, em sua Retórica, denominou de ethos, logos e pathos. Ethos é a imagem do sujeito no discurso, os traços mostrados pelo orador ao seu auditório, no caso do texto escrito podemos apreendê-lo como sendo um outro sujeito construído pelo leitor enquanto efeito de sentido produzido no e pelo evento de interação através da linguagem. Por logos compreendemo-lo como sendo a lógica presente no discurso, é a racionalidade discursiva. Já por pathos, entendemo-lo como lugar discursivo ocupado pelos ouvintes/leitores.

Sob esse viés, nosso trabalho investiga a construção do ethos discursivo no livro O fantástico mistério de Feiurinha (BANDEIRA, 1942/1992). Partimos da hipótese de que a cenografia da narrativa contribui para a construção do “tom”, “do caráter” e do “corpo” do narrador, o que acarreta a produção de possíveis sentidos no ato da leitura e busca pela adesão do leitor. Para tanto, analisamos a narrativa com vistas à apreensão do ethos discursivo do narrador na materialidade linguística do texto.

Para a realização da análise, recorremos aos estudiosos inseridos no âmbito da Análise do Discurso. No que tange ao ethos, embasamo-nos

Page 6: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

9

teoricamente em Amossy (2005), Maingueneau (2005, 2006), Salgado & Motta (2008) e nas abordagens sobre o discurso realizadas por Bakhtin (2000), Dantas (2007) e Orlandi (2007, 2008), pelo fato destes estudiosos tecerem considerações acerca de como a linguagem é materializada na ideologia e com esta influencia nossas escolhas e posturas sociais.

Nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, traçamos uma breve definição acerca do discurso, em seguida, discorremos sobre as concepções de cenografia e ethos, sob a ótica de Maingueneau; na segunda parte, analisamos a obra conforme nosso objetivo.

Algumas palavras teóricas Sobre o discurso

Concebemos o discurso como a realização de atividades comunicativas, carregadas de sentidos, que acontecem na interação entre os sujeitos, considerando-se a situação de produção de linguagem. Neste contexto interacional, é pertinente afirmar que todo discurso está impregnado de outros, pois “a fala de todo e qualquer sujeito é perpassada por dizeres de outro lugar e outros sujeitos” (DANTAS, 2007, p.73). Desse modo, nossos dizeres encontram-se permeados de dizeres outros que acabamos por absorver e instituir como nossos.

Nesse sentido, Bakhtin (2000) vê a enunciação como fato social e não apenas como ato individual de uso lingüístico. A linguagem é, portanto, um fenômeno sócio-histórico e, por isso, ideológico, empregado para (re) afirmar e estabelecer poderes; para compreendê-la faz-se necessário compreender sua realização entre os sujeitos sociais, dessa forma, aqueles que possuem como instrumento de trabalho a Análise do Discurso ultrapassam o nível da interpretação na tentativa de chegar à compreensão da materialidade linguística, na busca pela maneira de como o texto produz os sentidos que veicula.

Concordamos com Cardoso (2003, p. 21), quando coloca que “o discurso é, pois, um lugar de investimentos sociais, históricos e ideológicos, psíquicos, por meio de sujeitos interagindo em situações concretas”. Por ser o discurso atravessado por muitos outros no processo de interação, será a formação ideológica do sujeito que apontará para o sentido a ser construído. Isto, contudo, não significa dizer que o sentido é previsível, mas que ele é construído durante o processo discursivo.

Para Orlandi (2007), “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento”. Sendo assim, é inviável pensar o sujeito e o discurso dissociados da ideologia. Por meio da ideologia diferentes sujeitos produzem diferentes sentidos. Podemos, então,

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

10

entender a ideologia como a condição necessária para a constituição dos sujeitos, dessa maneira, o sujeito é representante de sua(s) ideologia(s).

É através da interação verbal atrelada à situação social, ampla e imediata que se constitui a realidade da língua, a produção da linguagem e a constituição dos sujeitos. Por meio das marcas discursivas, instala-se a heterogeneidade lingüística. Logo, vemos como impensáveis as relações humanas fora do âmbito das relações sociais, visto que a linguagem é, essencialmente, dialógica, polissêmica e polifônica. Sob a ótica da interação, temos o discurso em que os sujeitos dialogam atravessados por vozes distintas, que atribuem ao mesmo texto diferentes sentidos.

Por sua vez, o texto é o veículo através do qual materializamos o discurso, no entanto, o discurso, por ser formado por vários outros discursos, ao materializar-se recorre ao interdiscurso para que ocorra a inteligibilidade no ato da leitura. Orlandi (2008, p. 59), define o interdiscurso como “a memória que se estrutura pelo esquecimento, à diferença do arquivo, que é o discurso documental, institucionalizado, memória que acumula”. É, pois, por meio da memória discursiva que estabelecemos relações de graus de importância das/nas nossas leituras.

Nos termos de Orlandi (op.cit. p. 64), “na textualização do discurso, há uma distância não preenchida, há uma incompletude que marca uma abertura do texto em relação à discursividade”. Desse modo, sendo o texto o lugar da materialidade do discurso, e ao mesmo tempo unidade de análise, devemos entendê-lo como um objeto multifacetado, heterogêneo, plural, constituído pelo autor/falante – aquele que materializa o discurso no ato da escrita/oralidade – e pelo leitor/ouvinte – aquele que (re) significa o discurso materializado no ato da leitura ou da escuta.

Contudo, os discursos não são homogêneos devido às ideologias, pelo contrário, eles são constituídos por uma multiplicidade de vozes, pois se relacionam diretamente com as produções sócio-históricas. Daí decorrem as noções pecheutianas de Formação Ideológica – que revela o funcionamento do discurso, visto que este se mostra ideológico, ou seja, conforme a posição ideológica do sujeito uma palavra pode adquirir mais de um significado – e de Formação Discursiva (noção importada de Michel Foucault) – as produções reúnem em seus enunciados marcas das formações ideológicas às quais os sujeitos pertencem.

O discurso é, assim, composto por enunciados extraídos de uma mesma formação discursiva, desse modo, terá por base discursos preexistentes, o que revela a exterioridade presente na língua, isto é, o que está entre a língua e a fala, “no seio da vida social”. Para apreendê-la é preciso “compreender de que se constitui essa exterioridade a que se denomina discurso” (FERNANDES, 2007, p. 23). Para que a língua signifique há, pois, necessidade da história, já que é o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua.

Page 7: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

11

Sobre a cenografia e o ethos

Por vezes, ao lermos um texto ficamos com a sensação de que ele é “parecido com alguma coisa que já lida”, essa sensação decorre do fato de o discurso ser heterogêneo, múltiplo, formado por vários outros discursos. Dessa forma, acreditamos que a percepção por parte do leitor dos diversos sentidos imbricados no texto resulta da construção de imagens a respeito da situação de enunciação, assim como da construção do ethos discursivo que toca o narrador nos vários momentos da atividade enunciativa. Comumente, tendemos a confundir contexto com situação de comunicação e situação de enunciação. O contexto pode ser compreendido como o sustentáculo para a produção discursiva, é o conjunto dos fatos históricos, das marcas ideológicas. Ao contrário de situação de comunicação, que é exterior ao texto, a situação de enunciação ocorre de maneira intrínseca ao discurso materializado no texto. A situação de enunciação está dividida em três cenas, a saber, a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. Podemos entender a cena englobante como sendo o “pano-de-fundo” discursivo, isto é, o tipo de discurso que embasa o discurso veiculado, por exemplo, o discurso político, o discurso religioso. Segundo Maingueneau (2006, p. 251), é a cena englobante “que define o estatuto dos parceiros num certo espaço pragmático”. No entanto, a cena englobante não abrange todas as atividades verbais, surge, então, a cena genérica.

Esta, por sua vez, diz respeito ao gênero textual veiculador do discurso e que participa da cena englobante por compartilhar com o discurso. Para o autor, “a obra literária é na verdade enunciada através de um gênero do discurso determinado que participa, num nível superior, da cena englobante literária”(p. 251). Por último, e não menos relevante, temos a cenografia. Processo que legitima a enunciação e é legitimado por ela, ou seja, ao passo que a cenografia constrói a enunciação discursiva é, ao mesmo tempo, legitimada por ela, já que através da enunciação torna-se possível a existência da cenografia. Ainda segundo Maingueneau (2005, p. 87),

a cenografia implica, um processo de enlaçamento paradoxal. Logo de início, a fala supõe uma certa situação de enunciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria enunciação. Desse modo a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la (grifos do autor).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

12

A cenografia é validada no texto por meio de marcas textuais, de elementos paratextuais e, em alguns casos, de marcas explícitas que são avalizadas por falas outras que não aquelas. Assim, a cenografia (ceno + grafia) nasce das escolhas lexicais e das combinações linguísticas que conferem ao texto o “tom”, que, por sua vez, deve estar em consonância com o tema abordado, com suas nuances e teses, de outra forma não encontraremos o sucesso cenográfico.

É, pois, por meio da cenografia, que o leitor estabelece a relação de aproximação ou distanciamento com o texto, já que esta é construída no ato da leitura a partir das pistas deixadas pelas marcas linguísticas. Através da cenografia, a obra literária define sua relação com a sociedade e é legitimada por ela. Sendo, pois, a cenografia que legitima a enunciação depende dela a interação entre o texto e o leitor. Será ela que subsidiará a construção do ethos.

Para a retórica aristotélica, o ethos é construído pelo autor e pelo leitor, uma vez que não está pronto, o sentido textual é construído no ato da leitura, por meio da atribuição de sentidos. O ethos aristotélico visava compreender a imagem que o orador construía de si para o seu auditório, para isso embasava-se em três qualidades: a phonesis – expressão através da prudência; a arete – que seria a virtude e a eunoia – entendida como a benevolência. São estes, segundo Barthes (apud Maingueneau, 2006, p. 267), “os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório”.

A Nova Retórica postula que o ethos encontra-se não só nos textos orais, mas também nos textos escritos. Sobre essa nova visão, Maingueneau defende que todo texto escrito possui uma vocalidade específica que nos permitiria construir o ethos. Para o autor, o ethos se constrói na fusão entre o ethos pré-discursivo – noção aristotélica – e ethos discursivo – formado pelo ethos dito e pelo ethos mostrado.

Maingueneau (2006, p. 271-272) explica a constutividade do ethos do texto escrito por meio de três características: o tom, o caráter e a corporalidade. O tom corresponde ao discurso que embasa a enunciação. Por caráter compreendemos que são os aspectos psíquicos do enunciador. Já pela corporalidade, associamo-la à formação física, aos caracteres físicos atribuídos, além do modo de agir no espaço social encerrado no texto.

O autor coloca que os aspectos que constituem o ethos são avalizados pelo fiador, isto é, pelo discurso social arquivado na memória do leitor e que no momento da leitura é ativado para validar ou não aquele ethos que se encontra na obra e que é, também, (trans) formado pelo leitor durante a leitura. Dessa forma,

o ethos constitui, assim, um articulador de grande polivalência. Recusa toda a separação entre o texto e o corpo, mas também entre o mundo representado e a enunciação que

Page 8: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

13

o traz: a qualidade do ethos remete a um fiador que, através desse ethos, proporciona a si mesmo uma identidade em correlação direta com o mundo que lhe cabe fazer surgir (MAINGUENEAU, op.cit., p. 278).

Sendo, portanto, impossível dissociar o ethos do código de linguagem,

uma vez que a eficiência do código repousa sobre o ethos que lhe é correspondente. Surge, aqui, a problemática recorrente no que tange ao ethos: a distinção entre o ethos levado ao leitor, pela enunciação e o ethos construído pelo leitor no ato da leitura, com implicações colocadas pela sua identidade e pelo espaço sócio-histórico no qual está inserido.

Conversando sobre as cenas em O fantástico mistério de Feiurinha

O fantástico mistério de Feiurinha oferece-nos uma situação atípica no que diz respeito aos contos de fadas. Acontece que Feiurinha é uma princesa que sumiu e o seu desaparecimento põe em risco todas as histórias fantásticas e a felicidade estabelecida através do enunciado “e foram felizes para sempre”. Para evitar que o desastre aconteça, as princesas dos contos de fadas – Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, Moura Torta, Bela Adormecida – decidem se reunir e reverter a situação procurando um escritor que lhes explique o porquê de Feiurinha ter desaparecido.

A priori, nos deparamos com um escritor que é convocado a escrever, mas não consegue, pois desconhece a história, o que resultará em um debate intertextual entre a legitimação fornecida pela escrita, por meio do autor e a tradição oral representada pela personagem Jerusa, empregada do escritor. O debate, e o posterior reconhecimento da força e importância da oralidade acontecem do meio para o fim da história.

Na busca pela apreensão das cenas que se apresentam na narrativa, nos dirigiremos em princípio ao escritor, por ser a narrativa composta pelos dois vieses: a escrita e a fala. Selecionamos, para tal, algumas sequências textuais que acreditamos explicitar com clareza as cenas.

Sobre o escritor:

É difícil explicar direito como é que eu fui me meter

nessa história. Naquela época eu era um autor iniciante, com muitas idéias na cabeça e poucas no papel. (...) O engraçado é que eu me meti no meio da confusão mas não no meio de história nenhuma. Eu me meti no fim de todas as histórias. (p. 7)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

14

Estava eu sozinho em casa, extremamente ocupado... (...) Então, como eu ia dizendo, estava extremamente ocupado com minha literatura quando entrou pela minha casa um sujeito esquisitíssimo. (...)

– O embaixador da Espanha! – pensei logo. Não era Caio, o lacaio, que viera para me encarregar de uma estranha missão.

Agora estou novamente sozinho com a máquina de

escrever à frente. Os tipos da máquina estão limpos, os lápis estão apontados, há papel de sobra na gaveta e Jerusa, a velha empregada, não deixou sobrar nada na geladeira. Estou, portanto, preparado para começar a escrever a história de Feiurinha. (p. 10)

E lá estava eu com um grande problema nas mãos. Para um autor, criar um personagem faz parte do ofício, mas descobrir uma heroína desaparecida dos reinos encantados era um desafio que eu naco sabia como enfrentar. Só que eu não lembrava da história de Feiurinha. Não me lembrava nem de ter ouvido falar nessa princesa antes de receber a visita vermelha e amarela de Caio, o lacaio. (p. 41)

Observamos após a leitura das sequências textuais supracitadas que

nos deparamos com a cena englobante do escritor que é a do discurso literário escrito, enunciada através dos seguintes períodos - Naquela época eu era um autor iniciante, com muitas idéias na cabeça e poucas no papel; estava extremamente ocupado com minha literatura; Estou, portanto, preparado para começar a escrever a história de Feiurinha; Para um autor, criar um personagem faz parte do ofício,... - em que o escritor se reconhece como tal e como um escritor de literatura. Para Maingueneau (2006, p. 251), “Todo enunciado literário está vinculado com uma cena englobante literária, sobre a qual se sabe em particular que permite que seu autor use um pseudônimo, que os estados de coisa que propõe sejam fictícios etc”.

No que tange à cena genérica do escritor, esta ancora-se no gênero conto de fadas. Por cena genérica compreendemos, juntamente com Maingueneau (apud Amossy, 2005, p. 75), que “é a do contrato associado a um gênero, a uma instituição discursiva”. É a materialização da enunciação presente na obra, como destacado em negrito na sequência a seguir:

Page 9: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

15

Você se lembra, não é? Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam dizendo que a princesa casava-se com o príncipe encantado e pronto. Iam viver felizes para sempre e estava acabado. (p.07) Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás mais vinte e cinco anos, uma senhora de cabelos negros como o ébano, onde já começavam a aparecer alguns fios brancos como a neve, bem da cor da pele dela, que também era branca como a neve. (p.11)

A frase inicial da segunda sequência - Era uma vez, há muitos,

muitos anos atrás - nos revela uma das características mais marcantes do gênero contos de fadas, assim como as palavras ébano e neve que fazem parte do vocabulário da escrita. É, pois, através dessas marcas textuais que observamos não apenas cena genérica da narrativa como também os indícios da cenografia do escritor, ou seja, sua condição de autor de literatura e sua história de literária anterior, tanto no papel de leitor como no papel de autor - Você se lembra, não é? Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam dizendo que a princesa casava-se com o príncipe encantado...

A cenografia vai sendo construída ao passo que o escritor nos conta o que passa a acontecer em sua vida, mais especificamente em sua casa, a partir da chegada de Caio, o lacaio. Por meio das marcas textuais e paratextuais ocorre a validação da cenografia. Entendemos, contudo, que validado não é sinônimo de valorizado e sim algo que já se encontra instalado no âmbito social; aqui, no universo mágico dos contos de fadas. O autor recorre à memória do leitor para fazê-lo validar a cenografia que se encontra em processo de construção.

Por cenografia, Maingueneau (2006) entende que ela “não é um simples alicerce, uma maneira de transmitir ‘conteúdo’, mas o centro em torno do qual gira a enunciação” (p. 264). Entendemos, portanto, ser a cenografia a junção harmônica entre a obra em si, considerada como objeto autônomo, e as condições de seu surgimento.

Sobre Jerusa, a contadora de história:

Após a análise das cenas do escritor e seus aspectos que se inserem no âmbito da escrita, nos debruçaremos na apreensão das cenas referentes à tradição oral representada pela personagem Jerusa, uma idosa, negra e empregada na casa do escritor. Leiamos a sequência a seguir.

A velha Jerusa tinha trazido suas bandas para a sala, para ver que alegria toda era aquela.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

16

- Feiurinha? O senhor conhece a Feiurinha? A estranha dança parou na mesma hora e nove pares de olhos voltaram-se para Jerusa. - Eh, que história boa, não é? – continuou ela, a sorrir. – Sempre foi a minha preferida quando minha avó reunia todo mundo pra contar histórias ao pé do fogo... (p. 54) Jerusa sentou seus setenta anos no meio da sala, cercada pelas mais famosas heroínas de todos os sonhos. Elas, mais eu e Caio, os mais modestos, mal agüentávamos esperar. -Ah, assim eu fico sem jeito... – queixou-se timidamente a boa Jerusa. -Ora, Jerusa, deixa de bobagem! –comecei eu. Branca de Neve interrompeu o que eu ia dizer. Pegou as gordas mãos de Jerusa nas suas pequeninas e beijou-as. Jerusa, por favor, conte pra nós. Só você pode trazer a Feiurinha de volta. (p. 55-56) - A história de Feiurinha é dos antigos, há mais de sessenta anos atrás, foi minha avó, que também ouviu da avó dela. Era a minha história preferida, com perdão das princesinhas... (p. 56)

Encontramos nessas sequências como cena englobante que subsidia os

enunciados de Jerusa o discurso da tradição oral, manifestada através da descrição da ação da personagem – Jerusa sentou seus setenta anos no meio da sala, cercada pelas mais famosas heroínas de todos os sonhos. –, postura típica daqueles que, antigamente, contavam histórias às crianças como forma de diversão e, também, como processo de ensino das tradições familiares, religiosas, entres outras. Maingueneau (2006) coloca que a cena englobante corresponde ao que se costuma entender por ‘tipo de discurso’, em nosso caso o discurso dos contos populares.

A cena genérica de Jerusa encontra-se expressa em seu ato próprio de contar a história de Feiurinha, é, assim, a história oral, os contos da carochinha, os causos, as histórias de trancoso, contadas e transmitidas de geração a geração. Vejamos a sequência a seguir:

Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás, uma menina muito linda que acabara de nascer numa casa muito pobre, mas cheia de amor e felicidade. Seu pai e sua mãe não tinham ainda escolhido um nominho

Page 10: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

17

para ela e ainda estavam discutindo que nome iriam dar, quando ouviram batidas na porta. (...) (p. 57)

Embora Jerusa comece a contar a história de Feiurinha com a mesma

modalização do escritor – Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás – isto não implica pensarmos que se trata da mesma cena genérica, visto que na sequência do ato de contar Jerusa faz uso de palavras e expressões da linguagem oral – nominho, uma menina muito linda, (casa) cheia de amor e felicidade. – e que revelam a afetividade própria da fala, por meio da qual é possível a ocorrência de juízos de valor.

É, pois, exatamente, esse contar secular representado na personagem – A história de Feiurinha é dos antigos, há mais de sessenta anos atrás, foi minha avó, que também ouviu da avó dela. – que constitui e é, ao mesmo tempo, constituinte da cenografia. A cenografia “não é imposta pelo gênero, ela é constituída pelo texto” (MAINGUENEAU, apud AMOSSY, 2005, P. 75), caracteriza a enunciação e é, simultaneamente, caracterizada por ela; sustenta a obra e é sustentada por ela. Por isso, é comum nos depararmos durante a leitura com cenografias que vão, aos poucos, construindo as cenas explicitadas anteriormente.

Uma conversa sobre o ethos em O fantástico mistério de Feiurinha Ao analisarmos as cenas que compõe O fantástico mistério de Feiurinha o fizemos com o objetivo de alcançarmos o ethos discursivo presente na obra. Voltaremos nossa atenção doravante para a apreensão do caráter, do corpo e do tom da narrativa, partes que constituem o ethos.

Segundo Maingueneau (apud Salgado e Motta, 2008, p. 16) “o ethos, por natureza, é um comportamento que, como tal, articula verbal e não-verbal, provocando nos destinatários efeitos multi-sensoriais” (grifo do autor), assim, entendemos por ethos tudo o que está ligado ao enunciador, mas que não faz parte dele. São as características que idealizamos a respeito do autor textual.

Ainda, segundo o autor, a concepção de ethos faz referência a uma infinidade de ocorrências, fatos e conceitos que irão variar de acordo com o ponto de vista do ouvinte/leitor de um determinado texto, desse modo, “o ethos visado não é necessariamente o ethos produzido”, já que os ouvintes/leitores são diferentes entre si e circulam em diferentes ambientes sociais, estando, portanto, suscetíveis aos discursos o que implica em visões distintas em diferentes momentos. Encontramos, a priori, um autor iniciante, com muitas idéias na cabeça e poucas no papel. Observava as pessoas, os bichos e a mim mesmo, tentando entender tudo e a tudo transformar em histórias que tivessem verdade, que tivessem calor, que tivessem graça (p. 7), conforme afirma

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

18

Maingueneau (2005, p. 97), “por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador”. A sequência em destaque nos revela as características psicológicas de alguém observador, curioso e amável, porém, pouco criativo, já que não consegue escrever.

O seu corpo se apresenta forte e saudável, pois possui a hábito de caminhar a procura de inspiração para as suas histórias, todavia, essa incessante busca o faz ficar muito tempo em sua mesa, frente à maquina de escrever, o que acarreta a imagem de alguém que se encontra acima do peso, além de passar a ideia de procrastinação. Essas características psicológicas e físicas resultam de um tom discursivo presente e validado pelo discurso literário, pois o autor pensava já ter lido todos os contos de fadas, fora os que me contara minha falecida avó (p. 41), colocando-se como um sujeito heterogêneo por sua experiência enquanto leitor e ouvinte de histórias infantis, e que é mostrado por meio da cenografia, que atesta e é atesta por sua condição de autor de literatura. No entanto, por ser a narrativa construída com base na dicotomia escrita-fala, encontramos um outro autor que enuncia a mesma história de Feiurinha: a empregada Jerusa. O ethos discursivo encontrado nesse viés da narrativa resulta de um caráter calmo, carinhoso, que se preocupa com o bem-estar do patrão (o escritor), demonstra certa resignação oriunda dos saberes trazidos pelos anos vida – Ela era velha o bastante para entender tudo. Já tinha vivido muito, e já fora obrigada a engolir absurdos maiores. (p. 47) Jerusa sentou seus setenta anos no meio da sala, (...) não era de grandes letras e, talvez por isso mesmo, compreendeu muito bem o que era ter Branca de Neve a seus pés (p. 55-56) – dona de corpulência bonachona, de pele negra, cabelos grisalhos, que usa vestidos floridos e lenço amarrado na cabeça. Segundo Maingueneau (2005, p. 98), “a corporalidade corresponde a uma compleição corporal, mas também a uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social”. A assimilação do caráter e da corporalidade resulta do tom discursivo e heterogêneo trazido para a história por meio das narrativas orais, do discurso do folclore e que é validado pela cenografia construída no ato de contar. Poucas palavras finais... Observamos ao longo da análise que o texto configura-se como a materialização dos discursos que circulam no âmbito social, dessa forma, encontramos na história de Feiurinha muito mais que um mero conto de fadas infantil. Deparamos-nos com cenas que nos remetem à nossa infância e às histórias contadas e lidas antes de dormir ou para entretenimento.

Page 11: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

19

A construção do ethos nos mostrou corpos sadios e aconchegantes que nos dão a sensação de familiaridade. Encontramos personalidades amáveis, carinhosas, dispersas em seus pensamentos, por vezes assustadas e irritadas.

Um ponto relevante da leitura da narrativa reside na tão abordada dicotomia existente no mundo das letras: escrita versus fala. Aqui, temos a oralidade como fonte para solucionar o “mistério”, visto que é Jerusa quem sabe a história de Feiurinha e pode, através da narração oral, salvar o mundo encantado das fadas. Por sua vez, a escrita figura com relevância, pois é por meio dela que a história será guardada “para sempre”. Acreditamos que o livro nos remete a vários caminhos, por isso não queremos designar como únicas as construções de cenas e de ethos que realizamos. A obra traz em si todo um universo e este por sua vez é reformulado pelo seu leitor. Debruçarmos em busca das cenas e do ethos discursivo que, juntos, compõem a narrativa O fantástico mistério de Feiurinha não representou um empresa fácil, visto que a noção de ethos está intimamente ligada às formações ideológicas e ao interdiscurso daquele que lê o texto. Todavia, acreditamos ter realizado com sucesso nossa proposta. Referências AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BANDEIRA, Pedro. O fantástico mistério de Feiurinha. 12. ed. São Paulo: FTD, 1992. DANTAS, Aloísio de Medeiros. Sobressaltos do discurso: algumas aproximações da análise do discurso. Campina Grande: EDUFCG, 2007. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. . Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 85- 103. ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas, SP: Pontes, 2007. . Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008. SALGADO, Luciana e MOTTA, Ana Raquel (orgs.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 11- 81.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

20

Page 12: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

21

PALETRAS NO VESTIBULAR DA UFCG: CORRELAÇÃO ENTRE PRÁTICAS LETRADAS E HISTÓRICO DE LETRAMENTO

DOS CANDIDATOS2

Elizabeth Maria da Silva - UFCG Denise Lino de Araújo – UFCG

Resumo

Este artigo tem dois objetivos: (1) averiguar as práticas letradas requeridas na produção da palestra proposta na prova de redação aplicada no vestibular da UFCG em 2007 e (2) analisar as associações entre a mobilização de práticas letradas nas palestras e o histórico de letramento dos candidatos. Trata-se de uma pesquisa descritivo-interpretativa de cunho qualitativo cujo corpus foi constituído por quatro conjuntos de dados, a saber: (1) prova de redação aplicada no vestibular; (2) amostragem de palestras produzidas; (3) questionário socioeconômico e cultural respondido pelos candidatos e (4) entrevista semi-estruturada realizada com os mesmos. Os dados, analisados com base nos estudos contemporâneos sobre letramento (cf. BARTON & HAMILTON, 2000; GEE, 2000; MEY, 2001; BAZERMAN, 2007), sinalizam, de um lado, a presença de multiletramento na prova e, por outro lado, indicam que o HL dos candidatos parece ser fator decisivo para a mobilização de práticas letradas na redação. Os candidatos que demonstraram as práticas exigidas no vestibular provavelmente tinham familiaridade com eventos de letramento cujas práticas eram semelhantes às exigidas no evento escolhido no exame, já aqueles que as não atenderam de modo adequado parece que tinham mais experiência com o letramento escolar. Assim, os resultados levam-nos a concluir que práticas escolares parecem não ser suficientes para que os vestibulandos demonstrem as práticas multiletradas exigidas na prova.

Palavras-chave: palestra, práticas letradas, histórico de letramento Abstract

This article has two objectives: (1) to check the literacy practices required in the writing of the talk proposed in the composition test applied at the college entrance exams for the Federal University of Campina Grande, in the year 2007 and (2) to analyse the relationship between the mobilization of literacy practices both in the talks and in the candidates’ LH. This research is 2 Neste artigo, apresentamos parte da dissertação de mestrado intitulada “Histórico de letramento e

práticas letradas em redações de vestibular”, produzida por Silva (2009) sob a orientação da Profa Dra Denise Lino de Araújo.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

22

descriptive-interpretative, of qualitative nature, whose corpus was composed of four data sets, namely: (1) composition test applied at the college entrance exams, held at the Federal University of Campina Grande in 2007; (2) samples of talks produced during these exams; (3) a socio-economic and cultural questionnaire answered by the candidates, and (4) an semi-structured interview done with them. The data, analysed on the basis of present-day studies on literacy ( cf. BARTON 7 HAMILTON, 2000; GEE, 2000; MEY, 2001; BAZERMAN, 2007), show the presence of multiliteracy in the test, and also indicate that the candidates’ LH seems to be a decisive factor for the mobilization of literacy practices in the writing of talks. The candidates who demonstrated the practices required by the college entrance examination were probably familiar with literacy events whose practices were similar to those required by the event present in the exam paper, whereas those who did not perform them well may have had more experience with school literacy. Thus, the results have shown that school practices appear to be insufficient for the candidates to demonstrate the multiliterate practices required by the exam. Key words: talk, literacy practices, literacy history. Introdução

Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento da sociedade, a disseminação do multiletramento tem crescido cada vez mais – letramento digital, midiático, literário, familiar, escolar, dentre outros. Entretanto, nem todos os sujeitos têm acesso a esses letramentos e quando têm, nem sempre é com o mesmo nível de intensidade. Entendemos, desse modo, que a inserção nesse mundo multiletrado é um dos fatores que favorecem a constituição do Histórico de Letramento (HL). Em outros termos, tal inserção contribui para que os sujeitos estabeleçam, inicialmente, contato e, depois, tenham familiaridade, com práticas letradas requisitadas em diferentes eventos de letramento, enriquecendo, assim, seu HL, sua experiência com práticas de leitura e escrita.

Considerando que práticas letradas advindas de diferentes tipos de letramento como o midiático, o literário e o escolar vêm sendo requeridas nas provas de redação aplicadas nos vestibulares da UFCG (artigo de opinião e relato de experiência, UFCG 2005; depoimento e carta denúncia, UFCG 2006; carta protesto e memória, UFCG 2007; análise comparativa de poemas e reportagem, UFCG 2008; abaixo-assinado e artigo jornalístico, UFCG 2009), produzimos (SILVA & LINO DE ARAÚJO, 2009) uma dissertação de mestrado, objetivando analisar que correlação poderia ser estabelecida entre práticas letradas mobilizadas em redações de vestibular e o HL dos candidatos.

Para o presente artigo, traçamos dois objetivos: (1) averiguar as práticas letradas requeridas na produção da palestra proposta na prova de

Page 13: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

23

redação aplicada no vestibular especial3 da UFCG em 2007 e (2) analisar as associações entre a mobilização de práticas letradas nas palestras e o HL dos sujeitos que as produziram.

Ao que nos parece, além da situação sócio-comunicativa com a qual o candidato teve contato no momento da escrita da redação no vestibular, o seu HL pode ter sido um elemento condicionante no atendimento ou não à proposta de redação. Estamos entendendo, assim, que as práticas de escrita estão enraizadas no HL dos sujeitos, logo, que parece haver uma relação entre o histórico e as práticas, isso porque, como afirmam Barton & Hamilton (2000), um texto não tem significado autônomo, independente do seu contexto social de uso e também não tem um conjunto de funções independentes dos significados sociais com os quais está imbuído.

Verificando a relação que pode ser estabelecida entre as práticas demonstradas pelos candidatos na redação e o seu HL, este artigo poderá oferecer contribuições tanto para as instituições de nível superior, enquanto instituições avaliadoras de exames de vestibular, quanto para as escolas de nível médio, enquanto instituições preparadoras para esses exames. Os resultados deste trabalho poderão apontar, assim, redirecionamentos ou reafirmar seja (n)a elaboração das provas de redação do vestibular, seja (n)a abordagem de redação realizada no ensino médio.Além disso, apresentaremos outra perspectiva de abordagem da redação de vestibular, pautada em gêneros textuais, e correlacionada com o HL dos candidatos que a produziram, oferecendo uma contribuição teórica no campo dos estudos sobre escrita.

Com relação aos aspectos metodológicos, realizamos uma pesquisa de natureza descritivo-interpretativa (cf. ANDRÉ, 1995). Como já afirmamos, o presente artigo integra um estudo mais amplo, cujo corpus foi constituído de quatro conjuntos de dados: (1) as provas de redação aplicadas nos vestibulares regular e especial da UFCG em 2007; (2) amostragem de redações produzidas nesses vestibulares; (3) questionário sócio-econômico e cultural elaborado e aplicado pela Comissão de Processos Vestibulares (COMPROV); (4) entrevista realizada pela pesquisadora com os candidatos cujas redações foram selecionadas. Neste trabalho, focalizaremos, a partir do procedimento de triangulação dos dados, a prova aplicada no vestibular especial, bem como uma amostragem de palestras produzidas nesse vestibular, além dos questionários sócio-econômico e cultural e das entrevistas, contendo informações sobre os candidatos selecionados.

Quanto à organização do presente artigo, o dividimos em cinco partes. Na primeira, apresentamos esta introdução; na segunda, explicitamos os 3 O vestibular especial é realizado no meio do ano. Nesse vestibular, são abertas inscrições para um número menor de cursos, os quais são oferecidos nos campi da UFCG localizados em cidades circunvizinhas a Campina Grande.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

24

princípios teóricos adotados; na terceira etapa, fizemos a análise tanto da proposta de produção da palestra, quanto das redações produzidas como resposta a tal proposta; na quarta, tecemos as considerações finais e, por fim, na quinta e última parte, listamos as referências bibliográficas citadas ao longo do texto. Fundamentos teóricos

Neste item, apresentamos os principais fundamentos teóricos que

apoiarão a análise dos dados, a saber, (1.1) estudos contemporâneos de letramento e (1.2) elementos constitutivos desse fenômeno - agência, eventos e práticas.

Estudos contemporâneos de letramento

Tradicionalmente, a maioria dos estudos sobre letramento era

ancorada ou na abordagem autônoma ou na ideológica (cf. STREET, 1984). A partir da segunda metade da década de 90, começaram a ser divulgadas novas abordagens de letramento, a exemplo da crítica (cf. BARTON & HAMILTON, 2000; GEE, 2000), sócio-pragmática (cf. MEY, 2001) e sócio-retórica (cf. BAZERMAN, 2007). Mesmo utilizando nomenclaturas diferentes, os estudiosos dessas abordagens comungam de um mesmo princípio – tanto o fator social quanto o individual contribuem com a configuração das práticas letradas demonstradas pelos sujeitos nos diferentes eventos de letramento.

Talvez, o que diferencia os estudos desses pesquisadores seja a sua experiência de letramento. Como diz Saussure (1975, p. 15), “é o ponto de vista que cria o objeto”, ou seja, os pesquisadores referidos definem seu objeto de estudo, ora enfatizando o aspecto social ora o individual, com base, provavelmente, em seu HL, em suas práticas letradas, as quais foram adquiridas ao longo dos tempos. Geertz (1997, p. 11) ratifica a assertiva saussuriana, dizendo que “aquilo que se vê depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo (...) as formas de saber são sempre inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros”.

As afirmações citadas acima estão em plena concordância com os recentes estudos de letramento referidos, já que há, em tais estudos, uma articulação entre os usos e os significados da escrita, o contexto sócio-cultural em que aparecem, assim como o HL daqueles que utilizam a escrita.

Os pesquisadores dessas recentes concepções de letramento entendem, de modo geral, que a leitura e a escrita, interligadas ao contexto sócio-histórico em que aparecem, são atividades humanas complexas, intimamente relacionadas às pessoas e aos lugares onde são utilizadas. Além de

Page 14: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

25

considerarem o contexto como um elemento importante para se entender as práticas letradas demonstradas em uma dada situação, destacam a relevância de analisar a história de vida do sujeito, a influência do seu HL, constituído a partir da inserção no mundo multiletrado.

Trabalhos pautados nos estudos contemporâneos de letramento vêm, desse modo, confirmar que o conhecimento de diferentes práticas letradas de determinados grupos sociais e comunidades é fundamental para entendermos o letramento enquanto um fenômeno plural. Com isso, começa-se a reconhecer eventos e práticas em variadas agências tais como a igreja, a escola, os sindicatos, como bem destacam Barton & Hamilton (2000, p.11) “há diferentes letramentos associados a diferentes domínios de vida, como a família, o trabalho e a escola”. Os letramentos estão associados também ao perfil sócio-econômico e cultural dos sujeitos, conforme afirma Soares (1998, p. 80): Pessoas ocupam lugares sociais diferentes e têm atividades e estilos de vida associados a esses lugares enfrentam demandas funcionais completamente diferentes: sexo, idade, residência rural ou urbana e etnia são, entre outros, fatores que podem determinar a natureza do comportamento letrado. Nesse sentido, as práticas de escrita parecem estar enraizadas no HL dos sujeitos, os quais se constituem tanto a partir do contato com os letramentos quanto devido ao seu perfil sócio-econômico e cultural; logo, parece haver uma relação entre esse histórico e a produção textual. Entretanto, vale salientar que o HL não é elemento determinante das atitudes e comportamentos dos sujeitos, é, na verdade, um dos elementos que podem interferir nas práticas por eles demonstradas em eventos de letramento.

Há várias pesquisas no campo do letramento crítico, por exemplo, em que pesquisadores têm sinalizado a influência do multiletramento na história de vida de professores e de graduandos (cf. GUEDES-PINTO et all, 2005; SIGNORINI, 2005; COELHO, 2005; ALMEIDA, 2001; CAMPOS, 2001; GUEDES-PINTO, 2001). Outros pesquisadores têm demonstrado que o perfil sócio-econômico e cultural dos sujeitos influenciava-os na prática da leitura (cf. TERZI, 1995 e DELL’ISOLA, 1988) e na constituição de sua identidade (cf. RIBEIRO, 2005). Todas essas pesquisas ratificam que o ambiente sócio-cultural no qual o sujeito está inserido interfere na sua atuação seja enquanto aluno, seja enquanto professor, seja enquanto cidadão. Por isso, o conhecimento de sua história ajuda-nos a entender melhor suas posturas, comportamentos e crenças.

Portanto, sem a preocupação de nos prender às terminologias utilizadas pelos estudiosos das recentes abordagens de letramento, para nós, o mais relevante é compreendê-lo como fenômeno plural cujas práticas não são universais nem homogêneas, pelo contrário, modificam-se de acordo com as

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

26

circunstâncias, os usos e a história daqueles que recorrem às mesmas. Logo, considerar o imbrincamento do contexto social no qual os sujeitos estão inseridos com o seu HL parece-nos relevante para entendermos a correlação entre as práticas letradas demonstradas pelos candidatos e o seu HL. Elementos constitutivos do letramento - agência, eventos e práticas

As agências letradas dizem respeito às áreas da vida (casa, trabalho,

escola, igreja, etc.) dos sujeitos, as quais estão associadas a diferentes letramentos – escolar, acadêmico, midiático, familiar, político, religioso, profissional, entre outros. Nessas agências, aparecem eventos de letramento, que, por sua vez, requisitam determinadas práticas letradas.

Barton & Hamilton (2000), Marcuschi (2001), Kleiman (2001), Lopes (2006), esses três ancorados naqueles, defendem que os eventos de letramento são situações comunicativas mediadas por textos escritos, já que, para ser um evento, não é necessária a presença de um texto escrito graficamente, mas a retomada, pela modalidade oral, da ideia de um determinado texto. As aulas expositiva-dialogadas, ministradas pelos professores, por exemplo, são eventos, uma vez que o discurso do professor, assim como do aluno, está pautado em experiências de leitura, no conhecimento de mundo que ambos têm quanto ao tema focalizado na aula.

Já as práticas letradas são definidas por Barton & Hamilton (2000) como sendo maneiras culturais como as pessoas usam a língua escrita na sua vida. Entretanto, não é permitido às pessoas usá-la da forma que quiseram, quando, onde e com quem preferirem. As práticas são formadas por regras sociais que regulam o uso e a distribuição dos textos, prescrevendo quem pode produzir ou ter acesso aos mesmos. Tais regras foram constituídas pelas agências de letramento. Logo, cada sujeito demonstra determinadas práticas conforme a agência da qual ele participa, haja vista que as práticas letradas articulam as atividades de leitura e escrita às estruturas sociais em que elas são embutidas e que ajudam a formar (cf. BARTON & HAMILTON, 2000; MARCUSCHI, 2001).

Nesse sentido, a prática letrada não é a mesma em todas as situações, pelo contrário, dependerá dos eventos que se configuram nos vários tipos de letramento. Se estamos imersos em uma sociedade cada vez mais dinâmica e complexa e, em consequência disso, temos a possibilidade de ter acesso a diferentes tipos de letramentos, há sujeitos, diríamos, não apenas letrados em uma dada agência, mas multiletrados. Isso favorece o surgimento de níveis de letramento – sujeitos mais letrados em certos letramentos em detrimento de outros, mas dificilmente iletrados, pois, dependendo do seu HL, eles podem demonstrar determinadas práticas letradas no lugar de outras, mas dificilmente deixarão de demonstrar algum tipo de prática.

Page 15: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

27

Será que um sujeito que tem domínio do letramento digital obrigatoriamente teria também do escolar? Há vários sujeitos que interagem adequadamente na internet, trocando e-mails, enviando scraps no orkut, teclando no msn, postando mensagens em blogs ou em fóruns, todavia, sentem dificuldades de produzir as redações solicitadas no vestibular, como palestra, resenha, memória e carta protesto. Tal fato acontece porque algumas práticas letradas requeridas nos eventos que se configuram na agência digital são distintas das exigidas nos eventos presentes em outras agências, como por exemplo, a midiática.

Diferentemente da alfabetização, que é temporária e termina assim que o sujeito conclui seus primeiros anos de escolarização, o letramento é um processo constante e infinito, visto que, a cada dia, novas agências, novas situações sócio-comunicativas surgem e, consequentemente, novos tipos de letramento, novos eventos, exigindo determinadas práticas letradas, às vezes peculiares, às vezes já conhecidas, apenas atualizadas. O contato com tais práticas contribui para a constituição do HL dos sujeitos. Por isso, a importância de se conhecer esse HL antes de analisar determinadas práticas por si mesmas, descontextualizadas. O sujeito que escreve tem uma história, da qual não se desprende no momento de escrever seu texto, pelo contrário, recorre, em geral, a ela para atender às exigências de determinados eventos de letramento.

Com isso, entendemos que a escola parece não ser mais a principal agência de letramento como defende Kleiman (1995), mas outras agências como a midiática (cf LINO DE ARAÚJO, 2004), a religiosa e a familiar, por exemplo, vêm ganhando espaço socialmente e influenciando cada vez mais os sujeitos. Os dados de nossa pesquisa (SILVA & LINO DE ARAÚJO, 2009) sinalizam, inclusive, que o atendimento às práticas requeridas pela prova de redação aplicada pela UFCG em 2007 deu-se mais pelo contato que alguns candidatos tinham com o letramento literário, familiar, religioso e midiático do que com o escolar.

Ratificamos que a escola não deixou de ser uma agência letrada, apenas parece-nos não ser mais a principal agência. A trajetória política do Presidente da República do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, talvez ilustre nossas considerações. Embora seu contato com o letramento escolar tenha sido bastante limitado, estudou aproximadamente até a 2ª fase do ensino fundamental, o contato que estabelecia com práticas letradas advindas de eventos de letramento oriundos da agência sindicalista, da qual fez parte durante muito tempo, além das conversas com grandes intelectuais como Antonio Candido contribuíram, provavelmente, para que consolidasse as práticas requeridas pelos eventos característicos da agência política (comícios, negociações, pronunciamentos, etc.). Em outras palavras, no caso do presidente brasileiro, a escola não foi tão decisiva para que ocupasse o cargo político que

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

28

ocupa desde 2002, mas outras agências letradas interferiram em sua atuação de maneira mais significativa.

