revista princípios, vol. 02, número 2, 1995

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, PRINCIPIOS REVISTA DE FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE FILO OFIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO ORTE A 0 II, Vol. II N!! 1 JUNHO DE 1995

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Revista Princípios, Vol. 02, número 2, 1995

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Page 1: Revista Princípios, Vol. 02, número 2, 1995

, PRINCIPIOS

REVISTA DE FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE FILO OFIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO ORTE

A 0 II,Vol. II N!! 1 JUNHO DE 1995

Page 2: Revista Princípios, Vol. 02, número 2, 1995

UNlVERSmADE JiEDERALDO lUO GRANDEDO NOKn: CEN11l0Dl:CIiNcIAsIlUMANAS,LEDlASEAIUES

DUAKfAMENfODEFlLOSOFIA

PRINCiPIOS Revista de Filosofia

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Page 3: Revista Princípios, Vol. 02, número 2, 1995

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2

PRINdPIOS Revistade Filosofia do Departamento de Filosofia da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte :s..-n..si J~\}ovJ\'fvy--.<-- .n 0 rC~(ro ,

<c,''J- ~ Reiter " ' " . Ivonildo Rego

0/ ~ 0 V'1 f-\IVS e: IV! d 'D e VICe-Reitor QI.... «(jf,ll tf1.othon Anselmo .;

CI:N'l1l0DE atNCIASHUMANAS, IEI1lAS EARTES Dlretor r­

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J)DJAKrAMEHfO.-JlILOSOJIA <:

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, Coordenadorde~io 0 ~Maeiel~ \'i..

/ <; \ ~ t-A.~~r \Q f.,'f- n." ",'

I'.dilDr Hermano M FerreiraLima

-!!I71>j! ~o

~ Marcos Melo

CONSDJlOmJrORIAL Antonio Basilio NovaesThomaz de Menezes

",'" Juan Adolfo Bonaa:ini (- Lia Alcoforadode Melo \ Markus Figueirada Silva I "'0Guedes'_. .

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~ I ] lA. !J,1iJ'.A~',t, I .. · f.... t: t ,,~,_, ,. J'-,. ~_, \.. "'1"\ Publ~ SemestJa1

A revista esti aberta a contribui~s a serem avaliadas pelo c:onselho edi~

rial. devendo set' enviadas ern disquetes nos programas Wordfor Windows 6.0 ou PagerMaker 5.0. de ac:ordo comas normasda AB~T.

E~: Departamento de Filasofiada UPRN. CCHLA, Campus UniversitBrio - LagoaNova,CIP: 59072-910. Natal-RN.

Preriodoexemplar: 5 reais Aceita-se permuta l' . Weask for exchange

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__

3

SUMARIO

Aspectos da Logica Relevante numa prova por Redu~io

ao Absurdo. Angela Maria Paiva Cruz 05

A Lingi.istiza~io do Sagrado e a Etic:a do Oiscurso em Haberm.as. Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes.............. J2

A Conjedura Filosofic:a. Claudio Ferreira Costa . . ... 20

Jurgeu Habermas: Oa PragmAtica Universal a Ambigiii­dade Transcendental. Jaime Biella __ _.. ' 46

o Futebol e 0 Campo do PsiquislDO. Jose Ramos Coelho 56

Breve Ensaio em torDO a Linguagem Juan Adolfo Bonaccini..................................................... 60

_

Justific:~io da Indu~io. Lia Maria Alcoforado de Melo _ 76

As Dividu cia Cienc:ia. Manoel Barbosa de Lucena 84

Direitos aumanos e a Moral do Respeito Universal. Maria Clara Dias 92

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T

4

Nietzsche e a Literatura. Maria Helena Lisboa do Cunha J08

A Prova por Redu~o ao Absurdo na L6&ica OAssica. Ma,.ia do Paz Nunes de Medeiros.... 120

Repensando 0 Conc:eito P1atonico de DianoUl. Mario Antonio de Lacerda Guerreiro..................... . .....J26

Ensaio acerea da Imagem Poetica: Baehelard e Joio do Rio. Markus Figueira do Silva · ; 135

A Questio da Seculariza~o.

Oscar Federico Bauchwitz J44

SeT, Nada e J.iT-o-So. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. ..... . ... J58

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Junho de 1995

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~ .;\ I -- ASPECrOSDALOGICARELEVANTt:NUMAPROVA l... PORREDU(:A.OAOABSURDOI

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r', RESUMO

Neste trabalhoanalisam-seas f6rmuJas geradoras de parado­xos presentes na Prova por Redu~ ao Absurdo. A defini~o classicado condicional (4) nio traduz satisfatoriamentea n~

deimplica~. Talfato dB origem80S paradoxosdaimpli~ ma­terial, cujasconseqOencias podem ser analisadasem todos os con­textos que dele se utilizam. Em particular, a prova por redu~o ao absurdo utiliza-se de algumas fOrmulas geradoras de paradoxos. Coloca-se a Logica Relevante (que teve origem nos trabalhos de ACKERMANN (1956» como uma forma de su~o de tais paradoxes,uma vez que esta10gicaconstitui-senumateoria da im­p~ e como talprocura estabelecer as condi~ necess8riase suficientes parase afirmar que "umenunciado Aimplicamnenunci­ado B". Por tim,considerando-seque os matem8ticos, sempre que necessario, usam 0 referidotipo de prova, aponta-sea necessidade da constru~ de umamatematica relevante.

1. A DEFINU;AO CLAsSICA DO CONDICIONAL E OS PARAOOXOS DA IMPLICA~AO MATERIAL

Todaestrutura das provas matemilticas se fundamenta na LO­gica Classicae dentre os conectivos desta logica (ou seja,dentre a

• Membro cia brae de pesquisa em LOcica e Epistemologia. Especialista em LOgica.

I Comunica91o~1Ida na VI Semma de Matcmatica da UFRN, realizeda em setem­bro de 1994.

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nega~o, a conjun~o. a disjml~o, 0 condicionale 0 b~dicional) o condicional (-+) e0 mais ~ortante. Este conectivo eexpresso por ....- - "lido, e . ''implicaM; ••• entao .., muttas vezes como ".

Define-se 0 condicional da seguinte forma: SejamA e B enunciados siq>les. 0 condicional de A e B e

urn enunciado falso quando 0 valor logico de A everdadeiro e 0

valor logico de B efaJso e eum enunciado verdadeiro nos demais casos. Representa-se 0 condicional de A e B por A -+ B, onde A eo antecedentee B e-o consequente (MENDELSON, 1987: 11).

Esta defini~io diz que: 1. sempre que 0 consequente cverdadeho, 0 condicional e

verdadeiro independente do valor logico do antecedente;

2. sempre que 0 antecedente efalso, 0 condicional everda­deiro, independente do valor logico do consequeate.

Se 0 condicionaleinterpretadocomo implica~io (ou iqlo­si~o) a defini~o acimatem as seguintesconseqiiencias:

a) 0 verdadeiro impliea 0 verdadeiro b) 0 verdadeiro nao implica 0 faIso c) 0 falso implica 0 verdadeiro d) 0 faIso implica 0 falso.

Em forma de tabela de verdade isto signifiea:

A -+ B V V V V F f" F V V F V F

Prova-se atraves de tabelas deverdade que as fomw.las:

I) A -+ (B -+ A)

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2) (A ~ B) ~ (-A vB) 3) (AA-A)~B

sao v8lidas, isto e, sao verdadeiras para too atribui~o de valores de verdade e pode-se interpreta-Ias como segue:

I ') A serverdadeiro implicaque qualquer enunciado B im­plica A

2') A implicaB se, e sornente se, A e:fidso ou B everdadei­1'0

3') Uma contradi\:io (A A -A ) implica qualquer enlDlciado B.

EstaioteIp~o llio traduz a no\lio intuitiva de ~licaliio. Tal situa9io caracteriza 0 que os lOgicosCbamam de "paradoxosda implica~o material" (COPt., 1978:255).

Analisando-se a estrntura IOgicada prova por Redu~io ao Absardo'percebe-se que neJa utiliza-se as fOnnulas (I)e (2), gera­doras dos panidoxos. Discute-se a seguir as consequeacias dauti­m9io destas fimnulasna rererida prova. .

Diante dos paradoxostem-se duas consider.a~espossiveis:

I) os paradoxos sao inecuos, e assim Dio ha problema al­gum a ser resofvido;

2) os paradoxos nao sao inocuos, isto e, existe pelo menos um problema que pode ser apontado: 0 condicional clsssico nio traduz satisfiltoriamente a no~o intuitiva de implica~o.

Admitindo a possibilidade (2) pode-se apresentar duas for­mas de superaliio dos paradoxos:

2. I) Considerando-se a posicao dogmatics, que defende a unicidade da logica efetua-se modifica~sna defini~io do COD­

zA ~ura de \DDS Prows poe Re~(l so Absurdo enoootrs_ DO Arti@o inlitulllllo "A Prova por Redu~(l ao Absurdo na LOgiC<! CI:issica". desta Revista.

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dicional ou explicita-semelhor 0 seu significado semmu.dar a 10­giea;

2.2) Considerando-se a posi~o dialetica, que defende a phrralidade da logica percebe-se a necessidade de u.ma logica desviante' que traduza de modo maisadequado an~o de impJica­~ao (COSTA, 1980: 17).

Adota-se neste trabalho a posi~o (2.2) e estucla-se a J6gica relevante como forma de superar os paradoxos.

2. A LOGICA RELEVANTE

As logicas relevantes introduziclas por ACKEllMANN ( 1956) e desenvoIvidaspor ANDERSON e BELNAP (1975) pre­tendem constituir-se nomateoria cia impJica~o, ou seja,elastentam estabeleceras con~es necessarias e suficientes para afirmar-se que "um e:ounciadoA impliaa umell1mciado Bn 011 uAimpOe B".

Colocam-se aqui asideiasbl.sicasdetUs logicas. Quandoa expressio "se A entio B" significa que "B se infere de An, eutio A ~ B deve ser verdadeiro somente quando "Aerelevante para B".

Segundo ANDERSON e BELNAP (1975: 3 - 106) a Un­pliaa~io A ~ B deve satisfazer duas condi~Oesessenciais:

I. Con~ de relevincia: Se A ~ B e demonstravef entio A e B tern.pelo lDfDOS uma vari8­vel proposicionaJ em connon.

2. Condi~o de necessidade: Se A ~ 8 everdadeira, entio ela 0 enecessariamente, pois depende de fatores IOgico-formais.

J. (;()osidera-se 1000ca desviame locla 1000ca que dcnosa pelo DlCIIO:i um cIos priDcipios Msicos da 1000ca classi=. 00 seja. toda l<'lgica mile 030 vale 0 prioc4Jio da idaatidadc. au o principio do lerceiro exclutdo, ou 0 priocipio cia 030 L'\XlIcadi~o.

• 0 cmccitn de ~tnWlld'" e dlIfmidn de mod" lIllU&1.. 5U~ vcr MENDFLSON. p. 18.

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Apresenta-se a seguir 0 sistema de logica relevante E. (cujos postulados sao aqueles do sistema E de ANDERSON e BELNAP, p. 231, retirando-se 0 E7 ) que conslitui-se dos seguintes itens:

LINGUAGEM:

Conectivos logicos: . - ( nega9io ), " ( conjlUl~lo ), v( disjun~io), ~ ( condicional )

Simbolos auxiliares: ( .) Conjunto infinito enumetivel de varisveis proposicionais.

A no~io de fOrmula edefinida de modo usual.

POSTULAOOS ( axiomas e regras de infereacia):

PI. «A ~ A ) ~ B) ~ B

P2.' ( A ~ B ) ~ «B ~ C) ~ (A ~ C»

P3. (A ~ (A ~ B» ~ (A ~ B)

P4. A" B ~ A

P5. A" B ~ B

P6. (A ~ B ) " (A ~ C) ~ (A ~ (B " C»

P7. A ~ A v B

P8. B ~ A v B

P9. (A ~ C ) " (B ~ C) ~ «A vB) ~ C )

PlO. A " (B " C) ~ (A " B) v C

Pll.(A ~-A) -*i-A

P12. (A ~ -B) ~ (B ~ -A )

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P13. --A ~A

P14. ~ A ~ BIB· (Regra de Modus POllens)

PIS. A, B / A 1\ B (Regra da Conjun~ao )

As n~es de prova e teorema sio definidas de modo usual

3. CONCLUSAO

Neste sistema niio valem as formulas I) A ~ (B ~ A ), 2) (A ~ B) ~ (-A vB), 3) (A 1\ -A) ~ B, entre outras, que sio geradoras de paradoxos. Assim eJasnio podemser utilizadasnas provaspor~oao absurdo de fOmmlas daliogua­gem do sistema E

L

Portanto, asprovas porReduyio ao Absurdo estio de certo modo "destruidas", 0 que pode signifiear a inexistencia desta teem­ca de prova na matematica relevante,

A reconstrucao das provas matemsticas combase na logica relevantenio etarefa 13cil, no entanto, talreconsnucso extrapola 0

ambito desta discussio.

REFERENCIAS BWLIOGRAFICAS

I. ACKERMANN, W. Begrundung einerstrenger implikation. The Joumal of Symbo1icLogic, v.2l, 1956, 113- 128.

2. ANDERSON, AR, BELNAP. N.D. Entailment. the logic of relevance and necessity. Princeton:

Princeton University Press, v.L, 1976.

3. COPI, Irving M. Introducdo a logica. Sio Paulo: Mestre Jou,1978.

4. COSTA, N.C.A da. Ensaiosobre os fundamemos da logica. Sao Paulo: HUClTEC USp' 1980.

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5. MENDELSON, Elliot. Introduction to mathematical logic. 3 ed,California: Wadswo~ 1987.

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Revista Principios - Dept2. Filosofia UFRN, RN, \bl II - N2 I Junho de 1995

A LINGUISTIZACAO DO SAGRADO E A ETICA DO DISCURSO EM HABERMAS

ANTONIO BASiuoNOVAES rnOMAZDE MENEZES DEPARTAMEroITO DE FILOSOFIA DA UFRNJUFRI

INTRODU(:AO:

o presente trabalho situa-se no horizonte daquilo que se convencionou chamar de "processo de secularizacao da modernidade" ou, no sentido weberiano mais puro, "desencan­tamento do mundo". Ele trata das implica.yOes micas desse pro­cesso, na fonna de exame da tese de Iingtiist~ do sagrado em Habermas. E tr~ a partir desta, uma estrita re~io entre tal processo e a possibilidade de uma erica discursiva.

Caracterizada dentro da perspectiva de urn "experimento mental" e1aboradopor Habermas, a partir de Durkheime Mead. o processo de lingtiisti~ do sagrado marca uma mudanca de estrutura na passagem do 8mbito do sagrado para a pratica co­municativa cotidiana. Este procura mostrar a articul~o entre a teoria pragrnatica formal da linguagem e a teoria da sociedade, atraves de uma perspectiva de desatamento ou emancip~o do potencial de racionalidade da a~ orientada para 0 entendimen­to, refletida no campo da etica.

Objeto de nosso trabalho, passamos a examinar aqui cada urn dos aspectos que constituem as condieoes empiricas do pro­cesso de lingui~o do sagrado como tambema propria fun­damentacao do "experimento mental", ou a articulaeao entre Durkheim e Mead em tomo do tema.

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1- 0 ASPECfO DA FALA GRAMATICAL:

Tornado como urn aspecto basico, de onde se desdobram os outrosaspectosnacon~o dascondi~empiricasdoprocesso

de Iinguistiza~io do sagrado. Habermas destaca sob 0 aspecto da fala gramatical: a conexao das imagens religiosasdo mundo coma a~io connmicativa;e apassagemda a9i0ritua] paraa comunicativa.

A conexio das imagens religiosas do mundo com a a~o

comunicativa remete-seacaraeteristicafimdamentaldalilguagcmde articu1a~o doscomponentesproposicionais com os compoo.entes ilocucionanose os expressivosonde0 conteUdo semintico ftutua. Desse modo, a ftutua~io dos conteidos~ticosde origemsacra edeorigempro:fima;nomeio linguistico,constituemaforma do saber cultural comoproduto de uma fusio de significados; somatorio de conteUdospratico-moraise conteudosexpressivoscomcontelidos cogoitivos-irutrumwtais.

Dentrodessaperspectivado mediumlinguist:ico daforma~o do sabercultural, Habermasassinala oprlJprio caniterdedifereocia~o

nointeriordalinguagematravesdoduploaspecto: l)dosconteUdos pratico-morais que revelam a necessidade da religiio, enquanto tradi~iio cultural, ser prosseguida comunicativamente atraves de experienciasdetiponormativo e expressivo (procedentesdo i.tmito da atualiu~o ritual da identidade coletiva) que sao formuladasna forma de proposicoes e acumuladas como saber cuhural; e 2) dos conteUdoscognitivos-inst.rumtUais: dardigiioeoquantoumaimagem do mundo com pretensOes de totalidade, que traz implicita a necessidadedeuniiodo sabersacro como saberprofano, procedeute do ambito da a~io instrumentale da coopera~io social.

Assima passagemda a~o ritualpara a a~o comunicativa se d8 pela propria aquisi~iode peso da pnitica comunicativa cotidiana, atraves da necessidade implicita il constitui~io das imagens do mando, de assimila~o do saber profano que as penetra, e euja a influencia as proprias imagens sao cada vez menos capazes de regular. Demodo que, a dificu1dadecrescenteque se estabeleceno relacionamento dasimagensdolllJDdocomos"componentespnitico­morais e os componentes expressivos do saber" (2) assinala urn deslocamento da base de validez da tradi~io, da aeiio ritual para a a~o comunicativa, dentro de umquadro de complementa~o dos

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aspectosestmturais da evolu~o das imagens religiosasdo mundo assinaladastanto em Weber como em Durkheim.'

2- 0 ASPECfO DE CONSTlTUI(:AO DE UM CONCEITO DE VALlDEZ DE NATUREZA LINGuisTICA:

Sob esseaspeeto Habennasdestaca 0 car8ter da fala gramatical, eaarticulaQio entrea media~o comunicativae a integra~o social.

Noprimeirofundammta a"naturezageollinaJTJfflte&nguistica"(3) na fonna~o doconceito devalidez atravesda preseacadasforQas ilocucionlriasnosatosdaf3la, auseja, doscomponeotesilocucionarios que se encontram embutidos nos componentes proposicionais e expressivos que constituem 0 concerto de validez enquanto uma transcri~o da autoridade do sagrado fundada empoJissimboIos.

De modo que; atraves da natureza Iinguistica do conceito de validezcomoumcaraterfimdamentaldalinguageminerenteipropria fiIlagrarnaticAl;aar6.wIaQiomtremedia~comunicativaeint~ social se eocontrano reconhecimentodo vinculo de depeod&lciadas institui96esde base sacra para comurn consenso linguisticamente formado. Ondeaintegrl9io social seefetua "atravesde urnrecenhe­cimento intersubjetivo daspretensiies devalidezque os atosde fata ~ortam"(4).

E nesse sentido, 0 desenvo1vimento da pratica comunicativa cotidiana permite com que 8 integraQio social nio se efetue mais atraves de valores, transpondo a efetiva~o direta para a 8910

comunicativa, na medida em que a autonomiza~o da forca ilocucionaria nos atos da fala; a sua independencia dos conceitos normativos; acarretaumredimensiooamento tanto da validade das nonnascomo cia sua propria aplica~ao.

3- 0 ASPECTO DA BASE DE VALIDEZ DAS NORMAS DE A~AO A PAKfIR DO CONSENSO MEDIADO COMUNICATIVAMENTE. DEPENDENTE DE RAZOES:

.Nessepontodoargumentodalinguistiza~odosagrado. Habermas elencatrestopicoscomplementaresretomando aperspectiva estru­

~' .

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turl1de Durkheimna explica9io dauniversaliza~o do direito e da tmm

oprimeiro deles refere-se aperda do cariter de validez por si mesma. das institui96esapoiadasna autoridade do sagrado,devido a depend&1ciadessa autoridade,dasfundamenta9Oesdasimagens religiosas domundo. SalientandoapenetraQiodo saberculturl1nas interpfeta90esenassitua90esdeinteraQio que exercemfunQ6esde coordenaQio da a9io.

FiJfocandoaartiada~oentreestrutwaQio linguisticae1egitimw;io institucional, atraves da media9io das imagensmiticas do mundo como auto-interpretaQio ejustificaQio do sistemade instituiQ6es. Aborda 0 ca:riter de permanente fusio entre os componentes prmco-moraisdo sabercu.ltural comoscomponentesexpressivose os componentes cogo.itivo-instrumentais, desdobrando 0 duplo aspecto do carater ambiguoda experi&1cia. e da necessidade de especificaQioimpoopelamediaQio comunicativa.

o carater ambiguo da experi&1cia reside numa bipartiyio sinndtioea desta em: experi&1oiasconsoentes, ouseja, aquelas elaboradasdefOllIllcooscienteemwnaimagemdoDDDldoratificadora e reforcadora do sistemade instituiQOes vigeates; e experiencias dissonantes, ou seja, aqaelasque desbordamo "potencialde fimda­meotaQiodewnaimagemdeJIBDldo"(5)comowntipOdeexperiencia quequestionatantoarenalegitimidadecomo avalidezdasinstitui90es correspondentes.

Por outro lado, a necessidade de especifica~o imposta pela media~o comunicativa reside no fato da a~o comunicativa estar encarregada da aplic8Qiodeoormas. Oqueimplica queestas sejam simukaoeamentemaisabstrataseespecfficasdecorreododa ITIlidanr;.a

e complexidadedas situa96es da a9io. De modo que; coosiderando 0 exposto acima sob 0 aspecto de

complernentaridadedostOpicos, quearticulanabasedevalidezdas nonnas 0 car8ter ambiguo da experiencia e a necessidade de especificaQioimpostapelamediaQiocomunicativa;sepoeaindamn tereeiro elemeoto: aarticuJaQio tJItre a"aplicaQioCOIl1lIIlieat.ivameote mediada de nonnas de aQio" (6) e a universalizaQio das prOprias nonnas. Uma vez que tal decorre da necessidade de defini96es comuns dasituaQio entreos implicados sobre "osaspectosobjeti­vos,normativosesubjetivosdasituaQiiodaaQiodequesetrata"(7).

Nesse sentido a interayio se da enquanto relacionamento das " ~.~.

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nonnasdadascomasituacaoespecffica, comobasedesustencaocia adapta~o das nonnas as tarefas especiais exigidas pela si~o.

Sendoque aautono~dastarefasinterpretativasdo contexto normative, denotamumacapacidadede absorcaodacomplexidade crescente de si~es de a~ ramificadas em nonnas basicas abstratas, Dumarede depapeis sociais e regul~s especiais.

Assim, Habennasretoma a perspectiva estnrturaldeDurkheim na expli~ da universalizacao do direito e ciamoral; a partir da dependencia dos problemas de justific~io e apli~io das normas para com "os processos de fo~o linguistica do consenso" (8); o aspecto de secularizacao da comunidade de fe, e de cooperaeao. Onde se destaca a necessidade de uma moral universalista para a manut~io do carater obrigatorio. E, 80 mesmo tempo, a necessi­dade de urn direito formal baseado em principios abstratos, para estabelecimento do corte entre legalidade e moraJidade, na separa­~o dos imbitos de ~io entre aqueles reservados ainstitu~io (di­reito), e aqueles confiados radicalmente 80S participantes (moral).

4- 0 ASPECTO DE INDIVIDUAf;AO DA FALA GRAMATICAL:

Dando continuidade a abordagem das mudancas estruturais da mudanea do tipo de intel"~; dentro da analise das condicoes empiricas do processo de lingui~o, como emancip~do potencial de racionalidade da ~ orientadapara 0 entendimento; Habermas salienta sobeste aspecto a arti~ dos componeotes expressivos com os iIocucionilrios e com os proposicionais nos atos de faJa, na dimensio daestrutura linguisticado processo de sociaJi­~io, e cia articula~ entre a indivi~io e a autonomia conwni.­catiw.

Na dimensio daestruturalinguistica, referente 80S significados contrastantesdo pronomepessoal deprimeirapessoa,a saber: 0 eu comofalanteque manifesta as suasvivenciasnaatitudeexpressiva, e 0 eu como membro de urn grupo que na atitude realizativa estabelece uma rela~ pessoal com outro membro do grupo; Habennas,apartirdaanaJisedossigmticadosdosujeitooas~ realizalivas, identificaoaspectodalinguagemquepenniteoreoonhe­

~ ~. . .. .

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eimento dos processos de socializa~, marcados pela estrutura linguistica,taIcomoareiaciodacrian",acompessoasdereferencia, onde a estrutura de intersubjetividade linguistica, expressada no sistema de pronomes pessoais, ensina a crianea a desernpenhar papeis sociais na primeira pessoa, enquanto urn "eu" diferente do "outro" .De modo que a coacao estrutural, operanteda coercao a individuacao, impede a reduplicacao da identidade do grupo na personalidade, na medida ern que a participacao nas interacoes sociais, nopapel cornunieativodeprirneirapessoa, exigelDlUltornada de posi~o do ator, tanto frente a um mundo interno, 0 qual tern acesso privilegiado (0 mundo subjetivo), quanto frente ao mundo objetivo, das inieiativas das suas ~Oes ou euja a responsabilidade assume.

Assim, a articul~io entreindividu~o e autonornia comani­cativa se tornaevidente pelapropria~do gnude individuafrio "corn 0 espaco objetivo com que eonta a ~o eomunicativa auto­noma" (9). Tal como tambem e identificada em Durkheim no alijamento dos contextos particulares, nafo~ das identidades, e napertinencia a grupos dependentes da exigSncia da ~o comu­nicativa na aquisicao de capacidades generalizadas.

~ A IDEIA DE LINGUISTIZA~AO DO SACRO "APONTADA" EM DURKHEIM E "DESENVOLVlDA" NA LINDA DO PROJETO RECONSTRUTIVO DE MEAD.

Apoiado na ideia de linguistizacao do sagrado; a partir das propriascondicoesempiricasda linguagern; enquanto fundarnento do"experimentomcntal"dentrodaperspectivas6cio-evolutivado processodeconversio daeomunidadedefe religiosa (nucleo inicial da cooperacao) "em uma comunidade de comuni~ sujeita a necessidade de cooperar e as coacoes que tal cooperacao traz consigo" (10). Habermasassinala sob esse aspecto a ~o

entreas perspectivaste6ricasdeDurkheimeMeadnos seuspontos de conexio e divergencia em torno aspecto central de heranea do sagrado como nucleoarcaico danonnatividade naconstituiejo da "eticado discurso" pelo processode linguis~.

Os pontos de divergenciae decoeexao entre DurkheimcMead;

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considerados sobaperspectivadaevo~sociaL talcomoHabennas ossitua; seapresentam namedidaemque amudancadas formasde solidariedade(demecinicaparaorginica)postuJadapor Durkheim aindaquedefonnainsuficiente;talcomofoianalisadanoitemldeste~

paraMeadconstituem umatransformacao da conscieneiacoletiva passivel de ser recontruida a partir de dentro. 0 que em Durkheim revelavaadificuldadedeentenderamudaneadaintegr~social na sua evolucso ate a racionalidade Enquanto que para Mead, a racionaliza~ seapresentaromoumafluidifi~comunicativadas

institui¢esfundadas natradieao e respaldadas porwnaautoridacle sacra; ondea~ comunieativaetomadacomopontodereferencia paraa projecao ut6pica da "sociedade racional".

Contudo, a conexio entre Durkheim e Mead se encontra no mutua remetimentodentro da perspectiva de evolucao social, das consideraeoes acercadas possibilidadesde evolu~oda sociedade modema; consideracoes acerca do aspecto de wna sociedade "racional" ou "ideal" de Mead; enquanto uma resposta a questio estrutural de adap~o da sociedade, a partir do abandono por inteiro do sagradocomo baseda integracao social para0 consenso alcancado connmicativamente, de Durkheim.

Oaspecto de heranca do sagrado na "etica do discurso" como nucleo arcaico da normatividade; enquanto urn tema comum que estaria subjacente·a articulacao das diferentes perspectivas; inicialmente se situaria no quadro de diferenciacao entre ciencia, moral earte no fator duplo: 1) de sujeiitio da ciencia e da moral modernas"aosideaisdeobjetividade eimparcialidade assegurados porwna discusslo sem restncoes" (11), e 2) de caracterizacao da arte modemapelo subjetivismoda livree irrestritarel~io que 0 eu descenttado mantemconsigo mesmo,"emancipadodas coacoesdo conhecimento e da ~ilo" (12). De tal modo que a substituicao do ambito dosagrado, determinante paraa sociedade peloseucarater normativo; dentro desse quadro da evolucao social; sO poderia se efetivarpelaconversioda moral em"eticadodiscurso" enquanto urn reconhecimentodah~dareligiionafluidifi~comunicativa

em substitui~ aautoridadedo sagrado. A"eticadodiscurso",enquanto~coIJlJOieativa,dissolve

o nucleo arcaicoda normatividadedo sagradoe desprendeo sentido racional da validez normativa. De modo que 0 parentesco entre religiio emoraJ seencontranani~assu~ de urnstatusunivoco na

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constlU~ dewnmundodavidaestIUturalmentediferenciado. Tal como aci&1ciaou aartequeniopodem seratribuidasexclusivamen­teatradi~wlturalNemtampoucocomoasnormas juridicasouos aspectosdo caraterquenio podem ser atribuidosexelusivamentea sociedade ou a personalidade. Mas sim, na esfera normativa, da conservacao pela moral de algo da eapacidade de penetracso que caraeterizam os poderes saeros na origem e que penetra de forma peculiar as sociedades modemas nos pianos diferenciados que representam acultura, a sociedade e apersonalidade.

Assim, a complementariedade entre Durkheim e Mead que a abordagem habennasiana destaca se encontra no fato de que 0

primeirocolocaamoral universalistaatarefadecoesiodasociedade secu1arizada na substitui~ pelo myel sumamente abstrato, do "acordonormativo bilsicoasseguradodeantemio pelo rituaI" (13)~

enquanto que 0 segundo fundamenta a moral universalista"como resultadodeumaracionaliza~comunicativa,deumdesencanta­

meatodo potencialde racionalidadeeneerradona a~ comunica­tiva" (14).

Notas:

(I) Teoria de la AccionComunicativa, Torno II, cap. V, 3, p.112. . . .'

(2)(23)op. cit., p. 127. (3) op. cit., p. 128. (4) ibid. (5) ibid. (6) op. cit., p. 129.. (7) ibid. . . (8) ibid. (9) op. cit., p. 130. (10) op. cit., p. 13I. (11)ibid. (12) ibid. . '. (13) op. cit., p.l32. (14) ibid., grifo do autor.

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Revista Principios - Depr-l. Filosofia UFRN, RN, \bl. II - N~ I Junhode 1995

A CONJECfURA FlLOsOFICA

a..AUDIO FERREIRA COSTA DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA UFRNICNPQ

oqueea fiJosofia? A propriaperguntacumula-nosde incer­tezas. Afinal, essaeuma questao filosofica, que, como tantas 00­

tras, permaneceirrespondida; nio sabemos, pois, 0 que e aquilo mesmoque nos propomosfazer

H3 ao menos urnconsenso pniticoacerca do que quer dizer a palavra'filosofia'? Parece nio havergrandesdificu.ldades quanto a isso. Sabemoscomo utilizara palavra. Nio temos maioresemba­raeosemapontar essee aqueletexto como sendode naturezafiIo­s6fica. Seria, pois, uma fonna exeqiiivel deseabordara questio da naturezada filosofia., a tentativade se ohterurnesclarecimento ana­liticodo que nos pennite decidir aplicar ou nio 0 termo, ou seja: uma tentativade elucidaroscriterios que, umavez presentes,pos­sibilitam a efetiva apli~, emsuaa~ tecnicausual,da pala­vra 'filosofia'na designa~ de algo, 0 quetarnbemewnamaneira de se esclarecerseu significado descritivo- a maneiracomoa em­pregamosparadesignar 0 trabalbofilosofico. Eassimque a ques­ta<> seraabordada aqui.

I. Quando buscamosencontrar os efetivoscriterias de apli­c~o do termo 'filosofia', ha candidatos cujo mau desempeano sugerereprovacaoemurnexame preliminar. Urndelesequalquer coisaque se deixeclassificar como 0 "objeto proprio" da filosofia. Uma decisao quanta aaplica~o do termo 'filosofia' nlo parece deverrepousaremseu pretensoobjeto proprio, namateria da qual ela trata e que so a ela concerne; pois ha boas razoes para se SU~

peitar queesseobjeto nio exista. Afinal, pode-sefilosofar, mesmo academicamente, acercade umaextraordiniria variedadede ques­tOes. Basta pensar no fato de que qualquer ciencia, fonnal ou empiriea, pura ou aplicada., pode serobjetode inda~Oes em nivel

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filos6fico. Hi, nio obstante, importantes caracteriza¢es da61osofia pelo

estabelecimentode urnobjeto generico que the seja proprio. Ca­raeteriza¢es contemporaneas de seus dominios descreveram-na metafisicamente comourna investi~ dos atuaisepossiveis tipos de coisas mais importantes do universo e das relacoes entre eles vigentes (G. E. Moore), ou entio, epistemicamente,como an8Jise das estruturas conceituais mais gerais de nosso pensar (P. F. Strawson),como uma investig~io da estrutura de nosso entendi­mento (E. Husserl), e ainda, como uma elucidaeao do Netzwerk formado poraquelesconcertosconstitutivosdenossoentendimento comown todo(E. Tugendhat)(1). Embora semeIhantes caracteri­~ sejamimportantescomo maneiras dedistinguire sublinhar a centralidadede questoes de fundo metafisicoou epistemico, elas tomam-seinevitavelrnente restritivas e dogm8ticas quando entendi­das como caracterizacoesda filosofia como urn todo, uma vez que seforcama excluirarbitrariamente amplosdominiosseus, como os das filosofias da matematica, da ciencianatural, da hist6ria,da ad­tura e da sociedade,e mesmo umdominiocentral como 0 dafiloso­fiados valores - areas que umalonga e venerivel tradi~io tern ad­mitidocomo pertencentes afilosofia.

Sendo assim, pareceque aquiloque nos orientaernnosso con­sense pratico acerca do que e e do que Dio efilos6fico Dio pode ser seu pretenso objeto proprio. Se quisennos uma con~io

verdadeiramemeabrangente, que facajuz it amplitudedaace~

tecnicada palavra, talvezsejamosmaisbern sucedidosem busdl-Ia no estudo daforma propria do questicmarnento filosOfico, enten­dendo-se por isso simplesmentetudo 0 que nio eobjeto, materia por elatratada.

Assim tio amplamente concebido, 0 que chama de "forma" deveabrangeros metodos da investi~ fil0s6fica. Mas a ~

fia tambem Dio parece deixar-se definirpelo seu modo proprio, exclusivo. Poisaquitambemreinaa diversidade. Hiuma profusio de metodos historicamente propostos, da maieutica aredu~

fenomenol6gica, passandopeladuvida cartesianae pelos procedi­mentos dialeticos,ate chegar as modernas tecnicas de an8lise conceibJal Taispropostas, alem de seremfrequentementesuspei­tas, 080 se adequama wna caract~ do que efetivamenteen­tendemos por filosofia, dado que geralmente se restringem a uma

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imica ou a algumas poucas filosofias, nao chegando nunca a ser generalizaveis a tudo aquiloque charnamospropriamente por esse nome.

Ademais, ha razOespara se desconfiar da existencia de urn metodogeouinamente fiIosOfico. Umadelase que, quando esclare­cernossuficientemente0 metodo, costuma ocorrer que ele se evi­dencie como sendo tambem apropriado a ciencias particulares. Considere-se, por exemplo,as teorias da defini~, do silogismoe da indu~, naqueleinstrumentario da investiga'Yio filosofica' que Arist6teles pretendeu que fosse 0 seu Organon. Elas pouco se restringemao quehojechamamosde filosofia, servindo tambemas cienaas. Considere-se ainda 0 fato de que versoes da "dialetica" podem encontrar correspondentes aproximadosem algomateoria da argumen~o, na psicologiaevolutiva(ex: naalternancia entre os processos de assimil~io e acomodacao sugerida por Piaget), ouemwnasupostacienciados processos hist6ricos ... Alero disso, tambem evisto 0 oposto: ea filosofia que importada cienciasuges­tOes quanto aforma da investiga.cio: pode-se genericamentefalar da apli~ introspectivado procedimento observacional proprio dasciencias empiricas, no caso dasfilosofias de tendenciaempirista (0 "metodo bist6rico" proposto por Hume), ou de wnaapropri~

do procedimentoaxiom3tico-dedutivo das ciencias exatas,no caso das filosofias de Tendenciaracionalista(0 metodo cartesiano, ra­dicalmente adotado por Spinoza).

Chegados a esse ponto, sornostentados a retroceder e adotar uma solu~o cetica, que consistiria na rejei~ao de uma real univocidadede signifi~entre as aplicacoes teenicasda palavra 'filosofia'. Sob tal perspectiva,a univocidadeseriaapenas aparen­te, 0 que poderia ser demonstrado em uma adequada eluci~o

dos casos de apli~o da palavra 'filosofia'. Tal elucida~io evi­denciariaque esses casos sio unidos uns aos outros por meras re­des do que Wittgenstein chamavade "semelhancas de familia". Es­sas redes de semelhancasentre uns e outros casos de aplic~ao da palavraseriam meramentecontingentes, Ilio cobrindo necessaria­mente uma mesmaessencia comum, que pudesse servir como cri­terio definit6riopara a apli~ do termo, masapenas suscitando ilusoriamente a impressao de suaexistencia, Com isso a questio de urnesc1arecimento da naturezaunicae essencial da atividadefiloso­ficadeixariade existir.

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Careamos, todavia, da ~ dessaausenaa deunivocidade entre os cases de aplica¢<> da palavra 'filosofia' , sendo estrategi­carnente recomend8vel, que antes de nos precipitarmos por uma triIha talvezprec8ria, busquemos averiguarseaindanio restoualgo de caraeteristico,nio pertencenteametodologiaempregada, mas aindaassim presentenaestruturafonnaldo questionamenro filosOfi­co. E aqui pode, com efeito, serfeita mais de wna constat~o significativa.

Urnprimeiroelementoformal,partiwlarmente manifestoem tododiscurso filosOfico, consisteem seucanner conjectural. Com a palavra 'conieetura' quero me referir ao que os dicion8rios defi­nemcomo"0 peosamento ou saber semfundamento certo ou preci­so", especulativo, nesse sentido. Posso precisar isso melhor expIicitandowncriterio combaseno qual identificamos wna forma de pensamentocomo sendo coQjectmal. Eis como eJepoderia ser fonnuIado:

(1) Uma forma de discurso oude pensamen­to - ou de urnsaber - e conjectural quando (i) de­rema possibilidade de que nelasejaoferecida, para urn mesmoproblemaou grupo de problemas, uma variedadede solu¢es incompativeiswnas com as outras, ao mesmo tempo que (ii) os membros da con:wnidade de ideiasnio se encontrarnem condi­~ dedecidir consensualmentepela verdade de umadelas.

Comefeito: urnaformade pensamentosemfundamento certo ou preciso eaquela geradora de teorias que carecem de bases consensualmente decidiveis, 0 queseevidenciana impossibilidade de escoJhaentre elas.

Como complemento preventivo do aparecimento do que J Habermas chamou de urn falso consenso, i.e., urn consenso inautentico, resultantede distorcoess6cio-culturais nacomunidade de ideias, podemos adicionar a (1) a seguinte explicitacao de urn pressupostoSell:

(I. 1) A impossibiJidade de decisaoconsensual referidaem (I) deve constituir-sesob 0 pressupos­

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to de quea discussio sede sobas condi¢es deurn comexto critico (i.e., que suporte uma discussio beuristicae nio-coerciva, feitaentreinterIoaJtores competentes, razoaveis,comidenticaschancesde parti~ etc.).

Ora,0 pensamentoque chamamosde filos6fico ternsempre0

criterio (1) - sob 0 pressuposto da satisf~io de (1. 1) - satisfeito; elee produtorde teorizaeoes incompativeis e indecidiveis entre si.

Compare-se, poreKempIo, a epistemologia empiristadeLocke com0 racionaJismo inatistaemsuacontraparte leibniziana. Trata-se de concepcoes mutuamente excludentes. Na epoca em que elas foram propostasseria possivel argumentarde maneiraa tomarpar­tes de uma deJas consensualmente rnaisplausiveisque as partes correspondentes da outra, mas seria impossivel decidir consensualmente por urnadessas partes, e muito menos por toda wna concepcao - dificuldades que emgrandemedidaainda atingem fonnas contemporineas da discussao (digamos, a polemica Chomski-Skinner).

