revista mente aberta n°2

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menteaberta Ano 1 - Edição 2 - 2009 Os problemas do Brasil em debate A fome nos extremos do BRASIL Manari (PE) e São Caetano do Sul (SP): como as cidades de menor e maior IDH do país lidam com o problema Como evitar o desperdício; como agem as ONGs A história de Betinho e outros engajados contra a fome LUTA COTIDIANO As condições climáticas influenciam a fome? CRISES Eduardo Suplicy, Carla Rodrigues, Luiz Araújo e Marcelo Debonis apontam saídas para o mal do século Manari São Caetano do Sul Maria Claudina de Sá, 84, moradora de Manari, revela como enfrenta a fome

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Trabalho e conslusão de curso elaborado pelos aunos de jornalismo da Universidade Sant'Anna

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Page 1: Revista Mente Aberta n°2

menteabertaAno 1 - Edição 2 - 2009Os problemas do Brasil em debate

A fome nos extremos do

BRASILManari (PE) e São Caetano do

Sul (SP): como as cidades de menor e maior IDH do país lidam

com o problema

Como evitar o desperdício;como agem as ONGs

A história de Betinho e outros engajados

contra a fome

LUTA

COTIDIANO

As condições climáticas infl uenciam a fome?

CRISES

Eduardo Suplicy, Carla Rodrigues, Luiz Araújo e Marcelo Debonis apontam saídas para o mal do século

Manari

São Caetano do Sul

Maria Claudina de Sá,84, moradora de Manari, revela como enfrenta a fome

Page 2: Revista Mente Aberta n°2

EDITORIAL

02 Mente Aberta

Page 3: Revista Mente Aberta n°2

Você tem fome de que?

O Brasil tem fome. O brasileiro tem fome.

Fome de alimentos, de cultura, de atenção, de

solidariedade, de amor, de paz. De tudo. A fome

é necessidade, sendo assim cada pessoa tem sua

necessidade, tem sua própria fome de algo.

Vivemos atualmente em um círculo vicioso,

em que cada um tem o necessário para manter-

se e o essencial para saciar a necessidade e a

fome do outro. Esta revista, por exemplo, vem

sanar a fome de conhecimento do leitor.

A fome de alimentos é a mais grave dentre

todas, pois independe do indivíduo na maioria

dos casos. A causa desse mal que atinge o

ser humano desde sempre é responsabilidade

do governo ou da população? A solução para

erradicar essa praga está nas mãos de quem?

Essas são as questões cruciais que Mente Aberta

propõe, apresentando todos os lados da moeda,

para que cada um possa ter sua percepção e

absorver sua parcela de culpa.

Durante os meses de elaboração dessa

revista realizamos entrevistas, viagens e contatos

diretos com pessoas engajadas na causa.

Ouvimos quem enfrenta o monstro que atende

pelo nome de Fome diariamente e também

quem já o venceu. Em todas as experiências

surgiram novos rumos para as reportagens,

desqualificando pautas pré-moldadas, provando

que o pensamento humano quanto à situação

atual é limitado e o problema ganha proporções

monstruosas devido, muitas vezes, ao descuido

que temos em nosso dia a dia.

Em outubro deste ano, o Brasil foi

reconhecido pelo grupo ativista ActionAid

como país emergente que mais luta contra a

fome devido à redução de 73% da desnutrição

infantil. Esse feito é atribuído a programas de

renda mínima, como o Bolsa Família e o extinto

Fome Zero. Lideramos a lista, seguidos de perto

pela China, mas isso significa que atingimos

nosso objetivo?

Ao virar esta página, o leitor conhecerá

histórias de pessoas que vivem em nosso meio.

Seres invisíveis que passam ao nosso lado todos

os dias e não vemos, ou desviamos o caminho.

Retratamos também as pessoas que enxergam

esses seres invisíveis, e lutam diariamente para

devolver-lhe a cor da dignidade.

Você tem fome de quê?

O Brasil tem fome. O brasileiro tem fome.

Fome de alimentos, de cultura, de atenção, de

solidariedade, de amor, de paz. De tudo. A fome

é necessidade, sendo assim cada pessoa tem sua

necessidade, tem sua própria fome de algo.

Vivemos atualmente em um círculo vicioso,

em que cada um tem o necessário para manter-

se e o essencial para saciar a necessidade e a

fome do outro. Esta revista, por exemplo, vem

sanar a fome de conhecimento do leitor.

A fome de alimentos é a mais grave dentre

todas, pois independe do indivíduo na maioria

dos casos. A causa desse mal que atinge o

ser humano desde sempre é responsabilidade

do governo ou da população? A solução para

erradicar essa praga está nas mãos de quem?

Essas são as questões cruciais que Mente Aberta

propõe, apresentando todos os lados da moeda,

para que cada um possa ter sua percepção e

absorver sua parcela de culpa.