Portanto, consideramos que todas as agências podem ser consideradas importantes, dependerá do contato que os sujeitos estabelecem com as práticas letradas exigidas pelos eventos dessas esferas. Análise

Esta parte é constituída de duas seções. Na primeira, averiguamos as

práticas letradas exigidas na produção da palestra; na segunda, correlacionamos as práticas demonstradas pelos candidatos (doravante C1 e C2) com seu HL.

Práticas letradas requeridas na prova de redação

Observando a prova de redação aplicada em 2007 no vestibular da

UFCG, notamos, à semelhança das provas realizadas em 2005 e 2006 (cf. SILVA & LINO DE ARAÚJO, 2006), a apresentação de uma proposta textual, na qual são indicados dois gêneros dos quais os candidatos deveriam escolher apenas um para produzir. Tendo-o escolhido, os vestibulandos deveriam atender a, pelo menos, três práticas letradas, a saber: participação no jogo enunciativo da prova (JEP), adequação do texto ao tema proposto e uso do registro escrito formal da língua portuguesa. Vejamos de que forma essas práticas são requeridas na prova: Exemplo 1

REDAÇÃO

Escolha UMA das duas situações comunicativas apresentadas a seguir, e

redija seu texto, com 20 linhas, no mínimo, e 25, no máximo.

SITUAÇÃO I

A Editora Globo reeditou o romance de Érico Veríssimo Clarissa. A revista Época, interessada pela temática desse romance, achou conveniente publicar uma resenha sobre ele. Como resenhista de veículos de comunicação escrita, escreva essa RESENHA, para ser publicada na revista semanal Época, que tem como leitores público jovem e adulto, com grau de escolaridade médio e superior.

Page 16: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

29

ATENÇÃO!!!

RESENHA é entendida, nesta prova, como um gênero textual que apresenta, de forma sintética, uma obra

(características, informações, forma...) acompanhada de uma avaliação, com o objetivo de oferecer informações que orientem o leitor sobre a leitura ou não dessa obra. O registro linguístico é o formal.

Para escrever sua resenha, inclua o resumo do enredo, comentários sobre a personagem central e sobre a ambientação em que a narrativa se desenvolve. SITUAÇÃO II

Imagine-se como um profissional que teve dificuldade de escolher sua

profissão e que deverá proferir uma PALESTRA, para um público formado por jovens e seus pais, sobre a escolha de um curso superior.

ATENÇÃO!!!

PALESTRA é entendida, nesta prova, como um gênero de texto que,

mesmo sendo apresentado oralmente, é previamente escrito, desenvolvendo-se o tema proposto. A profundidade com que se explora o tema depende do público alvo e do tempo de que se dispõe. Escrito em registro formal, pode conter expositivas, argumentativas, narrativas e/ou descritivas.

Para auxiliá-lo a planejar sua palestra, releia os textos I e II. Não copie partes dos textos, sem que sejam indicadas as fontes e sem que elas fundamentem sua argumentação ou exposição.

(Prova de redação do vestibular especial UFCG 2007)

Podemos observar na prova apresentada uma relação intragênero, já

que no interior do gênero prova de redação é solicitada a produção de outros gêneros, resenha e palestra. Nessa relação intragênero, os candidatos deparam-se com dois jogos enunciativos: o proposto pela prova – assumirem o papel social indicado nas instruções referentes ao gênero escolhido e escreverem para o locutor sinalizado – e outro escolar (JEE) – produzirem um texto com o objetivo de serem avaliados pela banca corretora do vestibular.

Esse JEP consiste no aceite da mudança de posição enunciativa – de vestibulando para a posição indicada na situação comunicativa proposta na prova. Ainda que o sujeito estivesse ocupando a posição enunciativa de candidato que deve escrever a redação com vistas a ser avaliado no tocante a uma vaga no ensino superior, JEE, deve, no momento da produção textual, assumir uma das posições enunciativas sugeridas nas propostas de redação.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

30

A noção de jogo enunciativo foi estudada também por Lino de Araújo (2004), quando analisou o telejornal Jornal Nacional, transmitido pela Rede Globo de televisão. Segundo a autora, os sujeitos responsáveis pela transmissão de informações não assumiam a posição enunciativa de repórteres – aqueles que estão preocupados com o simples repasse de notícias –, mas ocupavam, pelo menos, duas posições enunciativas diferentes, a saber: a de “defensores públicos”, já que criticavam as ações governamentais e reclamavam quanto ao descaso por parte dos políticos, defendendo, assim, os cidadãos, e a de “professores”, uma vez que instruíam/ensinavam os telespectadores como poderiam economizar energia, pois estavam em período de racionamento.

Desse modo, assim como os repórteres assumem posições enunciativas diferentes como constitutivas do telejornal Jornal Nacional, fato que diferencia esse telejornal de outros, os candidatos ao vestibular da UFCG são incumbidos de assumir uma posição enunciativa que, provavelmente, não é a sua, como indício de que estão atendendo a uma das práticas letradas requisitadas pela prova, o que contribuirá para que obtenham êxito na redação.

O JEP é sinalizado no início das instruções dadas para a produção de cada gênero, no item SITUAÇÃO, pelo uso do verbo “imagine”, cuja carga semântica aponta para uma escrita fundamentada numa criação, num convite para o candidato “esquecer” a sua posição enunciativa, vestibulando, e assumir outra, profissional que teve dificuldade de escolher sua profissão, no caso da produção da palestra, objeto de análise deste artigo. Tendo assumido a posição enunciativa indicada, o candidato deverá produzir a palestra para pais e filhos.

Os JEP são recorrentes nas provas de redação em que é solicitada a produção de um gênero textual, isso porque, embora sejam indicados o objetivo da produção, o público alvo e o ambiente de circulação do gênero, o destinatário é o corretor de redações de vestibular que as avalia com o objetivo de selecionar candidatos que almejam uma vaga no ensino superior.

Dessa forma, as situações comunicativas propostas na prova, assim como acontece normalmente na escola, não se concretizam efetivamente, mas servem para orientar a escrita dos candidatos, de modo que não pensem que a escrita é um dom (cf SERCUNDES, 1998) e, portanto, que não é necessário conhecer o objetivo do texto nem o interlocutor alvo antes de escrever.

A inserção no JEP implica, além de adequar o texto às condições de produção, respeitar a estrutura composicional do gênero, as quais foram, brevemente, descritas na prova no item ATENÇÃO!!!:

A palestra é um gênero de texto que, mesmo sendo apresentado oralmente, é previamente escrito, desenvolvendo-se o tema proposto. A profundidade com que se explora o tema depende do público alvo e do tempo de que se dispõe. Escrito em registro formal, pode conter expositivas, argumentativas, narrativas e/ou descritivas.

Page 17: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

31

Em relação à segunda prática letrada requerida, adequação do texto ao tema indicado, os candidatos deveriam participar do JEP contemplando o seguinte tema: escolha profissional. Ainda que não tivessem conhecimento prévio do assunto, a contribuição temática foi oferecida na prova, uma vez que os textos apresentados na prova de língua portuguesa – “Como escolher a carreira certa” e um trecho do livro “Casa de Pensão”– tratavam, direta ou indiretamente, do tema focalizado na redação.

Desse modo, os candidatos poderiam fazer referência, em suas produções, a esses textos, na condição de subsidiar a argumentação presente no gênero produzido, conforme orientação dada na prova – Não copie partes dos textos, sem que sejam indicadas as fontes e sem que elas fundamentem sua argumentação ou exposição. O oferecimento de contribuição temática é outro elemento que favorece a configuração do JEP, pois, mesmo sendo um contexto de seleção, em que a avaliação é pautada única e exclusivamente no produto, desconsiderando, portanto, a identidade e o HL dos candidatos, a banca elaboradora da prova apresenta uma proposta de redação pautada na concepção de escrita como processo. Uma das características dessa concepção é a de que para escrever é preciso ter o que dizer, sendo a intertextualidade um fator importante para tal, visto que contribui com a consistência argumentativa apresentada pelo sujeito, o qual poderá fazer, no seu texto, referências a outros textos seja com o objetivo de concordar com as ideias expostas seja com o de refutá-las.

Confirma-se, assim, o JEP, já que, embora a redação deva ser escrita com fins avaliativos, tem-se a preocupação de oferecer a todos os candidatos os elementos norteadores da produção textual em situações sócio-comunicativas reais – produção do gênero solicitado, articulando a estrutura composicional do mesmo às condições de produção dadas, assim como ao tema indicado.

Finalmente, a terceira prática letrada requerida na prova de redação diz respeito ao uso do registro escrito formal da língua portuguesa, tanto porque é característico do gênero solicitado como por causa da exigência do concurso vestibular.

Vale salientar que, apesar de termos feito comentários sobre cada uma das práticas letradas requeridas pela prova de redação, o fizemos pela complexidade do objeto de investigação e por questões didáticas, haja vista que as consideramos imbrincadas e interligadas. Por isso, a análise dos dados, que será apresentada no próximo item, está organizada em função da primeira prática letrada requerida pela prova de redação, JEP, as outras duas práticas (adequação do texto ao tema e o uso do registro escrito formal) encontram-se diluídas nesta.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

32

Práticas letradas correlacionadas com o HL dos candidatos Palestras, letramento familiar e midiático

Os candidatos que se inseriram no JEP referente à produção da palestra disseram que nunca haviam escrito o gênero, porém, ou já o haviam lido em Revistas, ou em casa (escrito por familiares), ou, ainda, assistido a palestras em agências letradas a exemplo da midiática. Vejamos a redação que segue.

Exemplo 2

Caminho e escolhas: dúvidas persistentes4

Boa tarde, sou a coordenadora do curso de Medicina da universidade federal de campina Grande e fui escolhida para ministrar a palestra sobre escolha de profissão, por ter feito vários outros cursos antes de descobrir que a minha vocação era ser médica.

O primeiro fato que se deve ter em mente é que não importa qual será a sua profissão, você deverá estar sempre se atualizando para se destacar no mercado competitivo de trabalho. Não poderá parar de estudar.

Outro fator importante é que é permitido errar. A profissão escolhida este ano pode não ser daqui à duas décadas. Existem casos de pessoas com cinquênta, sessenta anos que descobrem que gostariam de seguir seus sonhos e começam a lutar por isso. Portanto, permita-se recomeçar sempre que perceber estar errados.

Agora que deixamos a pressão de lado, na escolha de um emprego o fundamental é gostar do que faz, assim, você jovem, antes de marcar aquele x na opção do curso, deve parar e refletir sobre as coisas que mais gosta de fazer e aquelas que não suporta. Quais matérias você gosta mais de estudar, com que área você se identifica mais.

Já aos pais cabe orientar os filhos sobre qual o melhor caminho a seguir e não impôr um caminho por pensarem ser o mais correto.

Assim, pensem sobre seus gostos e o que o deixaria mais feliz. Sigam seus corações pois este sim indicará o caminho certo.

(C1 - Redação produzida no vestibular especial UFCG 2007)

4 As redações foram transcritas tal como aparecem no corpus.

Page 18: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

33

Podemos observar na redação exposta que C1 participou, de fato, do JEP, uma vez que, provavelmente considerando a organização das palestras com as quais disse já ter tido contato, escreveu a sua respeitando a estrutura composicional do gênero, bem como as condições de produção indicadas na prova – imaginar-se como uma pessoa experiente no tocante à escolha profissional e proferir uma palestra para pais e filhos quanto a esse assunto.

Tendo assumido o papel social de palestrante, inicia a palestra, conforme prática letrada exigida nesse evento: saudação inicial – boa tarde – seguida de sua apresentação pessoal – coordenadora do curso de Medicina da universidade federal de campina Grande – e do motivo pelo qual foi escolhida para proferir a palestra – fui escolhida para ministrar a palestra sobre escolha de profissão, por ter feito vários outros cursos antes de descobrir que a minha vocação era ser médica.

No segundo e no terceiro parágrafos, C1 apresenta duas ressalvas quanto à escolha profissional que são, respectivamente, (1) o indivíduo deverá sempre, independentemente do curso escolhido, atualizar-se e (2) é permitido errar na escolha da profissão, adequando sua fala ao tema indicado na prova, escolha profissional.

No quarto e no quinto parágrafos, o candidato direciona seu discurso para o público ao qual se destina a palestra, jovens e pais, confirmando, mais uma vez, sua inserção no JEP – ele não fez apenas uma exposição ou desenvolveu uma argumentação isolada/descontextualizada, mas direcionou seu discurso para os supostos destinatários de sua palestra.

Ao se dirigir aos jovens, C1 disse:

Na escolha de um emprego o fundamental é gostar do que faz, assim, você jovem, antes de marcar aquele x na opção do curso, deve parar e refletir sobre as coisas que mais gosta de fazer e aquelas que não suporta. Quais matérias você gosta mais de estudar, com que área você se identifica mais.

O uso do pronome “você” marca, explicitamente, a tentativa do

palestrante de interagir com os jovens, prática letrada requerida pelo evento de letramento aqui focalizado. Tendo-os aconselhado, C1 dirige-se aos pais destes e pede a eles que orientem os filhos sobre qual o melhor caminho a seguir e não imponham um caminho por pensarem ser o mais correto. Tal conselho ratifica também a participação de C1 no JEP, dado que direciona sua fala para o público alvo indicado na prova e o aconselha quanto à forma pela qual deve lidar com a escolha profissional, tema proposto.

No último parágrafo, C1 finaliza sua palestra, dirigindo-se novamente aos jovens, aconselhando-os para que pensem sobre seus gostos e o que o deixaria mais feliz. Sigam seus corações pois este sim indicará o caminho

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

34

certo. Observamos que o desfecho da palestra é marcado pela função conativa da linguagem, como sugere o uso dos verbos “pensem” e “sigam”, que foram empregados no modo imperativo, evidenciando um convite, um apelo. Sendo um profissional experiente no assunto focalizado na palestra, como destacou no primeiro parágrafo, C1 conclui sua fala dando sugestões aos jovens no tocante à escolha profissional, outra prática letrada típica do evento palestra.

Entendemos que nossos comentários a respeito do ingresso de C1 no JEP podem ser respaldados pelo HL desse candidato. Desde pequeno, de acordo com entrevista, disse que gostava muito de escrever desde textos relativamente informais como roteiros teatrais até textos técnicos como procurações para seu pai, que é advogado. O ato de escrever para C1 parece ser cotidiano, heterogêneo e feito por prazer, sem ligação com as determinações escolares, até porque os gêneros por ele destacados dificilmente são abordados nessa instituição.

A nosso ver, essa familiaridade com a escrita permite o desenvolvimento das habilidades e competências de tal modalidade linguística, favorecendo a produção dos diversos textos com os quais o sujeito se depara, a exemplo da palestra, solicitada na prova de redação do vestibular. Ainda que nunca a tivesse escrito, C1 afirmou na entrevista que não sentiu dificuldades para produzi-la: eu nunca escrevi uma palestra, mas só que eu tinha noção. Eu já vi várias palestra, tendeu: Ai eu sabia como fazia (...) eu vi uma ou outra por escrito do meu pai e... só assistindo o resto (...) Meu pai costuma proferir palestra por causa do trabalho dele. C1 entende, assim, que o fato de nunca ter escrito uma palestra não o prejudicou na redação de vestibular, porque ele tinha noção do gênero e, sobretudo, assistiu a várias palestras, ou seja, parece que tinha um contato intenso com o gênero. A exposição a esse modelo de texto, na agência familiar e em outras agências de letramento não especificadas por C1, deve ter favorecido a apreensão das práticas letradas que regem tal evento. Essa apreensão de práticas pode ter sido realizada tanto a partir do contato com a escrita – leu palestras – quanto do comparecimento ao evento de letramento – assistiu a palestras.

Isso permite inferir a transposição de práticas letradas para a prova de redação. C1 talvez não tenha sentido dificuldades de fazer isso, visto que afirmou ser acostumado a escrever e já ter “noção” do gênero solicitado no vestibular, fatores que devem ter contribuído para que se sentisse confiante/seguro no momento de produzir a redação. Além disso, afirmou que, em casa, sempre teve contato com práticas letradas, pois seus pais liam e escreviam constantemente, sobretudo, por causa das suas atividades profissionais. Essa exposição às práticas familiares deve ter interferido também na constituição do HL de C1, bem como favorecido a sua inserção nesse meio, chegando, inclusive, a produzir procurações para seu pai, conforme afirmamos anteriormente.

Page 19: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

35

Vale destacar finalmente que o contato com as práticas letradas escolares parece não ter sido um dos fatores decisivos para que C1 atendesse às práticas requeridas pela prova de redação do vestibular. Isso porque, segundo ele, não estudou, na escola, como elaborar e/ou proferir uma palestra, pelo contrário, seu desempenho na prova deu-se, provavelmente, pelo contato estabelecido com o gênero em outras agências letradas a exemplo da familiar.

Palestras, letramento escolar

Ainda que as instruções referentes à participação no JEP tenham sido

explicitamente apresentadas – produção de uma palestra destinada a jovens e seus pais sobre a escolha profissional –, a maioria dos candidatos opta pela inserção no JEE, produzindo uma dissertação sobre o tema indicado na prova. Vejamos a redação escrita por C2.

Ex.: 3

O futuro em nossas mãos

Escolher a profissão que se quer seguir no futuro, além de não ser uma tarefa fácil como se imagina, requer um amadurecimento adequado à idade de quem está prestes a fazer sua escolha profissional. Escolha essa que, inevitavelmente, sofrerá forte influência dos amigos mais próximos e, principalmente, dos pais.

Estar maduro para escolher uma profissão não é sinônimo de ter uma idade específica, a partir da qual há obrigação de uma escolha, mas sim ter experiências de vida suficientes para saber o que se quer e o que não se quer para o futuro. E para que isso aconteça, é preciso encarar alguns desafios e situações difíceis, pois somente assim se terá argumentos para escolher essa ou aquela profissão.

Por se tratar de uma decisão séria, pode-se pedir a ajuda sábia dos mais vividos, assim como conversar com aqueles que passam pelam mesma situação. Mas deve-se atentar para uma questão: a resposta final é sua, pois o futuro em questão é o seu e ninguém pode direcioná-lo melhor que você.

Confesso que é chato e, às vezes, até constrangedor ter uma certa idade e ainda depender financeiramente dos pais, mas não deve ser por esse motivo que se escolha qualquer profissão; apenas pelo dinheiro. Pois nem sempre o caminho mais fácil é o melhor.

Pelas diversas dificuldades enfrentadas e pela certeza de um futuro promissor, aconselho a todos que se sentem despreparados ou imaturos diante da escolha de sua futura profissão, que busquem o conhecimento interior, assim como o exterior, com sabedoria e pureza, pois só através das

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

36

experiências você se descobrirá um ser humano inserido num mundo que oferece infinitas oportunidades de realizações.

(C2 – Redação produzida no vestibular especial UFCG 2007)

Observemos que C2 não começa o texto, saudando os interlocutores

nem se apresentando ou mesmo dizendo o objetivo da palestra, práticas letradas requeridas por esse evento. Pelo contrário, desconsiderando as regras estabelecidas no JEP, não assume, nesse momento, a posição enunciativa indicada na prova, especialista no tocante à escolha profissional que deveria conferir uma palestra sobre esse tema destinada a jovens e seus pais. Tal candidato, na verdade, insere-se no JEE e produz o texto com um objetivo bem pragmático – obter boa pontuação para facilitar seu ingresso na universidade. Para tal, organizou as ideias do texto de forma semelhante ao que acontece no gênero dissertação escolar: tese, argumentos e conclusão.

No primeiro parágrafo, C2 apresenta a sua tese – a escolha profissional não é uma tarefa fácil, exigindo tanto amadurecimento como escuta de conselhos de pessoas mais experientes. Tendo exposto a tese, nos três parágrafos seguintes, C2 procura convencer os leitores quanto a sua opinião, apresentando, para tal, argumentos.

No segundo parágrafo, explica o que é estar maduro para escolher uma profissão – é ter experiências de vida suficientes para saber o que se quer e o que não se quer para o futuro. No terceiro, destaca a importância de pedir a ajuda sábia dos mais vividos, assim como conversar com aqueles que passam pela mesma situação e, ao mesmo tempo, faz a ressalva de que a resposta final é sua, pois o futuro em questão é o seu e ninguém pode direcioná-lo melhor que você.

A ressalva feita por C2, marcada linguisticamente pelo uso do pronome possessivo “sua” e do pronome de tratamento “você”, sinaliza a tentativa do candidato de participar do JEP – palestrante interagindo com seu público alvo. Todavia, no parágrafo seguinte, C2 retorna ao JEE, visto que continua argumentando sem direcionar sua fala para o público definido no JEP. Isso é ratificado quando faz uma afirmação, no seu texto, sobre os pais, os quais supostamente estariam ouvindo-o: [é] constrangedor ter uma certa idade e ainda depender financeiramente dos pais, mas não deve ser por esse motivo que se escolha qualquer profissão.

No último parágrafo do texto, C2 tenta novamente participar do JEP, dirigindo-se aos jovens, público alvo da palestra, dizendo que:

aconselho a todos que se sentem despreparados ou imaturos diante da escolha de sua futura profissão, que busquem o conhecimento interior, assim como o exterior, com sabedoria

Page 20: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

37

e pureza, pois só através das experiências você se descobrirá um ser humano inserido num mundo que oferece infinitas oportunidades de realizações.

[grifos nossos]

Embora o desfecho do texto esteja pertinente aos desfechos das palestras – resumindo os argumentos apresentados, o palestrante aconselha seu público sobre o assunto focalizado em sua fala, conforme partes destacadas –, entendemos que fazê-lo somente na conclusão não é suficiente para efetivar a inserção do candidato no JEP. A posição enunciativa de vestibulando parece ter sido predominante na redação, uma vez que a argumentação desenvolvida por C2 parece ter sido direcionada, ao longo do texto, para o corretor das redações do vestibular.

O conhecimento do HL de C2 ajuda-nos a compreender um pouco as atitudes desse candidato. Quando indagado se já havia produzido o gênero palestra, afirmou que Não. Nem mesmo estudado sobre. A sorte é que eu já tinha uma ideia de como uma palestra ocorria e eu tentei escrever o que eu só conhecia na prática. Senti um pouco de dificuldade, pois não sabia as regras para escrever [grifos nossos]. Diferentemente de C1, candidato que participou do JEP por causa, provavelmente, da intensa exposição, em agências letradas, ao gênero palestra, C2 não teve tal exposição, disse apenas que tinha uma “ideia”, já que a “conhecia na prática”. Em virtude disso, afirmou ter sentido dificuldade de escrevê-la na prova de vestibular.

Segundo C2, o que lhe prejudicou no momento da produção da palestra foi o não exercício do gênero. Ainda que tivesse assistido a algumas palestras, disse que nunca havia produzido, não sabia como organizá-la por escrito. Reconhece, assim, que os textos orais têm certas especificidades que os diferenciam dos escritos e que, no caso dele, considerando seu HL, somente o fato de ter assistido a palestras não foi suficiente para que demonstrasse as práticas letradas requeridas por tal evento.

Não se sentindo confiante para escrevê-lo, C2 recorre à estrutura composicional do gênero com o qual se deparou, provavelmente, durante muitos anos na escola, a dissertação, gênero em que predomina o uso de sequências textuais expositivas e argumentativas, como acontece na palestra. Uma das diferenças básicas entre esses gêneros, cujo não cumprimento fez com que C2 não entrasse no JEP, mas se inserisse no JEE é que na palestra, o sujeito interage com os leitores, característica não perceptível na dissertação.

Enquanto na dissertação, os alunos escrevem para os professores com o objetivo de serem avaliados (cf. SOUZA, 2003); na palestra, uma pessoa especialista em uma determinada área palestra sobre um dos temas de sua especialidade para um público interessado e interagindo, na medida do possível, com esse público. No caso do JEP, os candidatos deveriam se

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

38

imaginar assumindo esse papel de especialistas na área da escolha profissional e escrever uma palestra para jovens e seus pais.

Sendo assim, parece-nos que, conforme a entrevista, o fato de só ter tido uma “ideia” do gênero palestra e de que sua prática de escrita estava mais relacionada com o letramento literário – gosto muito de escrever crônicas – não favoreceu o processo de transposição de práticas letradas de um evento para outro, uma vez que nas palestras predomina, em geral, o uso de sequências expositivas e argumentativas, como já dito, ao passo que nas crônicas, as narrativas.

Considerações finais

Considerando os objetivos indicados no presente artigo, verificamos

que, na prova de redação aplicada no vestibular especial da UFCG em 2007, foram exigidas três práticas letradas, a saber, participação no jogo enunciativo da prova, adequação do texto ao tema indicado e uso do registro escrito formal da língua portuguesa.

Essas práticas, especialmente a primeira, sinalizam o efeito retroativo dos novos estudos linguísticos sobre escrita – gêneros textuais e letramentos – na elaboração das propostas de redação apresentadas nas provas referidas. Há, dessa forma, uma ampliação nas práticas letradas que até então são solicitadas na maioria das provas de vestibular aplicada no Brasil, as escolares (em geral, exige-se a escrita de uma dissertação).

Nessa ampliação de práticas letradas, contempla-se a complexidade das práticas da sociedade, requisitadas em eventos de letramento configurados em diferentes agências letradas, conforme observado nas provas em questão – além do letramento escolar, outros letramentos, a exemplo do literário e do midiático, estão subjacentes a tais provas tendo em vista a solicitação, respectivamente, dos gêneros memória e palestra. Isso implica dizer que o letramento escolar parece não ser suficiente nem o único que pode ajudar os candidatos a demonstrar as práticas letradas exigidas nas provas focalizadas.

Nessa perspectiva, constatamos (SILVA & LINO DE ARAÚJO, 2009) que os candidatos que participaram do JEP, embora tenham dito que nunca haviam escrito o evento escolhido no vestibular, afirmaram que tinham familiaridade com eventos de letramento cujas práticas eram semelhantes às exigidas naquele. Essa familiaridade deve ter favorecido o processo de transposição de práticas letradas de um evento para outro. Além disso, eles afirmaram que estavam acostumados a escrever e que o faziam por prazer, sinalizando experiência com a prática de escrita. Já aqueles que participaram do JEE em detrimento do JEP disseram ter mais experiência com o letramento escolar. Disseram que produziam textos escolares e, em geral, o faziam tendo em vista as exigências da escola e/ou do vestibular. Esse contato limitado com

Page 21: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

39

práticas de escrita deve ter contribuído com a mobilização, na prova, de práticas escolares.

Com relação, mais especificamente, à produção da palestra, focalizada neste artigo, percebemos que a participação no jogo enunciativo requisitou dos candidatos familiaridade com o letramento midiático e não apenas com o escolar, visto que esse gênero textual dificilmente é abordado em livros didáticos e nos módulos de conteúdo, utilizados na escola, e raramente discutido ou ensinado nas aulas ministradas pelos professores de Língua Portuguesa/Redação.

Sendo assim, nos deparamos, de um lado, com C1, que conseguiu participar do JEP porque disse ter um HL rico em práticas letradas – midiáticas e familiares. De modo que, ainda que nunca tivesse lido nem escrito uma palestra, tinha experiência com práticas letradas semelhantes às de tal evento, o que talvez tenha favorecido o processo de transposição de práticas de um evento para outro. Por outro lado, com C2, que participou do JEE, provavelmente porque, conforme a entrevista, a sua maior experiência era com práticas letradas escolares frente às configuradas em outras agências.

Esses dados evidenciam, desse modo, que somente o letramento escolar parece não ser suficiente para que os candidatos atendam às práticas requeridas pela prova de redação, para que participem do JEP, o que não significa dizer que esse letramento seja desnecessário e irrelevante para aqueles que aspiram ingressar na UFCG. Na verdade, quando associado a outros letramentos, o escolar pode contribuir com a mobilização de práticas letradas de um evento para outro.

Diante de tais resultados, entendemos ser possível que os vestibulares exijam, na prova de redação, a produção de diferentes gêneros textuais, bem como a mobilização de práticas letradas configuradas em diferentes letramentos, haja vista que as teorias de gêneros e de letramento estão cada vez mais presentes nos centros acadêmicos como também fundamentam os PCNs e, consequentemente, os livros didáticos adotados pelos professores. Além do mais, os candidatos e as pessoas têm, de modo geral, contato diariamente com exemplares de gêneros e não com dissertações escolares.

Sabendo que a escola é vista como uma agência letrada que tem como um de seus objetivos preparar os alunos para ingressarem na universidade e que, conforme verificado nos dados, somente as práticas letradas que lá se configuram parecem não ser suficientes para que o candidato obtenha bom desempenho na prova de redação, parece-nos necessário um redirecionamento teórico e, sobretudo, metodológico no tocante à abordagem de gêneros textuais na escola.

Para isso, é preciso que os professores da academia contribuam com a formação dos docentes que atuam na educação básica, oferecendo para esses cursos de formação continuada, nos quais possam refletir teorico-

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

40

metodologicamente sobre os gêneros e, assim, possam abordá-los em sala de aula não como meros objetos de ensino, mas como instrumentos para a construção/produção de conhecimentos. Ademais, possam ampliar sua familiaridade com eventos oriundos das diferentes agências letradas, consequentemente, com as práticas configuradas em tais eventos, o que poderá favorecer o processo de mobilização das mesmas.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Ana Lúcia. O professor-leitor, sua identidade e sua práxis. In.: KLEIMAN, Ângela (org.). A formação do professor. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001, p. 115-135. ANDRÉ, Marli E. D. A. de. Fundamentos da pesquisa etnográfica. In.: Etnografia da prática escolar. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995. p. 15-69. BARTON, David e HAMILTON, Mary. Literacy Practices. In.: BARTON, David; HAMILTON, Mary & IVANIC, Roz. Situated Literacies. London e New York: Routledge, 2000. p. 07-15. BAZERMAN, Charles. Escrita, gênero e interação social. DIONISIO, Ângela Paiva & HOFFANAGEL, Judith Chambliss (orgs.). São Paulo: Cortez, 2007. CAMPOS, Samuel. A formação de uma professora sem terra: reflexos do processo na prática escolar. In.: KLEIMAN, Ângela (org.). A formação do professor. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001, p. 261-280. COELHO, Fernanda de Castro Batista. O gênero textual entrevista como uma entre-vista. In.: KLEIMAN, Angela B. & MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Letramento e formação do professor – práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005 (Coleção Ideias sobre Linguagem), p.127-142. DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Leitura: inferências e contexto sócio-cultural. FALE – UFMG, Belo Horizonte, 1988. 225p. GEE, James Paul. The New literacy studies. In.: Situated Literacies. Reading and Writing in Contex. London: Routeledge, 2000, p. 180-197. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Narrativas de práticas de leitura: trajetórias da professora alfabetizadora. In.: KLEIMAN, Ângela (org.). A formação do professor. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001, p. 69-94. GUEDES-PINTO, Ana Lúcia et all. Percursos de letramento dos professores: narrativas em foco In.: KLEIMAN, Angela B. & MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Letramento e formação do professor – práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005 (Coleção Ideias sobre Linguagem), p.65-92. KLEIMAN, Ângela B. (org.). Formação do professor: retrospectivas e perspectivas na pesquisa. In.: KLEIMAN, Ângela (org.). A formação do

Page 22: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

41

professor. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001, p. 13-35. ____________________. (org.). Os significados do letramento. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 1995. LINO, Denise de Araújo. Um “professor” no horário nobre: estudo da explicação em telejornais. (Tese de Doutorado Inédita). São Paulo: USP, 2004. p. 128-135. LOPES, Iveuta de Abreu. Cenas de letramentos sociais. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, 2006. 221p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e eventos comunicativos. In.: SIGNORINI, Inês (org.). Investigando a relação oral/escrito. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001. p. 23-50. MEY, Jacob L. Vozes da sociedade – Seminário de pragmática. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001. RIBEIRO, Vera Masagão. Uma perspectiva para o estudo do letramento – lições de um projeto em curso. In.: KLEIMAN, Angela B. & MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Letramento e formação do professor – práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005 (Coleção Ideias sobre Linguagem), p. 17-40. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1975. SIGNORINI, Inês. O relato autobiográfico na interação formador/formando. In.: KLEIMAN, Angela B. & MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Letramento e formação do professor – práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005 (Coleção Ideias sobre Linguagem), p. 93-126. SILVA, Elizabeth Maria da Silva & LINO DE ARAÚJO. Histórico de letramento e práticas letradas em redações de vestibular. UFCG: Campina Grande, 2009. 171p. _________________________________________________. Redação e/ou gêneros textuais: caminhos de produção de textos no vestibular e no ensino médio. In.: Anais da XXI Jornada Nacional de Estudos Linguísticos do Nordeste, 2006, João Pessoa, p. 35-43. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. SOUZA, Edna Guedes de. Dissertação: gênero ou tipo textual? In.: DIONÍSIO, Angela Paiva & BESERRA, Normanda da Silva (orgs.). Tecendo textos, construindo experiências. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. p. 163-183. STREET, Brian. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 1- 21. TERZI, Sylvia Bueno. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In.: KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento. Campinas, São Paulo; Mercado de Letras, 1995. p. 91-117.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

42

Page 23: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

43

INTERDISCIPLINARIDADE EM PLANOS DE AULA E EM PROJETOS PEDAGÓGICOS:

CONFLITOS EM ABORDAGENS DIDÁTICAS EM CONSTRUÇÃO

Wagner Rodrigues Silva UFT/Campus Universitário de Araguaína

Elem Kássia Gomes UFT/Campus Universitário de Araguaína

Resumo

A construção da abordagem interdisciplinar nos gêneros planos de aula e projetos pedagógicos é analisada nesta pesquisa. Para realização desta investigação, foi montado um banco de dados a partir de uma pesquisa de campo realizada em algumas escolas públicas brasileiras. Os dados mostram políticas públicas curriculares configuradoras de forças dispersoras da abordagem interdisciplinar idealizada. Palavras-chaves: gêneros discursivos; inovação; linguística aplicada; planejamento. Abstract

The construction of interdisciplinary approach in the class plans and pedagogic projects genres is analyzed on this research. For this investigation done, it was composed a data base from a field research done in some Brazilian public schools. The data shows curricular public politics that trigger disperser force of interdisciplinary approach idealized. Introdução

Utilizados para organizar o trabalho docente em diferentes disciplinas

curriculares, contextos e níveis de formação, projetos pedagógicos e planos de aulas são objetos de investigação na pesquisa aqui apresentada5. Investigamos a recorrência e algumas concepções de interdisciplinaridade nos documentos pedagógicos mencionados, os quais, além de orientar a prática profissional do professor, são produzidos para propiciar ou desencadear o aprendizado dos alunos. Nesta pesquisa, esses projetos pedagógicos e planos de aula são concebidos como gêneros catalisadores, conforme terminologia utilizada por Signorini (2006, p. 8), no campo dos estudos lingüísticos aplicados, para

5 Este projeto conta com a colaboração do CNPq (Processo Nº. 401127/2007-9) e do PIBIC/UFT, estando também registrado na PROPESQ/UFT (AG 4 # 003/20O8).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

44

caracterizar “gêneros discursivos que favorecem o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo de formação, tanto do professor quanto de seus alunos”.

Como dados desta pesquisa, trabalhamos com alguns projetos pedagógicos e planos de aula, produzidos em escolas públicas municipais de Araguaína, cidade localizada no norte do Estado do Tocantins. Para a investigação realizada, tomamos como referência o documento denominado de fluxo de aula, proposto pela Secretaria Municipal da Educação para nortear a produção dos planos de aula e projetos pedagógicos das escolas integrantes da rede pública municipal. O fluxo de aula é distribuído às referidas instituições de ensino, com propósito de orientar a elaboração das atividades escolares para os Ciclos Básicos de Alfabetização (CBA) e para os 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º anos do ensino fundamental. Os conteúdos e as habilidades programados são organizados por disciplinas escolares, procurando-se estabelecer minimamente algumas articulações entre os conteúdos propostos.

Produzidos semanalmente em cadernos de planejamento, os planos de aula são elaborados pelos professores, tomando como referência o fluxo de aula.

Posteriormente, este caderno passa pela avaliação da coordenação pedagógica da escola, que supervisiona o planejamento realizado. Em alguns casos, aos cadernos de planejamento são atribuídos vistos pelo coordenador pedagógico, informando o mérito do planejamento – bom, ótimo ou ruim – e indicando possíveis falhas cometidas pelo professor. Também são sugeridas pelos coordenadores pedagógicos melhoras para o planejamento realizado.

Objetos de investigação desta pesquisa, os planos de aula deveriam funcionar como facilitadores da implementação dos projetos pedagógicos, mas, conforme analise dos dados de pesquisa, esse fenômeno não ocorre. A elaboração dos projetos pedagógicos parece cumprir uma formalidade. Em outras palavras, por exigência institucional, os projetos pedagógicos são elaborados simplesmente para constar, parece-nos que tais projetos são elaborados porque as escolas devem possuí-los, ainda que pouco sirvam de referência para as atividades pedagógicas diárias. Há uma tendência de desarticulação entre os conteúdos dos planos de aula e a proposta pedagógica contida nos projetos pedagógicos6.

Os planos de aula são elaborados por professores que atuam na educação básica, sendo responsáveis por qualquer disciplina do componente curricular, ou seja, um mesmo profissional ministra aulas de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia e Ensino Religioso.

6 Para realizarmos tal afirmação, baseamo-nos em alguns indícios observados durante as visitas realizadas às escolas municipais, pois, conforme já ressaltado, são pouco significativos os projetos operacionalizados durante o período de geração de dados de pesquisa.

Page 24: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

45

Esta atribuição pode dar maior autonomia ao professor, viabilizando o trabalho interdisciplinar, partindo da idéia de que a interdisciplinaridade necessita de um trabalho colaborativo entre professores das diferentes disciplinas. Neste caso, o próprio professor pode articular o trabalho proposto nas disciplinas curriculares, estabelecendo diálogos ou conexões entre os conteúdos trabalhados no decorrer das aulas. Os planos de aula são idealizados para organizar o trabalho do professor em sala de aula. A partir da análise desses documentos, investigamos como a abordagem interdisciplinar informar as aulas ministradas na rede de ensino focalizada.

Os projetos pedagógicos, por sua vez, são usualmente produzidos pela coordenação escolar, quando não, são elaborados pelos próprios professores da instituição. São propostos para um período de vigência determinado – bimestral, semestral ou anual. Devem ser trabalhados em todas as séries e disciplinas que compõem o quadro curricular da escola. Abrangem assuntos passíveis de trabalho em todas as disciplinas, podendo viabilizar o trabalho com atividades interdisciplinares. De acordo com informações obtidas durante visitas realizadas a algumas escolas municipais, a operacionalização dos projetos pedagógicos é realizada por todos os professores no período programado – geralmente, um bimestre letivo –, momento em que cada professor procura trabalhar a temática7 selecionada para o projeto de forma interdisciplinar.

No período de geração de dados8, visitamos 12 escolas da rede pública municipal aqui focalizada, as quais disponibilizaram para pesquisa projetos pedagógicos identificados como interdisciplinares. Ao analisar os documentos, percebemos que, na maioria dos projetos, a abordagem interdisciplinar não é articulada de forma significativa. A atividade de geração dos dados de pesquisa nos revelou a inexistência de projetos pedagógicos interdisciplinares em operacionalização nas escolas municipais, levando-nos a montar um banco de dados apenas com projetos realizados em anos letivos anteriores. Com base nos conteúdos desses projetos, tentamos identificar alguns indícios de interdisciplinaridade e concepções de interdisciplinaridade que norteiam a elaboração desses documentos.

7As temáticas ou temas orientadores dos projetos pedagógicos são assuntos de interesse da comunidade escolar, selecionados em função de um trabalhado interdisciplinar a ser realizado sob orientação dos professores no período estipulado para operacionalização do projeto. Algumas vezes, essas temáticas coincidem com os denominados temas transversais, propostos pelo governo federal. 8 Por geração de dados, compreendemos o processo informado minimamente por análises preliminares do material de investigação da pesquisa. Nesse processo, são iniciadas as primeiras categorizações. Por coleta de dados, compreendemos uma etapa anterior à mencionada previamente. A coleta corresponde ao trabalho mecânico de junção de material de análise sem análise preliminar alguma. Ainda que tentemos realizar essas classificações, acreditamos que seja muito difícil delimitar a fronteira entre tais processos, sendo melhor, muitas vezes, optar apenas pela denominação geração de dados.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

46

Assim como os planos de aula, os projetos pedagógicos se configuram como documentos escolares elaborados para desencadear práticas pedagógicas interdisciplinares nas escolas de educação básica, mas, como é facilmente observável na análise dos dados de pesquisa, os dois documentos possuem características distintas, o que é justificável pelas funções específicas a serem desempenhadas pelos mesmos.

Na tabela expositiva adiante, apresentamos uma análise quantitativa do processo de formação do banco de dados desta pesquisa. São elencados os números (i) de escolas públicas municipais existentes na cidade de Araguaína; (ii) de escolas por nós visitadas para geração de dados; (iii) de planos de aula e projetos pedagógicos coletados.

– Tabela 1 – Dados Gerados em Escolas Araguainenses

Escolas Públicas

Municipais

Escolas Visitadas

Planos de Aula

Coletados

Projetos Pedagógicos

Coletados

30 12 12 21

A quantidade de planos de aula e de projetos pedagógicos se sobressai

diante dos números apresentados, pois esses últimos são em quantidade superior aos primeiros, revelando que, provavelmente, os projetos pedagógicos são mais comuns nas escolas visitadas, talvez, pela cobrança desse documento pela própria Secretaria Municipal de Ensino. No entanto, o baixo número de planos de aula coletados pode ser justificado pelo receio dos professores de se exporem como único autor dos planos de aula, disponibilizando, dessa forma, apenas projetos pedagógicos por serem de autoria coletiva ou, até mesmo, institucional.

Ainda que apresentada tal análise quantitativa preliminar dos dados de pesquisa, a investigação relatada neste texto é essencialmente qualitativa. Informada por teorias de análise textual e discursiva, realizamos uma análise interpretativa dos planos de aula e projetos pedagógicos, tomados como principais dados desta pesquisa. Atividades didáticas reproduzidas dos cadernos de alunos e entrevistas estruturadas9 com professores também são dados de pesquisa utilizados para cruzar, durante a análise dos dados, com os primeiros documentos mencionados. 9 De acordo com Rosa & Arnoldi (2006, p. 29), esse tipo de entrevista corresponde ao “estabelecimento de questões formalmente elaboradas, que seguem uma seqüência padronizada, com uma linguagem sistematizada e de preferência fechada, voltando-se para a obtenção de informação, através de respostas curtas e concisas, sobre fatos, comportamentos, crenças, valores e sentimentos”.

Page 25: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

47

Assumimos aqui a abordagem transdisciplinar da Linguística Aplicada, compreendida como um processo em que pressupostos teóricos de diferentes áreas do conhecimento podem ser mobilizados para a construção de objetos de investigação complexos, podendo desencadear, inclusive, uma redefinição de pressupostos teórico-metodológicos vigentes. Apenas para destacar algumas das orientações teóricas utilizadas nesta investigação, mencionamos alguns pressupostos da abordagem (trans/inter) disciplinar discutida por Japiassu (2006), a teoria sócio-interacionista bakhtiniana (Bakhtin, 2000); e a abordagem pragmática dos gêneros textuais proposta por Bazerman (2006). Quanto à organização textual, este artigo é composto por quatro partes principais. Na primeira, intitulada Abordagens pedagógicas interdisciplinares na inovação do ensino, discutimos algumas contribuições possíveis da abordagem didática interdisciplinar para a reformulação do ensino, em diferentes níveis de instrução formal. Na segunda parte, intitulada Gênero como espaço textual-discursivo, os planos de aula e projetos pedagógicos são caracterizados como gêneros discursivos responsáveis pela organização da prática profissional do professor, bem como pela propagação de diversos discursos responsáveis pela inovação idealizada no ensino. Na terceira parte, intitulada Flagrantes de abordagens interdisciplinares em construção, as análises preliminares de concepções de interdisciplinaridade, nos gêneros discursivos tomados como objeto de investigação da pesquisa, são apresentadas. Na quarta parte, intitulada Discursos recorrentes na prática docente, diferentes vozes sociais são investigadas nos documentos componentes do corpus desta pesquisa, sob a orientação da concepção de linguagem como atividade social determinada pelo contexto interacional. Abordagens pedagógicas interdisciplinares na inovação do ensino

Destacamos a abordagem pedagógica interdisciplinar como uma das respostas possíveis à prática pedagógica fragmentada e desestimulante em vigência em contextos de ensino formal, em muitas escolas brasileiras e, em especial, nas escolas públicas tocantinenses, conforme observado em pesquisas realizadas em outros momentos (Silva, 2009, Silva & Melo, 2009). Essa abordagem pode articular conteúdos que usualmente são trabalhados de forma isolada nas diferentes disciplinas curriculares, além de organizar a prática pedagógica do professor e facilitar a aquisição de conhecimentos por parte dos alunos. Conforme exposto por Lück (2007, p. 14), a necessidade de se promover e superar essa fragmentação do conhecimento surge como uma demanda cada vez mais clara e evidente entre os educadores, em busca de uma visão e ação globalizadora, mais humana.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

48

De acordo com Fazenda (2005, p. 13), “o início da década de 90 caracteriza-se pela ideia de interdisciplinaridade, tema-chave dos mais representativos eventos sobre formação de educadores”. Apesar de ter surgido antes deste período, a interdisciplinaridade retorna nessa época, “como palavra de ordem das propostas educacionais não só no Brasil, mas em outros países”. De difícil conceituação, o termo interdisciplinaridade não dispõe de uma definição única, mas depende do enfoque que é assumido a partir do campo de estudo em que se pretende defini-lo10.