Pareceassimclaroque a filosofia deveser minimamente con­cebidacomo urnaespecie de saber conjectural,urn saber daquilo sobre 0 que niio nos encontramos em condifOes de conhecer commargem razoavelde certeza. Essa natureza conjectural ou especulativa dafilosofia ehojegeralmentereconhecida, razio pela qualtomamo-nos a respeito(como queriaC. S. Peirce)altamente falibilistas. Mas nio foiassim quea maioria dos fil6sofos conside­rararnsuasfilosofias ao longoda hist6ria. De PIat30 a Hussert, eles mantiveram a aspiraflio dogmcilica de terem se deparado com verdades Ultimas, evadindo-se aplenaadmissio do cariter profun­damenteconjectural do que faziam, nio se conhecendo exemplo maisradical e sintomaticoque 0 de Hegel,para quem a filosofia, a sua, era a cieo-cia absoluta do absoluto, alias,0 proprio absoluto. (2).

2. Embora nos pareca hoje natural admitir que 0 carater conjectw"al eurncomponentenecessario aestrutura fonnal do dis­cursofilos6fico, algunsleitoresde Wittgenstein discordario. Eles dirio que issoevalido paraa maiorparte do que se tem entendido tradicionalmentepor filosofia, que nio passa de urn conjunto de

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teonzacoes vis, resuhantes de confusOes geradaspelas nossas for­masde expressio. Como resultados decOnfusOes,·taist~ sao ilusOrias: elasnio sao maisdo que castelosde areia nietafisicos, nos do pensamento. Esse diagnostico s6 nio evaIido, dirao eles, para a especiede filosofia advogada porWittgenstein, a filosofia "terapeutica", cuja fu~ ea de, desmanchando Seme.lhaDtes cas. teJos de areia, desfazendo as confusOes conceituais, desatar, urn apOs outro, pacientemente, os nos do pensamento. De sua parte, 0

trabalho terapeutico e nio-te6rico, logo nao conjectural, pois ele nio se baseia(como seria licito esperar) emconjecturas menosin­certas que as aiticadas, masem algo consen.sualmentegarantido: na rneradescri¢o de fatos Jingiiisticos exemplares: "pieces ofcommon­sense" trivia1mente evidentes, sem valor expIicativo, masque redu­zero aoabsurdo as pretensoes de acesso teoretico

Nio obstante, essa obj~o nio encontra suporte em nenhu­rna pnitica filosOficamencionavel. Como notaram algunscriticos eminentes (A. J. Ayer, C. Hempel e M. Dummett. entreoutros). a pretensio nikrteoretica dafilosofia te.rapSutica nioesuficientemerte corroborada pelo proprioconteUdo dos escritos deWittgenstein, poraquilo que neles encont:ramos de mais sugestivo, 0 que seafigu­ra tanto mais evidente quanto maiseficazes e relevantes se tomam as terapias (3).

Para evidenciar este ponto, reconstruo brevemente as ideias centrais do argumento sugerido nas InVt!StigtlfOes F~

contra a possibilidade de uma linguagem privada (que abreviarei para LP), considerando entio a sua natureza. Esse acgumento e importante por vanasrazOes, especiaJmente a de que, caso correto, eleresulta destrutivo para aquelas fiIosofias quepartem, com inten­~ fundacionalista de umaautoconsciSncia solipsista. comoaeon­tece com boaparte das epistemologias modemas; se assim for, etas falham ern nio terem buscado seus fundarnentos na questio da intersubjetivid.

Uma LP pode ser definida como sendo uma lingllagem cujas palavras devem referir-se aquilo que apenas 0 falantepode saber, aosseus estado memais,comoe0 casodas sen~ imediatas e privadas, nio podendopor isso ser compreendidapor outros (4). sao lID meuverdais osprincipais aIgl.IIDtDospelos quaisWIttgenstan quermostrar a sua impossibilidade.

oprimeiro deles consiste em imaginarque alguem. procure dar

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sentido a uma palavra S ao associa-la Ii sen~o privada s (5). Para formaca regra que associaS a s, a pessoa nio ternoutro meio senio 0 de procurer "imprimir emsimesma" a li~ entrea paIa­vrae a~. Suponhamosagoraque a mesmapessoaprocure ligaruma:outraveza paJavra S Ii mesma sensa~ S, emwnaaplica­~da regra, como mostra0 esquema:

S S =I I s (?) s

Como ela pode saber que a lig~o e realmente a mesmal Ora,a pessoa poderi recorrer apenasa sipropria, Ii sua impressiio de ter seguido corretamente a regra, de ter empregado a palavra corretamente. Nio obstante, tera impresslio de ter seguidocorre­tamente a regra nio e0 mesmoque sober que cia foicorretamente seguida, pois taisimpressOes siD tao subjetivasquanta a ~o s. Como nota Wittgenstein, ea concordincia de outras pessoas quanta ao faro da regra ter sido ou Dio seguida a unicacoisa que poderiaoferecertun aiterio independente, a dizer, urncriterioob­jetivo (int~etivo)de oorr~ para uma regra; masissoeaqui de todo impossivel. Nio b8., portanto, a possibilidadede serem constituidos verdadeiros criteriosdecorrecso paraas regrasdeuma Lp, 0 que equivalea dizer que a pessoa Ilio pode saber se as esti realmente seguindo ou Dio. se elas sio de fato regras ou se sao impressOes de regras, see1e falauma linguagem ou Ilio.

Pode agora parecer-nos que uma LP pode de/ato existir, apesar de Dionos ser possivelsaber se ela existe (saber que suas supostasregras sao regras), tratando-setaosomentede wna Iimita­~iio pratica de nossas possibilidades cognitivas. Mas para Wittgenstein issotarnbcDnio pode ser0 C8S0. Pois paraeleniioe umaimpossibilidadepriltica 8 de saber se uma pessoa segueou nio as regrasde umaLP, masumaimpossibilidade de principio, devido Ii privaticidaderadicalqueele atribuiIi LP - devido80 que poderi­amos identificarcomo 0 pressuposto de uma impossibilidade 1000ca de companiJhamento deurnmesmo processointemoentredtteren­tes sujeitos. Por conseguinte, ahipotese de que a pessoa segue regras privadaseincoerigivelporprincipio, 0 que a torna carente

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de sentido Ela e como aroda solta na engrenagem, que embora pareeafazer partedo mecanisme, ca.rece de qualquer fun~ (6).

osegundo argumento consiste em mostrarcomodevemos ter reaJmeme apreodido aspaIavras reJarivas a estadosmentais ernnossa linguagem publica, Como uma eriancaapreode 0 significado de palavras como 'dor' ou 'pensamento'? Ora. ela0 fazpor interme­dio dos adultos, que associam tais palavras a criterios comportamentais objetivos, i.e., intersubjetivamente corrigiveis: no caso do verbo doer,hi 0 faro de que a ~ geme e secontorce, demonstrando assim que sente dor; no caso do verbo pensar, hi 0

fato de queelasecomportaracionaJmente. demonstrando quepen­saao filzer as coisas. A ~ de criterios comportamentais passiveis de corr~ intersubjetivapor parte dosmembros da co­JIBlnidade lingiiistica e. por conseguinte, necessaria paraque as re­grasdalinguagemrelativa aestadosmentaispossam serapnntidas: "Urn 'processointerno' carece de aittrios extemos" (7).

Consideremos agora a natureza dos argumentos. Que eles nio sao nemdescritivos oempuramente terapSuticos emais do que claro;0 quecontanIo sio os exemplos, masas gen~ que elessugerem. Assim,emboraaiticamente (terapeuticamente)apIi­cado, 0 argumentocontra aLP recebea sua forca de uma pouco eselarecida, emboraplausivel, inter-rel~ teoreticade hip6teses gerais (sugeridas, mas nio tematizadas no curso da exposi~o

"descritivista" deWittgenstein), de aJja importincia temos 1105tor­nadomaise maisconscientes. TaisbipOteses versam sobreas rna­neiras como teriamosde ter aprendido a Iinguagemna infiIncia, so­bre0 carilterconvencional da Iinguagem, sobre a vigencia decertas ~ intemas entre nossosconceitosde corrigibilidade, objetivi­dade, possibilidade de intersubjetividade, e aindasobrea impossi­bilidade16gi.ca de correeao intersubjetiva de pretenses regras de identifi~o de estados internos ... Algumasdessaship6teses510 verdadesconsensuais. Mas nem todas. Que dizerdaUltima delas? Sera queerealmenteimpossivel, absolutamente inimaginavel, em todo e qualquermundo possivel, queestadosintemospresentes nas mentes dediferentes sujeitos possamserentree1es compartiJhados? H8, desde Frege,argumemos que sugeremtal impossibilidade, mas seriaexcessivo, face apropria complexidadeda questio, concluir que eles sio demonstrativos. Trata-se,pois, nio de um lugar-co­mum, masainda de uma assun~ conjectural.

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Mas nio se trata apenas da rev~ de urn pressuposto conjectmal ocultono argumento. As conseqU&cias anti-intuitiVas qUeurnaleitura rigorosado argumentosugeretornam-no suspeito: seDio posso construirregras que associempalavrasa estados in­temos, entia nio parece possivelque eu possa fazer refeeencia a eles,poisumareferencia deve preeisarser feita atraves dealgurna regra de idcntifi~. Ora, mas isso equivale a sustentar que e absurdofaJarmos de nossos proprios estados mentais no sentido usual daexpressio, noqualparecemosreferir-nos existenciaJmente a acontecimentos privados - 0 queesubmeternosso entendimento do sentido de expressoes psicologicas a uma indesejavel tor~

metafisica: tudo,no fundo,passa a ter referenaa comportamental, malgradoas ~santi-behavioriStas explicitas de Wlttgenstein (8). Isso sugeremaisainda a possibilidade de que se ymha a minar a1guma basepressuposicional do argumento, a1terando 0 que ne1e vemoscomorelevante. conduzindo. quemsabe, no final do proces­so, aumaproblem8tica ulterioremque a formaconjecturalvenhaa se perderem argumentoscomfimdamentos maisseguros, perten­centes aurnamais perspiwa imagemdo Mundo.

Eis entio 0 que poderiasera razio pelaqual se pode tambem afinnar (como 0 proprio Wittgenstein 0 fez) que as confusOes corrGttl8isdafilosofia possuemurncariderde"profundidade". para albn de merascharadas lingoisticas: elas refletiriam, ainda que de formaconfusae equivoca, dificuldades reais,queesperampor res­postasnio-conjecturais. Com issoa cooceprio estritamente tera­peuticaeta filosofia cai sob a suspeita de ser menosuma proposta iconoclasta do que umaderradeira tentativadepreservar, nosupos­to nio-falibilismo da atividade descritiva, a dogmatica da incontestabiliddeum discursofilosOfico.

3. Da discussio precedenteconduo que a forma coqectural euma ~necem10aopensamentofil0s6fioo, mesmoquando ele for criticoou "terapeutico" - pois a eficicia da atividadetera­p&tica repousa na maior plausibilidade de seus fundamentos teoreticos (tematizados ou Dio), sendo isso 0 que the confere a aedibilidade,a fur~ necessariapara deslocar, relativizar os fimda­mentosde teo~ metafisicas. Isso e possive1, mesmoqueos fundamentos da atividade terap&rticanio sejam tia segurosa p0n­to de nio precisarem maisser chamadosde fil0s6ficos.

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Mas admitir que 0 carater conjectural econdi~ necessaria do pensamento filosofico 030 basta, decerto, para caraeteriza-lo. Muito do que chamamosde conjecturaou especu1~ nio possui carater filosofico: pode-se conjecturar sobre a existencia de seres vivosernoutros planetas,sobrealt~ clirnaticas futuras causa­das pela emissio de gases na atmosfera, sobre as causas do desa­parecimento.dos grandes repteis, sobre as motivacoes que origina­ramcertas decisoes politicas,e nada dissosera filosofia. 0 proble­matoma-se entao 0 dese saber0 que, na formade uma conjectura, faz com que nos tomemos inclinados a chama-la de filosOfica. A condicao necessariaobtida precisaser complementadacom 0 que, emconjunto comela,constituauma condi~io suficieme.

A solucao - meramente conjectural- que eu gostaria de pro­por ea seguinte: 0 caraterpropriamentefilosOfico de certas especu­lacoes costurna advir do fato delas resultarem da confluencia de algunselementos, que devidamenteassociados parecem constituir urnacondicao suficiente. 0 primeiro e 0 rnaispermanente dentre elesconsisteno farodequea filosofia ternsereveladohistoricamen­te como uma especie de antecipacao do conhecimento cientifico: wnaprotociencia. Ea filoso6aque indicaos caminhos que se asse­meIham viaveis, n80 havendoidea cientifica que nio tenha sidosus­tentada, aindaantes de seu nascimento, porsupo~s e pressupo­siy5es metafisicas (urnarazao pela qual "fiJosofia"nio se reduz a mera"terapia").

Concepcoes da filosofiacomo conjectura protocientifica fo­ramdefendidas por filOsofos como W. James,B. Russell, K. Popper e 1. L. Austin,podendo ser ouvidos ecos longinquos dela, mesmo no UltimoWittgenstein (9). A posi~ de Russell etipica. Emopo­si~o a PJatio, ele situa a filosofiano reino cia opiniio, e a ciencia empiricano reinodo pensarnentomaisou menos certo. A ciencia, diz-nos Russell, e 0 que sabemos; a fiJosofia e0 que nio sabemos, masnaoternos como provarque efalso. Todo av~do conheci­mentorouba afilosofia algunsproblemas, que passamentio ao do­miniodaciencia. ApOs essapassagem, deixameles de ser atrativos para as mentes filosOficas, pois 0 encanto da filosofiaest8na liber­dade especulativa, ern toda a fertil representacao da fantasia, no livrejogo de hipoteses, que 50pode vigorar onde 0 saber ainda e meramenteconjectural(10).

Austin diz 0 mesmo, recorrendo a uma impressiva analogia

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que chama aten~o para a corroboracao historica dessa concep­~: "A filosofiatern 0 lugar de urnsol, central e inicial, seminale mmaltuoso; de tempos em tempos ele l~ fora de si mesmo,para estabilizar-se como ciencia,urnplanets, frio e bem regulado.pro­gredindo seguramente em dir~ a urnestado finaldistante. Isso OCOlTfU h8urnlongotempo arrascom 0 nascirnento da mateIrultica, e outra vez com 0 nascimento da fisica; somente no ultimo seculo nos testemunhamos 0 mesmo processo novamente, leetamente e naquelaepocade maneira quase imperceptivel, por ocasiio do nas­cirnentocia cienciacia 16gica-matematica. atraves do trabalho con­jwlto de filosofose matematicos" (11). Austinacreditavaque a sua propria investi~ sistematica dos atos de fala seria 0 iniciode umaabrangenteciencia dalinguagern. .. .

A analogiaaustiniaoanos conduz aquestio do progresso no interior do sol seminal. Se filosofia econjectura, nela Dio pode haverprogresso, se com essa palavranos referimosa urncontiJiua­do movimentoascensiona/de apro~o da verdade,comocos­tumamostesteownhar naciencia;e isso e assim como consequencia da propria impossibilidade de se alcancar em filosofia decisao consensual sobre questoesde principio, impossibilidadeessa que dificulta ou impede a comparacao inter-teoretica. Essa escassa comparabilidade, aliada afrouxidio como diferentesteses sao or­ganizadas,ccplicacomourn sistemafilosofico de umaepoca poste­rior pode, em algunsaspectos, ser maisrico e esclarecedor(JOe urn sistema anterior, mas issoao preeo de ser menos convincente em outros aspectos (ex: 0 fenomenalismotranscendentalista de Kant versus0 realismodireto emAristOteles). Mesmo assimepossivel, em filosofia, falar-se de urnprogresso cumulative, tanto de ampli­~ do leque de possibilidadesexploradas, quanto de aquisi~ metodoI6gicas, conduzindoa urngradual estreitamentodasmaIhas arguIIltDativas.

. Em conexio com essas ideias, quero notar que a concepcao de filosofiacomo antecip~io conjectural dacienciaDio se opoe, como por vezes se imagina,aideiade que 0 fil6s0fopossa, ou que emcertas circunstincias mesmodew, ser urnanaIista da Iinguag~

maseIase opoe, certamente, a tentativas de restringir a filosofiaa mera an8Jise lingtiistico-conceitual, de encontrar nissoa essenctada filosofia Mais plausivele que a filosofiacontemporinea tenha se tornado em tio vasta medidaurntrabalhode eJuci~o conceitual

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por razOes perfeitamente contingentes: a meraespecul~ empirica (ex: a teoria pre-socratica dos quatro elementos)tem em parte se esgotado com 0 desenvolvimentodas aencias experimentais; con­bJdo, isso Binda nio scorseceu com0 trabaJho fur~te ulteri­or de elucida¢o metateoretica dessas ciencias;pois repousando essaulterioridadeno fato mesmode pressupO-las, enteade-se que esse trabalho ainda nio amadureceu ao ponto de libertar-sede seu carater conjectural, que permeiaas filosotias da fisica. da biologia, dapsicologia etc. Mas essemesmo trabalho conjectural, que ainda hoje Dio alcan\X>U bases consensuaissatisfat6rias, tende a ceder lugar a metaciencias. eIas pr6priascientificas, no sentidode alcan­~em urn adequado grau de consensualidade. Algo semelhante pode sernotadocomr~ a questOes conceituais mais genericas como, digamos, a questio de M. Dummett relativa ao esclareci­mento da forma a ser assumida por uma teoria do significado do tipo full-blooded paraa linguagem natural. Sobessaperspectiva, a co~ emquestoesditasnio-factuais080 pOeamostra uma suposta"essenciaanatitico-conceitual da filosofia", masantes 0 he. sitante assenhoreamento de novos patamares epistemicos concementesa umafase maisrecenteda evolu~o hist6ricado sa­berhumano.

Tambem a proeminencia adquirida nesteseculo peJa.ji/osojia ria /inguagem encontra aqui a suaexpli~o. 0 assimchamado "lingUistic turn" pode ser explicado como decorrenciaconjuntural do gradual amadurecimento do que podemoschamar,no maisvas­to seotido, de semiotica: a"cienciageraldos signos". A semi6tica costumadividir-se emtres grandes dorninios - a sint8tica. asemin­tica e a pragmatica -, os quais se deixam melhor concebercomo pressupondo-sesucessivamente lOll ao outro. Maisexp1icitamente temos: (i) a sintittica, que investigaas regras de comb~ dos signosentre si;(ii) a semiintica, que investiga as regrasquerelacio­namos signos(e suas combin~) aos seus objetos; (iii) aprag­matico, que ~estiga as regrasquerdacionam os signos(comsuas combina¢ese seusobjetos) aos seusUswU1oS. (Assim, podemos dizerque (iii) pressapoe (ii),que pressupOe (i).) Como filosofia, a investi~o sintiltica compreendeuespecialmenteteorias logico­formais, incluindo, digamos, a teoria dasdesericoes;a i~

seminticacompreendeumaisas teorias das con<ti~Oes de verdade, como a teoria pictoricada frase no Tractatus e tambemcertasteo­

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riasverificacionais do significado cognitivode enunciados; a prag­matica, porfun,compreendeu mais partiwlannente as diversas teo­rias das interacoes comunicativas. Por outro Iado, esse aprofundamento dedominios semioocos teveconseqUencias retros­pectivasna reor~ acomodativado WeltbildfilosOfico re­rnanescente -conseqiiencias aliils algoperturbadoraspara muito do que a filosofia pudera antes tratar de modo menos distintoe mais forttmelte imaginativo.

Como resultado de tais desenvolvimentos, questoes epistemico-ontolOgicas puderam sermaisclaramente anaJisadas do ponto de vista de seu Jugar no sistema semi6tico-conceitual determinadordo conceito de experiencia. Trata-se,nio obstante (comoRussell e outros perceberam), dewna enrase metodolOgica, quecomotalprivilegia os ''modosfonnais"de questionamento con­seqoentes 80 desmvolvimento dos campossemi6ticos, e nio (como pensam Strawsone Tugendbat) dewnadescobcrtada naturezapro­pria do questionamento filosofico. Os conceitos epistemicos constitutivos do quechamamos de experiencia, afinal, tambem pos­suemreferencias psicol6gicas (das quais sao abst~), e se qui­sennosafirmarqueeles se referem ao queeconstitutivo da "nossa" experiencia, devemosem algummomentavincula-los a essas refe­rencias, 0 mesmo sendo vaIido, com ainda mais razio, para questionarnentos ontol6gicos, relatives 80Sobjetosdesse conheci­mento. .Eis porque talvez se venha ainda a dizer que a analise conceitual eo logicismo queestivemospresenciando forammera­mente sintomsticos de uma maneira de filosofar, assim como 0

psicologismo 0 foicom respeitoas filosofias ernpiristas dos seeulos anteriores.

Sob essaperspectivatambem resultaticil compreender0 de­senvolvimento dafilosofia anaIiticada linguagem. Esse desenvolvi­mentodeu-se emtres grandes ondas sucessivas, correspondentes ao aprofundamento de cadaurndos tresgrandes dominiosdo em­brionario complexo prWentifico enganosamente definido comoa «ciencia geraldos signos". A primeira grandeonda £OJ, cIaramente, umaonda de maiordensidade/Ogico-sintJitica, deftagradadiscre­tamentepor Frege, tendo comoconsequenciafilosOfica mais geral as metafisicas atomistas de Russelle do primeiroWittgenstein; a segunda onda foi de maior densidadesemtintico-verijicacional, trazendoemsuaaistafiIOsows docirculo de Vama, comoCarnape

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Schlick; finalmente veio a onda de concentracao pragmauco­comunicacionaI, deflagradapeloUltimo Wrttgenstein e representa­dapeIa chamadafilosofia dalinguagemordinaria, especialmente por Austin, e, posterionnente, par fiIOsofos maisteenicos como1.Searle, P.Grice e 1.Habermas. Por fun,a ordem histi>rica do desenvolvi­mento, comecando pela sintatica e termiiumdo na pragmatica, se justificapela propriaordem de pressuposi¢es vigenteentre OStres dominiossemioticos. Com esses alargarnentosdas possibilidades de esclarecimentove-se confirmadaa maiortoler8ncia e tlexibilida­de da maneirade ver recem considerada.

Mas em que se constitui; afinal, 0 proprio elemento protocientifico daconjecturafilosOfica? Edificil dize-lo. Penso ser possivelcaracteriza-lo como 0 elemento que outorga substdncia epistemica ao discursofilosOfico. Trata-seda forma essencialmen­te cogmtiva, e com isso generalizante,argwnentativa e heuristica., de que 0 discurso filosofico se reveste; trata-se de uma forma de pensamentoque se abre a teorizacoes incorporadoras de enuncia­OOs geraise de suas conexoes informativascom descricoes do que ee do que nio e0 caso, 0 que se manifesta comunicacionalmente em proferimentos constatativos. 0 que ai se enuncia pode ser tanto do genero ex.primivel em assercoesde tipo empirico(ex:"v = d I t") como em assercoes de tipo formal (ex: "p, p ---+q I:. q"),o que precisa ser lembrado, dado que as antecipa¢es em questio Dio parecem dever se restringir a supostos dominios da ci&1cia empirica, epistemicamente, de resto, sO gradualmente separaveis dos dominiosformais, Eatravesdesseelementocognitivo,do qual participamgeneralizacaoe argumento,que a filosofia toma-se uma espeeulacao racional, visando 0 conhecimento, a verdade acerca de tudo 0 que, direta ou indiretamente,concerne ao mundoda ex­periencia: eassimque, embora nio sendo como as ciencias. que ocupam lugares epistemicos estaveis e de diteito, a filosofiapode preparar 0 acesso aos campos dequestionamento que 0 conheci­mentodito cientifico terminanipor ocupar.

Ha finahnenteum ponto importante, cujadesconsid~ atrai para a ideiadafilosofia como saberantecipatorioa injustaaaJ~

de comprometimento com urn reducionismo positivista. Devido mesmoao caniter aberto do saber antecipat6rio que a filosofiapa­rece ser,nio podemos previamenteadotar para0 que dela cremos que possa resultar, arbitrariamente, criterios de cientificidadeim­

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portados de ci&ciasporticulares ja conhecidas (ex: a fisica), pois isso poderesultar restritivo e inadequado. Felizmente, 0 termo 'ci­&cia' tambempossuioutras e maisabrangentes acepcoes.

Para captar uma ace~suficieotemente abrangente e ainda assim relevante do termo 'ciencia', de modo queele se tome desig­~io satisfatOriapara 0 telos dainvesti~ filosOfica, sugiro que ele seja genericamentee descompromissadamente usado para de­signar minimamente - por oposi~io aconjectura filosofica- uma especie de saber niio-conjecturaJ, no sentido de ser passiveI de decisdo consensual em um comexto critico. Essa ideia evaga e insuficientemente restritiva: considere-se enunciados como (i) "To­dos sao iguais perante a lei", (ii) "Todos os solidos ocupam espa­~", (iii) "AD raio segue-se sempre 0 trovio", (iv) "0 fogo queima" ~

todos elessao enunciados nio-especulativos e todaviaoiG-cientifi­cos. Por isso, podemos tentar completar nossa sugestio com a proposta provisOria deque os saberes cientfficos sao aquelescapa­zes de satisfazer ao menos as tres condicoes seguintes:

(I) Constituirem-se de generalizafOes descritivas e de al­gumpotencialexphcitativo - de maneira aexcluir saberes praticos (comoem(i) eg~ redundantes(como em(Ii».

(2) Serem de urntipo niJo-triviaJ - excluindo assim genera­li~ desensocomum(como em(iii) e (iv».

(3) Caso haja conftito entre suas teorias, que sejapossivel uma decisiio consensual a favor do verdode de uma delas em um contexto critico - exclui saberes meramente conjecturais, es­peciahnente 0 filos6fico.

Mesmo sem entrar em maiores detaJhes, parece claro que ali­nhandocondicoescomo essas podemosalcancarurnaconcepcao suficieoteme:nte generica e mesrno assim ni«:rtrivial do termo'ci&­cia' , apta portanto a ser contrastada aespeeulacao filosofica, E, pois,atravesde urncaminho maisvasto queparecedeslindar-se urn horizonte onde os abismos fiJosOficos deixem de existir, urnhorizon­te decerto meramente virtual, caso des se demonstrem relevante­mente auto-JWltipIicaveis.

4. Eoelementoprotocientffico ouepistemicode wna ~ cond~io suficiente para torna-la filos6fica? Parece que nao, pois

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embora ele permita eliminar conjecturas particulares,como as da vida cotidiana, pode-se considera-lo de maneira a admitir como sendofilos6fi.cas hipotesesque nio possuem tal relevincia, como, digamos, as do saber a1qulmico, tido comoconjecturaantecipadora da quimicamodema. Alemdisso, teoriaspretensamentecientificas, como as diversas doutrinas marxistas e psicanaJiticas, podem ser consideradas como conjecturasprotocientificas, namedida emque enmitodificil estabelecer-seumconsensoquanto a sua ~ e quanto aescolha entre diferentes versOes. Seriam etas entia de natureza fil0s6fi.ca? Em certa medidasim, emboraa refiexlo mais propriamente filos6fica costumepossuirmaiorabrangencia ~etuaI

ou metodol6gica e depender ainda mais de conjecturas argumentativas emdominioscorrespondentes. A questio toma-se: que esp6ciede protocienciaea conjectura filos6fi.ca?

Uma respostapode ser encontrada quando nos cientificamos da existencia dedoisoutros elementos de maiorimportincia, facil­mentedetectaveis emtodo 0 discurso filos6ficoocidental. Quero chama-losde componentes ou aspectos "estetico" e "mistico" da reflexiofilos6fica, lI1gerindo sera adi~ delesrespons3vel pornwito do saborpea.aliar da conjecturaprotocientificafilosoficamente rele­vante. Componentes de ordem estetica e mistica encontram-se, com efeito,nagrande maioria dos discursosde relevincia filosOfica que nosformalegadospela tradi~. Ha umacaracteristica aomeu ver comuma ambos,pela qual e1es diferem do elementoqlistemico de anteei~o dacieooa; eque, diversamentedo Ultimo, elesDio sao de ordem essencialmente cognitiva, manifestavel em proferimentos constatativos, vistoque nio visam CODlUIi.carurnc0­

nhecimentoformal ou empirico-faetua1 do que ee do que Dio e0

caso no mundo cia experiencia. E1es sio elementos de ordem ex­pressiva, ou, maispropriamente, realizativa, manifestando-seem proferimentosperformativos, nIo visandotanto informara verda­de acerca das coisas quanto produzir ~s de outra especie, como, digamos, a de emocionar peIa beleza e a de animar pela exorta~ (12). Pretendo tornar plausivela ideiade que pela ade­quada consideracao dessestres elementosbasicospodemos aJ~ar­nos auma visio integradae nio-restritiva da naturezado laborfilo­sOOco.

Considerandoprimeiro 0 componente estetico, podemos fa­zer entre a filosofia e a arte urn certo paraJelo. Tanto uma como a

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outrasio, em gera1, fontesdeurnprazerdesimeressado, como que auto-suficiente, nio visando essencialmente wn fun paraalemde si mesmas. A arte DiocostumapossuirutilidadeprBtica. A fiIosofia taJnbem Diopareceservir para nada;elae, na presumida afi~ de Heidegger, demasiado nobreparaser de algumaserventia. To­madascomoconhecimento, ambasmanifestam-se facilmente ilus6­rias. Mas em seu fun proprio, a arte possui uma fun~io catartica, quenosreconcilia coma existencia, harmoniza os sentimentos, reti­na os sentidos, enriquece a personalidade. Algonio muitodiverso ocorre com a filosofia. 0 que a arte fazpara apurar a nossa sensi­bilidade, a filosofia parecefazerno sentido de harmonizara experi­encia,refinar e educarnossointelecto. A filosofia e, por assim dizer, "a arte da razao": assimcomoa arte trabalhacom 0 material parti­cular das representacoes sensiveis para a obt~io de finsnio es­sencialmente cognitivos, a fiIosofia trabalha com 0 material geeerico do intelecto, para atingir finsnesseaspecto sirnilares. E etambem por satisfazernecessidades esteticas - de uma"estetica da razao", nio dos sentidos- que muitoda retlexio filos6fica, emque pese a sua inverossimiJhan~ continua a nosincitarintelectualmente.

o componente estetico nio e so aparente nos aspectos retericose estiIisticos do discursofiIos6fico; elevernenformado em suasprOprias estruturas sistem3tico-ideativas, no recursoalingua­gemfigurativa, napropriaformada argumen~io. E a motiv~ esteticaseriatambemresponsavel pelosaspectospmamenteimagi­nativosda produ~io filos6fica, peloelementode fantasia,pelo(U­

sombro (tauma) que noscausa,pela"forca taumatUrgica" que nela freqiientemente admiramos, e que nosfaculta reveras coisascomo da primeira veze a tudo questionar. Nio se trata, comonaciencia, de se dizer como ascoisas sao, masdeimaginar,de dar a entender especulativamente como poderiamse-Io,como toJvez 0 sejam. A filosofia e, nessamedida., "a arte de formar, de inventar, defabricar conceitos" (13).

Quantoao eJ.emento de cono~o mistica, nio podemosdei­xar de notarque a filosofia nasceudo solo espiritualda mitologiae da religiao. E lugar-comuma consideracaode que 0 advento da filosofia sefez entre os gregos, atraves deuma~dos&gen­tes sobrenaturais por principiosexpIieativos nio-antropom6rficos. Essesprincipios, queeraminicialmente fisicos, como acigua, 0 ar, e ofogo, logoforam substituidos por ~intangiveis, comoas

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do ser, das ideias, dasuhstdncia edo uno, na filosofia antiga, e as da consciencia, do eu, do absoluto e da vomade nafilosofiamo­dema.

Pode-se ponderar que semelhantes abstr~s foram utiliza­das de maneira equivoca,como atesta a criticada linguagem, per­vertendo os sentidosusuais de tennos genericos cuja gramatica e intransparente, para faze-losservir, emgrandeparte, de meioparaa veia.d~ deequivalentes abstratosdas .figui~ mistico-religio... sas de certas conformacoes culturais. Mas tambem pode ser que ainda aquise esteja obscuramentepropondo novas determin~s

de sentido, ou seja, que 0 uso de tais tennos pelos filosofos possa ser considerado urn meio tentativo e analogico de se expor novas ~. Algoassim eo que insiD1am, por exemplo, aS~ e depuracoesque 0 conceito filos6ficc de Deus sofreu,desde 0 mo­tor im6velde Arist6teles, 0 noesisnoeseos, ate co~Oes mais facilmente assimiJ8.veis, como,do lado de uma disposi~ subjetiva, a ideia normattva de Deus em Kant, entendida como 0 conceito ex.periencialmenimpreenchivel de urnfundamento Ultimo, ooncei­to que serveapenas COIOO principio hemistico, 0Jdenad0re unificador de todo 0 conhecimento da namreza, e, do lado de urn suposto correlato objetivo, a concepeao spinozista de uma natureza oniabrangentee infinita, em re~aqual por vezes poderiamos, emalgum sentido,intuir-noscomopartes necessirias.

Minhasugestio e a de que 0 componentemisticoeessencial­mentereveladoquando consideramosa .fiIosofia sob a perspectiva de duas preocupacoes basicas mais elevadas e abrangentes, que sao as relacionadas"'80 todo do universoe ao lugar que 0 homem neleocupa" - preocupacoes que sao tambem fundamentaisareli­giao. Aprimeira delas,concernente a(certameote infundada) ambi­~io humana de"compreensaodo universocomo urntodo", mani­festa-sebasicamentena tendeneiaespeculativaque 0 fil6sofode­monstra ao orientar sua investiga~o em dir~o a fundamentos ultimos, Mo-subordinados, quefatalmenteacabampor transcen­der os limites do empiricamente experienciiLvei ou lingUisticamente dizivel. Eis 0 que eu gostaria de chamarde amhiflio totalizadora da atividadefilosofica, revelada, nio 50no conceito filosofico de Deus,mast:ambem em muitosoutros conceitos-limitesusarlospe­los filosofos, como os do incondicionado, d3 coisa em si, dos noumena, do absoluto, do indizivel etc., que sempre a nortearam.

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A segunda preocu~ dizrespeitoaquestio priltica do "lugardo homem00 universo", manifestando-se maisamp1amente naat~

do filosoto Ii questio (supostamente infundada)da atitude geral que devemosadotar diantedo mundo.

TaispreocupecoesespecuJativas e praticasternem seu ceme sedemonstl'ado cognitivarnente, racionalmente irresgataveis, posto queterminam porexigirque nossointelecto, pararesponde-oIas, trans­cenda 0 mundo 00 experienciapossivel. Vemoscom isso corro­borada asugestio de que 0 componente mistico dafilosofiaeem essenciaperformativo,exortativoe nio-cognitivo, adiferencado e1e11lento protocientifico, que rnantem-se imanente aexperiencia. E tambem por esse seu carater essencialrnente perfonnativo que 0

e1emento mistico costumaveiadar-se por meiosesteticos, expressi­vos. De resto, eporque semelhantes preocupacoes totalizadoras sao inerentesaforma do pensamentofilos6fico, que filosofias que as rejeitamsem questionamentoadequado (ex: 0 materialismode La Metrie)tendema afigurar-se gratuitas e empobrecedoras.

5. Mas nio seria essa, apesar de tudo, uma construcao for­cadae artificiosa? AfinaL 0 quejustificaa escolhados t:res elemen­tos recem considerados? Nio seria possiveljuntar os elementos esteticoe mistico em lDD Unico, ou,digamos, adicionarwnavarieda­de de fun~ ideo16gicas? Possivelmente. Mas a escolhaque ~ nio e arbitraria. A razio pela quaJ selecionoesses tres elementos como sendobasicosadvemde umareflexio acerca do lugarque a tilosofia ocupa entre outros cornplexosde atividades e produtos culiuraisda sociedadehumana,entre outras prilticassocio-cultu­rais emurnsentidoamplo. Podemosdistinguir c1aramente ao todo quatrograndespnlticass6cio-culturais em nossa~: aarte, a religiao. a cienciae a propriajilosojia. Ora, mas se a filosofia, em seu elemento epistemico, se relaciona com a ciencia como protociencia, e seelanonnaJrnente contea.componentesesteticos e misticos que a aproximamcia arte e cia religiio, entao parece raw­avelsupor que elasejamnapraticas6cio-culturalmistaou deriva­00: aseme~ cia opera, que eumaformade arte nio possuido­fa de identidade autOnorna, resuhandode umainstavelcomb~

de musica, de poesia e de dramaturgia, a filosofianutrir-se-ia de umaconfluencia de motiv~ procedentesde outras fontes, que isoladamentepoderiamter originado ciencia,religiio e arte, mas

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que juntas geram algo novo. que constitui-se como que de urn am8lgama demateriaisreJacionados aquelas mesmasfontes. Essa hi~ podeser ilustradase situannosa filosofia nointeriordewn triingulocomo0 seguinte:

CIENCIA

elementos cognitivosau

protocientijicos FILOSOFIA

componenr:es perfonnativos esteticos / misticos

~ARfE ~<--------~>RELIGIAO~

Asre~ de estrutura assim estabelecidas podem ser dina­micamente interpretadas. Primeiro: a ciencia. essenciahnente racio­naJ, eposterioraarte e areJigiio.maisimagina1ivas, tomandogra­dua1mente. emaescentes Diveis decomplexidade, esp8\X)s quean­tes Ihespodiam SCI'COJDJIlS; contudo, nempor isso 0 processopre­cisatomar-sefechadoe finite, dadoque 0 Lebenswelt responsivel pelos esp~s estetico e misticoetambemcriativo, tendo sempre se aberto il emergenaa de novas possibilidades. Segundo: a arte e areligjio podeminftuenciar-se mutuamente. emcompeti~ ou co­mCrcio simbiOtico. e assim tarnbemos componentes esteticoe mis­ticoda retlexio filosbfica (14).

Parece dessamaneiraadmissivel supor que a formacaracte­ristica dodisaJrsofil0s6fico..parausarmosumaJIlet8fora aili­naria, a de umareceitaprotocientffica, elaborada com dois condi­memos basicos, que saoassuascono~ esteticae mistica. FaI­ta-nos., everdade,medidas e f6nnulas diferenciadas. Masja 0 que temosparece bastar para excluirconjecturBS nio-pr8ticas e 080­fiJosbficas, quenio possuem. por exemplo. auto-suficiencia em SUBS

finalidades, como a pseudociencia a1quimica., au quenio demons­tram preoaJ~ tio ampIas., como a psican81ise e 0 marxismo.

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6. A~quetentei ~efilcilmenteirnpugnaveL se consideradade urnporso de vista normativo - do que filosofos possam pensar que a filosofia precisaser, deve tornar-se; como outrosconceitosorganieos, 0 conceitode filosofia possui"textura aberta", sendosusceptivel de ampli~ e m~, as quaispo­dem tantosurgirnaturalmente dapraxis fil0s0fica quantoserempro­postas e eventualmente adotadas. Contudo, Diofoi meu intento, nemproporumarenovacao do conceitode filosofia, neminwnizar minha caracterizacao de tais obj~s, 0 que seria 0 mesmo que tentar fechar 0 proprioconceito usual de filosofia. 0 quequis fazer foielucidar 0 concerto de filosofia sob0 pontode vistade seusigni­ficadohistOrico-descritivo - do que a filosofia deJato ternsido,do que se ternefetivameme emendido por ela.

Sob essaperspectiva anaIitic<Hlescritiva, a propostasugerida toma-sebernmenosimpugnavel. Ela recebe, naverdade, umacor­robor~ nwitoamplaquandoconsideramos as obrasdos grandes filosofos do passado Os tres elementosconsideradospodernser detectados em filosofias as mais diversas, explicando-se ainda a especificidade de certasfonnas de filosofia porvariaeoes nacontri­bui~o de cadaelemento. Ha aquelasfilosofias que se aproximam da arte, representadas pelo trabalho de artistas-filosofos como Nietzsche,Kierkegaard, e mesrno Heradito. Ha aquelas que se concentram maisoos~smistico-teol6gico-et:icos do triingulo, como 0 sistema spinoziano e as obras de Agostinho, Sio Bonaventurae tambem Kierkegaard. E hi ainda outras que do rnais fortementedirigidaspara 0 verticeda cientificidade, como 0

sistema aristotelico, 0 pensamento cartesiano, a teoriado conheci­mentode Locke,as filosofias dalinguagern deFrege e Russelletc. (Hit tambem aqueles filosofos hostis a esse elemento, como Heidegger e Sartre,e ainda positivistas aversosao modode filoso­furdos quesentemtal hostilidade, comoCamap ...). Hi, par fun, 0

casode obras que se situam de tal maneirasobrepostas a urndos vertices dotriingulo, quese toma dificil decidiremque medida aiD­da pertencemou se jli deixararnde pertencerao dominio da filoso­fia: considere-se, quanto aciencia,os exemplosde Freud e Marx, e, maispara alem,os de Weber, Toynbee,Levi-Strauss;quanta it arte, hi os exemplos de Seneca, de Novalise Holderlin;de Cioran; e quanta a. religiio, hi os exemplosde misticos iluminados como1.

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Bohme, de sincretismos filoscfico-mlsticos, como 0 do Corpus Hermeticum.

