revista orpheu nº 1 (pdf)(rev)

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Orpheu N 1 Lus de Montalvor, Mrio de S-Carneiro, Ronald de Carvalho, Fernando Pessoa e Jos de Almada Negreiros

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Ttulo: Orpheu N 1 Revista Trimestral de Literatura Autores: Lus de Montalvor Mrio de S-Carneiro Ronald de Carvalho Fernando Antnio Nogueira Pessoa Jos Sobral de Almada Negreiros PORTUGAL E BRAZIL Propriedade de: ORPHEU, L.da Editor: ANTONIO FERRO ANO I -1915 N. 1 Janeiro-Fevereiro-Maro

SUMRIO LUIZ DE MONTALVR Introduo MARIO DE S-CARNEIRO Para os Indcios de Oiro (poemas) RONALD DE CARVALHO Poemas FERNANDO PESSOA O Marinheiro (drama esttico) ALFREDO PEDRO GUISADO Treze sonetos JOS DE ALMADA-NEGREIROS Frizos (prosas) CRTES-RODRIGUES Poemas LVARO DE CAMPOS Opirio e Ode Triunfal Capa desenhada por Jos Pacheco Oficinas: Tipografia do Comrcio - 10, Rua da Oliveira, ao Carmo LISBOA CONDIES Toda a correspondncia deve ser dirigida aos Directores. Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a ndole desta Revista a enviarem-nos colaborao. No caso de no ser inserta devolveremos os originais. So nossos depositrios em Portugal os srs. Monteiro & C.a, Livraria Brazileira - 190 e 192, Rua urea, Lisboa. Orpheu publicar um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72, ao preo invarivel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e 1$500 ris fracos no Brazil. ASSINATURAS (AO ANO - SRIE DE 4 NUMEROS) Portugal, Espanha e Colnias portuguesas 1 escudo Brazil 5$000 ris (moeda fraca) Unio Postal 6 francos Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.a - Editores 190 e 192, RUA AUREA - LISBOA

venda no fim de abril: CU EM FOGO NOVELAS POR MARIO DE S-CARNEIRO A GRANDE SOMBRA - MISTRIO O HOMEM DOS SONHOS - ASAS - EU-PRPRIO O OUTRO A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA O FIXADOR DE INSTANTES - RESURREIO 1 VOLUME DE 350 PGINAS CAPA DESENHADA POR JOS PACHECO Preo 70 centavos

Obras dos colaboradores deste numero LUIZ DE MONTALVR A Caminho, uma plaquette de versos Edio da Livraria Brazileira Preo: 20 centavos MRIO DE S-CARNEIRO Amizade, pea em 3 actos (com colaborao de Toms Cabreira Jnior) Edio da Livraria Bordalo Preo: 30 centavos Principio, novelas Edio da Livraria Ferreira Preo: 70 centavos Disperso, 12 poesias Edio do autor Esgotada A Confisso de Lcio, narrativa Edio do autor Preo: 60 centavos RONALD DE CARVALHO Luz Gloriosa, poemas Paris 1913. Edio do autor FERNANDO PESSOA As sete salas do palcio abandonado, poemas Em preparao ALFREDO PEDRO GUISADO

Rimas da Noite e da Tristeza, versos Edio da Livraria Clssica Editora Preo: 40 centavos Distncia, poemas Edio da Livraria Ferreira Preo: 30 centavos JOS DE ALMADA-NEGREIROS Frizos, prosas ilustradas pelo autor A sair este ano LVARO DE CAMPOS Arco do Triunfo Em preparao Qualquer destas obras pode ser requisitada directamente ao administrador de ORPHEU - Alfredo Pedro Guisado: 112, Rocio, Lisboa. No nosso segundo nmero (a sair em junho) contamos publicar, entre outras obras, as seguintes: Poemas de Fernando Pessoa, Mundo Interior, novela de Mrio de S-Carneiro e Narcisso, poema de Luiz de Montalvr. A fotogravura da capa foi executada nos ateliers da ILUSTRADORA

ORPHEU VOLUME I - 1915

INTRODUO

O que propriamente revista em sua essncia de vida e quotidiano, deixa-o de ser ORPHEU, para melhor se engalanar do seu ttulo e propor-se. E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios, maneiras de formas de realizar arte, tendo por notvel nosso volume de Beleza no ser incaracterstico ou fragmentado, como literrias que so essas duas formas de fazer revista ou jornal. Puras e raras suas intenes como seu destino de Beleza o do: - Exlio! Bem propriamente, ORPHEU, um exlio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento... Nossa pretenso formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de revelaes em pensamento ou arte, que sobre este principio aristocrtico tenham em ORPHEU o seu ideal esotrico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos. A fotografia de gerao, raa ou meio, com o seu mundo imediato de exibio a que frequentemente se chama literatura e sumo do que para a se intitula revista, com a variedade a inferiorizar pela igualdade de assumptos (artigo, seco ou momentos) qualquer tentativa de arte - deixa de existir no texto preocupado de ORPHEU. Isto explica nossa ansiedade e nossa essncia! Esta linha de que se quer acercar em Beleza, ORPHEU, necessita de vida e palpitao, e no justo que se esterilize individual e isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes der orgulho, temperamento e esplendor - mas pelo contrario se unam em seleco e a dem aos outros que, da mesma espcie, como raros e interiores que so, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes falta, - do que resulta uma procura esttica de permutas: os que nos procuram e os que ns esperamos... Bem representativos da sua estrutura, os que a formam em ORPHEU, concorrero a dentro do mesmo nvel de competncias para o mesmo ritmo, em elevao, unidade e discrio, de onde depender a harmonia esttica que ser o tipo da sua especialidade. E assim, esperanados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom gosto e refinados propsitos em arte que isoladamente vivem para a, certos que assinalamos como os primeiros que somos em nosso meio, alguma cousa de louvvel e tentamos por esta

forma, j revelar um sinal de vida, esperando dos que formam o publico leitor de seleco, os esforos do seu contentamento e carinho para com a realizao da obra literria de ORPHEU. LUIS DE MONTALVR.

PARA OS INDCIOS DE OIRO POEMAS DE MRIO DE S-CARNEIRO

TACITURNOH ouro marchetado em mim, a pedras raras, Ouro sinistro em sons de bronzes medievais Jia profunda a minha Alma a luzes caras, Cibrio triangular de ritos infernais. No meu mundo interior cerraram-se armaduras, Capacetes de ferro esmagaram Princesas. Toda uma estirpe real de heris doutras bravuras Em mim se despojou dos seus brases e presas. Herldicas-luar sobre mpetos de rubro, Humilhaes a lis, desforos de brocado; Baslicas de tdio, arneses de crispado, Insgnias de Iluso, trofus de jaspe e Outubro... A ponte levadia e baa de Eu-ter-sido Enferrujou - embalde a tentaro descer... Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer Manhs de armas ainda em arraiais de olvido... Percorro-me em sales sem janelas nem portas, Longas salas de trono a espessas densidades, Onde os panos de Arrs so esgaradas saudades, E os divs, em redor, nsias lassas, absortas... H roxos fins de Imprio em meu renunciar Caprichos de cetim do meu desdm Astral... Ha exquias de heris na minha dor feudal E os meus remorsos so terraos sobre o Mar... Paris - Agosto de 1914

SALOMInsnia roxa. A luz a virgular-se em medo, Luz morta de luar, mais Alma do que a lua... Ela dana, ela range. A carne, lcool de nua, Alastra-se pra mim num espasmo de segredo... Tudo capricho ao seu redor, em sombras ftuas... O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou... Tenho frio... Alabastro!... A minhAlma parou... E o seu corpo resvala a projectar esttuas... Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me, Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto... Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me: Mordoura-se a chorar - h sexos no seu pranto... Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me Na boca imperial que humanizou um Santo... Lisboa 1913 - Novembro 3

CERTA VOZ NA NOITE, RUIVAMENTE...Esquivo sortilgio o dessa voz, opiada Em sons cor de amaranto, s noites de incerteza, Que eu lembro no sei donde - a voz duma Princesa Bailando meia nua entre clares de espada. Leonina, ela arremessa a carne arroxeada; E bbada de Si, arfante de Beleza, Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza O espasmo que a estrebucha em Alma copulada... Entanto nunca a vi, mesmo em viso. Somente A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim No lhe desejo a carne - a carne inexistente... s de voz-em-cio a bailadeira astral E nessa voz-Esttua, ah! nessa voz-total, que eu sonho esvair-me em vcios de marfim... Lisboa 1914 - Janeiro 31

NOSSA SENHORA DE PARISListas de som avanam para mim a fustigar-me Em luz. Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?... Os braos duma cruz Anseiam-se-me, e eu fujo tambm ao luar... Um cheiro a maresia Vem-me refrescar, Longnqua melodia Toda saudosa a Mar... Mirtos e tamarindos Odoram a lonjura; Resvalam sonhos lindos... Mas o Oiro no perdura, E a noite cresce agora a desabar catedrais... Fico sepulto sob crios Escureo-me em delrios, Mas ressurjo de Ideais... - Os meus sentidos a escoarem-se... Altares e velas... Orgulho... Estrelas... Vitrais! Vitrais! Flores de lis... Manchas de cor a ogivarem-se... As grandes naves a sagrarem-se... - Nossa Senhora de Paris!... Paris 1913 - Junho 15