Sobre a relevância da abordagem interdisciplinar na escola, Pombo (2006) destaca que essa abordagem estabelece a “descentração” das disciplinas na instituição de ensino. Esta descentração consiste em promover um ensino articulado e constituído como um todo, englobando diversos saberes organizados em disciplinas escolares. No contexto de educação formal, trata-se de um ensino que aproxima o homem dos inúmeros saberes, sem desconsiderar a realidade vivida pelo mesmo, como é comum na tradição do ensino marcada pelo enfoque compartimentado dos conhecimentos disciplinares.

A interdisciplinaridade tem como proposta “uma reforma do pensamento e da educação” (Japiassu, 2006, p. 17), opondo-se ao pensamento fragmentado, que é constantemente estimulado pela organização compartimentada dos saberes disciplinares. Essa reforma do pensamento e da educação tem como objetivo possibilitar uma maior valorização dos conhecimentos multi e interdisciplinares, formando indivíduos capazes de “pensar o mundo globalmente e em suas partes” (Japiassu, 2006, p. 20). O autor destaca ainda que, para o trabalho interdisciplinar, é essencial que “as instituições de ensino criem lugares permanentes de trocas e debates permitindo aos diversos ‘especialistas’ colocar em comum suas experiências e interrogações sobre a ciência que fazem” (Japiassu, 2006, p. 25). Dessa forma, no ambiente escolar, a integração e cooperação entre os professores são aspectos primordiais para o trabalho interdisciplinar.

Conforme Morin (2008, p. 13), “há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários”. Como exemplo de problema polidisciplinar, ressaltamos a própria investigação científica aqui proposta, que, no seu desenvolvimento, requer a análise dos fatores influenciadores do trabalho interdisciplinar na escola de educação básica. Esses fatores são de ordem cultural, política, social,

10 Há autores que preferem nem entrar no mérito de definições dessa nomenclatura, como por exemplo, Ávila-Pires (2007), que, ao discutir a abordagem metodológica interdisciplinar na área da Ecologia Humana, afirma preferir encontrar maneiras de viabilizar a prática de pesquisa interdisciplinar, multidisciplinar ou transdisciplinar, sem se preocupar com definições para tais terminologias.

Page 26: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

49

econômica etc. A formação de cidadãos aptos a levantar ou compreender problemas complexos, e a propor encaminhamentos ou soluções para tais problemas é um dos objetivos do ensino interdisciplinar, em diferentes níveis de formação escolar.

Gênero como espaço textual-discursivo

O uso da noção teórica de gênero discursivo11 para a análise dos

projetos pedagógicos e planos de aula se justifica pelo conceito de gênero poder “nos falar da mente, da sociedade, da linguagem e da cultura e até da organização das leis e da economia, como também de muitos outros aspectos da vida letrada moderna”, conforme discutido por Bazerman (2006, p. 9). Dessa forma, a pertinência do estudo do gênero discursivo para a análise dos planos de aula e projetos pedagógicos se evidencia a partir da consciência que temos de que tais documentos são gêneros discursivos específicos, e representam ações sociais, que implicam em outras ações e permeiam o ambiente educacional de forma intensa e responsiva. Esses gêneros discursivos explicitam um grande número de discursos, podendo demonstrar o modo como vem sendo tratada a abordagem interdisciplinar e a busca por inovações na educação básica na região aqui focalizada.

De acordo com Bakhtin (2000, p. 279), “cada esfera da comunicação possui enunciados específicos para atingir suas finalidades”, estes enunciados se configuram como gêneros do discurso que têm características específicas da esfera de comunicação a qual pertencem. Os projetos pedagógicos e planos de aula, investigados nesta pesquisa, pertencem à esfera pedagógica, uma vez que, são constituídos de enunciados produzidos no âmbito escolar e têm como objetivo, minimamente, a organização e o aprimoramento das práticas pedagógicas em desenvolvimento. De alguma forma, os gêneros aqui investigados são propostos para organizar o trabalho do professor na escola, tanto em atividades mais burocráticas de planejamento e organização de disciplinas, junto a setores administrativos, como em situação de ensino na própria sala de aula.

Em termos bakhtinianos, os projetos pedagógicos se configuram como um gênero mais complexo, pois, além de serem compostos por outros gêneros, tendem a se enquadrar num modelo próximo ao projeto de pesquisa acadêmica, pois refletem maior formalidade em sua produção, aproximando-se dos discursos científicos, diferentemente dos gêneros primários que são menos formais e construídos por meio da expressão oral. Os planos de aula se configuram como um gênero mais simples, pois, normalmente, são compostos

11 Apesar de termos consciência do diferencial teórico existente entre as abordagens discursiva e textual dos gêneros, optamos nesta investigação por não fazer distinção entre as nomenclaturas gêneros textuais ou gêneros discursivos.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

50

por orientações topicalizadas, algumas vezes, acompanhadas por textos ou atividades didáticas em anexo, no próprio documento.

Ainda conforme Bakhtin (2000, p. 282), “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados que a vida penetra na língua”, então, partindo do pressuposto de que há vida nos documentos em análise, percebemos intrínsecas intencionalidades em tais documentos, expondo diferentes vozes sociais na materialidade textual. Estas vozes traduzem anseios institucionais – escolas, secretarias estaduais ou municipais de educação –, e de categorias ou agrupamentos sociais mais amplos, como a comunidade acadêmica ou científica.

Investigar concepções de interdisciplinaridade em documentos escolares requer minuciosa atenção à prática do professor, já que esse profissional é o principal agente no processo de elaboração desses documentos, considerando as demandas originárias do corpo discente. De modo geral, a atuação do professor é resultante de vários saberes docentes que são assimilados pelo profissional no decorrer de sua formação acadêmica até atuação efetiva como professor na sala de aula, não significando que os saberes docentes deixem de ser assimilados após a formação acadêmica inicial. Para Tardif (2002, p. 36), “pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos, coerente de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. Desse modo, estes saberes orientam o trabalho do professor em sala de aula, enquanto os gêneros organizam a prática docente. Podemos estabelecer uma relação entre os gêneros discursivos e saberes docentes, considerando que, no interior do gênero, são mobilizados saberes docentes que informam o trabalho pedagógico do professor.

Assim, em nossa investigação, analisamos alguns meios pelos quais o professor utiliza os saberes docentes para tornar suas aulas mais interessantes, menos tradicionais, como os saberes do professor podem influenciar no trabalho interdisciplinar e de que maneira as orientações de documentos oficiais, como o fluxo de aula, incidem nos planejamentos do docente.

No que tange ao trabalho pedagógico interdisciplinar, vale enfatizar sua importância para a efetivação de uma prática escolar inovadora, que priorize o aprendizado do aluno, tornando-o um cidadão crítico e atuante na sociedade a qual pertence. Além disso, a interdisciplinaridade contribui para a formação de educadores reflexivos sobre sua prática de ensino, educadores que priorizem a relação entre o conteúdo do ensino e a realidade social extra-escolar mais ampla, garantindo, assim, um trabalho mais pertinente e útil ao alunado. A demanda da interdisciplinaridade para o magistério envolve a formação de profissionais críticos, constituídos de “vontade política e hábito de refletir permanentemente sobre seu fazer pedagógico, valendo-se para tanto de uma visão de mundo intercontextual e interdisciplinar” (Santos, 2007, p.16).

Page 27: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

51

Retomando os planos de aula e projetos pedagógicos como objetos de investigação deste trabalho, ressaltamos que estes são considerados enunciados vivos em constante diálogo com outros enunciados. Segundo Bakhtin (2000, p. 290; itálico do autor), “a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa”, implicando em afirmar que a compreensão do professor diante do fluxo de aula, proposto pela secretaria municipal de ensino não se dá de forma passiva, mas resulta na produção de documentos, assumidos aqui como objetos de análise, que se configuram como um lugar de respostas. Em outros termos, os planos de aula e projetos pedagógicos são “lugares de respostas” nos quais se consuma interação entre, minimamente, diretrizes curriculares, matrizes curriculares institucionais, docentes, discentes e, até mesmo, atores de espaços não-escolares.

Flagrantes de abordagens interdisciplinares em construção

Por meio de visitas a estabelecimentos de ensino da rede municipal de

ensino, coletamos planos de aula e projetos pedagógicos sobre os quais realizamos um minucioso trabalho analítico. Reconhecemos a interferência de nossa subjetividade durante a coleta e análises preliminares dos dados, concordando com Bortoni-Ricardo (2008, p. 59), que, ao tematizar o assunto, afirma que, no âmbito das ciências sociais, o investigador jamais assume uma postura neutra, pois “não é um relator passivo e sim um agente ativo na construção do mundo”.

Os documentos aqui analisados dialogam com outros textos, como poderá ser notado nos exemplos seguintes. O dialogismo dos projetos e planos de aula se instaura por meio de múltiplos discursos que os constituem, num movimento interativo, fazendo jus às palavras de Fontana (2005, p.65), a qual, ancorada nos estudos bakhtinianos, afirma que “elaboramos o mundo e nos elaboramos no mundo pela palavra do outro, da qual inicialmente nos apropriamos”. Reproduzimos adiante dois exemplos12 ilustrativos do dialogismo nos documentos analisados. O primeiro se constitui de uma passagem reproduzida da justificativa de um projeto pedagógico, que expõe a caracterização da escola, enquanto espaço de formação e transformação social.

Exemplo 01 – Projeto Pedagógico Em nossa unidade escolar, buscamos contribuir para a formação dos alunos, de modo a ajudá-los a serem cidadãos críticos, reflexivos, agentes transformadores e criadores de novas manifestações culturais, o que entendemos constituir-se em princípio básico da educação.

12 Todos os exemplos foram reproduzidos de maneira fidedigna do original.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

52

O excerto anterior se constrói a partir de um conhecido discurso, reproduzido em documentos oficiais e em textos acadêmicos, que atribui à escola a função de formar cidadãos críticos, reflexivos e criativos. Tal atribuição também é valorizada na introdução dos Paramentos Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – PCN (Brasil, 1998, p.3), onde é declarado que “o papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das sociedades amplia-se ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a necessidade de se construir uma escola voltada para a formação de cidadãos”. Além dos PCN de Língua Portuguesa, a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2006) assegura no artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (itálico nosso).

O segundo exemplo adiante é reproduzido dos planos de aula, também componente do banco de dados desta investigação. Mais uma vez o dialogismo está presente nesse exceto.

Exemplo 2 – Plano de Aula Observação: As crianças que precisam de reforço serão atendidas conforme suas necessidades educacionais através de atividades diversificadas, material dourado, alfabeto, sílabas móveis.

O exemplo supracitado evidencia a preocupação da professora em

expor as estratégias de ensino utilizadas com os alunos que apresentam dificuldade de aprendizado, salientando que estes farão atividades mediadas com recursos específicos a fim de compensar o atraso na aprendizagem. Esta observação no planejamento também dialoga com as orientações oficiais dos PCN, que destacam a importância de adequação do ensino conforme as necessidades dos alunos e, além disso, deixa explícita a referência ao método montessoriano13 de utilização de material dourado para estimular o aprendizado a partir de objetos concretos. Dessa forma, notamos como estas vozes sociais compõem os documentos orientadores do trabalho docentes, podendo, interferir diretamente na prática profissional do professor.

Outro exemplo de vozes sociais, mobilizadas nos documentos aqui investigados, representativo do que encontramos nos dados desta pesquisa é identificado na seguinte justificativa de um projeto pedagógico:

13 Criado por Maria Montessori, este método de ensino valoriza a utilização de material didático sensorial para desenvolver o aprendizado das crianças.

Page 28: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

53

Exemplo 3 – Plano de Aula O projeto, enquanto modalidade organizativa do currículo, vem tomando força no trabalho pedagógico, principalmente na educação do Ensino Fundamental, por possibilitar a abordagem e a experimentação dos conhecimentos de forma interdisciplinar. E também, por oferecer condições de se pensar e realizar um trabalho compartilhado com os alunos, isto é, a organização da co-investigação em que participam professores e alunos.

O recorte textual do Exemplo 3 dialoga com as vozes que atribuem à

pedagogia de projetos a função de facilitadora de um trabalho interdisciplinar, valorizando a importância da produção coletiva de projetos pedagógicos para a implementação de um trabalho interdisciplinar. A última frase do excerto mostra ainda a necessidade da formação de professores e alunos reflexivos, pesquisadores. Por meio dos exemplos reproduzidos, observamos a variedade de vozes que refletem outros discursos e mantêm o caráter dialógico dos documentos analisados.

Ao voltarmos a nossa atenção à necessidade de aprimoramento da educação brasileira, ressaltamos a importante função dos documentos redigidos a partir de propostas pedagógicas atuais que incentivam a melhoria do ensino. Os documentos aqui analisados estão revestidos da urgência de inovação na educação. É por meio deles que as transformações ocorrem paulatinamente14 no ambiente escolar. É nesse sentido que a nossa pesquisa caminha a fim de investigar o que há em termos de propostas de reformulação do ensino a partir dos projetos e planos de aula enquanto gêneros catalisadores.

Em nossa investigação sobre a abordagem interdisciplinar nos planos de aula que compõem o banco de dados desta pesquisa, encontramos um documento intitulado Plano de aula Interdisciplinar. Neste plano de aula, observamos poucas tentativas de trabalho interdisciplinar, enquanto os demais documentos, além de não apresentarem nenhuma referência ao assunto, não expõem nenhuma tentativa de trabalhar os conteúdos disciplinares de maneira mais articulada.

Os planos de aula a que tivemos acesso foram elaborados conforme a programação mensal dos conteúdos estipulados no fluxo de aula. Tal programação é seguida cuidadosamente nos cadernos de planejamento dos professores. Quanto às metodologias de ensino dos conteúdos programados,

14 O uso deste vocábulo se justifica pela constatação de que somente projetos e planos de aula inovadores não são suficientes para a melhoria da educação. Conforme mostrado por Silva (2006), existem outros atores de natureza humana e não-humana que interferem no espaço complexo e dinâmico da sala de aula.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

54

não sabemos como realmente são operacionalizadas em sala de aula, visto que não realizamos pesquisa diretamente em sala de aula para observarmos o trabalho pedagógico desenvolvido pelo professor. Este fato evidencia uma limitação desta pesquisa, pois a investigação realizada está restrita ao exame de documentos institucionais, coletados em momentos pontuais. Esta pesquisa se caracteriza, portanto, como flagrantes de momentos pontuais dentro de um processo mais amplo e dinâmico.

A maioria dos planos de aula está organizada sem tentativa alguma de articulação entre os conteúdos trabalhados nas diferentes disciplinas curriculares. Esta constatação pode ser justificada pelo pouco conhecimento dos professores em relação à interdisciplinaridade, assim como pode também ser reflexo da falta de planejamento institucional coletivo, mediado pelos coordenadores pedagógicos. Outro empecilho para o trabalho interdisciplinar é a resistência mantida por alguns professores experientes em relação às inovações ou reformulações educacionais que impliquem no aprendizado de novos saberes e no trabalho diferenciado em relação à prática tradicional de ensino.

A observação atenta dos dados nos permite supor um significativo desconhecimento pelos professores da rede pública de ensino aqui focalizada da abordagem pedagógica interdisciplinar, o que caracteriza a demanda por tal abordagem pela Secretaria Municipal de Educação precipitada, pois os professores precisam ser instruídos minimante sobre o assunto para tentar realizar alguma transposição didática15 em contexto de formação.

A título de exemplificação do escasso conhecimento sobre a abordagem pedagógica interdisciplinar, destacamos adiante os conteúdos disciplinares reproduzidos de dois planos de aula16, registrados nos cadernos dos professores. O exemplo seguinte revela uma tentativa de estabelecer alguma articulação entre as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática. Isso ocorre de maneira bastante simples e sutil, mas de possível percepção.

15 Por transposição didática, compreendemos aqui as adaptações necessárias de materiais didáticos

em função, principalmente, dos aprendizes e dos objetivos pretendidos com a aula planejada. 16 Todos os exemplos expostos neste texto foram reproduzidos de acordo com o original.

Page 29: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

55

Exemplo 4 Planejamento (8° ano)

(Organização das Nações Unidas) proclamou seus direitos visando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, os direitos e as liberdades aqui enunciados e apela a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de indivíduos, e as organizações voluntárias, as autoridades locais e os governos nacionais reco-nheçam estes direitos e se empenhem pela sua observância mediante medidas legislativas e de outra natureza, progressi-vamente instituídas, de confor-midade com os artigos dos Direitos da Criança. Augusta Schimidt. Coletânea do Saber. 1. Sobre o que é o texto que você leu? 2. Responda: a) Você acha que todas as crianças agem como uma criança sábia? Por quê? b) Como a criança deve agir para que possa gozar de seus direitos? c) Você acha que todas as crianças têm seus direitos respeitados? d) Você já presenciou ou ficou sabendo de alguma situação de desrespeito aos direitos da criança? Conte como foi? e) Você concorda com casos em que as crianças têm que trabalhar? Por quê? 3. Onde aparece no texto a presença de noção numérica? 4. Você gostou do texto? Justifique sua resposta:

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

56

A partir do texto sobre os direitos da criança, são propostas questões de interpretação textual e, dentre estas questões, a terceira se relaciona diretamente ao conhecimento matemático, que faz com que notemos a tentativa de articulação entre saberes de diferentes disciplinas. Essa questão evidencia uma tentativa de interdisciplinaridade, por meio da pergunta sobre a presença de conhecimentos numéricos no texto de referência. Lamentavelmente, tal tentativa de articulação entre conteúdos disciplinares não se efetiva, pois não há resposta para a pergunta proposta no texto de referência.

O texto reproduzido adiante demonstra uma tentativa de articulação entre as disciplinas de Língua Portuguesa e História, por meio da temática do circo. Por outro lado, há total desarticulação entre o conteúdo programado para a disciplina de Matemática e as demais disciplinas elencadas, todas ministradas por uma mesma professora. A desarticulação entre as disciplinas curriculares, no Exemplo 5, é representativa da maioria dos planos de aula componentes do banco de dados formado.

Exemplo 5 Planejamento (CBA 8 anos)

Dia 14/03 Sexta Aula: 3 1. Acolhida: Ginástica Historiada “Fogo no circo” 2. Curtindo as leituras: leitura self-service. 3. Correção do para casa: coletivamente 4. Desenvolvimento das atividades: →Port.: Leitura interpretação de texto informativo →Ler para os alunos um texto informativo sobre o primeiro circo do mundo, falando do valor cultural das atividades do circo, a importância de cada pessoa que trabalha no circo e o que elas fazem. Questionar com os alunos o que eles acham do circo, o que mais gostam, etc. →Promover atividades que envolvam o tema em estudo como caça-palavras envolvendo os personagens do circo, palavras cruzadas, desenhos para produção de texto, trabalhos artísticos envolvendo o circo. →Hist.: Dia do circo A partir de comentários orais sobre o tema em questão, deixando que os alunos expressem seus conhecimentos, debatendo a importância cultural e outros. →Mat.: Multiplicação → No livro do didático pág, realizar no caderno do aluno a atividade envolvendo situações-problemas com a multiplicação. →Para realizar a correção, chamar individualmente um por cada vez, para armar e efetuar no quadro-giz.

Page 30: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

57

5. Habilidades a serem adquiridas →Port.: -Ler para a classe de forma clara. - Reconhecer o valor cultural dos personagens do circo - Interpretar texto →Mat.: Ler, interpretar e resolver problemas envolvendo a multiplicação. 6. Revisão do dia: através de questionamentos orais, possibilitando aos alunos que expressem seus conhecimentos adquiridos no decorrer da aula. 7. Para casa: produção de texto sobre o circo 8. Atividades a serem trabalhadas no reforço escolar: →Leitura de pequenos textos →Formação de palavras com sílabas trabalhadas →Identificação de palavras dentro do texto trabalhado →Escrita dos nomes nos desenhos →Ditado

O texto reproduzido se distancia da construção composicional dos

planos de aula mais tradicionais, nos quais são explicitados, dentre outros elementos, estratégias de ensino, recursos didáticos e formas de avaliação. Na realidade, o texto reproduzido no Exemplo 5 se configura em um roteiro com atividades a serem realizadas em turmas regulares e no reforço escolar.

Dados os resultados apresentados até aqui, é importante salientar que o fluxo de aula não orienta o trabalho pedagógico para uma prática interdisciplinar de maneira clara e objetiva. Porém, ao estipular conteúdos mensais a serem trabalhados, tal documento sugere a utilização de conteúdos que podem ser relacionados entre as variadas disciplinas curriculares, ou seja, expõe apenas um direcionamento, ainda que implícito, para o trabalho interdisciplinar.

Ao tentarmos compreender o modo como o educador produz os planos de aula, julgamos interessante considerar que os saberes docentes norteadores da prática pedagógica estão bastante impregnados pelos tipos de atividades didáticas que o professor elabora em seu cotidiano. Se o educador nunca foi exposto a uma formação profissional mais sistematizada sobre uma abordagem pedagógica interdisciplinar, jamais teve esclarecimento sobre como trabalhar numa perspectiva interdisciplinar e a importância dessa abordagem para romper com o ensino tradicional, dificilmente terá condições de elaborar

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

58

atividades didáticas de forma produtiva. Um dos entraves para o trabalho interdisciplinar na escola de educação básica reside na formação escolar/inicial/continuada do professor.

Discursos recorrentes na prática docente

A elaboração do caderno de planejamento resulta na explicitação de alguns discursos que caracterizam os planos de aula analisados, a saber: discurso acerca da necessidade da formação do aluno crítico; discurso contrário a práticas pedagógicas tradicionais; discurso em defesa da abordagem de assuntos sobre a realidade vivida pelos alunos. A recorrência de tais discursos se dá não de modo aleatório, mas como atitude responsiva, partindo de orientações de diretrizes curriculares e, até mesmo, respondendo aos anseios da comunidade acadêmica. Há ainda discursos que parecem apontar para uma prática pedagógica interdisciplinar, mesmo que a operacionalização de tal prática seja bastante desafiadora.

Para Bazerman (2006, p. 13), “nossos textos são atos de nossa vontade motivados pelos nossos desejos e intenções”. Nesse sentido, os planos de aula aqui investigados estão informados pela intencionalidade dos seus autores, ainda que sejam construídos meramente para obedecer às determinações institucionais em função de políticas curriculares autoritárias, o que parece sustentar a hipótese de que os planos de aula podem não representar a prática efetiva do professor.

Considerando que os dados desta investigação são compostos principalmente por textos escritos, destacamos, de acordo com Bentes & Rezende (2008, p. 45), que o texto é considerado “um lugar de construção de relações e de objetos-de-discurso de naturezas diversas e dependentes do contexto histórico e social mais amplo”. Objeto de análise da lingüística textual, o contexto de produção e circulação textual contribui para a constituição dos textos, pois caracteriza os mesmos em diferentes níveis de construção. De acordo com Widdowson (2004), existe uma oposição entre contexto e linguagem, pois enquanto esta é abstrata, aquele é concreto, mas tanto a linguagem quanto o contexto estabelecem relações na construção dos discursos.

A importância do contexto para a análise dos dados desta pesquisa pode ser justificada por meio das seguintes palavras de Widdowson (2004, p. 53): “precisamos ter clareza sobre a natureza do contexto, por que somente quando os fatores linguísticos são relacionados com os fatores contextuais é que o discurso é realizado” 17. Daí a importância da necessidade de analisarmos 17 Tradução livre do seguinte excerto: “we need to be clear about the nature of context, for it is only when the linguistic features of the text are related to contextual factors that discourses is realized”. (Widdowson, 2004, p. 53)

Page 31: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

59

o contexto social mais amplo a fim de compreendermos a construção dos documentos tomados como dados desta pesquisa, pois, como afirma Bahktin (2000), os discursos apresentados nos textos estão interligados a outros discursos e respondem a anseios de variadas instâncias sociais, ou seja, o contexto de produção dos planos de aula e projetos pedagógicos engloba vários aspectos sociais. Ao compartilhar dos postulados bakhtinianos, Fontana (2005, p. 66) destaca que “somos povoados por múltiplas vozes, vozes dos outros, que nos constituem, vozes dos múltiplos papéis sociais que desempenhamos, vozes da história que ecoam em nós e nos significam”.

É relevante considerarmos a influência do espaço escolar para investigarmos o desenvolvimento de um trabalho pedagógico interdisciplinar na instituição. Conforme observado na fase de coleta e geração dos dados desta pesquisa, as escolas não disponibilizam de orientações mais sistemáticas para o ensino interdisciplinar. Como já ressaltamos anteriormente, nem mesmo o fluxo de aula expõe claramente tal orientação. A organização escolar também dificulta o processo de implantação da interdisciplinaridade, para constatarmos isso basta observarmos o individualismo entre muitos profissionais da educação, a falta de cooperação nas atividades a serem realizadas, de diálogo, que são aspectos fundamentais para o trabalho pedagógico interdisciplinar.

Nesta investigação, pudemos notar claramente o quanto os documentos investigados se afastam de uma abordagem pedagógica interdisciplinar significativa e direcionam o trabalho para a manutenção da fragmentação ou compartimentalização de saberes disciplinares. Explicitamos aqui uma fala lamentável proferida por uma coordenadora pedagógica, que, ao ser questionada sobre a existência de projetos pedagógicos interdisciplinares para orientar o trabalho didático da instituição, afirmou-nos o seguinte, conforme nossas anotações de campo: “nós não temos projetos interdisciplinares, mas a interdisciplinaridade é trabalhada por cada professor em suas aulas”.

A fala reproduzida demanda algumas reflexões, visto que explicita um desconhecimento sobre o trabalho didático interdisciplinar, pois pressupõe o desenvolvimento da abordagem pedagógica interdisciplinar de forma isolada, o que parece de difícil operacionalização ao considerarmos que um dos aspectos primordiais para a efetivação da interdisciplinaridade é o trabalho coletivo, desenvolvido de maneira mais efetiva por meio da pedagogia de projetos, conforme destacado em investigações realizadas num outro momento do desenvolvimento do projeto de pesquisa em que está inserido este trabalho (Silva, 2009). Sobre o caráter cooperativo da abordagem interdisciplinar, as palavras de Fazenda (2005, p. 111), a respeito da pesquisa interdisciplinar, também se aplicam à prática de ensino. A autora afirma que a tal abordagem se realiza na “busca da construção coletiva, em parceria, a quatro mãos, a seis, a muitas outras mais”.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

60

Essa dificuldade de operacionalização de um trabalho pedagógico cooperativo, mostrada por meio da análise dos dados, aparece de forma mais explícita numa passagem de uma entrevista estruturada, realizada com professores numa escola pública do município focalizado, em que realizamos uma pesquisa participativa sobre o ensino interdisciplinar18. Na ocasião, foi solicitado que os professores exemplificassem algumas dificuldades por eles encontradas em operacionalizar um trabalho pedagógico interdisciplinar. Reproduzimos adiante a referida passagem textual da entrevista:

Exemplo 6 – Entrevista a gente aqui na escola, a gente não tem assim apoio pedagógico... assim é, nem 80% a gente não tem. E assim cada professor procura trabalhar na sua área entende e quando a gente chega em alguém pedindo assim uma ajuda alguns negam, os colegas se negam ajudar a gente, entende? Fica difícil. Eu procuro, tem colega que procura trabalhar, mas sempre estão comentando que é difícil. (Entrevista nº3)

O Exemplo 6 também parece contribuir para confirmar a tese por nós

defendida em algumas investigações, a saber: os professores não são os únicos responsáveis pelos conflitos instaurados no espaço complexo da sala de aula, principalmente nas ocasiões em que esses profissionais procuram inovar a prática pedagógica a partir de teorias de referência. A prática profissional individualista parece inserir os professores numa dinâmica institucional bastante estruturada, capaz de absorvê-los de forma imperceptível por eles mesmos.

Entre os projetos pedagógicos investigados, identificamos propostas mais promissoras nos textos em que há tentativas de desenvolvimento da abordagem didática interdisciplinar. A título de exemplificação, destacamos o projeto intitulado Projeto Copa do Mundo 2006. Arquivado entre os projetos operacionalizados na escola, essa proposta desenvolve de maneira satisfatória a abordagem pedagógica interdisciplinar, utilizando o evento da Copa do Mundo como temática para desenvolver atividades didáticas em todas as disciplinas do componente curricular institucional. Os conteúdos disciplinares são delimitados separadamente, mas é estabelecida uma articulação entre os mesmos, possibilitando ainda o enfoque de alguns temas transversais19. 18 Referimo-nos aqui ao projeto “Construção da interdisciplinaridade em contextos institucionais de formação” (CNPq Proc. nº. 401127/2007-9) 19 Componentes das políticas públicas curriculares, propostas a partir da década de 90 pelo governo federal, para renovar a prática de ensino vigente, os temas transversais são assuntos de caráter

Page 32: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

61

Considerações finais

A insistência na tentativa de informar a prática pedagógica com a abordagem didática interdisciplinar parece demonstrar o quanto essa proposta pode ser promissora para renovar a prática de ensino nas diferentes disciplinas curriculares, em diferentes níveis de ensino. Porém, diversas são as forças dispersoras, que dificultam a operacionalização da proposta de forma significativa, atribuindo maior sentido às atividades escolares, aproximando-as das práticas interativas mais amplas, em espaços não-escolares. A simples produção de planos de aula ou projetos pedagógicos, informados pela abordagem didática interdisciplinar, parecem não garantir a operacionalização da referida abordagem em contextos institucionais de formação.

Ausência de cooperação no trabalho pedagógico entre profissionais da educação, sobrecarga de serviço do professor, má formação inicial e continuada do professor são exemplos das forças dispersoras mencionadas. Além dessas forças exemplificadas, a política pública curricular vigente é uma das principais forças dispersoras atuantes no espaço pedagógico, pois, além de demandar tal prática interdisciplinar, ações muitas vezes inesperadas, originárias dessa mesma política, desencadeiam perturbações no percurso em construção. As inúmeras cobranças institucionais ou pacotes intempestivos de formação continuada são exemplos de forças dispersoras do projeto pedagógico vigente. Dando continuidade a pesquisa aqui realizada, pretendemos aprofundar as investigações sobre a interferência (in)direta de políticas públicas curriculares no ensino regular informado pela abordagem interdisciplinar.

A análise dos gêneros discursivos focalizados nesta pesquisa mostrou que essa abordagem pedagógica é construída por meio o trabalho articulado entre disciplinas curriculares. A seleção de temáticas específicas, discutidas por meio de textos selecionados, é a via utilizada para articular o trabalho entre as diferentes disciplinas. Como justificativa da demanda pela prática pedagógica interdisciplinar, observamos a necessidade de renovação do ensino, marcado pela excessiva escolarização dos conteúdos selecionados, os quais parecem corroborar apenas para o bom desempenho dos alunos nas atividades escolares, ainda assim quando esses encontram alguma motivação em tais atividades, as quais, geralmente, distanciam-se, por exemplo, das práticas de leitura e escrita em espaços não-escolares.

Para finalizar este texto, reproduzimos adiante a fala de uma professora ao ser questionada sobre a compreensão por ela possuída sobre o educativo (ética; saúde; meio ambiente; orientação sexual; pluralidade cultural; trabalho; consumo), definidos para serem trabalhados conjuntamente com os conteúdos disciplinares.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

62

trabalho interdisciplinar em sala de aula. A fala dessa professora sintetiza bem as principais idéias sobre o assunto manifestadas nos dados analisados:

Eu acredito que a interdisciplinaridade da forma que a gente pretende trabalhar é tentar conciliar várias disciplinas, trabalhar numa aula diferenciada, ou seja, onde pode debater vários temas, temas de um único assunto pode ser abordado, exemplo a gente pode usar um texto para trabalhar diversas disciplinas como português, história, geografia, ciências. Onde a gente objetiva a dar uma aula diferente, onde não vai sobrecarregar muito o aluno e a gente vai tentar também amenizar os problemas que a gente tem na sala, porque o aluno, às vezes acha chata aquela aula corriqueira, e diz ah, hoje é aula de história de matemática de ciências, ou seja, você trabalhar várias disciplinas sem que alunos muitas vezes até perceba que você ta trabalhando. Você trabalha de forma diferente, onde o aluno vai gostar mais. É uma aula diferente, aulas novas, nova informação, o aluno tende a achar mais divertidas mais atraentes. (Entrevista nº 1)

Referências Bibliográficas ÁVILA-PIRES, Fernando, D. de. Interdisciplinary in fact and fiction. In. Revista brasileira de pós-graduação. Brasília, 2007. v. 4, n. 8, p. 217-226. BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAZERMAN, Charles. Gênero, agência e escrita. In: Angela P. Dionisio; Judith C. Hoffnagel. (orgs.). São Paulo: Cortez, 2006. BENTES, A. C.; REZENDE, R. C. Texto: conceitos, questões e fronteiras [com]textuais. In: Inês Signorini (org.) [Re]discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. p. 19-46. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

Page 33: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

63

FAZENDA, Ivani Catarina A. Práticas interdisciplinares na escola. 5ª. ed. São Paulo: Cortez, 2005. FONTANA, Roseli A. Cação. Como nos tornamos professoras? 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. JAPIASSU, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006. LÜCK, Heloísa. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teórico-metodológicos. 15ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 15°ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. POMBO, O. Práticas interdisciplinares. In: Sociologias. Porto Alegre, 2006. ROSA, Maria V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismos para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. SANTOS, Vivaldo P. dos. Interdisciplinaridade na sala de aula. São Paulo: Loyola, 2007. SIGNORINI, Inês. Gêneros Catalisadores, letramento e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006. SILVA, Wagner R. Seleção textual no ensino interdisciplinar por projetos. In: Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte, 2009. v. 9. n. 1, p. 17-39. _____. Construção de aprendizes de leitura e escrita através de exercícios didáticos: um estudo de caso. 2006. 185f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada ao Ensino/Aprendizagem de Língua Materna) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006. SILVA, Wagner R.; MELO, Lívia C. Pesquisa & ensino de língua materna e literatura: diálogos entre formador e professor. Campinas: Mercado de Letras/Universidade Federal do Tocantins, 2009. TARDIF, Maurice. Saberes docentes & formação profissional. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. WIDDOWSON, H. G. Text, Context and pretext: critical issues in discourse analysis. Oxford/England: Blackwell Publishing Ltd, 2004.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

64

Page 34: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

65

CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA: DO GÊNERO ÀS PRÁTICAS SITUADAS

Fernanda Valim Côrtes Miguel – UNICAMP

Resumo

O propósito deste artigo é apresentar e discutir brevemente alguns aspectos de minha pesquisa de mestrado20, na qual investiguei a prática situada de crítica cinematográfica a partir da problematização dos modos como integrantes de uma comunidade especializada de críticos de cinema concebem o papel da atividade midiático-jornalística na constituição de suas próprias produções escritas. A discussão foi elaborada com base em textualizações de entrevistas realizadas com integrantes desta comunidade e de uma comunidade de estudantes universitários, além de outras fontes textuais, orais e escritas, em circulação na internet. A análise desses documentos mostrou que as críticas nem sempre foram consensualmente vistas pelos entrevistados como filiadas ao gênero crítica cinematográfica, fato que motivou a buscar compreender com base em quais critérios tais comunidades justificariam a inclusão ou a exclusão de certas críticas do domínio do gênero ‘crítica cinematográfica’. Palavras-chave: crítica cinematográfica; atividade midiático-jornalística; práticas sociais; gêneros discursivos; comunidades de prática. Abstract

This article aims at presenting and discussing some issues of my dissertation [1] in which I investigated the situated practice of film criticism by problematizing the way participants of a specialized community of cinema critics conceive the role of the midiatic-journalistic activity in the composition of their own written production. The discussion was based on interviews with members of the referred community and members of a community of university students. Other sources, both oral and written, available on the internet, were also considered. The analysis of such documents revealed that the critiques were not always consensually seen by the interviewees as belonging to the genre called film criticism. This fact motivated us to try to understand the criteria used by those communities to include or exclude certain types of critiques from the domain of film criticism.

20 Miguel, F. V. C. 2009.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

66

Keywords: film criticism; midiatic-journalistic activity; social practices; discourse genres; practice communities Introdução Num primeiro momento, é relevante esclarecer aos presentes leitores os motivos principais que motivaram certas reflexões sobre o tema em questão e que contribuíram, posteriormente, para a execução de minha dissertação de mestrado. Meus primeiros estudos, nesse sentido, partiram da tentativa de unir duas áreas específicas de meu interesse: O Jornalismo Cultural e a Linguística Aplicada. O projeto teve início quando convidei, na época, nove alunos graduandos de áreas, anos e universidades diferentes de Campinas (SP) para serem entrevistados e a cada um deles forneci duas críticas com posicionamentos antagônicos em relação ao filme Olga21. As críticas sobre este filme foram selecionadas já que os veículos de comunicação brasileiros, de modo geral, publicaram grande quantidade de textos sobre a produção cinematográfica de Jayme Monjardim e Rita Buzzar e reacenderam a discussão sobre o casamento estético entre o cinema e a televisão. Tive a preocupação, naquele momento, de selecionar tanto as críticas favoráveis quanto as desfavoráveis em relação ao filme, as quais foram entregues de forma referenciada aos entrevistados, não apenas com os nomes dos respectivos autores, como também integradas aos seus respectivos suportes, isto é, como críticas veiculadas por canais midiáticos definidos nos quais foram publicadas. Em relação a esses primeiros entrevistados, procurei verificar se os leitores seriam capazes de reconhecer o gênero discursivo ‘crítica cinematográfica’, de prever sua estrutura, seu conteúdo temático e de identificar seu estilo, elementos estes que, segundo Bakhtin22, integram o todo do enunciado e são definidores dos gêneros discursivos. Procurei verificar ainda se os leitores atribuíam alguma função ao gênero, seja no contexto imediato da entrevista, seja no contexto mais amplo de suas práticas cotidianas. Para minha surpresa, uma das críticas selecionadas, intitulada Por que Olga incomoda?, escrita por Emir Sader23, gerou certa polêmica e posicionamentos diversos entre os leitores. Reproduzo a seguir um trecho do texto em questão:

21 As críticas em questão foram: “Por que Olga Incomoda?”; “Olga: O campo de concentração das

sete mulheres”; “Olga emociona graças ao ótimo elenco e à sempre pertinente mensagem contra o ódio e a intolerância”; “Olga casa com o público e se divorcia dos críticos” e “Paixão sem inteligência”, todas coletadas entre agosto e setembro de 2004.

22 Bakhtin, 2003, p. 262. 23 O texto de Sader circulou pela internet e foi publicado no site Carta Maior e no blog do

sociólogo.

Page 35: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

67

É possível que Olga incomode também porque é uma produção de ótima qualidade, apesar de procurar fugir dos cacoetes de estilo norte-americano e que tanto nos acostumam nos cinemas. Mas sobretudo Olga incomoda porque é um filme que toma posição: é de esquerda – como o são Diários de motocicleta e as fitas de Michael Moore -, quando nos querem convencer de que isso não existe mais, que apenas os critérios estéticos é que contam24.

Durante as acaloradas discussões e problematizações do texto de Sader pela maioria dos estudantes entrevistados – e até mais tarde, durante as entrevistas com os críticos especializados, convidados a ler o mesmo texto –, alguns leitores chegaram a questionar o pertencimento daquele texto ao gênero crítica cinematográfica. No exemplo a seguir, um dos estudantes expõe parte de sua opinião, revelando seu descontentamento e certa dúvida em relação às características textuais da suposta crítica:

Eu achei uma pena porque ele (Emir Sader) transpassa um sentimento de causa, de identificação com a causa muito grande, e isso faz com que meu julgamento sobre a crítica fique em cima do muro porque se ele estivesse falando bem, ressaltando pontos positivos, como ele até ressaltou, isso é uma coisa, teria colocado os argumentos dele... mas ele coloca, ele deixa passar um sentimento pela causa da esquerda, então na verdade ele não está defendendo o filme, ele está defendendo a sobrevivência da luta, a sobrevivência da esquerda o texto todo. (...) então ele tomou muito o partido de uma causa e isso me faz ler o texto meio... será que o cara não está sendo muito partidário? Não está defendendo o dele e não um argumento? E é isso, ele está defendendo o dele o tempo todo. (...) Aqui o discurso apaixonado dele faz com que o texto todo fique comprometido, e você não consegue enxergar nada, você não está olhando para o filme, você está olhando para a ideologia, entendeu? Na verdade não fala sobre o filme, fala sobre a esquerda, e não é isso. Então, se isso é uma crítica, ela não faz o que se propõe a fazer. (In: MIGUEL, F. V. C. 2009, p. 173).

O exemplo a cima é ilustrativo, pois nos revela uma crítica usual de

grande parte dos entrevistados em relação ao texto de Sader. Para o estudante em questão, o texto se distanciaria de uma crítica cinematográfica

24 Sader, E. 2004.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

68

propriamente dita à medida que a intenção de seu autor estaria centrada na discussão dos aspectos políticos e ideológicos supostamente existentes no filme. Ao terminar esta última fala, transcrita anteriormente, perguntei ao estudante qual, afinal, deveria ser a proposta da crítica. Ao que ele me respondeu:

Olha, qual deveria ser a proposta da crítica especificamente? Isso é meio indefinido hoje ainda, assim. O que eu acredito pessoalmente é que deveria ser, como qualquer assunto jornalístico, simplesmente um ponto de vista sobre aspectos, que não só aspectos técnicos, mas impressões sobre aquele filme e talvez, neste caso até já me contradizendo, ele (Emir Sader) cumpra isso porque são as impressões dele sobre o filme, né?25

É interessante observarmos, a partir da citação anterior, como o próprio entrevistado explicita a contradição de seu pensamento em relação aos comentários feitos por ele anteriormente, pois se o objetivo da crítica cinematográfica seria o de fornecer “impressões” sobre determinado filme, então, o texto de Sader cumpriu seu suposto papel. O que nos parece também perceptível através da contradição do depoimento é que o estudante aproxima a crítica cinematográfica ao texto tipicamente jornalístico, usualmente encarado como “imparcial” e “objetivo”, já que os cursos de formação desse profissional, na maioria das vezes, primam pela busca de tais mitos. Para o estudante, é como se os demais textos lidos estivessem ausentes de ideologia e que apenas o texto de Sader fosse ideológico pelo fato de expressar claramente um posicionamento político. Esta leitura poderia ser reforçada ao acrescentarmos a informação de que, na época, o entrevistado em questão era aluno de comunicação social e jornalismo. Vejamos a seguir um depoimento de outra entrevistada que aparentemente questiona o pertencimento do texto de Sader ao gênero crítica cinematográfica:

Eu acho que a primeira crítica, do André Lux, é importante para quem quer saber o que acontece no filme porque, como eu já disse, fala dos aspectos técnicos, então você lê e já sabe o que esperar do filme, mas a do professor aqui é importante para desvendar a mensagem do filme também. Eu acho que é mais um estudo de como o filme, qual a impressão que o filme causa. Eu acho que é para ler depois do filme e essa crítica é boa pra você saber o que esperar do filme26.