Hi tambem 0 registro de epocas historicasem que predomi­nou a filosofiaorieotada para 0 elemento estetico, como no breve periodo do romantismofilosofieo (e mesmono idealismo alemio); para 0 mistico, como e 0 caso do pensamento medieval; para a razio cientifica, comono classicismo nxxIemo. Aindamaisvoltada paraa cienciae a maiorparte da filosofia coetemporanea,que assim deve se-Iocomo efeitodo imensosucesso e da impressionanteam­pli~ dos dominios da ciencia, mas que tambem pode se-lo dogmaucamente, tanto por exigirprernissascientfficas (logo nio­conjecturais) como ponto de partida, quanto em requererem seu desenvolvimento a coibi~ dos outros elementos. Creioque a for­ma mais radicale algo fUtil dessa tendencia esteja exemplarmente contida no"quineismo"de uma parte da filosofianorte-americana contemporanea,queparecever no filesofo 0 ajudante-de-obrasdo cientista, ou mesmo 0 seu enterteiner: Que a filosofia atual nao precisa ser de uma sO maneiraprova-o, talvez, a filosofiafrancesa contemporanea: Atravesde sua peculiar"ret6rica argumentativa", tambemelacostuma orientar-se unilateralmente, maspara umaes­pedede ~ estetica, que vivedo sacrificio cotidiano do "mito da verdade", comprazendo-se na fabricacao de ilusoes urn tanto supedluas, que, diversamenteda arte, Ilio sao sem subterffigios de born grado admitidascomo tais.

Com efeito,parece ser pelo fato de wna conjectura nio ter se polarizadoem nenhwndos vertices do triingulo que ela se rilostra maisparticularmenterelevante como filosofia Assirn, Kant linha preoeupacoes cieritificizantes ao teotar esclarecer as condi~ de possibi.lidade da experieacia, masa sua revolu~ copemicana e as postUl~ metafisicas dela resultantes, e ainda os subsequentes ri:lergu1hos nasiIguas tUIvas do "oceanonoum.emco", sao reveladores de umaambi~ totalizadora deascendencia mistica. 0 Wtttgemtein do Tractatus preocupou-se,junto a sua expli~ das condi~es

de representa~ lingtiistica das ciencias faetuais, com 0 quetrans­cende os seus limitesde significacao,0 "indizivel" etico, estetico, mistico. 0 monismomisticoque e 0 sistema spinozianoorienta-se segundo 0 modelo de racionalidade dedutiva das ciencias exatas, ciljaordem argumentativaadquirenataco a maise1evada qualida­de estetica 0 esteticismode Kierkegaard, por sua vez, era essen- '..'

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ci.almente mistico, mas nAo necessariamentenio-argurnentativo,0

mesmoacontecendocom 0 pensarnentoagostiniano,permeado de elementosesteticose misticos. E a fiJosofia de Platio representou talvez algo proximo deurnequilibrioidealentre as tres preocupa­~. Procure-se (se possivel)conceber como seria a producao de cadaurn desses filosOficos se nela fosse considerado apenas urn imicodos tres elementos;nesse caso 0 que teriamosseriaumamu­til~ do produto, que ficaria privado daquilo que the dava urn valorfilos6fico. De sernelhantes consideracoespareceresultar, en­fun,uma conclusioalgo melanc61ica paraos cuItoresda ~:E queasconseqUencias que umaeradeescIarecimcnto cientifico total trani paraa filosofia - aomenosemsuaformaclassicae proeminen­te - haverio desernegativas: junto ao colapsodo papelda arte e da religiio. os bons tempos da filosofiaterao chegado ao tim. Ainda assim. comorIJJitas das questoes filosOficas tradicionaisquese man­tiveramvivas continuamtanto insolucionadas quanto indissolvidas, essa era pode Ilio ser tao iminente quanto sugerem a inercia e 0

ceticismodenossa~.

7. As consideracoes precedentes permitem-seconcluircom uma moral acerca da justifi~io pratica da reOexio filos6fica. III. se notou queumaboajustificativapara nosocuparmoscom 0 estu­do da filosofiaest&. em que todos nos, queiramos ou nio, sempre possuimosuma- a propria decisio de nio filosofar, como ensina0

paradoxo do Protrepticus, euma decisio fiJosi>fica -; sendo assim, e rnelhorque nossas concepcoes filosoficas Rio sejam ingenuas: que elastenbampassado pelo crivo da discussio em uma comuni­dade de ideiase mostrado resistencia aos desgastes da da historia (15). Nio obstante, no proprio fato de tennos, queiramosou Rio, uma filosofia, no fato de nio podennos suspender seu exercicio implicito, ja se pressente a sua necessidadepnitica. Emboraa filo­sofia nlo possua uma fun~io pratica extema e imediata, a evid~ de umadimensio cognitiva,antecipadorada ciencia, acrescida deaspectos performativos, aponta para efeitos concre­tos. A fiIosofia que tivennos, mesmoque implicitamente, escolhi­do, terminara por orientar tanto a forma de nossas inquiricoes, quanta nossas disposicees e atitudes gerais, influenciando, nessa medida, 0 curse de nossas ~s (16). Se a filosofia Dio influiem nossas ~ imediatas, ela terminarapor inftuir no longo curso de

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. . .

nossasexisrencias, e assim, em UltimaiDStincia, em nosso proprio destinocoletivo. .

Notas:

I Para uma bibliografiae exposi~io dessa concepeao, no ambitoda filosofia analitica, ver ClaudioF. Costa: FilosofiaAnali­tica, (ed. TB) Rio 1992, cap. 1. Em contraste, a concepcao que quero esbocar aqui nio sO evita restriw~ arbitrarias na extensio do conceitode filosofia, mastambem Ilio deixade fazerjuz Ii pre­tensio de centralidadede questOes metafisicas e epistemicas. TaJ concepcao pode ser vista como uma tentativa de integrar 0 que parece correto emviuiasoutras.

1 Nio mereDro awn dogmatismo aberto, masmatizado: nio e"Eutenhoa verdade", mas"Eu creioter chegadoa wna exposi~

aproximada daprOpria verdade", 0 que0 616s0fo detatodira, quando o queeledeveriadizere: "Eu suponhoque chegueia umaconfusa, fantasiosa, simplificadora e altamentedefeituosa aproxima~io da verdade".

3 VerC. F.Costa: "Wittgenstein: a serninticaimp1icita", in0 quenosfaz pensar, n" 5.

4 L. Wittgenstein: InvestigafiOes Filosoficas. col. OsPen­sodores, Abril 1975, sec. 244.0 argumento estende-se da sec. 244 a sec. 308 da parte I.

5 L. Wrttgenstein: Ibid., sec. 258. 6 L. Wittgeostein, Ibid., sec.271. Baseio-rneaquinarecons­

~o de W. Stegmiiller, in:Filosofia Conlemportinea. Vol. L Sao Paulo 1977 (Epu-Edusp), p. 492 ss,

7 L. Wittgenstein: Ibid, §580. 8 Mais expIicitamente: peloseuprimeiroargumento ( §258).

Wingenstein devever-secompeIido a re:;eitar quequalquerlingua­gem, mesmoa nossa, possa ser usada para fazer referenciaa esta­dosintemos. Masessaconclusioparece condumaurn bebaviorismo radica1 e Iiviol~ de nossas intui~ lingtiisticas quanto ao uso de termos psico16gicos. Wittgenstein rejeitatal bebaviorismo, ad­

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mitirido expJicitamente a existenciade estados mentais. 0 que nio parece eque ele tenha conseguidofazer isso semcair erncontradi­~io com seu proprio argumento. Comentadores como P. Geach tentaram evitara contradi~: "0 que Wittgenstein quisnegar", diz Geach, "nio foia referenciaprivadadeexpress5espsicolOgicas - e. g. que 'dor' esta para uma especie de experiencia que pode ser bastante 'privada' - masa possibilidadede dar-Ihesurnsentidoapro­priado - e.g. de dar sentido apalavra 'dor ' apenas por prestar aten~ as propriasexperienciasde dor, urndesempenhoque seria privado e inconferivel". (Mental Acts, Oxford 1970, p. 4). Uma interpretaeaosensivel, essa, masque nio salva0 argumento da ob­j~o de que nio seria possivela referencia a estados privado se para elesnio pudessemos fonnar regras de identifi~.

9 '''Filosofia' poderia sert:ambem chamado 0 que ~ possivel antesde todas as novasdescobertase inv~". (L. Wtttgenstein: Ibid. §126).

10 Sobre a psicologia do filosofo acrescenta ainda Russell: "Assim comoexistem familias naAmerica que desdeos temposdos PaisPilgrimsemdiante sempreimigraram emdir~ ao oeste, por­que nio gostavamdavida civilizada, os filosofos ternuma disposi­·~o venturosae gostam de lidarcom regioesem que aindaexistem incertezas", (B. Russell: A Filosofia do AtomismoLogico, p~ 141, col. Os Pensadores (ed. Abril), Sio Paulo 1974.

11 1.L. Austin:PhilosophicalPapersOxford 1979,p. 232. 12 Sobre 0 carater nio-cognitivo da linguagem religiosa, vee

1.Hick: Filosofia til Religitio, (ed. Zahar) Rio 1970,p. 117 ss. A tese seaplicacomnio menosrazio alinguagem da arte

13 G. DeleuzeeF. Guattari: OqueeaFilosojia?, (ed. 34) Rio de Janeiro 1991,p. 10. "Parece-me", diz Deleuze,"que a filo­sofia eurn veedadeiro canto que nio e 0 da voz, e que ele tern 0

mesrnosentidode movimentoque amusica" (ConverSOfiJes, (ed. 34) Rio de Janeiro 1992, p. 202).

14. Esse esquemapodetrazer al~ a ctwnada leidos Ires estagios de A Comte (ver Curso deFilosofia Positiva, Col. OsPensodores, xxxm, (ed. Abril), S. Paulo 1973). Segundo Cornte,a evolu~ dos saberes passa necessariamentepor tees fa­ses: 1) 0 est:3gio religioso, que explica a realidadeimaginariamente, pela intervencaode causas sobrenaturais absolutas; 2) 0 estagio metaflsico intermediario, que substituios deusespor causa recOn­

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ditas absolutas,como eo easo da substdncia, sendo tambem pro­duto do imaginario, e 3) 0 estagio cientifico ou positivo, em que a imaginacaoe substituida pela razao, que busca leis derivadas da observ~io de regu1aridade factuais, renunciandoadescoberta de eausasU1timas e absolutas.. Para Comte, a fun~ dos dois primei­ros estagiose taosomentepreparar 0 advento do Ultimo ao manter vivo0 interesse humanona investigaeao

Inegavebnenteimportante, ao revelarumacerta tendeneia geralna evolucso do saber,a "lei" comteana eapresentada em um contextoideologicoe rigidamente aplicada, desvalorizando os dois prirneiros estagios emfavorde umarriscado reducionismo positivista, quesintomaticamenteacaboupar reproduzirem simesmomuito do obscurantismo que dogmatiearnente condenara forade si. Seues­quemadinfunico tambem diferedo nosso par ser linear, nio levando emconta adimensAo estetica: religiio --+[filosofia] --+ciena.a.

15 K. Popper: Autobiogrcfia InteJectuaJ, Cultrix.Sao Pau­lo 1976.

16 Exemplo disso ea discussio contemporinea em tomo das teorias da verdade. A teoria que escolhermos, se correspondencial, coerentista,consensual, pragm8ticaetc., perten­ce afilosofiateorica, mas ajuda a detenninar a forma dafilosofia praticaa seradotada,0 que pode influir emtodo 0 ambito de nos­50S valores, atitudese comportamentos.

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Revista Principios -Depts. Filosofia UFRN, RN, 'kIll - WI Junho de 1995

JURGEN HABERMAS DAPRAGMATlCA UNIVERSAL AAMBIGUIDADE

TRANSCENDENTAL(*) .

JAIME SIELLA

DEPARTAMENTO DE FIWSOFIA DA UFRNIPUCCAMP

RESUMO

Em sua Teoria da AfOO Comumcativa; Jurgen Habermas "distingue" razao instrumental e razio comunicativa e apresentasuasteses sobre0 estatuto e 0 Iugarda filosofia naroltura contemporiIlea. A partir da analisedos estudos deHabermas so­bre a Pragmatica Universal, 0 autor discute a natureza da raziio comunicativa (haveriaaiurnacim nointeriormesmo darazio?) e questionaasbasesdadefini~ habermasianade filosofia (pragma­tica au transcendentalismo?). .

Todos os filosofos ja se depararam, pelo menos urna vez, com a necessidadede de6nir"0 queea filosofia". Assimeque toda teoria filos6fica traz, implicita ou explicitamente, uma ~ sa­bre a propria filosofia

Em nosso seculo, parece que esta questiio assurniu propor­~es nunca antes experimentadas pelos fil6sofos do passado. Ao mesmotempo, conhecemos respostas asmaisvariadaspossiveis.

Desde 0 irracionalismo ontologico de Heidegger e da metafisica atomistade Wittgenstein, urnamploespectro de respos­tas fbi-nos apresentado neste periodo.

Aexponenciacao de temas na filosofia contemporanea cor­responde,diretamente, a nwltiplicidade de defini~Oes do ato do filo­sow.

(OJ Trabalho apresentado no VI Encontro Nacional de Filosofia - ANOF/ll/94 e na III Semana de Humanidades-CFRN/1994.

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Jurgen Haberrnas nio eexcecao. Ja luialguns anos, esteau­tor vern apresentando reiteradamente SUBS teses sobre 0 estatuto e o lugar da filosofia em nossaeu1tura.

Para Haberrnas, a filosofia deve abandonar a pretensio de superioridade que a caraeterizavano passado sem, contudo, abdi­car dos seus traces maiscaracteristicos (universabilidade, carater hipoterico, etc).

Ao incursionar por esta temiltica Habermasnos da a conhe­cer uma resposta bastante atraente: a de que a filosofia pode (e deve) senacional, falibilista, interdisciplinar, criticae libertadora, e ainda: nio fundacionista nemmetafisica.

Nosso objetivo na presente exposi~equestionar a defini­~io haberrnasiana de filosofia a partir da analise dos pressupostos que a sustenta.

A Moria do Afdo Comunicativa assenta-sena ideia de que, alem da razio instrumental, luiurn outro modeIo de razio: a cornu­nicativa.

Esta razao e, segundo Habermas, passivel de ser identificada e reconhecida a partir dainvestiga~ da ~ lingi.iistica, postoque alinguagem pressupOe umaracionalidade processual. ConclusAo: a razAo cormmieativa situa-se numacomunidade lingilistica.

As inferencias de Habermas, entao, sao Obvias: Se a comunidade lingilistica e0 lugar de uma dada razio,

temos entio que a filosofia pode abandonar 0 modelo de investiga­~ centJada emurnsujeit6 isolado. Ainda: a filosofia pode abando­nar oparadigma da filosofia da consciencia e aceitar 0 paradigma da intersubjetividade.

Se, por outro lado, arazio comunicativa corresponde urn interesse emancipat6rio da especie humana, esta saJvaguardado 0

carater critico-libertador da filosofia. Voltemos, agora, aos pressupostos desta razlio. Onde vai

busca-losHabermas? Assim como tantos de nos, Habermas sabe que a filosofia

nao e uma ciencia empirica. Todavia, Habermas pretende nio se servir do metodo transcendental de investi~da rea1idade.Res­ta-lheportanto, utili2N-se dometodoreconstrutivo Leltbamos aqui, que estes tres modelos de conhecimento: empirico, transcendental e

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reconstrutivo, sao exatamente os tres metodos reconhecidos por Habermas.

Exemplo deconbecimento reoonstrutivo e aPraglMtica UD~

venal, que, por sua vez, na formula~ habermasiana, serve-se dascontribui~deJ. L. AustinedeJ. Searle.

Para Habennas, "a pragmatica universal tem como tare/a identificar e reconstTuiras condifOes universaisdo entendimento possivel" (Habermas, 1989:299), vale dizer, identificare recons­truir as condi~ universais do dimogo.

A meta da anilIise reconstrutiva da linguagernea de descre­ver ex:plicitamenteas regrasque urn&lantetern deadotarpara cons­truir oracoes gramaticalmente corretas e as regras para aplica-las de forma aceitavel.Estameta assenta-se na idemde que a compe­tenciacomunicativa ternurnnUcleo tao universal quanto a compe­tenciaJingiiistica, postoque,

"todo agenle que atue comunicauvamente tem que, na exeCUfDode qua/quer atodefala; erguer pretensoes umversais de validade e supor que tais pretensses podem ocorren " (Habennas, 1989:3(0)

Todaemissio JingOistica pOea or~ em r~ com a rea­lidade extema, coma realidadeintemado &lantee coma realidade oormativadasociedade.

A rea1idade externaeo.mundo dos objetos e eventos sobre .osquaissepode fazer emmciadosverdadeiros ou fiIlsos. A realida­de interna, por sell turno,.eo proprio mundodas expaiencias inten­cionais do falante, que podem sec expressas verazmente ou nio. Por tim, a realidade normativa da sociedade e0 que se chama de "110850" mundosocial,de valorese normascompartiJhadas, de leis e regras a que urn 310 pode ajustar-se ou nio, que podem ser cor­retas (legitimas, justificaveis) ou nio.

Neste sentido, ao emitiruma~, 0 fBlante levantapreten­sOes de validade de diferentes tipos. Estas pretens6es sao: a inteligibilidade, a verdade, a veracidade e a retidio. 0 falante pre­tende, portanto:

1. que sua emissio sejacompreensivel; 2. que 0 enunciadosejaverdadeiro;

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J. que a expressao manifesta de suas intencoes seja ve­raz;e

4. que sua emissao(0 ato de fala)seja,ele mesmo,corre­to ou adequado em rela~ ao contexte normativoreconhecido.

Dentre estas quatro condicoes de validade da fala, observa­seque a primeiraeimanenteIi propria linguagem, enquanto que as demaiscolocame emissio do falante em rela~o a ordens de reali­dadeextraJingiiistica. Portanto, a infra-estruturapragoWicaconsiste emregrasgerais para ordenar os elementosdas si.tua~ de faIado sistemade coordenadas formado por tres eixos: a realidademer­na, a realidadeinterna do falantee a realidadenormativa da socie­dade.

A difer~ entre competencialingiiistica e competencia co­rmnicativaesta no fato de que, enquanto a primeiraexigedo fillante apenas a habilidade para produzir ~gramatic:almente corre­tas, a competenciacomunicativaexigedo falantehabilidade para:

·produziroracoesgnunaticalmente corretas; · selecionar 0 conteUdo proposicionaJ deformaque reOita uma

experiencia ou faro; ·expressar sua inten~o de forma que a expressio lingilistica

retlitanoque 0 ouvinte pensa;e ·realizar os atos de fala de fonna que secumpram DOnnas

reconhecidas ou correspondama auto-imagensaceitas.

Urndos aspectosmaisimportantespara todae qualquer teo­ria dos atos de falaea c1arifi.~ do status performativodas emis­sOes lingaisticas. 0 poder dos atos de fala de produzir 0 tipo de rela\:iopretendidapelofalantefoi denominadopor Austinde fo~

ilocucionilria. Segundoesteautor aforca ilocucionana deum ato de falae0 fato de que, ao realizaremissoes lingiiisticas 0 sujeito est8 realizando a¢es. Por exemplo, ao emitirIingUisticamente urnapro­messa 0 sujeitoesta fazendournapromessa(0 mesmo vaJendo para advertencias, afirma~, etc).

Alemdisto,todo ato de falacarrega em sidoisaspectos: 0 do eOnteUdo fixadopeIaforca ilocucion8ria e 0 da ~ (mesmo que implicita) entrefalantee ouvinte.

Alem destes dois aspectos presentes em todo 810 de fala, Habermasdestaea urnterceiro: a forea generativa,a partir da qual

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podemos anaIisarseurn810 de falaobteve 0 sucesso pret.endido ou nao.

Urn 310 de falaobtem sucesso quando, atraves dele, se esta­belece uma r~o interpessoal entre f.e e ouvintee quando 0 ouvinteentende e aceita0 conteUdoque 0 falantepretendeu trans­mitir quando da emissao lingOistica. Nestesentido, a forcagenerativa eexatameate 0 modo como 0 falante atuou sobre 0 ouvinte, crian­do, desta forma, as condi~es para que se estabelecesseuma rela­cio interpessoalentre ambos.

Entretanto, 0 estabelecimento de ~ interpessoais nioe privilegiodos atos de fala, masde todo tipo de inter~. Todasas ~ cornunicativas, expressasou nio IingWsticamente, referem-se a urncontexte de normas de acao e valores, isto e, todas curnprem convencoes (expectativas sociais nonnativamente fixadas), 0 que significa. emUltima instincia,queestabeIecem ~ int:apessoais. Portanto,assinalarqueb80 estabelecimemo der~ interpessoais nio e suficientemente seletivo para 0 proposito de Habermas de estabeleceras condicoes necessiuias para 0 entendimento possivel nas emissOes lingUisticas entre, pelo menos,dois falantes.

Urn 310 de falaexplicitotern a forma:

."Eu te prometo que vireiamanhi"

e comporta dois elementos:0 ilocucioniuio ("eu te prometo") eo proposicional ("que virei amanhi"). Ao primeiro da-se 0 nome de oracao perfonnativa, enquanto que0 segundodenomina-seora­cao enunciativaou subordinada.

A diferenea que se estabelece a partir deste momento entre atos de falaexplicitos e ~Oes nao lingiiisticas. eque estas nio po­dem cwnprir ~ expositivas, pois somente os 810s de falaex­pHcitosexpressam uma experienciaou ernestado de coisas. Isto e de suma import3ncia para Habennas, porque "os atos de fala proposicionalmente diferenciodospermitem, par conta de sua fuTlflio expositiva, uma maior liberdade de movimemos e confi­guTatiOesno observdnciadenormas" (Habermas, 1989:337, gri­fo do autor). .

. Habermas observa aindaque urnmesmoato defala pode ser

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expressode diferentes formas, Exemplo:

."Afinnoque Pedro fumacachirnbo"

."Te pergunto,Pedro, se tu fumas cachimbo"

."Te advirto,Pedro, que tu deves fumar cachimbo". etc

Nota-se no exemploacimaque 0 conteado proposicionale o mesmo emtodas as emissOes ("fumar cachimbo").enquamoque o ato ilocucionariovaria de urn. para outro caso. Ha, portanto, em todo ato defala, umadesconexio entre 0 componenteiIocucion3rio e seu correspondenteconteUdo proposicional.

o reconhecimento desta desconexao permite aHabermas distinguir entre(a) a r~ intersubjetiva estabe1ecida entre falante e ouvinte,e. (b) 0 planode experienciase estados de coisasatraves do qual ouvinte e falante estabelecem as condicoes necessaries para que se cumpra (a). Temos, portanto, que ern todo ato de fala existemdoisniveisdecomu~ao.

A vari~o do ato ilocucionariode urn. ate de faIa paraoutro deve-se a que em cada ~ 0 emissorvalorizaumadas preten­sOes de vaJidadeemdetrimentode outras, rnuitoembora asdemais continuem a existir universal e necessariamente em todo ato Mguistioo.

Consequentemente; pede Habermas estabelecerumadistin­~ fundamental entrediferentes tiposde atos lingtiisticos. conforme a pretensio de validade que e privilegiada pelo ernissor, correspondeodo,cada urndeles, a urn modo especifico de connmi­~io.

Os tres tipos de ato de fala sio: ConstaJativo: privilegia a pretensio de validadeVERDAOE

e eusado para que 0 emissor~ referenciaa urnestado de coisas. Regulativos: privilegia a pretensio de validadeRETIDAO e

eusado para que 0 emissor ~ referencia ao "mundo social" que de cornpartilha com 0 receptor.

Expressivo: privilegia a pretensio devalidade VERACIDA­DE eo ernissorfaz referenciaao seu proprio mundo subjetivo,ao qual sc ele tern acesso.

Se epossivel reconhecer, diz Habennas, qual pretensio de validadefoi privilegiadaem urndeterminado ato de fala, entio. 0

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componente ilocutivo deurn810de falapossuiurncaniter cognitivo, logo, racional. Em suaspalavras:

"... voudefendera seguintelese: em Ultima instincia, 0 fa­lantepode atuar ilocucionariamente sobreoouvinte e este,por sua vez, atuar ilocucionariamente sobre0 talanteporque as obri~es tipicasdosatos de falaestio associadas com pretensOesde valida­de suscetiveisde examecognitivo, isto e, porque a vincuJafiin reciproca tem um carater racional" (Habennas, 1989:362, grifo do autor).

Estarnos,portanto, concluiHaberrnas, diante deuma nova forma de razio: A RAZAOCOMUNICATIVA .

Diantedestaconstata~, Habennas estabeIecepara si a ta­refa de desenvolver 0 concerto de RAZAO COMUNICATIVA. No texto, Oh!~ervafOes sobre 0 conceito deaflio comumcattva. eJeafinna:

"A teoria da a¢o comunicativa se propije como tarefa investigara "razdo" inscritano.propriapratica comunieati­va cotidiana e reconstnar a partir da base de validade da fala um conceito Ilio reduzidode razao " (Habennas,1989:506, grifo do~or)

No desenvolvimento destataretil, Habennasestabelecera wna distin~ (ou sera wna cislo?) no interiormesmoda RAZAO,dis­tinguindo razio instrumental erazio comunieativa.

RAZAO INSTRUMENTAL RAZAO COMUNICATIVA

serve pam 0 dominio. e serve para criticar, aproxjmar controle da natureza e antecipar 0 homem.

subjugadoraldominadora';. ;. "

critica e libertadora

interesse associado: tecnico interesse associado: emancipat6rio

filosofia: da eOnsciencia filosofia: da linguagem

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rel~io monologica re~ dial6gica (sujeito igual­(sujeitolobjeto) mente capacitados

enteric de decisao: coercao criterio dedecisio: melhor ar gumento

Por fun, Habennas ere que com esta distin~, tera estabde­cido urn novo padrio de reIacio entre teoria e praxis, 0 que lhe abririacampo paraa ~ de wnateoria critica,fundamenta­da, agora, no conceito derazio comunicativa.

oproblematicoemHabennas, a nosso ver, residejustamen­te na existenciade umarazio "cindida".

Aideiade reconhecimento dewnaestrutura racional inerente alinguagemDio temos nada a opor. Nossa preocupacao e com 0

que sepode inferirde uma anMise rigorosa da linguagem. Noutras palavras, questionamos a possibilidade de, a partir da analise da linguagem,se inferir0 estatuto daestrutura racionalalisubjacente.

Aoossovee, umaan8lise rigorosa dalinguagem pennite a ideo­tifi~ao de estruturas neeessarias Ii realiza~ dosjogos de lingua­gem elou quais as pretensoes devalidade que sio inerentes a uma situa~o de comunicacao, e, ate, reconhecer que estas pretensOes de validadepossuemuma estrutura racional.

Todavia, urnaanalise rigorosada Iinguagem nao nos permite, a partir da identifica~io das pretensOes de validade, inferir a exis­tencia de uma nova forma de razio.

Se epossivel reconhecer umalegitimidade racional na lingua­gem, nie seriamaisapropriado afirmar simplesmenteque estamos diante daRAZAO?

Nio estaria Habermas apresentando-nos urn novo conceito inuativo de razio?

SegundoHabennas, 0 conceitode razio comunicativanio e umaconstrucao intuitiva, pois foi obtido atravesda pragmaticauni­versal,ou seja,pelaanaIise daptilticalingiiistica cotidiana.

Quer nos parecer que nossas consideracoes acima sobre as possibilidadespresentes numa analise rigorosa da linguagem sio suficientes para demonstrarque a Pragmatica Universal,por si sO,

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Ilio nos autoriza a considerarnio intuitivo0 concertode razio co­rmnicativa.

Gostariamos ainda de salientar que a razao Dio e, em si, libertadora ou dominadora, posto que a emancipacao da especie humanaesta condicionadaa mudaneas naspropriascondicoeshis­toricasque ensejarama dominacao da qualpretendemosnoseman­cipar,nio bastando, portanro, 0 reconhecimentode umaoutrafor­rna de razio (razio libertadora)que, como pretendemos demons­trar, pode trazer rnaisproblemasque solucoes.

Volternos aquestio da defini~o da filosofia. Como vimos, a concepeaode filosofia de Habennasassenta­

se no reconhecimento da existencia da razio comunicativa. Se esta for questionada, nlioemaispossivelentio sustentar de fonna nio problemiltica essaconcepcao de filosofia.

Por tim, cabe perguntar: se as pretensoes de validade identificadas por Habermas estio presentes em todo ato de fala, nao estariarnos diante de pretensoes TRANSCENDENTAIS de vaJidade?

Se a fiJosofia assenta-se no conceitode razaocomunicativa e, se esta derivada analise da liaguagem, atravesda qual identificamos estas pretens5es de validade, entia 0 conceito de razao comunica­tivae, consequentemente, a propriafilosofia nio estaria merecendo de HabennasumafOlTl1Ul~o transcendental?

BffiLIOGRAFlA

HABERMAS, Jurgen. Ieoriade la accion comunicativa, 2 vols., trad. de Manuel JimenezRedondo, Madrid: TaurusEd. 1987, 1136p.

__-----,,:- Ieoria de /a accion comunicativa: comp/ementosy estudiosprevios. trad. de Manuel J Redondo, Madrid: Ed. Catedra, 1989,507 p.

__-:-=Pensamento pos-metofisico: estudosfilosoficas. trad. Fl8vio Bene Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, ]990, 272 P

LOPARIC.Zeljko. Habermas e 0 terror.pratico. Manuscrito.

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Cempinas, vol. xm, nO 2, p. 111-116, out.ll990.

Enderecodoautor: [email protected]

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RevistaPrincipios - Dept•.FilosofiaUFRN,RN, \01. II - N2I Junhode 1995

o FUTEBOL E 0 CAMPO DO PSIQUISMO

JOSE RAMOS COElRO DEPARTAMENTO DE FILOSORA DA UFRN

Tentaremospensara paixio profundaqueosbrasileirossentem emrel~ aofutebol, 0 jogomaisdemomiticoe popular,umavez queencantacriancaseaduhos, homensemulheres,pessoasdetodas as racas ede todos os credos. Parajoga-lo, basta dispor de espaco, uma bola,jogadorese quadro pedras ou duas traves.

Desde os tempos maisremotos, os jogosestiveramligadosao elemento sobrenatural. Osjogosdeazarassemelham-seaosordalios, isto e, a situa~oes de prova preparadas pelos homens, mas cujo resultado seriadetenninado pela vontade divinaou sobrenatural, semprecorreta,oniscienteeneutral.Eporisso quedecis6esdificeis podiamsertomadas mediante0 laneamentodedados, 0 cortedeum baralho de cartas, 0 arremesso de uma moeda ao ar ou qualquer atividade semelhante Mesmo nos jogos de habilidade, como 0

futebol,nuncase sabe 0 resultado final antesdapartida;ecomo um time,mesmosendomelhorpodelevarapior,aimponderabilidadedo resultado emuitasvezesatribuida ao fator "sorte", 0 qual, para os antigos, era tido como efeito davontade dos deuses.

Osjogosoficiaisdefutebolocorremnosest8diosegravitamern torno dapossedaboia. Suafonnacircular(dabolaedoestadio)foi, desde aantiguidade, sini>olo de perfeicao. Parmenidesdiziaque 0

ser(a Unicacoisaqueverdadeiramenteexistia)era..semellwrteauma esfera",ou seja,tinhaurnaformaparecidaaumabola defutebol. No Timeu,Platao, seguindoParmenides, ve 0 Universocomo urnser vivoe redondo, sustentando ter-lhe dado 0 Criadorva forma mais convenienteaoanimalquedeveriaconterernsimesmotodososseres vivos,[aquela]queabrangessetodas asformasexistentes. Porisso, eletomeou 0 mundoemforrna de esfera, porestaremtodas assuas

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extremidadesa igualdistaneiado centro, amaisperfeitadas fonnas e maissemelhantea simesmo,por acreditar que 0 semelhanteemil vezes maisbela do que 0 Diosemelhante" (2, 488)

Em contraposicao ao circulo temos a forma retangular do campo defuteboledastraves. A simbologiadoret3ngulo, bern como a do quadrado, ambas figuras angulosas, esta ligada ao elemento humano, ao nosso mundo imanente, em oposi~io ao circulo, que alude ao mundo transcendente, a Deus. Nestaconformidade, urn chute a gol - a entrada da bola esferica na trave retangular ­corresponderia a uma sintese dialeticaentre 0 divino e 0 humano, entre0 transcendenteeoimanente. Eporissolevaagaleraao delirio, ao extase (EKSTASIS = sairde si). ..

Jaope, nos mitosdeEdipo, AquileseHefestos, quando ferido, vulnenivelou manco,eum sinaldefraquezada alma.Nesse sentido, como sustentalungemrela~oao mitodeEdipoRei,opesimboliza a alma.0 contato do pe com a bola seria 0 equivalente metafisico daalma dialogandocom Deus. Assim, lutarpelapossedabolae, em certo sentido, lutar pelo controle do mundo. Controla-la e ter 0

MUndo a seus pes. Se, de urn 1000, os homensviam0 jogo como urnencontro ou

confluencia entre 0 humano e 0 divino, por outro 1000, podemos interpretar psicana.liticamente 0 desenrolar de urnjogo de futebol como uma disputa entre 0 desejo e a reaJidade,entre 0 prazer e os lirnitesqueselheinterpOem.Naverdade.ojogodefutebolsuscitaurn conflitoeumatensao intima.0 timepelo qualtorcemos representa o principiodo prazer; eo time adversario, por sua vez, simboliza0

principiode realidade e tudo 0 mais que se the opOe.A vitoria de nossa selecao e a nossa vitoria, urna vez que e a nossa r~o

interior.0 principioderealidadeeo outro, 0 que se pospoee limita a relizacaodo nosso desejo.

Vencedor e aqueleque consegue fazer mais gols. Contudo, 0

que mais ernociona e encanta no futebol, alem dos gols, sao as jogadas bern transadas, os dribles sensacionais que conseguern enganar 0 adversario e furar 0 seu bloqueio. Eles simbolizamas maneirasfurtivas, a maliciae esperteza que as pulsoes encontram paradriblar acensuraeos recalques,ludibriando-osealcancando 0

seuobjetivo. Mas 0 jogo como urntodo esta sujeito a regras berndefinidas.

Ojuizeaautoridadeaqua1incumbeaplicarcomisen~ejusti~aas

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regras. Nesse senti do, cumpre 0 papel do Superego: eele que intervempara que as regras n80 sejam desrespeitadas.

oespectador que observa 0 espetaculofaz 0 papel do Ego, da consciencia, eo elo entre 0 principio de realidade e 0 principio de prazer. Eele que observa 0 espetaculo e quetoma partido, ora ern favor do principio derealidade.. oraem favor do principiodeprazer.

A ~ do jogo provoca no espectador uma paixao, e ele a manifestaquando seemociona, quandogrita, torce, xingaeseagita tomandopartido. Esta paixio(Pathos=sofrimento.emocao, expe­riencia) vern acompanhada de umatensao desconfortavelque, no entanto, encontra alivio emcadagrande ranee eedescarregada no momenta em que 0 time pelo qual torcemos marca urn gol e. finalmente, quandoganhaapartida.

Nio e apenas a arte, como bern pereebera Aristoteles, que provocaernnosumacatarse: 0 jogofa-lotambem. A vitoriadenossa sel~ e a realjza~o do nosso sonho, das nossas pulsoes mais intimas. Umareali7a~ individual,nacional e atemesmoc6smica. E por isso que 0 futebol e tao excitante e, ao mesmo tempo, tio perigoso: pode ser maniputado politicamente na medida ern que permite uma r~io imaginaria e sublimada atraves de uma identific~ono outro (no nosso time) e um esquecimento de si, enquanto perdura o extase davit6ria. 18 a eventualidade de uma derrotafariaopovocairnareal-naournarealidadefiumistica, divina, mas a dura realidade de perceber que, como disseCandido, personagem de Voltaire, a vida e urn jardim: 0 que precisamos e c:ultivi-lo. ..

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ERRATA DO ARTIGO A DIALETICA DA NATUREZA: UM NOVO PARADIGMA FILOSOFICO PARA A ECOLOGIA (Revista Principios Vol. I - NQ I)

Na p. 89 inclua-se 0 seguinte:

BmLIOGRAFIA CITADA

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tre Jou, 1972. CHEVALIER. Jean& GHEERBRANT, Alain. -DicimW10de Sim­

bolos, Rio de Janeiro, Jose Olimpio, 1988. COELHO, Jose Ramos. - A Magia na Aldeia Global, Recife,

FundacaoCesa das Criancas, 1985. DAJOZ, Roger. - Ecologia Geral. Petropolis, Vozes, 1978. DARWIN. - A Origem das Especies, Sao Paulo, Hemus, s.d. ­~---,------=-=-. - A Origem do Homem e a Sele¢o Sexual, Sio Pau­

lo, Hemus, 1974. FRAZER, James. -LaRamaDorado;Magiae Religion, Mexico,

Fondo deCultura Econ6mica, 1944. LANDMANN, Michael. - Antropologia Filosofica, Mexico,

Uteha, 1961. LENOBLE, Robert. - Histoire de L 'idee de Nature, Paris, Albin

Michel,1969. LEVI-BRUID.... -ElAlma Primittva; Barcelona, Peninsula, 1974. LEVI-STRAUSS, Claude. - As EstruturasElememares do Pa­

remesco, Petropolis, Vozes, 1982. MALINOWSKI. - Argonautasdo PacificoOcidental, in: OsPen­

sadores, Sio Paulo, Abril Cultural, 1978. MAUSS & HUBERT. - Esboco de uma Teoria Geral daMagia,

in: Sociologia e antropologia, sao Paulo, EDUSp, VoI.I. 1974. ODUM, EugeneP -Ecologia; SioPaulo, Pioneira, 19n. SCHELER, Max. -La Idea del Hombre y la Historia, Buenos

Aires, La Pleyade, 1974. TRISMEGISTOS, Hermes. - Corpus Hermeticum, Sao Paulo,

Henms,1978

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Revista Principios - Depr'. FiJosofia UFRN, RN, 'obI. II - N~ I Junho de 1995

BREVE ENSAIO EM TORNO A LINGUAGEM

JUANAIXLFO OONACCINI DEPARTAMEIITO DE F1I.OS0F1A DA UFRNlUfRJ

"Pensamento e Discurso, pois; sao a mesma coisa, aaJvo que eao ditJlogo interior e silencioso da alma consigo 1IIeSllUl que chamamos pensamento ..

P1aIio. So...... 263e.

"E enIiio acOllteCeu a rewd~ao. Marino viii a rosa. tal ClNIIOAdiio pOde l'e-fa no Paraiso, e sentill que efa utawz na sua etemidiJde e nao em SIlaspaknru. e que podemos 1IIencionar011/- alwiio. mas niio expressar, e queos alios e sobubosl'OllI1IIesque/DmJal'am n.m lingula da sala IIl11a penllmbra de OIIroniio uam (como a SIUl

WlidiJde sonhOIl) 11m espelho do mundo. mas uma coim a mais acrescentada ao rmmdo. Estnihuninafiioa&:~OIIMarinonaWsperadaSllarnorte.eHomero

e Dante acaso a alcQI1farum tamhim ".

JorgeLuisBorges,"Uma RosaAmarilla", Itl Hacedor (1960)

I - Existetoda uma tradivio na forma de pensare no modo de colocar 0 que ea linguagem. A pergunta parece ter seguido dois carninhos: considerar que a essencia da Iinguagem e ex­pressio (logica, matematica ou verbal), ou considerar que sua essencia einatingivel. Heidegger parececoncordarcomesta ulti­mavia. Contudo, julga que epossivel situar ontologicamentea linguagem Oseu ponto de partidaconsisteemcriticara tradi~io

que consideroua Iinguagem como meraexpressio de emocoes, inten~s. ou pensamentos, tentandomostrar que a linguageme mais do que isso, e que, por isso mesmo, 010 e suficiente caracteriza-ladessemodo para se chegar asua essencia.

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Nosso encaminhamento consiste em pensar 0 problema da linguagem, na esperanea de nio ter incorrido nessa ten~ milenar de confundir a linguagem com sua expressio, e em procurar oferecer uma di~io clara e sucinta da questio sem pretender exauri-la. 0 fato de - vez ou outra - apelarmos aautoridade de Heidegger deve-se muito mais apertineneia e profundidade que ele ve na questio que nos ocupa do que adesmedida pretensao de serem as nossas palavras a expressiomais genuina e fiel do tratarnento filosofico que Heidegger (fa aquestio da linguagem. Na verdade colocamos 0 problema tal como se apresenta para nOs de imediato. E recorremos a Heidegger toda vezque podemos t~1o como nosso aliado, ou fomecendo urn ex:emploesclareced.or para ilustrarou melhor fundar 0 que dizemos aqui da linguagem.