16Esta inconstncia de mim prprio em vibrao que me h de transpor s zonas intermdias, E seguirei entre cristais de inquietao, A retinir, a ondular... Soltas as rdeas, Meus sonhos, lees de fogo e pasmo domados a tirar A torre douro que era o carro da minhAlma, Transviaro pelo deserto, moribundos de Luar E eu s me lembrarei num baloiar de palma... Nos osis, depois, ho de se abismar gumes, A atmosfera h de ser outra, noutros planos: As rs ho de coaxar-me em roucos tons humanos Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes... H sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos... A cada passo a minha alma outra cruz, E o meu corao gira: uma roda de cores... No sei aonde vou, nem vejo o que persigo... J no o meu rastro o rastro doiro que ainda sigo... Resvalo em pontes de gelatina e de bolores... Hoje, a luz para mim sempre meia-luz... ......................... ......................... As mesas do Caf endoideceram feitas ar... Caiu-me agora um brao... Olha, l vai ele a valsar Vestido de casaca, nos sales do Vice-Rei... (Subo por mim acima como por uma escada de corda, E a minha nsia um trapzio escangalhado...). Lisboa - Maio de 1914

DISTANTE MELODIA...Num sonho dIris, morto a ouro e brasa, Vem-me lembranas doutro Tempo azul Que me oscilava entre vus de tule Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa. Ento os meus sentidos eram cores, Nasciam num jardim as minhas nsias, Havia na minhalma Outras distancias Distancias que o segui-las era flores... Caa Ouro se pensava Estrelas, O luar batia sobre o meu alhear-me... Noites-lagoas, como reis belas Sob terraos-lis de recordar-me!... Idade acorde dInter sonho e Lua, Onde as horas corriam sempre jade, Onde a neblina era uma saudade, E a luz - anseios de Princesa nua... Balastres de som, arcos de Amar, Pontes de brilho, ogivas de perfume... Domnio inexprimvel dpio e lume Que nunca mais, em cor, hei de habitar... Tapetes doutras Prsias mais Oriente... Cortinados de Chinas mais marfim... ureos Templos de ritos de cetim... Fontes correndo sombra, mansamente... Zimbrios-pantees de nostalgias...

Catedrais de ser-Eu por sobre o mar... Escadas de honra, escadas s, ao ar... Novas Bizncios-alma, outras Turquias... Lembranas fluidas... cinza de brocado... Irrealidade anil que em mim ondeia... - Ao meu redor eu sou Rei exilado, Vagabundo dum sonho de sereia... Paris 1914 - Junho 30

VISLUMBREA horas flbeis, outonais Por magoados fins de dia A minha Alma gua fria Em nforas dOuro... entre cristais... Camarate - Quinta da Vitria. Outubro de 1914.

SUGESTOAs companheiras que no tive, Sinto-as chorar por mim, veladas, Ao pr do sol, pelos jardins... Na sua mgoa azul revive A minha dor de mos finadas Sobre cetins... Paris - Agosto de 1914

7Eu no sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermdio: Pilar da ponte de tdio Que vai de mim para o Outro. Lisboa - Fevereiro de 1914

NGULOAonde irei neste sem-fim perdido, Neste mar oco de certezas mortas? Fingidas, afinal, todas as portas Que no dique julguei ter construdo... - Barcaas dos meus mpetos tigrados, Que oceano vos dormiram de Segredo? Partiste-vos, transportes encantados, De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?... - nau de festa, ruiva de aventura Onde, em Champanhe, a minha nsia ia, Quebraste-vos tambm ou, por ventura, Fundeaste a Ouro em portos dalquimia?... ......................... ......................... Chegaram baa os galees Com as sete Princesas que morreram. Regatas de luar no se correram... As bandeiras velaram-se, oraes... Detive-me na ponte, debruado, Mas a ponte era falsa - e derradeira. Segui no cais. O cais era abaulado, Cais fingido sem mar sua beira... - Por sobre o que Eu no sou h grandes pontes Que um outro, s metade, quer passar

Em miragens de falsos horizontes Um outro que eu no posso acorrentar... Barcelona - Setembro de 1914

A INEGUALVELAi, como eu te queria toda de violetas E flbil de cetim... Teus dedos longos, de marfim, Que os sombreassem jias pretas... E to febril e delicada Que no pudesses dar um passo Sonhando estrelas, transtornada, Com estampas de cor no regao... Queria-te nua e friorenta, Aconchegando-te em zibelinas Sonolenta, Ruiva de teres e morfinas... Ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata Teus frenesis, lantejoulas; E os cios em que estiolas, Luar que se desbarata... ......................... ......................... Teus beijos, queria-os de tule, Transparecendo carmim Os teus espasmos, de seda... - gua fria e clara numa noite azul, gua, devia ser o teu amor por mim... Lisboa 1915 - Fevereiro 16

APOTEOSEMastros quebrados, singro num mar dOuro Dormindo fogo, incerto, longemente... Tudo se me igualou num sonho rente, E em metade de mim hoje s moro... So tristezas de bronze as que inda choro Pilastras mortas, mrmores ao Poente... Lajearam-se-me as nsias brancamente Por claustros falsos onde nunca oro... Desci de mim. Dobrei o manto dAstro, Quebrei a taa de cristal e espanto, Talhei em sombra o Oiro do meu rastro... Findei... Horas-platina... Olor-brocado... Luar-nsia... Luz-perdo... Orqudeas pranto... ......................... - pntanos de Mim - jardim estagnado... Paris 1914 - Junho 28 Mrio de S-Carneiro

POEMAS DE RONALD DE CARVALHO

A ALMA QUE PASSAI - Sentido Fujo de mim como um perfume antigo foge ondulante e vago de um missal e julgo uma alma estranha andar comigo, dizendo adeus a uma aventura irreal. Sou transparncia, chama plida, nsia, ultima nau que abandonou o cais. No alvor das minhas mos chora a distancia proas rachadas, longes de ouro, ideais... Sonho meu corpo como de um ausente, nufrago e exsurjo dentro da memria, acordo num jardim convalescente, vago perdido em outros num jardim, e sinto no claro da ultima gloria a sombra do que sou morrer em mim...

II - Legenda A Vida uma princesa dolorosa no seu castelo de rubis e opalas, tangendo ao poente em harpa silnciosa uma agonia de almas e de falas... Colho de tuas mos a triste rosa, Vida que s sombra e sobre mim resvalas. Passas, e em tua sombra a ondear saudosa

vagam fantasmas de desertas salas... (Vozes perdidas, juramentos a esmo, passos que morrem sobre passos, sinos acordam madrugadas em mim mesmo. E entre trompas, tambores e metralha, Clave, harpas, rgos, tubas e violinos a Vida e a Dor comeam a batalha...)

III - Gnese Antes a alma que tenho andou perdida, foi pedrouo a rolar pelo caminho, topzio, opala, prola esquecida num bracelete real; foi caule e espinho, bronze que a mo tocou, urea jazida por entre as runas de um pas maninho, e reflectiu, fatal, o olhar da Vida no corpo em sangue de um estranho vinho... Foi casco medieval, foi lana e escudo, foi luz lunar e errante de lanterna, e depois de exsurgir, triste, de tudo veio para chorar dentro em meu ser a amarga maldio de ser eterna e a dor de renascer quando eu morrer...

LMPADA NOCTURNATonta de sono e de doura no alto das garras de marfim perdida em sombra a luz procura. Algum morreu dentro de mim... Pela janela triste e escura que abre os balces para o jardim sobe um perfume de amargura. Algum morreu dentro de mim... E vais rompendo silnciosa com o fino teu punhal de luxo no ultimo vaso a ultima rosa... E o caule nu reflecte agora no teu olhar como um repuxo que implora o azul e no demora...

TORRE IGNOTADa sombra se ergue e no demora nas mos que a cingem desejosas o ar a fascina sempre e agora e as linhas lava luminosas O talhe inquieta a luz por fora sonham quimeras dolorosas e no floresce na haste da hora nem a volpia de outras rosas S de ser nica levanta como um sorriso a pedraria que o som dos bronzes acalanta Da sombra se ergue para a gloria e a mo que a esflora argila fria num voo branco de memria

O ELOGIO DOS REPUXOSDor dos repuxos ao Sol-pr agonizando em plumas e marfins, em rosas de ouro e luz... Canto da gua que desce em poeira, leve e brando, canto da gua que sobe e onde o jardim transluz. Dormem sinos na bruma - a cinza tem afagos... Sombras de antigas naus, velas altas a arfar, passam em turbilhes pelo fundo dos lagos, (a aventura, a conquista, a nsia eterna do mar!) Repuxos a morrer sobre si mesmos, lentos curvos leques a abrir e a fechar num adejo, - mo vencida que vem de vos incitamentos, mo nervosa que vai mais cheia de desejo... Volpia de fugir - ser longe e ser distancia, e tornar logo ao cais e de novo partir! Volpia - desejar e no possuir, ser nsia... Repuxos a descer, repuxos a subir... No fixar emoes, volpia de esquec-las, andar dentro de si perdido na memria... (Caadores ideais de mundos e de estrelas repuxos ao Sol-pr cheios de magoa e glria...) Dor dos repuxos ao crepsculo cantando! desespero, alegria - o lbio, a mo... e um beijo. Dor dos repuxos, dor sangrando, dor sonhando ir tocar a iluso e morrer em desejo...

REFLEXOS(Poema da Alma enferma) Minha alma treme como um lrio dentro da gua dos teus olhos minha alma treme como um lrio, com as mos varadas por abrolhos. Toda de linho de noivado, tua porta a tremer, toda de linho de noivado minha alma vai amanhecer. Anda um perfume de alm-morte na sua voz dolorida, anda um perfume de alm-morte nas vestes plidas da vida... A hora lils desabotoa em flores de cinza e brasa, a hora lils desabotoa com um rumor sonmbulo de asa. Pelo canal rezam os barcos cheios de graa e de glria... pelo canal rezam os barcos a triste histria da memria... Minha alma acorda o cais deserto, florida em rosas de magoa minha alma acorda o cais deserto, e a sua sombra um cisne na gua...

E sobre as lmpadas extintas tombam fnebres antenas, e sobre as lmpadas extintas morrem as ultimas falenas. As torres cismam pelo espao. No silncio erram violinos as torres cismam pelo espao... na penumbra cogitam sinos... Minha alma toda se enclausura no jardim que entardeceu... minha alma toda se enclausura num beijo irreal que no nasceu... Dentro da gua dos teus olhos minha alma treme como um lrio...