25 In: Miguel, F. V. C. 2009, p. 178. 26 In: Miguel, F. V. C. 2009, p. 203.

Page 36: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

69

É significativo observar também qual é o papel social exercido por Emir Sader, professor e sociólogo, e a ausência de um veículo de comunicação de massa legitimado em larga escala no qual seu texto estivesse publicado. Penso que a posição socialmente ocupada por Sader e o suporte de publicação de seu texto também interferiram no modo como os entrevistados o categorizaram. Vejamos a seguir mais dois trechos de depoimentos sobre o texto de Sader, o primeiro do jornalista João Nunes, crítico do jornal Correio Popular de Campinas, seguido do de Fernão Ramos, crítico dos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo na década de 80:

(...) por esse texto aqui -- eu já tinha lido o texto -- mas assim, não precisa nem ler para você observar o que é que o cara está querendo dizer... é um cara de esquerda, entendeu? Que está defendendo comunistas, como assim se defender comunistas, ou defender a esquerda, causas justas transformasse isso num bom filme. Não necessariamente. Cinema não é tese, entendeu?27 Eu acho que é uma crítica -- é o que eu te falei -- é uma crítica de conteúdo, né? E nesse sentido é uma crítica incompleta... é um sociólogo que escreve e está falando do filme como se estivesse falando de um ensaio. Falta cinema aqui, né? Ele analisa pouco o filme. Como eu trabalho com cinema, o que eu sinto falta aqui é isso28.

Tais depoimentos motivaram, então, uma nova reflexão acerca de

minhas questões iniciais: Por que os demais textos não foram questionados enquanto pertencentes ao gênero crítica? Por que apenas o texto de Sader não foi aceito, ainda que apresentasse uma estrutura, um conteúdo temático e um estilo visivelmente comum aos demais textos por mim selecionados? Na época, levantei a hipótese de que o texto de Sader objetivava claramente um posicionamento político de esquerda, fato que causou estranheza aos demais. A partir destas questões decidi que seria interessante investigar o modo como determinada comunidade especializada de críticos de cinema29 concebia o papel do veículo midiático na constituição de suas próprias produções escritas

27 Nunes, J. In: Miguel, F. V. C. 2009, p. 236. 28 Ramos, F. In: Miguel, F. V. C. 2009, p. 217. 29 Por “comunidade especializada de críticos” compreendo os críticos que se dedicaram ou ainda se dedicam à atividade regular de produção escrita de críticas cinematográficas para a publicação em veículos jornalístico-midiáticos da atualidade. A saber, os cinco críticos entrevistados foram: João Nunes, Fernão Ramos, Jorge Coli, Emir Sader e João Gabriel.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

70

e com base em quais critérios essas comunidades, especializadas ou não, justificariam a inclusão ou exclusão de certas críticas do domínio do gênero ‘crítica cinematográfica’.

Passei a suspeitar que a teoria dos gêneros não daria conta de explicar aquele acontecimento particular, ou seja, por que um texto que se pautava nas mesmas categorias dos demais não foi reconhecido da mesma maneira. Parti, então, para outros estudos que se mostraram mais esclarecedores diante das questões a serem por mim investigadas, chegando até alguns teóricos contemporâneos da Linguística Aplicada e perspectivas que apontavam para o estudo da teoria da atividade, das práticas sociais e das comunidades de prática. Parti do diálogo interdisciplinar entre diferentes campos do saber (Linguística, Antropologia e Sociologia), passando por autores que refletiam - nem sempre de maneira convergente - sobre problemáticas comuns. A partir dessas perspectivas passeia a encarar a própria crítica cinematográfica como uma prática social que poderia ser realizada por diferentes comunidades em diferentes atividades humanas. Prática social e a noção sistêmica de atividade

Para teóricos da atividade, como Leontev30 e Engeströn31, as atividades humanas são vistas como uma noção sistêmica, o que significa dizer que este conceito não poderia ser entendido ou definido sem se recorrer a outros conceitos que com ele se relacionam. Uma atividade seria constituída por certas práticas sociais, realizadas por certas comunidades de prática, as quais, por sua vez, seriam reguladas por determinada divisão de trabalho e regras implícitas e explícitas de organização e conduta. Todo sistema de atividades também seria formado por artefatos mediadores, ou seja, todas as ferramentas e materiais necessários para produzir determinados objetos culturais ou formas simbólicas, produtos finais do sistema. A partir desse ponto de vista, não faria sentido pensarmos em elementos isolados e rígidos, pois a definição de um deles dependeria sempre da configuração e reconfiguração dos demais elementos envolvidos na situação da qual todos eles participam, tal como numa rede permanentemente interligada e em constante movimento. Uma das críticas feitas por mim, entretanto, em relação a esses teóricos partiu do modo como encaravam a linguagem, como instrumento de mediação das interações entre indivíduos e sociedade. Para mim - partindo das concepções de autores como Signorini32; Moita Lopes33; Mondada34;

30 Leontev, 1978 apud Santos, M. P. 2004, p. 210-211. 31 Engestron, 2001, p.78-115. 32 Signorini, 1998; 2008a; 2008b. 33 Moita Lopes, 1994; 1998; 2006.

Page 37: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

71

Rajagopalan35; Hanks36; Blommaert37 - a língua e a linguagem seriam parte integrante e central de todo sistema de atividades, já que assim como configurariam e condicionariam as práticas e as atividades, também seriam mutuamente configuradas e condicionadas por elas.

Já a evolução histórica do conceito de prática social até a consolidação de uma “teoria da prática social” originou-se mesmo do conceito de praxis proposto por Marx, juntamente com elementos do pensamento de Bourdieu, Giddens, Lyotard. Essas concepções partilhavam o traço comum da “idéia de que as práticas são o local [site] onde a compreensão é estruturada e a inteligibilidade articulada38”.

Lave, ao situar seu trabalho nas teorias da prática social, acabava por nos revelar alguns pressupostos direcionadores, nos quais se procurava “explicar as relações entre a ação humana e o sistema social e cultural ao nível das atividades cotidianas em cenários culturalmente organizados39”. Uma das raras formulações de Lave sobre o que considerava ser o conceito de prática social dizia: “uma estrutura complexa de processos inter-relacionados de produção e transformação de comunidades de participantes40”. Para ela, a prática seria “constituída na relação dialética entre as pessoas-em-ação e os cenários dessa atividade41”. O próprio Wenger destacou que essa linha teórica tinha uma particular preocupação com o que se passava nas atividades cotidianas e nos cenários de vida real, com ênfase no modo como os grupos organizam suas atividades, suas relações e suas interpretações de mundo42.

Na perspectiva em que me situo, uma prática, portanto, não é uma ação humana qualquer, mas uma ação que está ligada a um objetivo e à intencionalidade de determinada comunidade de prática. Ainda que, em última instância, toda ação seja praticada por um indivíduo em particular, seria necessário compreendê-la como ação histórico-social de uma comunidade inserida em certas tradições. As práticas seriam, assim, ações transformadoras e dialéticas, pois agem sobre o mundo e sobre os indivíduos, transformando-os mutuamente. Além disso, as práticas sociais também são vistas como ações produtivas, já que produzem formas simbólicas, e reflexivas, já que nega a dicotomia teoria versus prática: a atividade manual não é irreflexiva, assim como a atividade intelectual é vista como prática. Por fim, toda prática realiza-se sempre de forma situada em um determinado sistema de atividade humana,

34 Mondada, 1997; 2008. 35 Rajagopalan, 2008. 36 Hanks, 1996; 2008ª; 2008b. 37 Blommaert, 2005. 38 Schatzki, 1996, p. 12. 39 Lave, 1988, p. 14 apud Santos, M. P. 2004, p. 202. 40 Lave, 1993, p. 64 apud Santos, M. P. 2004, p. 225. 41 Lave, 1988, p. 145. 42 Wenger, 1998, p. 13.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

72

o que não significava que ela não possa ser realizada em outros sistemas de atividade. Partir da noção de prática situada significa entender o situado como aquilo que contextualiza uma prática em determinado sistema de atividade Exemplificando a concepção estrutural de contexto

No que dizia respeito à noção sistêmica de atividade, tal como enfocada por Engeström, um elemento desse sistema que se revelou central em minha pesquisa foram as regras que condicionavam/orientavam a realização da prática cinematográfica quando situada na atividade midiático-jornalística. Para mim, o conjunto dinâmico de regras que orientava tanto as relações sociais entre os integrantes de uma comunidade de prática, quanto as próprias práticas que eles realizavam, constituiu o que passei a chamar de contexto institucional estruturador dessas práticas. Acabei mobilizando a palavra “contexto” de maneira particular em minha pesquisa. Resolvi abandonar palavras como interior e exterior, macro e micro, porque penso que elas não são apropriadas para caracterizar um contexto. Quando falo em contexto institucional, me refiro ao conjunto de regras de qualquer natureza, explícitas ou não, que condicionam, isto é, que possibilitam ou impedem, em qualquer grau, a realização de uma prática. Não se trata, portanto, de uma concepção topológica ou hierárquica de contexto, mas de uma concepção normativa de contexto.

Para ilustrar minha concepção de contexto cito agora um exemplo que relata uma iniciativa realizada pelo jornal The Washington Post justamente com o propósito de lançar um debate sobre a noção de valor, contexto e arte: Um homem desce na estação do metrô de Nova York vestindo jeans, camiseta e boné, se encosta próximo à entrada: tira o violino da caixa e começa a tocar com entusiasmo para a multidão que passa por ali, bem na hora do rush matinal. Durante os 45 minutos que tocou, foi praticamente ignorado pelos passantes. A verdade é que ninguém sabia, mas o músico que tocava ali era Joshua Bell, um dos maiores violinistas do mundo. Ele executava peças musicais consagradas num instrumento raríssimo, um Stradivarius de 1713, estimado em mais de 3 milhões de dólares. Alguns dias antes, Bell havia tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custavam a bagatela de 1000 dólares. A experiência foi gravada em vídeo e está disponível no You Tube. Ele mostra homens e mulheres de andar ligeiro, com seus copinhos de café na mão, celular no ouvido, crachás no pescoço, indiferentes ao som do violino43.

O interesse no exemplo citado é justamente mostrar que estamos acostumados a dar valor às coisas quando estão num contexto. Determinada

43 O relato da experiência e o vídeo que mostra o violinista tocando no metrô de Nova York está disponível no site do You Tube, buscando-se por: “Quando o luxo vem sem etiqueta”.

Page 38: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

73

prática pode ser altamente valorizada quando está situada em determinada atividade e, ao contrário, desvalorizada quando situada em outros sistemas de atividade. Este exemplo mostra bem o que sugeri em minha concepção estrutural de contexto. As regras que condicionam ou organizam um concerto de Bell no Symphony Hall de Boston incluem a existência de uma série de coisas: um ingresso de alto valor, a divulgação e a propaganda do show, uma estrutura física construída com a finalidade de promover shows musicais, um contrato explícito que garante a apresentação do músico prometido, outro contrato implícito entre a casa de show e seu público em relação ao evento etc. Em contrapartida, o contexto do metrô de Nova York permite a aceitação de músicos tocando em meios aos transeuntes, mas, implicitamente, sugere ali a existência de músicos desconhecidos, que, muitas vezes, utilizam aquele espaço para mostrar seu trabalho.

O metrô, portanto, poderia ser visto como uma instituição, justamente porque impõe a existência de regras reguladoras daquele contexto. O metrô é instituído como um lugar de passagem, um não-lugar. As pessoas não estão ali para ouvir um concerto de violino. As pessoas não pagaram absolutamente nada para ouvir aquele violino. Tudo isso impede que elas reconheçam naquele músico o mesmo músico dos caríssimos ingressos do Symphony Hall de Boston.

Também parti do estudo de uma concepção de contexto próxima àquela a qual adotei, agora associada à teoria de Jean Lave44. Em uma de suas pesquisas empíricas, Lave havia se proposto a analisar a prática matemática de realizar cálculos aritméticos em atividades quotidianas que não a do ensino-aprendizagem escolarizado. O objetivo da autora era observar quais seriam os meios de estruturação aplicados numa dada situação para dar forma e significado a relações quantitativas. Ela tentava mostrar que as atividades em situação proporcionavam campos para a ação que se estruturariam mutuamente. Para isso, Lave observou pessoas durante suas compras no supermercado e ouviu suas descrições sobre a estratégia adotada ao fazer compras. Lave propunha como unidade de análise o ambiente e o cenário, nos quais a atividade se desenvolvia. O supermercado seria um espaço no tempo, organizado física, econômica, política e socialmente, seria o produto de pautas de formação do capital e da economia política não diretamente negociável por um indivíduo. O supermercado, ao mesmo tempo em que seria exterior aos compradores individuais, também os abarcaria, proporcionando um marco institucional de ordem superior a partir do qual se constituiria o ambiente. Ao mesmo tempo, para os compradores individuais, o supermercado seria uma

44 Lave, 2000, p. 65-98.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

74

versão do cenário repetidamente experimentada e pessoalmente ordenada por eles45. O supermercado seria o ambiente da atividade.

O que considero mais interessante na perspectiva de Lave é o fato dela afirmar que as atividades se desenvolvem em cenários que são estruturados a partir delas e simultaneamente organizados também por elas. Reconhecer as rotinas, as expectativas e os cenários como relevantes para as atividades cotidianas mostra a pertinência de serem consideradas como objeto de análise para o estudo de qualquer tipo de atividade. Acredito que isso não está em desacordo com a proposta de Engeström. E, já que pude observar certas convergências entre os conceitos desses teóricos, lembro aqui que o conceito de comunidade utilizado por Engeström também foi re-significado por Lave em suas pesquisas. Lave trabalha com o conceito de comunidade de prática, o qual considerei interessante como forma de encarar o grupo de críticos entrevistado por mim, justamente porque era a prática que realizavam o que possibilitava a criação de certa unidade entre eles.

Do mesmo modo em que pude falar em contexto institucional estruturador da prática de utilizar o metrô como sistema de transporte público, realizada pela comunidade de usuários de sistemas de metrô, torna-se adequado falar em contexto institucional que estrutura a prática de se realizar compras em supermercados, prática esta realizada pela comunidade de consumidores que recorriam a um tal tipo de espaço ou ambiente para realizar suas compras. Cito agora uma passagem de Lave que acredito ser esclarecedora do modo como utilizei, em minha pesquisa, a expressão contexto institucional:

(...) nunca nos veremos frente a uma situação em que apenas uma coisa acontece de cada vez. As pessoas, habilmente, compram alimentos e praticam matemática ao mesmo tempo. Eu posso ler enquanto faço tricô. Algumas vezes o processo de tricotar dá forma ao processo da leitura. Eu poderia ler enquanto tricotasse uma fileira, mas esperar para virar a página até que a fileira estivesse terminada, ou interromper a leitura para virar a página até que a fileira estivesse terminada, ou interromper a leitura para apanhar um ponto que houvesse escapado. Outras vezes, leio até o final da página antes de começar uma nova fileira, tricotando mais rapidamente conforme o enredo vai se complicando, ou apertando um pouco os pontos quando cresce a tensão. Os planos de fazer tricô parecem mais promissores se não exigirem uma atenção constante, ao passo que os livros de capa dura são mais atraentes porque as páginas permanecem

45 Lave, 1998, p. 151 apud Engeström, 2001, p. 80-82

Page 39: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

75

abertas mais facilmente. Fazer tricô é um meio de estruturação para o processo de leitura, e a leitura fornece meios de estruturação que dão forma e pontuação ao processo de fazer tricô. As atividades dão forma uma à outra, mas não necessariamente de maneira idêntica. Habitualmente, uma atividade vai progredindo e condicionando a forma da outra, mais do que sendo condicionada por ela46.

O interessante desse exemplo é que ele dá visibilidade a alguns dos

aspectos que estruturam - limitando, delimitando, formatando, restringindo e/ou possibilitando - a realização de uma prática. Pensava que a noção de meio de estruturação de Lave tinha uma certa semelhança com o modo como Engeström mobilizava a noção de regras como um elemento de um sistema de atividade. Ainda que nem Engeström nem Lave tivessem estabelecido uma analogia dessa natureza, essa semelhança, a me ver, ficaria melhor caracterizada caso aproximássemos a noção de meio de estruturação de Lave à noção de regras em Engeström mediante a noção “fatores que condicionam a realização de uma atividade”. Nesse sentido, se tricotar, para Lave, condiciona a atividade de ler e vice e versa, tricotar constituiria uma regra ou uma norma indicadora de sentido para a atividade de ler e vice e versa. Para Engeström, as regras seriam “regulamentações, normas e convenções explícitas e implícitas que regem as ações e interações no sistema de atividade47”. Nas entrevistas que realizei pude observar que todos os meus entrevistados faziam, de algum modo, referência àquilo que chamava aqui de contexto institucional estruturador da prática da crítica situada na atividade midiático-jornalística.

Comentários finais

Portanto, ao partir da visão da crítica como prática social, ela deixaria de ser vista apenas como produto de uma ação, como texto tipificado, escrito e de autoria única. Ao longo da pesquisa, o sistema de atividade midiático-jornalístico foi tomado por mim como centro de análise e o contexto passou a ser a própria atividade realizada por esta comunidade especializada de críticos. O enfoque da análise das entrevistas partiu da observação das regras, das normas e convenções implícitas e explícitas que regiam as ações e interações desta comunidade de prática neste sistema de atividade particular. Agora, ao término e defesa da pesquisa, estou convencida de que argumentar em favor da legitimidade deste deslocamento conceitual pôde contribuir para se desafiar a

46 Lave, 2000, p. 68. 47 Engeström, 2001.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

76

visão de que existiria um único espaço social legítimo de produção de críticas, como acreditava parte majoritária de meus entrevistados.

Essa constatação de que a prática da crítica poderia ser realizada em diferentes atividades convenceu-me também da relevância de se investigar as práticas de leitura e escrita e o modo como elas são realizadas no contexto da atividade escolar contrastando-as com aquelas realizadas em outros sistemas de atividade. Penso que identificar e compreender os condicionamentos que operam sobre tais práticas poderiam se mostrar significativos para um melhor esclarecimento dos processos escolares de mobilização dessa práticas e da atuação do professor no sentido de se reconhecer como agente transformador da realidade escolar. É nessa linha de pesquisa que pretendo dar continuidade a esses estudos. Referências bibliográficas ALVES, Aldo. Olga: o campo de concentração das sete mulheres. Disponível em: http://www.amazonia.com.br/portao/reportagens/detalhe.asp. Acesso em 5 de setembro de 2004. ARANTES, Silvana. ‘Olga’casa com o público e se divorcia dos críticos. In: Folha de S. Paulo. Ilustrada. São Paulo, 5 de setembro de 2004. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 4ª Edição, 2003. BLOMMAERT, J. Discurse. A Critical Introduction. Cambridge University Press, 2005. ENGESTRÖM, Y. Los studios evolutivos del trabajo como punto de referencia de la teoria de la actividad: El caso de la práctica médica de la asistencia básica. In: Estudiar las prácticas. Perspectivas sobre actividad y contexto. Buenos Aires: Amarrortu editores, p. 78-118, 2001. HANKS, W. F. Language & Communicative Practices. USA: Westview, 1996. Os gêneros do discurso em uma teoria da prática. In: Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, p. 64-114, 2008a. O que é contexto? In: Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, p. 169-201, 2008b. HEDEGAARD, M., CHAIKLIN, S., & JENSEN, U. J. Activity theory and social practice: an introduction. In: S. Chaiklin, M. Hedegaard & U. J. Jeses

Page 40: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

77

(Orgs.), Activity theory and social practice. Aarthus, DK: Aarthus University Press, 1999, p. 12-30. LAVE, J. Do lado de fora do supermercado. In: Idéias matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: Global Editora, 2000. LUX, André. Olga emociona graças ao ótimo elenco e à sempre pertinente mensagem contra o ódio e a intolerância. Disponível em: http://www.epipoca.cidadeinternet.com.br/news. Acesso em: 05 de setembro de 2004. MIGUEL, F. V. C. Mídia jornalística e prática situada de crítica cinematográfica. Dissertação de mestrado. Departamento de Linguística Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, 2009. MOITA LOPEZ, L. P da. Pesquisa Interpretativista em Lingüística Aplicada: a linguagem como condição e solução. In: Revista Delta. Vol. 1º, N°2, 1994. A transdisciplinaridade é possível em lingüística aplicada?. In: Signorini, I. & Cavalcanti, M. C. (Orgs.). Lingüística Aplicada: perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. Uma lingüística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como Lingüística Aplicada. In: Moita Lopes, L. P da (org.). Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. MONDADA, L. A entrevista como acontecimento interacional: abordagem lingüística e interacional. In: RUA. Nº 03. Campinas - SP, 1997. Relações entre espaço, linguagem, interação e cognição: uma perspectiva praxeológica. In: Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola Editorial, p. 67-90, 2008. RAJAGOPALAN, K. O Santo Graal da Lingüística. In: Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola Editorial, p.15-38, 2008. SADER, Emir. Por que Olga incomoda? Disponível em: http://www.ujs.org.br/tarolando/0309_emir.asp. Acesso em: 10 de setembro de 2004. SANTOS, M. P dos. Encontros e esperas com os Ardinas de Cabo Verde: aprendizagem e participação numa prática social. Tese de doutorado. Departamento de Educação, Universidade de Lisboa, 2004. SCHATZKI, T. R. Social Practices: A Wittgensteinian approach to human activity and the social. 1ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 1-23. SIGNORINI, I. Do residual ou múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em lingüística aplicada. In: Signorini, I. & Cavalcanti, M (orgs.). Lingüística aplicada e Transdiciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998. Metapragmáticas da língua em uso: unidades e níveis de análise. In: Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola Editorial, p. 117-150, 2008a.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

78

Contexto é/como crítica. In: Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola Editorial, p. 91-115, 2008b. TRINDADE, Mauro. Paixão sem Inteligência. Bravo!, Rio de Janeiro, ano 7, nº 84, setembro de 2004. WENGER, E. Comunidades de práctica: aprendizaje, significado e identidade. Barcelona: Paidós, 1998.

Page 41: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

79

O DISCURSO SOBRE O POLÍTICO NAS CHARGES: QUE IDENTIDADES SÃO REPRESENTADAS?

Luciana Fernandes Nery48

UFCG

A relação palavra/imagem apresentada nas charges, bem como em outros textos midiáticos vem se constituindo num importante recurso para trabalhar questões relativas à leitura e à escrita, visto que a linguagem verbal e visual empregada costuma ser atraente aos olhos do leitor e transmite múltiplas informações de uma só vez. Neste contexto, este artigo tem como objetivo analisar o discurso político nesse gênero e observar como as identidades dos sujeitos são representadas a partir das interações discursivas. Palavras-chave: Charges. Discurso. Identidades Abstract

The relation between word/image presented in charges as well as in other media texts is becoming an important resource to work questions in relation to reading and writing in view of verbal and non-verbal languages used are usually attractive for reader view and transmits multiple informations at once. In this context, this article has as objective analizing the political discourse in this genre and observing how the subjects identities are represented from discoursive interactions. Key-words: Charges. Discourse. Identities Introdução

A charge é um gênero textual que circula diariamente na sociedade. No entanto, não costuma comumente ser trabalhada na escola. É um texto que lida com o repertório disponível nas práticas sociais, ligando-se ao modo como um determinado grupo vê o outro. Esse gênero tem a função de convencer, influenciar o outro de acordo com uma determinada ideologia, a fim de torná-los mais conscientes da realidade. Trata-se de um texto atraente aos olhos do leitor, pois a linguagem verbal e visual nela empregada é de rápida leitura e transmite múltiplas informações de uma só vez. No entanto, para compreender

48 Aluna do programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG (Universidade Federal

de Campina Grande).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

80

o seu sentido o leitor precisa possuir um conhecimento de mundo acerca do tema abordado, para que possa captar seu teor crítico.

Afinal de contas, trata-se de um gênero temporal, focalizando e sintetizando um certo contexto histórico-social, portanto somente os que o conhece efetivamente conseguirão compreender os conteúdos veiculados. Desse modo, é preciso está atento ao momento que se deu o acontecimento para compreender o sentido.

Baseado, sobretudo, no humor, as charges apresentam por trás de um discurso aparentemente inofensivo e irreverente o cotidiano da vida social, questionando nossos valores, crenças e fazendo com que o leitor se questione em relação ao que é e ao que poderá se tornar. É a partir da imagem do outro, que vamos construindo a imagem que temos do mundo e de nossos mesmos. Assim sendo, o discurso passará a ser entendido como uma ação que transmite toda uma ideologia e é a partir dele que as identidades são representadas.

Por circularem diariamente no meio social e apresentarem um jogo de vozes de forma dialógica, as charges podem torna-se um lugar decisivo no processo de construção de identidades. Essa multiplicidade de vozes são contrastantes e provocadoras do riso. O autor informa e também opina sobre um determinado fato, parafraseando ou parodiando por meio da representação de um mundo, satirizado pela própria inversão de valores sociais. Através da apropriação da realidade representada nesse gênero, o leitor constrói uma visão, ainda que parcial do meio ao qual está inserido.

Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivos analisar o discurso político em charges produzidas por Lila, publicadas no Jornal da Paraíba e observar como as identidades dos sujeitos são representadas nesse gênero a partir das interações discursivas. Ainda buscaremos identificar o que está por trás dos discursos apresentados neste gênero e caracterizar os sujeitos que estão sendo representados. O presente trabalho justifica-se pelo fato de poder analisar o gênero charge, contribuindo assim para que os leitores possam observar o que está por trás dos discursos que estão sendo materializados linguisticamente, auxiliando-os na construção de uma visão mais crítica diante dos textos que circulam na nossa sociedade.

O corpus da pesquisa é constituído de charges publicadas durante os meses de Março a Junho de 2009. Para efetuarmos a análise escolhemos as charges que retratavam especificamente fatores políticos, visto que este é um aspecto que está sempre sendo retratado nesse gênero. Desenvolvemos este estudo a partir de leituras tendo como base a Análise do Discurso de linha francesa, com ênfase nas implicações da construção de identidades, mediante as teorias de Pêcheux (1997) Foucault(1969), Bakhtin(1992), Orlandi(2008), Fernandes(2007), Hall(2006) e Bauman(2005). Estes autores serviram-nos para que pudéssemos compreender aspectos relevantes no que concerne a AD, como o que é discurso, quais as concepções de sujeito e como as identidades são construídas, reconstruídas e/ou transformadas.

Page 42: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

81

A análise do discurso: Um percurso histórico

A análise do discurso surge nos anos 60, na França, a partir da publicação de Análise Automática do discurso de Michel Pêcheux. Trata-se de uma disciplina de caráter transdiciplinar que surgiu do entrecruzamento entre o materialismo histórico, da Lingüística e da teoria do discurso. Gregolin (2003) diz que esses campos disciplinares são atravessados por a teoria subjetiva da Psicanálise, trazendo o inconsciente para o interior das reflexões.

Através do Materialismo Histórico, sobretudo com as idéias de Althusser, perceberemos que o discurso é materializado. Apoiado em Marx, Althusser (1974) apresenta os Aparelhos Ideológicos do Estado (a igreja, a nação, o judiciário, a escola, a mídia, etc). De acordo com o autor, cada uma dessas instituições possui uma ideologia diferente que serve para nos moldar, estabelecendo o que podemos ou não fazer. Não podemos fugir dos AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado) nem da ideologia que eles passam. Não conseguimos analisar o discurso fora dessas instituições porque é nelas que ele está amplamente marcado.

Com essa corrente, compreenderemos que é na e pela história que observamos as condições de produção do discurso, isto é, o porquê de um enunciado aparecer em determinado momento e lugar e não em outro.

Segundo Fernandes (2007, p.69), “a Lingüística será tomada como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação”. Será esta ciência que fornecerá a validação dos conceitos e procedimentos da AD, pois são os elementos lingüísticos que possibilitam a materialização dos discursos.

Através da teoria do discurso, passaremos a observar as condições de produção dos discursos. Isso implica dizer que é preciso considerar o contexto histórico-social em que são produzidos, a ideologia e os fatores que contribuíram para a sua formulação.

Da Psicanálise, por meio da releitura lacaniana de Freud com a idéia simbólica do discurso perceberemos que o inconsciente é estruturado por uma linguagem. Isso implica dizer que nem sempre dizemos aquilo que queremos. O nosso inconsciente é quem controla as nossas ações.

É a partir do cruzamento entre estes campos disciplinares que nasce a AD, se constituindo essencialmente como uma prática de leitura. Essa teoria metodológica, apesar de ter como um dos percussores Michel Pêcheux, teria surgido também a partir das inquietações de Althusser e Régine Robin sobre o ato de ler. (Possenti, 2001)

A Análise do Discurso surge em meio a rupturas e deslocamentos, por isso os conceitos inicialmente propostos por Pêcheux vão ser elaborados e reelaborados. Assim sendo, as noções de sujeito e discurso vão sofrer várias mutações na constituição da AD.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

82

Num primeiro momento, o sujeito é concebido como sendo assujeitado aos AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado) e tem a ilusão de ser a fonte do seu discurso, que por sua vez apresenta-se como homogêneo e fechado. Aos poucos, o sujeito passa a ser essencialmente descentrado, que se define agora como sendo a relação entre o “eu” e o “outro”. Para compreendermos a noção de sujeito na AD, na atualidade, é preciso nos reportarmos aos conceitos apresentados por Hall(1995). O autor cita três tipos de sujeito: o do iluminismo (centralizado, cartesiano, não sofre modificações); o sujeito sociológico (é formado e modificado, continuamente, em dialogo com a cultura e com as identidades presentes nela) e o sujeito pós-moderno (heterogêneo, complexo, ausente de identidade fixa). O sujeito para a AD é o pós-moderno, que não é fonte do que diz, muito menos tem uma identidade estável. Diante disso, Brandão (1993, p.43) diz que:

Na perspectiva da Análise do discurso, a noção de sujeito deixa de ser uma noção idealista, imanente; o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas como tal como existe socialmente, interpelado pela ideologia. Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, por que na sua fala outras falas se dizem.

Nesse contexto, percebe-se que o discurso não se constitui em algo

novo, o que é dito em algum momento já foi proferido. O sujeito não é fonte do que diz, ele apenas retoma discursos preexistentes. O novo se constituirá nas condições em que esse discurso é dito, que não serão as mesmas.

De acordo com Fernandes (2007) para analisar o discurso é preciso considerar o sujeito falando. Diante disso, é preciso observar a produção de sentidos como parte integrante desse processo, uma vez que um mesmo discurso pode ter diferentes sentidos, dependendo do lugar em que é produzido, da ideologia ao qual o sujeito que o pronunciou está filiado e das condições em que se deu a sua produção.

Segundo o mesmo autor (p.36):

O sujeito não é homogêneo, seu discurso constitui-se do entrecruzamento de diferentes discursos, de discursos em oposição que se negam e se contradizem. Ao considerarmos um sujeito discursivo, a cerca de um mesmo tema, encontramos em sua voz diferentes vozes, oriundas de diferentes discursos. A presença dessas diferentes vozes integrantes da voz de um sujeito, na Análise do Discurso denomina-se de Polifonia.

Page 43: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

83

De acordo com essa afirmação deste autor, podemos dizer que o sujeito discursivo é constituído na interação social, ele não é o centro do seu dizer, em sua voz, um conjunto de outras vozes se manifestam. O sujeito é polifônico e é constituído por uma heterogeneidade de discursos. A identidade em questão A todo momento somos condicionados por aquilo que somos e o que acreditamos. Isso quer dizer que os indivíduos constroem os seus significados a partir da interação por meio da linguagem. É através desse processo de construção de significados que as pessoas tomam consciência de quem são e constroem as suas identidades. Trata-se de uma atividade que está sempre se modificando, uma vez que a sociedade está em constante mudança, consequentemente mudamos a nossa forma de pensar e agir. A respeito disso, Murray (1989) apud Moita Lopes (2002, p.34) diz que:

A construção da identidade social é vista como estando sempre em processo, pois é dependente da realização discursiva em circunstâncias particulares: os significados que os participantes dão a si mesmos e aos outros engajados no discurso.

Hall (2006, p.38-39) ainda diz que:

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através dos processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento (...) Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo” sempre sendo formada. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso mundo exterior, pelas formas através dos quais nós imaginamos ser vistos pelos outros (...).

Diante dessas afirmações dos autores, podemos perceber que a nossa

identidade está sempre sendo construída, além do mais também somos produzidos de acordo com aquilo que pensam sobre nós. Em relação a isso Johtnston (1973) apud Moita Lopes (op.cit, p.35) diz que “a identidade é o que você pode dizer que é de acordo com o que dizem que você é”. Nós somos

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

84

produzidos por outros seres, portanto a nossa identidade não é uma construção individual, mas sim social, produzida de acordo com os interesses da classe dominante. Nem sempre agimos e pensamos da forma que queremos, mas porque uma força nos leva a isso.

Sobre esta questão Silveirinha (2001, p.4) diz que:

A identidade oscila constantemente entre aquilo que nos torna idênticos a nós próprios e aos outros e aquilo que, ao mesmo tempo, nos torna indivíduos únicos. A identidade é construída neste duplo movimento de assimilação e diferenciação, de identificação conosco e com os outros e de distinção de nós e dos outros.

Com isso, podemos perceber que o sujeito possui uma identidade fragmentada, possui não uma, mas várias identidades em diferentes momentos da sua vida. Até mesmo dentro de nós mesmos apresentamos identidades que, muitas vezes, tornam-se contraditórias ou mal resolvidas. Na medida em que vamos vivenciando novas situações, outras identidades vão surgindo. Por esta questão é que Silva (2006, p.13) afirma que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”. Assim sendo, a nossa identidade não é fixa, permanente, ela é transformada continuamente.

As identidades sociais não podem ser construídas fora do discurso, elas não estão intrínsecas aos indivíduos, mas surgem a partir da interação entre eles. É assim que as pessoas se tornam participantes nos processos de construção dos significados na sociedade. É por isso que precisamos compreender o discurso como sendo produzido em locais históricos e institucionais específicos.

A percepção do discurso como construção social coloca as pessoas como participantes nos processos de construção do significado na sociedade e, portanto, inclui a possibilidade de permitir posições de resistência em relação a discursos hegemônicos, isto é, o poder não é tomado como monolítico e as identidades sociais não são fixas. (MOITA LOPES, 2002, p.55) Quando nos engajamos no discurso, estamos ao mesmo tempo considerando o discurso do outro e reconstruindo a nossa identidade. Visto assim, podemos afirmar que desempenhamos múltiplas identidades, pois estamos sempre em contato com diferentes interlocutores, ora assumimos a identidade de professor, ora de aluno, confidente e assim sucessivamente. As pessoas não podem ser definidas apenas pela a sua cor, sexo, idade, visto que somos seres altamente complexos e heterogêneos.

A questão da identidade não está relacionada apenas ao que somos ou de onde viemos, mas, sobretudo, ao que nos tornamos. Como nós temos sido representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos

Page 44: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

85

representar a nós mesmos. Os sujeitos modernos precisam ser vistos não como iguais, mas sim como diferentes, visto que a sociedade moderna é marcada pela diferença e é nessas diferenças ou por meio delas que construímos nossas identidades.

Diante desses questionamentos, Silva (2007, p.112) enfatiza que:

As identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora sabendo que são representações, e que a representação é sempre construída ao longo de uma falta, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca ser ajustadas, idênticas, aos processos de sujeito que são nelas investidos.

Essa afirmação de que somos construídos a partir da relação com o Outro tem levado o sujeito pós-moderno a se policiar, como se estivesse a todo momento diante de um espelho. Diante disso, Bauman (2005, p.16-17) diz que:

As pessoas em busca da identidade se vêem invariavelmente diante da tarefa legitimadora de “alcançar o impossível”: essa expressão genérica implica, como se sabe, tarefas que não podem ser realizadas no “tempo real”, mas que serão presumivelmente realizadas na plenitude do tempo, na infinitude(...)

Baseado no que Bauman diz, podemos afirmar que paralelamente aos papéis sociais que exercemos e que determinam também as nossas identidades estão os estereótipos sociais que interferem diretamente nas ações as quais praticamos. Através deles, somos submetidos a determinados grupos que possuem ideologias diferentes das nossas e que inevitavelmente acabam nos influenciando. Além do mais, esses estereótipos estão vinculados à estrutura dominante e ao poder convencionado pela estrutura social ao qual pertencemos e acabam sendo os responsáveis pelo o preconceito e pela discriminação. O preconceito racial só existe porque o branco é um estereótipo na sociedade, é em razão desses seres que já estão consagrados que estamos o tempo todo julgando e sendo julgados pela visão dos outros. Somos ainda diretamente afetados pelas transformações que ocorre na sociedade. É por esta questão que as nossas identidades estão sendo descentradas, deslocadas ou fragmentadas. Essas transformações têm influenciado na descentralização do sujeito e, consequentemente, provocado uma “crise de identidade”, pondo em xeque a idéia que temos de nós mesmos.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

86

Hall (2006, p.7) afirma que: A chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. Fala-se em crise de identidade do homem pós-moderno por não haver mais um identidade unificada e estável. A identidade de um sujeito se faz a cada dia, pois ele está diante de tecnologias que o faz conhecer o mundo e é impossível não ser influenciadas por elas. Dessa forma, o homem não possui mais uma identidade local, mas integra a ela outras diferentes. A partir da modernidade, a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Num mundo dominado por um enorme repertório global e cultural, novas identidades estão constantemente construídas e reconstruídas. As nossas identidades nunca estão completas, são articuladas entre o passado, o presente e o futuro, em permanente construção. O gênero charge

A charge é um gênero textual que caracteriza-se por ser um texto visual, humorístico e opinativo, que critica um personagem ou um fato especifico. O termo “charge” é proveniente do francês e significa exagerar, carregar. Não se consegue determinar ao certo qual foi a sua origem, mas se acredita que teria surgido na França e a sua criação seria atribuída a Honoré Daunier, que por meio de desenhos publicados no jornal La Caricature, buscava criticar o governo da época, talvez por isso o foco dos conteúdos chargísticos seja a política, apesar de também outros fatos serem representados.

No Brasil, as charges surgiram da fusão entre a caricatura com a sátira, por volta do final do século XVII ao inicio do século XIX. Inicialmente foi ganhando espaço nos jornais e, aos poucos se tornou matéria. Hoje, está presente diariamente e aparece relacionada às outras sessões do próprio jornal.

Frequentemente, o foco nas charges é a política, ou melhor, a sátira política, isso se deve ao fato de ter surgido com o fim especifico de criticar e zombar de fatos ou situações reais. Aos poucos, a charge foi ganhando uma dimensão bem maior e hoje pode-se perceber que há uma critica a todas as modalidades da sociedade. Com o advento da internet, este gênero ganhou mais força e movimento.

Machado e Souza (2005, p.61) reportando-se a este gênero dizem que:

A charge pode ser definida como um texto visual, isso porque grande parte do efeito do sentido (quando não todo o sentido)

Page 45: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

87

se efetua por intermédio do desenho (da imagem produzida). Enfim, a produção de sentido nesse tipo de gênero possui relação direta com a realidade, e está amplamente ancorada no todo da imagem apresentada. O desenho, além de ser manifestação da arte, é também unidade portadora de sentido, sentido este que o locutor prefere revelar por meio do humor.

Diante dessa colocação, podemos dizer que as charges constituem-se num gênero que utiliza o humor para representar pessoas e situações através das imagens, apoiando-se, muitas vezes, num texto verbal. As linguagens verbais e não–verbais se articulam harmonicamente na produção de sentidos, mas vale salientar que nem sempre os sentidos estão expressos explicitamente nesse gênero. Muitas vezes, é construído justamente no que ficou por dizer. Em relação a isso, Lucena (2000, p.45) diz que “é no dito humorístico que se esconde o não-dito. E é neste silenciar que o sentido se constitui e se movimenta”. Nesse contexto, percebe-se que o conteúdo veiculado na charge expressa uma relação entre o que o enunciado diz e aquilo que ficou por dizer, por isso para a sua compreensão é de suma importância que o leitor possua um certo conhecimento de mundo, pois o mesmo precisará fazer inferências para entender a opinião ou a crítica representada neste gênero. De acordo com Pagliosa (2005, p.85), “as charges pressupõem um leitor informado e letrado”. A autora ainda acrescenta que:

A charge constitui um gênero textual que pode ser considerado de extrema riqueza quanto ao numero de vozes que nele intervêm e a ampla variedade de relações intertextuais que ele pode chegar a estabelecer com outros textos. Tais características fazem do texto chargístico um gênero textual especialmente apropriado para o exercício da leitura e desenvolvimento da capacidade de inferenciação, ao mesmo tempo que se constitui em um importante estimulo e empolgante desafio: o de ampliar o conhecimento de mundo visando ao aprimoramento da compreensão leitora( PAGLIOSA, 2005, p.86)

A representação de identidades nas charges

As charges a seguir demonstram a realidade política brasileira. Apesar desse gênero ser temporal , muitas vezes, percebe-se que mesmo com o passar dos tempos a sua leitura pode ser compreendida, visto que a situação no Brasil em relação ao discurso político não tem sofrido muitas mudanças, isso reflete justamente o perfil desse segmento no meio social, pois mesmo diante de tantas

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

88

transformações a impunidade ainda permanece constante, representando assim uma descrença do povo brasileiro. Partindo desses princípios, resolvemos observar o discurso político nas charges e como as identidades são representadas nesse gênero. Nesta análise, utilizamos 3(três) charges publicadas no Jornal da Paraíba. Vejamos a charge 01:

A charge acima foi publicada no dia 05 de Maio de 2009. Mesmo sendo bastante recente, percebe-se num primeiro momento que representa uma situação corriqueira na nossa sociedade, pois o discurso apresentado não representa algo novo, visto que a imagem que se tem de um político já é bastante comum entre nós. O humor presente no texto encontra-se no discurso de uma moradora de rua que quando indagada pelo filho sobre o que é preciso para ser um “verdadeiro político”, a mesma responde que basta “mentir convincentemente para conquistar os votos, depois de ganhar as eleições, aprender a se esconder do povo”. Temos aqui a representação de uma identidade de uma pessoa que apesar de pertencer a uma classe humilde, tem consciência do que os políticos fazem e não se deixa enganar facilmente. Diante disso, percebemos que não exercemos apenas uma, mas várias identidades e muitas vezes essas identidades são contrastantes. Segundo Moita Lopes (2002) a nossa identidade não é fixa, está sempre em processo de construção. É na relação com o outro que elas se constroem. Portanto, podemos perceber que a ironia do texto se concentra justamente na oposição entre as identidades que estão sendo representadas, pois se de um lado temos uma pessoa pobre, sem perspectiva de vida, de outro

Page 46: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

89

temos uma cidadã consciente, inconformada e informada sobre o que os políticos fazem depois de conseguir o voto do povo. Percebe-se ainda que o discurso apresentado pela moradora de rua não é neutro, pois pode-se notar a presença de várias vozes, uma vez que este é o pensamento apresentado por milhares de brasileiros. Outro aspecto interessante a se observar é o discurso do menino que demonstra interesse em saber o que é preciso para ser “um verdadeiro político”. Por trás desse discurso aparentemente inofensivo, temos o desejo de ter uma vida promissora, sem fazer muito sacrifício, nem se esforçar para isso.

Diante dos discursos apresentados, nota-se que todo discurso transmite uma ideologia e é justamente isso que contribui para a formação ou transformação das nossas identidades. Sobre esta questão, Silva (2007, p. 109) diz que:

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior das formações discursivas específicas.

Com base nessa afirmação deste autor, são as formações discursivas

que determinam a nossa identidade, uma vez que são as instituições aos quais pertencemos que dizem o que podemos ou não fazer. Assim sendo, não construímos nossas identidades, ela será o resultado daquilo que somos, do que acreditamos e do que nos tornamos. Vejamos a charge 02:

Esta charge foi publicada no dia 22 de Junho de 2009, momento em

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

90

no cenário político José Sarney está sendo acusado pelo o envolvimento nos “atos secretos”. Para compreender a crítica que está sendo feita, é preciso que o leitor esteja informado sobre o que está acontecendo no cenário nacional.