Durante os meses de elaboração dessa

revista realizamos entrevistas, viagens e contatos

diretos com pessoas engajadas na causa.

Ouvimos quem enfrenta o monstro que atende

pelo nome de Fome diariamente e também

quem já o venceu. Em todas as experiências

surgiram novos rumos para as reportagens,

desqualificando pautas pré-moldadas, provando

que o pensamento humano quanto à situação

atual é limitado e o problema ganha proporções

monstruosas devido, muitas vezes, ao descuido

que temos em nosso dia a dia.

Em outubro deste ano, o Brasil foi

reconhecido pelo grupo ativista ActionAid

como país emergente que mais luta contra a

fome devido à redução de 73% da desnutrição

infantil. Esse feito é atribuído a programas de

renda mínima, como o Bolsa Família e o extinto

Fome Zero. Lideramos a lista, seguidos de perto

pela China, mas isso significa que atingimos

nosso objetivo?

Ao virar esta página, o leitor conhecerá

histórias de pessoas que vivem em nosso meio.

Seres invisíveis que passam ao nosso lado todos

os dias e não vemos, ou desviamos o caminho.

Retratamos também as pessoas que enxergam

esses seres invisíveis, e lutam diariamente para

devolver-lhe a cor da dignidade. 03

Page 4: Revista Mente Aberta n°2

sxc.

hu

04 Mente Aberta

SUMÁRIO

E a fome, como fica?........................................................................................... pág. 05

A comparação entre a crise financeira e a fome no mundo, em forma de artigo.

Programas sociais na maior metrópole do País...............................................pág. 06

A mecânica de distribuição do programa Bolsa Família na cidade de São Paulo.

De sobra a banquete...........................................................................................pág. 08

Como as ONGs atuam na luta contra o desperdício, e como evitá-lo no dia a dia.

O APOIO necessário............................................................................................pág. 12

A ação de ONGs na maior metrópole do Brasil para combater a fome.

Quando foi a última vez que você sonhou?......................................................pág. 15

A ficção percebida na realidade de quem passa necessidade.

Isso não é vida para ninguém............................................................................pág. 16

A vida de um casal de moradores de rua retratada em detalhes.

A luta através dos anos.......................................................................................pág. 20

O relato da luta dos diversos movimentos contra a fome nas últimas décadas.

O paradoxo da fome nos extremos do Brasil....................................................pág. 24

Como as cidades com o maior e o menor IDH do Brasil combatem suas fomes.

Fome: escândalo e vergonha para a humanidade...........................................pág. 32

Entrevista exclusiva com o autor do livro A Fome – Crise ou Escândalo, Melhem Adas.

Hortas urbanas....................................................................................................pág. 34

O projeto de agricultura urbana, introduzido na zona leste paulistana, contra a fome.

Dizem por aí.........................................................................................................pág. 36

Frases pronunciadas por pessoas notórias sobre o tema abordado: fome.

O que os homens contam....................................................................................pág. 37

A fome devastadora do continente africano.

Mudança climática: um vilão na crise dos alimentos......................................pág. 38

As causas e as consequências das alterações climáticas na crise de alimentos.

Missão: acabar com a fome...............................................................................pág. 42

Quatro profissionais de diferentes áreas apresentam soluções para acabar com a fome.

Vidas secas, coração seco...................................................................................pág. 45

Resenha do livro Vidas Secas do escritor brasileiro, Graciliano Ramos.

O despertar de Tião Nicomedes................................................................... .....pág. 46

A emocionante história de um ex-morador de rua que deu a volta por cima.

08

12

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34

38

42

Page 5: Revista Mente Aberta n°2

Vivemos num momento crucial, um dos períodos

mais difíceis de nossa história. A descoberta da crise

econômica global fez ecoar no mundo um grito de

desespero e afl ição. Desde que foi anunciada nos grandes

veículos de comunicação, em 2007, não há um dia sequer

que o assunto não seja comentado. Tal especulação trouxe à

sociedade um caos característico de países capitalistas.

O berço da crise começou nos Estados Unidos, onde as

altas taxas de juros geraram o aumento de inadimplentes no

comércio imobiliário e consequentemente a quebra de alguns

bancos. As instituições fi nanceiras que permaneceram no

mercado preferiram congelar as linhas de créditos evitando

assim futuros calotes, e o resultado surtiu como efeito dominó.

Se o impacto da crise era uma realidade distante de afetar

outros países, agora ela se fez presente no mundo todo. Com o

congelamento dos empréstimos, tivemos um saldo signifi cativo

de empresas que entraram no vermelho. Não tendo dinheiro

para investimentos diminuíram a produção e também a mão

de obra, provocando o avanço do desemprego.

Não obstante, o mercado automobilístico sentiu na pele

os sintomas da crise. A diminuição das exportações, a alta do

dólar e a redução dos empréstimos fi zeram com que os donos

de montadoras se juntassem aos banqueiros e proprietários

de construtoras para chorar o leite derramado.