Ronald de Carvalho

FERNANDO PESSOA O MARINHEIRODrama esttico em um quadro

a Carlos Franco.

Um quarto que sem duvida num castelo antigo. Do quarto v-se que circular. Ao centro ergue-se, sobre uma ea, um caixo com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. direita, quase em frente a quem imagina o quarto, h uma nica janela, alta e estreita, dando para onde s se v, entre dois montes longnquos, um pequeno espao de mar. Do lado da janela velam trs donzelas. A primeira est sentada em frente janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas esto sentadas uma de cada lado da janela. noite e h como que um resto vago de luar.

Primeira veladora. - Ainda no deu hora nenhuma. Segunda. - No se podia ouvir. No h relgio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia. Terceira. - No: o horizonte negro. Primeira. - No desejais, minha irm, que nos entretenhamos contando o que fomos? belo e sempre falso... Segunda. - No, no falemos disso. De resto, fomos ns alguma cousa? Primeira. - Talvez. Eu no sei. Mas, ainda assim, sempre belo falar do passado... As horas tm cado e ns temos guardado silncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. s vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu no sei porque que isso se d. Mas sabemos ns, minhas irms, porque se d qualquer cousa?...

(uma pausa) A mesma. - Falar do passado - isso deve ser belo, porque intil e faz tanta pena... Segunda. - Falemos, se quiserdes, de um passado que no tivssemos tido. Terceira. - No. Talvez o tivssemos tido... Primeira. - No dizeis seno palavras. to triste falar! um modo to falso de nos esquecermos!... Se passessemos?... Terceira. - Onde? Primeira. - Aqui, de um lado para o outro. s vezes isso vai buscar sonhos. Terceira. - De qu? Primeira. - No sei. Porque o havia eu de saber? (uma pausa) Segunda. - Todo este pas muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada minha janela. A janela dava para o mar e s vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu no fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. No sei se era feliz. J no tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse... Primeira. - Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que a nica de onde o mar se v, v-se to pouco!... O mar de outras terras belo? Segunda. - S o mar das outras terras que belo. Aquele que ns vemos d-nos sempre saudades daquele que no veremos nunca... (uma pausa) Primeira. - No dizamos ns que amos contar o nosso passado? Segunda. - No, no dizamos.

Terceira. - Porque no haver relgio neste quarto? Segunda. - No sei... Mas assim, sem o relgio, tudo mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si prpria... Quem sabe se ns poderamos falar assim se soubssemos a hora que ? Primeira. - Minha irm, em mim tudo triste. Passo dezembros na alma... Estou procurando no olhar para a janela... Sei que de l se vem, ao longe, montes... Eu fui feliz para alm de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que no mas tirassem... No sei o que isto tem de irreparvel que me d vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pde ser... Quando vir o dia?... Terceira. - Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre... (uma pausa) Segunda. - Contemos contos umas s outras... Eu no sei contos nenhuns, mas isso no faz mal... S viver que faz mal... No rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... No, no vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu no tinha sonho nenhum, mas -me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado - porque no falamos ns dele? Primeira. - Decidimos no o fazer... Breve raiar o dia e arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado no seno um sonho... De resto, nem sei o que no sonho... Se olho para o presente com muita ateno, parece-me que ele j passou... O que qualquer cousa? Como que ela passa? Como por dentro o modo como ela passa?... Ah, falemos, minhas irms, falemos alto, falemos todas juntas... O silncio comea a tomar corpo, comea a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma nvoa... Ah, falai, falai!... Segunda. - Para qu?... Fito-vos a ambas e no vos vejo logo... Parece-me que entre ns se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mos impossveis passarem-me pelos cabelos... As mos pelos cabelos -

o gesto com que falam das sereias... (Cruza as mos sobre os joelhos. Pausa.) Ainda h pouco, quando eu no pensava em nada, estava pensando no meu passado... Primeira. - Eu tambm devia ter estado a pensar no meu... Terceira. - Eu j no sei em que pensava... No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao p da casa de minha me corria um riacho... Porque que correria, e porque que no correria mais longe, ou mais perto?... Ha alguma razo para qualquer cousa ser o que ? H para isso qualquer razo verdadeira e real como as minhas mos?... Segunda. - As mos no so verdadeiras nem reais... So mistrios que habitam na nossa vida... s vezes, quando fito as minhas mos, tenho medo de Deus... No h vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena se algum pudesse responder!... Sinto-me desejosa de ouvir musicas barbaras que devem agora estar tocando em palcios de outros continentes... sempre longe na minha alma... Talvez porque, quando criana, corri atrs das ondas beira-mar. Levei a vida pela mo entre rochedos, mar-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mos sobre o peito e ter adormecido como uma estatua de anjo para que nunca mais ningum olhasse... Terceira. - As vossas frases lembram-me a minha alma... Segunda. - talvez por no serem verdadeiras... Mal sei que as digo... Repito-as seguindo uma voz que no ouo que mas est segredando... Mas eu devo ter vivido realmente beira-mar... Sempre que uma causa ondeia, eu amo-a... Ha ondas na minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... No o fao porque no vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer... Dos montes que eu tenho medo... impossvel que eles sejam to parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tm... Se desta janela, debruando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruar-se-ia um momento da minha alma algum em quem eu me sentisse feliz... Primeira. - Por mim, amo os montes... Do lado de c de todos os montes que a vida sempre feia... Do lado de l, onde mora minha me, costumvamos sentarmo-nos sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta no tinha outras clareiras seno os nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram de que as arvores projectassem

no cho outra calma que no as suas sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, eu e no sei se mais algum... Dizei-me que isto foi verdade para que eu no tenha de chorar... Segunda. - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena e barbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece me que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ningum... O mar era grande demais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... reis feliz minha irm?. Primeira. - Comeo neste momento a t-lo sido outrora... De resto, tudo aquilo se passou na sombra... As arvores viveram-o mais do que eu... Nunca chegou quem eu mal esperava... E vs, irm, porque no falais? Terceira. - Tenho horror a de aqui a pouco vos ter j dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencero logo ao passado, ficaro fora de mim, no sei onde, rgidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mo, no sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrrio que estivesse com conscincia de si prprio. por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, atravs do mistrio de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se isto sem duvida que sinto?... Primeira. - Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em ns!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se d por isso... Falai portanto, sem reparardes que existis... No nos eis dizer quem reis? Terceira. - O que eu era outrora j no se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui!... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos... s vezes, beira dos lagos, debruava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na agua... Tinham um sorriso s deles, independente do meu... Era sempre sem razo que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razo para recordar... Primeira. - No falemos de nada, de nada... Est mais frio, mas porque que est mais frio? No h razo para estar mais frio. No bem mais frio que est... Para que que

havemos de falar?... melhor cantar, no sei porqu... O canto, quando a gente canta de noite, uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma cano que cantvamos em casa de meu passado. Porque que no quereis que vo-la cante? Terceira. - No vale a pena, minha irm... Quando algum canta, eu no posso estar comigo. Tenho que no poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que no vivi nunca. sempre tarde de mais para cantar, assim como sempre tarde de mais para no cantar... (uma pausa) Primeira. - Breve ser dia... Guardemos silncio... A vida assim o quer... Ao p da minha casa natal havia um lago. Eu ia l e assentava-me beira dele, sobre um tronco de arvore que cara quase dentro de agua... Sentava-me na ponta e molhava na agua os ps, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos ps, mas no era para as ver... No sei porqu, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu... Lembrar-me dele como no me poder lembrar de nada... Quem sabe porque que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?... Segunda. - beira-mar somos tristes quando sonhamos... No podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que h mil vozes mnimas a falar. A espuma s parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo muito e ns no sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava beira-mar? Primeira. - Podeis cont-lo, minha irm, mas nada em ns tem necessidade de que no-lo conteis... Se belo, tenho j pena de vir a t-lo ouvido. E se no belo, esperai..., contai-o s depois de o alterardes... Segunda. - Vou dizer vol-o. No inteiramente falso, porque sem duvida nada inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e me e que houvera em mim infncia e outros dias - nesse dia vi ao longe, como uma cousa que eu s pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela... Depois ela cessou... Quando reparei para mim, vi que j tinha esse meu sonho... No sei onde ele teve principio... E nunca tornei a ver outra vela...

Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando lua e os navios passam longe devagar... Primeira. - Vejo pela janela um navio ao longe. talvez aquele que vistes... Segunda. - No, minha irm; esse que vdes busca sem duvida um porto qualquer... No podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto... Primeira. - Porque que me respondestes?... Pode ser... Eu no vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para no ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes beira mar... Segunda. - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longnqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... No vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele no tinha meio de voltar ptria, e cada vez que se lembrava dela sofria, ps-se a sonhar uma ptria que nunca tivesse tido; ps-se a fazer ter sido sua uma outra ptria, uma outra espcie de pas, com outras espcies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruarem das janelas... Cada hora ele construa em sonho esta falsa ptria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no cho areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas, e no reparando nas estrelas. Primeira. - No ter havido uma arvore que mosqueasse sobre as minhas mos estendidas a sombra de um sonho como esse!... Terceira. - Deixai-a falar... No a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeo para a poder escutar... Dizei, minha irm, dizei... Meu corao doe-me de no ter sido vs quando sonhveis beira mar... Segunda. - Durante anos e anos, dia a dia o marinheiro erguia num sonho contnuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifcio impossvel... Breve ele ia tendo um pas que j tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se j de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soam ser os crepsculos numa baa do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmrio da agua que o navio abria, num grande porto do sul onde ele pssara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...