Temos no texto, a presença de três identidades que demarcam a situação política no país. Primeiro aparece o presidente Lula, autoridade superior que sobe no palanque em defesa de José Sarney, este por sua vez está numa situação de submissão fazendo elogios ao presidente porque sabe que somente ele pode anteceder ao seu favor. Por outro lado, temos um trabalhador comum, que não demonstra interesse pelo discurso que está sendo pronunciado.

Outro dado a observar na charge é que o presidente Lula e Sarney aparece de costas, enfatizando assim que o interesse deles é apenas a sua defesa perante a população, que no texto aparece representada apenas por traçados, é como se os mesmos não tivesse existência, nem consciência dos atos políticos. Ainda se pode observar que o discurso apresentado por Sarney, quando ele diz que “Lula é o cara” nos remete a popularidade do presidente na atualidade.

O humor da charge se concentra no trabalhador que ao dizer que o presidente é um cara “de pau” demonstra ser uma pessoa consciente, informada e que não se deixa enganar pelas falsas promessas. Pode ser perceber que enquanto o restante da população está parada escutando o que Lula tem para dizer, ele continua o seu percurso, como se estivesse dizendo eu tenho mais o que fazer, não me iludo mais não.

O discurso apresentado pelo trabalhador além de representar várias vozes, é carregado de ideologia que demarcam a sua identidade. Vejamos a charge 03:

A charge acima foi publicada no dia 29 de Maio de 2009 e apresenta dois discursos: o discurso sobre o menor infrator e o discurso sobre os

Page 47: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

91

políticos. Neste texto, podemos notar que várias identidades estão sendo representadas. Primeiro, temos o delegado: superior, que mantêm a ordem, autoridade, arrogante. Depois, temos o menor infrator: criança pobre, morador de rua e que comete um delito atrás do outro. Temos ainda a mãe do infrator: moradora de rua, humilde, responsável pelo filho e informada. Por trás do discurso apresentado pela mãe temos ainda a representação de outra identidade, a do político: ladrão, corrupto, influenciador e que não sofre impunidade. É nessa figura que se concentra o humor da charge, pois a intenção do chargista é justamente criticar o político. Através da ação cometida pelo menor infrator e da justificativa apresentada pela mãe na sua defesa, percebemos como somos influenciados pelos os que estão ao nosso redor. Dessa forma, constatamos que não construímos nossas identidades sozinhos, pois estamos sempre rodeando de pessoas que influenciam nossas crenças, valores e ideologias.

Os sujeitos que aparecem no texto se constituem como estereótipos sociais, uma vez que a imagens passadas em relação a estes perfis na sociedade são sempre as mesmas, com exceção apenas a mãe do infrator, visto que, na maioria das vezes, não esperamos que as pessoas da classe pobre sejam conscientes sobre o que acontece na sociedade. Estes estereótipos sociais trazem uma concepção cristalizada socialmente a respeito dos indivíduos e acabam gerando uma visão preconceituosa e discriminatória. Bauman (2004) diz que esses estereótipos são criados na sociedade e interferem diretamente na forma como somos vistos e nas ações que praticamos, pois através delas é que somos incorporados a determinados grupos e vamos compondo a nossa identidade.

Considerações finais Tendo em vista as análises realizadas nesta pesquisa, podemos concluir que nos textos midiáticos circulam vários discursos que exercem grande influência na construção de identidades, pois o que somos acabam sendo influenciado pelos significados que são construídos ao nosso redor. Outro fato constatado na nossa pesquisa é que as charges apresentam, pelo viés do humor, discursos aparentemente inofensivos, mas que revelam uma crítica aos valores, crenças e ideologias da sociedade. Por isso, para compreender este gênero é preciso que o leitor esteja informado sobre o que está acontecendo na atualidade, uma vez que exigirá do mesmo a inferenciação, estratégia de leitura que só será possível se possuir conhecimentos prévios em relação ao tema abordado. Ainda pode-se notar que as identidades representadas nesse gênero servem para demarcar os estereótipos sociais, revelando-se como uma visão preconceituosa e discriminatória dos papéis que acabamos assumindo.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

92

Diante do exposto, constata-se que a charge se constitui num gênero de extrema riqueza de ser explorado, uma vez que além de ser um texto humorístico e agradar aos leitores, apresenta uma multiplicidade de informações que nos fazem remeter a outros textos para a sua compreensão. Referências ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Tradução J. J. Moura Ramos. Lisboa, Martins Fontes, 1970. BRANDÃO, Maria Helena. Introdução a análise do discurso. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp,1993. FERNANDES, Cleudimar Alves. Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias. 2ª ed. São Carlos: Clara Luz, 2007. FOCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber, Tradução: L.F. Baeta Neves, Petrópolis: Vozes, 1969. GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Análise do Discurso: lugar de enfrentamentos teóricos. In: FERNANDES, Cleudemar Alves e SANTOS, João Bosco Cabral dos. Teorias Lingüísticas: Problemáticas Contemporâneas. Uberlânia: EDUFU, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. Guaracira Lopes Louro, RJ: DP& A, 2006. LILA. Jornal da Paraíba. Campina Grande, 05 de Maio de 2009. _____. Jornal da Paraíba. Campina Grande, 22 de Junho de 2009. _____. Jornal da Paraíba. Campina Grande, 29 de Maio de 2009. LUCENA, Ivone. O processo discursivo da charge/humor. In: Conceitos: Revista da ADUFPB. João Pessoa: UFPB, 2000, P.43-48. MENDONÇA, Rodrigues de Souza. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In: DIONISIO, Ângela Paiva e BEZERRA, M. A. e MACHADO, Ana Raquel (orgs.). Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, p.194 -207. MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Identidades fragmentadas: a construção da raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2002. ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2000. PAGLIOSA, Elcemira Lúcia Balvedi. Humor: um estudo sociolingüístico cognitivo da charge. Porto Alegre, RS: Edipucrs, 2005. POSSENTI, Sírio. Sobre leitura: o que diz a análise do discurso. In: MARILDES, Marinho(org.). Ler e navegar. Campinas, SP: Mercado de

Page 48: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

93

Letras, 2001, p.19-30. PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. Campinas: EDUNICAMP, 1990. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. SILVEIRINHA, Maria João. A conformação das identidades nas democracias liberais. Disponível em: www.ubi.pt/site_sociedade. Acesso em 20 de abril, 2008. SOUZA, M.I.P. de Oliveira e MACHADO, Rosimere Baltazar. O verbal e o não-verbal na produção de efeitos de sentidos no gênero charge. In: CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes e NASCIMENTO, Elvira Lopes (org.). Gêneros Textuais: teoria e prática II. Palmas e União da Vitória, PR: Kayangue, 2005, p.59-71.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

94

Page 49: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

95

ARGUMENTAÇÃO E DISCURSO POLÍTICO: O PAPEL ESTRATÉGICO DA PRESSUPOSIÇÃO COMO INTRODUTORA DE

INFORMAÇÃO PARTILHADA

Paulina de Lira Carneiro UFRR

Resumo

Concebida, inicialmente, como uma condição a ser satisfeita para o emprego normal de um enunciado, o enfoque atual sobre a pressuposição, no quadro da semântica argumentativa, enfatizará sua atuação como estratégia discursiva. Ao veicular implicitamente informação pressuposta, o locutor impõe um horizonte discursivo ao seu interlocutor, salvaguardando certos conteúdos de contestação posterior por parte deste último. Neste trabalho, enfocaremos o fenômeno semântico-pragmático da pressuposição, investigando sua presença no discurso político. Particularmente, procederemos a uma análise sucinta de um conjunto de excertos extraídos de dois discursos do presidente Lula. Procuraremos comprovar, a partir da perspectiva teórica de Ducrot (1977, 1987), que o uso de conteúdos implicitados sob a forma de pressupostos se reveste de caráter eminentemente argumentativo, constituindo mesmo uma estratégia discursiva do locutor, na medida em que impõe ao interlocutor a aceitação de um conjunto de informações colocadas como (supostamente) pertencendo ao domínio partilhado pelos interlocutores. Palavras-chave: Pressuposição. Argumentação. Discurso político. Abstract

Designed, initially, as a condition to be satisfied for the normal use of a statement, the current focus on the presupposition, in the argumentative semantics, emphasize its role as a discursive strategy. To convey information implicitly assumed, the speaker imposes a discursive horizon to his interlocutor, preventing some content that are subject to challenge by the interlocutor. In this work, we will focuse on the phenomenon of semantic-pragmatic presupposition, investigating their presence in political discourse. Particularly, we will outline an analysis of a series of excerpts from two speeches by President Lula. We will seek evidence, from the perspective of Ducrot (1977, 1987), that the use of content in the form of implicit assumptions is very argumentative, even forming a discursive strategy of the speaker in that it requires the to interlocutor acceptance of a set of information placed as (supposedly) being shared by both parties. Keywords: Presupposition. Argumentation. Political discourse.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

96

Introdução Objeto de estudo de uma longa tradição filosófica e foco de debates sobre sua natureza semântica e/ou pragmática no interior da Lingüística, a pressuposição consiste em um tipo de implícito ou conteúdo inferencial. Concebidos, segundo Levinson (2007), como inferências que “parecem estar embutidas nas expressões lingüísticas e podem ser isoladas usando testes específicos” (p. 211), os pressupostos são também condicionados por fatores contextuais ou pragmáticos. Neste trabalho, enfocaremos o fenômeno semântico-pragmático da pressuposição, investigando sua presença em um corpus específico, a saber, o discurso político. Inicialmente, apresentaremos um breve panorama teórico sobre a noção de pressuposição e, subseqüentemente, procederemos a uma análise sucinta de um conjunto de excertos extraídos de dois discursos do presidente Luís Inácio Lula da Silva Na análise dos referidos recortes textuais, procuraremos comprovar, a partir da perspectiva teórica de Ducrot (1977, 1987), que o uso de conteúdos implicitados sob a forma de pressupostos se reveste de caráter eminentemente argumentativo, constituindo mesmo uma estratégia discursiva do locutor. Breves considerações teóricas sobre a noção de pressuposição O interesse no estudo da pressuposição surgiu fora dos limites da Lingüística, no âmbito da Lógica, e uma extensa literatura de base filosófica foi produzida sobre o tema. O lógico alemão G. Frege foi o primeiro a abordar o fenômeno, ao discutir questões relativas à noção de referência. Frege observou que os nomes simples ou compostos empregados como sujeitos de uma asserção implicam na suposição de sua própria referência, ou seja, tais expressões pressupõem a existência dos seres por elas referidos. Assim, a célebre frase Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu na miséria, segundo Frege, veicula duas informações com status diferenciado, a saber:

a) existe alguém que descobriu a órbita elíptica dos orbitais. b) este alguém morreu na miséria.

Frege sustenta que a informação explicitada em a) não faz parte do conteúdo semântico afirmado na sentença, uma vez que é também compartilhada pela asserção contrária (ou negativa) e pela forma interrogativa da mesma. Desse modo, b) constituía o conteúdo efetivamente afirmado (ou posto) pela sentença, ao passo que a) correspondia a um conteúdo pressuposto. A relação de pressuposição seria, por sua vez, formulada nos seguintes termos: uma sentença A pressupõe outra, B, sempre que tanto a verdade como a falsidade de A, implicam a verdade de B (LEVINSON,2007).

Page 50: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

97

A pressuposição era, além disso, vista como uma condição a ser satisfeita para o emprego normal de um enunciado, de modo que as sentenças cujos pressupostos são falsos carecem de valor de verdade, isto é, não são avaliáveis em termos de verdade ou falsidade. De acordo com a análise fregeana, por exemplo, a frase O rei da França é calvo, que exibe um pressuposto existencial (pp.existe um rei na França) que se revela falso, não poderia ser considerada nem verdadeira nem falsa49.

Nos domínios da Lingüística, o enfoque atual sobre a pressuposição enfatiza, sobretudo, questões relativas a seu status de informação implícita e sua distinção face ao subentendido (ou implicatura)50, bem como sua atuação como estratégia discursiva.

Como vimos acima, os pressupostos são conteúdos implícitos, inferíveis a partir do posto, mas cuja verdade independe da verdade ou falsidade deste, isto implica dizer que os pressupostos de um enunciado estão imunes à negação. Por conseguinte, ao veicular implicitamente informação pressuposta, o locutor impõe um horizonte discursivo ao seu interlocutor, salvaguardando certos conteúdos de contestação posterior por parte deste último. Segundo Ducrot, o pressuposto é, de fato, “apresentado como uma evidência, um quadro incontestável no interior do qual a conversação deve necessariamente inscrever-se” (DUCROT, 1987, p.20, grifo meu).

Segundo Vogt (1977), a pressuposição estabeleceria uma espécie de “acordo de base” que o locutor impõe a seu interlocutor, instituindo, assim, uma “presunção de adesão dos auditores”, como ponto de partida para sua argumentação (id., ibid., p.265). Nesse sentido, Ducrot acrescenta ainda que a estratégia de manipulação discursiva empreendida pelo uso da pressuposição consiste justamente no fato de que o pressuposto é apresentado como se fora uma informação compartilhada51 pelos dois participantes do discurso, como pertencendo ao “nós”. A utilização de pressupostos permite, em última análise, ao locutor retirar-se da responsabilidade pelo que é dito, na medida em que partilha esta com o ouvinte, “disfarçando o que diz sob a aparência de uma crença comum” (DUCROT, ibid., p.21, grifo meu). Outros aspectos vinculados à teoria da pressuposição foram também

49 Levinson (2007) observa que, além das descrições definidas (como o sintagma nominal o rei da

França acima), outros fenômenos lingüísticos acionadores de pressupostos foram estudados já na perspectiva filosófica, a exemplo das orações temporais, as expressões nominais quantificadas e os verbos de mudança de estado.

50 Por razões didáticas e em função dos limites deste trabalho, não reproduziremos, nesta exposição, as discussões a propósito da distinção entre pressupostos e subentendidos, apresentadas em Ducrot (1987), para cuja referência remetemos o leitor.

51 Segundo Moura (1999), o conhecimento compartilhado compreende “um conjunto de proposições que são aceitas tanto pelo falante quanto pelo ouvinte” (p.17).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

98

revistos no quadro da semântica argumentativa. Além da subsistência frente a transformações sintáticas como a negação e interrogação – critérios clássicos para a detecção de pressupostos – Ducrot (1977, 1987) postulou um terceiro critério a fim de caracterizar o status da informação pressuposta, a saber, o encadeamento. Ducrot demonstrou que quando uma frase A, que encerra pressuposto, é encadeada a uma outra, B, produzindo uma frase complexa através de uma conjunção de coordenação ou subordinação, o elo de subordinação incidirá apenas sobre o conteúdo posto, não concernindo ao(s) pressuposto(s). A título de exemplificação, tomemos a frase Pedro parou de bater em sua mulher, que veicula como pressuposto Pedro batia em sua mulher no passado e, na categoria de posto, Pedro não bate em sua mulher atualmente. Se a inserirmos em uma frase complexa, encadeando sobre ela uma continuação discursiva tal como porque foi denunciado à polícia, constatamos que o elo de causalidade expresso agora se refere apenas ao conteúdo posto, mas não ao pressuposto. Ou seja, a denúncia à polícia é motivo para o marido em causa não bater mais na mulher hoje (posto), e não para que tenha batido nesta outrora (pressuposto). Os pressupostos seriam, pois, indicações colocadas “à margem da linha argumentativa do discurso” (DUCROT, 1987, p.38), o que eximiria o locutor de ter de discuti-los. Para Ducrot, “dizer que pressuponho X é dizer que pretendo obrigar o destinatário, por minha fala, a admitir X, sem por isso dar-lhe o direito de prosseguir o diálogo a propósito de X” (id., ibid., p. 42).

Ducrot (1988) analisou também a pressuposição no quadro da teoria polifônica da enunciação. Vale lembrar que o autor a descrevera, em princípio, em termos de atos ilocutórios. Assim, um enunciado como Pedro parou de fumar realizava, segundo Ducrot, dois atos de fala distintos, um de pressuposição, enunciando o conteúdo Pedro fumava anteriormente e outro de asserção, referente ao conteúdo posto Pedro não fuma atualmente. Verificou-se, contudo, a impropriedade de tal descrição, posto que os enunciadores não podiam ser responsáveis por um ato de pressuposição pelo fato de que consistem tão somente em pontos de vista que se expressam através da enunciação, e que, conseqüentemente, não detêm palavras em sentido estrito.

Logo, Ducrot retificará sua análise da pressuposição, postulando que os conteúdos pressuposto e posto consistem, na verdade, em pontos de vista sustentados pelos enunciadores E1 (informação pressuposta) e E2 (conteúdo posto), respectivamente. Assim, no exemplo supracitado (Pedro parou de fumar), o locutor põe em cena dois enunciadores, a saber:

E1 – pp. Pedro fumava antes E2 – p. Pedro não fuma atualmente O autor faz notar que o locutor assimila-se apenas a E2, ou seja, é

dado como responsável somente pelo que é posto ou afirmado no enunciado.

Page 51: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

99

No entanto, o locutor manterá relativamente a E1 (enunciador do pressuposto) uma atitude de aprovação, dado que este último é caracterizado como um enunciador genérico, uma voz coletiva, no interior da qual o locutor também se insere. O caráter semântico e/ou pragmático da pressuposição tem sido discutido ao longo dos anos e os pressupostos ora foram descritos como traços de frases ou sentenças (unidades semânticas teórico-abstratas), ora como inferências trazidas pelo enunciado (unidade concreta e pontual da língua em uso, de ordem pragmática, portanto). O próprio Ducrot, inclusive, inicialmente delegou os pressupostos ao componente lingüístico, e, posteriormente empreendeu uma revisão de seu ponto de vista, capitulando que nem todos os pressupostos de um enunciado estão previstos desde a significação da frase da qual ele é uma atualização (DUCROT, 1987). Logo, a despeito de estar intimamente ligada à estrutura superficial das sentenças, dado que é acionada por palavras ou construções lingüísticas específicas52, a pressuposição também exibe uma faceta pragmática, sendo sensível a fatores contextuais. Segundo Moura (1999), “a determinação do pressuposto depende do contexto (mais precisamente, do repertório de conhecimentos compartilhados dos interlocutores) e os pressupostos podem ser cancelados em algumas situações” (p.29). Por último, vale notar a natureza ambígua da pressuposição, descrita por Vogt (1977), que lhe confere originalidade enquanto recurso argumentativo. Para Vogt, ela “ganha em malícia e envolvimento, no que tem de implícito, e acrescenta em determinação e orientação do discurso, na medida em que explicita, pois que é lingüístico, mas se guarda, pois que é ato de preservação” (VOGT, ibid., p.266). A pressuposição como estratégia argumentativa no discurso político Nesta seção empreenderemos uma breve análise de excertos textuais de dois discursos proferidos pelo presidente Lula por ocasião de sua reeleição no pleito eleitoral de 200653. Procuraremos identificar a presença de

52 Com base em Levinson (2007), Moura (1999) cataloga as seguintes estruturas lingüísticas como

expressões introdutoras de pressuposição: descrições definidas, verbos factivos, implicativos e de mudança de estado, expressões iterativas e temporais, sentenças clivadas.

53 Os discursos adotados como corpus foram um pronunciamento feito pelo presidente em 30-10-2006, quando da confirmação de sua reeleição, e o discurso proferido por Lula em 14-12-2006, no ato de sua diplomação. Para fins didáticos, e em razão de sua ordenação cronológica, nas citações internas da análse, referiremo-nos ao primeiro como D1 e o segundo como D2. Ambos os textos foram obtidos em meio eletrônico, junto à versão on line do jornal Folha de São Paulo (www.folhaonline.com.br).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

100

pressupostos, tencionando evidenciar as estruturas lingüísticas responsáveis pela ativação de tais conteúdos, bem como o papel desempenhado pela pressuposição nas referidas seqüências.

Podemos constatar, nos recortes em exame, que as informações pressupostas atuam na construção de uma imagem positiva do primeiro mandato presidencial, colocada à margem de questionamentos, graças ao caráter incontestável dos conteúdos pressupostos. No trecho transcrito a seguir, podemos identificar uma série de pressupostos que corroboram a idéia de que o primeiro mandato de Lula trouxe conquistas em diferentes áreas, sedimentando, assim, uma situação confortável no momento em que o governante assumirá a presidência pela segunda vez.

(1) “E eu penso que tudo isso me dá a segurança de dizer a vocês que vamos fazer um segundo mandato muito melhor do que fizemos o primeiro. Muito melhor. Não tenho dúvidas de que o Brasil vai crescer mais. Não tenho dúvidas de que vai aumentar a distribuição de renda neste país. Não tenho dúvidas de que vai aumentar a consolidação da política externa brasileira. Não tenho dúvidas de que vai aumentar o combate à corrupção neste país. Não tenho dúvidas de que vai continuar o fortalecimento das instituições do país. [...] Todo povo brasileiro votou exatamente porque tem esperança de que as coisas podem andar mais rápido e ainda melhor do que andaram no primeiro mandato.” (D1) pp1. O primeiro mandato de Lula foi bom pp2. O Brasil já exibe um nível de crescimento (no momento da enunciação) pp3. existe uma política de distribuição de renda no país (no presente da enunciação) pp4. já há um processo de consolidação da política externa brasileira pp5. já há combate à corrupção no Brasil pp6. houve um processo de fortalecimento das instituições do país (no passado) pp7. as coisas andaram rápido e bem no primeiro mandato.

As estruturas comparativas presentes no início (muito melhor do que)

e final (mais rápido e ainda melhor do que) do recorte são responsáveis pela ativação dos pressupostos pp1 e pp7, respectivamente. Por outro lado, descrições definidas como “a distribuição de renda”, “a consolidação da

Page 52: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

101

política externa brasileira” e “o combate à corrupção” introduzirão um conjunto de pressupostos existenciais (pp3, pp4 e pp5). Outras estruturas lingüísticas atuam também nesta seqüência textual como acionadores de pressuposição, a exemplo de intensificadores adverbiais (mais, para o pp2) e verbos de mudança de estado (a locução verbal vai continuar, responsável pelo pp6). Através dos pressupostos acima, o locutor vai, de modo implícito, delineando um “pano de fundo” para o seu discurso, colocando como (pretensamente) conhecidas as (supostas) realizações empreendidas no seu primeiro governo. Com efeito, segundo Ducrot (1987), “introduzindo uma idéia sob a forma de pressuposto procedo como se meu interlocutor e eu não pudéssemos deixar de aceitá-lo” (p.20)

A pressuposição se revestirá, assim, da dupla função de avalizar as informações que deseja impor ao seu interlocutor (povo brasileiro) e, simultaneamente, salvaguardar o locutor (presidente Lula) de retratação. Isto se dá precisamente porque a pressuposição, como vimos acima (vide item 2), permite ao locutor, não só enunciar conteúdos colocados como compartilhados (e, portanto, supostamente, aceitos como verdadeiros), mas, igualmente, ao fazê-lo, retirar-se da responsabilidade pelo que é dito (uma vez que esta é repassada ao “nós”).

O emprego de descrições definidas será um expediente recorrente por parte do locutor, a fim de “relembrar”54 ao interlocutor os benefícios assegurados já no primeiro mandato. É o que constatamos nas duas seqüências a seguir.

(2)“Porque o povo sentiu na mesa, sentiu no prato e sentiu no bolso a melhora da sua vida. Mais importante ainda: o povo sentiu isso no seu cotidiano. Ele sentiu isso na vida dos seus amigos e na vida de sua família”. (D1) (3)”Temos, agora, o desafio de acelerar o crescimento econômico e avançar ainda mais na construção da justiça social, de modo a que o País garanta a todos os seus filhos e filhas os direitos essenciais da cidadania”. (D2)

54 A propósito, vale lembrar aqui a relação de anterioridade temporal do pressuposto frente à

enunciação, assinalada por Ducrot (1987). Segundo o autor, o pressuposto é da ordem de um “passado enunciativo”, por assim dizer, pois “mesmo que, de fato, nunca tenha sido introduzido anteriormente ao ato de enunciação, ele procura sempre situar-se em um passado do conhecimento, eventual ou fictício ao qual o locutor parece referir-se” (p.20).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

102

No trecho (2) transcrito acima, a nominalização expressa pelo sintagma a melhora de sua vida ativa o pressuposto de existência pp. A vida do povo brasileiro melhorou, e, igualmente, a descrição definida o crescimento econômico presente em (3) introduzirá a informação pp. há um certo nível de crescimento econômico (no momento da enunciação). Em (3) identificamos ainda outros dois pressupostos. Veiculando a idéia de que a justiça social é uma meta perseguida desde o primeiro mandato, temos o pp. O país já avançou, em alguma medida, no que concerne à construção da justiça social, acionado pela intensificador adverbial ainda mais. Por sua vez, o advérbio agora, ao introduzir o pp. Já enfrentamos outros desafios antes, referenda a qualificação do governo Lula para enfrentar os novos desafios do segundo mandato.

Os verbos de mudança de estado atuarão, de modo análogo, impondo ao interlocutor subliminarmente, sob a aparência de informação compartilhada, a aceitação de dados positivos referentes ao primeiro governo Lula. A título de ilustração, veja-se a ocorrência do verbo continuar e os respectivos pressupostos por ele ativados nos dois recortes a seguir.

(4)“Nós queremos continuar fortalecendo o mercado interno, fortalecendo as exportações. E eu penso que contra esses argumentos nós não temos adversários”.(D1) pp. O governo Lula vem fortalecendo o mercado interno e as exportações (5) “Continuaremos a governar o Brasil para todos, mas continuaremos a dar mais atenção aos mais necessitados. Os pobres terão preferência no nosso governo. As regiões mais empobrecidas terão no nosso governo uma atenção ainda maior, porque nós queremos tornar o Brasil mais equânime”. (D1) pp1. Lula governou para todos (no passado, em seu primeiro mandato) pp2.O governo Lula deu mais atenção aos mais necessitados (em seu primeiro mandato)

Em (5), além disso, a expressão comparativa ainda maior é responsável por ativar um terceiro pressuposto, qual seja, pp3. As regiões mais empobrecidas receberam atenção no (primeiro) governo Lula. Constatamos, particularmente, nesse último recorte, que a ênfase pressuposicional incide sobre o caráter popular do governo Lula, a sua meta

Page 53: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

103

prioritária da inclusão social. Saliente-se, aliás, que o presidente Lula se elegeu, alavancado pela imagem de “homem do povo” (dada a sua origem humilde) e o slogan de seu primeiro governo (e também do atual mandato) é justamente “Brasil, um governo de todos”. Essa imagem de governo (supostamente) popular é também reforçada, na medida em que o locutor enfatiza que as mudanças ocorridas no Brasil são fruto de um processo democrático, em que o próprio povo constitui-se como agente de transformação, uma vez que soube eleger um representante legítimo. É o que podemos observar no emprego da pressuposição nas seqüências abaixo:

(7) “As eleições que o Brasil acaba de realizar comprovaram de forma inequívoca a solidez e a maturidade da democracia política em nosso país”.(D2) pp. A democracia política no Brasil é sólida e madura (8) “Dou os parabéns aos mais de 100 milhões de brasileiros e brasileiras que, nos dias 1º e 29 de outubro, foram às urnas para manifestar, de forma livre e soberana, a sua vontade política” (D2) pp. O povo tem vontade política (9) “[...] A vitória não é do Lula, não é do PT, não é do PC do B, não é do PRB, do PMDB, não é de nenhum partido político, a vitória é eminentemente da sabedoria do povo brasileiro”.(D1) pp. O povo brasileiro é sábio (10)“Acabou-se o tempo, e quero afirmar isso com a maior convicção, acabou-se o tempo em que algumas pessoas ousavam dizer neste país, que eles diziam para o povo como é que o povo tinha que votar, acabou-se o tempo do voto de cabresto neste país, acabou-se o tempo em que o povo ia perguntar o que fazer na época da eleição, como votar”. (D2) pp. O povo não votava de acordo com sua vontade (antes do governo Lula)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

104

Nos recortes (7), (8) e (9), as descrições definidas (em grifo) atuam uma vez mais como ativadoras de pressupostos, ao passo que, em (10), o verbo de mudança de estado acabou-se, reiterado ao longo do trecho, desempenha essa função. Por fim, embora limitada, a amostra constituída pelos excertos examinados evidencia a presença da pressuposição como estratégia argumentativa privilegiada pelo locutor. Nas seqüências como um todo, julgamos que a ênfase conferida, pelo uso de pressupostos, às “conquistas” do primeiro mandato constroem uma garantia discursiva de que o (suposto) equilíbrio já assegurado será mantido, um salvo-conduto que credencia o locutor-presidente a assumir o governo pela segunda vez. Ecoando um velho slogan político, o locutor implícita: “Quem fez, fará...” Considerações finais De um modo geral, pudemos observar que a veiculação de conteúdos implicitados sob a forma de pressupostos exerce uma função argumentativa nos recortes analisados, na medida impõe ao interlocutor a aceitação de um conjunto de informações colocadas como (supostamente) pertencendo ao domínio partilhado pelos interlocutores. Proferidos na iminência do segundo mandato presidencial, esses discursos vão construindo, através do uso da pressuposição (evidenciado na amostra sob exame), uma imagem positiva do primeiro governo Lula, que se presume aceita e correspondente à realidade vivenciada pelos interlocutores do presidente, o povo brasileiro. Desse modo, a pressuposição revela-se para o locutor um recurso semântico-pragmático eficaz, dado que permite impor ao seu interlocutor um simulacro de realidade, sem que se lhe ofereça a possibilidade de discordância. Confirma-se, assim, nos excertos analisados, que, conforme preconiza Ducrot (1987), a pressuposição ”possibilita aprisionar o ouvinte em um universo intelectual que ele não escolheu, mas que lhe é apresentado como coextensivo ao próprio diálogo. Esse universo não pode ser mais negado nem questionado sem que o referido diálogo seja rejeitado em sua totalidade” (DUCROT, 1987, p.30). Por último, os resultados observados ao fim dessa breve análise, sob o viés da semântica argumentativa, autorizam-nos a concluir, na esteira de R. Ilari e W. Geraldi, que as línguas “servem a propósitos de envolvimento e pressão: a linguagem, em última análise, é um instrumento não informativo mas político”. (ILARI, GERALDI, 2006, p.83).

Page 54: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

105

Referências DUCROT, Oswald. Princípios de semântica lingüística; dizer e não dizer. Cultrix: São Paulo, 1977. _____. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. _____. Polifonia y argumentación; conferencias del seminário Teoría de la argumentación y análisis del discurso. Cali: Universidad del Valle,1988. ILARI, Rodolfo, GERALDI, João Wanderley. Semântica. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006. LEVINSON, Stephen C. Pragmática. Trad. Luís Carlos Borges, Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes, 2007. MOURA, Heronides M. M. Significado e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática. Florianópolis: Insular, 1999. VOGT, Carlos. O intervalo semântico. São Paulo: Ática, 1977.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

106

Page 55: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

107

A CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLINGUISTICA NO ENSINO DA LINGUA INGLESA

Mônica de L .N. Santana UEPB

Resumo

Visando a melhoria e o progresso do ensino de Língua Inglesa, acreditamos que a sociolingüística contribui no que diz respeito às competências lingüísticas de nosso alunado. Esta pesquisa tem como objeto de estudo a contribuição da sociolinguistica nas relações em salas de aula de língua inglesa em uma universidade de João Pessoa (PB). Temos o objetivo de fazer um breve histórico da sociolingüística, seguido de um corpus básico de análise a partir de recortes de gravação feita em sala de aula de língua Inglesa. O enquadre teórico para esta investigação privilegiam Bagno (2002), Bortoni - Ricardo (1996), Ribeiro & Garcez (1998) e Chianca (1999). Neste trabalho partiremos do pressuposto de que professores sensíveis às diferenças sociolingüísticas terão mais material para suas aulas baseado em variado material linguístico e desenvolverão estratégias interacionais mais positivas. Palavras- chave: sociolinguistica; Ensino; Língua inglesa. Abstract

Aiming the improvement and the progress of the English language teaching, we believe that the sociolinguistics contributes in what concerns the linguistics competences of our students. This research has as object of study the contribution of the sociolinguistics in the English classrooms relations in one university in João Pessoa (PB). We have as aim to make a brief historic of the sociolinguistic, followed by a basic corpus of analysis taken from records fragments done in the English classroom. Our theoretical frame for this investigation privileges Bagno (2002), Bortoni-Ricardo (1996), Ribeiro & Garcez (1998) and Chianca (1999). On this work we will start from the idea that professors sensitive to the sociolinguistics differences will have more material to the classes, based on varied linguistic material, and will develop more positive interactional strategies. Key-words: Sociolinguistics; Teaching; English Language.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

108

Introdução Este trabalho é o resultado de minha inquietação e preocupação como professora (e parte envolvida), a respeito dos (des)encontros nas relações sociolingüísticas em sala de aula de Língua Inglesa Instrumental, em uma universidade na cidade de João Pessoa. Um estudo que ter por fim compreender esta relação, partindo do pressuposto de que o discurso da sala de aula reflete normas, contradições e conflitos, acreditando que a discussão acerca da relação professor/aluno ainda oferece possibilidades diversas de investigação. Atualmente os profissionais da área de Lingüística Aplicada têm se preocupado em como inserir os conceitos da Sociolingüística no ensino de língua estrangeira na universidade. Portanto, como professores que somos não poderíamos ficar de fora! Visando a melhoria e o progresso do ensino de Língua Inglesa, acreditamos que a sociolingüística contribui no que diz respeito às competências lingüísticas de nosso alunado. Por este lado, a competência comunicativa e a cultural são indissociáveis como diz R. Legendre (1933, p.224).O autor estabelece uma equivalência entre elas e define a competência comunicativa como a competência sociocultural relativa aos modos de vida e aos valores de diversas crenças da comunidade lingüística. Na verdade, é uma ciência que estuda as línguas e sua relação com as sociedades que a usa e cujo objetivo é responder perguntas do tipo “quem fala o que”, “onde”, “quando”, “como” e “porque”, mostrando que as línguas são formadas de variedades de formas todas com a mesma veracidade. A sociolingüística e os dados de análise são a base, o ponto de partida para aqueles que assim como nós, estão envolvidos em entender e encontrar as dificuldades sociais presentes na educação. O nosso objetivo é fazer um breve histórico da sociolingüística seguido do corpus básico de análise a partir de recortes de gravação feita em sala de aula de língua Inglesa, sempre contando com o respaldo da sociolingüística. Neste trabalho partiremos da hipótese de que professores abertos às variações existentes no português do Brasil, sensíveis às diferenças sociolingüísticas desenvolverão estratégias interacionais em sala de aula que serão bem aproveitadas e usadas a seu favor. Um breve histórico A sociolinguistica firmou-se por volta da década de 60 aos cuidados de William Labov e é comumente denominada de sociologia variacionista, nos proporcionando como pesquisadores ferramentas para analisar uma variante na língua. A palavra “variante’ pode identificar uma forma que é usada ao lado de

Page 56: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

109

outra língua. Exemplificando temos o exemplo dado por Martelota (2008) onde exemplifica a variação nos pronomes pessoais na primeira pessoa do plural: “nós falamos” e “a gente fala” ambas variantes do presente do indicativo.As duas formas são aceitas, no entanto, a forma nós falamos é mais formal. Para sermos mais precisos, através da sociolinguistica podemos perguntar se há diferenças na comparação entre pessoas cultas e analfabetas, se há e quais são os verbos que motivam o uso de nós, em que contexto um falante deve usar que variante? É interessante mencionarmos aqui que através da sociolinguistica constatou-se que algumas formas não- padrões surgem na fala de pessoas com nível superior em circunstâncias informais. Um fato importante a ser dito é que na sociedade até os séculos XVII e XVIII as crianças na Grã-bretanha eram tratadas como pequenos adultos e não como seres que merecem dedicação lingüística e pedagógica especial. As faixas etárias eram mescladas, nas salas de aula muitos professores eram hostis, uma razão a mais para entendermos as relações entre alunos e língua inglesa. Desde seu primeiro estudo, em 1963 sobre o inglês falado na ilha de Martha’s Vineyard no estado de Massachussets muitos outros aconteceram entre eles estudos a respeito da estratificação social do Inglês falado em Nova Iorque (1966), a língua do gueto, o estudo sobre o inglês vernáculo dos adolescentes no Harlem entre muitos outros aconteceram. Graças à sociolingüística muitos estudos lingüísticos de comunidades foram realizados. Temos o espanhol falado no Panamá e o espanhol falado por porto-riquenhos nos Estados Unidos, o inglês falado na Inglaterra e em Belfast na Irlanda. No seu estudo Labov observou duas formas de se pronunciar o fonema /r/ pós-vocálico, que seriam: a presença do segmento fônico ( [r] ) vs. Sua ausência ( [ø) em contextos fonológicos idênticos. A letra r em posição final de palavra com em car, o /r/ foi ou expresso ou apagado; da mesma forma se dá com a palavra cart, o /r/ é realizado segundo uma ou outra das duas variantes. Os resultados mostram que a ausência do /r/ é condenada socialmente. O status social mais elevado de um falante corresponde o uso comum do [ r ]. Não existem, porém uma lei que defina o uso do [r] pós-vocálico como mal, ou incorreto. Tem-se apenas uma questão de atitude sociolingüística dos membros de uma determinada comunidade. Se formos observar na Inglaterra, a pronúncia do [r] pós-vocálico é condenada socialmente, situação esta diferente de Nova Iorque. A história conta que até a segunda Guerra Mundial em Nova Iorque a forma social de prestígio era a ausência do /r. A verdade é que a variação do /r/ pós-vocálico está de ponta cabeça, pois agora tem prestígio quem pronuncia o /r/ pós-vocálico. Através de Labov e da sociolingüística pode-se perceber os exageros de pronúncia e estudar as configurações sociais das comunidades em questão. A Ilha de Martha’s Vineyard foi estudada e tem-se encontrado nela duas maneiras distintas de se pronunciar a vogal núcleo dos ditongos /au/, como em house, mouse, e /ay/, como em right, might. Acontece que existe uma variante

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

110

mais recente e que foi trazida pelos veranistas invasores desta ilha. Mas, como saber e analisar tal situação? Graças à sociolingüística poderemos explicar a presença da variante e a forma lingüística intensa usada na comunidade. Os moradores antigos por sua vez começaram a mostrarem-se ofendidos com a invasão dos veranistas e a conseqüente exploração econômica resultante. Desta forma, os residentes tentaram demarcar seu território com atitudes lingüísticas e culturais com um perfil separado dos “invasores”. Pode-se observar através do ocorrido na ilha de Martha`s Vineyard que a língua falada por uma sociedade pode ser algo de relevante importância para a identificação de grupos sociais, étnicos e de faixas etárias diversa em uma mesma comunidade. A questão da língua inglesa Passemos agora ao nosso campo de atuação, a língua inglesa. A preocupação com a heterogeneidade lingüística na sala de aula começou a tomar corpo na América latina nos anos trinta com a implantação do Projeto Tarasco no México, em 1939 durante o governo de Lázaro Cárdenas. De acordo com Bagno (2002), foi a partir dos anos 60 que a língua na educação passou a ser vista como uma área de estudo acadêmica e de ação social. É importante lembrarmos que possuímos uma capacidade para o plurilinguismo dentro de nossa própria língua, seja em casa, na escola, no emprego. Tais análises de Hymes mostraram que as relações da linguagem são reguladas por protocolos sociais codificados que nos dão o direito a fala e a escolha de um tema. Essas relações lingüísticas de natureza interativas também ocorrem na língua inglesa. No que se refere à inserção da variação sociolingüística no Brasil, a variação está ligada a estratificação social e à dicotomia rural-urbano. O aluno é ratificado pelo professor e pelos colegas e começa a aprender a alternar palavras entre seu dialeto vernáculo e a língua estrangeira. Existe uma idéia muito repetida de que “fracasso escolar é fracasso lingüístico.” As escolas impõem que se aprenda e se os alunos fracassarem é porque não tem condições de evoluir. Geram-se expectativas de ambas as partes professores e alunos (às vezes representados pelos pais).

“Professores que nutrem expectativas altas em relação aos seus alunos provenientes da classe trabalhadora tendem a desenvolver estratégias de ratificação desses alunos. Estas estratégias, por sua vez, são facilitadoras do bom ajustamento do aluno à cultura escolar, inclusive de sua aquisição de estilos monitorados da língua.”

( BORTONI-RICARDO, 1996, p. 7)

Page 57: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

111

A sociolingüística teve impulso a partir dos anos 70, mas foi na década de 80 que se iniciaram os resultados práticos. Ela nos permitiu, por exemplo, uma reflexão sobre a relação entre os usos da língua na comunidade negra, nos guetos das cidades americanas agravado pela pobreza e o ensino da língua nessas escolas. As pesquisas mostraram que as crianças que pertenciam aos grupos minoritários tinham um desempenho escolar inferior ao da maioria nacional. O mesmo fato foi observado na Grã-Bretanha. Convém esclarecermos as confusões existentes nas definições entre inglês- padrão, correto, acadêmico. Segundo Stubbs (2002) uma etapa decisiva no debate sobre injustiça social foi retratado em um artigo escrito por Labov (1969) onde ele argumenta contra a tendência à condenar as crianças como ilógicas, simplesmente por que falam uma variedade não –padrão de inglês. Esta foi a resposta à idéia lançada pelos EUA de que se ensinasse as crianças variedades – padrão do inglês, isso resolveria seus problemas educacionais. Labov brilhantemente mostrou que essa idéia se baseava numa confusão em torno do conceito de “bom inglês”. A sociolingüística dos anos setenta lançava análises contrastivas de dialetos e ofereceu propostas de aplicação na solução de alguns problemas educacionais. De lá pra cá o animo em relação à educação bidialetal esfriou. Segundo Jenny Cook- Gumperz (1987), a sociolingüística educacional deixou importantes resultados:

1) Estabeleceu a legitimidade do dialeto negro nos EUA, legitimando a identidade social desses falantes e pregando o respeito às diferenças lingüísticas;

2) Forneceu descrições dialetais, fonológicas, gramaticais, lexicais, e etnográficos (características do Inglês negro);

3) Permitiu um melhor conhecimento cultural antes ignorado; 4) Adoção de métodos bidialetais no ensino (prevê o emprego de

metodologias de ensino de língua estrangeiras nos currículos de escolas) A familiarização com os eventos da fala da cultura negra favoreceu a introdução em sala de aula de estilos comunicativos e interacionais para facilitar a ambientação das crianças na escola. Etnógrafos como Brice- Heath (1982) e Philips (1972) comprovaram que as estratégias de recriação em sala de aula da cultura das crianças atingem bons resultados.

Analisando a gravação Aula de Inglês I para iniciantes realizadas em uma universidade da cidade de João Pessoa. (Doravante P será a abreviação para professora e A para aluno.)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

112

L1P: good morning. L2A: good morning. L3P:vocês fizeram o dever de casa? L4A: fizeeemos L5P:então vamos corrigir. Quem quer ler pra mim. Minha garganta hoje não esta muito boa. L6A: professora sua garganta esta sempre assim na segunda feira. Tava na farra né! L7(risos, sussurros). L8P: vamos quem quer ler. Edcleyson que tal? L9A:só leio se ganhar ponto. L10P: vocês sabem que terão três notas, não esqueçam disso!! se você ler bem pode ser que ganhe. L11A: Eita ! L12(o aluno fez a leitura de forma talvez heróica, quase todos eles provém de escola pública onde aulas de Inglês eram quase inexistentes. Era possível ouvir deboches risos, muito barulho devido ás conversas paralelas) L13A: nunca mais eu leio. Inglês é muito difícil eu não consigo ler esse negócio. L14(o aluno leu e a professora viu-se obrigada a dar um ponto na nota de participação) L15.muito bem, mas mesmo assim vou reler para vocês.. Minutos depois a professora corrige as questões e pede para repetirem as frases logo após ela. L16P: repeat please – Does she live in a big farm? ( os alunos repetem de formas diversas) Big faça o som do g. Não é bic de caneta. L17P: Does he live in a big farm? (silêncio e sussurro) L18P: yes, he does. Por que vocês não respondem? L19A: eu sabia mas tive medo de errar, L20A: eu respondo assim yes, she live in a big farm.Tá errado professora? L21Não, não, tá errado, mas eu prefiro que diga Yes, she does. Depois eu te digo por quê. L22A: Não sei pra quê aprender essa bexiga de língua. (vários alunos comentam que nunca irão conseguir pronunciar inglês por achar a língua muito difícil. L23P:e o certo é she lives coloque o s na terceira pessoa... (pausa, aparentemente cansada) porque vocês estão rindo do colega. Deixe-me falar. Ele está certo e se vocês continuarem assim são vocês que saem perdendo. A leitura contribui para a participação, entenderam? Vocês sabem que terão três notas, não esqueçam disso!