Esta consideracao, que parece fugir aessen-ciada Iinguagem e beirar de antemio a digressio, na realidade, e necessaria,porque a argumentac;io que se ini logo apresentar tentaril elucidar - e, na medida do possivel, fundar- 0 problemadaapr~aessSncia da linguagem atravestinsseusaspectos. Contudo, pode-se per­ceber em seguida que - desde 0 comeco do discursar e colocar a questio - jil tomamos uma posicao: a perspectiva que se abriu ja supOe urnvariegado nUmero de tomadas de posi~o, de assenti­mentos e de recusas, de perguntas e derespostas. E nio poderia ser diferente. Mas seria indesejavel nio tomar isso explicito. E preciso reconhecer que sao privilegiadas certas coisas e que nio podemos responsabilizar Heidegger por tudo que dizemos e diremos doravante, sobretudo no sentido de nada presumirmos estar fazendo senio urn ensaio. Entrementes epreciso salientar urnaspecto fundamental do dizerde todafonnulafiio de qualquer questio: e(sempre) conceitual. Com isso, corre-se sempre 0

perigo de reduzir0 que se quer fonnulae a umaformula conceitual. Mas isso eem certo modo inevitilvel: 0 importante e te-lo presente o tempo todo. 0 proprio Heidegger reconhece queisso "jamais se podera evitar totalmente ... Porque 0 modo de represeDt~io

conceitual se aninha facilmente em todo tipo de experienciatumr.l­na .."I.

H - A linguagem envolve questOes que sempre instigaram as noites e fustigararn 0 sono de muitos mortais'. Em principio,

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qualquer tentativa de apro~ a eJa parece implicar certos pro­blemas. Pois, de antemio, seja qual for a perspectiva, 0 metodo, ou 0 simples modo de encetaraabordagem, deve-se dizer a lingua­gem pela Iinguagem - considerando a linguagem Unica fala de todas asfalas e de todos os fa1ares. Pareceria ocorrer, dito, urncirado inevitavel, capaz de nos condenar atautologia; ou ate mesmo a contradi(:io. Ter que dizera linguagem envolveria dizer 0 que e 0

dizer pelo dizer. Isso parece ter feito com que poucos se tenham colocado a questio da essencia da Iinguagem; com que alguns achassem sabertudo a respeito dela, e com que outrossofressem a suaintlu&1cia semt~a presente.Parasermais franco nodizer: nio sabemos nada disso que seja a linguagem. Nio mesmo. Nio sabemos sequer se 0 problema deste circulo invalida 0 acesso a proprialinguagem. .

Sabemos apenas que, de algum modo, falar e falar a lingua­gem. "Linguajar a linguagem". Toma-la patente. No linguajar da linguagem acontece a fala, 0 gesto, a mensagem, 0 intercdm­bio, a lingua e 0 idioma.

o nosso problema consiste entio em elucidar 0 que seja a linguagem. Mas parece como se nio pudessernos dizer 0 que e a linguagem. Seja porque isso ji envolveria 0 que precisa ser esclarecido, seja porque seria uma trivialidade, ou urn fato, es­clarecer a linguagem mediante 0 exemplo de urn de seus atos.

Por incrivel que possa parecer, nestas alturas, existe mes­mo assim urn fator que pode auxiliar 0 naufrago antes de ele sucumbir aira das tempestades. Em primeiro lugar, nada con­clusivo tern sido dito para negar a possibilidade de que 0 circulo do dizer, que precisa ser dito pelo seu dizer, faca sentido. Em segundo, Dio eportanto invlilido aventar urn caminho em dire­~io aonde se encastela a linguagem.

o fato de que a linguagem esteja na base de toda fala, de toda lingua e de todo e qualquer dizer (ou modo de dizer) nao nos constrange a pensar que a linguagem - substantivo que nos obriga a procurar 0 seu referente ou a determinacao do seu conteado atraves dos seus aspectos? - esteja no mesmo nivel logico ou ontol6gico que 0 ato de dize-la, 0 qual pronuncia sucessivamente urn encadeamento de qualidades, propriedades ou aspectos da linguagem. Hi urn corte "mental", por assim dizer, entre a ideia que nos fazemos da linguagem, quando a interpelamos em busca

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de suad~o edo seulugaressencial, eodesdobramento, 0

efeitodestainterpelaeao,que egerahnenteumconceitodesdobrado emsuas peculiaridades ou umacadeiade conceitos elou intui~oes

quequeremexplicar0 que se passacomalinguagem. Bastariaisto para mostrar que falare se perguntar a respeito da linguagemnio pode significar algo absurdo ou um produto da insensatez. Esta "dificuldade" envolve um mero exemplo de auto-referencia: A linguagemdiz-se, ela ~ de algummodo - nio sabemos como ­implicadaemtodo dizer. Ejusto suporque semetaniopodeexistir nem faIaoem lingua, nem se dizer sequer nada..Dai, antes de ser perigoso ou problematico, resulta evidente que tentar pensar a essenciadalinguagemimplicadiscursarsobreelaeapartirdeja. Mas ociradoeaparente;equivaleatantoquantofalardalinguaportugue­saemportugues, Osniveisl6gicosdeimpli~queestioemjogo

naauto-referenciaternsentidosdiversosen80 seobstmemrecipro­camente. Aautoretirinciaewnacooseq\ienciadoc:liscurrtoreferencial.

Dequalquerfonna,estaquestaodo circuJododizertemavercom a formul~ e nionos impede0 acesso, mas,muitoantes,projeta umaluz sobre 0 umbralcujaporta deentradaqueremos atravessar.

Porventuraseria tautoI6gico faJardalinguagem. aopontodenada adiantar dizer0 que pudessea Iinguagem ser ou Dioser? Se assim fosse, qualquerfaJa!K>brealinguaportuguesaar1iadadaemportugues seriatautol6gica. Evidenciariaociradoumasimplesmet3foradoque rea1mente acontece? Na verdade, parece Dio haver nenbuma especiedeciralloou coisasemelhante. Do mesrnomodoqueaofalar exercemos a linguagem, sem sermos por isso eta mesma ou tencionannosotempo todopretenderexauri-la. aofalardalinguagem nlocometemos pecadoalgumporfalarnelae apartirdela. Deusnos livredo contrario! Poiscomofalarda linguagemsemapressuporo tempotodo dealgwn modo?

Se falar da linguagern Dio e impossivel, talvez devamos atentar paraumafronteiranmito peculiar que pareceser capazde franquear-nos seu acesso: quando falamos das coisas nos torna­mos presentes 0 tempo todo na nossa fala. E muitasvezessequer o notamos. Nessadimensio emqueafala.W!tala, quasesemsabe­10,pode porventura encontrar-se uma via de acesso prometedora para a "linguagem".

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m-Existeumafronteiranwitotenuequeaprirneiravistaparece assazmarcadaentrequemdiz, 0 quediz, oqueedito, paraquem,etc. TenueporqueemalgummementoesseselementosconfIuemnurna unidade, nurnatoimico, paraquealinguagemacontecaevenhaaser "linguajada", i.e., realizada. Essa fronteira parece insinuarnio apenas uma via de acesso, mas ta.ml>em jogar nova luz sobre 0

problema. Nio sabemos0 que ea linguagem, mas sabemosque freqtientemente se realizacomo fala,como falar,dizer. Sabemos tambem que a linguagem nio se reduzafala,que esta eapenasurn dos seus elementos, que a faJa evista geralmente como 0 uso expressivoda Iinguagem. Oeste modo, faz-se da Iinguagem urn instrumento essencial para a fala. AfaJa, contudo, egeralmentea mensagemproferida, 0 queedito. Sonsfoneticos, representadosas vezesporgrafemasquepermitem aescritadafala, Assim entendida, como lingua e instrumento de comuni~, e capaz de sec transcodificadana forma de um idiomadeterminado. Por isso a linguagemIlio eafala: porqueelaabarcaafaIa, a linguaou idioma, a mensagem, 0 mensageiroque a profere, 0 tipo de contato que estabelece, olugardeondesefala, etc. Dizeristo, entretanto, nio devepouparnossoesforco aoponto de imaginarmos que agoraja sabemos 0 queealinguagem; trata-seapenas deum conhecimento negativo: sabemosquealinguagemnioefalaoulinguaporquenio se reduz a etas, porque as abrange e as encerra em si. Elas sio resuhadode suaexpansio. Mascontinuamosallio saber0 queea essenciada linguagem. A Iinguagem Ilio se reduz a lingua, seja 0

portugu&, 0 alemio, ochinesouqualqueroutralingua. Alinguagem habita emtodas elas. Melhordizendo: todas aslinguas habitama linguagemebebememsuafonte. Pois,qualdelasseria,senio, mais oumenoslinguagemdo queasoutras? Recentemente, oesteseculo, algunsfil6sofos ecientistas ternfaJado muitoacercadaquestio da linguagemindiretamente: faIaram de"linguagens",da"linguagem ordinaria", da "linguagemcientifiea", da"linguagemde tal ou tal ciencia", do"usodalinguagem", da"seminticadalinguagem", da "filosofiaanaliticadalinguagem", da"filosofiadalinguagem", ede coisas semelhantes.Mas parece como se todas as tentativas reduzissem alinguagem alingua, i.e.,aoidioma(ouasuaestrutura) eaos mUltiplosidiomasexistentesoupossiveis. Heideggerchamaa aten~o paraestatentativadereduziralinguagemagramitica, aurn instrumentodeexpressaodeemocoes'.

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Todosessescasospossuemumfittorcomum: fazemdalinguagem urninstrumentoquepode sermanipuladode modo analogo ao que experimentamosquandooperamosemoutrosidiomas, sejaofrances, o ingles, a informatica, a fisica, a logica, ou qualquer codigo do genero. Ateapr6priafilosOfia,quedeveriadarcontadestasquestOes defundo,terncriadoo seujargao econfundidoamiUde aessenciada linguagem comseuidiomadecapitalde provincia.

De modoque nio saber 0 que ealinguagem- qual0 lugarda sua essencia -nio devecausarvergonhanemdesanimo.jaqueao menos sabemosque elanioe algumascoisas; eque algumasdestas coisas sioapenasaspectosdelavistosdesdeeofoques assazdetenninados.

Sim,everdadeque dizendoou tentando direr o que ea essencia dalinguagem- emsupondo,pelomenoscomohip6tese,queisto sqa possivel - devemos lancar mio dela. Podemos pensar que a linguagem, see afonteouoprincipiodetododizer, estliimplicadaem todo falarou comerciar,mesrnoaofalar sobreelamesma. Masai e que se da a fronteira que acima mencionamos entre a linguagem propriamentedita e a linguagempropriamentedita dizendo-se a si propria.Nemtodo dizerfalasobreela,masmesmoassimtodo dizeI" adiz;trazeencerraemsimesmoalingtiagem. Poderiamosespecular que, nisso,elase diz. E, assim,aparecema veredaeoatalho: Em queconsisteestemodode elasedi.zer asi mesma,dizendoqualquer coisa,pelosimplesfatode di.zer? Significaquealinguagemenvolve o dizer, 0 ato de dizer como sendo essenciala ela?

IV - Dizer e falar, contudo, nio sao nem exprimem sempre a mesma coisa. Ainda assirn ambos "versam". E 0 que e mais interessante: se a linguagem realmente Dio se reduz ao dizer da fala - se nio se esgota nele -; se Dioeum mero instrumento que se reduz asuper:ficie do dito, obliterando 0 que diz, donde 0 diz, a quem0 dizervai dirigido, 0 que ternemmenteaqueleque faJa, etc.; em suma, se a linguagememaisdo quea fala, entio elaexpressa; mas niioe expressdo. A expressaoeummero efeitodalinguagem. Efalando oudizendoqueelasediz. Mas,entio,linguagemefalarou dizer?Sea falathefor essencial,nio sera a tinguagemfala?

Para comecar, ebom perguntar se urnsurdo-mudo pode dizer alguma coisa mesmo sem ser iniciadona lingua dos sinais e dos signosou na leitura dos l&bios. Nio edificilnemperigoso demais imaginarque elepoderiafazermovimentos corporaisparacomuni­

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car-see"dizer" oquequisesse. Dondebastarverdepertoquemdiz, oudonde diz 0 que diz, para ver que ha linguagem alem das grarnaticas, dasJinguase dosfonemasarticuladosnapalesttadodia­a-dia. Sehi"dizer",hilinguagem;porqueodizer lheefimdamental, ela esta emmeioao dizere "diz", e "se diz". Comunica. 0 surdo­mudo pode ter maisdificuldade ou demorar mais. tempo com sua pantomima, masnemporissoeledeixadeemitirumdizerque"131a", eetambem linguagem. Linguagemnioes6palavra:ea linguaque e palavra. A linguagempode ser ou llio ser de palavras. Se a linguagemfosseapenasfeitade palavras,seriauminstrumento; se fossetal,porem,poderiamosnosutilizardelaou dispensa-la como qualquer instrumento. No entanto, Rio podemos abrir mao da linguagem. Pensamos,vivemoseagimosdesdealinguagem. Nos nos versamos e conversamos com ela e por ela com tudo e com todos, ate conosco mesmos.Mas, como e quando realmentenos tomamoscientesdequea linguagemnioea lingua, a qualeapenas umbraeonocorpodalinguagem? Eqeeasvezesnoscommicamos, comoosurdo-tmdodoexemplo,enosentendemos,mesmoemface delinguasdiferentes: issonosfilzpensar"noutratingua" fundamentaJ.

Por vezes ocorre que dois homens, mesmo falando linguas diferentese carregando~es, usos,costumesehist6riasdiferen­tes possamconversar. Na conversa, surge entio a dificuldade de intercimbio. Derepenteficadifici1compreender0 outro. Comose afalaeaIinguanaofossem suficientesparachegaraoIugardesejado etencionadopelaconversa. Nesseintermezzodediferencasocorre o meioondesubitamente0 ponto decontato acontece,dando-se a compreensio e 0 comerciodosdiscursose das pessoas. Ai setorna possivelque os homenspercebamna conversao que niocompre­endemno outro e 0 que tern dificuldadede passar para 0 outro: 0

perigo da silenciosa incompreensio que suprime 0 dialogo na conv~o. Atequepontoumaconversapermanececonversa,um dialogopermanecedialogo?

"Masumperigoainda maiornosame­afa. E um pengo que nos atinge a ambose se tomara tantomaisperigoso quantamenospuderserpercebido (...) o perigo que nos ameaca provem de umaregiao inesperadaemquedeveri­

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amos ale percebe-lo (...j Eu ainda me encontro longe de te-la percebido em toda sua envergodura. Mas)o 0 pres­:..enti, ejustamente nas conversas com o conde Kula(. ..) 0 pengo surgia lias proprias conversas pe/o meroJato de serem conversas (...) 0 perigo lias no.<tSaSconversasseescondianaproprla /inguagem ". ("Aus einem Gespraech von der Sprache ", in: op. cit., pp..88/ 89). *

Nesta passagem Heidegger conversa (em alemlo) com urn professor japones sobre a pertinencia da aplic~iio dos conceitos daestetica europeia a fenomenos tio peculiares como a arte e a poesia do Japio. Com isso, ao discutir-se 0 oriental desde uma lingua ocidental, surge 0 perigo de trair-se 0 pensamento; como se estivessemos lidando com coisas tio estranhas e distantes que Dio permitissem mensurar e compreender sua dimensio. Contu­do, a conversa enquanto tal revela 0 perigo. 0 perigo so parece poder ser percebido quando se conversa, Mas entio a conversa e possivel num limiar em que apesar desta distancia, deste corte e desta lacuna do dizer, ela impoe um raio de tato, de comercio e compreensio, uma passagemtio reciproca quanto umaestrada ligando duas cidades. Se tudo fosse corte e lacuna, sequer a conversa seriapossivel; mas no ambito de clareza e contato que possibilita a conversa, e Dio isola 0 dizer, apesarda "zonaescura" de distincia, apareceaconscienciado perigo que se corre: sao dois homensquefalamdedoislugaresdistintoslinguaseadturasdistintas, que carregamoutratradicao, outrosusosesentires.

Contudo a conversa epossivel (cf idem. p. 90). Assim como e possivel "converser" com um surdo-mudo com urn simples olhar em seus olhos ou acenarpara ele.

Esta linha de fuga onde se da 0 entendimento reciproco da difer~esterenuelimitefronteiri~entreodizereocompreender,

entre 0 dito e 0 nio-dito - tencionado durante todo 0 tempo da conversa-constitui0 lugaremque se pressentea linguagemnio ser

* A cil~O e da lradu\;io inOOi1a de E. C8I'IIeiro Lela, com pequenu modif"aca~.

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(s6) lingua. 0 japoneseoalemio, por exemplo,510duaslinguase duasculturasparticulannentediversasentresi.Noentanto,odi8logo epossivel. Escolhe-se,ou ocorre, simplesmente, umalinguaparaa conversa.Etudo epronunciadonela;eporelacondicionado- mas ojaponesfalaenquantojapones, desdeseulugarpeculiar, eoalemio falae vetambemdesde 0 alemio. Assimsetoma patente 0 perigo daincompreensaoe daincompreensibilidade; apenasno momenta emque ocorreaqueleindeterminado1ugarondeaesferadaconversa se cia e 0 dito flui na paisagem do que nunca edito, mas sempre tencionado e em.tensiocomo outroqueouve, etoma-sederepente visivel aluz.

Se a linguagem "fala", mas sem por isso ser ela toda tio­somente fala, talvez este lugar donde a conversa e 0 nucleo da conversasurgemseja 0 lugarpara pensar a linguagem, e isto sem ve-la tio-sO como lingua, fala, palavra ou coisa,

Alinguagemevidenciaentioocontalo(eseu ambito), queocorre entreas~. Seforassim, podemoscorccrdarcomlfeidegger quandoparecesugerirqueaoonversa nao eo reinodo dito, masdo quese silencia" Parece como sealinguagemsurgissedo silencioe estabelecesseumapontecoma lingua, coma fala, com0 olhar,com o gesto. Contudo, a tensio entre 0 dito e 0 nio-dito nio se reduz a conversa. Talveznelaseexplicitemaistacilmente, porem, tambem ocorre na escrita e no pensar e nas falas que nio sao apenas converses, aindaqueraimcerto sentidotudoissoseja"conversar".Everdade, poroutro lado, que denominarefalar, dizer, efazer de tudournalgo, umsubstantivo, urnobjetoou umaqualidadequalquer dealgoqualquer;edealgummodonegar 0 quee.representar algo porumsimbolo, umfonema, urnsigooqualquerepretenderqueseja isso. Dessemodo,0 dito nuneae 0 que queriaserditoporque este subjaz sempre il superficie, no fundo do dizer. Ele e sempre interpeladoeindicadoporrnet8forasmaisoumenosoonhecidas. De modo que buscar a esseneiadalinguagemna tc!nue fronteira que separa a fala, a lingua,0 que se diz, quem 0 diz, etc., e como que buscaraess&ciadalinguagemnafronteiraentreditoenio-dito. De todo modo, a linguageminsinuaa1go que niio edito; tal como 0

"dizer" dosurdo-mudo,queexpressamenteo8odizfala, linguaou palavra.masartialladealgwnmodolinguagem: fazcomquealgoseja "dito" a partirdo que 080 edito.

Quemdiz,0 queeledize 0 que elequerdizer;para quem0 dize

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quando 0 diz, tudo isso ocorreem diversosniveis aomesmo tempo e requerum lugarpara aparecer. Esse Iugareo lugarcia linguagem.

Assim, mesmo que a linguagem nio possa ser definicia - pois defini-/asignificareduzi-laaumarepresen~,logoae1a, que de antemioestaportras detodaeqaalquerrepreseeracao lingUistica­nioedificiJ pressentinnosque a linguagemseocultanesseIugar. NJo podemos dizer que ela e 0 Dio-dito: elaapeoas se insinuacomo 0

nao-ditc do que edito em todo dizer, como que escamoteada por baixo do proprio dizer, que tenta atualizar sua possibilidadede contato, quetenta"entrarem contato".

Ocontatoea"area de contato" em que todalingua, falaoudizer podem ser bern-sucedidos parece ser ou albergar a essencia cia linguagem. Mas e urn contato que nio 0 mero tato dos dedos das maos.Bemanteseum "ver" e"tocar" os contomose concavidades do dito; ao ponto de perceber, de leve, se hAinteligenciamUtua ou eseuraecontusainterferencia Noque serefere aesteaspecto, o que entendemosaquipor"contato"epor"entraremcontato"poderiaser expresso como comunicar (entrar em contato) e comuni~io ou commicado(contato).mmpreferimosintroduzirestesnovostennos (nio semseuesclarecimento)afimdenio paetuarcompromissocom o lastro historicodas palavras "comuoicar" e "comuni~o" (ou . "comunicado"). EstasUltimaspalavrascorriqueirasficariarn indefe­sas perante uma aleg~o de Heidegger segundo a qual pensar a linguagem como expressio de em~. como instrumento de tradu~ de desejos e disposicoes a uma lingua pUblica. e uma represen~formal que Dio atinge nem de longe a essenci.a cia linguagem porque esta ernais do que isso. Mesmo que corretos - diria Heidegger -, osestudos fiaguisticosefilesoficos passados e atuaisternconsideJadoiImtenuptament.aJinguagemcomolinguaou tala. reduzindo-a agramatica, amorfologia, asintaxe, asemintica, a logica, etc'.

Heidegger oferece urn enfoque muito peculiar e rico quando parece manifestar que a palavra que talvez meIhor "diga" a essenciacia linguagem nio pode ser urn signo,urn grafema ou urn fonema, masumaceno~ ou seja, nenhumapalavra. Poisa essencia dalinguagernnioenadalingiiistico6

• noseotidodepalavras, sinais ou signos. Palavras nomeiam; classificam e encaixam tudo na represent~ de uma arma~ conceitual de implica~ e re~s. Mas e a essencia cia linguagem. de saida, oque marca a

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possibilidade disso tudo. Portanto, deve ser pensada enquanto1000cae ontologicamente primeira. PorissoHeideggerprivilegia 0

gesto. Isto, por suavez,jasupOetersidooonsiderado que linguagem podesermaisdoquefalaou lingua(oumesmo comercio), postoque elaseapresentadeantemioeporprincipiooomoaoondi~detodo

falar, de todo falar qualquer idioma e de todo commercium. 0 mesmoque permitequetanto 0 aceno, 0 gesto, como afalaeo dizer digam, parece ser uma essencia comum, que seria precisarnente a linguagem enquanto fonte de falar, pensar e dizer: a essencia da fu~uagan

No gesto, diz Heidegger temos "0 recolhimento de um tra­zer", uma forca de reuniio que traz il tona, em reunindo, a S1 mesma e ao trazer de nossa parte que a ela se une. 0 gesto brota desde sempreda rwniio queotraz. Nisso, elediz, deacena. Enos compreendemos 0 gestoenquantogesto e, ao mesmotempo, aquilo que ele nos confidenciaem seu aceno. Pois osacenos"acenampara nos e para fora de nos'". 0 que nisso surpreende e a quase perfeita combinacao que sugere Heidegger quando compara quase subreptieiamentea ess&1ciadalinguagemcomum gesto. Diziamos queisto pennitenegaroaJcancedaredu~ tradicional dalinguagem illingua (expressao), porque 0 gesto e tambem linguagem, e em muitasoportunidadeseumdizermaisessencialqueafaladepalavras - i.e., "entra em contato" mais rapida e facilmente. Mas talvez seja born acrescentarque 0 mais importanteeofato de Heidegger falar derecolhimento,dereuniio, para refenr-seaessencadabngeagem. Hedclitojasugeria- "0 raio conduztodas ascoisasquesao" (Frag. 64);" ... ofogo, sobrevindo, hadedistinguirereunirtodasascoisas" (Frag.16)-umpoderdereuniaoquenaopodeserdetenninado,mas que, ao serbemescutado, evideneia-secorno0 LOgosque tudo pOe edispoe, - "Auscultando moamim, mas 0 LOgos, e sabio concordar que tudo e um" (Frag. 50)8. Heidegger parece inspirar-se nele e insinuarquea linguagemsejaprecisamenteessepoderdereuniio do LOgos, que nio epor nada determinado e tudo determina. A linguagem, assim, ernais que a fala, a lingua. 0 gesto, 0 discurso, a razio, etc. Mas carla um destes seus elementos, de algum modo, reune. Parececomo se aessencia da linguagem acenassecom seus fenomenosparaumpoderdereuniio. Comoseestaunificacaofosse contracao, expansio ou retracao de um vacuo tio originario e tao pleno de possibilidadesreai squantoocaos. Por isso Heidegger ~iz:

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"alinguagem, faIa''9. Porque a tala e 0 resultado dareuniio, afalaja e desde sempre a reuniio "operada" - permita-se este termo inadequado-pe1opoderessencialdalinguagem.Isto,seadmitirmos que alinguagemeLOgos,opoderdereuniioquejuntaeunificatodas as difer~. Noutro texto'", Heidegger diz que 0 LOgos ja se encontra no Legllein, que significa dizere falar; LOgos, porem, significa - diz ele - tanto "enunciar" (/epein) como "0 que e enunciado" (legoltlellOn) .

v - De algurna maneira, fazercontato, entrarem contato, contatar com algo ou alguem supoema possibilidade do proprio contato. EsteUltimo, como 0 LOgosdefleraelito, queeum, etudo dirige com seuraio, reime. Como 0 aceno, unifica; traz a tona a reuniio do reunidoeadistineao do distinto. Exatamentecomo faza linguagemquandotrazareaIidadewnatala, umgesto, ouwnaatitude de mensagem, proferimento iou cornercio. Escutando-a compreendemos, exprimimosouacenamos 0 uno decadacoisae de tudo, que eum ee mUltiplo~anosmesmos e a outrem.

Sealinguagemecontato, e1aeLOgi1S? Elaerazao? ElaeU,0.J, podemosresponder, rnasnio apenas razio. A razioeurnmodo de compreendereexpressara linguagem, masnioealinguagemtoda. LOgos e mais do que razio. ill algo mais fundo que a razso, que a propria vontade, que parecetomar possivel todo falar e dizer de razio ou ~razio,de palavrae de silencio

Osfil6sofos, autoreSecientistasconsideraramdurantesecuJosser a linguagem a expressio, como que 0 "orgao" de manifestaf/io volumarta comque os homens externariam seus propositos, suas ideias, seusdesejos, seusatoseconjecturas. Essepontofoi referido acima, de passagem, no momento em que lancamos mao de breves alusOes a Heideggerparamelhorelucidar aquestaodaessenciada 1inguagem. Contudo, precisasermeditado eexplicado. Pois quando a nossatradi~ioabracou essa ideia quis dizer que a Iinguagem nos permiteaexpressioeacompreensio,logoocomerciocomoutrem. Ora, poderiamos interrogar-nos a respeito do que eexpressio ou compreensio. PoderiamosmesmoprOQ.1f3l"vernocomerciohumano o comodoque expressaeo comodo quecompreende. AJinguagem ecornpreensao? Sim, sem duvida, porque prende e Iiga tanto 0

legllein como 0 legomenon e 0 torna para si mesma Mas ela,

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enquamocompreeosiopareceremeterpara"algo"quecom-pmmde. Omesmosucedeaexpressio. Ex-pressiosugerepressioparafora, externamento, methor,auto-externamento. Entrementes,oque a expressio exprimetambeme ligMem e legomenoll (0 enunciare 0

queeproeunciado). Mas,eentio? Senaessasemelhaneacapazde produziraigualdadedeexpressioecompreensio? Estranhamente, nio. Poismuitasvezescompreender niosignificanecessariamente expressar. Expressarparecerequereraentradaemcenadacompre­ensao. Poderiamosaindaconsiderarquecompreenderedealgum modo urn certo tipo de ato de expressao. Mas, ainda assim, nio poderiaa compreensio ser toda a expressio. Podemos exprimir compalavrasouatitudesquecompreendemos, porexemplo, quando assmtimosmexendooqueixolevementeparabaixo;quandorealiza­mos 0 prop6sitoquese nosencommdouatitulodedever etarefa no trabalhoou naescola,ap6stermos sidoexortados paraisso.

Masexpressarqueestamoscompreendendonioeamesmacoisa quecompreender. Dondeserdificil pensaralinguagemsemumaou sem outraqua/ilas. Seseatentadepertoparaaquestio,alinguagem engaja tanto a compreensio comoaexpressio, sejaelaatitude de olharou acenoou falade palavras. Masejustamentepor issoque etanioe expressio e compreensio apenas: eis 0 problema.

Todaatradi~ pareceter enveredado-poressatrilhas. Nio se podenegar(seminefic3cia)0 fato dequea linguagemseevidencia, dealgummodo, comoexpressio. Ecomocompreensio.Mas, nesse caso, "algo" ou"alguem" devecompreender. E expressar.

ExpressarimpOewncertotipodecontatoentreoqueseexpressa., ouosqueecpressamdealgummodo,eo desIinatarioouacompanbante da expressio - seja 0 que for ou quem for. 0 contato entio mancomuna, associa,junta;estabelecea ponte quechamarnos de comercio, Quando hil 0 contato, por exemplo, entre nos e a paisagem,ouentreseispessoasquedeliberamarespeitodefilosotia, temos a compreensao e a expressio; e mesmo quando nada se expressa,0 tempotodo secompreendeou sefaz outras coisassem pensar,oumesmopensandoparticularmentenelas.

Do quemeditamos ba poucoacima, podemosextrair0 seguinte, ecomcertatranqUilidade: alinguagem, quepareceterporlugaraarea de contato que tudo reune, nio e ela mesmanemexpressio nem compreensio, maseaquelealgo que se exprime(ou nio) porque compreende: E assim como reune, separa, distingue, elucida,

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pergunta. Quando se perguntapelalinguagem, entretanto,pcuece quesepergunta pelaessenciado Homem.jadizia Aristotelesque 0

homemera zijo" ec/W"IOgoll, urn ser vivo dotado de lAgos. 0 proprioArist6teles sustemumatradi,..ao queseestendeateo pr6prio Heidegger,conformeela 0 homemehomemenquantotal, diferente e distinto dos animais, dos vegetaise do resto das coisas, apenas enquanto fala. Ele teria por natureza a linguagem". Heidegger modificaurnpouco a questio, e avanea muito, quando dizque "a linguagemfala". Mas,dealgumamaneira,aindaconsideraohomem mJDlpontomaisalto nabierarquiadocosmos,namedidaemqueele efaladopelalinguagem,i.e.,namedidaemquealinguagem(nele) fala". Isso faz pensar: seraque nessa atribui~o incondicionaldo privilegioda fala ao ser racionaI nio se esconde, na verdade, a redu~o do homem alinguagem,da linguagemalingua,da lingua afala do dizer, a qual ex.pressaria pensamentos e sentimentos? Sera que isso nio oculta tambem a restri~io do"pensar que fala" ao homem, excluindo animais e outros seres, dos quais sequer sabemosou temos como saber se falam, se pensam ou nio, e dos quaispelo menos temos a certeza de que as vezes sao capazes de possuirIinguagem, umavezquecomerciam entre sieconosco? la diziamos antigos que os animais falam: nos"eque 010 podernos entende-los. Ora, talvez possamos; porem, parece que nio poderemos enquanto continuarmos apegados a este velho pre­conceito.

Esta inciag~io nos permite perguntar sea essencia ciaIingua­gem, que tentamos pensar como 0 contato que reime e se recolhe ou se expande na reuniilo, define a essCncia do Homero. Se a linguagem,enquanto LOgos, no sentido acima vineulado, niO for propriedadeexclusiva do humano, nio servira para nortear 0 que sejaoHomem.Mas, seoLogosfor entendidocomo 0 discurso do pensar,comoopensarnosentidomaisaltoeessencial(cf Epigrafe), parece que devera definir 0 essencialcia hnguageme do mmano. Contudo,oque sucederiaseespeculassemossequerporuminstante sobrepossibilidadede tudo que nioe Homem ser de a1gum modo, comopensaraHeraclito, orientado pelolAgos? Deveriamosfalar oomalinguagemdaRealidade? Ounareve~odeaJgumaverdade

capazdefugiraimediatidadedovisivelereunirtudoqueenosi1encio constantedoinvisivelasimplesvisada? Seniquepoderiamosadmitir algumasorte de linguagemtotal euniversal quefosseaessenciade

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tudo? E seniopu~~ossequerimaginarisso, iriamosfazero que comnossaJinguagem? . Tudo parece indicar que a linguageme LOgos, e que 0 LOgos e

o pensar. 0 pensar que versa, conversa, expoe, reune, recolhe e guarda. E fala, aeenaoudiz. Todavia, o quenio sabemose: De que pensarsetrata? oquee, comoee a quempertence essencialmente o pensar? Isto significa: se a linguagem for de alguma maneira, "contato", que"contato" e este?

Toda a tradi~o filos6fica ocidental pensou a linguagem como expressio do pensar, de modo que 0 pensar esteve sempre como base da linguagem e do Homem. Dizer que a .Iinguagem e expressio de algo implica afirmaraquilo mesmo que se expressa. Tal afi~o e0 que mais causa estranheza. Pensou-se sempre a linguagem como expressaodo pensar, sem se perceber que isso equivalia a pensar a linguagem como sendo 0 proprio pensar . A questao e: seentrevemos mais ou menos 0 que seja 0 Pensar, significa isso sabermos profundamente 0 que ea linguagem? Ao que parece, de maneiraalguma.

NOTAS E REFERENCIAS BffiLIOORAF'ICAS

1 UlJterwegs%llrSprtIC~, Pfullingen, Neske, 1965, pp. 115/]]6. Vertambem Wi1hehn Anz. "Die Stellung derSprachebei Heidegger", in: HeUkgger. Penpelaiven Dlr Dell",,,, seines Werkes, org. por Otto Poeggeter, Athenaeum, Koenigsteinffs, 1984. p. 318. 2 Prova disso ea preocupacao peJ.a sua origem, que fbi considera­da divina durante muito tempo. Vide Heidegger, op. cit., p. 14. 3 Heidegger, op. cit., pp. 14/15. 4 Heidegger, op. cit., pp. 93ss/103ss/152ss. 5 Sobre a consideracao da linguagem como "expressao", cf. "Die Sprache", in: op. cit. ibidem "Aus einem Gespraech von der Sprache", in: op. cit., p. 129; Introduccion a laMetaflSica(trad. de Emilio Estiu], Buenos Aires. Ed Nova, 1959(2. ed.), p. 127. 6 UPlterwegs%IIr Sprache, p. 114. 7 Idem, p. ]]7. 8 A traducao destes tres aforismos (16, 64, 50) ede E. Carneiro Leio, Rio, Tempo Brasileiro, 1980

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9 Unterwqs D'r Sprtl£he, pp. 12-13. 10 Logos (HD'ticlito, frag. 50), trad. Ernildo Stein, in: Pre­Socrtitico:s, col. Os Pensadores, Abril, Sao Paulo, 1985, (3. ed.), pp. 1121113. 11 Ullterweg:s D'r Sprache, p. 11. 12 Idem, pp.12ss.

End.do autor: [email protected]

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Revista Principios -~_ FiJosofia UFRN, RN, \bl II - N" I Junho de 1995

JUSTIFICAf;AO DA INDUf;AO

LIAMARIAALCOFORAOODEMFLO* DEPARTAMSNfO DE FILOSOFIA DA UFRN

RESUMO:

Constitui tema de dificil discussio na Filosofia da Ciencia, a questio da existenciade principios cientfficos e suasjustifi~. Faz parte desteterna, 0 Principio da Indu~o. Postaem chequeno inicio do seculo XVIII, a Justifica~ da Indu~, tern suscitado interessantes debates e posicionamentos por parte de filosofos e 1000cos. A visiodiaJeticadedicotomiaentrerazioel6gica, fezsurgir as logicas nio classicas respaldadas na evolu~o do pensamento matem8tico enasgeometriasnioeuclidianas. Essepontodereferen­cia,podenitrazeresclarecimentosimportantessobreos aspectosde logicidade na Indu~. sera assunto deste artigo, a anilise da Justifi~daInd~.nastentativas: analitica, indutivaepragmi­tica. Estetrabalhoconstitui a primeiraparte deumapesquisasobre "oapoioindutivoesuafun~onaaceitabilidadedehipOteses".

1- INTRODUCAO

Desde 0 periodo da Greeia Classica, 0 Raciocinio Indutivo vem sendo utilizado, nio somente na vida cotidiana como na ciencia; desde suas mais elementares manif~s ate nas formas mais complexas e elaboradas. Foi ARlSTOTELES 0

criador do Metodo Indutivo, e. BACON 0 responsavel pela reeleboracao de uma teoria da Inducao, quase dois mil anos depois. Durante 0 seculo XVIII, inicialmente HUME, BERKELEY e outros filosofos desenvolveram criticas e contra

• Membro da bale de pesquUa em LOgica e EpiIl.eDloIDgia. Espccialista em LOgica

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criticas aInducao, que apesar de nio ter colocado entraves asua pratica, em contrapartida, afetou 0 interesse e a busca constante de regras apropriadas aInducao,

Os Raciocinios lndutivos mais simples ocorrem constante­mente no dia a dia: se urn cao late a cada vez que passo, espero, com certa naturalidade, que volte a latir ao ver-me novamente; trata-se de conhecimentos adquiridos a partir de certa amostra; estabelece-se uma predicao acerca de urn caso nio inclilido na arnostra com base nas ocasioes em que 0 cio ja ladrou; assirn, se cria umaantecipayio do que ocorreranuma ocasiio futura. Na utiliza~iopela sabedoria popular, este tipo de raciociniotern sido desenvolvido e serviu para acumular experiencias, ate cerro ponto, interessantes e diversificadas. Quandose trata de racioci­nios mais elaborados, cuja predi~ao parte de alguns casos para generalizacao em qualquer caso, tem-se: tais ou quais A sao B: logo, urn outro A eB; ou alguns A sio B; logo, todos os A sao B. Surgem alguns pontos que merecem urn certo destaque e algumas consider~.

lnicialmente, saliente-se a seguinte indaga~io: 0 que signi­fica, realmente, urn Acgumento Indutivo? Seria 0 tipo de racio­cinio, ern que a conclusao se refere a pelo menos uma coisa, a que as premissas nio se referem; aquele raciocinio, cujas premissas tomam razoavel a aceitayio da conclusao, tal como se pretendia. Seriaum argumento daforma: p ~ q.

Considere-se que urn argumento e Indutivo, quando as premissas apresentam-se relacionadas com a conclusio no senti­do de proporcionar elementos de juizo favoniveis aeIa; e que se possa afirmardele, que a re~ se cumpre comprobabilidade de sua verdade. A proposieao "q" eepistemologicamente provavel, quando "p" proporciona elementos de juizo, que tomam prova­vel a sua verdade. "p" Dio sugere total responsabilidade de provocar "q"; ou seia, as premissas Dio content todo conheci­mento expresso na conclusio. Exs: (i) De 520 ocasiOesemquecisnesforamencontrados, eramdecor branca; 0 proximo cisne encontradoseratambem branco. Oode: p =aobservou-se520casos; q=aocisne521 serabranco. Quando as premissas "p" referern-se a objetos de uma mesma classe, a conclusao"q"devenipredizerqueoutrosobjetosdessaclasseterio asmesmas propriedades.

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(ii)Noscasosobservadosa umacertatemperatura(t), o volume(v) e a pressio (p) sio constantes. Logo, a uma temperatura (tn) qualquer, 0 volume(vn) e a pressio(pn) sio constantes.

A questio filos6fica e0 saito Indutivo, cuja acusacao e a falacia logica, Aindagacao e se epossivel a extensio de"p" a "q", e. sendo possivel, como se realiza.

Para que se possa efetuar 0 salto Indutivo, toma-se como respaldo a experiencia passada que por sua vez, baseia-se na maeutencao da regularidade da natureza. Dai, dizem os filosofos ceticos, e preciso saber: (i) sealgo exterior poderamudar 0 curso das leis da natureza; (ii) se 0 numero de ocorrencias no passado proporciona alguma ra.zio paraque ocorrano futuro.

Urn ceticismo morbido cuida em exigir uma justifi~io

para a Indu~o. De que modo se justifica racionalmente qualquer argumento Indutivo? E, como urn dado procedimento Indutivo e suficientemente digno de confianeapara certos fins? Esta corren­tel define como padrio de raeionalidade

se possivel mostrar que os argumentos que urn sistema de logica Indutiva da como indutivamente fortes, na maioria da vezes conduzem de premissas verdadeiras para conclusoes ver­dadeiras..

Gera-se a polemica entre os fi16sofos e 1000cos. sobre 0

emprego de Raciocinios Indutivos ou do Metodo Indutivo, sob a necessidade de generalizacoes para estabelecimento de leis das ciCnc18S ernpiricas, muito importante no contexto da descoberta. A ciencia, como veiculo da verdade sobre 0 universe, necessita de utilizar procedimentos de total confianca para Dio enfrentar dificuldades maiores no seu desenvolvimento. A aceitabilidade do Metodo Indutivo sem justificativa, seria levar a ciencia para 0

nivel de qualquer crenca. Entre os filosofos desta corrente, esta POPPER2 com suateoria sobrea "falseabilidade".