(uma pausa) Primeira. - Minha irm, porque que vos calais? Segunda. - No se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora materna para os sonhos, mas preciso no o saber... Quando falo de mais comeo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadea de mim prpria e sinta demasiadamente o corao. Tenho ento uma vontade lacrimosa de o ter nos braos para o poder embalar como a um filho... Vde: o horizonte empalideceu... O dia no pode j tardar... Ser preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho? Primeira. - Contai sempre, minha irm, contai sempre... No pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabea no seio das horas sonhadas... No torais as mos. Isso faz um rudo como o de uma serpente furtiva... Falainos muito mais do vosso sonho. Ele to verdadeiro que no tem sentido nenhum. S pensar em ouvir-vos me toca musica na alma... Segunda. - Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de Vo-lo contar. medida que o vou contando, a mim tambm que o conto... So trs a escutar... (De repente, olhando para o caixo, e estremecendo.) Trs no... No sei... No sei quantas... Terceira. - No faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... No faleis em quantos podem ouvir... Ns nunca sabemos quantas cousas realmente vivem e vem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro... O que sonhava o marinheiro?... Segunda (mais baixo, numa voz muito lenta). - Ao princpio ele criou as paisagens; depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, at s muralhas dos cais donde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordado, atravs do pas que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha j, nessa nova ptria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infncia e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o pas, nem a gente, nem o

seu passado prprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causame tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos... Terceira. - Continuai, ainda que no saibais porqu... Quanto mais vos ouo, mais me no perteno... Primeira. - Ser bom realmente que continueis? Deve qualquer historia ter fim? Em todo o caso falai... Importa to pouco o que dizemos ou no dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister intil como a Vida... Segunda. - Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis ento recordar a sua ptria verdadeira..., mas viu que no se lembrava de nada, que ela no existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua ptria de sonho; adolescncia que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que no podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... minhas irms, minhas irms... Ha qualquer cousa, que no sei o que , que vos no disse..., qualquer cousa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vs e que h cousas que so apenas sonhos... Primeira (numa voz muito baixa). - No sei que vos diga... No ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?... Segunda. - No sei como era o resto... Mal sei como era o resto... Porque que haver mais?... Primeira. - E o que aconteceu depois? Segunda. - Depois? Depois de qu? Depois alguma cousa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... - Sim, sim... s podia ter sido assim... - Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e no estava l o marinheiro... Terceira. - Talvez tivesse regressado ptria... Mas a qual?

Primeira. - Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sab-lo-ia algum? Segunda. - Porque que mo perguntais? Ha resposta para alguma cousa? (uma pausa) Terceira. - Ser absolutamente necessrio, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha? Segunda. - No, minha irm; nada absolutamente necessrio. Primeira. - Ao menos, como acabou o sonho? Segunda. - No acabou... No sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o no continuo sonhando, se o no sonho sem o saber, se o sonh-lo no esta cousa vaga a que eu chamo a minha vida?... No me faleis mais... Princpio a estar certa de qualquer cousa, que no sei o que ... Avanam para mim, por uma noite que no esta, os passos de um horror que desconheo... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele sem duvida mais real do que Deus permite... No estejais silnciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vde, comea a ir ser dia... Vde: vai haver o dia real... Paremos... No pensemos mais... No tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que est no fim dela?... Tudo isto, minhas irms, passou-se na noite... No falemos mais disto, nem a ns prprias... humano e conveniente que tomemos, cada qual a sua attitude de tristeza. Terceira. - Foi-me to belo escutar-vos... No digais que no... Bem sei que no valeu a pena... por isso que o achei belo... No foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a musica da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez s por ser musica, descontente... Segunda. - Tudo deixa descontente, minha irm... Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-o, porque mudam com tudo... De eterno e belo h apenas o sonho... Porque estamos ns falando ainda?... Primeira. - No sei... (olhando para o caixo, em voz mais baixa) Porque que se morre?

Segunda. - Talvez por no se sonhar bastante... Primeira. - possvel... No valeria ento a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?... Segunda. - No, minha irm: nada vale a pena... Terceira. - Minhas irms, j dia... Vde, a linha dos montes maravilha-se... Porque no choramos ns?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova como ns, e sonhava tambm... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos... Ela de que sonharia?... Primeira. - Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e j sabe para que servem os sonhos... (uma pausa) Segunda. - Talvez nada disto seja verdade... Todo este silncio, e esta morta, e este dia que comea no so talvez seno um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence vida?... Primeira. - No sei. No sei como se da vida... Ah, como vs estais parada! E os vossos olhos to tristes, parece que o esto inutilmente... Segunda. - No vale a pena estar triste de outra maneira... No desejais que nos calemos? to estranho estar a viver... Tudo o que acontece inacreditvel, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vde, o cu j verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar... Primeira. - Chorastes, com efeito, minha irm. Segunda. - Talvez... No importa... Que frio este?... O que isto?... Ah, agora... agora... Dizei-me isto... Dizei-me uma cousa ainda... Porque no ser a nica cousa real nisto tudo o marinheiro, e ns e tudo isto aqui apenas um sonho dele?... Primeira. - No faleis mais, no faleis mais... Isso to estranho que deve ser verdade... No continueis... O que eis dizer no sei o que , mas deve ser de mais para a

alma o poder ouvir... Tenho medo do que no chegastes a dizer... Vde, vde, dia j... Vde o dia... Fazei tudo por reparardes s no dia, no dia real, ali fora... Vde-o, vde-o... Ele consola... No penseis, no olheis para o que pensais... Vde-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se medida que se coloram... Se nada existisse, minhas irms?... Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?... Porque olhastes assim?... (No lhe respondem. E ningum olhara de nenhuma maneira.) A mesma. - Que foi isso que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, j no tenha tanto medo como dantes... No, no... No digais nada... No vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me no deixar pensar... Tenho medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer cousa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devamos j ter acabado de falar... Ha tempo j que a nossa conversa perdeu o sentido... O que h entre ns que nos faz falar prolonga-se demasiadamente... Ha mais presenas aqui do que as nossas almas... O dia devia ter j raiado... Deviam j ter acordado... Tarda qualquer cousa... Tarda tudo... O que que se est dando nas cousas de acordo com o nosso horror?... Ah, no me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu para no deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo minha voz do que ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando... Terceira. - Que voz essa com que falais?... de outra... Vem de uma espcie de longe... Primeira. - No sei... No me lembreis isso... Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo... Mas j no sei como que se fala... Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta conversa, e esta noite, e este medo - tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes... Comeo a sentir que o esqueo, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles... Terceira (para a Segunda). - Minha irm, no nos deveis ter contado essa historia. Agora estranho-me viva com mais horror. Contveis e eu tanto me distraa que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vs, e a vossa voz, e o sentido do que dizeis eram trs entes diferentes, como trs criaturas que falam e andam.

Segunda. - So realmente trs entes diferentes, com vida prpriae real. Deus talvez saiba porqu... Ah, mas porque que falamos? Quem que nos faz continuar falando? Porque falo eu sem querer falar? Porque que no reparamos que dia?... Primeira. - Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas j no sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que algum possa agora bater quela porta. Porque no bate algum porta? Seria impossvel e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que que tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-me j no ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu j no sei sentilo... J no sei em que parte da alma que se sente... Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que nos contastes a vossa historia? Segunda. - J no me lembro... J mal me lembro que a contei... Parece ter sido j h tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as cousas!... O que que ns queremos fazer? o que que ns temos ideia de fazer? - j no sei se falar ou no falar... Primeira. - No falemos mais. Por mim, cansa-me o esforo que fazeis para falar... Di-me o intervalo que h entre o que pensais e o que dizeis... A minha conscincia bia tona da sonolncia apavorada dos meus sentidos pela minha pele... No sei o que isto, mas o que sinto... Preciso dizer frases confusas, um pouco longas, que custem a dizer... No sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende? Segunda. - No sinto nada... Sinto as minhas sensaes como uma cousa que se no sente... Quem que eu estou sendo?... Quem que est falando com a minha voz?... Ah, escutai... Primeira e Terceira. - Quem foi? Segunda. - Nada. No ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vs supussseis que ouveis e eu pudesse crer que havia alguma cousa a ouvir... Oh, que horror, que horror intimo nos desata a voz da alma, e as sensaes dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em ns pede o silncio e o dia e a inconscincia da vida... Quem a

quinta pessoa neste quarto que estende o brao e nos interrompe sempre que vamos a sentir?... Primeira. - Para qu tentar apavorar-me?... No cabe mais terror dentro de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer cousa que mos pega e mos vela. Pesam as plpebras a todas as minhas sensaes. Prende-se a lngua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola uma s outras as ideias de todos os meus gestos... Porque foi que olhastes assim?... Terceira (numa voz muito lenta e apagada). - Ah, agora, agora... Sim, acordou algum... H gente que acorda... Quando entrar algum tudo isto acabar... At l faamos por crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... dia j... Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irm, que s vs sois feliz, porque acreditais no sonho... Segunda. - Porque que mo perguntais? Porque eu o disse? No, no acredito... Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As trs veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. No muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia. 11/12 Outubro, 1913. Fernando Pessoa

TREZE SONETOS DE ALFREDO PEDRO GUISADO

ADORMECIDAAs tuas mos dormiam na lagoa incenso. E pelas alamedas destrudas, loucas, Desceu-se em mim minha alma a procurar as bocas Que me rezaram Ser sobre o teu manto extenso. Vagamente desceu sobre o silncio, a arfar, Combatendo de luz, a esvoaar no ataque... E de noite caiu Egipto em meu olhar, Nos teus braos em cruz, sepulcros em Karnak. Bocas de Faras rezam mmias cansadas... Tebas em mim fenece em bronze de toadas, Apagando-se em cinza em lmpadas sombrias. E tu adormecida h tanto tempo, em pranto. Os cisnes na lagoa embranqueceram tanto, Que se esqueceram cor nas tuas mos esguias.