Page 58: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

113

Ah, vamos logo temos muito que fazer. Ainda estou no início da página temos muito que ver hoje antes da prova que está chegando. Por favor, parem e me escutem. Assim não dá. Vamos fazer silêncio!!! Vocês fizeram o dever de casa? Número um... descreva as características dos personagens de acordo com a leitura do texto feita em casa ( a professora lê o quesito em Inglês). L24A: não consegui fazer por que não entendi. Ainda não tenho dicionário. Vixi é muito difícil ler. L25P: quem fez? L26(silêncio e risadas. A professora vira a página contando quantos exercícios faltam a ser feitos ainda naquela aula.) L27P: vocês deveriam substituir as palavras por sinônimos encontrados no dicionário. Quem comprou o dicionário? L29( todos falam ao mesmo tempo explicando não terem o dicionário em mãos, nunca tiveram e não querem comprar) Obs: Público-alvo: bombeiros, policiais, donas de casa e jovens adultos Podemos observar nosso comentário no recorte L13 nunca mais eu leio. Inglês é muito difícil eu não consigo ler esse negócio, percebe-se que ao falar, o sujeito aluno da língua portuguesa transmite no seu discurso uma série de informações que permite ao ouvinte depreender seu estilo pessoal, bem como categorizá-lo em: raça, religião, classe social, entre outros. Os alunos desta turma são adultos com profissões bem diversas, bombeiros, donas de casa e não estão habituados a este mundo de leitura, de repetições e aprendizagem de sons, costumes, pronúncias diferentes de sua realidade cotidiana. Nesta mesma linha de raciocínio Labov e Harris (1986) argumentam que o sistema básico da língua não é adquirido nas escolas pelo contato com professores, nem tampouco pela exposição aos meios de comunicação de massa. Para eles, os traços lingüísticos não podem atravessar fronteiras. E agora? Será que a sociolingüística teria ou não contribuição a dar neste processo educativo? Para Bortoni-Ricardo (1996) é no campo da linguagem monitorada que as ações de planejamentos lingüísticos têm influência. Qualquer um de nós por mais escolarizado que seja passa por momentos de pressão psicológica em que recupera seu vernáculo, seu dialeto materno como no caso da pronúncia bic ao invés de big. Na prática fica difícil identificar o momento da mudança. Observando o recorte L12 (era possível ouvir deboches risos, muito barulho devido às conversas paralelas), segundo Goffman (cf. RIBEIRO & GARCEZ, 1998) existem regras para o início e término dos encontros entre os participantes, bem como exigências para que se sustente o diálogo. Podemos encontrar aqui um descomprometimento dos alunos uns com os outros e em relação à professora.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

114

“Há regras claras para o início e término de encontros, para a entrada e saída de certos participantes em particular, para as exigências que um encontro pode requerer de seus sustentadores...” (RIBEIRO & GARCEZ, 1998, p. 14)

Eu sabia, mas tive medo de errar, eu respondo assim yes, she lives in a big farm.Tá errado professora? Os falantes estão conversando com alguém de outro sexo superior, provavelmente sabedor da verdade, numa ocasião onde provavelmente ele será avaliado e que ao invés de ser um momento espontâneo será transformado em um momento formal e sofrido.Lembrando que os informantes escolhidos pertencem a profissões sem nenhuma espécie de relacionamento com a lingua inglesa. No recorte L16 repeat please... – Does she live in a big farm? ( os alunos repetem de formas diversas) faça o som do g. Não é bic.” Observamos um ponto interessante, o que Jerome Bruner (cf. Ribeiro & Garcez, 1998) chama de “andaimagem”. Um membro falante é mais competente que o outro. Ou seja, o professor repete a frase dita pelo aluno, mas apresenta uma variante padrão. A correção na pronúncia do adjetivo big mostra a dificuldade e limites sociais da comunidade em encaixar essa mudança em seu vocabulário. É importante salientar que as pesquisas realizadas na sociolingüística e lingüística aplicada mostram que há professores que atribuem valor negativo à variação, mas existem outros que vêem como característica natural dos alunos a serem corrigidas em sala de aula. Pesquisadores ligados à etnografia da comunicação - Hymes, Susan Philips, Courtney Cazden, Gumperz, Jenny Cook – Gumperz, Hugh Mehan e Fred Erickson identificaram na escola um fator importante no rendimento escolar proveniente de alunos de grupos minoritários devido à diferença em estilos de comunicação entre professor e alunos. No decorrer das aulas pode haver falhas de interpretação recíproca, o que os sociolinguistas denominam de comunidades de fala, ou redes de fala (Bortoni- Ricardo, 1985). As diferenças culturais no modo de falar e ouvir levam a dificuldades de entendimento em sala de aula. Como observamos na gravação, as diferenças culturais no modo de falar e ouvir decorrem de incongruências entre normas que regem a interação cultural. Isto se deve a diferentes razões sociais, étnicas, econômicas. Foi a partir da concepção da sociolingüística que pudemos esclarecer o polimorfismo a pluralidade de normas e todas as influências geográficas, históricas sociais que ocorrem no sistema lingüístico. A língua apresenta três tipos de diferenças internas:

1)Variações diatópicas são as variações de natureza espacial, as diferenças locais e regionais ou intercontinentais;

Page 59: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

115

2)Variações diastráticas são as variações determinadas por fatores sócio - culturais (nível culto ou popular, etc.) 3)Variações diafásicas são as variações determinadas pela situação ou ambiente em que esse encontra o falante.

A partir da consolidação da idéia de heterogeneidade lingüística iniciada por dialetólogos e etnólogos começaram a ser desenvolvido na década de 60 estudos que agruparam o aspecto social ao lingüístico. Segundo Chianca (1999), o discurso que está socialmente e culturalmente situado e obedece as regras do funcionamento das conversações e trocas comunicativas, não é universal, pois varia de uma sociedade para outra, de uma época para outra., ou de um interior para outro como no exemplo da gravação. Gostaríamos poder ter a chance de gravar os alunos em outros tempos revisitá-los anos mais tarde para ver como andam na colocação de pronomes na terceira pessoa do singular e o uso do /r/ em fim de palavras. Estudos na área da etnografia da comunicação mostraram que variações entre as diferentes culturas afetam a forma como se concebe e se organizam as trocas comunicativas. Nesta visão da comunicação, é indispensável que os participantes da trocam estejam simultaneamente à escuta um do outro, concordando coma qualidade do assunto. Chianca ainda afirma ao qual concordamos que a variação cultural está em todo o lugar e pode vir a afetar todos os aspectos. É capaz de se localizar em todos os níveis do funcionamento das interações, sem que se limite às diferenças do sistema lingüístico. Considerações finais A sociologia educacional entrou nos anos 90 organizada a repensar o caminho percorrido e fazer prognóstico para sua ação no futuro. Enquanto isso, no microcosmo da sala de aula ocorre uma variedade lingüística que pode ser de natureza regional, social ou estilística. Acreditamos que seja preciso estabelecer um diálogo com o professor através de pesquisas para que ele se enriqueça, seja um ser reflexivo e crítico de suas ações. Fica evidente que o pesquisador observador da sociolingüística necessita participar da interação, ou estar bastante interessado na comunidade de falantes. Neste trabalho queremos mostrar a contribuição da sociolingüística, alertando à necessidade de se respeitar as diversas formas lingüísticas empregada pelos alunos. Acreditamos que o professor de língua pode favorecer o igualitarismo social, participando da socialização dos jovens. Finalizando, é preciso que se estabeleça um diálogo com o professor por meio de pesquisa que o enriqueça e torne-o apto a promover uma auto-

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

116

reflexão e uma análise crítica de suas ações. Optamos por professores que serão parceiros na condução da pesquisa e das ações que em sala de aula facilitarão a aquisição dos amplos recursos comunicativos. Referências bibliográficas BAGNO, M.; STUBBS, M.; GAGNÉ, G. Língua materna, letramento, variação & ensino. Parábola ed. 2002. BORTONI, S. M..O debate sobre a aplicação da Sociolingüística à educação In: ANAIS DO ENSINO. Simpósio do GT de Sociolingüística da ANPOLL. 1996. P.17-30. BORTONI, S. M. A contribuição da Sociolingüística para o desenvolvimento da educação: dos anos setenta aos noventa. In: Fotografias Sociolingüísticas II. Univ.Brasília. No prelo. CHIANCA, Rosalina. (1999). Interagir em langue étrangère: une affaire sócio- culturelle, In: MOARA Estudos Lingüísticos- Revista dos Cursos de Pós- Graduação em Letras, UFPA, nº 11, Belém: editora Universitária / UFPA. p. 65- 84. GUMPERS, J.C. The social Construction of Literacy. Cambridge. CUP. 1987. MARTELOTTA, M.E. (org.) Manual de lingüística. São Paulo. Contexto. 2008. RIBEIRO, B.T.& GARCEZ,P.M. Sociolingüística Interacional. Antropologia, Lingüística e Sociologia em Análise do Discurso. AG ed. 1998. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo. Ática ed. 1986.

Page 60: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

117

A (RE)CONFIGURAÇÃO E/OU (RE)CONSTRUÇÃO DA(S) IDENTIDADE(S) DE PROFESSORA: UM ELEMENTO DA

INOVAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA?55

Milene Bazarim

UNICAMP/CNPq56

Resumo: O objetivo deste trabalho é descrever e analisar como os alunos de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental de uma escola pública da periferia de Campinas-SP (re)configuram e/ou (re)constroem a(s) identidade(s) de professora em cartas trocadas entre esses alunos e a sua professora de Língua Materna (LM) durante os anos de 2004, 2005 e 2006. Este trabalho se insere no campo de estudos da Linguística Aplicada (doravante LA), podendo ser caracterizado como uma pesquisa qualitativa de base interpretativista. As análises são orientadas pelas concepções de identidade advindas dos Estudos Culturais (HALL, 1992; SILVA, 1997; WOODWARD, 1997), pelos estudos da interação professor-aluno inspirados na sociolinguística interacional (GARCEZ, 2008; BAZARIM 2006, 2008), bem como nos estudos sobre referenciação oriundos da análise conversacional de inspiração etnometodológica (MONDADA; DUBOIS, 2003). Palavras-chave: categorização, identidade, língua materna, Linguística Aplicada, Estudos Culturais. Abstract

This research aims at describing and analyzing how students from 5th and 6th grades of a public elementary school in the periphery of Campinas –SP (re) configure or (re) construct the identity(es) of the teacher figure in their letters to their mother tongue teacher during the years 2004, 2005 and 2006. This study is theoretically based on Applied Linguistics (AL) and can be characterized as a qualitative research. The analyses are guided by the

55 Este trabalho contribui com as investigações referentes às práticas de reflexão sobre a escrita,

desenvolvidas no âmbito do projeto integrado Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em contextos de ensino (CNPq n.º 520427/2002; Auxílio FAPESP n.º 2002/11837-4). Agradeço ao Prof. Dr. Moacir Lopes de Camargos pela leitura atenta e pelas sugestões feitas à primeira versão deste trabalho.

56 Doutoranda do programa de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL. E-mail: [email protected]

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

118

conceptions of identity originated from the Cultural Studies (HALL, 1992; SILVA, 1997; WOODWARD, 1997), the studies of teacher-student interaction, inspired by Interactional Sociolinguistics (GARCEZ, 2008; BAZARIM 2006, 2008), and the studies about reference, derived from conversation analysis, a research tradition that grew out of ethnomethodology (MONDADA; DUBOIS, 2003).

Key-words: categorization, identity, mother tongue, Applied Linguistics, Cultural Studies.

Introdução

Muito se tem ouvido falar sobre a chamada “crise da identidade”

(HALL, 1992/2006, p. 9; WOODWARD, 1997/2000, p. 19, JACOME, 2008), uma crise que só ocorre quando as identidades, antes tratadas como algo fixo, coerente e estável, passam a ser percebidas como socialmente construídas (SILVA, 1997/2000) e, por isso, fluidas, fragmentadas e instáveis. A chamada “modernidade tardia” (HALL, 1992/2006), ou pós-modernidade, torna-se, então, o momento propício para isso, pois as várias transformações globais – entre elas a convergência de culturas e estilo de vida – têm afetado as características da vida contemporânea e, com isso, desestabilizado as identidades.

Essa desestabilização teria conseguido ultrapassar os muros da escola a ponto de afetar identidades tratadas tão essencialmente como as de “professor” e “aluno”? Em Santos (2000), fala-se de uma nova ordem mundial e de uma outra globalização, em Garcez (2008), apontam-se os indícios de “uma nova ordem comunicativa” na organização social da fala-em-interação da sala de aula contemporânea; então, seria possível falar também em uma (re)construção e/ou (re)configuração das identidades de “professor” e “aluno”? Em que medida aceitar ou, pelo menos, não ignorar que essa “crise de identidade” também se estabelece nas salas de aula, no que diz respeito às identidades de “professor” e “aluno”, pode trazer impactos para o processo de ensino-aprendizagem?

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa de base interpretativista57, este trabalho de forma alguma pretende dar uma resposta definitiva a questões tão amplas quanto essas (nem teria instrumentos para tal). Contudo, os resultados aqui apresentados, intimamente relacionados aos fatores contextuais

57 Mais especificamente, trata-se de uma pesquisa-ação, já que sou a professora cujas ações estão

sendo analisadas e também a pesquisadora que está analisando. Uma discussão a respeito das implicações dessa metodologia na construção dos objetos de pesquisa pode ser encontrada em BAZARIM, 2006.

Page 61: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

119

de gerações dos registros analisados, apontam a necessidade de tais questões serem levantadas e investigadas em diferentes contextos. No processo de análise dos registros disponíveis, surgiram outras perguntas, não sem relação com as anteriores, que são aqui colocadas e respondidas: 1) Como as identidades de professora são (re)configuradas e/ou (re)construídas nas cartas escritas pelos alunos? 2) As identidades (re)configuradas e/ou (re)construídas nas cartas são conflitantes, divergentes, dinâmicas e/ou essenciais, estáveis e fixas? 3) Há algum impacto dessa (re)configuração e/ou (re)construção identitária na inovação dos processos de ensino-aprendizagem de LM?

As perguntas anteriormente colocadas partem da premissa de que há uma (re)configuração e/ou (re)construção da(s) identidade(s) de professora. Isso se deve ao fato de que estou aderindo à concepção pós-moderna, na qual a identidade é concebida como um processo provisório e variável que é (re)definido historicamente e não biologicamente (HALL, 1992, p. 12-13). Ao aderir a essa concepção, estou aceitando também a idéia de que dentro de cada indivíduo “há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 1992, p. 13).

Essa fluidez das identidades, no entanto, pode não ser tão perceptível ao “eu” quanto o é para o “outro”, ou seja, as nossas contradições parecem ser muito mais visíveis ao “outro”. É por esse motivo que optei por partir das cartas escritas pelos alunos para a professora a fim de identificar, descrever e analisar a (re)configuração e/ou (re)construção da(s) identidade(s). O caráter contextual, logo movediço e provisório, das identidades pôde ser flagrado através dos processos de referenciação utilizados pelos alunos em suas cartas para categorizar a professora.

Tenho consciência de que a(s) identidade(s) não está (estão) na língua, mas também de que é através da língua, enquanto discurso, que as identidades são construídas, contestadas e reconstruídas (PENNA, 1998; MAHER, 1998)58. Por isso, neste trabalho, estou aderindo a uma concepção de referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003) compatível com a de identidade. As categorizações, nessa concepção, não são tratadas como algo pré-existente e independente dos contextos, mas sim como algo construído e transformado no decorrer da interação a partir dos contextos.

Os resultados desse esforço de construção de um objeto de pesquisa que considere a complexidade do real e a transdisciplinaridade (SIGNORINI, 1998; PENNYCOOK, 2006) foram distribuídos nas três partes que seguem.

58 Maher (1998) afirma estar convencida de que é no uso da linguagem que as pessoas constroem e

projetam suas identidades. “É, assim, o discurso, isto é, a linguagem em uso, e não qualquer materialidade linguística específica (...) quem cria e faz circular o sentido de “ser índio”. (MAHER, 1998, p.117). Assim também acredito que é no discurso que podem ser encontrados alguns dos sentidos de “ser professora”.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

120

Após essa breve introdução, apresento, sucintamente, uma visão histórica a respeito do conceito de identidade, detendo-me, sobretudo, na concepção pós-moderna, quando se torna possível discutir o papel do contexto na (re)configuração e/ou (re)construção das identidades. Na terceira parte, apresento: 1) a metodologia que foi utilizada para a análise do corpus; 2) como os alunos (re)configuram as identidades de professora; 3) a análise de dois casos que demonstram a instabilidade no processo de construção das identidades. Para concluir, nas considerações finais, discuto os possíveis impactos desses resultados no estudo que venho realizando sobre a inovação processo de ensino-aprendizagem de LM. Identidade: um breve percurso histórico

Identidade é um dos conceitos que, na modernidade tardia, tem sido o

foco de vários estudos nas ciências contemporâneas, entre elas os Estudos Culturais e a Linguística Aplicada. Não se trata, todavia, de um conceito novo, mas de um conceito que tem sido abordado por perspectivas diferentes, recebendo constantes ressignificações. Trata-se de um conceito complexo que ainda não pode ser colocado definitivamente à prova (HALL, 1992/2006, p. 8).

Em um breve percurso histórico, é possível destacar três abordagens desse conceito: a iluminista, a sociológica e pós-moderna. A abordagem iluminista de identidade, também conhecida como racionalista, encontra o contexto ideal para seu desenvolvimento e aplicação nas sociedades do século XVIII: a decadência do mundo medieval, centrado na idéia de Deus, dá lugar ao Iluminismo, “centrado na imagem de um homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância” (HALL, 1992/2006, p. 26). Há o nascimento de um indivíduo soberano, a pessoa humana é compreendida

(...) como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele ao longo da existência do indivíduo.” (HALL, 1992/2006, p. 11-12)

Essa é uma abordagem essencialista e individualista da identidade e

está inteiramente relacionada à forma cartesiana (“cogito, ergo sum”) como o sujeito era concebido: uma entidade indivisível, singular, distintiva e única (HALL, 1992/2006, p. 25).

A concepção iluminista é revista na modernidade, sobretudo na primeira metade do século XX, quando a complexificação das sociedades e,

Page 62: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

121

por conseguinte, dos modos de viver e de compreender o mundo, são alterados significativamente. Nesse contexto, a biologia darwiniana – que propiciou o surgimento de um sujeito humano biologizado – e as novas ciências sociais – resultado de uma divisão entre as ciências sociais, a psicologia e outras disciplinas – são determinantes para a revisão do conceito de identidade.

Aliado a isso, a [nova] organização social dos indivíduos, mais coletiva, vai permitir uma abordagem mais interativa da identidade e do “eu” (HALL, 1992/2006, p.11). Passa-se a ter a consciência de que o

núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito valores, sentidos e símbolos – a cultura dos mundos que ele/ela habitava. (HALL, 1992/2006, p. 11)

Embora concebido de uma forma mais social – “o indivíduo passou a

ser visto como mais localizado e ‘definido’ no interior dessas grandes estruturas, formações sustentadoras da sociedade moderna” (HALL, 1992/2006, p. 30) –, nessa concepção sociológica ainda se acreditava que o sujeito possuía um “núcleo” ou “essência interior”.

Levada ao extremo, a concepção chamada de sociológica resultou em uma abordagem radicalmente interativa do processo de identificação, na qual era defendida a idéia de “internalização” do exterior no sujeito e “externalização” do interior através do mundo social (HALL, 1992/2006, p. 31).

Uma concepção de identidade descentrada, fragmentada, instável só vai ter lugar na modernidade tardia ou pós-modernidade. Essas mudanças na forma de conceber as identidades estão inteiramente associadas ao processo de globalização, o qual torna evidente que as sociedades modernas são sociedades da mudança constante, rápida e permanente. Isso só foi possível devido às rupturas nos discursos do conhecimento moderno provocadas: 1) pelo pensamento marxista; 2) pela descoberta do Inconsciente por Freud, com consequente nascimento da Psicanálise; 3) pela linguística estrutural de Saussure; 4) pelos estudos de Foucault sobre o poder disciplinar; 5) pelo surgimento da política de identidade.

Nesse cenário, instaura-se, então, a chamada “crise de identidade”, pois se percebe que uma identidade unificada, completa e coerente não passa de uma fantasia.

O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

122

contraditórias ou não-resolvidas. (...) O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 1992/2006, p. 12)

Assume-se que as identidades são construções tanto simbólicas quanto

sociais. E as mudanças se dão não apenas em nível global e nacional, mas também nos locais e individuais (WOODWARD, 1997/2000, p. 10 e 28). O sujeito passa a ser confrontado como uma multiplicidade de identidades possíveis com as quais poderia, mesmo que temporariamente, identificar-se (HALL, 1992/2006, p. 13).

Os indivíduos vivem no interior de um grande número de diferentes instituições, que constituem aquilo que P. Bourdieu chama de “campos sociais”, tais como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos de trabalho ou partidos políticos. Nós participamos dessas instituições ou “campos sociais” exercendo graus variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos. (WOODWARD, 1997/2000, p. 30)

É somente na pós-modernidade, portanto, que se torna possível

estabelecer uma relação entre identidade e contexto, uma relação que é mais complexa, nebulosa e instável do que o imaginado. Dada a natureza dessa relação entre identidade e contexto, podem surgir os seguintes questionamentos: 1) cada contexto estaria fatalmente ligado a uma identidade ou mesmo em um contexto específico podem emergir diferentes identidades? 2) Uma determinada identidade estaria fadada a emergir em um único contexto ou poderia aparecer em contextos diversos? Dito de outra forma, tendo em vista o corpus que estou analisando: 1) Na interação que se estabelece entre professora-alunos, a “professora” seria sempre e somente “professora”? A identidade de “professora” seria algo restrito ao espaço da sala de aula?

Para que esses questionamentos se tornem viáveis não é possível conceber o contexto apenas com um pano de fundo, ou seja, como um quadro estável de referências, ou como referências que podem ser recuperadas, por exemplo, na fala-em-interação após o processo de entextualização (BLOMAERT, 2008, p. 92); mas sim como uma construção e, sobretudo, como um conceito teórico (HANKS, 2008). Para Hanks (2008, p. 174), o contexto é algo estritamente baseado em relação: “Não há um contexto que não seja ‘contexto de’ ou ‘contexto para’” (HANKS, 2008, p. 174). Para fins analíticos,

Page 63: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

123

assumir que tanto as identidades quanto os contextos são construções traz implicações, pois também é preciso assumir a incerteza e a fluidez das interpretações.

Tendo em vista os dados analisados, a meu ver, as identidades não estariam fadadas a emergir somente em contexto; caso contrário, nas cartas, não se teria a (re)configuração e/ou (re)construção da identidade de professora, mas sim, a emergência de uma outra. Mesmo em um outro espaço interacional que não a sala de aula, a identidade de professora – e também de aluno – não é abandonada, mas sim (re)configurada e (re)construída, em um processo cheio de idas e vindas, contradições e tensões, conforme será demonstrado na seção a seguir.

A (re)configuração e a (re)construção da(s) identidade(s) de professora Algumas considerações metodológicas

Ter assumido as aulas de Língua Portuguesa a um mês do término do

ano letivo de 2004 e após consecutivas trocas de professores gerou uma situação de instabilidade e tensão que foi agravada pelo discurso desqualificador59 a respeito dos alunos, da escola e do bairro a que tive acesso antes de iniciar as minhas atividades como professora na escola em que foram gerados os dados analisados para a elaboração deste trabalho.

Diante de um quadro pouco animador, foram criadas algumas estratégias que pudessem, se não reverter, ao menos amenizar essa tensão. Entre essas estratégias está a troca de cartas. A princípio, o objetivo da troca era promover a minha aproximação, enquanto professora, com as turmas, mas também gerar uma situação espontânea a partir da qual pudesse ser feito um diagnóstico das habilidades de escrita dos alunos. As cartas, portanto, não se constituíram como um objeto de instrução em sala de aula, mas sim como uma atividade extraclasse, com adesão voluntária. Como houve uma boa receptação dos alunos, a troca de cartas se expandiu para os anos de 2005 e 2006, mas não com os mesmos objetivos.

59 (Ele) Fez-me várias observações um tanto quanto negativas sobre o bairro, mas com o intuito de

me informar, já que eu disse que não era de Campinas. Ele me disse que se trata de uma população carente; que há muita violência, principalmente por causa do tráfico de drogas... E que os alunos, às vezes, são violentos também... (Diário de campo, p. 3, 05/10/2004)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

124

A interação entre professora e alunos mediada pelas cartas tem sido considerada por mim como um dos elementos do processo de inovação60, cujos significados e impactos estou descrevendo e analisando61, porque: a) permitiu o surgimento de um novo espaço interacional; b) possibilitou a exercício da escrita como uma prática social; c) provocou o surgimento de um novo papel interacional, o de interlocutor interessado (BAZARIM, 2006; 2006a; 2008).

Apenas com as cartas trocadas em 2004, no entanto, não havia sido possível perceber que esse novo espaço interacional também poderia ser o locus para a (re)configuração e/ou (re)construção de identidade(s). No momento, detenho-me na(s) identidade(s) de professora, mas é possível que o mesmo tenha ocorrido em relação à de “aluno”.

Neste trabalho, (re)configuração e (re)construção são consideradas como processos diferentes. Assim como é comum, sobretudo, entre os profissionais da informática, entender (re)configuração como o ajuste das “características de um componente, dispositivo ou computador, de modo a permitir que este funcione harmoniosamente com os demais elementos a que está conectado” (Dicionário Houaiss); aqui, entendo (re)configuração como o processo pelo qual o aluno, dando prosseguimento ao tom da interação iniciada pela primeira carta recebida da professora, adiciona novas categorizações positivas à “professora”. No processo de (re)configuração não há contradição e/ou divergência, o que não significa que ele seja estável e fixo.

Já a (re)construção pressupõe que algo, anteriormente construído, tenha sido desconstruído e novamente construído, adquirindo com isso novos significados. Nas cartas analisadas, a (re)construção é um processo quase dialético em que, em um primeiro momento, a categorização positiva da “professora” é desconstruída pelo aluno e em seu lugar emerge categorização negativa. Posteriormente, essa categorização negativa é novamente substituída por outra categorização positiva. Como se pode perceber, ao contrário da (re)configuração, a (re)construção é um processo descontínuo.

Para a elaboração deste trabalho foram utilizadas 64 cartas trocadas com 32 alunos nos anos de 2004, 2005 e 2006. Dessas, 44 foram escritas pelos

60 Estou aderindo à concepção proposta por Signorini (2007), na qual a inovação é concebida como

um movimento constante, no sentido de transformação, mantendo uma relação de interdependência com os contextos em que foi inserida. Sendo um elemento de um processo complexo, a inovação é dinâmica, deixando de existir quando não pode ser mais re-criada. Entendida dessa forma, sempre que emerge na escola, a inovação pode gerar transformações significativas nas práticas antes cristalizadas no/pelo letramento escolar, adquirir novos significados (re-criação da inovação) ou mesmo ser rejeitada dada a sua característica de (des)construção e (re)construção de práticas estabelecidas.

61 Projeto de doutorado em Linguística Aplicada, IEL-UNICAMP, “Os significados da inovação nas aulas de língua materna e seus impactos no letramento escolar de alunos de quinta e sexta séries do ensino fundamental”, iniciado em 2008 sob a orientação da Profa. Dra. Inês Signorini.

Page 64: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

125

alunos e 20 pela professora. Esse corpus é o resultado de uma pré-seleção feita entre mais ou menos 500 cartas de que disponho. O intuito dessa pré-seleção era verificar se nas cartas havia qualquer indício que apontasse para a (des) estabilização das identidade(s) de professora e/ou aluno(s). Dada a complexidade do tema e as diversas possibilidades de abordagem, acabei me focando somente na identidade de professora, pois, já em um primeiro momento percebi duas tendências que estou analisando aqui: (re)configuração e (re)construção.

Após a seleção do corpus, todas as 64 cartas foram digitadas. Tendo em vista o uso de uma ferramenta computacional, o software Word Smith Tools62, houve a necessidade de padronização da ortografia. Esse pequeno corpus foi então submetido ao processamento63 do programa para: 1º) identificar as unidades lexicais mais frequentes; 2º) a partir da lista com as unidades lexicais mais recorrentes, selecionar os adjetivos e outras unidades que podem compor as expressões predicativas que categorizam a professora; 3º) identificar os trechos nos quais as expressões predicativas que caracterizam professora ocorrem. Os resultados conseguidos com o processamento do programa me ajudaram a perceber como a(s) identidade(s) de professora estavam sendo (re)configuradas e/ou (re)construídas, conforme demonstrado nas duas seções a seguir.

Nas mensagens que constituem o corpus, a (re)configuração e/ou (re)construção da identidade de professora são marcadas linguisticamente pelas predicações, as quais constituem um mecanismo de categorização. Aqui, conforme Mondada & Dubois (2003), a categorização é entendida como uma atividade referencial à qual, dada a sua natureza discursiva, está associada uma visão não-referencial da língua e da linguagem, que aceita a instabilidade da relação entre as palavras e as coisas.

A (re)configuração

O que venho chamando de (re)configuração pode ser também ser

entendido como uma construção social das identidades. A (re)configuração da(s) identidade(s) de professora a que me refiro se deu na interação mediada pela escrita de cartas. Por meio de categorizações positivas, os alunos (re)configuram a(s) identidade(s) de professora para professora-mãe, professora-irmã, professora-amiga.

Essa categorização, no entanto, é iniciada pela própria professora quando da escrita da primeira carta para os alunos, conforme exemplo abaixo.

62 Word Smith Tools é um programa que disponibiliza um conjunto de ferramentas computacionais

para análise quantitativa de textos. É um dos principais programas utilizados por pesquisadores que empregam métodos da Linguística de Corpus.

63 Foram processadas separadamente as cartas escritas pelos alunos e pela professora.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

126

07/11/04 Oi João Sabe por que eu estou escrevendo? Só para saber se você está bem e, principalmente, para dizer o quanto me sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta escola. Sabe como eu ficaria ainda mais feliz? Se você também escrevesse para mim. Abraços! Profa. Milene Exemplo 1 – Carta Milene para João Ao dizer “o quanto me sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta

escola”, percebe-se que a própria professora se categoriza positivamente, assim como seu sentimento a respeito do aluno e da sua chegada na escola. Nas cartas escritas pelos alunos, eles não só aderem a essa categorização positiva, como acrescentam outros adjetivos os quais mantêm o tom da interação. Além de “feliz” (35%) e “contente” (5%), presentes na carta que os alunos receberam, aparece também: legal (48%), inteligente (15%), bonita (14%), boa (14%), simpática (12%), carinhosa (10%), gentil (10%), especial (5%), alegre (5%), anjo (5%), atenciosa (5%). Abaixo, alguns exemplos.

a) Milene!!! Continue sempre assim alegre e simpática. (Lúcia para

Milene 09/11/04) b) E que você seja sempre a pessoa boa que você é. (Bento para

Milene 19/11/04) c) Continue sempre assim legal, bonita, carinhosa com os seus

alunos e sempre gentil. (Maciel para Milene 22/02/05) d) Então não mude a pessoa simpática e inteligente que você é,

professora. (Luciana para Milene 21/03/05) e) Milene, eu sei que você é uma professora aplicada nos estudos, é

muito inteligente, atenciosa com os alunos. (Willian para Milene 22/02/05)

f) Quero que saiba que você é uma pessoa muito especial para mim, porque você me ensina a ver o mundo com outros olhos... (Laina para Milene 17/03/05)

Page 65: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

127

g) Eu te acho legal, bonita, gentil e inteligente eu nunca mais vou esquecer de você... (Tatiane de Freitas para Milene 25/05/06)

h) A senhora é um anjo que veio ajudar a aprender para ser alguém na vida. (Aracélia para Milene 24/03/06)

Exemplo 2 - Trechos com categorizações positivas Nesses trechos, é possível perceber características que, por agradarem

aos alunos, dão indícios de como um professor teria que ser para, naquele contexto, conseguir uma boa interação com eles. Há características que podem ser associadas à identidade profissional, tais como o domínio de uma determinada área do conhecimento, aqui expresso por “inteligente”; aplicação nos estudos; atenção com os alunos. Há outras, no entanto, que, a princípio, não fariam parte da identidade profissional/institucional, tais como ser bonita, legal, alegre, simpática. É possível perceber com esses exemplos que as características referentes à capacidade de relacionamento interpessoal são muito mais valorizadas que as habilidades técnicas. Provavelmente isso esteja relacionado ao gênero carta pessoal – no qual, geralmente, encontramos uma apreciação valorativa positiva do interlocutor – bem como ao fato de que é a “professora” que está sendo categorizada, não a aula.

No exemplo abaixo, contudo, muito mais que valorizar características que não estão necessariamente relacionadas à identidade profissional/institucional de professora, na carta da aluna, a identidade de professora parece estar sendo configurada e se transformando em algo como “professora-mãe”.

De: Luciana

Para: Milene Minha professora Milene do coração Professora, você é muito legal Então não mude a pessoa simpática e inteligente que você é professora Milene eu te amo como se fosse minha mãe e eu te desejo tudo de bom na sua vida. Professora Milene Eu espero que você goste do verso que vou escrever

Exemplo 3 – Carta Luciana para Milene (21/03/05)

Assim como a relação professa-aluna, sabe-se que a relação mãe-filha

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

128

é marcada pela assimetria. Visto dessa forma, ao dizer que a professora é como uma mãe, a aluna poderia estar fazendo referência, sobretudo, ao respeito e obediência que são devidos tanto à mãe quanto a professora. No entanto, essas relações ocorrem em “campos sociais” diferentes: a de professora-aluna, a priori, se dá na sala de aula de uma instituição de ensino. Tal relação tende a ser mais institucionalizada (burocratizada) e menos afetiva que as relações familiares, pois: 1) em uma sala são, em média, 30 alunos para uma única professora; 2) o encontro é programado e planejado antecipadamente; 3) a duração do encontro já está previamente determinada, neste caso, 6 horas/aula por semana; 4) o tema do encontro já foi definido anteriormente, estando relacionado aos objetos de saber que são transformados em objeto de ensino, não a vida particular tanto de professores quanto de alunos.

Mesmo com todas essas diferenças, a aluna em questão considera uma professora como uma segunda mãe. Isso pôde ocorrer porque a escrita permitiu que algumas características da interação fossem alteradas: via carta, a interação passou a ser um-para-um, os “encontros”, mediados pela escrita, não são mais programados e nem com temas previamente definidos, passa a haver espaço para confissões, conselhos etc. A relação se torna menos institucional e mais particular (afetiva).

Esse tipo de identificação, professora-mãe, aparece explicitamente em

três cartas, de três alunas diferentes, em 2005 (1) e 2006 (2). No caso da identificação professora-irmã, há apenas um caso (Dona Milene eu adoro demais a senhora, a senhora é como se fosse a minha irmã a senhora é a minha melhor amiga (...) – Aracélia para Milene 24/03/06).

A identificação professora-amiga, ao contrário das anteriores, já aparece em 2004, há quatro ocorrências: 2004 (2), 2005 (1), 2006 (1).

Professora Milene a senhora é a mais legal do que as minhas professoras gostaria que a senhora fosse a minha amiga eu não sei falar o português direito e nem escrever carta você gostaria que chamasse de você ou de senhora, etc. Eu gostaria que você conhecesse a minha família, seja a nossa professora até a nossa faculdade por que a senhora é muito legal a senhora é 1000 x mais legal eu nunca vi uma professora legal como a senhora. Quando a senhora falta na escola eu acho a sala de português triste Eu vi na carta a senhora gostaria de saber o que eu gosto eu vou escrever o que eu

Page 66: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

129

gosto da minha família, da senhora, de assistir televisão, de ouvir música e de ver desenho A senhora é a mais legal do que todas as minhas professora eu fiz um desenho de um cisne do rio de janeiro é o desenho mais lindo mas a senhora é mais bonita ainda. Exemplo 4 – Carta Jaqueline para Milene 17/11/04 Assim como ocorre nos demais exemplos, a categorização da

professora como amiga ocorre simultaneamente a outras categorizações. A meu ver, são essas categorizações positivas, como um todo, que possibilitam a compreensão do que seria uma professora-mãe, professora-irmã, professora-amiga, mesmo que isso não tenha sido materializado no texto. Nesta carta, além disso, aparece uma característica muito mencionada quando se trata de identidade do professor da rede pública de ensino: o absenteísmo. Ao dizer “Quando a senhora falta”, a aluna deixa evidente que isso ocorre e que para ela isso é prejudicial.

A reconfiguração da identidade de professora em professora-mãe, professora-irmã e professora-amiga, aliada às demais categorizações, se dá através do uso de predicações, as quais dão mais ênfase à capacidade de relacionamento interpessoal da professora com os alunos do que às suas habilidades técnicas. A (re)construção

Se a (re)configuração é um processo marcado pela harmonia, o mesmo não se pode dizer em relação à (re)construção. Aqui, há espaço para o conflitante, o divergente e o instável tão presentes na construção social das identidades. Esse processo de (re)construção é algo que só aparece nas cartas a partir de 2005; isso pode estar relacionado: 1) à mudança do contexto – professora e alunos começam o ano juntos; 2) ao contato prolongado entre professora-alunos, o que dá margem para conflitos e/ou tensões; 3) à quebra de expectativa dos alunos em relação à professora. Assim, além das categorizações positivas, conforme analisado na seção anterior, começam a aparecer também categorizações negativas, tais como “chata”, “nervosa”, “estressada”.

10-03-05 De: Dora

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

130

Para: Milene Milene você era tão legal e agora de uma hora para outra ficou chata dando carcada em todo mundo gritando dona mude o seu jeito por favor volte a ser aquela pessoa de antes aquela pessoa legal e gentil. De sua aluna Dora

Exemplo 5 – Carta de Dora para Milene Sabe-se que a relação entre professora-alunos é marcada pela

diferença de direitos e deveres. A professora, em muitas situações, acaba sendo a pessoa que não permite que o aluno faça o que quer ou que deixe de fazer algo. Isso quase nunca é recebido pelos alunos de forma confortável. No exemplo acima, a aluna dá indícios de que a relação com os alunos está passando por um momento de tensão, pois, de repente, a professora que era “legal” tornava-se “chata”, i.e., chamava a atenção dos alunos (“dando carcada em todo mundo gritando”). Em uma carta escrita para uma outra aluna, identifica-se uma possível explicação da professora para essa forma de proceder.

Bem Josi, eu quero ser sempre assim [muito legal]. Adoro o que faço e quero fazer da melhor forma. Às vezes, porém tenho que ser "mais enérgica" com a sala, mas eu não gosto. Preferiria não ter que falar alto, não ter que chamar a atenção de ninguém. Na verdade, eu sou da maneira que a sala quer que eu seja. Sozinha, eu não consigo fazer nada. Preciso da colaboração de vocês, não existe aula sem aluno... O que a aluna categoriza como “chata”, gritar, dar “carcada”, sob o

ponto de vista da professora pode ser “ser ‘mais enérgica’”, “falar alto”, “chamar a atenção”. A professora, no entanto, também responsabiliza o aluno por essa sua forma de agir. A construção da sua identidade, portanto, é explicitamente compartilhada com os alunos: “eu sou da maneira que a sala quer que eu seja”.

Page 67: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

131

Com a análise das anotações na caderneta e dos roteiros de aula, foi possível identificar alguns elementos que permitem (re)construir um contexto que tenha provocado a tensão entre professora e alunos. No dia 08/03/05 consta que a atividade realizada foi “Cópia do texto ‘Primeira Página’, livro ALP, p. 12”. Essa não era a atividade programada. Conforme consta no planejamento, nessa aula era para ser feita a leitura de uma charge e na seguinte a reescrita de uma produção que teria sido solicitada no dia 09.

ROTEIRO – 09 de março Duração: 100 minutos

• Objetivo

Leitura do texto “A questão da terra numa charge”, Ensinar e aprender vol 2, História, ficha individual 1.

1ª. Etapa: leitura da charge e execução das atividades propostas; duração 100 minutos.

ROTEIRO – 10 de março Duração: 50 minutos

• Objetivo

Reescrita do texto. 1ª. Etapa: Orientações gerais para reescrita, com base nas dificuldades que o alunos apresentaram para a produção do texto; duração 50 minutos. Exemplo 6 - Roteiro de aula, criado em 07/03/2005

O planejado não foi realizado, não houve a produção de texto nem a

leitura da charge, mas sim uma cópia. Essa foi a primeira e única vez que a cópia de um texto, tão criticada pela professora em questão64, aparece como atividade. Será o motivo pelo qual a professora teve que alterar seu planejamento o mesmo que fez com que a aluna (des)construísse a sua forma de categorizar a professora? É em uma observação feita na própria caderneta que se encontra uma possível resposta para isso: “Devido à indisciplina, os alunos tiveram que “copiar” o texto do livro”, ou seja, a mudança na forma de

64 [Eu caí lá de pára-quedas], com um discurso e uma postura totalmente diferentes, qual [foi] a

primeira reação: recusa, resultado de um estranhamento talvez. Uma forma de me testar, imagino, para saber se eu sou diferente mesmo, ou se é só mais uma ilusão, mais uma que fala, mas não faz, que não está nem aí pra eles, que irá encher o quadro e botá-los para copiar... (Diário de Campo, 09 de novembro de 2004)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

132

conduzir a aula foi resultado de uma mudança nas formas de agir da professora provocada por elementos do contexto (indisciplina dos alunos), mudança essa percebida pela aluna e responsável pela (re)construção realizada.

Graças à triangulação, nesse caso, foi possível recuperar alguns elementos contextuais que podem ter interferido na (re)construção da identidade da professora feita pela aluna, mas nem sempre há registros que permitem isso.

No exemplo a seguir, além dos elementos contextuais que foram recuperados na análise do exemplo 6 (pois se trata de uma aluna da mesma turma), um evento singular, o fato de a professora não ter auxiliado a aluna a resolver um problema com outras duas colegas de turma, provoca a (re)construção.

(...) Milene, Escrevo só para dizer o quanto me sinto feliz por te conhecer você e ser a sua aluna. (Valquíria para Milene 25/11/04)

Milene Eu estou muito triste por você não ter resolvido o meu problema agora não adianta mais. Milene desde que você entrou nesta escola eu achava que você era boazinha agora entendi que você não é a professora certa para dar aula Eu preferia a Elizangela ou a Tatiana estou triste por você dar aula eu pensava que era boa, mas não, você é chata Milene desculpe do que eu falei sobre o meu problema com a Ju e a Fran Adeus professora Fim (Valquíria para Milene 15/03/05)

Querida Milene Eu adoro você só que estou muito triste não com você e pela escola. Eu preferia estudar no Ciro que lá e melhor Você deve estar muito feliz de dar aula nesta escola e também tem alguns alunos que me deixam muito nervosa e alguns dias fico triste por brigar eu não sou assim de brigas e xingar eu odeio isso mas sou obrigada a brigar. (...) Milene me perdoe se eu falei que preferia a Tatiana ou a Elizangela mas preferia que você voltasse (a ser) como você era essa professora que não gritava tanto

Page 68: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

133

conosco (pois) daí eu penso que você está brava comigo Milene. (...) Eu adoro você Milene. (Valquíria para Milene 15/04/05)

Exemplo 7 - Cartas de Valquíria para Milene Assim, como acontece em todos os casos, em 2004 a aluna mantém o

tom cordial e afetivo da interação. No lugar da categorização positiva, em 15/03/05, a aluna afirma que a professora em questão “não é a professora certa para dar aula”. Nesse contexto, o contrário de “boa” passa a ser “chata”.

Apesar de não ter a carta que foi escrita pela professora65, é possível que essa resposta, aliada a outros elementos contextuais, tenha provocado uma nova mudança na forma de categorizar a professora. Em 15/04/05, a aluna afirma estar triste com a escola, não com a professora. Apesar do pedido de desculpa e de dizer que “adora” a professora, um elemento da carta anterior permanece: o fato de que a professora tem gritado tanto parece ser determinante para essa (re)construção identitária.