I Defendidapor HUME. BERKELEY e maio reeentemente RlTSSELI.

I A 1000ca da pesquisa cientifiu.

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Otemadajustifi~daIndu~,temocupadoatualmentewn lugarde destaque nareflexiofilosofica, como autentico nucleodo problemae objetivoultimode debate. Tern sido apresentadas tres concet*>esdejustificativas:analitica, indutivaepragrnatica.

2 - A JUSTIFICATIVA ANALITICA DA INDUC;AO

A justifi~io analitica', apoia a co~o de que atraves do principioernpirico,epossiveljustificar a Indu~, mostrando o que erazio suficiente para supor que uma generalizacao sera confinnada no futuro como tem sido afirmado no passado. 0 principio empirico baseia-se no seguinte: (i) os casos negativos sao geralmente excecoes que devem ser explicadas; (ii) 0 proximo caso a ser observado esempreum numero finito no futuropassadoeinfinitonofuturofuturo; (iii) atraves da observacao direta pode-se cbegar a conclusoes positivas.

Tem-se como padrao dajustifica~ analitica da Inducao: seepossivel mostrar 0 que euma boarazao para supor que uma generalizaeaoseraconfirmada no futuro como tern sido afinnada no passado, desde que: (i) sejamanalisadas sintaticae semanticamenteas proposicoes; (ii)sejarnredefinidaspremissasinfonnativas; (iii)sejamexpressas essas premissasinformativas.

Estateoria eexplicada atravesda analiseda sintaxee seman­tiea dos argumentos. Ambigiiidadedos termos, suas diferencas e semelhanyas sioobscurecidas pelacompreeasjo nalinguagem de uso. Detenninadasexpressoes levamaurnoutro sentido,de modo que,0 que serefuta ediferentedo que se pretendia refutar. Certos argumentos contem "ignoratio elenchi"que sao informa.yOes que deixamdeserapresentadasnas premissas, alterandoopotencialdos elementosdejuizo disponiveispara a predi~o da conclusao. Ex:

Os sereshumanos dizemque aBguaa 50 graus centigrados esta quente;logo, os seres humanos ternimpressOes sensoriaisirreais.

'Dcfendida por Estephen DARKER e Paul EDWARDS.

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Asseguintes informa~sfazem partedo "ignoratio elenchi": 0

calor quex apresenta para um observador normal em condi~

padrio; e, 0 calor que x apresenta para urn observador sob certas condicoes especiais. Ora, com a observacao desse "ignoratio elenchi " a conclusao nesse mesmo argumemo deveria ser: os seres humanos tern impressOes sensoriais diferentes .

Analise-se agora, a seguinte proposicao: "ter uma boa razao para proporcionar elementos de juizo para a predicao de que 0 proximo caso sera positivo ". Para os racionalistas "uma boa razio" seria logicamente concludente e com elementos de juizo dedutivameme concludentes. Sob essa otica, as observa­~s passadas jamais serlam uma razio para predi~. Pois, na vida ordinaria como na ciencia, nio se usa ''uma boa raz80 " nesse sentido. Essaproposicsoeurncaso de "ignoratio elenchi"; pois, seria necessario observar todas as condicoes necessarias, positivas e negativas, para a ocorrencia do caso n+1; nem e necessario que a colecao observada, seja maior do que a que se toma realmente; tao pouco enecessario, que os fracassos nunca tenham ocorrido em nenhurn dominio, mas no mesrno dominic; e,se algurn ocorreu no mesrno dominio, deve-se mostrar que sao suscetiveis de co~ atraves de certos aspectos especiais que nio estio presentes no tema da predicao.

J - A JUSnnCA(:AO INDUTIVA DA INDU(:AO

A justifi~o indutiva dalndu~o, admite a ideia de que eviaveljustificaraIn~oatravesdumargumentoindutivamente

forte. Este principio apoia-se no ponto de vista de que a Indu~o

Cientifica eurn guia satisfatorio para orientar as expectativas, porque sempre nos guiou bern ate 0 momento. ·05 defensores" desta CODvi~o asseveram que se, ao inves de colocar Duma sO categoriatodos osargumentosquea Indu~o Cientificaapresenta comofortes, efetuarwna~deniveisde~, serilpossivel constataTqueajustifi~indutivadaIndu~,nioconstituiurna

OSroART MILL. MA.X BLACK.....

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peti~de principio. 0 padriodajustifi~indutivadaInd~ e: separacarlanivel (k) deregras dosistema, existeurnargumento

de Divel imediatamentesuperior (k+ 1) que : (i)edado como indutivarnenteforte pelasregras do proprio sistema , (ii) tem premissasverdadeiras; (iii) tern por conclusio, 0 enunciado que asseveraseremdignas de credito as regras de nivel (k) do sistema. , ...

A 1000ca indutiva cientifica seria urna estrutura comple­xa, constituida por urna infinidade de "stratus", de diferentes conjuntos de regras, relacionados uns coni os outros ; as regras de cada nivel pressupOem, em certa medida, que a natureza e uniforme e que 0 futuro assemelhar-se-aao passado. As regras de carla myel se justificarn por urn. argumento do mvel superior subseqiiente e assim sucessivarnente. Na realidade, nio ocorre a suposicrao exatamente daquilo que se quer provar; a justificativa indutiva da Indu~o Dlo pressupOe que as suas regras sao dignas de credito, mas, oferece urn argurnento para mostrar que sao dignas de credito. Em carla nivel as regras sao consideradas dignas de credito, pela apr~ode urn argumento no nivel superior subseqiiente ;assim, nenhum dos argumentos usados para a justifica¢o indutiva da Inducrao, pressupOe 0 que estio buscando provar. Portanto, nio incidetecnicamente, DUma peti­~ de principio. Essa concepcaotrouxe esclarecirnentos impor­tantesparaoestudodalnduyio: (i) mostrou que 810 varies osniveis existentesdeIndu~o;

(ii) assinalou que pode haversituaeoesemqueosDiveissuperiores daIndu~Cientificaniodeemapoioaosniveisinferiores,mas,que

entretanto, nioseestanumadetais~; (iii)acentuouqueal6gicaindutivacientificaeindutivamentecoerente comosfatos,e,quesepodeimaginarcircunstinciasem.que a 16gica indutivacientifica nlo seriaindutivamentecoerentecomos fatos,

4 - A JUSTIFICATIVA PRAGMATlCA DA INDU~AO

Para conseeucao dajustifi~racionaldaIndu~,diferentes viasforamutilizadas,nadependenciadernaioratrib~odeforcaao

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raciocinio apresentado. A uti~o do raciocinio dedutivamente valida como fundamento da justifica~o, e a via da concepcao pragmaticaa. qual se passaagora a analisar :

Observe-se 0 padrio da justificativa pragmatica da Indu~o, ou seja . '. "".

se demonstrarqueosargumentos do sistemadelogica indutiva considerados indutivamente fortes possibilitam, na maioria das vezes, conclusoes verdadeiras a partir de premissas verdadeiras, caso exista algum metodo capaz de atribuir forca indutiva a tais argumentos.

Considerando esse padrio, tome-seagora 0 argumento dedutivamente valido, apresentado poe REICHENBACHs.

(i) Ou anaturezae uniforme ou nio e (ii) seanaturezaeuniforme, aindu~o cientificatera exito (iii) se a natureza nao e uniforme, nenhum metodo tera exito

se algum metodo indutivo podeterexito, a indu~cientifica

teraexito.

Entretanto. a terceira premissa, embora as duas primeiras sejam verdadeiras, deixa duvida: sera que nio poderiaexistir urn estranho metodo indutivo que fosse bern sucedido, mesmo com uma natureza caotica? REICHENBACH responde usando a terceira prernissa, com a possibilidade oposta, ou seja : (iii)~ anamrezanaoeuniforme,alguDunetodoteriexito.Entio, nas duas situ~Oes ; neobum ou algum metodotera exito. deduz-se a mesmaconclusio.

.Aparentementeo problemaesta solucionado, porem, sesabe que atraves dum argumento dedutivamente valido, de premissas sabiamente verdadeiras, sera demasiado fraca a conclusio aquese chegou. Emresurno, atentativadejustifi~o

indutiva em linhaspragmaricas, pennite compreender que uma justificativadedutivada Ind~o seriaaceitavel, na rnedidaem quese admite niveisparaas regras daInduCio ; entio, se algum sistema de logica indutiva dispoe de regras que conduzem ao exito, em determinado nivel, a logica indutiva cientifica tambem dispOe de regrasqueconduzemaoexito, nomesmoniveJ.. Porem, osargumentos

'REICHENBACH, FEIGLe SALMON defendema co~o pragmanca.

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apresentados pelos pragrnatistas Ilio chegam a essa conclusio. Mostrarn, em vez disso, que se algum sistema de logica indutiva dispOede regras satisfatoriasde determinadonivel,entio a logica indutivacientificadanirelevoa umargumentojustificadorparatais regras., mas, emnivelimediatamente acirna.

5- CONCLUSAO

As varias tentativas de justificacao da Imlu~o, como se terminou de ver,revelaram importantes facetas da indu~ cientificaque deixam claro aimportancia de urnsentido de busca deumajustifi~ maisforte,do queternsido encontradaateagora. Este resultado, vernreforcar a necessidadede urnincrementonos estudos, sobre0 nucleodo problemacomenfase nosdebates sobre aspossiveissolucoes,0 potencialheuristicodesseterna, propiciou o interesse por uma pesquisa que vern sendo desenvolvida sobre sobre"0 apoioindutivoesuas ~Oes naaceitabilidadedehipOteses cientificas", queteveeste trabalho, como suaprimeiraetapa.

LISTA BmUOGRAFIcA

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Revista Principios -~. Filosofia UFRN, RN. \bl n - N~ I Junbo de 1995

AS DivIDAS DA CIENCIA

MANOFLBARBOSADElliCENA DEPARTAMENTO DE FlLOSOFlA • UFIlN

"E politicamente pobre 0 cidadao que somente reclama, masnio se organiza para reagir, nio se associa para reivindicar, nio se congrega para inftuir" (Pedro Demo)

1 - A pobreza e uma condi~o criada. Produzida. Mantida. Cooservada. Multiplicada. E umfenomeno de exclusio do "ter",Eser impedido de "ter".

A pobreza e a escola do fiel, do carente, do necessitado, produzindo necessidades e carencias, manifest~s da mesma pobreza.

A pobreza e0 "Dio ter" subserviente que se"causacircular e cumulativamente".

A pobreza e 0 objeto de taticas e tecnicas de controle e do~Io, eindustria que secultiva nassecas, nas cri~ de rna, nas"cestas basicas"...

A pobreza ehist6rica e estrutural, mas apresentada como resultante de crisesmomentaneas e conjunturais e, por isso mes­mo, tratada com politicas compensatorias e inadequados assistencialismos... uma agressio acidadania.

A pobreza do "nioter" relega amargern a pobreza do "Dio ser". Sim, porque 0 verdadeiro pobre nasce de repressio ao sa­ber, ao "Dio sec". ..

2 - Ora, a neutralidade cientifica e por si sO ideol6gica. A Ciencia, pretensamente interprete da realidade, tern construido o relevante para a estrutura dominante, simplificando fenome­nos e os manipulando. A pobreza euma das suas consequencias, pois Use estudar a pobreza nio leva a resolve-la, eporque man­

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ter a pobreza faz parte da producao cientifica".'!' 3 - 0 combate apobreza eigual a"industria da pobreza, e

os milhares de pobres, em redes de TV elou em programas ao vivo agradecem 80S "poderosos" a sua manipul~o. 0 princi­pal fator da fabri~o da miseriaea sua manobra politica, car­dapio f'acil de candidatos que se revezam no poder, construindo palacios e castelos familiares e economicos.

A carencia e 0 meio mais imediato de manipula~io. Por isso, 0 Nordeste e mantido pobre, apesar das politicas contra a fome. 0 mal eadiado, com alimentos que conseguem manter a esperanca dos desiguais e dos pobres.

Os tiquetes de leite, oculos e dentaduras, sacos de cimento e "cestas" comprarn a pobreza, transformando os necessitados em miseraveis.

Os programas de TV e Radio, reunindo "pobres" e "neces­sitados", constituern urn processo de repressao do acesso a van­tagens sociais relevantes.

4 - Eque apobreza material se associa a pobreza politica. E como se a Ciencia nio valorizasse a sua qualidade politica, atendo-se unicamente as leis invariaveis e universals, rescaldo de formais dimensionamentos positivistas, assepticos e frios, cal­culistas e dogmaticos.

o ceme politico da pobreza resgata 0 processo, dando-lhe a sua verdadeira dimensio historica, a dimensao do "ser".

5 - Esta sociedade bipolar erepressiva contra os deserdados da terra. Eurn dominio que reprime, espezinha, avassala, num tempo disfarcado em afluencia e liberdade. (3)

As promessas estio nos palanques oficiais e oficiosos, dis­farcados em ilusio, mas travestidos de esperancas. Entretanto, o conluio dos poderosos (da comunicacao, da riqueza, do po­der, da terra, etc.) toma-se sempre mais objeto de uma adminis­tra~o que a todos absorve: seus crimes sao transformados em empresa racional, suas palavras representarn ordens, suas esmo­las significam solidariedade e arnor fratemo, a todos conservan­do objeto de uma anestesia geral/"

6 - 0 desenvolvimento da sociedade hurnana Ilio pode re­duzir-se a satisf~io das carencias materiais, satisf~o do "ter", pois a pobreza possui caracteristicas essencialmente politicas, carencias do "ser". E a participacao e0 fator mais qualitativo da

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construeao da historia humana na construcao do "ser". 7 - A pobreza nio e a careneia material, ou ate a sua injusta

distribui\oiO. Nio e aquela que existe, embora apareea, masseus aspectos politicos, numa degradaeao da propria sociedade. Ou mais, ea carencia do "DioseT" produzindo 0 «nio ter".

a- Os pretensos representantes politicos cultivam a pobre­za, aJimentando-se para se "alimentarem", atraves de politicas clientelistas secu1ares:

a) manut~ da inconsciencia; b) assistencialismo como regra, gerando dependencia; c) conservaeao de lideraneas por manobras eleitoreiras

(campanhas politicas); d) reserva de mercado para politicas sociais para os po­

bres; e) apropriacao do Estado; t) impotenci~ da popul~, sem informa¢es, amorfa, es­

perando a cidadania como uma concessio; g) manipul~oda informacjo; h) politicas residuais, manipuladas e compensatorias, na

inditstri,- da miseria; i) crimes nefandos contra 0 processo de organi~o,com

a ~ de associacoes atreladas, sem qualidade politics.; j) politicas de "participacao", fantuiando democracias. 9 - A CiSncia, ela mesma, se torna urn instrumento da do­

~. Ciencia dos poucos "iguais" contra os muitos "desi­guais". Seu objeto construido do pressupOe 0 dialogo, mas re­presenta a palavra indiscutivelmente dogmatizada, porque alicereada na visio das realidades formais e logicamente siste­matizadas, propriasdas ideologias alimentadoras da pobreza. E a ciencia consttuida para 0 "ter".

10 - Resgatar a Cieneia, este parece ser 0 papel da Filoso­fia na contemporaneidade. E 80S cientistas, como elite, elite in­telectua1- 0 de desvincular-se dos blocos economicos e politi­cos que dominam a sociedade, garantindo e dignificando a ver­dade a service do povo, a service do "ser' .

Nio me refiro Iquela Ciencia dogmatizada nos ultimos se­culos pelos criterios formais e matematicos, embasada em metodologias e tecnicas positivo-quantitativas rigorosas,

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mensuraveis e quantificadoras, mas a uma Ciencia que, construida sobre pilares de competencia instrumental e teenica formais, a elas Dio se limite, porem se complete nos aspectos humanos, seja, uma Ciencia do Homem e para 0 Homem, de conteUdos politicos a service da totalidade e nesta, dos desiguais. Nada de obsessio formal. Nada de exatas medidas quantitativas, fora do que tudo e falso. Nada de exatidio. Urn pouco de cada, sim, que se mistura as identidades culturais, as politicas, avida cotidiana, it cidadania, it felicidade de cada urn...

II - Nesta perspectiva, 0 objeto a ser construldo pela cleo­cia e 0 homem todo, 0 real e 0 pensado, 0 ontologico eo logico, em continuo processo.

12 - Desprezadas ou pelo menos suspensas sejam as avali­~es puramente quantitativas ou quantificadoras, espelbadas em balanceseconomicose financeiros, de carater ufanistae ate neu­rotico, de cunho dogmatico irrefutivel, sobrepondo-se a tudo e a todos, alimentados por clencias denominadas contabeis e exa­las, de cunho ideol6gico puramente capitalista, material-finan­ceiro, dogmatizando meios e sufocando os objetivospara os quais foram e. sio construidas. Sio puramente ideologicas, pecando por sua irreverencia it Verdade. Sio purameo.te iguais numa so­ciedade de desiguais, abjetas ao dialogo e ao confronto.

13 - Serio os indices economico-financeiros suficientes para refletir a realidade socio-economica? Os ideais positivistas os consagraram, a service dos neg6cios. A Economia os transfor­moo em paradigmas, sem 0 que tudo seria questionado. Para eles e em fun~o deles, politicas se implantaram, indices, c6di­gos e programas foram criados, politicas para desenvolver 0

homem no trabalho se intensificaram, na busca dos lueros, inicio e tim de todo 0 processo. Desenvolveram-se fonnas e meios, eliminando-se movimentos inuteis e cargas excessivas na em­presa, condicoes e ~a no trabalbo, tudo a servieo da quan­tidade. Teenicas de Rel.a~s Humanas sio aperfeicoadas, pro­gramas de indu~io sio introduzidos; tomando ate agradivel 0

lugar do trabalho,tudo em fun~io de resultados. Fala-se ern "nova empresa", transitando com "marketings", estrategias e "quali­dade total", a service de lucros e quantidade, em novas "re-en­genharias".

14 - A Ciencia nio se reduz a quantidades. As avaliaeoes

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deum processo niopodem ser apenas uma fotografia de resultados quantitativose lucros,a formase regras'logicas, como sea realida­de fosse feitaapeoas de niuneros, valores quantitativos. formas 16gi­co-matematicase resultados economico-financeiros. Isto significa­riauma visio autoritaria e ~ticame:nte.condicionada, ideologi­cam.enteimposta a urn mundo de homens e mulheres que por essen­cia, e desigual. E nisto esta a sua riqueza.

-ID­

15 - As politicas de governo, de govemos que apenas pen­sam no "ter", sao fonnadas dentro deste paradigma nefasto para a sociedade. Nossos Governos Ilio mostram (e nio mostram porque nio sabem, e nio sabem porque nio lhes einteressante) indices de qualidade, reduzindo-se sua a~io a mimeros e valo­res, crescimentos percentuais e quilometros, metros e distinci­as, nada mais. 0 desenvolvimento do "ser" participative e poli­tico emarginalizado, 0 "saber mais" emanipulado, a comunica­~ e filtrada e truncada, impossibilitando apop~ a melhoria da qualidade da cidadania.

Tais Governos, produtos de valores quantitativos e soma dos custos financeiros de grupos economicos, apresentam-se como provisionadores daverdade, definidores de politicas e so­lu~oes definitivas. Sua Iinguagem e fechada e dominadora, aves­sa a qualquer critica, antidialetica, anti-historica, Iinguagemque nio explica, apenas comunica decisoes, Duma"fala" propria dos regimes autoritarios. Decide sobre nossos destinos e nossas vi­das, numa linguagemmanipuladora, funcionalista e quantificante.

Suas avaliaeoes sao meramente positivo-funcionais. Seus comportamentos, ufanistas e autoritarios, apresentando-se sem­pre entre musicas, fogos e discursos, iludindo a quantos aspiram a urn melhor padrao de vida e areali~io pessoal e cotetiva.

16 - Entretanto, as aspiracoes humanas nio sao na sua es­senoia quantitativas e medidas em valores financeiros e econo­micos: estes sao meios para os verdadeirosobjetivos da socie­dade.expressos numa palavra do povo, a felicidade.

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-IV­

17 - Nossas Universidades e Escolas se prmdem iguahnmte a criterios fonnais e numericos,expressos em notas que avaliam alunos, comoseestes fossem "robots" semalma tornando este pro­cesso pelo menos suspeito. E por isto, sao obrigados a reproduzir0

que os outros faJarn, a repetir 0 que escrevem outros, numa copia da sociedade quantitativa imposta ao ser humano.

18 - Tudo isto epobreza. Em que evoluiu a Ciencia? Nio seria melhor, sob alguns aspectos, ou sob estes aspectos aqui analisados, falannos de uma involucao?

19 - Ora, a totalidade epor natureza dialetica, e sua almae a antitese, de mUltiplos condicionamentos, feita de objetividades e subjetividades. A realidade natural edetenninada, dentro do rigido esquema de causa e efeito, independmtes da vontade hu­mana. A realidade social porem e condicionada, e sio os condi­cionamentos hist6ricos que fazem a vida concreta, no dia a dia do tempo.

20 - 0 processo de participa~, construcao do "ser", e 0

norte da histooa bumana;a ele estio subrnetidos nUmeros e quan­tidades, valores quantitativos e rigidos controles matematicos.

A participacao ou valor qualitativo requer dialogo, e dialo­go euma fala de contraries. No falae dos prepotentes (e aqui se colocam Governos, Professores e todos os esquemas totalitlri­os de aval~ quantitativa) nao hi comunicacao, mas monolo­go. No dialogo, prevalece a contrariedade, na dicotomia de ato­res essencialmente dialeticos.

-v­

2I - KarlMarx, em "0 (Apital l ), tentou dar ahist6ria 0 ca­

liter necesserio-posaivista das leis fisico-naturais, quando se referia is "r~sde produ~ e troca", falando de r~s necess8rias e independentes da vontade do homem, subordinando a vida intelectualadet~ material.

A Escola de Frankfurt, apresenta uma postura frente ao marxismo, rejeitado 0 determinismo hist6rico e excessivo.

22 - 0 empirico ou 0 "ter" 010 pode ser 0 unico criterio de cientificidade ou de analises processuais.

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23 - Como r~ao aos excessos da dedu~io especulativa, nascidanafilosofiagrega e presente no continente europeu durante seculos,a indu~ empiricaconsagrou a experieneia como criterio da cientificidade. Se aquela pecou pelo subjetivismo, nosso seculo se ve hoje sufocado pelo empirico, alimentador de uma pretensa cienciaobjetiva e evidente, pensando ter superado a propria filoso­fia. 0 utilitarismoeseu filho primogOOito, hoje, numa sociedade pu­ramente quantificantee materialista.

24 - 0 tim da ciencia eproporcionar a felicidade humana, nos seus desafios, sentimentos, emocoes e desejos; nos seus va­lores e juizos, na sua consciencia e organizacao, nas suas caren­cias e necessidades, no seu desenvolvimento participativo-poli­tico.

25 - Os indices de desenvolvimento nlio podem ser medi­dos somente pelo poder de compra, por lucros auferidos ou por renda «percapta". A participacao nesse processo e insubstituivel, eliminando-se 0 caudilhismo intelectual elou economico, a ser­vico do desenvolvimento.

A qualidade ou a construcao do user" e urn indice necessa­rio nesta avaliacio, qualidade das pessoas, qualidade do sistema educacional, base da cidadania, necessitando-se construir 0 su­jeito historico, hoje "massa de manobra".

26 - Os tratamentos assistenciais do Estado, distribuindo migalhas e aprisionando consciencias, as salas de aula que abri­gam os "sem mente", recebendo receitas e modelos autoritarios de interpretaeao, as avaliacoes de -desenvolvimento meramente quantitativas, refletidas em Balances economico-financeiros de empresas ou do Estado, tudo se gera no circulo vicioso de pro­jeto castrador e manipulador de consciencias, gerando "leis" (en­tre aspas) que representam apenas 0 consorcio de forcas politi­cas e economicas, na manuteneao de estruturas classicas de pri­vilegios.

27 - Tudo gira em tOTOO do "ter" e, por isso, a qualificacao da pobreza associada ao "08.0 ter".

28 - Somos pobres quando "nao sornos": e 0 "nao ser", gerando a 08.0 participacao e a propria pobreza material.

A pobreza e antes de tudo politica, para posterionnente ser associada a"nio posse" de bens materiais

Ser pobre e "nlio ser ". ser pobre politicamente: e0 '~nio

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saber",ea rome de participa~o, e a nio cons~ioda "qualidade politica", e nio ser cidadio

Num mundo de "pobres", de explorados e injusticados, marginalizados e sem voz, uns poucos supostamente "magicos", detentores de solucees, proprietaries da verdade, manipuladores de opiniio, se assemelham a aves de rapina de multidOesde cons­ciencias alienadas, famintas do "ser", nas mas esquecidas da vida ..

Buscamos uma nova Ciencia, urn novo conhecimento que nasce livre de amarras quantificantes e lucrativas e que gera a cidadania do "ser", contra os horrores do "olio ter".

Nossos pobres serio outros, e 0 "nio ter" nio sera mais 0

criteriode pobreza.

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Revista Principios - Depr. Filosofia UFRN. RN; \VI. II - NQ I Junbo de 1995

DIREITOS HUMANOS E A MORAL DO RESPEITO UNIVERSAL

MARIACLARADIAS DFPAIlTAME"'I'O DE FILOSOFIA DA UPIWCNPQ

Na nossa vida cotidiana costumamos falar da atribui~ de direitos. Atos deste tipo fazem parte de nossas r~Oes sociais. Outorgamoswndireitoa alguem quando,por eKemplo, lheprome­temosalgo. Quando digo a umapessoa:"prometodevolver0 Iivro naproxima semana" •.usumo urncompromisso peraoteamama, e !he wtorgo 0 direito de exigir0 a.unprimemo doquelhefOiprometido. A partirde um tal contexto,swgem oschamadosdireitosespeciais au pessoais. Quando minha promessa oio emantida, infrinjo as regrasdestejogo, e com isto dimino, ao menostemporariamente, minha possibilidade departi~ no mesrt1O.

Direitospessoaispodem ser fortalecidosquando encontram wna expressiolegal. Neste caso, serio chamadosdireitos legais. A i~ de urn direito legal significa 0 desrespeito alei, e a eta correspondewnasan~ extema.

Ha, no entanto, direitosqueattibuimosUDS aos outros inde­pendentemente de acordospessoais e ded~ legais. Este eo casodos assimchamadosdireitosbumanos. Acercade direitos humanos costwnamosdizerque estes sao direitosatnbuidos ao ser Iumano esquantotal. Mas0 quesigni6ca dizerquepossuiIms direitos pelosimples fato de sermoshumanos?

Faz parte da nossa linguagem acerca de direitos, que uma pretensio sejaerguida e possa serjustificada.Quando se trata de urndireitopessoal, a pretensioem questio pode serverificada com recurso ao ato da promessa. Quando se trata de urndireito legal, podemosrecorrer alegi~. Mas como podemos fundamentar urndireitoque nio nos foi atribuido,oem pela promessade outro individuo, nempelalei? Partindodestaquestio, torna-seentio claro queos assimchamados direitos humanos exigem umaformadistinta

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de ~o. Apenas quando pudermos escJarecer, aquilo de que falamos quando nos atribuimos direitos humanos, sera entia passive! fundamentar urn conjunto especifico de demandas como pertencendo a tais direitos, ou seja, fundamentar direitos sociais basicos como direitos humanos.

A proposta deste artigoe fomecerurnargumento moral para 0

reconbecimenlo dos direitos sociais basicos.Paratal,pretendodefinir com baseem Tugendhat um conceito moderno de moral, a saber: a moraldo respeito universal. Em seguida, pretendo analisar 0 papel da atribu~o de direitos sociais na comunidade moral. Com isto pretendo fundamentar 0 reconhecimento dos direitos sociais b8sicos como um dever de todo aquele que queira ser recoohecido como integrante da comunidade moral e toda forma deestado que erga uma pretensio moral.

1 - A MORAL DO RESPEITO UNIVERSAL

Fundamentar um conceito de moral Dio significa apenas justifica-lo face a uma posi~ cetica ou egoista, mas sobretudo confronta-lo com concepcoes de moral concorrentes. Esta tare­fa empreende Tugendhat em seu livro Vorlesungen uberEtbik1

Meu objetivo aqui nlo sera reconstruir 0 processo de funda­ment~o da moral do respeito universal, mas procurar respon­der a duas questoes: (l) 0 que significa aceitar um conceito de moral, e mais especificamente (2) 0 que significa aceitar a moral do respeito universal.

Durante seu processo de socializacao um individuo apren­de a desempenhar uma sene de tarefas: atividades corporais (tais como andar, nadar e correr), artisticas (como por exemplo pin­tar, cantar ou tocar um instrumento) e 0 desempenho de deter­miDadas fun~ (tal como ser professor, ser pai etc.). A capaci­dade de exercitar determinadas atividades fomece ao individuo a medida de seu proprio valor. Ao fracasso no desempenho das atividades que 0 individuo considera para si fundamentais cor­responde uma perda da auto-estima manifesta pelo sentimento de vergonha.'

Entre todas as fun~s aprendidas, hi. contudo uma que desempenha urn papel central na soci~. Nela, consiste 0

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proprio aprendizado do que sejamtegraruma soci~e. Trata-se, assim, do papel de cada individuo enquanto membro de uma comunidade, ou melhor, enquantoser cooperativo. As regras que definem 0 born desempenho desta fun~io sao aquelas a que chamamos regras morais. ~ A negligencia ou infta~o de tais re­gras corresponde uma san~io interna, manifesta em primeira peSSOB pelo sentimento de vergonha moral ou culpa, em segun­da e terceira pessoas pelos sentimentos de ressentimento e in­digna~. A presenca de tais sentimentos nos fomece, assim, urn enteric para 0 reconhecimento da insercao de urn individuo na comunidade moral.

. Fundamentar uma conce~ moral especifica, significaPara Tugendbat fomecer uma defini~iio plausivel do que seja 0 born desempenho de urn individuo enquanto ser cooperativo, ou me­lhor, fomecer urn conceito de "bern" plausivel, e ao mesmo tem­po mostrar que todos as alternativas concorrentes sao menos plausiveis ou inaceitaveis.' Tal conceito Tugendhat extrai da concepcao moral kamiana, a saber, da segunda formulacao do imperative categorico: "Aja de tal maneira que a humanidade, tanto na tua pessoa, quanta na pessoa de outros, possa ser a cada momenta considerada como urn fim em si mesma, e jamais exclusivamente como urn meio'" Em outras palavras: "Niio tea­te seres humanos como simples rneio", ou ainda, "Nao instrumentalize seres humanos". Com a ajuda deste principio, sera entio definida a moral do respeito universal. Respeito sig­nifica, aqui, 0 reconhecimento de cada sec humano enquanto sujeito de direitos (Rechtssubjekt). 0 conteudo desta exigencia nada mais e do que a consideracao avontade e aos direitos de cada qual. Vma tal moral e, portanto, universale igualitaria. Suas normas 810 aquelas que, a partir da perspectiva de qualquer in­tegrante da comunidade moral, possam ser aceitas.

A decisio de aceitar ou nio uma concepcao moral e, em ultima instancia, urn ato da autonomia do individuo. Nito ha, portanto, nada que nos obrigue a isto. A constituicjo de uma consciencia moral e os sentimentos a ela associados, dependem de que 0 individuo queira ser compreendido como integrante da comunidade moral, ou seja, queira pertencer a totalidade dos individuos, cujo agir esta orientado por regras morais.

Resta, portanto, nos perguntarmos: (1) se queremos nos

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compreender enquanto integrantes de uma comunidade moral qualquer e (2) se queremos nos compreender enquanto integran­tes da comunidade moral definida pelo conceito de "bem" aqui apresentado. Tal questio deve ser compreedida como parte in­tegrante da questio que conceme aconstituicao da identidade qualitativa" de cada individuo, isto e, a pergunta pelo "0 que" e "quem" queremos ser.

A identidade de cada individuo compreende sempre algo que ja esta determinado, tal como, por exemplo, elementos de sua bist6ria pessoal ou talentos individuais, e tambem algo que depende de cada um. A identidade qualitativa e, assim, uma res­posta do individuo ao seu passado, e ao mesmo tempo a deter­~ de seu futuro. 0 individuo elege para seu futuro, aquilo que considera fundamental para sua vida e para sua identidade. Ele vivencia sua vida enquanto lograda ou feliz, quando atinge uma identidade Iograda.'

o papel do individuo na constituicaode sua identidade qua­litativa, ou seja, a responsabilidade do individuo pela parte da sua vida que cabe a ele determinar, euma caracteristica cia soci­edade modema. A sociedade modema euma sociedade de indi­viduos", ou seja, uma sociedade cujos integrantes se relacionarn entresi apenas como individuos e Dio como pertencentes a de­terminadas castas ou extratos sociais. Voltada para a caracteris­tica do individuo como ser cooperative, nao resta Ii moral mo­dema senio reconhecer todo e qualquer integrante da comuni­dade moral como igual objeto de respeito; em outras palavras, como portador de igual valor normativo. Uma moral modernae, portanto, em sua basenecessariamente universalista e igualitaria."

Uma identidade moral na sociedade modema consiste, as­sim, na identificacao com os principios de uma moral universal e igualitaria, ou seja, urna moral que atribua a todos os individuos igual valor normativo. Neste sentido, todos as tentativa comtemporaneas de restricao das nonnas morais aos individuos de uma determinada na~o ou etnia niio podem erguer qualquer pretensao moral.

Igualmente fadada ao fracasso e, no entanto, a tentativa de justificar tais restricoes com recurso a um modelo de sociedade tradicional Em sociedades tradicionais, a identidade de cada urn e detenninada pelainser~ a uma detenninada casta ou grupo social.

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A identifi~ aumamassa arnorlil. queincluaindividuos de grupos sociais, credos e profissOes diversas - identifica\oio esta inerente a todo nacionalismo - seriaoeste modelo de sociedade impensaveJ.

E, contudo, necesssrio que a identidade moral desempenhe urn papel constitutivo na identidade do individuo modemo? Nos dissemos que cada individuo elege para si, aquilo que para sua identidade e para sua vida considera fundamental. E a identida­de moral de urn individuo essencial para uma identidade ou para wna vida Jograda? Tal questio pennanece em aberto. Ate aqui, podemos apenas afirmarque uma identidade moral na sociedade moderna corresponde a uma identifi~ a principios univer­sais e igualitarios. Isto significa que qualquer individuo que reinvindica para suas ~ uma pretensio moral, precisa reco­nhecer em todos os demais um mesmo valor normativo. 0 que deste modo esta sendo excluida ea possibilidade de restri~ do imbito deapli~ das regras morais, poremnio a liberdade de carla individuo aceitar ou Dio uma posi~ moral. A assim cha­mada "carencia de sentido" moral ("lack of moral sense") per­manece como sendo uma possibilidade, e detenninando 0 limite de todo discurso moral.

Se nio elegemos para nossa identidade qualitativa 0

pertencirnento a wna comunidade moral, suprimimos a possibi­lidade de censura moral e de qualquer refer&cia a sentimentos morais, tais como: vergonha, indi~o ou culpa. Tais senti­mentos sio uma r~o da comunidade ou do proprio individuo ainfr~o de urn principio moral ao qual ambos estejam identifi­cados. Se lIio queremos nos referir ao conceito de bern kantiano, entia nossa rel~o com outros seres humanos sera apenas ins­trumental. Em outras palavras, trataremos outros individuos nio como subjetos capazes de detenninar suas proprias a¢es e fins, mas como a meros objetos do nosso proprio agir.

A identifi~ eom uma comunidade significa, em geral, fazer de seus principios nossos proprios principios. A identifiea­\oio com os principios da moral do respeito universal significa considerar cada individuo como sujeito de diretos. Se queremos que nossas proprias pretensOes sejam respeitadas, entio deve­mos eleger viver em uma sociedade, cujo principio supremo e0

respeito 80S interesses de cada urn. Se aidentidade qualitativa do individuo pertence a identifi­

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ca~o com os principios da moral do respeito universal, entia 0

respeito a todos os seres humanos sera uma condieao necessaria para que 0 individuo possa ter consciencia de urna identidade ou uma vida lograda 0 respeito ao ser humano e0 respeito a seus direitos. Os direitos atribuidos a todos os individuos sao aqueles a que chamarnos direitos humanos. 0 reconhecimento dos direi­tos humanos e, portanto, uma exigencia da moral do respeito universal, e uma regra do agir de qualquer individuo que queira ser compreendido como integrante da comunidade moral e de todo estado que erga pretensOes morais.

A sugestio de referir a moral a direitos, apresenta uma al­temativa a uma das mais significantes concepcoes morais corntemporaneas, a saber, 0 utilitarismo. 0 utilitarismo estabe­Ieee como tim 0 maior grau de satisfa~o para 0 maior montante de pessoas possivel. Quanto mais uma ~o ou uma norma ser­vir a este tim, maior sera seu valor moral. No discurso acerca da satisf~ maximanio resta, no entanto, lugar para que falemos em direitos. 0 utilitarismo e1ege como objeto, Ilio 0 individuo, mas 0 somatorio dos sentimentos detodos, Apenas em uma moral voltada para 0 individuo, e possivel respeitar cada qual em seus proprios direitos. Apenas no ceme da moral do respeito univer­sal sao outogardos direitos iguais a todos os individuos, eo ex:er­cicio dos mesmos pode ser reclamado.!"

Respeito significa, aqui, 0 reconhecimento de ca.da qual enquanto sujeito de direitos. Reconhecer alguem como porta­dor de direitos significa tomar 0 outro nio como mero objeto de nossas obrigacoes, mas reconhecer nossas proprias obrigaeoes como reflexo de seus direitos. JI Apenas no imbito de uma co­munidade moral assim definida, pode ca.da individuo reclamar seus direitos como algo independente do arbitrio dos demais.

Os direitos humanos correspondem aos principios morais, que devem fomecer a garantia de satisfa~o dascondicoes mini­mas para a realiza~o de uma vida digna. Uma vida dignaeantes de tudo uma vida em que 0 individuo possa satisfazer suas De­

cessidades basicas. Uma identidade lograda na sociedade mo­derna supOe urn sistema, no qual a satisfa~o de tais necessida­des esteja assegurada. A garantia de sati~ das necessidades . basicas de cada um; em outras palavras, 0 reconhecimento dos direitos lmmanos e uma exigencia da sociedade moral. Nosso

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proximo passo consiste na investigacao do papel desempenhado pelos direitos sociais basicos no ceme da sociedade moral

2- OS DlREITOS SOCIAlS BAsICOS E ASOCIEDADE MORAL

Vimos, anterionnente, que os direitos humanos devem sa­tisfazer as condicoes minimas necessarias a uma vida digna. Uma vida digna e, tambem, aquela na qual 0 individuo possa respeitar a si mesmo. A auto-estil1la de cada qual pertence aconsciencia de sua propria autonomia. A autonomia de urn individuo consis­te na sua independencia face ao arbitrio dos demais, e na sua possibilidade de auto-manutencao. Deste modo 0 respeito aau­tonomia de carla qual requer urn sistema, no qual cada individuo possa detenninar suas proprias ~Oes. Para que todos possarn usufruir desta liberdade a sociedade precisa garantir que todos possam ter acesso a uma formacao profissional e ao trabalho. A satisf~o de direitos sociais aparece, assim, como uma garantia da autonomia do individuo. .

Mas, se nao podemos restringir as necessidades basicas de urn ser humano asua demanda por autonornia, tampouco pode­mos restringir nossa no~o de direito humano ao direito aliber­dade, e fundamentar os assim chamados direitos sociais como uma garantia da mesma. Quando 0 reconhecimento dos direitos hwnanos se limita ao reconhecimento do direito a liberdade, e eliminada toda e qualquer possibilidade de exigirmos respeito tambem por aqueles que ja, ou ainda nio podem dispor de auto­nomia, ou jamais poderio. Entre estes, encontramos pessoas idosas, criancas e deficientes fisicos ou mentais. Nos casosem que constatamos a ausencia de autonomia, ou seja, em que a pessoa Dio e capaz de prover seu proprio sustento, a garantia de uma vida digna podera exigir muito mais da sociedade. No en­tanto, este nio pode ser urn argumento a favor da limitacao dos direitos humanos a liberdade, mas sim uma indicacao de que a carencia de autonomia deve ser suprida atraves do reconhecimento de outros direitos.

Quando elegemos como ponto de partida a moral do res­

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peito universal. entio nos comprometemos considerar todo ser humano como objeto de respeito. 0 respeito a cada sec humano sUpOe 0 reconhecimentode suas necessidades basicas. Somente a .atribui~io de direitos sociais pode garantir a satis~ de tais necessidadese, por conseguinte, fornecer a todos os individuos as condicees minimas para a realizacao de uma vida digna. Por direitos sociais basicos devemos, portanto, compreender tanto os direitos relacionados a edacacao, forma~o profissional, tra­baIho etc.como0 direitoa alimenta~o, moradia, assistencia medica e a tudo aquilo,que no decorrer do tempo, puder ser reconhecido como parte integrante da nossa concepeaode vidadigna. Este e0

caso nos uItimos anos dos direitos que concememademandapor urnmeioambiente saudil.vel.