SONHO EGPCIONo palcio, os paves so apenas diz-los... As asas cor do longe erguidas sobre mim. Existem os paves... O meu sentir-me v-los... E o meu sonhar-te, alm, so lagos no jardim. Quando passei no parque, eu encontrei Nitokris. Vi-a. Fitei-lhe as mos para poder senti-las... Meus olhos foram naus em guas intranquilas, Meus sentidos, anis nos dedos de Nitokris. Labirinto de sons. Adormeo-me oiro. nsia apagada. Deus desce minha alma em oiro. Meus olhos para te ver, arcadas nos espelhos. Rezas que nunca ouvi. Hlitos de saudades. E as tuas mos, ao largo, ungindo divindades Cismam bis, pagos, sobre tapetes velhos.

PAGO... Lembro-me ento de mim. Rezo-me longe. Cismo. E o lembrar-me de mim so os meus passos idos. Arqueia-se em azul meu prprio misticismo E eu fico apenas cor sobre vitrais vencidos. O teu hlito luz em candelabros velhos Aos cantos dos sales onde me vejo a orar, E os teus passos de dor so um quebrar de espelhos. Quando te quero ver, morres no meu olhar. Abrao-me chorando. O teu morrer vr-me, Oiro de asas em Tule, ardendo antiguidade E o ter-te visto morta, o medo de perder-me. Procuro-me em silncio e oio-me em teus passos. Sobre altares pagos ergo-me divindade E Isis dorme meu Ser em cortinados lassos!

VER-TEEstendi os meus braos pra abraar-te E entre ns uma porta se cerrou. Um sopro de rubins em mim voou, Sopro que permitiu poder sonhar-te. Saa a tua sombra plas janelas E perdia-se, ao largo, em arvoredos... Os meus dedos cismando caravelas, Eram prolongamentos dos teus dedos. Num parque de oliveiras te sonhei Erguendo-te do oiro que queimei Nas nforas do templo do meu Ser. Parece que te vejo e tu ests longe... Afastei-me de mim para ser monge... Meus olhos so a sombra de te ver!

PRINCESA LOUCAVejo passar na curva da alameda Uma princesa h muitos anos louca, Princesa cujo Corpo uma roca Em principados de faises de seda. A sua sombra, uma lagoa azul. As suas mos tecendo pinheirais, Lembram-me naus sempre chegando ao cais, guias sem asas num palcio, em Tule. Seus dedos, pregos que pregaram Cristo. Olha-me longe. Em seu olhar existo... Passo nas rezas duma antiga boca... Arqueio-me a sonhar sobre marfim. Sou arco com que brinca no jardim Essa princesa h tantos anos louca.

MOS DE CEGAI Sinto que as tuas mos so teus olhos vencidos, Teus olhos que esquecendo as oraes da luz So claustros apagando os passos esquecidos De Deus ao regressar de amortalhar Jesus. Sinto-as tanger ainda os violinos velhos, Onde os dedos saltando em cordas de oiro, tarde, Te cegaram de som. E em candelabros arde O teu antigo olhar emoldurando espelhos. Teus dedos ao bater nas tuas mos so remos. Inda vejo nas salas do palcio, arfando, As tuas mos de dor entreabrindo as portas. Buscamo-nos em cor e quando nos perdemos Passam as tuas mos em meus dedos, cismando Esttuas de marfim sobre as arcadas, mortas...

II Morreram os lees que guardavam perdidos A branca escadaria. Velhos lees sombrios... Deles apenas resta o eco dos rugidos Que os arcos dos sales tornaram mais esguios. As rendas que fiaste adormeciam bocas E as rugas no teu rosto iam caindo, fundas... No fim do parque, noite, as guias moribundas

Guardavam em silncio as destroadas rocas. Fiavas noutro tempo os teus olhos dormentes. Deixaste de os fiar e os teus olhos arderam Na cor das tuas mos, na cruz de outros poentes... Cega de mim, partiste. E quando regressaste Manchada de Distncia, os meus sentidos eram Palmeiras ladeando a estrada onde passaste!

ESQUECENDOOs lagos dormem cisnes na alameda E as portas do palcio esto fechadas. As folhas a cair, rezando seda, Sonham paisagens mortas, afastadas... Essas paisagens foram tuas aias. Flautas ao longe foram teus sentidos. E as tuas mos ao desfiar vestidos Dormiram franjas em doiradas saias. A tua Sombra o seu olhar perdeu... No sei se no sers um gesto meu, Um gesto de meus dedos longos, frios... No sei quem s... Meus olhos esquecidos Sentem-te em mim, dormir nos meus sentidos... Meus sentidos, arcadas sobre rios...

SALOMI Danava Salom sobre mistrios idos. - Tarde bronze a morrer. Poente em vus vermelhos Os seus sentidos, longe, eram bailados velhos, E o seu Corpo, a bailar, que era os seus sentidos. Danava Salom nas suas mos morenas Que eram sales de seda, a descerrar o hbito. E Ela quando se via era o seu prprio hlito, E o Corpo no bailado era uma curva apenas. Danava Salom. - E os seus olhos ao v-la, Cerravam-se lees com medo de perd-la, Lees bebendo luz na luz dos olhos seus... No vejo Salom. - Talvez adormecida... Talvez no meu olhar Ausncia dolorida... Talvez boca pag beijando as mos de Deus...

II Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando Conduzem para o Longe o meu no existir. Morena, Salom, entre vitrais bailando. Arcadas-sensaes transpondo o seu Sentir. Fita paisagens-nsia em suas mos cansadas, Paisagens a sonhar castelos nunca erguidos. E os lbios percorrendo em lume os seus sentidos,

Cismam prncipes-cor descendo das arcadas. H entre Ela e Deus o corpo de Joo. E em seu olhar, dormindo um bronze de orao, sombra do bailado um inclinar de palma. Baila seu Corpo ainda. E Deus nos seus bailados. Bailados-asas, longe, em capiteis bordados, Gestos de Deus caindo entre molduras-Alma!

MORTE DE SALOMApagaram-se bronze os crios que sonhara. Erguidos no seu Ser, sentidos-mausolus. O palcio, no parque, era um olhar de Deus E as salas do palcio, os bailes que bailara. Ela, taa cada em uma orgia infinda, Taa vencida de Alma em plios afastados. Seu Corpo tinha sido algum dos seus bailados, E a sua prpria Morte era um bailado ainda. Eram as suas mos rainhas em imprios Onde passavam reis com squitos mistrios, Adagas de marfim erguidas noutras mos. Seu Corpo, cinto de oiro ao seu redor, dormindo, Um hlito de Deus sobre missais caindo, Cinza de Alma rezando outros Jesus, pagos.

RECORDANDOSinto as cores, de noite, terem medo E acolherem-se sombra do teu luto. Eu fui um rei dos godos, que em Toledo O Tejo adormeceu e ainda escuto. Cercam-se de oiro as salas que habitei, Oiro-cinza esquecido, oiro dormente. E em minha Alma, na qual inda sou rei Cismo tronos caindo lentamente. Buscam-me pagens tristes nos caminhos. E a minha lenda em sonhos pergaminhos Vai escrevendo em silncio o meu cismar. So outros os domnios que vivi Todas as coisas que eu outrora vi Regressaram mistrio ao meu olhar.

ANTE DEUSQuando te vi eu fui o teu voar E desci Deus pra me encontrar em mim. Voei-me sobre pontes de marfim E uma das pontes, Deus, em meu olhar! Aureolei-me de oiro em sombra fria E meus voos caram destrudos. Foram dedos de Deus os meus sentidos. Meu Corpo andou ao colo de Maria. Agora durmo Cristo em vus pagos. So tapetes de Deus as minhas mos. Regresso nsia pra alcanar os cus. Ergo-me mais. Sou o perfil da dor. Sobre os ombros de Deus olho em redor E Deus no sabe qual de ns Deus!

Alfredo Pedro Guisado

FRIZOS DO DESENHADOR JOS DE ALMADA-NEGREIROS

CIMESPierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto dele passam sede, no no acordem ao beber. Uma andorinha travessa, linda como todas, ava brincando rente relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Ele acorda e a andorinha, fugindo a muito, olha de medo atrs, no venha o Pierrot de zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes, mas, porque ele se queda, de novo volta em zig-zags travessos e chilreios de troa. E chilreia de troa, muito alto, por cima dele. Pierrot j se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de novo. De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braos erguidos, seus olhos foram to longe, to longe como a andorinha fugida nos montes. De repente viu-se cego - os dedos finssimos da Colombina brincavam com ele. Desceu-lhe os dedos aos lbios e trocou com beijos o aroma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada orelha uma ginja, laia de brincos com jias de carmim. Rolaram-se na relva e uniram as bocas, e j se esqueciam de que as tinham juntas... - Sabes? Uma andorinha... E foram de enfiada as graas da ave toda paixo. Pierrot contava entusiasmado, olhando os montes ainda em busca da andorinha, e Colombina torceu o corpo numa dor calada e tomou-lhe as mos. Havia na relva uma mscara branca de dor, e a lua tinha nos olhos claros um olhar triste que dizia: Morreu Colombina!

O ECOTo tarde. Ado no vem? Aonde iria Ado?! Talvez que fosse caa; quer fazer surpresas com alguma cora branca l da floresta. Era plo entardecer, e Eva j sentia cuidados por tantas demoras. Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambm, tambm chamou Ado. Teve medo: Mas julgando fantasia chamou de novo: Ado? E uma voz de mulher tambm, tambm chamou Ado. Foi-se triste para a tenda. Ado j tinha vindo e trouxera as setas todas, e a caa era nenhuma! E ele a saud-la ameaou-lhe um beijo e ela fugiu-lhe. - Outra que no Ela chamara tambm por Ele.