Nos exemplos analisados é possível perceber que os elementos contextuais parecem ser de fundamental importância para a compreensão do processo de (re)construção em que aparecem elementos divergentes e contraditórios.

O caráter fragmentado da identidade (o sujeito é “composto de não uma única, mas várias identidades algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” – HALL, 1992/2006, p. 12) é o que pode explicar o fato de a professora ora ser categorizada como “legal”, “paciente”, “meiga”, “atenciosa”; ora como “chata”, “nervosa”, “estressada”, “que grita”. Isso porque a professora em questão é “professora-mãe”, “professora-amiga”, “professora-irmã” e é também chata, nervosa e estressada, entre outras identidades que não puderam ser flagradas nos registros analisados. Considerações finais

Os resultados desta pesquisa apontam que a “professora” em questão não é sempre a mesma em todos os contextos e que isso é percebido pelos alunos. Assim, as identidades de “professor” e, consequentemente, de “aluno”, não podem ser tratadas de maneira essencializada.

65 Está anotado que a resposta foi encaminhada para a aluna em 03/04/05.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

134

Das características da professora apresentadas pelos alunos, as que recebem maior destaque, positiva e negativamente, são as que estão vinculadas à capacidade de relacionamento interpessoal. Isso pode ser um ponto a ser explorado tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores.

A meu ver, os resultados aqui apresentados evidenciam a complexidade dos processos de construção das identidades: vários elementos num dado espaço/tempo corroboram para essa construção; qualquer alteração em um desses elementos pode acarretar tanto uma (re)configuração como uma (re)construção identitária (tanto por parte do “eu”, quanto por parte do “outro”).

Considerar essa fragmentação, complexidade, dinamicidade e instabilidade da identidade de professora otimiza a minha capacidade de compreender, agora no papel de analista, práticas conflitantes e divergentes encontradas nos outros registros de que disponho. Então, passa a ser possível entender que o processo de inovação nas aulas de LM que tenho estudado é dinâmico (e também conflitante e divergente) porque o são os atores que nele atuam. Referências BAZARIM, M. Construindo com a escrita interações improváveis entre professora e alunos do ensino fundamental de uma escola pública da periferia de Campinas. Dissertação de Mestrado inédita. Campinas: Unicamp/IEL, 2006. Disponível em: < http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000405937> BAZARIM, 2006 __________. A construção da interação entre professora e alunos em contexto escolar. In: SIGNORINI, I. (org.). Gêneros catalisadores: letramento e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006. __________. A interação professora-alunos mediada pela escrita como um elemento da inovação nas aulas de Língua Materna (LM). In: XV Congresso Internacional de La Asociación de Linguistica y Filologia de América Latina – ALFAL, 2008, Montevideo. Atas da XVAlfal. Montevideo: ALFAL, 2008. v. 1.Disponível em: <http://alfal.easyplanners.info/programa/programaExtendido.php?casillero=522083000&sala_=Sala%202501&dia_=Miércoles%2020%20de%20agosto> BLOMAERT, J. Contexto é/como crítica. In: SIGNORINI, I. (org.) Situar a lingua[gem]. São Paulo: Parábola, 2008.

Page 69: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

135

JACOME, A.J.P.C. de. O relato reflexivo e a construção identitária profissional: um estudo de caso com professor de língua materna. Anais do I SIMELP – Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa. São Paulo: USP, 2008. Disponível em: < http://www.fflch.usp.br/eventos/simelp/new/pdf/slp03/03.pdf > GARCEZ, P. M. A organização social da fala-em-interação de sala de aula contemporânea: indicações de uma nova ordem comunicativa. Trabalho apresentado no VII Seminário de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. São Paulo: FEUSP, 2008. (mimeo) HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade.11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HANKS, W.F. A língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bordieu e Bakhtin. São Paulo-SP: Contexto, 2008. MAHER, T.M. Sendo índio em português... In: SIGNORINI, I. (org.). Linguagem e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1998. MONDADA, L; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTI; RODRIGUES; CIULLA (orgs). Referenciação. São Paulo, Contexto, 2003. PENNA, M. Relatos de migrantes: questionando as noções de perda de identidade e desenraizamento. In: SIGNORINI, I. (org.). Linguagem e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1998. PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA-LOPES, L.P. Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. SIGNORINI,I; CAVALCANTI, M.C. (orgs). Linguística aplicada e transdisciplinaridade. Campinas-SP, Mercado de Letras, 1998. SIGNORINI, I; (org). Gêneros catalisadores: letramento e formação do professor. São Paulo, Parábola, 2006. SILVA, T.T. da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T.T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. WOODWARD, K. Identidade e diferença. In: SILVA, T.T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

136

Page 70: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

137

MACHADO DE ASSIS EM QUADRINHOS: UMA ANÁLISE MULTIMODAL DAS ADAPTAÇÕES DE CLÁSSICOS DA

LITERATURA PARA HQS

Fabiane Dalben de Faria* Inês Signorini

Resumo

A presente pesquisa, realizada a partir do âmbito da lingüística

aplicada, consiste na análise multimodal de três adaptações do conto machadiano “O Alienista” para História em Quadrinhos, verificando como a multimodalidade atua na construção desse gênero e procurando compreender qual é o impacto que essa união entre imagem e palavra traz para esse novo texto/gênero. Palavras-chave: Literatura Brasileira – Multimodalidade – Histórias em Quadrinhos Abstract

This research, theoretically based on Applied Linguistics, is a multimodal analysis of three adaptations of Machado´s short story called O Alienista to a comics version. It aims at verifying how the multimodality helps to build such text genre and trying to understand the impact caused by the junction between image and word to the new text/genre.

Key-words: Brazilian Literature – Multimodality – Comics

* Este trabalho é resultado do projeto de Iniciação Científica “Machado de Assis em quadrinhos:

uma análise multimodal das adaptações de clássicos da literatura para HQs”, realizado no Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Profª. Drª. Inês Signorini.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

138

Introdução Atualmente, as Histórias em Quadrinhos (HQs), entendidas por nós

como um hipergênero que agrega diferentes outros gêneros (Ramos 2009:20), consolidaram-se como objeto de pesquisa entre pesquisadores de diversas áreas de conhecimento como lingüística, semiótica e sociologia, entre outros. A importância que esse meio de comunicação social vem recebendo, entre outros fatores, se dá por sua inclusão no ensino, que ocorre desde o fim do último século, com a Lei de Diretrizes e Bases e, pouco depois, com sua inclusão nos PCNs. Além disso, em 2006, o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do Governo Federal, que distribui livros para escolas de todo o país, incluiu em sua lista algumas HQs. Entre as obras escolhidas e distribuídas até então, observa-se a atenção especial do programa ao gênero, pertencente ao hipergênero HQ, adaptações de obras literárias.

A história das adaptações de obras literárias não começa de hoje. Foi em 1948, momento no qual as HQs passavam por uma grande dificuldade, que o editor Adolfo Aizen, decidido a provar o potencial educativo desse gênero e quebrar os preconceitos, lançou, pela EBAL (Editora Brasil-América) a coleção “Edição Maravilhosa”, que trazia romances adaptados para os quadrinhos e que fez muito sucesso.

Hoje, esse sucesso das adaptações é retomado, tanto em meio ao público infantil quanto jovem e adulto. Essa atual importância do gênero nos leva a analisar o aspecto multimodal dessas novas obras, verificando como se dá a transposição de um gênero, conto, para outro, adaptação (HQ). Para isso, analisamos 3 adaptações, publicadas por diferentes editoras (Agir, Escala Educacional e Cia. Editora Nacional) da obra O Alienista, de Machado de Assis. Além disso, buscamos verificar se a linguagem utilizada nesse gênero difere em algum aspecto da linguagem já utilizada nas revistas em quadrinhos. Buscamos verificar como cada adaptador utilizou os elementos dessa linguagem em sua adaptação, e qual a diferença de uso entre elas.

A importância de se estudar esse gênero no enfoque proposto por essa pesquisa consiste no fato de que os aspectos relevantes de um determinado gênero quando transposto para outro – no nosso caso, do conto para a adaptação em HQ – sofrem modificações e demandam diferentes habilidades de seus leitores. A compreensão dos aspectos multimodais e da linguagem utilizada na produção desse novo gênero pode fazer com que seu uso seja melhor aproveitado, por exemplo, em sua aplicação ao ensino.

Perspectivas adotadas e fundamentação teórica

Seja no campo profissional, pessoal ou acadêmico, as imagens fazem

parte de quase todos os textos que nos rodeiam e, segundo Kress (2000:337)

Page 71: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

139

“agora é impossível compreender os textos, até mesmo as suas partes lingüísticas somente, sem ter uma idéia clara de como esses outros elementos podem estar contribuindo para o significado do texto”.

Os gêneros discursivos produzem significados e estabelecem relações através dos textos ou discursos neles vinculados. Esses, por sua vez, materializam-se através da linguagem, seja ela verbal ou não-verbal. Todo esse arranjo visual existente no gênero, ou seja, a diagramação, cores, figuras, tipo de papel ou até como as pessoas se comportam nos textos orais (gestos, entonação de voz, expressões faciais) chamamos de multimodalidade. Portanto, multimodalidade se refere ao uso de mais de um modo de representação em um gênero discursivo.

Para Mayer (1999), a multimodalidade nos gêneros discursivos se define como a apresentação de um material usando palavras e imagens. Por palavras tomamos um material que é apresentado na forma verbal, assim como textos escritos ou orais. Já por imagens, referimo-nos ao material que é apresentado na forma pictórica, tais como os que fazem uso de gráficos estáticos, incluindo ilustrações, fotos, mapas dentre outros.

Portanto, os gêneros escritos podem fazer uso de outro modo de representação além da linguagem verbal, a linguagem visual. Kress e van Leewen (1996:17) dizem que “o componente visual de um texto é uma mensagem organizada e estruturada independentemente – ele é conectado com o texto verbal, mas, de jeito algum, depende dele: e similarmente o oposto também é válido”.

Sturken e Cartwright (2001) acreditam que a capacidade das imagens para nos afetar como observadores e consumidores é dependente dos significados culturais maiores que elas invocam e dos contextos social, político e cultural em que elas são vistas. O significado das imagens não está somente nos seus próprios elementos visuais, mas são adquiridos quando elas são “consumidas”, observadas e interpretadas (Sturken e Cartwright, 2001:25). Sendo assim, ao analisarmos os aspectos visuais de certo texto, temos que necessariamente considerar as circunstâncias sociais em que ele foi escrito e os objetivos comunicativos do autor, para que assim possamos entender a composição visual desenvolvida por ele.

De acordo com Wysocki (2004:126), “a composição de um texto visual envolve a escolha de estratégias para a formatação do que está numa página (...) de modo a dirigir a atenção do leitor/observador, dentro do contexto de outros textos” para certos aspectos da composição.

Para verificarmos como se deu a escolha de estratégias para a formatação de cada adaptação escolhida faremos uso da abordagem sugerida por Kress e van Leewen (1996) que propõem a análise de textos multimodais através da análise de sua composição.

A análise composicional do texto multimodal expressa por Kress e

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

140

van Leewen (1996) possibilita a análise de cada elemento visual que compõe um layout, assim como o próprio layout como um todo.

Em se tratando de Histórias em Quadrinhos, dois elementos receberam maior importância em nossa análise: a cor e as ilustrações.

A cor Segundo Dondis (2003:64), “a cor está, de fato, impregnada de

informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos em comum”. Fontana (1977 apud Leon, 2001:64) diz também que “as cores têm uma profunda influência na esfera emotiva do homem” e que dependendo de sua combinação podem causar vários estados de ânimo em seus observadores, principalmente em crianças e adolescentes, sendo esse o público ao qual nossas HQs são destinadas. Isso ocorre pelo fato das cores estarem ligadas à vida vegetativa e emocional das pessoas, ou seja, a fases anteriores à interpretação intelectual. Dessa maneira, as cores podem ser consideradas um dos mais importantes elementos visuais, sendo muito importante que seus significados e funções sejam conhecidos para que possamos explorar o seu potencial comunicativo nas HQs estudadas.

A reação dos leitores ao uso das cores, os efeitos psicológicos que as cores criam, vai depender das combinações feitas na programação visual do material e da harmonia alcançada. Entendemos por harmonia o equilíbrio dinâmico que está no meio entre a excessiva uniformidade, que sub-estimula o observador, e o excessivo caos, que pode super estimulá-lo.

As ilustrações

Sem dúvidas, as ilustrações em uma História em Quadrinhos são de

extrema importância, já que provavelmente são elas as primeiras a chamarem a atenção do leitor. Além disso, segundo Martins, Gouvêa e Piccinini (2005:38), as ilustrações “são mais facilmente lembradas do que suas correspondentes representações verbais”.

Porém, além do fato de ser visualmente impactante e memorável, o texto visual, assim como o verbal, tem funções comunicativas muito importantes. Cada um desses meios semióticos (linguagem verbal e comunicação visual) tem as suas características, possibilidades e limitações e nem tudo que pode ser expresso em palavras pode ser expresso em imagens, e vice-versa.

A importância das ilustrações nas HQs se deve às várias funções que

Page 72: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

141

elas podem desempenhar. Segundo Camargo (1996:111), “o desenho e a pintura não servem apenas para descrever as coisas. Eles podem interpretar, veicular idéias e valores”.

Nas HQs, todas as funções das ilustrações ganham maior relevância, já que as imagens são utilizadas como uma ferramenta que colabora na construção do significado do texto verbal.

Procedimentos metodológicos

Com a proposta de, partindo do embasamento teórico dos aspectos multimodais presentes nas adaptações para HQ do conto machadiano O Alienista, comparar e perceber as diferenças que a mudança de gênero (de conto para adaptação HQ) pode acarretar, queremos saber quais considerações podem ser feitas a respeito desse processo. Através da análise do corpus, procuramos investigar qual a quantidade e as partes do texto original (o conto) que foram mantidas em cada adaptação, além das características da linguagem dos quadrinhos que estão presentes em cada obra, a diferenças de cores e ilustração de cada adaptador.

Podemos dizer que para a obtenção de dados a partir das adaptações escolhidas foi realizado um trabalho de análise de conteúdo que, ao mesmo tempo, também se configurou mais ou menos como um trabalho de “literatura comparada”, pois foi realizada uma análise das três obras, uma em comparação à outra e ambas em comparação ao texto original do conto.

Vale ressaltar, no entanto, que o conto aqui não foi passível de um estudo profundo, seja de ordem literária ou de outra instância; ele serviu, na verdade, como ponto de partida para uma análise das três obras concebidas em outro gênero, essas sim devendo ser efetivamente consideradas recortes do universo estudado.

Análise e resultados

Baseados nas concepções teóricas mencionadas, partimos para a

observação sistemática das características de cada adaptação. Começamos por analisar os elementos das edições “externos” ao

conteúdo adaptado em si. Essa primeira análise nos permitiu observar algumas diferenças interessantes entre a adaptação da editora Agir e as adaptações da Escala Educacional e da Cia. Editora Nacional. A primeira delas diz respeito à apresentação de cada uma das obras. A edição da Agir é um Graphic Novel que, segundo Will Eisner (1989), seria uma espécie de livro; este termo é freqüentemente usado para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos. Já as edições da Escala Educacional e

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

142

da Cia. Editora Nacional são apresentadas como revistas em quadrinhos. Outra diferença é que, enquanto estas apresentam no apêndice um material mais voltado para estudantes, com caderno de atividades, glossário, informações sobre o autor Machado de Assis, bibliografia e cronologia das obras, aquela traz apenas informações sobre Machado de Assis e sobre os autores da adaptação.

Cuidando dos elementos visuais, tratemos de certas diferenças fundamentais, para a seguir, considerarmos algumas semelhanças. Em primeiro lugar, percebemos que a distinção entre as adaptações que mais salta aos olhos é a impressão causada por um conjunto de três elementos: as dimensões de página, o uso das cores e a relação entre os espaços de texto e os de imagem.

Averiguamos como cada autor, dentro do limite dimensional, distribuiu os textos (das legendas e balões) e desenhos pelo espaço de que dispunha. E, aí, vimos que a presença de espaços ocupados por texto é muito mais marcante na edição da Escala Educacional (conforme Figura 2.1 abaixo), chegando até mesmo, em um ou outro trecho a ocupar algo próximo de metade do espaço disponível em uma página – o que, para a maioria das histórias em quadrinhos, seria uma fatia relativamente alta.

2.1 O Alienista Escala 2.2 O Alienista 2.3 O Alienista Cia Educacional (p. 15) Agir (p. 56) Editora Nacional (p. 22)

Já na versão das editoras Agir (conforme Figura 2.2 acima) e Cia Editora Nacional (conforme Figura 2.3 acima), embora também seja marcante o “espaço textual”, a tendência é para um equilíbrio, aproximando-se mais daquilo que vemos usualmente nos quadrinhos, onde, em geral, a quantidade espacial de imagem é maior que a de texto (pois o equilíbrio nos quadrinhos não significa uma relação de igualdade entre os espaços).

Referente às cores, elas também expõem rapidamente um contraste entre as três edições (conforme Figuras 2.4, 2.5 e 2.6 abaixo). O tom “sépia”

Page 73: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

143

adotado por Fábio Moon e Gabriel Bá (Agir) imprime à narrativa uma atmosfera de “passado”, como se os autores quisessem mostrar que aquilo que se narra já ocorreu há muitas décadas. Enquanto isso, tanto na edição da Escala Educacional quanto na edição da Cia Editora Nacional, o uso das cores é um pouco mais convencional e remete levemente à utilização de cores geralmente observadas em ilustrações de livros infanto-juvenis e paradidáticos, embora seja relativamente mais complexo.

2.4 O Alienista 2.5 O Alienista Escala 2.6 O Alienista – Cia. Agir (p. 23) Educacional (p. 54) Nacional (p. 41)

Podemos ressaltar também, em um segundo momento, o traço ou

“estilo” de cada autor e os tipos de enquadramentos predominantes. No lápis de Francisco Vilachã, da Escala Educacional, e de Lailson de Holanda Cavalcanti, da Cia Editora Nacional, embora sejam “respeitadas” nos personagens as proporções do corpo humano e, nos cenários e ambientes, as regras de perspectiva, há uma tendência mais para a estilização do que para uma caracterização realista das figuras, principalmente se atentarmos para os rostos dos personagens. No que se refere aos enquadramentos mais usados pelos dois artistas, prevalecem planos médios e planos próximos (closes). Sendo assim, na obra de Francisco Vilachã, o espaço ocupado pelas ilustrações presentes no segundo plano (fundo) muitas vezes fica reduzido, principalmente nas páginas em que existe muito texto. Ou seja, mesmo havendo uso da perspectiva, ela talvez fique pouco perceptível ao leitor, pois é geralmente das relações entre o primeiro e o segundo plano que ela surge (conforme Figuras 2.7 abaixo). Quando o espaço do texto e dos desenhos em primeiro plano “suprimem” o segundo plano, a noção de profundidade (sugerida pela perspectiva) diminui. Já no caso da obra de Lailson de Holanda Cavalcanti, o segundo plano já é melhor trabalhado, o que pode ser provavelmente uma conseqüência da menor quantidade de textos nas páginas (conforme Figuras 2.8 a seguir).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

144

2.7 O Alienista – Escala 2.8 O Alienista – Cia. 2.9 O Alienista Educacional (Pág. 22) Editora Nacional (p. 30) Agir (p. 61)

Nos quadrinhos de Fábio Moon e Gabriel Bá, temos quase o oposto: há mais realismo nas figuras e um equilíbrio na ocorrência de planos gerais, médios e fechados (conforme Figuras 2.9 acima). A freqüência de planos abertos, associada ao equilíbrio entre imagem e texto, deixa muitas vezes notável os espaços ocupados por segundo plano e, por conseqüência, mais evidente a perspectiva. No entanto, ao contrário do que com isso poderíamos esperar, o detalhamento dos elementos em segundo plano (objetos, personagens coadjuvantes, casa, etc.) é consideravelmente menor na HQ de Bá e Moon, com o uso de muitos “vazios” (espaços chapados em preto ou branco), ao passo que nas ilustrações de Vilachã e Cavalcanti há, várias vezes, a presença visual bem evidente dos elementos do segundo plano.

Assim, dado o maior espaço ocupado por texto, a predominância de planos mais fechados e o maior detalhamento dos objetos em segundo plano, a HQ da Escala Educacional e a da Cia Editora Nacional, se comparadas com a da Agir, transmitem uma sensação maior de “preenchimento” visual, tanto no nível “macro” (a página como um todo) como no “micro” (dentro de cada quadrinho).

Outro ponto que merece muita atenção é o acréscimo de elementos visuais que não constam originalmente no conto. É evidente que ao transportar para história em quadrinhos um texto, ainda mais se for pouco descritivo, como é o caso de O Alienista, o artista precisa acrescentar visualmente alguns elementos não diretamente aludidos pelo narrador do texto original, como

Page 74: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

145

cenários, personagens coadjuvantes, objetos, etc. Caso contrário, se chegaria a um resultado provavelmente quase vazio. Portanto, é necessário “completar” o ambiente da narrativa. Gabriel Bá e Fábio Moon, por exemplo, dão à história informações que não constam do conto original, dessa forma, eles enriquecem o mundo visual da história.

Mas, além dessas modificações básicas, às vezes os adaptadores adicionam elementos de maior destaque e não necessariamente básicos. Na versão de Francisco Vilachã isso ocorre pouco, talvez uma passagem que devamos destacar seja a freqüência com que os emissários aparecem a certo ponto da narrativa, conduzindo os “loucos” ao hospício (implicitamente, fazem isso a serviço de Simão Bacamarte). Mas esse não chega a ser um grande acréscimo, pois podemos considerá-lo como uma extensão visual do seguinte trecho do original: “Daí em diante foi uma coleta desenfreada. (...) ninguém escapava aos emissários do alienista” (podemos notar, que daí para frente, o narrador do conto não cita novamente os emissários ao contar que alguém é internado, mas eles continuam a aparecer na HQ concebida por Vilachã).

A maior ocorrência desse tipo de intervenção acontece na edição da Agir: após este mesmo momento em que há referência aos emissários, não são eles que, nos quadrinhos, conduzem as pessoas ao manicômio: são os dragões (soldados do governo), armados ameaçadoramente. Mesmo quando Machado de Assis faz menção aos dragões ganha também aspecto mais violento. No conto, o narrador só resume, sem muitos detalhes, o conflito ocorrido e, mesmo havendo mortos, a forma com a qual se narra o desfecho da contenda (os soldados se unem aos rebeldes) sugere, mais do que tensão, ironia, humor e até um pouco de nonsense. Já nos quadrinhos de Bá e Moon, o episódio é retratado com tiros e sangue, criando-se uma atmosfera um pouco mais tensa e pesada (conforme Figura 2.10).

2.10 O Alienista – Agir (Pág. 45)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

146

Além dos dragões, algo que de certa forma também constitui um tipo de acréscimo é a valorização visual de personagens secundários e coadjuvantes, cuja postura corporal e expressões faciais em diversos momentos são definidos por Moon e Bá de forma tal que acabam enfatizando o sentido de algumas cenas, sobretudo as que envolvem sensações mais sérias (oportunismo, espanto, raiva, apreensão, nostalgia). Isso também ocorre nas adaptações de Vilachã e Cavalcanti, mas com menor freqüência e intensidade, talvez por quadrinhos mais estilizados tenderem, se comparados a um estilo mais realista, a transmitir impressões um pouco menos sérias, mais leves.

Lembremos que estamos nos referindo a personagens secundários e coadjuvantes. Se nos voltarmos para os principais, vemos praticamente a mesma intensidade nas três adaptações no que se refere à clareza das expressões faciais e corporais, mas com uma distinção interessantíssima: a questão do “tom” que as feições destes personagens emprestam à narrativa. Na edição da Agir, é quase constante uma atmosfera mais séria, com Simão Bacamarte expressando certeza, lucidez e certa arrogância, D. Evarista demonstrando carência e interesse por status, o padre Lopes exprimindo moderação, Porfírio transmitindo raiva e certa cobiça, Crispim Soares ambigüidade e personalidade fraca. Já nos personagens retratados por Vilachã e também por Cavalcanti, embora quase todas essas características possam ser notadas, ainda que em menor grau, o que chama atenção são os vários momentos em que personagens diversos exibem um leve sorriso, o que contribui para a criação de um efeito mais leve nas narrativas como um todo. O último quadrinho de cada adaptação deixa patente tal distinção. Na versão da editora Agir, é um quadro sem personagens, há apenas os balões narrativos e as portas de alguns cômodos da Casa Verde, onde o alienista se trancafiara. Há vazio, pessimismo e seriedade. No último quadrinho da edição da Cia Editora Nacional, também há ausência de personagens, mas, o efeito causado é bastante diferente do da edição citada anteriormente. Aqui, encontramos a ilustração do túmulo do alienista, o que nos deixa a sensação da grande importância de tal homem para a ciência, a pompa com que seu enterro fora realizado. Diferentemente dos outros, o último quadrinho da edição da Escala, embora tenha praticamente o mesmo texto que o das outras duas, mostra alguns personagens sorrindo levemente, com o padre Lopes em destaque.

A última diferença visual para a qual chamamos a atenção é aquela relacionada ao maior fluxo visual presente nos quadrinhos de Fabio Moon e Gabriel Bá. Na narrativa, a seqüência de quadrinhos remete muito à noção de movimento entre planos sucessivos, resultando numa tendência, por parte do leitor, a ler primeiro as informações visuais, depois partindo para o(s) texto(s) do quadrinho.

Com tantas diferenças, no âmbito visual não é possível citarmos

Page 75: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

147

muitas semelhanças. Porém, ao menos um elemento bastante interessante merece ser comentado, que é a proximidade das três obras no tocante à caracterização visual dos personagens e, principalmente, dos ambientes/cenários.

Guardadas as devidas particularidades estilísticas de cada artista e com exceção dos poucos detalhes (certos adornos em alguns personagens, por exemplo), podemos perceber que nas três HQs os autores realizaram um trabalho de adequação das ilustrações à época retratada na história, chegando a resultados próximos.

Temos, então, que a caracterização visual dos personagens não apresenta grande variedade de uma edição para outra. São roupas “de época”, nos homens sendo mais comum o conjunto “calça e paletó” ou “calça e camisa”. Nas mulheres, vestidos típicos do século XIX são a regra, além de cabelo preso e alguns adornos, que até variam um pouco nas três versões.

Quanto à ambientação, a imagem mais recorrente nos cenários desenhados são construções do tipo sobrado. Também vemos que é retratado o lado mais urbano de Itaguaí (considerados os padrões da época), com ruas, habitações e estabelecimentos públicos. A vegetação é resumida a algumas árvores – elas são mais freqüentes nas adaptações de Vilachã e Cavalcanti – e as regiões menos urbanas, mais afastadas, são sugeridas apenas raramente, pela presença de alguns morros bem distantes, que também são mais freqüentes nas duas adaptações já citadas acima, onde aparecem juntos à linha do horizonte.

Nas três adaptações, além do urbano prevalecer sobre o rural, também o espaço coletivo supera o individual. A ação toma corpo mais nas ruas, na Casa Verde e na Câmara dos Vereadores (espaços de reunião/aglutinação) do que nas residências e estabelecimentos comerciais. Muitas vezes o narrador do conto não menciona diretamente o local das ações, de forma que a ambientação observada nos desenhos deve-se em boa parte a uma atividade mais interpretativa e criativa por parte dos artistas. Tal fato tem importância maior do que parece, pois contribui para expressar visualmente uma segunda camada da leitura do conto, se atentarmos para as palavras de Jean Pierre Chauvin:

“Estudar os ambientes freqüentados pelas personagens revela algo das intenções de cada autor, a começar pela seleção de certos locais em detrimento de outros. (...) Em O Alienista, a ênfase não recai no ambiente doméstico (...) O espaço público da vila de Itaguaí é implicitamente dado, apenas o suficiente para revelar as diferenças sócio-econômicas (...) Ilustram-no as dimensões das moradias do médico Bacamarte e do albardeiro Matheus versus a presumível modesta barbearia de Porfírio.”

(CHAUVIN, 2006: 10,11,29)

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

148

Por último, podemos citar mais duas semelhanças, que residem no

pequeno uso feito de dois elementos típicos de histórias em quadrinhos: as linhas de movimento e as metáforas visuais. O emprego de ambas as ferramentas visuais foi raro nas três adaptações analisadas. As linhas de movimento, por exemplo, aparecem em cada edição de duas a três vezes, e de certa forma bem discretas. Já no tocante às imagens metaforicamente construídas, vemos apenas um quadrinho parcialmente metafórico na HQ da editora Agir e um totalmente metafórico no da Escala Educacional (conforme Figuras 2.11 e 2.12).

2.11 O Alienista – Agir (p. 15) 2.12 O Alienista – Escala Educacional (p. 14)

Tratemos agora das questões ligadas à adaptação do texto, em que

ocorreu uma situação quase oposta à das comparações visuais: nos textos adaptados, as semelhanças foram um pouco mais significativas do que as diferenças.

Observando então tais similaridades, chamemos atenção primeiro para dois pontos fundamentais. O primeiro é a quantidade de texto mantido e retirado. Cada autor levou para seus quadrinhos algo entre 64% e 70% do texto original. Existe uma notável coincidência entre os trechos excluídos. No geral, são pequenos trechos digressivos, apostos, vocativos orações coordenadas assindéticas e, sobretudo, orações intercaladas ou interferentes. A segunda constatação relevante é que, em relação ao conteúdo literário original que foi mantido, praticamente não houve acréscimos. Raramente há períodos ou palavras nas adaptações que não estavam no original e, quando existem, não chegam a alterar o sentido de algum trecho, no máximo servindo para deixar alguma frase um pouco mais direta, mais simples.

No que diz respeito à transposição de trechos narrativos e discursivos, também vemos que ocorreu quase o mesmo nas três adaptações. Os trechos narrativos foram para as legendas (ou balões narrativos) e as falas dos personagens, para os balões discursivos. Na transposição dos pensamentos dos

Page 76: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

149

personagens para os quadrinhos, houve uma diferença, que comentaremos adiante.

Outro aspecto comum às histórias em quadrinhos analisadas é que nas três o texto passou por certa atualização gramatical, principalmente no que se refere ao uso da vírgula, que foi eliminada em vários momentos – lembremos que, devido à época em que o conto foi escrito e também ao estilo machadiano, há muitas vírgulas no texto original que, para os padrões atuais de escrita, parecem desnecessárias ou até equivocadas, resultando em períodos ditos “centopeicos”. Em relação à ortografia, alguns termos também foram adaptados para um vocabulário mais atual.

Podemos citar ainda, a pequena ocorrência de grifos textuais nas três HQs. Esta pouca freqüência de grifos é uma semelhança que carrega consigo também uma diferença, pois enquanto Vilachã e Cavalcanti usam poucos negritos e algumas variações de corpo na fonte, Moon e Bá fizeram quase literalmente o contrário: se valeram de alguns negritos e poucas alterações de corpo. Nos três casos, alguns dos grifos presentes nas adaptações já constavam (em itálico) no texto original, mas outros foram decisões dos artistas. Essas pequenas alterações de formatação, mesmo que usadas moderadamente, não deixam de ser interessantes, pois reforçam o sentido de algumas cenas, dando um aspecto mais sonoro às falas dos personagens.

A última semelhança que ressaltamos é que, nas três adaptações, a estrutura linear do conto é praticamente a mesma, os principais acontecimentos da narrativa se sucedem da mesma forma que na história original. Bá e Moon, comentando agora as diferenças textuais, até chegam a alterar a ordem de alguns elementos, mas em geral são pequenas alterações, como períodos trocados de lugar mas mantidos dentro de um mesmo parágrafo. Quando ocorre o deslocamento de algum trecho um pouco maior, mesmo assim não é o suficiente para transformar o núcleo narrativo ou os rumos do enredo, no máximo alterando o ritmo de leitura ou a tensão em determinados pontos.

O exemplo mais significativo de deslocamento é a apresentação da personagem D. Evarista, que ocorre um pouco depois do que se vê na narrativa original.

Embora essa alteração de fato possa interferir no ritmo da leitura ou no interesse do leitor, não implica, como já colocamos, alguma mudança significativa em relação ao conteúdo, conotativo ou denotativo, do texto original.

Mais uma pequena diferença a ser observada é que na adaptação de Vilachã e Cavalcanti não há onomatopéias. Já na versão dos gêmeos, elas existem, embora sejam bem poucas e acabem não exercendo muita influência na narrativa. Também vale comentar que na versão da Escala Educacional foram mantidos os títulos de abertura de cada capítulo do conto, ao passo que tal enumeração foi abolida das outras duas adaptações – o que talvez contribua,

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

150

juntamente com algumas questões já colocadas quando tratamos dos aspectos visuais, para dar ritmo à leitura.

Retomando a questão da transposição de discursos e dos pensamentos dos personagens, percebe-se uma dupla distinção. A primeira é que na edição da Agir, diferentemente do que ocorre na Escala e na Cia Editora Nacional, não existem balões de pensamento. Os trechos de texto referentes ao que pensam os personagens ficaram entre aspas nos balões narrativos ou foram transformados em falas. A segunda é que em diversos momentos tanto Moon e Bá quanto Cavalcanti transformaram em falas os discursos indiretos feitos pelo narrador, falas essas que passaram a ser atribuídas diretamente aos personagens. Já Vilachã raramente realizou mudanças no tipo de discurso. Considerações finais

A partir do que foi dito, podemos fazer as seguintes considerações: a

adaptação de literatura para quadrinhos consiste, na verdade, de uma releitura da obra original por parte dos adaptadores. Este processo requer deles uma grande criatividade e compreensão para construir os elementos da narrativa a partir de informações que não foram explicitadas pelo autor do texto original.

Podemos dizer que, como um gênero textual pertencente ao hipergênero história em quadrinhos, as adaptações possuem algumas particularidades, principalmente em relação à linguagem. Alguns elementos característicos da linguagem dos quadrinhos, como as metáforas visuais, as linhas de movimento e as onomatopéias, por exemplo, não são recorrentes nesse gênero. Os balões utilizados para representar a fala e pensamentos dos personagens são os tradicionais, a nuvem para os pensamentos e o balão de traço reto para as falas. E ainda, o uso de legendas é, evidentemente, mais freqüente nas adaptações do que em outros gêneros dos quadrinhos.

Além disso, outro aspecto interessante é que, ao contrário de outros gêneros de histórias em quadrinhos, as adaptações contam com uma quantidade maior de texto e, ao menos nas obras analisadas, as imagens servem mais como ilustrações do que como suporte ao que é lido, fazendo com que haja certa redundância entre texto e imagem.

Consideramos aqui que as adaptações de obras literárias para quadrinhos constituem um campo de pesquisa bastante produtivo e com possibilidades de ser explorado sob diversas perspectivas. Seu estudo é de grande importância tanto pela questão da atualização das pesquisas em análise de gêneros, como também por suas implicações para o ensino, já que são obras cada vez mais presentes entre os estudantes no Brasil.

Page 77: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

151

Referências bibliográficas CAMARGO, Luís (1996). Projeto gráfico, ilustração e leitura da imagem no livro didático. Em aberto, 16(69): 104-115. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001398.pdf . CHAUVIN, Jean Pierre (2006). O poder pelo avesso: mandonismo, dominação e impotência em três episódios da literatura brasileira. São Paulo, Tese de doutorado FFLCH-USP. DESCARDECI, Maria Alice de Andrade Souza (2002). Ler o mundo: um olhar através da semiótica social. ETD – Educação Temática Digital, 3(2): 19-26. Campinas, UNICAMP. DONDIS, Donis (2003). Sintaxe da linguagem visual. São Paulo, Martins Fontes. EISNER, Will (1989). Quadrinhos e arte seqüencial. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo, Devir. KRESS, Gunther.; VAN LEEUWEN, Theo (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, Routledge. KRESS, Gunther.; VAN LEEUWEN, Theo (2000). Reading Images: The Grammar of Visual Design. London, Routledge. LEON, Marcia Ponde de (2001). Aspectos visuais do livro didático: uma leitura.Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado Pontifícia Universidade Católica. MARTINS, Isabel; GOUVÊA, Guaracira; PICCININI, Cláudia (2005). Aprendendo com imagens. Ciência e Cultura 57(4): 38-40. MAYER, Richard (1999). Multimedia learning. Cambridge, Cambridge University Press. RAMOS, Paulo (2009). A leitura dos quadrinhos. São Paulo, Contexto. STURKEN Marita; CARTWRIGHT, Lisa (2001). Practices of looking: an introduction to visual culture. New York, University Press. WYSOCKI, A. (2004). Writing new media. Utah State, University Press. Revistas analisadas ASSIS, Machado de. (2006). O Alienista. Roteiro e desenhos de Francisco S. Vilachã. Literatura Brasileira em Quadrinhos. São Paulo, Escala Educacional.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

152

ASSIS, Machado de. (2007). O Alienista. Adaptação de Fábio Moon e Gabriel Bá. Grandes Clássicos em Graphic Novel. Rio de Janeiro, Agir. ASSIS, Machado de. (2008). O Alienista. Adaptação, roteiro e desenhos de Lailson de Holanda Cavalcanti. Quadrinhos Nacional. São Paulo, Companhia Editora Nacional.

Page 78: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

153

ANÁLISE DO DISCURSO E PRÁTICAS DE LEITURA NA SALA DE AULA

Viviane Brito Silva66

Resumo

Ao apresentarmos um rápido esboço do percurso teórico iniciado por

Michel Pêcheux e que se complementa a partir das reflexões realizadas por Michel Foucault, pretendemos, neste artigo, discutir alguns conceitos fundamentais para Análise do Discurso e demonstrar como essa área da lingüística pode se constituir numa ferramenta importante para o trabalho com a linguagem em sala de aula. Pelas contribuições desses dois pensadores, cujas idéias se complementam, podemos compreender como os discursos funcionam nas relações sociais, que são relações de poder. Essa articulação entre discurso e poder, instituída por Pêcheux e fortalecida por Foucault, permite analisar que práticas são produzidas nos discursos, quais os efeitos dessas práticas, como essas práticas estão sendo naturalizadas, que realidades estão sendo construídas pelos discursos. Desse modo, desenvolver, na sala de aula, um trabalho norteado pelos princípios da AD, significa transformar esse espaço num lugar onde os discursos possam circular, promovendo reflexões realmente produtivas sobre a relação entre linguagem e homem. Palavras-chave: linguagem. discurso. poder. Abstract As we provide a brief outline of the theoretical background initiated by Michel Pêcheux and complemented by Michel Foucault’s reflections, we intend in this article to discuss some basic concepts to Discourse Analysis and show how this field of Linguistics can become an important tool for working with language in the classroom. With the contributions from those two thinkers, whose ideas complement each other, we can understand how the 66 Professora da Escola Agrotécnica Federal de Senhor do Bonfim – BA e Doutoranda em

Linguagem e Cultura na UFPB.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

154

discourses work in social relations, as power relations. That articulation between discourse and power, brought about by Pêcheux and strengthened by Foucault, allows us to analyse the practices produced in discourses, the effects of such practices, how those practices are being naturalized, and what realities are being constructed by the discourses. Thus, doing research in the classroom guided by the principles of DA, means to transform that space into a place where the discourses can circulate and promote reflections which are truly productive, as regards the relation between language and man. Keywords: language, discourse, power.

Introdução

A Análise do Discurso (AD), como área da lingüística, tem um papel fundamental na instituição de um novo modo de se entender a linguagem. Observando a materialidade lingüística não apenas como estrutura, mas pelas relações que se estabelecem entre as práticas discursivas e as condições sócio-históricas que determinam o aparecimento dos discursos, a AD se firma como uma das áreas mais produtivas das ciências da linguagem. Através de um dispositivo teórico que congrega lingüística, história e psicanálise, a AD preocupa-se em investigar como dizemos o que dizemos desse modo e não de outro, ocupando-se, dessa maneira, em compreender os efeitos de sentido suscitados numa situação enunciativa. Para realizar um trabalho desse tipo, necessita reconhecer os discursos como práticas que, portanto, produzem efeitos, reforçam valores, (re)produzem relações de poder. Ao apresentarmos um rápido esboço do percurso teórico iniciado por Michel Pêcheux e que se complementa a partir das reflexões realizadas por Michel Foucault, pretendemos, neste artigo, discutir alguns conceitos fundamentais para Análise do Discurso e demonstrar como essa área da lingüística pode se constituir numa ferramenta importante para o trabalho com a linguagem em sala de aula. Pelas contribuições desses dois pensadores, cujas idéias se complementam, podemos compreender como os discursos funcionam nas relações sociais, que são relações de poder.

Essa articulação entre discurso e poder, instituída por Pêcheux e fortalecida por Foucault, permite analisar que práticas são produzidas nos discursos, quais os efeitos dessas práticas, como essas práticas estão sendo naturalizadas, que realidades estão sendo construídas pelos discursos. Desse modo, desenvolver, na sala de aula, um trabalho norteado pelos princípios da AD, significa transformar esse espaço num lugar onde os discursos possam circular, promovendo reflexões realmente produtivas sobre a relação entre linguagem e homem.

Page 79: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

155

O discurso em Pêcheux e Foucault A AD de tradição francesa foi criada por Michel Pêcheux (1938-1983) a partir do entrelaçamento de três áreas do conhecimento: Linguística, Psicanálise e Marxismo. Através do trabalho de Saussure, que define as bases da ciência da língua; das contribuições de Lacan às descobertas de Freud e da releitura de Marx feita por Althusser, Pêcheux elabora um dispositivo teórico para analisar a linguagem, considerando também o que é exterior a ela. A AD é um dos ramos da Lingüística, portanto seu objeto de estudo, conforme definido por Saussure, é a língua. A materialidade lingüística, no entanto, interessa a Pêcheux na medida em que os efeitos de sentido das palavras só podem ser entendidos a partir das posições ideológicas, colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual são produzidas, o que quer dizer que o lingüístico comporta elementos exteriores a ele e, ao mesmo tempo, constitutivos. Ao definir um novo objeto de estudo – o discurso – pela tensão entre estrutura e acontecimento, Pêcheux considera que

todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso. (PÊCHEUX, 1990, p. 53)

Todo enunciado, dessa forma, é por um lado, logicamente estabilizado e, por outro, susceptível a falhas, a equívocos. Comporta, ao mesmo tempo, transparência e opacidade, por essa razão considerá-lo como estrutura e acontecimento significa reconhecer que

todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço... (PÊCHEUX, 1990, p. 57)

Ao propor as bases de uma Análise do Discurso, como área de

conhecimento interessada em investigar como os sentidos são constituídos pela linguagem, Michel Pêcheux contribui para estreitar as relações entre língua e exterioridade. A partir de uma metodologia específica que considera as

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

156

condições sócio-históricas em que as palavras emergem, Pêcheux faz-nos enxergar que os sentidos não são apenas da ordem do lingüístico. Levando-se em consideração os lugares sociais ocupados pelos sujeitos quando se manifestam por meio da linguagem, podemos afirmar que essas posições determinam o que pode e o que deve ser dito pelos sujeitos envolvidos em situação de uso da linguagem, o que nos leva a concluir que os sentidos não são da ordem do lingüístico apenas. O sentido é, sobretudo, histórico. Pêcheux esclarece:

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe em si mesmo (...) mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas. (Pêcheux, Semântica e discurso, p. 190)

Efeitos de sentido, condições de produção, formação discursiva,

interdiscurso, sujeito discursivo são algumas das noções mobilizadas para analisar o discurso. Como não existe o sentido, interessam as possibilidades de sentido que as palavras podem suscitar numa situação enunciativa que é sempre particular e específica, já que nunca se repete. As posições ocupadas pelos sujeitos que fazem uso da linguagem são determinadas por formações discursivas relacionadas a formações sociais, uma vez que o sujeito é sempre um ser social. Seu dizer, portanto, sempre atualiza sentidos que não têm origem nele, mas que estão inscritos numa rede interdiscursiva. As palavras estão sempre carregadas de sentidos pré-existentes e as relações estabelecidas entre elas nas situações enunciativas podem ser as mais diversas possíveis, o que possibilita que os sentidos fujam sempre ao controle dos sujeitos.