Mas, como podemos mostrar que tais elementosdevam sec reconhecidos como urn direito de todos? Para responder a esta questao, pretendo agora analisar0 argumento de Shue para fun­damentacao dos direitos basicos do individuo.?

. Direitos basicos sio, de acordo com Shue, aqueles que ne­cessitamser satisfeitos, a fimde que qualquer outro direito pos­sa ser reclamadoou exercido. Seguranca, subsistenciae liberda­de de participacao e movimento sao, segundo ele, direitos basi­cos no sentido acima. Na ausencia de tais direitos, a atribui~ de qualquer outro direito se toma vazia. Quem nio dispOe dos direitos basicos, oio se encontra em condicoesde usufiuir dos demais direitos que the venham a ser conferidos.

A estrutura do argumento para fundamentar 0 carater ne­cessario dos direitos basicos e apresentada nos seguintes ter­mos:

"1. Everyone has a right to something 2. Some other things are necessary for enjoying the first

thing as a right, whatever the first thingis. 3. Therefore, everyone also has rights to the other things

that are necessary for enjoying the first as a right." Para que possamos aplicar tal argumento para a fundamen­

tacao dos direitos sociais basicos sio, contudo, necessaries al­guns esclarecimentos. Como devemos compreender a premissa de que carla individuo possua urndireitoa algo? Suponhamos que estejamostratando de urndireito qualquer. Ora, a paJavra direito nio eutilizadaapenas comreferencia a direitos moras, senio tan'Jbem

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comreferencia aoschamados direitos pessoaisedireitos legais. Seria razoavel supor que 0 reconhecimento dos direitosbasicos de um indiviWo sejauma~ paraquepossamosIheatribJirurndirei.to pessoa1?

A primeira vista nossa resposta pareceser claramente ne­gativa. Urndireito pessoal pode assumir a estrotura de uma pro­messa. Quando digo a alguem: "Eu the prometo estar aqui na tarde do dia 23." Assurnouma obrig~o perante este individuo de comparecer no dia determinado. Neste sentido lheoutorgo 0

direito de reclamar a promessa realizada. Ate aqui, ainda Dio podemos contudo falar, quer do surgimento de urndireito legal, quer moral.Uma promessa pode ser a base de uma sene de acor­dos compreendidos como completarnente amorais. Tomemos como exemplo uma organiza~io como a m8fia. Aqui, 0 ate da promessa exerce urn papel fundamental, independentementede quaquer prernissamoral. Oeste modo podemos dizer que 0 que realmente esta em questio do e 0 simples fato de que 0 indivi­duo possua um direito, mas simas razOes pelas quais seus direi­tos sao respeitados. Podemos respeitar umapromessa, tanto por respeito a outra pessoa, como por temor a san~s extemas. Porem, apenas no primeiro caso podemos falar de urna razio moral. No segundo, trata-se bern maisde uma mera rel~o de poder

Direitos basicos sao direitos morais, e neste sentido eles supOem wna comunidade moral. Apenas no cerne de uma co­munidade moral, cada individuo deve ser tornado como objeto do respeito de todos. 0 respeito apessoa alheiasignifica 0 reco­nhecimento de suas pretensoes. Nos respeitamos alguem como sujeito de direitos, quando nos compreendemoscomo integran­tes de uma comunidade moral. Reconhecemos os direitos basi­cos de urn individuo como uma garantia, para 0 exercicio de seus demais direitos, quando respeitamos seus direitos por ra­zOes morais, ou seja, quando respeitamos cada individuocomo urnsujeito de direitos.Oeste modo a premissa de que todos os individuos possuem direitos deve sercompreendida DOS seguin­tes termos: cada individuo,enquanto integrante da comunidade moral. possui direitos- Apenas sobaperspect.iva damoral do respeito universal, podemos agora apontarpara asati~ dedireitos sociais basicos,direitoa subsistencia, como uma condi~ minima para 0

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exerciciodos demaisdireitos, sejamestes moraisou nio. De acordo com Shue umavida saudavele ativa eumacondi­

~o necessaria paraqueurnindividuo possa usufiuirde seus direito. A garantia de condicoes minimas de subsistenciaeuma condi~o

minimapara uma vida saudavel e ativa. A rea1iza~ de qualquer direitosupOe, portanto,a garantia de taiscondi~. A esta garantia corresponde os aquicharnadosdireitos sociaisbasieos.

oargumento para0 reconhecimento dosdireitos sociaisb8sicos pode ser, portanto,resumido nosseguintestermos:

I. Todos os integrantes dasociedade moral possuem direi­

2. 0 exercicio de tais direitos supOe uma vida saudavel e ativa.

3. A garantia de condicoes minimasde subsistencia elima condi~ minima para uma vida saudavel e ativa.

4. A garantia de condi~s minimasde subsistencia e, por­tando, desde sempre ja pressuposta, quando os integrantes da sociedade moral se outorgam direitos. A atribuieao de direitos sociais basicos e, assim, um principio fundamental da sociedade moral.

A satisfa~o das necessidades basicas de urn individuo e uma condi~ necessaria para a auto-estirna do individuo, para seu respeito pelos demais e pelo respeito aos principioscia soci­edade. Enquanto suas proprias necessidades basicas nIo sAo res­peitadas, nio e razoavel esperar que 0 individuo se identifique as normas dasociedade. 0 atribui~ de direitos sociais basicos e, assim,uma condi~o minima para que 0 individuopossa reco­nhecer nas normas da sociedade 0 respeito por sua propria pes­soa.Umacondi~ minima, portanto, para que0 individuoqueira se comprendercomointegrantedaconmnidademoral.

3. TREs ARGUMENTOS CONTRA 0 RECONHECIMENTO DOS DIREITOS SOQAIS BAslCOS

Nos vimos, ate aqui, que 0 reconhecimento dosdireitossociais

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e,~ exiienciada conn.ridademral. 'A garantiade 1DDexistencial minimo e uma condicao minima para que 0 individuo possa reconhecer nos principios dasociedade 0 respeito por suaspr6prias pretensoes. Este mesmo respeito epara 0 individuo nio apenas wna condi~parasuaauto-estima, mastam1:>em para seu respeito pelas normas cia sociedade e por seus integrantes. Com base nesta analise, pretendo agora procurar responder a tres objecoes "standard" contra 0 reconhecimento dedireitos sociais.

A primeira obje-;ao apoia-se na tese de que apenas direitos negativos podem ser reclamados como direitos universais: Di­reitos sociais incluem custos. Neste sentido dependem da rique­za de cada ~o, e como tal nio podem ser encarados como universais.

Contra este argumento podemos mostrar que todos os di­reitos conferidos face ao estado incluem custos, ou seja, correspondem a uma obri~aopositiva, ou melhor, supOem uma performance por parte do estado. Neste sentido, nio ha direitos purarnente negativos.

A tradi~ liberal aponta como direitos negativos 0 direito aliberdade e 0 direito aseguranca. Liberdade, no sentido liberal estrito, eentendida como a possibilidade de cada qual agir con­forme sua propria vontade e determinar suas ~s, independen­te de qualquer intervencao do estado. Se tomarmos agora a no­~io de liberdade contida na propria defini~ liberal, isto e, li­berdade como a possibilidade de carla individuo determinar suas proprias ~s, podemos entio mostrar que este direito de Iiber­dade sO pode ser usufiuido por todos, quando 0 estado ecapaz de fomecer condi¢es que pennitam as classes menos favorecidas urn minirno de independencia economica e social. Sem que, por­tanto, 0 estado desempenhe um papel ativo na sociedade, 0 di­reito a liberdade, entendido no seu senrido mais geral, jamais podera ser usufruido como um direito universal. e nao passara de urn privilegio de poucos.

Quanto ao direito desegnranea, ef3cil mostrar que a garantia da seguranea do individuo exige uma sene de medidas, cujo custo pode, certamente, ser comparado ao custo implicado pelos direitos sociais basicos. Entre os custos do direito aseguranea, devem ser contabilizados os gastos com todo 0 sistema penitenciario, com as

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forcasarmadasetc. Podemos,portanto,concluirque nemmesmo os direitos aliberdade e aseguranca estio isentos de custos e de qualquer perfonnance do estado.

A distincao tradicional entre direitos negativos (Abwehrrechte) e direitos positivos (Leistungsrechte) perde 0

sentido, quando pensamos nos deveres que estio associados Ii concessio de direitos morais. Quando reconhecemos como ta­refa do estado 0 dever de proteger cada individuos, entia nio seria igualmente razoilvel que Ihe atribuissemos 0 dever de for­necer a cada individuo a ajuda necessaria, para que este possa usufruir de seus direitos? Em que sentido podemos, aqui, real­mente separar a tarefa de prot~o e 0 dever de prestar ajuda ao individuo? 0 reconhecimento de urn direito motaI supOe, Dio apenas que 0 estado deva proteger este direito do individuo face 80S demais, masainda que deva fomecer ao individuo condi~Oes

para 0 exercicio do mesmo. E isto significa, tambem, 0 dever de prestar socorro quando necessario.

VIDlOS que a questio dos direitos morais deve ser decidida a partir da perspectiva do sujeito. De acordo com esta perspec­tiva, a demanda pela ajuda pode, ate mesmo,anteceder todas as demais. 0 dever do estado de proteger cada individuo, sO faz sentido para aqueles que se encontram em condicoes de usufruir deste mesmo direito. Ha, contudo, casos em que a ajuda do es­tado euma condi~ para que urn direito possa ser exercido. Urn exemplo de uma situa~deste tipo, jil foi mencionado quan­do tratamos 0 caso especifico do direito aIiberdade. Podemos, agora, apresentar urn caso emque esta ajuda pode servista como uma condi~o necessaria para que quaJquer direito possa vir a ser exercido, ou seja, a situa~ das criancas. Quando crianca, os seres humanos demandam ajuda constante. Sem esta ajuda, jamais viriam a se tomar seres capazes de,determinersuas pro­prias ~, e nem sequer sobreviveriam. E urn dever do estado e da sociedade, como urn todo, garantir acada crianca a satisfa­~ de suas necessidades bilsicas, ou melhor, uma forma de vida digna. Por conseguinte, wnaperspectiva da questio do direito que Dio satisfilca a demanda por ajuda, nio podeestar em consonancia com a atribui~ de direitos iguais e universais.

Cabe, no entanto, perguntar se esta atribuicao de deveres morais 80 estado seja realrnente desejilvel. A esta questao, pode­

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mos apenas responder com uma nova pergunta, a saber: 0 que pode significar possuirumdireito moral, se nio dispusermos deuma inst8ncia, a partir daqualtal direito possaser reclamado? Que papel poderia, ainda, ter 0 estado na sociedade moral, senio pudessemos atribuir-lhe a garantiade ROSSOS direitos:fimdamentais?

Quando 0 individuoergue pretensio a direitos morais, Rio pretende apenas que os demaistomem seus direitos emconside­r~io, masainda que se sintam coletivamente obrigados a pro­teger tais direitos. Ele pretende, portanto, que a seus direitos morais correspondam direitos legais. Oeste modo, 0 reconheci­mento de direitos universaise associado a uma obrig~ moral coletiva de constitu~io de uma instincia legal. Tal instincia e 0

estado. A tarefa do estado seve,assim, definidapela comunida­de moral e associada 80S direitos basicos de cada qual.

o segundo argumento contra os direitos sociais defende que a satisfa~o de tais direitos seria responsavel por uma ex­plosao demogrilfica de tal ordem, que no futuro faltaria alimen­to, moradia, trabalho etc. ate mesmo para os que hoje dispOem de tudo isto. Ou seja: a garantia de urn minimo existeneial para todos, h9je, significaria a ausencia deste minimo paranos mes­mos no futuro. Este eo cerne dos assim chamados "Lifeboat"­Arguments.

Com respeito a tal argumento, podemos antes de tudo re­plicar que este parta da falsa premissa de que direi.tos sociais e controle populacional sio incompativei.s. Contra isto, podemos apontar para 0 faro de que exatamente nos paises em que 0 pa­drao de vida da popul~o emais eievado, constatamos os me­nores indicesde natalidade. Somente quando uma popul~o ja dispoe de condi~es s6cio-economicas minimas, epossivei urn controle racionalda natalidade. A concessio de uma alta taxa de mortalidade como mecanismo de controle populacional, onde urn controle da natalidade epossivel, seria desnecessaria e in­concebivel. A farnosa metafora do "barco saIva-vidas" e, por conseguinte, desapropriada, poisoeste case 0 queesta em questio esta longede ser uma decisio entre salvara propriavidaou a vida de outros. Nio h8., aqui,um dilemamoral,massima acei~io de uma premissa elamesmaabsurda.

Em segundo Iugar0 argumemo de que outras pessoas de­vernser privadasde algo que Iheseessencial, para que aquilo de

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queestao sendo privadas, nio nosfidte no futuro, niio eumargmnento moral, mas sim urn argumento egoista Tal argume~ se torna insustenUivel, quando assumimos uma perspectiva imparcial. Uma tal posi~o nao pode, portanto, erguerqualquer pretensao moral.

A terceiratentativa de recusa do reconhecimento dos direitos sociais, enquanto direitos humanos, a1ega que a sati~o universal de direitos sociais basicos, pode vir a piorar 0 padrio de vida de muitos, e ate mesmo dasociedade como urn todo. Ou SE!ia: a garantia de urn minimo para todos pode levar ao empobrecimento da sociedade. Agora Dio esta sendo questionado que a garantia deste minimo seja desejavel, mas sim que seja razoavel reconhecer algo como urn direito hurnano, que possa ter urn preco tio alto para a sociedade. Se todos os individuos possuirem 0 direito awn minimo, e puderem reclamar tal direito, alguns terao que pagar pelo direito de outros. Podemos supor que isto seja desejlivel?

E desejavel quando desejamos viver em uma sociedade, na qual todos os seres hurnanos possuam igual valor nonnativo, por conseguinte igual pretensao asatisf~o de suas necessida­des basicas, 0 reconhecimento de urn existencial minimo como urn direito de todos e, portanto, urn dever todo integrante da comunidade moral e de todo estado que erga para suas a¢es e leis uma pretensio moral.

Todo principio de distribuicao, que erga uma pretensao moral, deve, portanto, partir da garantia de urn existencial mini­mo. Caso contrario, nso passara de uma mera fic~, ou perdera seu fundamento moral. Uma distribuicao igualitaria e - como mostra Tugendhat - a distribui~o justa, quando nio hi argu­mentos em contrario. Para que se possa colocar em questao a distribuicao igualitaria dos direitos basicos e, portanto, necessa­rio justificar, por que alguns seres humanos devem ser conside­rados como possuindo urn valor normativo maior do que os demais.Eprecise, por exemplo, justificar como atributos, taiscomo cor de pete, sexo ou pertinencia a urn determinado grupo social, possam possuir consequencias nonnativas, em outras palavras, possam determinar 0 valor moral de urn individuo. Quando Dio h3 raz.Oes que permitam hierarquizara seres humanos a priori, entio epreciso conceder que ao menos os direitos basicos devam ser distribuidos de forma igualitaria.

o reconhecimento dos direitos basicos do homem.. ou seja,

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dos direitos humanos representa, portanto, a gaJ1Imia de uma ~

minima de~ queantecede qualquer possivel ~ entre os individuos. Apenas quando os direitos basicos de cada qual estio satisfeitos, podemos conceder- semincorrer em~ - uma distribui~ secundarianio igualit3ria. Umataldistribui~ podera, emio,levar emcomaasdiferen,.:;as constatadasentreas necessidades pessoais, talentos e os direitos adquiridos de cada qual. Uma distribui~ secundaria Rio igualitaria, looge de COIlt11Idizer umatal ~ minima de justica, sent uma consequeecia de sua propria apli~io. Apenas quando todos os individuos sio igualplente respeitados enquanto portadores de direitos, podemos tambem considerar carla qual de acordo com suas proprias necessidades, meritose em sellS direitos pessoais. . .

Paracondrir, eprecisolembraique 0 reconhecimento dealgo comourndireitode todos, ou sqa, comown direitohurnano, SllpOe um ponto de partida moral. Apenas aqueles que aceitam uma concepcao mora] estio, portanto, comprometidos com 0

reconhecimento de direitos iguais e universais. Oeste modo, eesta­belecido 0 sucesso eo limite de qualquer argumento a favor dos direitos sociais basicos; por conseguinte, sucesso e limite da tarefa aqui proposta.

REFERENCIAS BffiLIOGRAFICAS

1 E. Tugendhat, VorleSllngen iibeTEtmk, citado a partir do ma­msalto. .

2 ~ Idem, ibidem, cap.3.

3 VerIdem, ibidem, cap 3.

4 Ver Idem, ibidem, cap.5.

5 I. Kant, G",lItllegllngDlr Metophysik der Sittell, Werke, pp.61.(Traducao prOpria)

6 \b"E. Tugeodhat. "Identidad: Personal, nacional y universal",pp.8,

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citado apartirdo nwwscrito.

7 VerIdem, ibidem,pp.13.

8 VerIdem, ibidem,pp.14.

9 VerE. Tugendhat, VorIes",.gen.beT Ethik. cap. IO.

lOVer Idem, ibidem,cap.17.

II VerIdem, ibidem,cap.17.

12H. Shue, Btuic RighLY, Princeton 1980.

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Rcvista Principios - Dept~. Filosofia UFRN, RN, \bl. II - N!! I Junhode 1995

NIETZSCHE E A LITERATURA*

MARIAHElENAUSBOADACUNHA·· DEPARTAME:-rrO DE FIWSOfJA DA UERI

Nietzscheeurnfilosofo intimamentearticu1ado aLiteratura. Cabe-nos perguntar por que? E podemos responder apergunta feitacommargemem seuspr6priosescritos. Nietzschese refere a eles,empregandofreqtientemente nasuacorrespondeneiaa ex:pres­sao: "minhaliteratura".

Podemos,tarnbem, pergentar-nos 0 que verna ser Iiteratura, e entao, temos duasobservacoesa fazer:

1°)Ate 0 tim do sec. xvm, literaturasignificava"culturage­raI" ou 0 queos franceses chamariam de "connaissance des belles­lettres".

2°) A partir dai, literatura passa a significar 0 conjunto das produ~oes liter3rias de uma epoca, de um pais, etc ..., articulado a evo~ sociol6gica do estatuto do escritor, institui~ que, no do­minio estetico, tern porcorolarioa ~aescente daorigina­lidade, por conseguintepassa a ter peso0 estilodo autor, isto e, sua autenticidade.

Ora, sabemos que Nietzsche quer resgatar a cultura grega, desde a sua obra, A Filosofiana Idade TrAAica dos Gregos. Refe­rindo-seaIiteraturagrega, ele distingue duas epocas: a dUsica, definidapela ausencia de tradi~io literaria e p6s-dUsica que, ao contrario, nascee vivedessa tradi~.PIatio se situana linha divi­soria entre as duas, e nio eatoa que, segundo Nietzsche, no que dizrespeitoaos seusescritos, se estes se tivessem perdido e a Filo­sofiativessecomeeadopor Arist6teles, por exemplo, Dio sO esse fato seria de se lastimar mas, 0 que seria ainda pior, n6s jarnais teriamos tidoconhecimento desse homemnotavel daantiguidade quefoi0 fil6sofo-artista. PJatio, no seuentend« era, alentde nota­vel escritor, 0 homem politico por excelencia, 0

•• Professor Adjunto c Chcfc do Departamento de I'ilosofia da tiER] • T"OpoIis, ~em uma noite de loa cheia na 1IUI1a", julho de 1994.

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legislador ao lado de Solon e Clistenes, aquele cuja expressividade e drarnaticidade das ideias encenadas conduziram e intluenciaram a juventude ateniense

Acontece que e exatarnente a epoca classica, isenta de tra­di~io literaria, visceralmente unida ao culto e ao mito que inte­ressa a Nietzsche resgatar porque diz respeito aepoca tragica, aos pre-socraticos e aos escritores tragicos a exemplo de Heraclito, Empedocles, Anaximandro, Esquilo, Sofocles, Euripides, apesar das res salvas, bern como dos poetas Homero e Pindaro. A fun~o da literatura aqui era de comunhjn, de coe­sio orginica, sustentando a permanencia de toda uma civiliza­~. Por isso, ele afirma,

nada lui de mais absurdo do que atnbuir aos Gre­gos uma cultura autoctone; pelo contrano, assi­milaram a cultura viva de todos os outrospovos e, se chegaram tao longe, fo; porque souberam con­tinuar a arremessar a lanca onde um outro povo a tinha deixado. sao odmiraveis no arte de apren­der dando frutos; e deveriamos, como eles. apren­der com os vizinhos a utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e niio para 0

conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para 0 alto e mais alto ainda do que 0 vizi­nho. (I)

Sabemos que 0 mito, bern como toda vivencia nutre-se da ambiguidade por ser imagistico (ideolOgico, pois desdobra a re­alidade em imagens, desejos, afetos e desafetos) e, portanto, assimila a simultaneidade no interior de seu sistema, 0 que tam­bernacontece apalavra nos primordios da civilizacao grega. No mito os contrarios 030 sao contraditOrios mas sim, complemen­tares, perfazendo uma logica da ambiguidade. 0 Estatuto da palavra, na Grecia, tera que percorrer urn longo caminho, seme­ado de obstaculos para chegar de urn lado com Simonides de Ceos e Pindaro (poetas), de outro com Platio e Aristoteles(fi­16s0fos), atravessando toda a sofistica comProtagorasde Abdera e Gorgias de Leontinos a tim .de nos legar a palavra laica, profa­na,persuasiva nosdebatesda Agora e 0 discurso filosofico, lOgico,

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nasAcademias. Em decorrercia do acima exposto verificamos que a fonte do

discurso verdadeiro, naGreeia ea mesma fonte do falso. 0 lOps, disaJrso, medida, ordem,simetria, harmonia, proporcso, linguagem que etimologicamente deriva de Legein, colher, recolher, ato de guardar 0 produto da colheita, era uma tarefa dos poetas que contavam a histOria dos her6is e os mitos, tarefa sagrada, inspirada pelas 1DUSaS. TaIIl1>em na indiaa verdadee RTA, palavrade origem indo-ariana, mas que tambem eoracao liturgica, a potencia que assegura a ordem cosmica, 0 direito ea lei.

A Filosofia, porem, esquece esse percurso que sO vai ser reencontrado com Nietzsche na arte tragica, pela articul~ dos dois instintos esteticos, 0 Apolineo e 0 Dionisiaco, nurn primei­ro momento, com Heidegger recuperando 0 mito e 0 poetico, conforme cita: "0 homem habita em poeta", num segundo mo­mento e, contemporarieamente com Deleuze, num terceiro mo­mento, no plano dos afetos. Segundo Deleuze .... grande ea distlincia entre 0 logos e a simples razio (como quando se diz que 0 mundo eracional).: A razio eurn conceito, e urn conceito bern pobre paradefinir 0 plano (de imanencia) e os movimentos infinitos que 0 percorrem" (2). Nio podemos deixar de aludir a Sartre e a M. Ponty, herdeiros de Heidegger, com a dimensao intersubjetiva e a coI~ do problemado "outre". Trata-se depensara realidade com a consciencia de que esse pensar nio etecnico oem cientifico, massim urn esfor~ de compartilhar do rnisterio. Ora, 0 misterio,0

numinoso, conforme 0 termo cunhado porRudolfo Otto que deriva de mimen palavra latina cuja etimologia edivindade, ea dimensio propriaapoesia, aosor8culos, ao elernento TeWgico por excelencia

Reiteramos que pensar Dio eunificar, esquematizar, tomar familiar a aparencia sob a face de urn grande principio de acordo com urna certa tendencia filosofica racionalista, mas fazer de cada ideia, de cada imagem, amaneira de Proust, urn KtJiTos, urn lugar privilegiado, Unico, indizivel, urn momento oportuno, fala tambem sedutora dos sofistas, produtores de ilusoes, de inter­pretacoes, das ambiguidadesda palavra .

Urn exemplo tirado da literatura grega, Esquilo no caso, nos revela a utiliza~o de metaforas paradoxais e ambiguas em sua obra, como a palavra "rede" que tanto pode designar uma armadilha para a pesca quanto para acaca. Uma estimativa feita

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III

por especialistasda area (A. Moreau entre outros), nos indicaque naobra deEsquilo paJavrascom duplosentido sao uti1i7Jldas D vezes maisque na obra de Sofocles e na de Euripides. Este Wtimo.com razio, nio privilegia a ambivalencia por se enquadrar no desenvolvimento da verteate racionalista que comeca jei com .Partnenides 110VI sec. a.C., desenvolve-se comPlataoe Aristoteles no IV sec. a.Ci. lancando as bases do racionalismoOeidemal, via Descartes e A. Comte,confonne 0 conhecemos nos mas de hoje. As palavras arklls e brokhos, por exemplo, que nio sio ambivalentes, pertencentes ao vocabulario da caca sio utilizadas por Esquilo trese duas vezes, respectivamente; a palavraDiktMOII

ambivalente e utilizada oito vezes enquanto Euripedes utiliza as primeirasoito e teesvezes, respectivamente, e a 2-, tres vezes. 0 que seconcluidesses dados, munaanilisecomparativa, eque&quito, poeta, privilegiaa ambigOidade por caracterizar a interpenet~o dos planoscosmico (onto16gico)e terrestre (ontico) pennitindo a confusio dos mesmos, uma transgressio na ordem do Universe (hybris) que a subverte, e assim fazendo resgata0 caos originiuio, a exemplo de Hesiodo ("no inicio era 0 KilOS ...", A Teogonia), fundamento rnetafisico de todaa sua obra.

Lembramosque, confonne testemunho bist6rico,os sofistas (Sopltistis), professores na Grecia arcaica tambem eram poetas, wna Vel que. segundoos gregos, a ~o pnlticae os conselhos morais constituiam a fun~ principal dos poetas, a exemplo de SOlon. Hesiodo, Parmenides de Eleia, Empedocles deAgrigento, Alcmeonde Crotona, Ion de Cbios, Melissose outros mais. Uma cit~o deEsquilo, poeta tragico, pode ser esclarecedora a esse respeito. Diz 0 autor que a hist6ria de Fedra, por ser moralmente perniciosa, talcomoacontaEwipidesnatragectiaHip6lito niodeveria ser apresentada em cena, uma vez que "do mesmo modo que os aluoos tern professores para Ihesindicar0 caminho,os poetas sio os professoresdos homens". (3) Logo, os sofistas eramos herdeiros da tradi~io pedagogica dos poetas que comecou no sec IX com Homero na Hiada e na OdiSsaa. Temosnoticiade que tambemem uma Ode de Pindaro a palavra"Soplaistes" significava poeta.

No eotanto, a partirdo V sec.,umaonda deestrangeirt>s chega 8 Atenascom a pretensio deensinar aAred (virtude), palavrade multiples sentidos, "lato e stricto sensu". opondo-se mesmo aos poetas, amedidaque a fiJn~i() didatica de ensinar a retorica, as

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ll2

rnatem8ticas, 0 estudoda lingua, 0 estatutodas leise dosprincipios morais, a ideiade contrato social, 0 ateismo e 0 agnosticismo, 0

hedonismoe 0 utilitarismo, substituiua propria poesia. A Ame tomadaemseu sentidolato significava a perfeicsohumana,aquilo que fazia de urn homemum dirigentenaturalna sua comunidadee por issopensava-se quese apoiava emcertos donsnaturais e mesmo divines que eram a marca do born nascimentoe da boa educacao. Umaquestio delinhagem, diriamos. Stricto sensu,seriaa virtude politica, constituidapela Oratoria, retorica, 0 estudo da lingua eo das leis, etc...., isto e, por discipJinas passiveis deseremensinadas. Esse 0 metierdos sofistas.

Esses sofistas, convem assina1ar, mestres de urn saber a comunicar,cujo saber pratico consistiatanto no dominioda con­duta e da politica quanta no das artes tecnicas, embora tenham mantido a ambiguidade da palavra propria ao mito e Ii poesia, a tornam profana, uma vez que agora eJa vai servir a fins utilitari­os e praticos nos debates da Agora. Todavia, ainda segundo urn testemunho de Esquilo, a verdadeira Sophia (sabedoria) nlo pertencia aos homens que conheciammuitas coisas mas aqueles cujo saber e util. Desse modo, podemos classificar os sofistas de Sophos,s3bios, e Dioe por outro motivoque, na modemidade, filosofos e historiadores da Filosofia como Theodor Gornperz, Lass e 0 proprio Nietzsche os exaltaram contra aqueles que os queriam denegrir por seu mercenarismo e farisaismo.

Acontece, porem, que a ambiguidade nlo esta sornente no discurso dos sofistas, mas no real, na emergenciadaPIIjsis, da espontaneidade da linguagem. Na Grecia, diz 0 Prof Gerd Bomheim,ate a palavrado filosofoeraPIIjsis e eornplernenta, "0 homemcomo que vive entre a justica e a injusti~a, entre 0 ser e a aparencia. E a evolucao do tragico consiste na des-roberta da aparencia e na conseqtienteconquistado ser".(4)

Sobre 0 esquematismo ironiza Nietzsche, "nao conhecer mas esquematizar, impor ao caos tanta regularidade e forma quanto satisfaca a nossa necessidade pratica". (5)

o problema que aqui se vai delineando e0 da eritica que Nietzsche fazdaci&cia,daracionalidade e,consequentemente, do conceitode verdade. Para ele, trata-se menosde estabeleceruma certa verdade, no sentido cartesiano, ideia clara e distinta, que de possibilitar Iiciviliza~ urn fermento portadorda possibilidades de

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uma novaordem em que e1a possa enconttar sw Iugar de comunhio. Os textos para esse intento silo, A origem do tragedia, ConsiderOfOesImempestivas, Humanodemasiodo humano, Gaia ciencia e 0 Zarathustra, onde afirma, "aquele que escreve com seu sangue e em sentencas, oao quer ser lido mas aprendido pelo coracao. Sua escrita eurn meio de ~ao e primeiramente ~o sobre simesmo, ~ modeJadora do caosinterior, rnedida eharmonia apolinea sobre a desmedida dionisiaca sempre ameacadora. Enesse sentido que pode ser compreendido 0 aforisma que aqui se segue:

A grandeza de um artista nao se mede pelos "bons sentimemos" que ele provoca, mas pelo "grande estilo", na capacidade de se tornar mestre do caos "que se tem em st mesmo ", no fato de forcar seu proprio caos a tornar-se forma; tornar-se logico, simples, sem equivoco, matematico, tomar lei, e neste particular. a grande ambicdo. (6)

POT isso, justamente assim se expressa Gianni Vattimo no VD Coloquio Intemacional de Fitosofia, realizado em julho de 1964 em Royaumont:

opensamento de Nietzsche niio se preocupa com a evidencia como informllfiio, mas com uma outra concept;iio da verdade. Ele /liio pode ter provas no sentido da evidencia, e ele niiopodemesmo ter uma Escola no sentido do desenvolvimemo de qualquer coisa estabelecida. Mas ele pode ter ,.epeti,6es, resposttu. toque diz Heidegger. Objetam-nos a Filosofia concebida como discurso racionaJ e como prova. Mas 0 pensamento niio tem um outro senti­do? Ecorreto empregar a 1000capara colocar um talproblema e para 0 resolver? Se nos cremos que o principia do prova, ou da demonstra¢o eindis­cutivel, ja estamos pre-concebidos... (7)

A presente ci~ faz ~ ao conhecido posicionamento de Nietzsche com re~ aos conceitos. Para 0 autor, os conceitos nio podem medic e avaliar a realidade, a vida, mas serem, pelo

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contrario, corrigidos e reavaliados pela rea1idade de onde foram tirades. Temos como exemplo 0 conceito folha (A venJade e a memirano sentidoExtra-Mora!), abstraido das milharesde folhas existentesnareaJidade, o qual por ser geral e universal, esquece as difere~ e particularidades da existencia: a folhado coqueiroque se diferenciada folha de parreira,que por sua vez se diferenciada folha de bananeira, do abacaxizei.ro, da macieira, da laranjeira,e por aivai.

Podemos afinnar que a Filosofia desabrochou (Pltysis vern do Playeill e PiryestIuU que quer dizer desbrochar, erescer, brotar, nascer) dentro de poemas ou de prosas embebidas de imagens poeticas e, por isso mesmo, traz em suas raizes 0 compromisso inadiavel com a ~io artistica,no caso que nos referimos, coma literatura,EmcOOsequ&1cia, podemoscotejarFilosofiae Arte como duas instincias irrnanadaspeJo nascimentocomum masseparadas pelo destino: uma sensivel, outra conceitual, cada qual. de acordo com a belametsfora de Heidegger, erguendo-se ernsua exclusiva altitude, masligadasna base pelo vale que justamente as separa e toma impossivel a fusio.

Todavia, em urnmundolaico,cujapalavraangariou 0 estatuto de mercadoria, de signo utilitario, onde a literatura, tendo-se desvinculado do mitoe do cuho, torna-se depositaria dos valores consumistas, estando ja submetida ao individualismoda cultura burguesa, a exemplo dos 0 A/quimista. Brida e As Va/quiria~de PauloCoelho, ou depositiuia de receitas nipidasde consumo~

tipo Amarpode dar certo. Ame e de vexame, Sem tesiionliohiJ solw;iJo, Vivendo, amando eaprendendo, de Roberto Shinyashiki e Eliana Dwna, RobertoFreiree Leo Buscagl.ia, respectivamente; a serie de livros de Lobsang Rampa, diwlgando rasteiramente 0

pensamentoorientale assim0 dilapidando; ou mesmoa enxurrada de autobiografias de personaIidadecelebres. como'ade JaneFonda, LivUImamm. ShirleyMacLaine; no Brasil,0 rneJhor exemplo eo de Danusa Leao e suas receitas rapidas e caseiras ate para viagens! Toma-seimperioso, portanto, questionannos0 sentidoda literatura e para quem temela sentido.

Nessemomento, Nietzsche vernabailawna vezqueeleprOprio fazia severas criticas ao leitor e ao consurnidor de arte. Vale lembrarrnos aobservacao: Que estarnosconsmnindo, erntermosde

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arte? Que.e Arte? Que queremos ou que podemos com ela? Este dilenia Nietzschetambem 0 experimentoo em re~ com Wagner, primeiro na glorifi~, depois Do desprezo, na marginaliza~ da mUsica Wagnaiana. Lembremos wnadas IWitas~a respeito:

- '. , '

como 0 nosso gosto se a/aSIOU de toda essa mtrigalhada romdntica, dessa argamassade semi­dos em que se compraz a plebe da inteligencia. e do suaamOlgamadeavpirtH;iies ao sublime, an ele­vodo, ao retorcido! Niio, se ainda precisamos de uma arte, ela epara nos. convalescentes uma ou­tra arte, umaarte trocista. Ieve.fluida; divinamen­te livre e divinameme artificial, quejorracom uma chama clara no meio de um ce» sem nuvens. E anteS de iTiais: uma arte para os artistes; so para os artistas! (8)

Nietzsche nos lembra de que e por meio da cria~io que podemos transfonnar a realidade, uma vez que "somente en­quanto fenomeno estetico eque a existencia e 0 mundo eterna­mente se justificam". (9) Acri~io tern por essencia, a capaci­dade de criar roupagens, veus, artificios, sortilegios, aparencias, mascaras, aniquilandoo que se chama ordinariamente realid... de, apesar'dessa rnesma realidade se ter criado a partir das mes­mas roupagens, das mesmas mascaras, tudo isso que, "a forca de ser acreditado,de se transmitir, de se fortifica.r em cads nova gera~ao, acabou por se identificar com as pr6prias coisas, aca­bou por formaio seu corpo; a aparencia primitiva acaba sempre por se tornara esseneia e fazer 0 efeito da essencia!"(lO)..

Vale lembrarmos, a esse respeito, 0 conceito de cria~o a queserefute 0 grande poeta austriaco Rainer Maria Rilke:

A ideia de ser criador, de gerar; de moldar niio e nada sem sua grande e perpetua confirmDfiio no vida; nada sem 0 consenso mil vezes repetido das coisas e dos animais. Seu gozo nlio e tlio indescritivamente belo e rico senlio porque esta cheio de reminiscencias herdadas do gera¢o e de

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parte de milhiies de seres. Numa ideia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a en­chem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam anoite e se entrelacam mon baloicar de voliJpia, executam obra grave, reunindo docuras, profundezas e forcas para a callfao de algum poe­ta vindouro que hOde surgir para dizer indiziveis prazeres. Eles estiio evocando 0 futuro; mesmo que estejam enganodos, que se abrocem cegamen­te, 0 futuro vira apesar de tudo; um bomem novo se hcide erguet: Sobre a base do caso que parece cumprir-senesseabrtlfo, acordaa Lei quefaz com que um germe forte e poderoso avance ate 0 ovulo que vem aberto a seu encontro. Nao se deixe en­ganarpetasuperficie: - nas proftmdidades tudose toma lei. (11)

Nesse contexto, 0 papel da literatura e 0 de desviar-se, melhor dizendo, desviar-nos da natureza como 0 fizeram magnificamente os gregos Exigiam os mais belos discursos na paixio, no teatro, nas versificacoes da tragedia, Diz Nietzsche, a esse respeito, que "0 ateniense ia ao teatro para ouvir belos discursos! E era de belos discurso que Sofocles se preocupa­va" (12) Na natureza, ao contrario, as a~ sio palidas, desti­tuidas de profundidade expressiva, diriamos mesmo, de intensi­dade, e de convencao, subordina~ aLei, dominio do artificio, da metriea, do ritmo, da proporeao. Seja como for, na Arte lui uma suspensio do tempo presente, do ritmo natural, do fluxo desordenado das sensa~es e em~es emprol de urna estrutu­ra, que pode ser mais ou menos ftexivel mas que, no cOmputo geraJ, estabelece regras. Nesse particular, diz Graciliano Ramos ernMemonasdo Oircere,"Liberdade completa ninguem desfruta: comecamos oprimidos pela sintaxe e acabamos as voltas com a delegacia de ordem politica e social, mas,nos estreitos limitesa que nos coagem a gram'tica e a Lei' ainda nos podemos mexer". (13) 0 esforco culturaldaArte grega sera 0 de se desprender da natureza (Plljais) que ecaotica, oriental no sentido de barbara, para aceder aodominio daLei (1I6mos) da~ou do est8tllto, isto e, da diferenc~o e do equilibrio segundo os quais 0 tumuho

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orgiasnco e finalmente organizado pela forma, pela convencao. No entender de Nietzsche "toda arte maduratern por base uma sene de conveneoes: quando quer ex.primiralgo, a conv~o ea condi~

da grande arte, ela nio eurn obstaculo" . (14) Poderiamos, tambem,citar0 exemplo da Antigonade SOfucles,

onde 0 combate entre dois tipos de direito, 0 natural (Plajsis) eo citadino (nOmos) se entrecruzarn nasfalasde antigona e Creonte, a primeira no intento de sepultar 0 irmio, Polinice, acusado de ser inimigo da cidade por lutarcontra 0 trono, 0 segundo, na proibi~

de tal ~ao pela promulgacao de urn edito e de uma sentenca de morte contra Antigona para defender as Leis dapolis, conforme ci~. DizAntigona: "Nio foi Zeus que a promulgou (aLei), e a justica que habita a morada dos deuses subterraneos nada disso tracou entre os hornens. Eu nio creio que os seus editos tenham tanto poder que eles perrnitarn a urn mortal violar as Leis divinas: Leis nio escritas, aquelas, mas intangiveis". ( 15)

Trata-se da questio tambem sofistica, advinda com 0 huma­nisrno do sec. Ventre Phjsis e Nomos, a Lei natural e divina que privilegiaosrnaisbern nascidos, logo deboaJinhagem, ou 0 Contrato Social entre os hamens, a Leideisonomia, onde iso = igual., igualdade perante a Lei,em que os homens, pela con~ social estabelecem as normas da convivenciado grupo.

A influencia de Nietzsche na Literatura contemporinea tam­bern e de grande monta e podemos citar os nomes de Gide, Camus, Valery, Artaud, Malraux, Dostoievski, Kafka, apenas para citar os mais importantes. Nio me estenderei sobre 0 assunto; levaria outras tantas paginas de escritura ardua e seria tema para urn outro trabalho. Queremos, apenas, assinalar a riqueza, a profundidade, a extensao e a intensidade da obra Nietzschiana para a prosperidade. Nietzsche, subIinham alguns autores, Ilio se reduz a doutrinas, nem a atitudes, nio se deixa capturarpor nenhum partido.postulardo umacertamaneirade ser,uma certapossibiJidade expressiva e uma exigencia burnana.