SVRES PARTIDOA amazona negra era bela como o sol e triste como o luar, e ningum acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cipreste procurando vaga na margem do caminho. Nas manhs de Outono, frias como os degraus do tanque, era ela quem largava s galgas a lebre cinzenta, e a que a filasse j sabia com quem dormia a sesta. E as galgas j nem dormiam bem noutra almofada. Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarelecidas dos pltanos onde os repuxos do tanque cuspiam lgrimas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu Prncipe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre dela. Uma manh mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos pendidos - e nenhuma para dormir a sesta! Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canes de choros e tinha acompanhamentos funreos de guizalhadas surdas. Calou-se a flauta, um cipreste distante gemia baixinho as dores da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda torcida. As galgas como setas deixaram nu o caminho. E as guizalhadas...

MIMA FATAXA Ela marcara-lhe na vspera aquele rendez-vous no muro do cemitrio. De feito Ele tornara escrava de uma cigana a sua alma apaixonada de uma rainha loira senhora de todas as ciganas. Fora dela desde o dia em que, seguindo o ritmo acanalhado das ancas desconjuntadas, ficou enfeitiado por aqueles dentes brancos ferindo lume no colar de pederneiras. Sentiu desejos de morder aqueles lbios ardendo vermelhos incndios de beijos e as faces fumadas do lume daquela boca. E estranhava o seu corao vencido pela monotonia dos berros das cantorias com acompanhamentos de urros de pandeiro. Enfeitiara-o aquela vagabunda de olhos ardidos compondo as tranas nos fundos dos caldeires de cobre onde durante o sol um tisnado cigano consumia as horas em maadoras marteladas. Encantara-o aquela feiticeira afiando as tranas nos lbios molhados da saliva. E nas danas o tic-tac metlico das sandlias, matracas tagarelas a cantar nas lajes, tinha um telintar jovial; e os pulsos cingidos de guizos eram um concerto de amarelos canrios contentes da gaiola. E mais bela do que nunca no chafariz real, de saias arregaadas, a lavar as pernas da poeira das estradas e belamente descomposta a enfiar as meias muito grossas, vermelhas da cor das papoulas, e a dar um n-cego num retorcido nastro branco muito negro laia de liga muito acima do joelho... E tem graa que a sua morens no era por via do sol, pois toda ela era queimada. Quem a visse trepar nas amoreiras e despi-las das amoras que lhe ensanguentavam os lbios e as faces e os dedos sem cuidar no vento que lhe levanta as saias, teria tido como Ele um sorriso de desejos, iria como Ele fingir a sesta por debaixo da linda amoreira. E na descida, coa saia erguida laia de cabaz, meio tonta, meio embriagada plas amoras em demasia, v-la-ia to bela como em sonhos se desenha uma mulher para ns. E escarranchada no tronco deixava-se escorregar lentamente, mas teve subida forada por via da haste que ficava em riba. Depois dependurou-se de um galho rijo, abriu as mos e foi de vez chapar-se na relva. E de bruos, como uma cabra a espojar-se, comeou de juntar os frutos espalhados. E os seus olhos de gata, de gata que brinca nos telhados vermelhos com a lua branca, mais do que amoras colhiam.

A SOMBRA(Traduo de um poema de uma lngua desconhecida) Foi ali que um dia sentiu desejos de partir tambm. Que ficava fazendo sozinha? Quem leva uma lana, leva a mulher tambm. O seu xaile negro tem um segredo, e o seu mal de morte vem do mesmo dia. Os anos correram sem novas algumas, e as moas finaram-se velhas, velhas de tanto esperar. E todas as noites, na margem sombria, uma silhueta franzina de trgica sonmbula vai seguindo, como um brao murcho de cipreste a boiar ao de cima da corrente que o vai levando mansamente.

A SESTAPierrot escondido por entre o amarelo dos girassis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela no dorme, espreita tambm de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silncios por entre o amarelo dos girassis. E porque ele se vem chegando perto, ela mente ainda mais o sono a malressonar. Junto dela, no teve mo em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o p pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e j se debruava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando ela acordou cansada de tanto sono fingir. E ele ameaa fugida, e ela furta-lhe a fuga nos braos nus estendidos. E ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdo. E, feitas as pazes, ficou combinado que ela dormisse outra vez.

CANO DA SAUDADESe eu fosse cego amava toda a gente. No por ti que dormes em meus braos que sinto amor. Eu amo a minha irm gmea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasia-la viva na minha idade. Tu, meu amor, que nome o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se j nasceste. Eu amo aquela mo branca dependurada da amurada da gal que partia em busca de outras gals perdidas em mares longussimos. Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas. Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas. Eu amo os cemitrios - as lajes so espessas vidraas transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim. Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres so como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi. Se eu fosse cego amava toda a gente.

RUNASPandeiros rotos e coxas taas de cristal aos ps da muralha. Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princesas mortas. Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mos esguias e de cabeleiras embranquecidas. Aquelas ameias cingiram uma noite pecados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites reza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castelo de nobres naquele lugar... E a lua, a contar, pra um instante - tem medo do frio dos subterrneos. Ouvem-se na sala que j nem existe, compassos de danas e vizinhos de sedas. Aquelas runas so o tmulo sagrado de um beijo adormecido - cartas lacradas com ligas azuis de fechos de oiro e armas reais e lises. Pobres velhinhas da cor do luar, sem tero nem nada, e sempre a rezar... Noites de insnia com as gals no mar e a alma nas gals. Archeiros amordaados na noite em que o coche era de volta ao palcio pela tapada dEl-rei. Grande caada na floresta - galgos brancos e Amazonas negras. Cavaleiros vermelhos e trombetas de oiro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam. Uma gndola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela brisa o aviso da noite. O sapato dela desatou-se nas areias, e foram cala-lo nas furnas onde ningum v. Nas areias ficaram as pegadas de um par que se beija.

Noticias da guerra - choros l dentro, e crepes no braso. Ardem crios, serpentinas. Ha mos postas entre as flores. E a torre morena canta, molenga, doze vezes a mesma dor.

PRIMAVERAO sol vai esmolando os campos com bodos de oiro. A pastorinha aquecida vai de corrida a mendigar a sombra do choro corcunda, poeta romntico que tem paixo pla fonte. Espreita os campos, e os campos despovoados do-lhe licena para ficar nua. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a secar-se ao sol. Mas o vento que vinha de l das Azenhas-do-Mar, trazia pecados consigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do prprio Senhor Morgado meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o pecado, mas foi dar consigo na sacristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mo, e depois a testa... porque Deus bom e perdoa tudo... e depois as faces e depois a boca e depois... fugiu... No devia ter fugido... E agora o moleiro, l no arraial, bailando com ela e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ela. E lembra-se ainda - sentada na grande arca, e mos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpete, enquanto ouve a historia triste do moinho com cinquenta malfeitores... Quer lembrar-se mais, que seja pecado! quer mais recordaes do moinho, mas no encontra mais. Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ela e lhe perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito, uma borboleta muito bonita! Que no, que no tinha visto; mas o boieiro desconfiado foi procurando sempre, e at mesmo por debaixo dos vestidos. Como desejava poder ir com todos! No sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar. Teria a borboleta branca fugido para dentro dela?

TREVASDe dia no se via nada, mas pla tardinha j se apercebia gente que vinha de punhais na mo, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo neles. E os punhais no brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lenis de linho escorridos de ombros franzinos. E a brisa que vinha dava gestos de azas vencidas aos lenis de linho, azas brancas de garas cadas por faunos caadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os medos que nasciam. E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descala com ps de surdina por mor do barulho, de braos estendidos pra no topar com os troncos; e vinha vindo a noite ceguinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao v-la esconderam os punhais nos peitos vazios. A lua uma laranja doiro num prato azul do Egipto com prolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiados na brisa eram um bailado de estatuas de sonho em vitrais azuis. Mos ladras de sombra levaram a laranja, e o prato enlutou-se. Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da brisa dos tmulos, havia surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes. A brisa fez-se gritos de paves perseguidos. E as sombras em danas macabras fugiam fumo dos pinheirais plo meu respirar. Escondidas todas por detrs de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhais acesos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Vem mais bruxas, trazem alfanges e um caixo. Doem-me os cabelos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alm do monte vem dizer-me que tudo dorme em silncio na escurido. Veio a manha e foi como de dia: no se via nada.

CANOA pastorinha morreu, todos esto a chorar. Ningum a conhecia e todos esto a chorar. A pastorinha morreu, morreu de seus amores. beira do rio nasceu uma arvore e os braos da arvore abriram-se em cruz. As suas mos compridas j no acenam de alm. Morreu a pastorinha e levou as mos compridas. Os seus olhos a rirem j no troam de ningum. Morreu a pastorinha e os seus olhos a rirem. Morreu a pastorinha, est sem guia o rebanho. E o rebanho sem guia o enterro da pastorinha. Onde esto os seus amores? H prendas para Lhe dar. Ningum sabe se ele e h prendas para Lhe dar. Na outra margem do rio deu praia uma santa que vinha das bandas do mar. Vestida de pastora pra se no fazer notar. De dia era uma santa, noite era o luar. A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha morta a Senhora dos Milagres.

A TAA DE CHO luar desmaiava mais ainda uma mscara cada nas esteiras bordadas. E os bambus ao vento e os crisntemos nos jardins e as garas no tanque, gemiam com ele a adivinharem-lhe o fim. Em roda tombavam-se adormecidos os dolos coloridos e os drages alados. E a gueisha, porcelana transparente como a casca de um ovo da bis, enrodilhou-se num labirinto que nem os drages dos deuses em dias de lgrimas. E os seus olhos rasgados, prolas de Nankim a desmaiar-se em agua, confundiam-se cintilantes no luzidio das porcelanas. Ele, num gesto ultimo, fechou-lhe os lbios coas pontas dos dedos, e disse a finar-se: - Chorar no remdio; s te peo que no me atraioes enquanto o meu corpo for quente. Deitou a cabea nas esteiras e ficou. E ela, num grito de gara, ergueu alto os braos a pedir o Cu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mos, que todos os que passavam olharam para Ela. Pela manh vinham os vizinhos em bicos dos ps espreitar por entre os bambus, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim. A estampa do pires igual.