O papel do analista deve ser então o de considerar os enunciados a partir de um feixe de relações que os condena a estar sempre relacionados a outros. Desse modo, cabe ao analista focalizar as condições (econômicas, políticas, sociais etc) que possibilitaram o aparecimento de certos enunciados e não de outros, numa determinada situação enunciativa.

Com Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, há a configuração de um novo modo de se pensar o discurso a partir das relações em que micro-poderes estão em jogo. Pensar a relação discurso e poder é ampliar as possibilidades de compreensão dos discursos como práticas sociais.

Foucault reforça o caráter social dos discursos quando o define como prática que, no campo social, associa a língua com outras práticas. O discurso deve então ser pensado como prática discursiva. Gregolin (2004) nos alerta que não foi objetivo imediato de Foucault construir uma teoria do discurso, suas temáticas sempre foram mais amplas e envolveram as relações entre os saberes

Page 80: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

157

e os poderes na história da sociedade ocidental, mas para isso elege o discurso como uma das categorias de análise. O discurso esteve presente em toda a sua obra, a partir da articulação com outras noções fundamentais - como saber, verdade e poder - para explicar como o indivíduo, imerso sempre em determinadas situações histórico-sociais, se subjetiva pela linguagem.

Sendo a linguagem o que de mais essencial constitui o sujeito, o

discurso torna-se então uma das categorias de análise mais importantes para entender como os saberes são construídos e a que eles se prestam nas relações humanas que pressupõem sempre relações de poder. Para Foucault, o discurso deve ser considerado no jogo de sua instância, o que significa

compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. (FOUCAULT, 2002, p.31)

Para Foucault, nas relações humanas, quaisquer que sejam elas, o

poder está sempre presente, mas essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas. Foucault, dessa maneira, desloca a noção de poder como característica apenas das instituições e como algo estático e de conseqüências somente negativas, afirmando que o poder está nos sujeitos e que ele circula, uma vez que ele não tem um eixo gerador, mas se exerce de forma difusa em todas as relações humanas. O poder, portanto, não é sempre um mal, ele possui uma eficácia positiva, por seu caráter disciplinar e normalizador. Foucault explica por que o poder se mantém:

Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse somente por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. (FOUCAULT, 2007, p. 148)

Além do mais, como as relações não são estáticas ou fixas, há sempre

a possibilidade de se inverterem os papéis. Foucault relativiza a noção de poder, destituindo-o de um caráter estático e negativo, ao mostrar que circula e é dinâmico.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

158

Assim, a partir da leitura de Foucault somos levados a pensar sobre o modo como certas coisas são constituídas, pensar sobre aquilo que temos como dado, que é naturalizado em nós a tal ponto que dificilmente nos damos conta de seu processo de constituição. O poder não tem uma essência, ele simplesmente existe como prática. Investigar o discurso enquanto prática que naturaliza certas verdades, significa desnaturalizar o que pode figurar como pressuposto.

Acreditamos que essas reflexões trouxeram um novo vigor às ciências sociais de maneira geral e, particularmente, para a Análise do discurso. Como foi dito, nossas relações, quaisquer que sejam, são sempre relações de poder. Estamos, inevitavelmente, mergulhados num universo de disputas em que micro-poderes estão em jogo. Mas essas relações também parecem tão naturalizadas a ponto de que nem sempre nos damos conta disso. Mais do que nunca, é necessário refletir sobre essa relação discurso e poder e a sala de aula constitui espaço privilegiado para essas discussões. Discurso é prática: algumas considerações

A linguagem tem o poder de construir sonhos, de dar existência a utopias e, assim, apoderar-se das consciências e pôr em marchas mudanças. A vida humana altera-se, porque os homens são dotados de linguagem.

Fiorin, 2007.

Todas as vezes em que usamos a palavra estamos agindo sobre nós mesmos e sobre o outro, é por isso que dizemos que o discurso é uma prática. A palavra materializa valores, crenças e visões de mundo, por isso através dela realizamos ações. Transformar o que passa pela nossa cabeça em palavras aparenta ser muito simples, mas subjacentes a essas materialidades estão sentidos, produzindo efeitos sobre nós mesmos e sobre o outro. Desse modo, o discurso constitui um fazer, é uma prática. Ao distanciar a noção de palavra de um sentido mais abstrato e considerá-la como ação, a AD reforça o caráter concreto do discurso. Falamos aqui de algo que pode ser sintetizado pela máxima popular as palavras têm poder. Com palavras, aceitamos ou rejeitamos, afirmamos ou negamos, revelamos ou escondemos...

Discurso é prática! E as nossas práticas, por mais corriqueiras que sejam, produzem efeitos, constroem sujeitos, reforçam modelos, criam realidades. Refletir sobre a linguagem de modo mais amplo deve ser tarefa da escola e para tanto, defendemos a Análise de discurso como uma das ferramentas mais produtivas para que o trabalho em sala de aula possa oportunizar a formação de cidadãos que compreendam a língua de maneira mais ampla, reconhecendo que ela não é um instrumento de comunicação

Page 81: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

159

somente, mas aquilo de mais fundamental que constitui o sujeito, inserido em práticas sociais. . Leituras e sentidos

Para a Análise do Discurso (AD) todo texto materializa discursos. No processo de leitura, é o leitor que busca desvendar os sentidos, através do estabelecimento de relações possíveis. Há muitas possibilidades de leitura, como são vários os leitores. Cada um aciona os mecanismos de que dispõe na tentativa de dar sentido ao texto.

Segundo Orlandi (2001, p 117) a AD está interessada em

problematizar a relação com o texto, procurando apenas explicitar os processos de significação que nele estão configurados, os mecanismos de produção de sentidos que estão funcionando. Compreender na perspectiva discursiva, não é, pois, atribuir um sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se põe em jogo um determinado processo de significação.

Sabemos que o sentido não está no texto, mas é construído pelo leitor

na interação com o texto; esse diálogo, no entanto, não esgota suas possibilidades de leitura. A prática de leitura proposta pela AD será direcionada pelo propósito de estabelecer relações entre elementos, extrapolando os limites puramente lingüísticos dos textos. Valores políticos, econômicos, sociais, históricos, estéticos e outros motivam e repercutem de algum modo nos textos, e sua análise em articulação com os elementos lingüísticos deve nortear o processo de leitura.

A AD, portanto, rejeita a leitura redutora, que considera os textos a partir somente dos seus elementos lingüístico-estruturais. Considerar a linguagem somente como estrutura limita a compreensão, desconsiderando a noção de discurso. Ao contrário, a leitura plural vê os elementos lingüísticos em sua relação com as condições sócio-históricas em que foram produzidos. Leitura plural, porém, não significa que o texto autoriza toda e qualquer leitura. Os textos dizem algumas coisas e silenciam outras, autorizam determinadas leituras e interditam outras, porque estão carregados de discursos.

Portanto, é necessário que o professor reconheça o texto não apenas como estrutura, formada de frases e orações que podem descritas linguisticamente, mas, sobretudo, como acontecimento, já que constitui o dizer

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

160

produzido por alguém num determinado momento histórico. Todo texto surge a partir de uma situação enunciativa real, algo determinou seu aparecimento. Os textos não surgem do nada, eles estão sempre inscritos numa rede de outros dizeres existentes na sociedade e por isso são sempre uma resposta, uma pergunta, um questionamento, uma afirmação ou negação de um conjunto de formulações existentes que possibilitam que novos dizeres possam aparecer. Por fazer parte dessa rede enunciativa, nenhum sentido é transparente ou evidente, sempre há a possibilidade de se estabelecerem relações diversas, num processo de leitura, que nunca deve ser limitado à busca do estabelecimento do sentido único e fechado. Não há o sentido, mas sentidos que povoam as palavras e que estão pululando em volta delas à medida que tentamos captá-los. Os sentidos não se esgotam com a leitura, por mais atenta que ela seja, porque várias são as articulações que os diferentes leitores podem realizar a partir do seu contato particular com os textos.

O leitor atento, no entanto, deve estar preocupado em entender as condições de aparecimento dos discursos. Como é possível que se diga deste modo e não de outro numa situação enunciativa. Interessa perceber como os dizeres estão funcionando para afirmar ou negar, se aproximar ou se distanciar de um conjunto de outros enunciados que já existem na sociedade. Nesse processo, regimes de verdade estão sendo instituídos e cristalizados, o que demonstra como a linguagem constitui os sujeitos. Somos assim e não de outro modo, porque ao nascer, entramos num mundo de discursos, que vão constituir nosso pensamento, nossa maneira de dar sentido às coisas, ao mundo. Os discursos preexistem a nós e nos atravessam, constituindo o que somos. Essa idéia de atravessamento nos autoriza a pensar em discursos que se distribuem de uma forma difusa, mas com força suficiente para determinar, constituir e explicar as coisas, nós mesmos e o mundo.

Os discursos, portanto, constroem as subjetividades. Somos desse modo e não de outro porque vivemos num mundo de discursos. Os discursos configuram a maneira de pensar e os modos de dizer e de agir nas situações sócio-históricas. Os discursos, desse modo, só podem ser pensados como práticas discursivas articuladas com determinadas condições econômicas, sociais, políticas, culturais.

Observando a materialidade verbal e/ou não-verbal não apenas como estrutura, mas pelas relações que se estabelecem entre as práticas discursivas e as condições econômicas, sociais, políticas e culturais, e objetivando compreender os efeitos de sentido possíveis nos processos de leitura, a AD se firma como um das áreas mais produtivas para o desenvolvimento do leitor competente.

A propósito de nossas discussões sobre o ensino da língua, vejamos os textos a seguir:

Page 82: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

161

Texto 1:

Texto 2: CHURRASCO NA GRANJA DO TORTO Lula oferece um churrasco na Granja do Torto. Ficou surpreso ao verificar que havia um monte de sacos de cal no local do churrasco. Perguntou ao Prof. Luizinho: - Quem pediu esses sacos de cal? - O senhor - respondeu o Professor. - Eu? - perguntou indignado. - Sim, foi o senhor mesmo, companheiro. - Mas como você me acusa de uma coisa dessas, companheiro? - esbraveja irado, elegante com sua face vermelha combinando com um terno Armani novinho. - Lógico! - Disse o Luizinho mostrando ao ilustre o bilhete que o mesmo havia deixado para compras. Estava claramente escrito: “102 kilo de CAL”. - Mas você é iletrado mesmo, companheiro! - disse o Lula, babando de ódio com a ousadia do Deputado. - Apenas esqueci de por cedilha no C. É lógico

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

162

que era ÇAL para o churrasco. E aonde você viu que eram 102, seu retardado? Escrevi 1 ô 2 kilo, seu burro!!!

Escrito por Eleitor descontente em 29/05/2006 no site: http://www.piadadepolitico.globolog.com.br/

Num processo de leitura, condizente com a proposta da Análise do

discurso, poderíamos, diante de textos como esse, pensar sobre questões como as seguintes:

• Em que gênero esses textos se inscrevem? Por que nesses gêneros

e não em outros? Onde e como esses gêneros podem circular? Por quê?

• Qual a relação entre a materialidade lingüística e os gêneros nos quais esses textos se inscrevem?

• Como funciona o humor para que os sentidos possam se constituir?

• Qual a relação que se estabelece entre linguagem verbal e não-verbal no primeiro texto?

• Que efeitos de sentido provocam? • Que redes de memória podem ser ativadas a partir dos efeitos de

sentido produzidos pelos textos? Ou que outros dizeres existentes na sociedade podem ser retomados/atualizados a partir da leitura desses textos?

• Que sentidos silenciam? • Por que tais palavras provocam esses efeitos e não outros? • Quem são os sujeitos que falam para falarem assim? • Inscrito numa determinada racionalidade/lógica, que verdades

instituem ou rejeitam? Reforçam estereótipos? • Que conjunto de enunciados existentes na sociedade esses textos

reafirmam? Que enunciados contradizem? • Que articulações podemos fazer entre esses textos e as relações de

poder existentes na sociedade? • Como foi possível o aparecimento desses ditos? Que condições

sócio-históricas permitem o aparecimento desses dizeres? Que relações podemos estabelecer entre os ditos e as condições sócio-históricas de sua existência?

Textos como esses certamente possibilitam a emergência de boas

discussões e polêmicas, o que deve ser incentivado pelo professor, responsável por promover a circulação dos discursos na sala, fazendo com que esse espaço

Page 83: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

163

seja, de fato, um lugar de produção e análise de discursos. A leitura dos textos deve oportunizar que os alunos se posicionem, discutam as idéias, apresentem argumentos, produzam discursos de aceitação, questionamento ou recusa diante de temas como educação, família, futebol, política, mídia, humor, relações de poder... Ao professor, não cabe estabelecer as verdades definitivas e inquestionáveis sobre os textos. Importa, sobretudo, conduzir a discussão para que se percebam as condições de aparecimento dos discursos: Por que é possível pensar e falar desse modo e não de outro? – seria uma das perguntas fundamentais.

Promover discussões mais amplas sobre a linguagem em sala de aula pressupõe um professor que domine alguns conhecimentos básicos sobre esse novo modo de encarar os acontecimentos lingüísticos, mas exige, sobretudo, a assunção do compromisso imposto pela responsabilidade de formar cidadãos. Acreditamos que os professores realmente comprometidos com o seu papel na sociedade há muito têm percebido que a formação de leitores competentes é muito mais significativa e urgente do que de repetidores de informações. O que importa são os objetivos reais que norteiam as práticas. Acredito que a questão pode ser sintetizada pela pergunta: por que fazer assim e não de outro modo?

Repensando práticas

Num artigo fundamental para compreender o ensino de língua no

Brasil, Mendonça (2006) analisa o que ela chama de políticas de fechamento de possibilidades de trabalho com a língua na escola que “agem contra a heterogeneidade e imprevisibilidade do discurso”. Para a autora, se bem-sucedidas, essas políticas

realizam momentaneamente um silenciamento das inúmeras possibilidades de sentidos de textos, uma estereotipação do gênero discursivo e um banimento das variedades lingüísticas não-privilegiadas a terreno ocupado por aqueles que não terão oportunidades na vida. (MENDONÇA, 2006. p. 244)

Para uma prática educativa mais produtiva e livre de modelos que

cerceiam as possibilidades de leituras plurais, o professor precisa estar disposto e preparado para planejar suas aulas, sem estar restrito a modelos cômodos e impostos, como é o caso dos livros didáticos. Limitar-se ao livro didático, por sua própria condição de material preparado a partir de certos interesses, visões de mundo e realidades generalizantes, restringe, delimita e impõe determinados enfoques de leituras e análises, empobrecendo as aulas de língua.

O professor consciente de seu papel deve exercer sua liberdade e autonomia, planejando suas aulas a partir de uma diversidade de textos,

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

164

interessantes, significativos e relacionados às condições reais de existência de sua comunidade escolar, para que possam suscitar respostas. Fragmentos de textos clássicos, notícias velhas, charges e propagandas desatualizadas e cristalizadas no livro didático, por exemplo, limitam a interpretação de sentidos possíveis e silenciam discursos dos alunos, que se desmotivam a falar de algo que não lhe diz respeito, por não fazer parte de sua realidade. O planejamento das aulas deve, portanto, estar centrado em textos de existência real, funcionando efetivamente na sociedade em que os sentidos se constroem na própria efervescência dos acontecimentos. Desse modo, o aluno deve ser incitado a falar de algo que lhe afeta, que diz respeito à sua existência, que faz parte de suas práticas, fazendo com que perceba a relação indissociável entre linguagem e vida. O sujeito-aluno, dessa forma poderá se constituir como um sujeito de dizer, envolvido numa rede dialógica real e não forjada ou fictícia.

Acreditamos que vale mais a pena trabalhar com aquela notícia que saiu ontem e não com aquela congelada no livro didático e que não precisa mais suscitar dizeres porque nada mais poderá ser feito. Aquela notícia do livro, no entanto, também pode suscitar um diálogo interessante com aquela poesia de Manuel de Barros ou com aquele conto de Lígia Fagundes Teles que o professor havia selecionado a partir de outros objetivos. O que estamos querendo dizer é que o ensino deve fugir a limitações, quaisquer que sejam. As relações dialógicas entre os textos são as mais diversas e o professor, com habilidade e criatividades deve aproveitar todas as situações para ampliar os horizontes de leitura de seus alunos. Analisar a propaganda veiculada nos outdoors da cidade, as piadas presentes no cotidiano da classe, as músicas cantadas pelos alunos, as histórias contadas pelos seus avós, as charges da semana, o horóscopo do mês, as receitas usadas em casa, os avisos, placas e cartazes existentes no trajeto até a escola, as frases de caminhão, as orações, os e-mails, blogs ou as correntes que circulam na internet e todos os demais gêneros existentes e relacioná-los a outros deve servir para permitir uma maior articulação de dizeres e sentidos. O aluno deve aprender a posicionar-se como sujeito de práticas discursivas, sujeito que pode lançar sua contrapalavra, sujeito que pelo dizer, pode modificar sua própria existência. Sobre isso, é interessante retomarmos Mendonça (2006) nos alerta para o fato de que as políticas de fechamento as quais analisa no texto já citado anteriormente, em conjunto, configuram “uma teia em que se pretende prender o sujeito e seu discurso, num processo (diga-se projeto) não só de homogeneização e monologização, mas também de silenciamento do sujeito”.

Page 84: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

165

As leituras, propostas em sala de aula, portanto, devem extrapolar as questões puramente lingüísticas ou estruturais, tendo em vista as práticas discursivas envolvidas nas práticas sociais em que os sujeitos estão inseridos. Para isso, a enunciação é o que interessa, o acontecimento que permite que algo seja dito desse modo e não de outro, numa situação de uso da língua. O gênero trazido para a sala de aula deve significar pelo acontecimento de seu retorno naquela nova situação comunicativa que é a sala de aula. O gênero será deslocado de sua situação efetiva de uso na sociedade para que se possa compreender de que maneira a linguagem é usada efetivamente em nossa sociedade e quais os efeitos desse uso, configurando nossas relações com nós mesmos, com o outro e com o mundo. Pensamos que, desse modo, as aulas de língua sempre estariam voltadas para a análise de enunciados reais, efetivamente produzidos e situados numa situação sócio-histórica definida, ao invés de frases ou textos descontextualizados que se prestam tão somente a análises lingüísticas superficiais, o que oportunizaria uma formação escolar mais ampla, ancorada numa metodologia realmente transdisciplinar que possibilitasse uma visão menos compartimentada dos saberes, contribuindo assim para o desenvolvimento de uma postura política e ética.

Nesse sentido, a sala de aula seria um espaço de ensino em que as situações enunciativas se tornariam menos artificiais, permitindo a reflexão mais ampla das relações entre a linguagem e o poder.

É necessário que estejamos sempre dispostos a refletir sobre o ensino da língua na escola e sobre o nosso papel como professores, para que possamos repensar práticas e adotar uma postura cada vez mais condizente com nossa responsabilidade na formação de alunos-cidadãos.

Referências

FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2ª ed. São Carlos: Claraluz, 2007. FIORIN, J. L. O poder criador da linguagem. Revista Língua Portuguesa, São Paulo, Ano II, n. 22, p. 54-55, ago. 2007. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. __________. Subjetividade e verdade. A hermenêutica do sujeito. In: Resumos do Cursos do Collége de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. __________. A ordem do discurso. 14ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

166

GREGOLIN, M. R. V. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In FERNANDES, C. A. e SANTOS, J. B C. (Orgs.) Análise do Discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2004. MENDONÇA, M. C. Língua e Ensino: Políticas de Fechamento. In: MUSSALIM, F. e BENTES, A. C. (orgs.) Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras, v. 2. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2006. PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990. _____. Semântica e Discurso. KOCH, I. V e ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006. DIONISIO, A. P. et alii (orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. ROJO, R. (org.) A prática da linguagem em sala de aula: Praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas, SP: Mercado das Letras, 2000.

Page 85: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

167

A CRIAÇÃO DE ANIMAÇÕES PARA VISUALIZAÇÃO DA ARTICULAÇÃO DOS SONS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO67

Juliano Desiderato Antonio68

UEM Laís Hissae Ito

PIBIC/UEM Resumo

Neste trabalho, descreve-se o processo de criação de animações para visualização da produção dos sons do Português Brasileiro por meio de software livre. Espera-se que a disponibilização dessas animações na internet sirva como recurso facilitador para o ensino de Fonética e como recurso que pode promover discussões sobre o ensino de ortografia. Palavras-chave: Fonética; animação; aparelho fonador. Abstract

This paper describes the process of creation of animations for the visualization of the articulation of Brazilian Portuguese sounds using free software. It is expected that the release of these animations on the internet can be a useful resource to the teaching of Phonetics and as a resource that can encourage discussions about the teaching of spelling.

Keywords: Phonetics; animation; vocal organs. Introdução

A utilização de recursos tecnológicos na educação e na pesquisa científica é, sem sombra de dúvidas, um desafio a ser enfrentado na área de Ciências Humanas. É de conhecimento geral que os avanços tecnológicos têm trazido benefícios para todas as áreas de conhecimento, inclusive para a área das Ciências Humanas. Observa-se, no entanto, que a popularização desses avanços não se dá de forma homogênea em todos os lugares do mundo. No 67 Agradecemos o apoio financeiro recebido da PPG/UEM por meio do Edital 09/2007 e a bolsa de

Iniciação Científica concedida pela Fundação Araucária. 68 E-mail: [email protected].

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

168

Brasil, por exemplo, as inovações tecnológicas parecem não estar presentes com tanta frequência no campo dos Estudos Lingüísticos, embora existam muitas ferramentas computacionais que poderiam facilitar o ensino e o trabalho de pesquisa.

Neste artigo, pretende-se descrever o processo de criação de um site com animações interativas da articulação de todos os sons do português brasileiro (de agora em diante, PB) por meio de software livre, ou seja, ferramentas computacionais de código aberto. Foram feitos testes com vários programas de código aberto (programas livres) para se verificar quais seriam mais adequados às finalidades do projeto. Optou-se pelo programa Pencil, um programa de gráficos vetoriais para animações em 2-D.

A disponibilização dessas animações na internet, no site http://www.dle.uem.br/fonetica, permite que pesquisadores, professores e alunos de Letras/Lingüística (e de áreas afins) tanto do Brasil quanto do exterior não apenas observem o funcionamento de cada órgão do aparelho fonador, mas também tenham à disposição uma ferramenta que pode facilitar o ensino de Fonética tanto no Ensino Médio quanto nos cursos de Letras.

A delimitação dos sons a serem animados

Os métodos para descrição dos sons da fala, incluindo sua classificação e transcrição, são objeto de estudo da fonética (SILVA, 2001), ou seja, a fonética estuda os sons produzidos pelo aparelho fonador humano que exercem função na língua. Dentre as principais áreas de interesse da fonética, a que diz respeito a este trabalho é a fonética articulatória, que estuda, a partir do ponto de vista fisiológico e articulatório, como os sons da fala são produzidos pelo aparelho fonador.

De acordo com Lyons (1982), os chamados órgãos da fala que formam o aparelho fonador têm outras funções que nada têm a ver com a produção de sons. Os pulmões, por exemplo, oxigenam o sangue. As cordas vogais, quando reunidas, fecham a traquéia, impedindo que entre comida. Dessa forma, a produção de sons é uma função secundária desses órgãos.

Todo som do português é produzido a partir da corrente egressiva do ar, quando o ar é expelido do pulmão. A partir daí, se o ar sai livremente, tem-se um som vocálico. Caso encontre alguma obstrução, tem-se um som consonantal (BORBA, 1991). A descrição dos sons consonantais é feita com base em três critérios: o lugar de articulação, o modo de articulação e o estado da glote.

O lugar de articulação é o ponto onde se encontram os articuladores que criarão a obstrução para a saída do ar (LAVER, 2003). Os lugares de articulação relevantes para produção de sons do PB são os seguintes (SILVA, 2001): bilabial (lábio inferior e lábio superior), como em pato e barco;

Page 86: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

169

labiodental (lábio inferior e dentes superiores), como em faca e vaca; dental (ápice da língua e dentes superiores) ou alveolar (ápice da língua e alvéolos), como em tatu e dado; alveopalatal (parte anterior da língua e parte medial do palato duro), como em chá e já; palatal (parte média da língua e parte final do palato duro), como em ganhar e palhaço; velar (parte posterior da língua e véu palatino), como em rato, gato e cadeira.

O modo de articulação é a posição que os articuladores assumem, indicando como o ar irá sair e qual o grau de estritura para a saída do ar (LAVER, 2003). Os modos de articulação relevantes para o PB são: oclusivo (obstrução completa à saída do ar pela cavidade oral), como em pato, barco, tatu, dado, gato e cadeira; nasal (abaixamento do véu palatino para que o ar que vem dos pulmões saia pela cavidade nasal), como em mau; fricativo (os articuladores se aproximam para que se produza uma fricção na saída do ar), como em faca, vaca, chá, já e rato; africado (oclusão seguida de fricção), como em tia e dia (pronúncia dos cariocas); vibrante simples ou tepe (o articulador móvel toca rapidamente o articulador fixo), como em araraquara; vibrante múltipla (o articulador móvel toca várias vezes o articulador fixo), como na pronúncia de expressões do tipo “orra meu!” em alguns dialetos do PB; retroflexo (levantamento e encurvamento da língua em direção ao palato duro), como na pronúncia chamada “caipira” de um vocábulo como amor; lateral (com a obstrução à saída do ar pelo meio da cavidade oral, o ar sai pelos lados), como em lata e palhaço.

Com respeito ao estado da glote, os sons podem ser vozeados ou

desvozeados. No primeiro caso, as cordas vocais (músculos da glote) encontram-se próximas e a saída do ar produz vibração. No segundo caso, as cordas vocais encontram-se afastadas e a passagem do ar não produz vibração.

No caso dos sons vocálicos, os parâmetros articulatórios relevantes para a classificação dos sons são diferentes, uma vez que a passagem do ar não encontra qualquer obstrução. Dessa forma, os critérios são altura da língua, anterioridade/ posterioridade da língua e arredondamento dos lábios (SILVA, 2001).

O critério altura da língua diz respeito ao posicionamento vertical da língua e, no PB, são considerados quatro níveis de altura: alta, média-alta, média-baixa, baixa. Por sua vez, o critério anterioridade/ posterioridade da língua se refere ao posicionamento horizontal da língua e divide a cavidade

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

170

oral em três partes simétricas: anterior (frente), central e posterior (final). Por fim, o critério arredondamento dos lábios está relacionado ao formato assumido pelos lábios durante a articulação de um som, que pode ser estendido ou arredondado.

A transcrição dos sons é feita com base em uma tabela de símbolos proposta pela Associação Fonética Internacional chamada alfabeto fonético internacional, também conhecida como IPA (International Phonetic Alphabet). No IPA, encontram-se símbolos para descrever todos os sons de todas as línguas naturais do mundo, como pode ser observado na figura 1.

Page 87: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

171

Figura 1 – Quadro do alfabeto fonético internacional (em inglês), encontrado no site do Summer Institute of Linguistics

(SIL) Nos quadros 1 e 2 a seguir, apresentam-se, respectivamente, os sons

consonantais e os sons vocálicos do PB (CÂMARA JR., 1980; ILARI & BASSO, 2006; SILVA, 2001; SILVEIRA, 1986; SOUZA & SANTOS, 2003a; SOUZA & SANTOS, 2003b):

Bilabial

Labiodental

Dental ou

Alveolar

Alveopalatal Palatal Velar Glotal

desv p t k Oclusiva voz b d g desv tΣ Africada voz dΖ desv f s Σ x h Fricativa voz v z Ζ ⊗ ⎩

Nasal voz m n ⎠ ψ) Tepe voz Ρ Vibrante voz R& Retroflexa voz ♦ Lateral voz l ℜ × lϑ

Quadro 1 – Quadro dos sons consonantais do PB segundo Silva (2001)

anterior central posterior arred não-arred arred não-arred Arred não-arred

Alta i U média-alta e o média-baixa Ε Baixa a

Quadro 2 – Quadro das vogais tônicas orais do PB segundo Silva (2001) Criação e manipulação dos desenhos do aparelho fonador

O primeiro passo do desenvolvimento das animações foi a criação de

um desenho de uma M-CABEÇA, ou seja, a visão lateral anatômica de uma cabeça cortada ao meio verticalmente. Embora tenha o nome de M-CABEÇA,

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

172

esse desenho se inicia no pescoço, uma vez que todos os órgãos envolvidos na produção dos sons devem ser representados. Assim, esse desenho contempla os lábios, os dentes incisivos, os alvéolos, o palato duro, o véu palatino, a úvula, a língua, a cavidade nasal, a faringe e a glote. O resultado a que se chegou é representado na figura 2 a seguir, com a indicação dos nomes das partes que participam da articulação dos sons.

Figura 2 – Desenho do aparelho fonador

O desenho da figura 2 foi escaneado e traçado no computador por meio

do programa Draw, software livre componente do pacote Open Office. Os desenhos de cada som eram feitos sequencialmente levando-se em conta a posição inicial, as posições intermediárias e a posição final dos articuladores ativos e dos articuladores passivos na produção do som. Ao todo, foram feitos 204 desenhos em sequência dos sons consonantais e 49 desenhos em sequência de sons vocálicos. Criaram-se pontos de edição nos desenhos para que modificações pudessem ser realizadas. Dessa forma, as animações poderiam ser criadas a partir da apresentação das imagens em sequência com pequenas alterações consecutivas. Na figura 3 a seguir, apresenta-se a sequência de imagens

Page 88: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

173

para criação da animação do som do segmento consonantal [f].

Figura 3 – Sequência de imagens para criação da animação do som do segmento

consonantal [f] Como pode ser observado no exemplo, pequenas alterações foram sendo

feitas em cada imagem para que se pudesse, durante a execução da animação, ver os lábios inferiores se movendo até encontrarem os dentes incisivos superiores e voltando à posição inicial. Para a maioria dos sons, sete imagens foram o suficiente para criar a animação. Entretanto, outros sons com mais detalhes exigiram até 13 imagens.

Criação das animações

O software utilizado para criação das animações do aparelho fonador foi o

Pencil, um programa de gráficos vetoriais para animações em 2-D, disponível para download em http://www.pencil-animation.org. De acordo com o programador que criou esse software, sua intenção não foi a de concorrer com o programa Flash, da Adobe, mas, sim, de disponibilizar um programa que permitisse criar animações tradicionais em 2-D.

Após a importação das imagens na sequência em que devem aparecer no desenho, o Pencil gera um arquivo swf (flash) com a animação. Optou-se pela animação em flash pelo fato de a maioria dos usuários de computador terem o plug-in flash instalado em seus navegadores. Deve-se observar que, embora o formato das animações seja swf, não se utilizou o programa comercial Flash, da Adobe, para criação das animações.

A criação das animações por meio do Pencil é semelhante à criação de um desenho animado. Importa-se um desenho para a tela, determina-se por quantos frames ele deverá ficar ativo, importa-se outro desenho com uma pequena modificação que substituirá o primeiro e assim sucessivamente. Quando todos os desenhos já foram importados e a quantidade de frames que durarão já foi determinada, o programa gera a animação.

Na figura 4 a seguir, apresenta-se uma tela do programa Pencil. Pode-se observar, na janela principal do programa, a figura que está sendo animada. À esquerda, encontram-se as ferramentas para desenhar e, à direita, encontra-se a paleta de cores. Na parte inferior da tela, estão os recursos mais importantes para a animação: as camadas (layers), a linha do tempo (time line) e taxa de frames por

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

174

segundo (fps).

Figura 4 – Tela do Pencil

Os elementos que compõem a animação são organizados em camadas. No

caso das animações do aparelho fonador, utilizou-se apenas a camada de bitmaps (os arquivos das imagens das animações foram criados nesse formato). Infelizmente, o Pencil não exporta animações com som, motivo pelo qual não se utilizou a camada para essa finalidade. Para se contornar esse problema, no site em que estão hospedadas as animações, ao clicar sobre um determinado som, abre-se uma nova tela na qual o visitante pode acessar separadamente a animação e o som. O ideal é que o som estivesse inserido na animação, mas, como isso ainda não é possível com o Pencil, por enquanto, os sons ficarão separados das animações.

Na linha do tempo, representada na figura 4 por uma linha que se inicia no número 1 e vai até o número 65, dispõe-se a sequência de imagens que criam a animação. Por exemplo, no frame 1, coloca-se a primeira imagem da sequência da animação. Podem ser deixados alguns frames em branco e, então, insere-se a

Page 89: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

175

segunda imagem e assim sucessivamente. A velocidade de execução dessa sequência de imagens é a taxa de frames por segundo (fps). Quanto maior o valor, mais rápido o programa executa a animação. No caso da animação do som [k], exemplificado na figura 4, utilizou-se uma taxa de 5 fps para que os detalhes da produção do som pudessem ser percebidos.

Por fim, com as animações prontas, o conteúdo foi disponibilizado no site http://www.dle.uem.br/fonetica. Ao acessar o site, o visitante é informado de que deve ter o plug-in flash instalado em seu navegador de internet, caso contrário, não será possível visualizar as animações (figura 5).

Figura 5 – Tela de abertura do site

Uma vez no site, o visitante pode optar por visualizar as animações

dos sons consonantais (figura 6) ou dos sons vocálicos (figura 7).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

176

Figura 6 – Tela com os sons consonantais

Page 90: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

177

Figura 7 – Tela com os sons vocálicos

Ao clicar sobre um som, abre-se uma outra tela, na qual o visitante

pode visualizar a animação ou ainda ouvir o som representado na animação por meio de algum programa que execute arquivos mp3. Essa tela é exemplificada, na figura 8, por meio do som [k].

Figura 8 – Tela com exemplos e a descrição articulatória do som [k]

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

178

Por fim, na figura 9, pode-se observar um exemplo de uma animação do

site. No exemplo, a parte posterior da língua se encontra com o véu palatino para produzir uma obstrução à corrente de ar para produção do som [k].

Figura 9 – Parte posterior da língua se encontra com véu palatino para produzir

obstrução à passagem da corrente de ar para produção do som [k] Utilizando os recursos do site, professores de Língua Portuguesa do

Ensino Fundamental e do Ensino Médio podem, além de entender como se dá a produção dos sons na linguagem humana, fazer um levantamento das letras que podem representar um determinado som e dos sons que podem ser representados por cada letra, na busca de uma melhor compreensão do sistema ortográfico do PB. Professores de português como língua estrangeira também pode utilizar o site como recurso para que seus alunos tenham maior facilidade na produção de sons do PB que eles desconhecem. No curso de Letras, professores e alunos podem utilizar o site como ferramenta que auxilia na compreensão dos textos teóricos que explicam a fonética articulatória e a produção dos sons do PB.

Considerações finais

Neste trabalho, procurou-se apresentar o processo de criação de

animações interativas para visualização da produção dos sons do PB por meio

Page 91: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

179

de um programa de código aberto (software livre) e posterior disponibilização do conteúdo em um site. A criação dessas animações como recurso facilitador para o ensino de Fonética no curso de Letras e como recurso que pode promover discussões sobre ortografia no Ensino Fundamental e no Ensino Médio só foi possível em função de uma abordagem interdisciplinar, uma vez que este trabalho se situa na interface entre Ciências Exatas e Ciências Humanas. As Ciências Exatas fornecem as ferramentas e as Ciências Humanas fornecem o método de descrição do aparelho fonador para que a disponibilização dessas animações na internet permita a pesquisadores, professores e alunos de Letras/Lingüística (e de áreas afins) tanto do Brasil quanto do exterior a observação do funcionamento de cada órgão do aparelho fonador. Referências bibliográficas BORBA, F. S. Introdução aos estudos lingüísticos. 11. ed. Campinas: Pontes, 1991. CÂMARA JR, M. C. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1980. ILARI, R.; BASSO, R. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. S. Paulo: Contexto, 2006. IPA. Disponível em <www.sil.org>. LAVER, J. Linguistic Phonetics. In: ARONOFF, M.; REES-MILLER, J. (Eds.) The handbook of linguistics. Malden, MA: Blackwell Publishers, 2003, p. 150-179. LYONS, J. Língua(gem) e lingüística: uma introdução. R. de Janeiro: Zahar, 1982. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. S. Paulo: Contexto, 2001. SILVEIRA, R.C.P. Estudos de Fonologia Portuguesa. S. Paulo: Cortez, 1986. SOUZA, P.C.; SANTOS, R.S. Fonética. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução a Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003a. p. 9-31. ______. Fonologia. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução a Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003b. p. 33-58.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

180

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS EM 2007

1. Gêneros textuais no ensino médio: uma experiência com o artigo de opinião Autor (a): Fernanda Isabela Oliveira Freitas

2. O dinamismo da linguagem em alguns contos de primeiras estórias Autor (a): Wallas Ferdinando Ramos Bezerra

3. Saberes lingüísticos sobre escrita mobilizados por professores e alunos em processo de reescrita textual Autor (a): Symone Nayara Calixto Bezerra

4. O balé dos canibais Autor (a): Kléber José Clemente dos Santos

5. Da imaginação às páginas, do livro à sala de aula: cinderela em Narizinho Arrebitado e Cara de Coruja Autor (a): Rafael José de Melo

6. Leitura de poesia: uma experiência na alfabetização Autor (a): Diná Menezes da Silveira

7. A recepção da leitura literária: uma experiência com livros da coleção Literatura em Minha Casa Autor (a): Rute Pereira Alves de Araújo A análise lingüística em benefício da leitura: uma proposta para o estudo do adjetivo Autor (a): aluna Laura Dourado Loula

8. O letramento escolar: descrição de uma proposta de ensino do seminário Autor (a): Marcelo Clemente Silva

9. Um olhar sobre a família em A Bolsa Amarela: entre o texto e a sala de aula Autor (a): Severina Diosilene da Silva Maciel

10. Demanda profissional e letramento(s) em contexto de educação de jovens e adultos Autor (a): Kátia Coelli Barbosa da Silva

11. Formação de instrutores: uma experiência que prepara surdos para a docência Autor (a): Rosalva Dias da Silva

Page 92: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

181

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

A revista Leia Escola é um periódico do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Unidade Acadêmica de Letras da Universidade Federal de Campina Grande, que aceita para publicação as seguintes contribuições: artigos inéditos, resultado de pesquisas no âmbito da linguística aplicada ao ensino de línguas e de literaturas e resenhas críticas de publicação nas áreas de Letras e Linguística. Os interessados em publicar artigos na Leia Escola devem enviar os trabalhos para o e-mail: [email protected]. NORMAS PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS A revista Leia Escola é um periódico do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Unidade Acadêmica de Letras da Universidade Federal de Campina Grande, que aceita para publicação as seguintes contribuições: artigos inéditos, resultado de pesquisas no âmbito da linguística aplicada ao ensino de línguas e de literaturas e resenhas críticas de publicação nas áreas de Letras e Linguística. Os interessados em publicar artigos na Leia Escola devem enviar os trabalhos para o e-mail: [email protected], em dois arquivos, até o dia 30 de novembro de 2009. No 1° arquivo deve constar o texto completo com a devida autoria (máximo de dois autores), filiação acadêmica, endereço, telefones para contato, e-mail. No 2° arquivo deve constar o texto sem informação que identifique a autoria. Os trabalhos devem conter as seguintes características gerais de formatação: página A-4, fonte Times New Roman, tamanho 12, margens 2,5 cm, espaço simples, alinhamento justificado, em documento do Word versão 97-2003, parágrafos com recuo de 1,5 cm. O trabalho completo deve ser apresentado, considerando os seguintes itens: 1. O título centralizado, no topo da página, tamanho 14, caixa alta e negrito. 2. O(s) nome(s) do(s) autor(es), a dois espaços simples abaixo do título, alinhado à direita, tamanho 11, indicado(s) por asterisco, em nota de rodapé, a(s) titulação(ões) e filiação(ões) institucional(ais).

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

182

3. O termo Resumo, em negrito, tamanho 10, a dois espaços simples abaixo do(s) nome(s) do(s) autor(es), seguido por dois pontos e um texto digitado em parágrafo único, tamanho 10, espaço simples, alinhamento justificado, contendo de 100 a 120 palavras, em português. 4. A expressão Palavras-chave, em negrito, tamanho 10, a um espaço simples abaixo do Resumo, seguida de dois pontos e de 3 a 5 palavras, separadas por vírgula, tamanho 10. 5. O termo Abstract, em negrito, a dois espaços simples abaixo das Palavras-chave, seguido por dois pontos e uma versão em língua inglesa do resumo, contendo as mesmas características estruturais descritas no item 3. 6. A palavra Keywords, em negrito, seguida de dois pontos e de três a cinco palavras em língua inglesa, separadas por vírgula, a um espaço simples abaixo do Abstract, contendo as mesmas características estruturais descritas no item 4. 7. Divisões internas do corpo do trabalho, grafadas na mesma fonte e corpo do texto, em negrito, alinhadas à esquerda e numeradas a partir de 1. Exemplo: 1 Introdução. 8. A primeira divisão interna a três espaços simples da palavra Keywords e o parágrafo inicial a um espaço simples da primeira divisão interna. 9. As demais divisões internas, incluindo as Referências (assim grafadas), a dois espaços simples do parágrafo precedente, seguidas pelo texto a um espaço simples. 10. Citações com até três linhas inseridas no corpo do texto, entre aspas duplas, complementadas da seguinte forma: a) para fazer referências às idéias do autor: ... conforme Deleuze (1974, p. 15); b) para referências após a citação: ... (DELEUZE, 1974, p. 15); c) para parafrasear as idéias do autor: ... (cf. DELEUZE, 1974). (Não usar expressões como “idem” ou “idem, ibidem”). 11. Citações com mais de três linhas apresentadas em margem própria, a dois espaços simples dos parágrafos anterior e posterior, com recuo de 4,0 cm da margem esquerda, espaço simples, corpo 11, sem aspas, nem itálico, seguidas da referência entre parênteses, conforme exemplo: (DELEUZE, 1974, p. 15).

Page 93: Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

183

12. As notas explicativas (se necessário) inseridas ao final de cada página, numeradas a partir de 1. Não utilizar as notas explicativas para Referências. 13. Itálico para ênfase, termos estrangeiros, neologismos, títulos de livros e periódicos. 14. Tabelas, gráficos, quadros ou ilustrações (se houver) numerados e identificados, com título ou legenda (apenas as iniciais em maiúsculas), e referenciados, ao longo do texto, de forma abreviada: Tab. 1, Tab. 2, Fig. 1, Fig. 2 etc. 15. Referências, ao final do texto, em ordem alfabética, sem numeração das entradas, alinhadas somente à margem esquerda, em espaço simples e separadas entre si por espaço simples. (Ver alguns exemplos após o item 17). 16. A quantidade de, no mínimo 10 e, no máximo 20 páginas, englobando todos os itens acima, como também as Referências. Não incluir anexos. Alguns exemplos de Referências: Livro: SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. Título do livro (em itálico): (subtítulo, se houver). Edição. Local de publicação: Editora, Data. Exemplo: BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. Capítulo de livro: SOBRENOME DO AUTOR DO CAPÍTULO, Nome abreviado. Título do capítulo: (subtítulo, se houver). In: SOBRENOME DO AUTOR DO LIVRO, Nome abreviado. Título do livro (em itálico): (subtítulo, se houver). Local de publicação: Editora, Data, páginas inicial e final do capítulo. Exemplo: THERRIEN, J. O saber do trabalho docente e a formação do professor. In: SHIGUNOV NETO, A.; MACIEL, L. S. B. (Org.). Reflexões sobre a formação de professores. Campinas: Papirus, 2002, p. 103-114. Artigo de periódico: SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. Título do artigo: (subtítulo, se houver). Nome do periódico (em itálico), local de publicação, número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final do artigo, mês e ano da publicação.

Leia Escola, Campina Grande, vol. 7, nº 1, 2007 – ISSN 1518-7144

184

Exemplo: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Trabalho Acadêmico: SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. Título (em itálico): (subtítulo, se houver). Local e ano da defesa ou da apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Tese, Dissertação ou Monografia) (Grau Acadêmico, entre parênteses) – Vínculo Acadêmico/Instituição de Ensino. Exemplo: CARRARA, A. A. Agricultores e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Rio de Janeiro, 1997. 230f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Observação: Para as demais regras não esclarecidas aqui, seguir normas atualizadas da ABNT.