Por tudo isso, sua "Literatura" a que fizemos referencia no inicio do texto alcanca 0 seu objetivo: cultivar 0 homem (i//usrrer. litteratures, estabelecendo lacos entre existencias que sern per­der seu contomo proprio ai encontram uma ordem COnmJD. E0

que afirma 0 autor na cit~ao que se segue:

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Ah, estes gregos, comoeles sabiamviver! Isso exi­ge a resolufiio de nos mantermos corajosameme a superjitie, de nos conservarmos agarrados a co­bertura, aejJiderme, adOicir a aparencia e ocredi­tar no forma. nos sons, nas palavras; em todo 0

Oiimpo da aparencia! Estes Gregos eram superfi­ciais .,. por profundidode! E niio voitamos a eles, nOs que partimos a espinha do espirito, que esca­lamos 0 cume mais elevodo e mais perigoso do pensamemoatual e que, dai, o1hamOs tudo a nossa volta, e que, dai; olhamospara baixo ') Niio sere­11IOS nos, prectsameme msso .., grega..? Adoradore... da forma, dos sons, daspalavras? Artistas; por­tanto? (16)

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Idem. ibidem, af 65. p. J16.

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9 . L 'Originede fa "agidie. Paris: Gallimard, 1977. p. 61.

10 . A Gaia Ciencia. p.86.

II RILKE, R. M. Carras a umjovem poeta. P. A: Globe, 1961. p.39-40.

12 NIETZSCHE, F. Op. cit. p. 100.

13 RAMOS, G. Memorias do cdrcere. Rio de Janeiro: Jose Olirnpio,1954. p.6

14 NIETZSCHE, F. V P. Af 357. p. 274.

15 SOFOCLES.Antigone. Paris: Gamier-Flammarion, 1966. p. 421-469 - p. 79.

16 NIETZSCHE, F. A Gaia ciencia. p 15.

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Revista Principios - Depr'. FilosofiaUFRN, RN, \\>1. U ..N! 1 Junho de 1995

A PROVA POR REDU~AOAOABSURDONA LOGICA CLAssICA

MARlADAPAZNUNES DEMEDEIROS· UEPAIlTAMEIIo,O DE FlLOSOFlA DA UFIlN

RESUMO:

Embora a logica seja, de urn modo geraJ, concebida como um ramo da filosofia, suas aplic~oes via muito alemdos limites de qualquer disciplina isoladamente considerada (SALMON, 1993). Seu papel principal efomecer meios para determinar a rel~o de consequencia que vige entre as premissas e a conclu­sao de urn dado argumento. Dentre as tecnicas utilizadas que possibihtarn garantir esta rel~o destaca-se a tecnica por redu­¢o ao absurdo por ser amplamente aplicada nas cienciasdesde a antiguidade. Sua ideiabasics reside no fato de que uma propo­si~ nio pode ser verdadeira se dela deduzimos umacontradi­~o. Pretende-se, entio, apresentar a estrutura logica de tal tee­niea de demonstracao a partir de urn dado sistema formal da logica classica.

INTRODUC;AO

Apresenta-se a estrutura da prova por redu~oao absurdo a partir da Teoria dos Conjuntos de Zermelo-Froenkel que se configura como um sistema da logica classics. Assim, coloca-se inicialmente a linguagemna qual ela sera baseada, seus postulados, bern como proposicoes que sao deduziveis nesta teoria, para em seguida, apresentar 0 esquema de tal tecnica de demonstra­

• Membm da base de pesquiu em LOgic:a e Epistcmologia. Especialista em LOgioa

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~io. Na ultimaparte, escolhe-seuma proposicao dateoria fonnal emquestaoe apresenta-sea sua demonst~io utilizando a tecnica por reducao ao absurdo seguindo, passo a passo, 0 esquema anterionnente indicado.

1- SISTEMA FORMAL (TEORIA DOS CONJUNTOS DE ZERMELO FRAENKEI..)

l. t - Lingoagem (Lzn

Vocabulario: a) urn conjunto enumeravel de variaveis: x, y, z, ... b) conectivos logicos: -, ~, 1\ , V , 'd, 3 d) simbolos relaciooais: = e E

Expressees bern formadas (f6nnulas) a) se x e y sao vanaveis, entao x Eye x = y sao fomwlas; b) se Ac B siiof6rmuJase x umavariavel, entao - A, (A-.+B), (A A B), (A vB), V'xAe3xA; c) uma sequenciafinita de simbolos de L7..F e wna formula se. e somente se puderser determinadaa partir dos itens(a) e (b).

Simbolo definido x Ii!: Y =: - ( x E Y)

1.2 - Postulados Sejam A e B formulas quaisquer

; Estamos apresentando apenas alguns dos axiollUls da Teoria de Conjuatos Zermclo­

Frac:nkcl. Sabiclamcntc. sommtc aquelcs que scri.o ncc:caarios ...... 0 daenvolvimlllllo. do

problema em que.uo. Quaato a05 demais axioms.' ..."ja (MIRAGUA 1990).

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Ax.3) ( ~ B ~ - A) ~ ( ( -B ~ A) ~ B) Ax4) Axioma do vazio: existe urn conjunto, denotado por, 4>, que nio tern elementos, isto e, satisfaz a propriedade VZ (z II 4».

Regras de inferencia MP (ModusPonens):BseguedeA e (A~B)

RN (Regra de Negacao): Asegue de-c--A IV (Instancia~o Universal): A segue de VxA IE (Instan~Existencial): A(y) seguede3xA(x),sey e uma variavelnova RC (Regra da Conjuncao): (A 1\ B) segue de A e B RS (Regra da Separacao): A segue de (A /\ B)

1.3 - Defini~Oes

Se A e uma formula, entao uma prova de A e urna sequencia finita de formulas, onde A ea ultima formula e carla urna das demais ou e urn axioma, ou e consequencia das anteriores atraves das regras de inferencia

Uma formula A e urn teorema se existir uma prova de A ( A)

Se r eurn conjunto de formulas e A uma formula, entao uma dedu~o de A a partirde r euma sequencia finitade f6nnulas, onde A ea ultima formula e cada uma das demais ou pertence a r ou eurn axioma, ou e conseqUencia<las anteriores atravesdas regras de inferencia. (T A).

UmaCODtrad~o euma formula que tern a forma: (A /\ -A)

1.4 - Resultados Auxiliares (R.AUX)

1) -(A/\-A) 2) (A~B) +-+(-AvB) 3) -Vx(A~B) 3x(AI\-B) 4) (A v B), - B A 5) Teorema da Deducao (TD): seT, A B, entio r A ~ B, onde A e uma formula fechada.

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2 - ESQUEMA DE UMA PROVA POR REDU«;AO AO ABSURDO

A tecnica de demonstracao por reducao ao absurdo baseia­se no principio de que urn argumento evalido se e somente se a conjun~io das premissas com a nega~iio da conclusio e uma expressio contraditoria, entendendo uma contradicao como sendo uma expressio que afirmae nega algo ao mesmo tempo. Com base neste principio, explicita-se por que, em uma prova por redu~ ao absurdo, no momento em que se se depara com uma contradicaopode-se imediatamente inferirque 0 enunciado em questao esta provado. Assim, se se deseja mostrar que a formula (A ~ C) ewn teorema usando a ,teenica por redueao ao absurdo, onde A, B e C siDf6rmulcis quaisquer ek a fOrmula (B 1\

- B), a estrutura dessa prova pode ser esquematizada cia seguinte firnJa.:

Esquema da prova

1) A hipotese 2)-c hipOtese auxiliar

ilK I - (i-I), regras de inferencia ou axiomas i+l) A, C K I - i, deducao i+2)A-c~K i+l, TD i+3) A--C v K i+2, R.Aux. (2), MP i+4) A -K RAux. (1)

i+5) A --e i+3,i+4, R.Aux (4) i+6) A C i+5,RN i+7) A~C 1 - (i+6), TD

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3- UMA APUCA(AO DA PROVA PORREDU(AO AO ABSURDO

Usando a tecnica por redufiio ao absurdo e seguindo passo a passo 0 esquema anteriormente apresentado, considera-se agora urna proposicao da teoria dos conjuntos e mostra-se que ela e um teorema. Mais precisamente, sera mostrado que a proposicao "se eurn conjunto vazio, entio esta contido em qualquer conjunto " eurn teorema da Teoria dos Conjuntos de Zaennelo-Fraenkel. A formula correspondente nesta teoria e:

\Ix (x ~ <1» ~ V'x(x E <I> ~ X E tJ. )

Prova por reducao ao absurdo

1)'Q'x(x ~<1» hipOtese 2) - V'x(x E<1> ...... x eA) hip6tese auxiliar 3) 3x(x e <1>/\ x ~ A ) 2,RAux.(3) ~xE<1>/\x~A ~lli

S)x e <1> 4,RS ~x~<1> LID 7) x E <1>/\ X ~ <1> 5,6,RC 8) Vx (x ~ <1», 'Q'x(x e <1> ...... x e A) ? x E <1>/\ X ~$ I - 7, dedu~

9) 'Q'x(x ~ $) l-- - V'x(x E c1> ...... X E A) ...... (x e c1> /\ X ~c1» 8,1D 10) 'Q'x(x II <1» l----'Q'x(x e <1> -+x E A) v (x e lfJ/\ x ~<1»9, RAux. (2),

MP ll)'Q'x(x~ <1» l----(x E $/\x II <1» R.Aux.(I) 12) V'x (x ~ lfJ) l-- - - 'Q'x(x e <1> -u e A) 10,1l,RAux(4) 13) 'Q'x(x ~ <1» l-- Vx (x E <I> X E A) 12.RN 14) l--'Q'x(x ~ <I»~'Q'x(x E <1> x E A) 13,lD

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Ender~ da aurora: [email protected]

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Revisla PriDCipios - Depr'. Filosofia UFRN. RN, \OJ. II - Nil I Junho de 1995

REPENSANDO 0 CONCEITO PLATONICO DE DIANOIA*

MARIOA.L.GUERREIRO DEPARTAMENITl DE FR.OSOFlA DA UFR/I('NPQ

Como e sabido, Platio define dianoia como "dialogo da alma consigo mesma". Pondo de lado dificuldades re1ativas a determinaejo do significado precise da espinhosa no~io de "alma", temos razOes para acreditar que 0 espirito do clefinieoJ pode ser preservado, caso entendamos estar em jogo a no~io de "dialogo interno" ou, 0 que e urn pouco diferente: "di81ogo interiorizado". Apesar da diferenca, emambos os casos e gera­do urn contraste entre 0 dialogo propriamente dito - a forma discursiva eleita pelo filosofo para a melhor expressao do seu pensamento - e wna contrapartida privada desta mesma.

Antes de investigar as possiveis semelhancas e diferencas entre ambas as formas ou dimensOes dialogais, eoportuno inda­gar a razio pela qual Platio nio caracteriza a dianoia como "monologodaalma consigomesma", pois - ao menos aprimeira vista - tem-se a impressao de que 0 aJmejado contraste eexpres­so de modo mais apropriado mediante a contraposicao das no­¢es de "dialogo" e "monologo" Em urn livro em que ele mes­mo faz as perguntas e ele mesmo oferece as respostas, Santo Agostinho 010 hesitou chamar de SoIilOquios (sendo a palavra s~uium perfeitamente correspondente Ii gregamoaologos) No entanto, Platilo usa a palavra dialogo5 (dialogo) na elabora­~io do seu definiens e nos temos razoes para suspeitar que esta escolba nio egratuita nem acidental.

Reiteramos que, a primeira vista, tem-se a impressio de que 0 almejado contraste eexpresso de modo mais apropriado mediante a supramencionada contraposicao. A medita~ fiJos6fi­

• Conu~o apresentada no I" Reuaiio Anual da SBEC - Sociedade Bns&lein de Estudos Classi~05, Niteroi, 30/0919].

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ca despontacomo urnsolitarioex:ercicio de pensamento emque 0

filosofo conversa consigo mesmo, com sua alma ou consciencia. CODlUdo, pensamos quesocabeq'lalificar0 referido exercicio como "solitario", casoentendamosquea"spIidio" fica caracterizadacomo a ausenciade uma alteridade representada por outro ser humano desempenhando 0 papel de interlocutor. Nio obstante, como. pretendemos mostrar, embora a alteridade seja urn ingredieote necesssrio para a constitui~tanto da dianoia como do dialogos propriamente dito, 0 especial tipo de alteridade necessario paraa constitui~ deste Ultimo nio eneeessario paraada primeira.

InsistimosemindagaT a razio peJaqualPIatao -urndosfiIOsofos mais cuidadosos na escolhadas suas palavras - ernprega"dialogo" e nio "monologo" quando daelabor~io do seu definiens para 0

defUliendUID "dianoia". De modoaencaminharuma resposta para essa indaga~, nio percorreremos os textos platOnicos em busca das mais relevantes passagens em que etematizada a n~o de "dianoia". Tomaranosatiberdade de nosafastarmos deste pereurso academico ronneiro,poisaventamos a bipOtese de que Platio teve um importante iDSigbt quando daformulacaoda sua defini~oe esta ~o pode ser recuperada e explicitada mediante 0 auxHio de algumas comidera¢es contemporaneasa respeito da natureza daIinguagem. dacomuni~ e dos atosconumicativos no contexto da teoria dos atos de rala inaugurada por 1. Austin (1975) e desenvolvida por J. Searle (1969), entre outros. C, Ferreira Costa (1992, pp. 85-90) oferece urn resumo da suprarnencionadateoria.

Nossa hipOtese do insight platonico complementa-se com a ideia de que 0 pensamento de P1atioecapaz de nosajudar a I~

algumaIuz sobrealgunspontos poucotematizados no cootexto da pragmatica contemporanea, e esta por sua vez pode nos proporcionar alguns conceitos ca.pazesde lancar alguma luz sabre urnimportante pontodesenvolvido nointerior do p1atonismo. Trata­se, portanto, de fazer uma tentativa no sentido de compreender 0

espiritoda expressio"dialogoda alma consigomesma". Visando tal finalidade, procederemos mediante wna especie de contraponto, ora procurando esclarecer algumas~ subjacentesateoria dos atos de fala, ora procurando elucidar e recuperar 0 espirito do peasameoro platonico, sem conceder at~o aletra e sem recorrer aos textos relevantes dos seus Dialogos. . , . .

Para comecar, tentemos fornecer umaresposta parauma

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indaga,.ao aparentemente simples, poremportadorade insuspeitada complexidade: Quais as condicoes de possibilidadeparaque urn individuo venhaadesullpenharurnmonOIogo? A etimologia parece esclarecedora: compostode"monos"(urnUnico) e "logos"(diswrso ou faJa), "monologo" pode ser entendido como: "forma de desempenhoverbal em que urn individuo fala ou pensa consigo mesmo". Enquantodefini~ no..... n80ha qualquerproblema coma apresentada acima, porem, enquantodefioi~ essencial, eta peca tanto porvaguidadecomo inadequa~.

Pecapoevaguidade. porqueservepara caracterizarao menos tees situa¢es notadamente distintas: (1) a do fil6sofo em uma medita~ profunda, (2) a de uma pessoa comum entregue a despretensiosos pensamentos "pensando com os seus botoes" e finalmente: (3) a doautista totahnente ensimesmado, aJbeio a tudoe a todos, falandosozinbo no meio de algumas pessoas. Peca por jnadequ~, porquenio caracteriza aquela formade repr~

dramaricaem que hi urn sO ator em cena, mas nada impede que este represente diferentes papeis. AlgasemeIhante costumaocorrer na conversacaocomurn. Consideremos0 caso daquelas pessoas que, ao contar uma hist6riapara alguem,nio sO passamda ordem indiretaparaa diretacomotarnbem assumem 0 mododefalare os trejeitos de alguem envolvido no aoonteeimento re1atado.

Disto se depreendede imediatoque, paraque urn monologo sejapossivel, enecessario que tenhamosurnfalante, urndiscursoe falas desempenhadas por estemesmo, estejaeste nasolidio do seu quarto pensandoem bobagensou imersoem profundas reflexoes filos6fi.cas, estejaeste em uma praia deserta onde nlio h3viv' alma ou diante de uma plateia lotada para a qual representa. Diferentemente dos outros, neste Ultimo caso eimprescindivel 0

falante emitir !IlR filJa bern articulada eemvoz alta, para<pe0 plblico o ouca e 0 entenda. No entanto, nos outros casos a fona~ e perfeitamentedispensavel, umavezquecontamoscom a possibiJidade de acionar aassimchamadalinguagem "silenciosa"

Mas istoque chamamos de linguagem "silenciosa" nio epor acaso0 mesmo quecostumamos chamarde"pensameeto"? Alguns psic6logos comportamentistas procuraram fornecer evidCncias empiricas de que,quandournfaJante esta entreguea uma reftexio solitsria, suaglote nio deixadeser estimulada pura e simplesmente. Mediante0 uso de urnaparelhoadequado,podem ser registrados

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sons lingWsticosde fraca intensidade dedecibeis e, por isto mesrno, inaudiveis para 0 proprio falante. Devemos lembrar que os sons sao, antesde qualquercoisa,estrernecimentos vibratOrios produzidos por ondas111.tUnicas longitudinais. Mas, seeassim, niohalinguagem "silenciosa", porem emissio de sons lingWsticosabaixo do Iimiarda percepcso auditivahumana.

Todavia, para 0 desalento dos espiritos cientificistas e para 0

alivio dosfilOsofos tradicionalistas, Dio nosapoiaremos em quaisqua­evidencias empiricas para reivindicar a identidade de pensamento e Iinguagem. Difurentesfilcsotos, tanto no passadocomono preseete, tern recorrido a argwnentos puramente filosoficosparaa sustenta~o

da referida identidade. J. Austin pas em circulacao a n~ de "speech act", que

em frances foi traduzida como "acte de parole" ou "acte de langage" e em portugues como "ato de fala" ou "am de Iingua­gem". Pensamos que "ato de fala" e a melhor traducao, desde que se entenda por "fala" nio apenas a fODalYao mas tambem um proferimento dotado de expressao e sentido. Embora Austin nao tenha tematizado a questao das relacoes entre pensamento e linguagem, outros filosofos posteriores a ele - como e0 case de J. Hintikka (1961, pp. 124-6) - apoiara-se no seu conceito para introduzir 0 de thought act (ato de pensamento). entendendo basicamente que um ate de pensamento nada mais e do que urn ate de fala interiorizado. Desse modo, se Dio podemos ter aces­so direto a atos de pensamento do outro, podemos ter acesso indireto mediado por seus atos de fala. (Guerreiro, 1989, pp. 94-103).

Mas quanto a Platao? Qual a posicao da filosofia platonica no tocante arel~o entre pensamento e linguagem? Ha fortes indicios de que Platao mo chegou a urna conclusiio definitiva a este respeito, assimcomo nio chegou a nenhuma conclusao de­finitiva a respeito de uma sene de topicos em que se restringiu a explorar teses e antiteses, sem chegar a quaisquer sinteses heguelianas. Ha passagens em que Platio estabelece uma clara identidade de pensamento e linguagem considerando que ambos, cada qual ao seu modo, sio por natureza dialogais. C. S Peirce (1958, VI. sec. 338, V e sec. 421), ao final do seculo XiX, oferece bons argumentos a favor do carater essencialmente dialogal do ensinamento. Platao, por sua vez, chega rnesmo a afinnar que as

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faltas cometidas contra a gramatica nio sao apenas deslizes em rel~ acorrecao de linguagern., mas, sobretudo, faltas cometidas contra a correta expressio do pensamento. Estamos certos de que tanto os gramaticos logicos de Port Royal (seculo XVII) como diversos linguistas e fil6sofos da linguagem contemporaneos endossariarn plenamente essa assercio platonica (Katz, 1981, pp. 76-92).

Nio podemos, no entanto, deixar de assinalar a existencia de outras passagens em que 0 proprio Platao questiona a supramencionada identidade. Em algumas destas, 0 fil6sofo se queixa de que a linguagem - por mais refinada pelo constante exercicio da re8exio filosofica - mostra-se um instrumento im­perfeito para a correta expressao do pensamento, podendo ate mesmo, nos casos mais graves, se transforrnar em uma caricatu­ra da verdadeira face do pensamento. Estamos certos de que nessa outra tomada de posi~o 0 ponto de vista platonico seria endossado por outro grupo de fil6sofos que, desde Leibniz no seeulo XVIII, tern chamado a aten~o para os defeitos e impre­cisOes da linguagem comum e ate mesmo proposto uma lingua­gem logica perfetta para a sua substituicao enquanto instrumen­to adequado para a expressio do pensamento rigoroso e objeti­vo (Camap, 1959).

Deixaremos momentaneamente de lado qualquer tematizacao dessas posicoes aparentemente antagonicas assu­midas por Platao. Preferimos tentar esclarecer 0 importante insight podendo ser surpreendido no uso da expressio "dialogo da alma consigo mesma". De saida, e imprescindivel desfazer alguns mal-entendidos gerados por apreciacoes superficiais da antitese monologo/dialogo.

Caso se entenda - como efrequente se entender - que em um verdadeiro dialogo ha a presenca de ao menos dois falantes e em urn verdadeiro monologo a de apenas urn, tem-se urna vi­sao distorcida do processo de comunicacao verbal. Neste pro­cesso, temos de levar em consideracao a sua estrutura formal e, para que esta Ultima seja bern cornpreendida, temos de levar em consideracao niD so individuos faJantes, mas tambem papeis exercidos por eles. Pensamos ser escusado acrescentar que as nocoes de "individuo" e "paper' siD plenamente distintas: Dio podemos confundir jamais urn individuocoma possivel

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multiplicidade de papeis podendo ser exercidos por ele mesmo. Suponhamos 0 caso de urn pianista tocando em urn concer­

to. Uma visio simplista do processo de comuni~ musical entendera que ele desempenha 0 papel de urn emissor e a plateia o de urn receptor. No entanto, para que 0 pianista consiga dar vida musical aos sinais rnortos da partitura e executar uma peca desde 0 ataque ao finale, e indispensivel que ele desempenhe, ao mesrno tempo, os papeis de emissor e receptor da peea por ele executada, porquanto ele tern necessidade de ouvir a frase musical que acabou de gerar, avaliar rapidamente seu desempe­nho e se preparar paraa frase que se segue. 0 pianista eurn so, porem os papeis desempenhados por ele sao dois, e ele se deslo­ca incessante e vertiginosamente de urn para 0 outro. Seus re­ceptores, por sua vez, embora 080 possam ser considerados in­teiramente passives (uma vez que a per~io interage com a imagi~) exercem tio-somente 0 papel de receptores (papel que sO abandonam para bater palmas ou jogar tomates no artis­ta). .

Nio resta a menor duvida quanto aexistencia de significa­tivas diferencas entre as atividades de tocar em urn concerto e desempenhar urn papel no palco, de urn lado, e pensar, falar e escrever de outro. Nio obstante, lui importantes fei~sco­muns a todas. Talvez, a rnais importante seja a de que em todas estas atividades estaem jogo urn processo dinamico ern que a aten~o tern de se articular com a retencao e com a prospeecao. Alem disso, em todas estas atividades, 0 emissor ve-se compeli­do a ter de desempenhar 0 papel de receptor, para que possa percorrer de modo bern sucedido urn itinerario discursive. Em outras palavras: este desdobramento de papeis em urn mesmo individuo nao eum fator acessorio ou contingente, poi-em cons­tituinte do desempenho discursivo enquanto tal

Quem exerce, porexemplo, a atividade de escrever so pode realiza-la amedida que experimenta urn desdobramento de pa­peis em que entra em cena urn interlocutor imaginario ou, caso se queira urn pUblicofieticio constituido de interlowtores imaginari­os. Nio por Ilio querer, mas por Rio poder, ninguem escreve para simesmo, ainda que se encoetreemuma condi~semelhante a do solitario Robinson Crusoe debrucado sobre seu diario secreto. Pode-se alegar que ele escrevia para passar o tempo, mas para

." . .,. . .'

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quemcontavaelesuasbistorias? Certamente, nio ascontavapara elemesrno que,por suposi~, estavacansadodeconhece-Ias Por acaso nio acalentavaele a esperancade que urndia alguem leria

. ?seudi' ano. Mutantis nwtandis, isto que foi dito sabre a atividade de

escrever pode ser tambem dito sobre a de pensar, Pensar ees­sencialmente urn exerciciode autocritica em que estabelecemos uma comunicecaocordial 00 tensa com urn interlocutor imagi­nario. Elebade sertio argutoe exigente quantoformos capazes de supor, porem a completa ausencia de autocritica parece algo inconcebivel, a menos que seja 0 caso de urn individuo na fron­teira da oligofrenia. Quemquer que tenha escrito uma tese deve ter experimentado0 desdobramento de papeis a que nos referi­mos, ao assumir 0 papel de advogado do diabo em rd~ is suas pr6priasafirma¢es e desenvolvimentos diseursivos; pois e melhor antecipar obj~oes possiveis e procurar responde-las antecipadamente do que se ver surpreendido por insuspeitadas obj~Oes.

Pode-se questionar se ha identidade ou nio entre lingua­gem e pensamento, porem parece fora de questio 0 fate de que ambos sao processos dinimicos em que tern de estar presentes urn discurso, urn emissor e urn receptor, ainda que estes dois papeiscomunicativos encontrem-sesobrepostos em urn sO indi­viduo. No dialogopropriamentedito, ao menos dois individuos intercambiam estes papeis, porem na dianoia, basta apenas urn individuo dialogando com a sua alma 00, para usar uma tenni­nologia moderna, com um alter ego ou urn receptor imaginario assumindo 0 papel de seu interlocutor.

Pode-se discutir se ea linguagem que gera 0 pensamento ou vice-versa, porem, independentemente de uma possivd rela­~io causal- nio imponando qual sejaa causa e qual 0 efeito -lui uma rela~o isomorficaentre pensamento e linguagem. Assirn, qualquer que seja 0 causador, ele teni de apresentar a mesma estrutura formal do causado. No entanto, concebidoscomo pro­cessos dinimicos e como fonnas dialogais, 0 pensamento e a l!nguageminteriorizadaealinguagem, 0 pensamento exteriorizado. Eimpossivel conceberqualquerato de pensamentosemque este tenhacomocontrapartidaurnato defala potencial, assim comoe impossivel conceber urnatode falaato'" sem queestetenhacomo

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contrapartida urn pressuposto ato de peosamento... Esta identidade estrutural-formal, tal como a delineamos

rapidamente, nio eincompativel com a altemativa aventada por Platao, de acordo com a qual a linguagem pode se mostrar como urn instrumento imprecise para a expressio do pensameDto pre­ciso. As imprecisoes e imperfei~ da linguagem comurn po­dem estar relacio~CO.In. as dimensOes sintatica ou seminti­ea da linguagem, porem a relacao isomorfica tal como apresen­tada por nos esta claramente relacionada com a dimeosio prag­matica da linguagem, porque 0 que esta em jogo e0 carater imprescindivel de urn discurso associado aos papeis comunicati­vos do ernissor e do receptor Ate mesmo Gorgias, 0 grande sofista, tentando demonstrar a inexistencia do ser e do nio-ser, tem de assumir 0 papel de urn emissor e tern de se servir de falas discursivas, para enderecar seu pensamento a urn receptor, mos­trando com isto que ao menos tres coisas existem e tern de exis­tir para que possamos ter pensamento e linguagem.

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Revista Principios - Dept!!. Filosofia UFRN, RN, 'WI. II - N! I Junho de 1995

ENSAIO ACERCA DA IMAGEMPOtnCA: BACHELARD E JOAO DO RIO

MARKUSFIGUEIRAPASILVA DEPARTAMENTO DE Fn..oliOf1A DA UFI.NI\JFIlJ

1995

APoetica doEspafo nos revelaapossibilidade de wnafilosofia da poesia, onde encontramos urn outro "lance" de pensamento diferente da "FilosofiaTradicionaI" - nio hin~de 'principio'em poesia.

Ao indagarmos a respeito do poetico, deparamo-nos com 0

descontinuo, 0 sempassado -que prescinde de ordem cronolOgica. BacheJard pensa a imagem poetica como algo que tem urn ser prOprio. urndinamismo prOprio.

A partir desta ideia, controi-se todo urn campo teorico que toma a atitude de pensar a poesia de urnponto de vista filosofi­co, onde se procura articular como a imagem poetica advem de urn ontologia dir~ ou seja, a imagern poetica como expressio criada do ser - devir de experiencia e devir de nosso ser.

Bachelard reeusara as explica¢es causais dadas pelos psi­cologos e psicanaJistas, que slo insuficientes para esclarecer bern o caraterinesperado da (nova) imagem poetica. Partira de ou­tro ponto - a Fenomenologia de Minkowski - que entende que para determinar 0 ser de urna imagem sera necessario senti-la em sua rqJefcussio I.

Colocar a questao da imagem como expressio criada do ser significa dizer que. a comunicabilidade de uma imagem sin­gular eurn fato de grande significacao ontologica. Isto recJama urn maior esclarecimento que segundo Bachelard so se dara com a construcao de uma Fenomenologia da Imaginacao, que seria

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"um estudo do fenomeno do imagem poetica no momento em que ela emerge na consciencia como um produtodireto do cora­f'tio, do alma, do ser do homem tomado na sua atualidade .. 2.

Ouvimos a seguir 0 ammcio de uma metafisica da imagina­~, que significa lDll8. ruptura com a 'prudencia' da racionalidade cientifica. Para compreende-la enecessario entender 0 fenome­no da trans-subjetividade da imagem, 0 que se dara atraves de uma analise fenomenol6gica da imagem poetica,

Bachelard estabelece uma distincao fundamental entre a imagem poetica e 0 conceito filosofico, entendendo a primeira como essencialmente variacional, isto e, que nao pode ser deter­minada definitivamente; e 0 segundo como constituitivo. Para entender a real dimensio deste 'variacional', 0 leitor de poemas nio deve tomar uma imagem como objeto, menos ainda como substituto do objeto, mas perceber-lhe a rea.lidade especifica. "Epreciso para isso associar sistematicamente 0 ato da cons­ciencia criadora ao produto maisjugaz da consciencia: a ima­gem poetica' 3.

Hit, segundo Bachelard, umafenomenologia microsc6pica no dominic da criacso poetica. Ele nos ensina que uma irnagem em sua simplicidade nio preeisade urn saber, "ela edLidiva de uma consciencia ;ngenua-linguagemjovem .. 4. Eprecise que entendamos que 0 poeta na novidade desuas imagens esempre origem de linguagem, e que a imagem existe antes do pensa­mento.

Buscar construir uma 'Filosofia da Poesia' significa dar a real dimensio de liberdade ao poeta no que se refere ao uso da linguagem: ela deve receber todas as virtualidades do vocabula­rio, nao deve simplificar nada, nada tornar rigido. Neste cami­000 tomado por Bachelard encontramos uma diferenciacao conceitual entre alma e espirito. Para ele, antes de ser uma .'fenomenologia do espirito', a poesia e uma 'fenomenologia da alma', entendendo-se alma por oonsciencia sonhadora. Aqui espirito e alma nio sao sinonimos. A palavra alma e uma pala­vra imortal,euma palavra da emana~io. Alma significa luz inte­rior, luz do sol. Passamos enOO a analisar 0 quevem a ser a Fenomenologia da Alma.

" ... A consciencia associada a alma esta mais fundada, menos intencionalizada do que a consciencia associada aos fe­

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nomenos do espirito" . Compreender uma fenomenologia da alma, significa a1can­

~ a ideia de uma dialetica que distingue as nocoes de inspira­Cio (alma) e talento (espirito). A cornpreensao dessas duas no­COOS e por demais importante para entendermos a evolu~ das imagens poeticas: desde 0 devaneio ate a sua execucao. Bachelard entendera 0 devaneio poetico como fenomenologia da alma, onde se entende devaneio como "instancia psiquica que constantemente se confunde com 0 sonho". E importante no­tarmos que 0 devaneio poetico Dio flui sOde si proprio, ou seja, para fazer urn poema cornpleto, bern estruturado, sera preciso que 0 espirito se prefigure em projeto. Por outro lado, para uma simples imagem poetica nio lui projeto, pois ela advem de urn simples movimento de alma. A alma tern uma caraeteristica inaugurativa. Ela e uma potencia de primeira linha. Como nos revela Pierre-Jean louvre: "A poesia e uma alma inaugurando uma forma" .

Nas trilhas da construcao de uma fenomenologia da alma, Bachelard articulou uma duplicidade fenornenol6gica, onde es­tabelece umadiferenea entre repercussao e ressonancias. Segundo o pensador, as ressonincias se dispersam nos diferentes planos da nossa vida no mundo - (ouvimos 0 poema), e repercussio nos chama a urn aprofundamento de nossa propria existencia ­(falamos 0 poema- ele e nosso). A repercussao opera uma revi­rada do ser - parece que 0 ser do poeta e nosso ser - 0 que toma possivel a caracterizacao da exuberincia e a profundidade de urn poemacomo fenomenos da dupla ressonancia - repercussio. H8., portanto, duas linhas de analise fenomenologica: urna que leva as exuberancias do espirito, outra que vai as profundezas antes de movimentar a superficie. "Ela nos coloca diante da origem do ser falante", 0 que da sentido ao que falamos no ini­cio deste trabalho, ou seja: a imagem como expressio criada do ser. E assim caracteriza-se 0 nivel de ontologia que e trabalha­do.

Partindo da tese segundo a qual "tudo que e especifica­mente humano no homem e lOgos" , compreendemos a imagem poetica como acontecimento do lOgos, e esta e(para nos)inovado­ra. E carla imagem poetica nova tern urnvalorde intersubjetividade, isto e, nio ha espacopara a causalidade, como queriampsicologos

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e psicanalistas, pois a imagem poetica escapa a tal dE;tenni~lo,

sendo construida pelo lOgos poetico. Isto e de suma importincia quando se trata de compreender a ontologia do poetico, que nio pode ser determinadapor doutrinas causais, vistoque nada prepara uma imagem poetica: oem a cultura (no modo literario); nem a peI"~ (no modopsicol6gico). SegundoBacbelard, "anovidade essencial dewna imagem poeticacoloca 0 problema da criatividade do ser falante". E atraves da criatividade que a conscieacia imaginante se descobre como uma origem. Eisto 0 que interessa a Bachelard quando estuda a imagi~ao visando a construcao de mnafenomenologia da imagin~io poetiea, DUma palavra: isolar 0

valor da origem de diversas imagens poeticas 0 que se torna claro quando se pOe a nu que e ao Divel das imagens separadasque podemos repercutirfenomenologicarnente. Tal fen6meno ocorre porque a poesia pOe a linguagem em estado de emergencia. "A vida se mostra ai por suavivacidade". Outrora., as artes plasticas codificavam as licencas. Mas a poesia contemporaneafesta euma clas~de Bachelard) pOs a liberdade no proprio corpo da linguagem. "A poesia aparece entio como urn feoomeno da liber­dade" .

Entendemos, finalmente, que a imagem poetica, enquanto origem da consciencia, advent da fenomenologia. Ecomo disse Bachelard: "observando que as coisas nosfa/am, e que por isso mesmo, se damos p/eno va/or a essa linguagem, temos um con­tato com as coisas ... " j.

A imaginacao produz incessantemente e se enriquece de novas imagens. E essa riqueza do ser imaginado que eobjeto desta obra de BacheJard Nela, ele busca fazer uma topoanalise dos lugares esquecidos amerce cia intimidade, e que sao rebus­cados frequentemente pela ima.gina~io - eis 0 objetivo de uma poetica do espaco.

"Nenhwnaformula paraacontemporineaexpressaodo mundo. fer com o/hos livres ''6, ., .

Oswald de Andrade expressa em pensamento a sabedoria ingerlUa cia adivinhaeao, a poesia feita a partir de uma 'Ieitura' , que

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e construcao imagetica do simples, do corriqueiro, do mundo fragmentado que os olhos atentos podem captar.

Assim eJoio do Rio - urn 'tlineur' - urn poeta na novidade de suas imagens - imagens que existem antes do pensamento; que emanam da 'alma', que einspira~. Urn simples movimen­to da alma eria uma imagem poetica. 0 fl3neur tern a alma em movimento - constante crial;io de irnagens. Diante da multiplicidade do real, 0 poeta "inauguraumaforma" - Assim, a imagem chega as profundezas (onde a alma esta fundada) e e entlo expressaocriadado ser".

"Tudo se transforma, tudo varia - 0

amor; 0 odio, 0 egoismo. Hoje emais amargo0 riso,mais dolorosaa ironia. Os sec:u/os ptlSS01TI, deslizam, levando as coisas ji'lteis e os acontecimemos notaveis. Sopersiste efica, /egado das gerafOes coda vez maios; 0 amor do rua'".

o oIhar do poeta por sobre os ombros das historiografias, expoe uma visao de mundo propria de uma uma reflexiol descomprometida, porem profunda, construida a partir de urn 'aqui e agora', de urn lampejo desom e sentido - 0 verso.

o poeta pensador descobre ao dizer, a maneira de dizer 0

quenio pode deixar de ser dito. Assim, ele presencia a realida­de mesma, imanente ao acontecimento captado no mornento criador do artista - configurador de imagens sililbieas.

Etao forte 0 querer expressar-se, sair-se pensamento, rna­terializando-se em 80m, que urn canconetista de Montmartre e tornado de urn sentimento que 0 leva a dizer versos que seriam interpretados depois por urn eronista do Rio, e dai atribuir urn sentido, isto e, wna possibilidade de eompreensio.

o que urndicionario estabelece como 'verdade' - defini~io

cristalizada de uma palavra - a ~ dim num outro movimento, que e possibilidade de dizer da coisa, 0 que num momento e presenciado, 0 que faz-se sentido quando sentido. .

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" ... A ruaera para eles um alinhado de fachadas, por mule se anda nos povoacbes (...) Ora, a rua emais do que isso, a rua efator da vida das cidades, a rua tem alma ... " K.

''ARua I' eexposi~de imagens, e a co~ deum senbdo e e, sobretudo, uma vivencia - 0 exercicio de uma liberdade - a composicao.

Joio do Rio faz de seu relato urn retrato cinematografico da re~io de intencionalidade entre uma consciencia irnaginante e 0

que se apresenta como possibilidade de ser falado, versado. E0

que Bachelard chama de imagem poetica,ou seja,aquilo que como origem da consciencia advem da fenomenologia. Tal imagem acontece quando "observando que as coisas nosjalom, e damos pleno valor a essa linguagem, temos um contatocom as coisas' 'I

Ha urn certo trace nomade naquele que ama a rua e faz dela a materia de suas reflexoes. - 0 que leva alguem a se preo­cupar com a compreensio do •mundano', do que por si e·dife­renca', heterogeneidade, muhiplicidade de imagens? Talvez esta questio possaseapresentar como uma inda~ do homemsobre a reaJidade - a realidade IlI1ltiplae sent~. :E semdUvida nenhumaumaquestio filos6fica; 0 que nio exige urnasistematizada resposta filosOfica. Aqui. 0 indagarnascedo vivenciar poeticamen­te 0 momento, epor isso mesmo pennite-se responder aind~

JUJID discurso poetico. Se perguntarmos ao texto de Joao do Rio quem teee 0 dis­

curso poetico sobre a realidade, ele dira: 0 flineur. Isto e, aque­le que pratica a arte de flanar - "Flanar significaser vagabun­do e refletir, eser basbaque e comentar; ter 0 virusda observa­fdo ligadoao do vodiagem... Flanar ea distin¢odeperambular com inteligencia. Nada como 0 imuilpara ser artistico" 10.

E0 flaneur quem talvez responda de maneira mais autenti­ca e honesta, porque descomprometida, a pergunta acima for­mulada. 0 flaneur frequenta os acontecimentos e reflete sobre 0

ocorrido tecendo Iongos discursos, criando magnificas expres­soes pra dizer 0 que para ele se apresenta como realidade.

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"(...) Quando 0 fldneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnificapor serpara seu uso exclusivo, ei-lo a psico/ogar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a almadas ruas. E eentiio que haveis de pasmar da jutilidode do mundo e da incoocebiveljuti/idade do« pedestres da poesia de observadio .., j. 11

Se pudermos estabeIecer uma diferenca entre 0 'ser filosofo' e o 'ser pensador' s diriamos que 0 poeta epensador e nio "fil6sofo", pois agindo assim cometemos a delicadeza de Iivrar 0 poeta-flaneur de ser submetido ao tribunal da razao, erguido e sustentado por umacertatradi~ filosofica,

Vemos aqui com certa clarezao quanto podemos aproximar a visao do poeta construida por Joao do Rio, daquela que nos e apresentada por Bachelard em A Poetica .d2 E§paco.

Dono de uma indefinivel sensibilidade, Joao do Rio no ini­cio do seculo, quando escreve sua obra, ja nos coloca questOes que mais tarde aparecem de maneira bastante similar no pensa­mento poetico de Bachelard. Fazer umaespecie de 'henneneutica da poesia', eis a tarefa de um e de outro, na medida em que mergulham no universo poetico e pescam preciosos arranjos de palavras, traducoes de 'modos de ver' a relacao estabelecida entre homem e mundo; entre 0 ser falante e 0 que e objeto de seu discurso - a realidade Nada edito dentro de complexas malhas conceituais, como eproprio dos sistemas filosoficos, nem ecal­culavel numa 'metodologia de pesquisa', como e 0 caso dos "edificios" cientificos.

o poeta distancia-se dos esquematismos e das metodologias e busca na simplicidade da imagem poetica sempre nova urn va­lor deintersubjetividade. ou seja, quando "considerodana trans­missiio de uma almapara outra; ve-se que uma imagempoetica escapa a.~ pesquisas de cousalidade "12 E assim "0 poeta pOe a liberdade no proprio corpo do linguagem. A poesia aparece entao como um fenomeno da liberdade" 13.