Jos de Alma-Negreiros

POEMAS DE CRTES-RODRIGUES

ABERTURA DO LIVRO DA VIDATranscendncias nublticas, metafsicas raras, Modelei a minha Obra com minhas mos avaras. Litanias litrgicas de febre de paixo, Crepsculos de fogo ardendo em sentimento, Colunas de Alm-Sonho, arcos de comoo, Claustros de Arqui-Tristeza aonde o Pensamento Vive longe do mundo, em funda adorao... Castelo esguio Sobre o rio Do Amor. Armei-me cavaleiro, Quebrou-se minha lana de guerreiro No combate da Dor. Arquitectnicas teorias de Beleza, Transfiguraes, ressurreies, e a Natureza No fundo longo, sensitivo da emoo, Bisantinos jardins onde a Tarde agoniza, Fluidicos aromas em mstica ascenso, Emanaes dAmor que a alma diviniza Em Alma de outra Alma - eterna comunho... Praia to desconhecida Do mar da vida vivida Onde o luar nunca vem, De onde a nau da minha Alma Parte pela noite calma A caminho do Alm. E eis a grande rota seguida em mim somente,

Pra que parta do mundo e chegue at aos cus, E onde Tu e Eu iremos lentamente Da Vida para Deus. Lisboa - 1914.

POENTEAs minhas sensaes - barcos sem velas Erram de mim. Ocaso roxo. Cismo. Meus olhos de No-ver-me so janelas Dando sobre o abismo. Abismo dOutro Ser. E a Hora chora Nostlgica de Si, mas eu de v-las Erro de Ser-me, e a noite sem estrelas Apavora. Delrio roxo dagonia. Prece. Poente feito noite. Escurido. Perturbo-me de mim em sensao E dentro em mim desfalece E anoitece A sombra do meu Ser na solido Do dia que morreu E se perdeu E jamais amanhece. Lisboa - 1914.

AGONIAErgo meus olhos vagos na distancia Da sombra do meu Ser... Pairam de mim Alm, e a minha nsia Cansa de me viver. Meus olhos espectrais de comoo, Olhos de Alma olhando-se a Si, Nimbam de luz a longa escurido Da Vida que vivi. Aurola de dor que finaliza Na noite do abismo do meu nada, Silencio, prece, comunho sagrada, Sonho de luz que em Ti me diviniza, Tortura do meu fim, Alma ungida E perdida Na grandeza de Si. E j sem ver-me, Macerao crepuscular de mim, Agonizo de Ser-me. Lisboa - 1914.

SO mar da minha vida no tem longes. tudo gua s! E o horizonte Funde-se no cu. Por sobre a ponte Marcha sinistra a procisso dos monges. Velas acesas, opas, ladainha, E o rio deslizando para o mar, E as raparigas vm tardinha Buscar fonte a gua sem cantar. Ermida branca sobre o monte. Nossa Senhora da Paz... Peregrino voltei sem ser ouvido. Rasguei os meus ps pelo caminho ido. Ai, a calma de tudo quanto jaz No frio esquecimento! Sobre a ponte A procisso caminha. Sob o arco Singrou sereno um barco A caminho do mar. perdida viso da minha nsia! Vejo-me s na lgubre distancia, Cadver dos meus sonhos a boiar. Lisboa - 1914.

OUTROPasso triste no mundo, alheio ao mundo. Passo no mundo alheio, sem o ver, E, mstico, ideal e vagabundo, Sinto erguer-se minhAlma do profundo Abismo do meu Ser. Vivo de Mim em Mim e para Mim E para Deus em Mim ressuscitado. Sou Saudade do Longe donde vim, E sou nsia do Longe em que por fim Serei transfigurado. Vivo de Deus, em Deus e para Deus, E minhAlma, sonmbula esquecida, NEle fitando os tristes olhos seus, Passa triste e sozinha olhando os cus No caminho da Vida. Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei, Outro vivendo a mstica beleza Por esta humana forma que encarnei, Por lagrimas de sangue que chorei Na terra de tristeza. Espirito na dor purificado, Ser que passa no mundo sem o ver, Em esta pobre terra de pecado Amor divino em Deus extasiado, O meu Ser No-Ser em Outro-Ser. Lisboa - 1914.

Crtes-Rodrigues

OPIRIO E ODE TRIUNFAL DUAS COMPOSIES DE LVARO DE CAMPOS PUBLICADAS POR FERNANDO PESSOA

OPIRIOAo Senhor Mrio de S-Carneiro antes do pio que a minhalma doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao pio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente. Esta vida de bordo ha-de matar-me. So dias s de febre na cabea E, por mais que procure at que adoea, J no encontro a mola pra adaptar-me. Em paradoxo e incompetncia astral Eu vivo a vincos douro a minha vida, Onda onde o pundonor uma descida E os prprios gozos gnglios do meu mal. por um mecanismo de desastres, Uma engrenagem com volantes falsos, Que passo entre vises de cadafalsos Num jardim onde h flores no ar, sem hastes. Vou cambaleando atravs do lavor Duma vida-interior de renda e laca. Tenho a impresso de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor. Ando expiando um crime numa mala, Que um av meu cometeu por requinte. Tenho os nervos na forca, vinte a vinte, E ca no pio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina Perco-me em transparncias latejantes E numa noite cheia de brilhantes Ergue-se a lua como a minha Sina. Eu, que fui sempre um mau estudante, agora No fao mais que ver o navio ir Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida, cnfora na aurora. Perdi os dias que j aproveitara. Trabalhei para ter s o cansao Que hoje em mim uma espcie de brao Que ao meu pescoo me sufoca e ampara. E fui criana como toda a gente. Nasci numa provncia portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei ingls perfeitamente. Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure, Mas impossvel que esta vida dure. Se nesta viagem nem houve procelas! A vida a bordo uma coisa triste Embora a gente se divirta s vezes. Falo com alemes, suecos e ingleses E a minha mgoa de viver persiste. Eu acho que no vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a ndia e a China. A terra semelhante e pequenina E h s uma maneira de viver. Por isso eu tomo pio. um remdio.

Sou um convalescente do Momento. Moro no rs-do-cho do pensamento E ver passar a Vida faz-me tdio. Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim, Muito a leste no fosse o oeste j! Pra que fui visitar a ndia que ha Se no h ndia seno a alma em mim? Sou desgraado por meu morgadio. Os ciganos roubaram minha Sorte. Talvez nem mesmo encontre ao p da morte Um lugar que me abrigue do meu frio. Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Esccia. Visitei a Irlanda. Meu corao uma avozinha que anda Pedindo esmola s portas da Alegria. No chegues a Port-Said, navio de ferro! Volta direita, nem eu sei para onde. Passo os dias no smoking-room com o conde Um escroc francs, conde de fim de enterro. Volto Europa descontente, e em sortes De vir a ser um poeta sonamblico. Eu sou monrquico mas no catlico E gostava de ser as coisas fortes. Gostava de ter crenas e dinheiro, Ser varia gente inspida que vi. Hoje, afinal, no sou seno, aqui, Num navio qualquer um passageiro. No tenho personalidade alguma. mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alado

De laird escocs h dias em jejum. No posso estar em parte alguma. A minha Ptria onde no estou. Sou doente e fraco. O comissrio de bordo velhaco. Viu-me coa sueca... e o resto ele adivinha. Um dia fao escndalo c a bordo, S para dar que falar de mim aos mais. No posso com a vida, e acho fatais As iras com que s vezes me debordo. Levo o dia a fumar, a beber coisas, Drogas americanas que entontecem, E eu j to bbado sem nada! Dessem Melhor crebro aos meus nervos como rosas. Escrevo estas linhas. Parece impossvel Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! O facto que esta vida uma quinta Onde se aborrece uma alma sensvel. Os ingleses so feitos pra existir. No h gente como esta pra estar feita Com a Tranquilidade. A gente deita Um vintm e sai um deles a sorrir. Perteno a um gnero de portugueses Que depois de estar a ndia descoberta Ficaram sem trabalho. A morte certa. Tenho pensado nisto muitas vezes. Leve o diabo a vida e a gente t-la! Nem leio o livro minha cabeceira. Enoja-me o Oriente. uma esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no pio por fora. L querer Que eu leve a limpo uma vida destas No se pode exigir. Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer, Que um raio as parta! E isto afinal inveja. Porque estes nervos so a minha morte. No haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o no veja! Ora! Eu cansava-me do mesmo modo. Quria outro pio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo. Febre! Se isto que tenho no febre, No sei como que se tem febre e sente. O facto essencial que estou doente. Est corrida, amigos, esta lebre. Veio a noite. Tocou j a primeira Corneta, pra vestir para o jantar. Vida social por cima! Isso! E marchar At que a gente saia pla coleira! Porque isto acaba mal e ha-de haver (Ol!) sangue e um revlver l pr fim Deste desassossego que h em mim E no h forma de se resolver. E quem me olhar, ha-de me achar banal, A mim e minha vida... Ora! um rapaz... O meu prprio monculo me faz Pertencer a um tipo universal. Ah quanta alma haver, que ande metida Assim como eu na Linha, e como eu mstica!

Quantos sob a casaca caracterstica No tero como eu o horror vida? Se ao menos eu por fora fosse to Interessante como sou por dentro! Vou no Maelstrom, cada vs mais pr centro. No fazer nada a minha perdio. Um intil. Mas to justo s-lo! Pudesse a gente desprezar os outros E, ainda que coos cotovelos rotos, Ser heri, doido, amaldioado ou belo! Tenho vontade de levar as mos boca e morder nelas fundo e a mal. Era uma ocupao original E distraa os outros, os tais sos. O absurdo como uma flor da tal ndia Que no vim encontrar na ndia, nasce No meu crebro farto de cansar-se. A minha vida mude-a Deus ou finde-a... Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, At virem meter-me no caixo. Nasci pra mandarim de condio, Mas faltam-me o sossego, o ch e a esteira. Ah que bom que era ir daqui de cada Pr cova por um alapo de estouro! A vida sabe-me a tabaco louro. Nunca fiz mais do que fumar a vida. E afinal o que quero f, calma, E no ter estas sensaes confusas. Deus que acabe com isto! Abra as eclusas E basta de comedias na minhalma!

1914, Maro. No canal de Sus, a bordo.

ODE TRIUNFAL dolorosa luz das grandes lmpadas elctricas da fbrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. rodas, engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fria! Em fria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lbios secos, grandes rudos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabea de vos querer cantar com um excesso De expresso de todas as minhas sensaes, Com um excesso contemporneo de vs, mquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical Grandes trpicos humanos de ferro e fogo e fora Canto, e canto o presente, e tambm o passado e o futuro, Porque o presente todo o passado e todo o futuro E h Plato e Verglio dentro das mquinas e das luzes elctricas S porque houve outrora e foram humanos Verglio e Plato, E pedaos do Alexandre Magno do sculo talvez cinquenta, tomos que ho de ir ter febre para o crebro do squilo do sculo cem, Andam por estas correias de transmisso e por estes mbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um excesso de carcias ao corpo numa s carcia alma. Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma mquina! Poder ir na vida triunfante como um automvel ltimo-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de leos e calores e carves Desta flora estupenda, negra, artificial e insacivel! Fraternidade com todas as dinmicas! Promscua fria de ser parte-agente Do rodar frreo e cosmopolita Dos comboios estrnuos, Da faina transportadora-de-cargas dos navios, Do giro lbrico e lento dos guindastes, Do tumulto disciplinado das fbricas, E do quase-silncio ciciante e montono das correias de transmisso! Horas europeias, produtoras, entaladas Entre maquinismos e afazeres teis! Grandes cidades paradas nos cafs, Nos cafs - osis de inutilidades ruidosas Onde se cristalizam e se precipitam Os rumores e os gestos do til E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! Novos entusiasmos de estatura do Momento! Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas s docas, Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! Actividade internacional, transatlntica, Canadian-Pacific! Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotis, Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, E Piccadillies e Avenues de lOpra que entram Pela minhalma dentro! H-la as ruas, h-l as praas, h-l-h la foule! Tudo o que passa, tudo o que pra s montras! Comerciantes; vadios; escroques exageradamente bem-vestidos; Membros evidentes de clubs aristocrticos; Esqulidas figuras dbias; chefes de famlia vagamente felizes E paternais at na corrente de oiro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira! Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! Presena demasiadamente acentuada das cocottes; Banalidade interessante (e quem sabe o qu por dentro?) Das burguezinhas, me e filha geralmente, Que andam na rua com um fim qualquer; A graa feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra E afinal tem alma l dentro! (Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!) A maravilhosa beleza das corrupes polticas, Deliciosos escndalos financeiros e diplomticos, Agresses polticas nas ruas, E de vez em quando o cometa dum regicdio Que ilumina de Prodgio e Fanfarra os cus Usuais e lcidos da Civilizao quotidiana! Notcias desmentidas dos jornais, Artigos polticos insinceramente sinceros, Notcias passez -la-caisse, grandes crimes Duas colunas deles passando para a segunda pgina! O cheiro fresco a tinta de tipografia! Os cartazes postos h pouco, molhados! Vients-de-paratre amarelos com uma cinta branca! Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, Como eu vos amo de todas as maneiras, Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!) E com a inteligncia como uma antena que fazeis vibrar! Ah, como todos os meus sentidos tm cio de vs! Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura! Qumica agrcola, e o comrcio quase uma cincia! mostrurios dos caixeiros-viajantes, Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indstria,

Prolongamentos humanos das fbricas e dos calmos escritrios! fazendas nas montras! manequins! ltimos figurinos! artigos inteis que toda a gente quer comprar! Ol grandes armazns com vrias seces! Ol anncios elctricos que vm e esto e desaparecem! Ol tudo com que hoje se constri, com que hoje se diferente de ontem! Eh, cimento armado, beto de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortferos! Couraas, canhes, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente, Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vs, coisas grandes, banais, teis, inteis, coisas todas modernas, minhas contemporneas, forma actual e prxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelao metlica e dinmica de Deus! fbricas, laboratrios, music-halls, Luna-Parks, couraados, pontes, docas flutuantes Na minha mente turbulenta e encandescida Possuo-vos como a uma mulher bela, Completamente vos possuo como a uma mulher bela que no se ama, Que se encontra casualmente e se acha interessantssima. Eh-l-h fachadas das grandes lojas! Eh-l-h elevadores dos grandes edifcios! Eh-l-h recomposies ministeriais! Parlamentos, polticas, relatores de oramentos, Oramentos falsificados! (Um oramento to natural como uma rvore E um parlamento to belo como uma borboleta). Eh l o interesse por tudo na vida, Porque tudo a vida, desde os brilhantes nas montras

At noite ponte misteriosa entre os astros E o mar antigo e solene, lavando as costas E sendo misericordiosamente o mesmo Que era quando Plato era realmente Plato Na sua presena real e na sua carne com a alma dentro, E falava com Aristteles, que havia de no ser discpulo dele. Eu podia morrer triturado por um motor Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuda. Atirem-me para dentro das fornalhas! Metam-me debaixo dos comboios! Espanquem-me a bordo de navios! Masoquismo atravs de maquinismos! Sadismo de no sei qu moderno e eu e barulho! Up-l h jockey que ganhaste o Derby, Morder entre dentes o teu cap de duas cores! (Ser to alto que no pudesse entrar por nenhuma porta! Ah, olhar em mim uma perverso sexual!) Eh-l, eh-l, eh-l, catedrais! Deixai-me partir a cabea de encontro s vossas esquinas, E ser levantado da rua cheio de sangue Sem ningum saber quem eu sou! tramways, funiculares, metropolitanos, Roai-vos por mim at ao espasmo! Hilla! hilla! hilla-h! Dai-me gargalhadas em plena cara, automveis apinhados de pndegos e de putas, multides quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, Rio multicolor annimo e onde eu no me posso banhar como quereria! Ah, que vidas complexas, que coisas l pelas casas de tudo isto! Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro, As dissenses domsticas, os deboches que no se suspeitam, Os pensamentos que cada um tem a ss consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ningum o pode ver! No saber tudo isto ignorar tudo, raiva, raiva que como uma febre e um cio e uma fome Me pe a magro o rosto e me agita s vezes as mos Em crispaes absurdas em pleno meio das turbas Nas ruas cheias de encontres! Ah, e a gente ordinria e suja, que parece sempre a mesma, Que emprega palavres como palavras usuais, Cujos filhos roubam s portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! Masturbam homens de aspecto decente nos vos de escada. A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa Por vielas quase irreais de estreiteza e podrido. Maravilhosa gente humana que vive como os ces, Que est abaixo de todos os sistemas morais, Para quem nenhuma religio foi feita, Nenhuma arte criada, Nenhuma poltica destinada para eles! Como eu vos amo a todos, porque sois assim, Nem imorais de to baixos que sois, nem bons nem maus, Inatingveis por todos os progressos, Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! (Na nora do quintal da minha casa O burro anda roda, anda roda, o mistrio do mundo do tamanho disto. Limpa o suor com o brao, trabalhador descontente. A luz do sol abafa o silncio das esferas E havemos todos de morrer, pinheirais sombrios ao crepsculo, Pinheirais onde a minha infncia era outra coisa Do que eu sou hoje...) Mas, ah outra vez a raiva mecnica constante! Outra vez a obsesso movimentada dos nibus. E outra vez a fria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios

De todas as partes do mundo, De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, Que a estas horas esto levantando ferro ou afastando-se das docas. ferro, ao, alumnio, chapas de ferro ondulado! cais, portos, comboios, guindastes, rebocadores! Eh-l grandes desastres de comboios! Eh-l desabamentos de galerias de minas! Eh-l naufrgios deliciosos dos grandes transatlnticos! Eh-l-h revolues aqui, ali, acol, Alteraes de constituies, guerras, tratados, invases, Rudo, injustias, violncias, e talvez para breve o fim, A grande invaso dos brbaros amarelos pela Europa, E outro Sol no novo Horizonte! Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto Ao flgido e rubro rudo contemporneo, Ao rudo cruel e delicioso da civilizao de hoje? Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, O momento estridentemente ruidoso e mecnico, O Momento dinmico passagem de todas as bacantes Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. Eia comboios, eia pontes, eia hotis hora do jantar, Eia aparelhos de todas as espcies, frreos, brutos, mnimos, Instrumentos de preciso, aparelhos de triturar, de cavar, Engenhos, brocas, mquinas rotativas! Eia! eia! eia! Eia electricidade, nervos doentes da Matria! Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metlica do Inconsciente! Eia tneis, eia canais, Panam, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro j dentro de ns! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e til da rvore-fbrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-h--!

Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Iam-me em todos os cais. Giro dentro das hlices de todos os navios. Eia! eia-h! eia! Eia! sou o calor-mecnico e a electricidade! Eia! e os rails e as casas de mquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, mquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-l! Hup-l, hup-l, hup-l-h, hup-l! H-h! H-h! Ho-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah no ser eu toda a gente e toda a parte!

Londres, 1914 - Junho. lvaro de Campos Dum livro chamado Arco de Triunfo, a publicar.

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