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1Repercussio aquiedefinidocomo medidado ser de uma imagem poetica.

2·Bachelard - A Poetica do Espaco - Introducao.

3 Idem - p. 185.

4 Idem.

5 Idem - p. 190.

6 O. de Andrade - Manifesto da Poesia Pau-Brasil, p. 09

7 JOOo do Rio - a Alma Encantadora das Ruas.

8 J. do Rio - A AlmaEncantadora das Ruas.

9Bachelard-apoeticadoEsp~, p. 190.

10 1. do Rio - A Alma Encantadora das Ruas, pg. 05.

11 Idem, pg. 06.

12 Bachelard - A Poetics do espaco, pg. 187.

13 Idem, pg. 187.

REFERENCIAS BmLIOGRAFICAS: ..

1 ANDRADE, O. de - Obras Completas. 2. ed. Rio de Janeiro: CiviJiza~ Brasileira, 1978 v. 06.

2BACHELARD, G. -A Poetica do Espaco. SioPaulo: Abril Cultural, 1978. (Colecao Os Pensadores).

3 RIO, J. do -A Alma EncantadoradasRuas. Rio de Janeiro: S.M.C.,1987.

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Revista Principios - Depts, Filosofia UFRN, RN, ~. n -Nt I Junho de 1995

A QUESTAO DA SECULARIZA~AO

OSCARFEDERImBAUa-iWrr'z DEPARTAMENTO DE f1L050flA DA UFRNIUFRJ

Coma urna antiga estoria que por volta de 200 a.c. urn prosperocomerciantedePompeia, cbamadoPubliusLibonius, tinba oferecidoaliberdadeaseu mais queridoescravo, Loreius.Emtroca, estedeveriaencontrarumafrasetaJ que,amaneiradospalindromos, pudesse ser lida da esquerda para a direita e ao reves. Mas nio apenasisso,Publius,deespiritoa.uiosoevoitadoparaaselu~ sobreoincompreensivel,exigiradoescravoumaftasequeabrangesse todo 0 misterioda existencia. Assima fraseteria que significara mobilidade do mundo e a imutabilidade do divino. A tarefa assemelhara-seaos olhos de Loreius a possibilidade de ser livre. Pouco apouco foisendoenvolvidopeloenigmada frase. Sonhos0

perseguiamesequerconversavacomseusenhor. Tornara-seinquieto e preocupado. Ate quenumacerta manhi, apos muitoter sonhado, eleadescobre:Satorarepotenetoperarotas. Seu primeiroimpulso foi 0 de contar ao seu senhor e adquirir a liberdade. No entanto, a caminhodecidenioir.Percebequeestandotaoproximaaliberdade, apenasurnprazerpoderia ser maior:adiar, por propriavontade, a libertacao. Emboranio conte a frasea Publius,jaDiose senteurn escravo.Por outro lado,Publius,ao conbeceradecisiodo escravo, nio sabe oquefazer. Refletesobre0 assuntodiaenoite,emaranha­se em conjeeturas e em hip6teses, Dio sabe se 0 escravo de fato encontrou afrase ou senada maisequeurnardil.De al.gumaforma a suavidatomara-se,emespirito,servadoseuescravo. Comonuma partida de xadrez ele procura esgotar as possibilidades do seu oponentenumamutiplicidadedejogadas semfim. Loreius,por SUa

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vez, estAdecidido arevelar suadescobertaapenas na hora damorte, paraque afraseassinale sua sepultura. Entretanto avaidadeperde­o. Aposbeberdemasiadovinhoedeter comuma cortesa, elerevela a frase. No dia seguinte, PubLius e toda a cidade imortalizaram a descoberta do escravo. Este, ao ver seu achado tornado publico, vern a matar-se diante daquela que 0 enganara.

Aparte 0 final tragico quepossui, a estorianosprovocaeternseu centro na frase de Loreius. Ele representa ao escravo urn valor especial, ao ponto dele preferir 0 privilegio de conhece-laagozar a liberdade. Paranos, que estamos distantes mais de dois mil anos ela DaO esimples de ser compreendida. A frase pode ser traduzida da seguinte forma: " Aquele que semea sabe manter com cuidado a charrua nos sulcos".

A frase nos interessa aqui pois ela expressa a re1a~io que se estabelece entre a imanencia e a transcedencia Tal rela~ eque propomos comentar, considerando-a a partir de uma epoca que se tomou secularizada. As formas variadas querecebeu 0 binomio imanente-transcendente caracterizam e possibilitam os diversos processos e etapas que it historia apresenta Toda epoca se mantern segundo urn certo aspecto desta rel~iio. Eneste sentido que toda epoca expressa, isto e, mantem em suspenso, uma determinada vigencia etica.

o vigor de uma etica so pode ser compreendido a partir do sentido que se concede i existencia, i ambi&1ciana qual se insere o bomem, e nao a partir de regras de conduta, expressas em moldes, em mores, pois estas sao apenas consequ&cias de detenninado ethos. A epocasecularizada produz uma mea que se increduliza no proprio processo de cons~? Esta etica somente se plenifica quando elimina a rela~io entre imanencia e transcendencia? Asecul~ enquantown processohistOrico se realiza totalmente, alcancaoseusummus, nomomento exatoemque perde de vista a re1a~io originaria, uma vez que prescinde de qualqwJ"refer&1ciatranseendente, autoreferindo-seacadamomento, chegando ao ponto de absorver e entendera transcendertcia como sendo nada maisque a propria realidade imanente?

Estas sao as questOes que nos motivam a pensar a relayio necessaria entre a seculariu~o e a moderna perda darna fe, a incredulidade. Percebemos que a senteacade Loreiuseanterior i secuIari~, eisto porqueelase refereir~originaria.Assim,

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oescravovisaexpressarahannoniaemreumprincipioquetranscmde a realidade e a rea.lidade enquanto tal. Esta harmonia sO pode ser pensada porqueestaaquemdasecularizacaoeportanto presencia umaoutraeticidade. Embora nao sejanosso proposito tratardesta outra etica, ter em mente a frase misteriosado escravo nos servira como ponto de partida pois ela se insere numa epocaque ainda vivencia a credulidade, justamente 0 que a secularizaio tende a excluir da existencia humana. E neste sentido eta nos apresenta elementosdos quais estamosmuitodistaotesdevivenciar, ou seja, de algumaforrnaas suas palavras exprimemumaexperieneiaque nos desconhecemos, pois elas dizem sobre a rel~ da criaturacom 0

criador, dofinito com 0 infinite, doquemudacom 0 imutilvel, enfim, do ente com 0 ser.

Estamosdiante deuma posturaespeculativa que, sem duvidas, apresentaumcarilterparadoxal "Provaievedequeo Senhorebom " <liz Salrno, no entanto estaexperienciaque traz 0 conhecimento e que entra em contato com Deus ou com uma entidade metafisica dificilmenlepodeserexpressaempalavrasquenioestejamnaOrbita defe. Poisa re, comoouviramosHebreusaPauJopregar, "eaposse antecipadado que se espera, urn meiode demonstrar as realidades que nao seveem". 0 carater invisive1e irredutivel desta realidade torna a compreensao datranscedencia urn conhecimento queesta isento de provas e justificativas, mantendo-se sob 0 manto da revelacao. E, na medida em que esta compreensao se revela ao crente, a fe e libertadora. Salvo as experiencias misticas que possibilitamo conhecimentodireto e imediato, que Tomaschamou de cognitiode;experimentalis, 0 homem credulose libertaa partir da propriagratuidade do seu ato de crer. Assim, aceitar a verdade reveladanaoeuma posturaquesejustificaporouem~de,mas, unicamente, porque esta postura se fundamenta " elle-meme ". A demonstracao que 0 apostolo aponta so pode ser aceita a partir da fe. E neste sentido que a fe e antonoma; embora parta da revelacao, a fe sO encontra seu fim quando da maximasemelhan­ca com Deus. Nao se trata de pensar a praticidade da fe, pois 0

fimaqui nio comportameios. 13 urn fimquepressupoeumcomeco, masenquanto urn principio ou origem. Principiumsineprincipio, quia non aliquando coepit.esse, sedsemper era quodest, pensa Joaquim de Fiore. A fe vigora no sentido de aproximar 0 homem desteprincipio. Quantomaisseaproxima, maiora~.Uma

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similitude que se expressa,: nio no aspecto formal, mas na vita spmtualis, isto e, a existencia que' se entrega plenamente a contemplaeao do principio transcedente. 13 desta entrega, deste desprendimento que diz Avicena: "quando 0 espirito e livre se mantem verdadeiramentedesprendido, ele forca Deus a vir ao seu ser; e se pudesse subsistir sem forma a1guma e sem quaisquer acidentes, ele assumiria 0 ser proprio de Deus ". Damesmaforma em Eckhart, queentendeque 0 tim '. Ultimo da fe e 0 proprio desprendimento: " ... 0 desprendimento enobre emsimesmo poiso espiritopennanecetioinsensivelemface detodas as vicissitudesda alegriaedador, das honrarlas, dos tiltrajes edos insuhos, comouma montanha de chumbo e insensivel a um sopro de vento Tal desprendimentoconduz ohomemamaxima semelhancacomfseas "

Quando pensamos a fecomo libert~io ou desprendimento tomamos nas maos 0 que Nietzsche charnou "0 novelo dos mais profundos dos problemas eticos". Tanto Iibertacao quanto desprendimento dizern respeito a urncerto abandono daexisten­cia emsuamundanidade. A vida, tal Como a conhecemos, isto e, nascimento ernorte, eorientadaparaa contemplacaodo principio originBrio.Nestesentidoafeseaproximadafilosofia,ambasquerem conhecer 0 que e"digno e grandioso ". 0 que motiva a fe nio se encontranoslimitespossiveisdaexperiencia-aima.nencia -massim numprincipioquetranscendeesteslimites. Entretanto, 0 principio, ou melhor, a aceitafriodeumatranscendencia, que estaaquem dos limitesimanentespoiseoriginaria, sustemuma eticanaqualapr6pria vidaassemelha-se a uma •• soma de injusti~s •• a ser expiada. Uma existenciaque nio se legitimamas, ao contrario, se penitenciapelo sucumbir.E nesseprocesso de geracaoe corrupeao datotalidadedo existente que reside aprofundidade do problemaetico: Afinal,oque valeoexistir?

Pensar a existeneia a partir de urna injustica ou de uma culpa, seguida de uma expiacao ou de uma penitencia, Dio e urn privilegioda fe crista. Isto ja se encontra expresso na Sentencade AnaxirnandrodeMileto, talvezamaisantigadopensarnentoocidental: "De onde as coisas tern seu nascimento, para Ii tambem devem afundar-se na perdicao, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e serjulgadaspela suainjustica, segundo a ordem do tempo ". No entanto eatraves dotroncojudaico-cristaoque oOcidente se

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toma apologistadeuma outra vida, a qual, emboranio subvertaa necessidadedamorte,semodifica,tornando-seumavidadedicada e justificada para epela fe, isto e, a aceita~o do mYSterium tremendum. Destaforma,0 valor que seoutorgaaVidaprovemde umaoutra dimensioqueIlio aordinaria, ou seja, eoextra-ordinsrio quepossibilitaumsentidoapr6priaexistencia. Umaeticasalvacionista entendeLowith. Noentanto,nIoepropriamentea~prometida

quecaracterizaumaet:icae,por consequencia,umaepoca credula, mas,principaJmente, 0 voltar-se para, emdirecao ao que n80 esta submetidoaofluxoconstantee ininterruptodo vir-a-ser Umamica que vigora no sentido de sedispor ao que transcende."Nada esta foradeDeus,pensaSpinoza,poistodasascoisassao(tern existeneia) nele". Principioquetranseende,masqueestapresenteemcarla ens creatum. Esta presenea que transcende e se inserena etica como referenda necessariaparatoda ~iio, isto e, a moradado homerne edificadaa partir de uma relacao que se remete aorigem a carla momentode seu obrar. Perder tal referenciae 0 que caraeterizaa ~eaincredulidade.

A caracteristica basica daseeutarizacao consiste na perda de referenciastranscedentes. No entanto, tal processo nio esimples de ser limitado,quer dizer, encontrar 0 momenta no qual perdeu o homemesta referencianioetarefa de poucamonta. Cabeainda indagar por aquela referencia que ocupou 0 lugar da transcendencia, se eque isto epossivel.

A seculariza~ pressupOes a construcao do saeculum, desig­nando assim 0 tempo propriamente historico em oposieao a etemidade. Esta oposi~io,. embora erie urn antagonismo entre uma existencia secular e uma existeneia eterna , Dio engendra, necessariamente, uma etica incredula. Neste sentido uma etica secular niioeprerrogativa de uma epoca que perdeu a fe, a Ilio ser quando se pensa 0 saeculumde uma maneira inversa. Istoe 0 que sugere Voegelin; na modernidade, notoriamente a epoca secularizada,ocorre umduplo processo na secularizacao. Por urn ladoatranscedenciaqueseafiguranodivinoeabandonada, Mas por outro lado 0 homem modemo torna para si 0 carater do divino, ocorrendoentioumadi~iodo serhumanoe,principahnente, do ohrar humano. Neste sentido no saeculum, despojado de sua referencia transeedente, continuam a vigorar as condicoes transcedentesabsorvidaspela propriaimanenciahumana.

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Ecerto que 0 cristianismopensouosaec:ulum, entendendo com istoo tempo no qual seinsereatotalidade do existente. No entanto, a medida deste tempo parte daalma, como anuncia Agostinho:

"0 que agora esta patente e claro, nem epretento e nem e futuro. Nem se diz compropri­edade que os tempos siio Ires, preterito.presemeefuturo. mas talvezsedissessemaispropria­mente, 0.<;tempos siIo Ires: pre­sente dos pretentos, preseme dos presentes, presente do«fu­MOS. Pois elesseapresentam aalma, respectivameme. como memona; vista e esperanca ".

A perspectiva agostiana do tempo e, desta forma tambem, da historia, orientou grande parte do rnedievo cristio. Ao identificar o tempo apercepcao d'alma, Agostinho por urn lado colocou urn termo as" f'abulas ridiculas dos khiliastas"; mas, por outro lado, conservou no seio do cristianismo 0 e1emento que teria gerado ate mesmo os milenaristas que ele combatia: a esperanca. E importante lembrar que 0 saeculum sempre esteve ligado aideia da parousia, ou seja, 0 seculo cristio eo periodo da espera, a expectativa da segunda vinda, a espera da esperanca. E, oeste sentido, Agostinho traz a estabilidade a ordem temporal, vale dizer, a trajet6ria historica, 0 permanecer na cidade profana, se mantem confonne osdesignios divines. "Urn dia perante Deus e como mil anos e mil anos como um dia", recorda Agostinho. De talsorteque aparousiaesempreumaespera, mas urnaespera que encontraseu 6m no interiord'alma. anavesdafe, que aproximando o homemde Deus the possibilitaa presence divina.

o tempoordenadoporAgostinhonaideiadosaeculumengendra uma eticacristi, que se mantem atravesdarelacao dacriacao com oCriador.Estarelavio,comovimos,nioepuramemewnfenOmeno cristio. A bist6ria das religi6es fomece diversos aspectos desta r~.Ofato do cristio, imbuido defe, se projetarnahistOria, ede pensa-la a partir da contemp~do criador nio permite que a

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sea.JlariZ8{AoseJaidentificadaaocristianismo, salvoqueseentenda comclareza 0 que signifiea 0 soeculum no sal sentido original. Ou, o que e mais grave, nio se pode tomara eticacrista como sendo, de algumaforma, veiculo da incredulidade Pensara seculariza~o e a incredulidade a partir do cristianismo, seja pela sua fe ou pelasua realjza~ohist6rica, niodeixadetmzeravistaumprofundo paradoxo. No entanto, a modernidade, a epoca secularizada e incredula por excelencia, conseguiu eliminartal paradoxo.

A modernidade constitui uma epoca que nio pennite facil delimit~o. Disto decorrem as dificuldades em tratar esta epoca de urn modo geral. A etirnologia do tenno que a compOO, 0

modemo, como bem lembra Pe. Vaz, apenas aponta "0 que e recem cbegado" ou "0 que erecente". No entanto, mais que uma adaptacao do adverbio latino modo, a modernidade designa uma epoca que instaura urn processo de afastamento e esquecirnento da rel~o originaria, que tern na incredulidade a sua mais pervertidaconseqtiencia.Diantedestasdificuldadesdede~o,

nos resta suporque se a incredulidadeeconsequencianecessariada rnodernidade, deve estar presente ja nos primordios dessa epoca. Valedizer, supomosquea incredulidadetema suagenesenaprimeira manifest~oquepossa ser denominadacomo modema.

o fen6meno cia incredulidade nio consiste unicamente num simples ateismo. Isto e, a negaeao de Deus ou Deuses, ou Binda, a d~danatureza, sedistinguedaincredulidade. 0 ateisrno jaseenoontrano pensa.mento grego;nio sonasLeisdePlat8o. onde sepercorreosmodosdoateismo, ouno materiaIismoepicurista, mas tambemnodiscursosofistico, comoemProtigoras :"Naturalmente nioestouemcondi~desaberdosdeuses,nemdequeseiam, nem de que nio sejam, nem de como sejam em seu aspecto. Porque lui muitascoisasqueimpedemperceber0 existentecomotal:tanto anio revel~aodo existentecornotambem a brevidade do curso hist6rico do homem". Ou ainda, nas aporiaselaboradas pelo ceticismo, como as apresenta Carneades de Cirene: "Se existem, os deuseseStio vivos e se estiio vivos sentem. Se sentem recebemdorouprazer. E se recebemdor ou prazer sao capazes deturbacoes emudan~asem seudetrimentoedetalma.neirasao mortais. Portanto, se sao mortais nio sao deuses". Em suma, 0 ateismo grego talvez possa ser entendido comoum ateisrnofilosofico, isto e, umademarcecao do quepodeconheceron sobre oquepodedizerodiscurso filos6fico.

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Embora apresente 0 ateismo, entendido como urn esforco de racionali~, aepocaqueosgregosvivenciamnioseearacteriza pelaincredulidade, namedidaem que afe permanecepresente,seja atravesdeumareligiosidade"oficial", sejapelasreJigiOesde misterio, imbuidas deumcarater esoterico.

Conta Plutarco que pouco antes do cristianismo triunfar, espalhando-sepelos mais remotos rincoes do mundo civilizado, uma voz misteriosase fez ouvir, revelandoum segredo: Pan esta morto! Tal revela~o teria sido aceita de bom grado pelos homens desse tempo. Tendo 0 cristianismo absorvido as pecu­Iiaridadesdas religiOes antigas,e chegandomesmoa seoficializar no ImperioRODWlO, a morte do antigo deus da natureza signifi­cava ao homem, nio urn profundo pesar, mas, ao contrario, urn verdadeiro a1ivio. Estando morto 0 simboloda natureza estaria morta a t~o que conduz ao mal. No entanto, vale notar que a mortedodeusnio implicana incredulidade, pais a fepermanece e, arriseamo-nos a dizer,que a nova fe, a novita christiana, manifestou-se com tal pujan~ como nenhuma outra epoca conheceu.

Ecerto que 0 grego na origem de sua religiosidadevive a feb de umaformaextremamenteviva. Sacrificios, imolacoes, oracu­los, templose religioesdiversas pertencemao cotidiano e carac­terizam a epoca dos gregos antigos. Contudo, e sO a partir do cristianismo que encontraremos uma fe que se edificatemporal­mente e que fundamenta a disposi~ etica, Ebem conhecido 0

sentimento de orgulho do homem grego: "Nio nos curvamos nemperante reise nemperante deuses". A rel~o do grego com seus deuses, que estao sujeitos aos mesmos sentimentos que os homens, estabelece uma distincia entre deus eo homem. Esta distincia determina, por um lado, em que consiste a ambiencia humanae, poroutrolado, o lugardosdeuses.o sentimentodogrego cl8ssicoesta longedeadmitirinterferenciasdivinas, taiscomoasque apresentarn os relatos homericos. Neste sentido, a morte de Pan assinalaofimdo decliniode determinada reeepoca. Epocaestaque sOconheceuoateismoapartirdeuma perspectivagnoseolOgica, seja pelaimpossibilidadede sealeanearajustamedidadeDeus,sejapelo interesseinquietantedeconheceroslimites, istoe,apropriaablangmcia doconhecimentohumano. Assim, enquanto 0 gregoviunadivindade amedidadesuaexistencia, produziu urnpensamentooriginario, no

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sentidodeencontrarumfundamentoemtodooexistente. Objetar­se-ia que se trata de urn panteismo disfarcado, e dessa forma poderiamosaproximar 0 grego do homem moderno, noentanto, a rel~ dos pensadores com essa origem, embora suscite nocoes que remetem IIempiria,produziu umpensamento que de nenhuma forma pode ser tornado como empirico, no sentido modemo do termo. Em suma,ajustamedida, a mensurabilidadedo queexiste, Diosearemapenasaobserva¢eseexperiencias, masque,sobretudo, trazwnarefererr.iaaolllpra-sensivel,justamenteoqueoconhecimento tecnificantee aincredulidadeniopodem, nemquerem, abranger. .

Aindaque breves,estasconsideraeoes, que ateaquifizemos,nos auxitiamemnossoprop6sito.Resta-nosentao,quevohemosanossa questio eaosseusdesdobramentos. Porumlado, percebemosque seaincredJJ1idadeefiutoda~,endodeveserencontrada nas origens de tal processo e, vale dizer, da modemidade. E, por outrolado,percebemosqueapropriaepoeamodemafazumavoha, "un tour de force", e encontra 00 cristianismo a genese, tanto da ~quantodaincredulidade.EsteUltimoaspecto,alemde suscitarwnaantinomia,asaberdoteismoseoriginaoateiSlDO,ouque da credulidadeseoriginaa incredulidade, fazda secularizacgo uma notacaracteristicadocristianismo. Ou seia,afe cristae secularizada desde a sua origem, entendendo assim que 0 dogma maior do cristianismo,de queDeus sefezhomem, e aprimeiramanifest~o

da secularizaeao. Aniquilimmtodavontade,enfraquecimenlodohomem, tnJw1encia

eclesiistica;sejasob aperspectivaquefor,encontrarno cristianismo as mazelase osequivocos detoda umaepoca nioe souma postura anti-crista, dotada de urnanimuslaedendi, mas sim,0 que e pior, uma simples redu~io dos acontecimentos e entender 0 saeculum cristae a partir deurn sentido que nio 0 que a propria fe crista professa. Ora, mesmoAgostinho, 0 grande "rnestredo ocidente", confonne as palavras de Gilson, embora situe 0 saeculum na dimensio temporal, Diodeixadereconhecer que os sucessores de Cairn,propriamenteoshabitantesdacivitaste"enapreoropam-se maisem "edificarcidades"que emhonrar aDeus. Enquanto queos herdeicos deAbel,emsuapermanenteperegrinatio, tomamsuavida como um progresso emdir~o aVerdade, que e 0 proprio Deus. Esta diferenca por si so ja separa os homens propriarnente,como diriamoshoje, "seculares"eterrenos, daquelesque sioespirituaise

- .:, '. . .

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celestes. Nestadif~o nio halegitimidade cristaparaaqueles quesepreocupammaiscornascoisasdos homensquecornascoisas divinas. No entantoadifereJll;&n80 esuficienteparaentendennosas aiticasqueprovemdasanaIises modemasdocristianismo, poisseus autoresnio manwmumaquerela pessoal comafecristi. Portanto, cabe-nosapreciar taiscriticaseentenderde queforrnaelasresolvern o paradoxo de creditar itfecristaascausas de uma secul~ioe daincredulidade ernquevivemos.

Epelo pensarnentode Nietzsche que encontramos a sentenca maisclaradaincredulidademodema. Atravesdo freneticoficamos sabendoque"Deusmorreu". Estafrasepodesertomadacomouma decortencienecessariadeumaeticidadeque sedelineanaaurorada modemidade. Ecertoquea frasee expressiodeurnaeticaincredula. ooentanto.percebemosqueoenfi"aquecimentodafejaseencontra presente a partirda Alta Escolastica e principalmente,no deismo arWogoediminuenteexpressopelosmodemos. TantoateoJogiadita aristotelico-tomista, quantaaracionaliza-yiodeDeus, Diosesituam na orbita da fe. Isto e. 0 esforco de conhecer Deus Ilio parte da credulidade, masdometodoedaretidio dousoda razioemdelinear a ideia de Deus. E urnesforco destanatureza Ilio poderia sermais contririoacetebre~agostiniana, pelaquaJ expressaarel~

entre 0 conhecimentoe a fe: "Nio procuramos compreenderpara crer, crernospara compreender e nio compreenderiamosse nio cressemosdeinicio' .

Coube a Nietzsche proclamar ern estiJolapidar 0 que parecia impronunciavel, Aindaque a "morte de Deus" nao expresse urn sentimento original ( ja virnos que ele foi expresso DO fun do paganismo) nospodernosaoompanharHeideggeremsuaspalavras. quandodizque talfrase"aludea propriahistoriado Ocidente".Sem davidas.oqueestaem referenciae 0 proprio cristianismo,a morte do Deus Trine. 0 episodicdo frenetico nos diz: "Como podemos sorver toda a agua do mar? Como podemos apagar as linhasdo horizonte1"Asrespostasataisindagacoesdeixemclaraa referencia aocristianismo, quando, apOsentraremdiversas igrejaseovacionar a eternidade divina, 0 personagem pergunta :"Que sio as igrejas senio asfossas e astumbasde Deus?"E aindacontinua Nietzsche : "0 maiordos acontecimentosmodernosja comeea a projetar as suassormrasnaEuropa: QueDeusestamorto. queaa~noDeus

cristioconverteu-seernincredulidade".

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Entendera"mortede.Deus", 0 fun da fecrista, suseita, emsoma, que se responda esta questao: De que forma se desenvolve a conversio da fecristaoumaincredalidade ?Respondera talquestio e compreender em que sentido a "morte de Deus" designa 0 fato unicoda hist6riauniversal, a saber, queniohamaispertinenciapara a existencia do divino. E, ainda, compreender que a postura nietzsclteananaoewnmeroateismo, mas wnacertaleituradafecristi pela qual a "morte de Deus " euma consequencia propria do cristianismo.

Ora. tais indagacoes, berncomoas suas possiveisexpli~, devem ser investigadas a partir do pensamento de Nietzsche. Desta forma. 0 paradoxo de encontrar os gennes da incredulida­de na credulidade crista, so pode ser resolvido a partir do conceito-mor que orienta a leitura que Nietzsche faz do cristia­nismo : A vontade de potencia E a partir deste conceito que Nietzsche considera 0 cristianismo, caraeterizando-o como sen­do, por principio, umafe e urnaetica que se constroi sobrevalores nihilistas.

E no Anticristo que Nietzsche apresente a sua critica mais vorazsobre 0 cristianismo. No entanto, parecejusto que faeamos a consideracao de que tal criticatem como objeto, principalmen­te, a fe crista pensada, expressada e expandida por Paulo de Tarso. Ajustezadesta consideracaofaz-nos refletirsobre 0 papel que desempenhou a obra de Paulo nos primeiros momentos do cristianismo. Nio se trata de equacionarmosos diversos matizes que compuseramacanonicidadedo cristianismo, istoe, aindaque conhecamos os apocrifos, que tenhamos acesso as elucid~es

epocaisdo Mar Morto, que saibamosdos problemas inerentes as tradu~biblicas, umacontecimentosedaaopensamentoequeja seencontraexpressonointeriordaEscritura. Com issoqueremos deixarde lado as possiveisintencoeseclesiasticasque possamter orientadoaaceitacaodesteoudaqueletexto"cristae" paraquenos atenhamosespecificamente aleitura dos textos paulinos aluz da analise deNietzsche.Este deixardelado, contudo, nio induzuma reducao ou urn apequenamento dos problemas propriamente hermeneuticosdaBiblia. Seagimosassim epor entendennosqueas obje¢esqueNietzschepropoepodem ser investigadasnoslimites mesrnosdaobradePaulo.Agindo-sedessafonnasaberemosqueas aiticasdeNietzscheafecristisemantemnumadimensiofilosOfi.ca

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por excelencia, da qual pode se encontrar a pertinencia de sua interpretacao no que diz respeito Ii superacao do paradoxo. Uma interpreta~ que deve, entio. apresentar a logica que permite, segundo as palavras do proprio Nietzsche. a "conversao" do cristianisrnoaincredulidade, ao nihilismo.

Alinguagem queexpressa 0 Anticristo edetal forma, digamos, inusitada, que, porvezes, temos a impressao de que seu autor, por estabelecerumaradical oposicao ao cristianismo, perdia-senouso das paJavras. Somente assimpodemos entender0 epiteto de Paulo como 0 "ap6stol0 da viaganca"; e tambem entender 0 cuidado recomendadode"calcarhrvas, poisa issoobrigaa proximidadede tantairnundicie", quando serefere Ii leituradoNovoTestamento. De qualquerfonna, prowramospela filosofia, portanto, Dio nos cabe ater-nos aoquilatetingilisticoutilizado mas, sobretudo, asquestoes que sio propostas e que se referem a"conversao".

Nietzsehenionosofereceumcorol8riodefinitivodesuaobj~io

aocristianismo.contudonioatrai~-lo-iamosseconsider8ssemos

queessaconsisteem entenderque 0 "cristianismoeumareligiaoque violae subvertea namralidadeda existencia, que epropriamente a vontadedepoder".E neste sentido que ele afinna que "bornetudo aquilo queaumenta no homern 0 sentimentodepoder,avontadede poder, 0 proprio poder; e 0 mau tudo 0 que procede da fraqueza". oquecaracterizaeo instintode crescimento, ~io. oacUmulo de forcas.logo, ondefitltamtaiselementoshadegener~o.corrupcao, declinio ou 0 proprio fim. Desta forma, segundo Nietzsche. uma religiio da piedade, que e0 sentimento da tolerancia para com a fraqueza, acarretaumainversiodosverdadeirosvaloresvitais. Vital. neste sentido, designatudo quanto rnantem a vidano seu contexte terreno,naarnbienciapr6priadetudoqueexiste.Assim,oaistianismo. marcadamente a religiio dosfracos, elaborou urn ideal em oposicao aos instintos de conservacao da vida. "0 cristianismo, prossegue Nietzsche. defendeu tudoqeantoefiaco, baixo e palido",urn homem dotado devalores outrosque nio osnaturais. VaJores verdadeiros dizo cristianismo. No entanto, Nietzsche procurademonstrarque uma vida nio everdadeira ou falsa, isto e. osunicos valores que se podem aplicarli vidadizern respeito, unicamente. aoqueserveounio aconservacaodessavida. Distodecorreo problemadocristianismo de encontrarvaloresverdadeirosparaa vida, poistaisvalores.janao se encontram nesternundo. mas, no "mais alem", em suma, 0 valor

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da vida crista sO ealcan~o quando do encontro com Deus. E justamente irpara"alem de", 0 desejo de encontrar, que tambem euma promessa que 0 cristianismo fez florescer. Ir em busca de Deus, esperar por esse encontro, e, segundo Nietzsche, uma subversio dos valores vitais, a tal ponto que 0 proprio Deus se transforma. Atributos tais como 0 que eforte, valoroso, domi­nante, orgulhoso, enfim, tudo 0 que caraeteriza uma vida supe­rior, eabandonado e subtraido do conceito de Deus. Deus passa a ser"um b8cuJo paraoscansados", uma"tabuade salva~" para os que se afogam. 0 Deus cristio e0 Deus dos desgracados, dos pecadores, dos enfermos, em sama, 0 Deus dos fracos.

Ora, cabe-nos voltar a questio principal apresentada por Nietzsche. Se 0 cristianismo cria urn Deus que subverte os valores da vida, testa-nos, entia, que entendamos as consequen­cias desta subversio. Eo proprio Nietzsche que pergunta: A que conduz tal transformacao e tal redu~ do divino? Ou de uma outra maneira: 0 que ocorre quando se invertem, ou se abando­nam os valores vitais? A resposta e simples: A piedade que fortaJece e fundamenta 0 cristianismo e, a rigor, uma pratica do nihilismo; a piedade, a propria fe crista, persuade os homens ao nada, a urn Dadadivinizado em Deus; fazda vontade uma vontade para 0 nada santificado. As consequenciasde tal fe, desta pnitica pela qual 0 homem constroi umaetica, onde os vaJoresque regern a sua existencia naodizem respeito propriamenteavidaouaterra, masprincipalmente, aumaverdadeque seencontraparaalemdessa existencia. E, no quetern de abandono de uma vida"concrete", 0

cristianismoinstauraumaapologiademorte,deumavidaqueniose justificaanlo serern razio de suacrenca, dacrenca quese legitima no "alem",junto a Deus. Disso decorreque a"mortedeDeus"seja uma decorrencia do cristianismo, pois eproprio ao cristianismo 0

afastamento da vidae dos valores que the correspondem. 0 nada que santificaepara0 qual todos os homensdeveriamconvergir, bern como too os os tempos, uma vez que a fe crista e sabidamente universal, istoe,0 cristianismoseprotDJlgacomoareligiioverdadeira, em detrimento de todas as outras, e apresenta aos creates uma salv~ abstrata. Esta abstracao, pensa Nietzsche, esta presente nos principais argumentos do cristianisrno: Culpa, Pecado, Juizo Final, Vida.Etema, etc... Estasideiasdesviamo olhardarealidade e oferecemuma redenyio e urn consolo para os fracos, para aqueles

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queniosio senhoresdeumavontade depoder;contudo, 0 salvar­see redimir-se nao seencontram sobre a terra. Epreciso a morte p8l1lseremencontrados. Nessesentidoa"conversio"doaislianismo emincredulidadeseriaa passagernnecessariadeuma eticaquenio seresignaavida, talcomoaconaecemos, e seorientaparaumaoutra realidadequenuncafoi vista. Umarealidadequeenadificantepois sobre esta Dioh80 que ser dito, a Rio ser a partir da esperanea de queaboanovasejaverdadeira, umavezquetal realidadeestilonge de ser provada,e mesmoconhecidanaexisteneia, Nietzscheve na boa novaurngrande engano, pois, na realidade,0 que seterneurn dysangelium, umanoticiainfeliz. E isso,principahnente, porqueafe crista, transfonna 0 estarno mundo num simplesmomenta que se orientapelosereterno. FinaJmente, econtraa~dohomem

e dapropriavidaqueNietzseheproclama a"morte deDeus" como frutotardiodocristianismo.

As obiecoes levantadaspor Nietzsche nio sao desprovidas de sentido. Percebemos que ba uma relativa pertineneia em sua oposi~ ao cristianismoe em sua analise sobre 0 nihilismo. No entanto, a historia Dio permite maximas e tampouco formulas magicaspara secelucidada. Portanto, continua aberta a questio da secularizacaoe da incredulidade,e ainda, a rel~o que possa existir sobre 0 cristianismoe seeularizacao. Entendemos que 0

exercicioqueaquifizemoserntomodessaquestioeWlidonosentido de apresentar alguns dos pontes que devern ser considera.dos quandodaan3lisepretendida.

Outrossim,a questio da secul~io provoca ao pensamen­to uma investiga~o profunda da epoca que vivemos.. Embora possamos ver um certo "retorno do sagrado" Rio podernos deixar de ver tambem que mesmo urn retorno dessa natureza ja coloca em suspenso 0 proprio sagrado. E sem devida uma questioaqualdevemosresponder. Senio a partir da fe, poisessa pressupoe uma disposicao de quem conhece, mas ao menos, a partirda rela~o que se estabeleceentre uma epoca credulae urna epoca destituidade quaisquer referenciasuJtra-sensiveis. Qual 0

momento ou qual 0 desvio que a humanidade seguin no seu percurso historico que provocou a increduJidade e a secuIariza­~o, berncomoa decorrente"fugadosdeuses" permanecesendoa rnateriamesmadopensarnento boje.

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BIBLIOGRAFIA

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HEIDEGGER. M. - Sobre lafrase deNietzsche: "Dios ha muerto".

LOWITH, K. - 0 senudo da historta, Ed. 70. Lisboa, 1991.

SANTO AGOSTINHO - A cidade de Deus. Petropolis, Vozes,199O,.

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L

ISS

Revista Principios - Depr>. Filosofia UFRN, RN, ~l. II - N! 1 Junho de 1995

511 NADA EVIR-A-SER·

GEORG WILHELM FRIEDRIQI HEGEL(1770(1831)

A. Ser.

Ser, ser puro- sem qualquer outra determinacao. Em sua imediatidade indeterminada ele e apenas igual a si mesmo e se­quer desigual face a outro; nio possui nenhuma diversidade dentro ou fora de si. Pois se fosse instaurado (gesetzt) mediante alguma determinacao ou conteudo qualquer que nele fosse dis­tinguido, ou mediante 0 qual ele fosse instaurado como diverso de urn outro, nio iria perseverar em sua pureza. Ele e a indeterminabilidade e 0 vacuo puros. Nada se pode contempJar (aoKhauen) nele, se e que se pode falar aqui do contemplar; ou melhor, ele e apenas este proprio contemplar puro, vazio. Tampouco se pode pensar algo nele, ou melhor, ele e, igual­mente, apenas este pensar vazio. 0 ser, 0 imediato indetermina­do, e na realidade nada, nem mais nem menos do que nada.

B. Nada

Nada, 0 nada puro, e igualdade simplesconsigo mesmo, va­cuidade perfeita, ausencia de determinacao e de conteudo; indiferenciabilidade (Ununtenchiedenheit) nele mesmo- Na me­didaem que 0 contemplar (AnKhauen) ou pensar (Denkeo) pode aqui ser mencionado, vale enquanto uma diferenca, qual seia, se algo ou nada econternplado ou pensado. Nada contemplar ou pensar possui portanto uma significacao;ambos sao diferenciados, assim nada e(existe) em DOSSO contempJar ou pensar, ou antes e 0

proprio contemplarou pensar vazio, 0 mesmo contemplarou pen­

• FralJl1elllO extraido da Wissenschaji der Logik (Ciencio do Logrcav: J, pp. 82/83. in: Werke in Zwanzig Binden. Werk II" j (volume V). Frankfun am Main. Suhd.arnp. 1969

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sar vazioque 0 ser puro - Nada, com isso,ea mesmadetermina­~o, ou antes ausencia de d~'. Portamo, eabsolutainente (iberla.upt) 0 mesmoque 0 serpuro.

C. Vir-a-ser

a. Unidade do Ser e do Nada

o ser puro e 0 nadapuro sao, por conseguinte, 0 mesmo. o que a verdade enio enem 0 ser nem 0 nada; nem mesmo 0

fato de 0 ser transitar no nada e 0 nadano ser - mas simque cada um transitou no outro ". Porem, do mesrno modo, a verdade nio esuaindiferenciabilidade, massirn que eles niiosao 0 mesmo; eJes sao absolutamente (absolut) distintos, porem sendo ao mes­motempo indissociados <_gftraUIt) e indissociaveis (untrennbar), de talmodoque carlaurndesapareceimediatamente emseuopos­to. Suaverdadee, portanto, este movirnento dodesaparecerime­diatodeurn no outro: 0 Vir-a-ser. Um movimento em que ambos sao distintos, masmediante umadiferen~ quetaInbem sedissotveu de imediato.

Tradu~o de Juan Adolfo Bonaccini

• 0 texto original reza:

"Was die Wahrtleit iot, ist wed.,.. das Sem noch das Nicll1s. sondem daB das Sein in Nichls und das Nichts in Sein • Ricln ober-geht. sondem ubergegangen ise

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REV/STA SEMESTRAL DOS DEPARTAMENTOS DE FILOSOFIA, FUNDAMENTOS DA EDUCACAO E PRINC(PIOS E ORGANIZACAO DA PRATICA PEDAGOG'CA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLAND/A, MG, BRASIL

CIRETORIA Oiretor, Gereldo Inlcio Filro "

s.;reMria: My,," Das da Cunha Tesourelnl: MwisJde Sacan; Saneeveto

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DlETOR DE EDlTORAc;Ao: RfJ1ine CMa de s.ntis FeIIrBn

btIIE10R DE DMJLGACiO: Marcio ChlMJ&- TBlloos

CONSEI,JtOEDlTORIAl. Antflnio Chizzottj Emlfo lJemuni Jetretson IlMIonso de Siva Ma,;a Lulza B. Sousa Manu LomiJIIeco de Paula Naves RafrJeI CoffleifO SIva Thelma Slveira M. L. Fonseca

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