E a resposta veio rápida. Os principais governos do mundo

criaram pacotes de estímulos para evitarem a falência de suas

fontes de lucro. A aplicação destinada foi de US$ 2,3 trilhões.

O dinheiro empregado serviu para tirar da lama os próprios

criadores da crise, que perdendo o controle sobre a situação,

viram-se diante de um colapso.

A fome, por outro lado, continua sendo um problema

distante de ser solucionado. Com uma quantia de US$ 30

bilhões ao ano, valor bem inferior ao pacote de estímulos

destinados aos magnatas da crise, seria possível acabar com

a fome no mundo. Mas a pergunta que fi ca é: por que isso

não acontece?

Simples. A erradicação da fome não seria lucrativa

para os cofres mundiais. Ao contrário disso, a fome é um

mal necessário, que mostra a dura face do capitalismo, um

sistema cruel que benefi cia aqueles que têm mais, e exclui os

mais vulneráveis.

Assim como Aldous Huxley diz em seu livro Admirável

Mundo Novo, vivemos uma realidade desumana, onde a

busca por interesses é maior do que o bem estar comum.

E a FOME,COMO FICA?

sxc.

hu

ARTIGOPor: Joseane Rodrigues

Foto: Divulgação

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Page 6: Revista Mente Aberta n°2

POLÍTICA

Há muito tempo, milhões de pessoas passam fome

e necessidades no Brasil e no mundo. Em São

Paulo, maior metrópole do País, a realidade não

poderia ser diferente. Muitas pessoas vêm de outros estados,

principalmente das regiões Norte e Nordeste, buscando novas

oportunidades e sustento para suas famílias.

Para acabar com o problema e ajudar a população, o

Governo criou programas sociais com a intenção de saciar a

fome no País. Um deles foi o Programa Bolsa Família criado

em 2003 pelo Governo Federal e que no município de São

Paulo é gerida pela Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social.

Com essa ajuda extra, as pessoas mais carentes passaram

a ter direito a refeições diárias e algumas passaram inclusive

a buscar outros objetivos, traçados a partir do momento em

que as famílias conseguiram poupar um pouco de dinheiro e

comprar bens pessoais. Foi o caso de Berenice Alves, 46 anos,

costureira, que, com o dinheiro que guardou do seu trabalho

conseguiu comprar sua geladeira e o videogame que o filho

tanto esperava.

“Era uma agonia, todos os anos era mesma coisa, meu

filho me pedia o que eu não podia comprar. Meu marido

também não tinha condições. Era no Natal, aniversário, Dia

das Crianças, realmente tiramos um peso das costas no último

aniversário”, argumenta ela, que se lembrou das dificuldades,

bem emocionada.

Para conseguir a adesão ao programa, as famílias precisam

estar enquadradas em uma série de critérios estabelecidos

pelo governo e cumprir com alguns deveres como manter as

crianças devidamente matriculadas na escola e comunicar

quando algum membro da família conseguir um trabalho

formal cuja renda per capta for superior a cento e vinte reais.

É bom lembrar que podem perder o benefício as famílias

que passarem informações incorretas. Estes controles são

realizados pelo Ministério de Desenvolvimento Social e

pela Caixa Econômica Federal, que é o agente pagador do

benefício. Em 2008 estima-se que das 22 mil famílias que

tiveram o pagamento bloqueado na cidade de São Paulo, 15

mil perderam seus benefícios.

Na capital paulista, que concentra o maior número de

famílias atendidas, o trabalho é realizado nas regiões mais

carentes e busca cadastrar a mulher como titular do programa,

pois o governo entende que ela possui maior vínculo com a

família. Em São Paulo, 93% dos cadastros efetuados costumam

ser mulheres.

Mas este não é o único programa de transferência de renda

existente no município. Outros programas governamentais,

como o Ação Jovem Renda Cidadã (Estadual) e o Renda

Programa social na maior METRÓPOLE DO PAÍS

São Paulo é o estado que mais ajuda pessoas no Brasil e que trabalha com um grande número de famílias carentes

sxc.

hu

06 Mente Aberta

Por: André Roja

Fotos: Divulgação

Page 7: Revista Mente Aberta n°2

“Criar cinco fi lhos não é fácil principalmente quando o maior medo é a fome” Maria Aparecida

da Conceição, empregada doméstica

Mínima (Municipal), também estão em vigor e buscam diminuir

a quantidade de pessoas inseridas na triste realidade de não

ter o que comer.

Mas não é só o governo que trabalha neste sentido. Existem

ONGs que realizam trabalhos sociais em favelas e ensinam as

famílias a gerar suas próprias rendas, principalmente aquelas

de alta vulnerabilidade social.

Neste caso, Maria Aparecida da Conceição, 54 anos,

empregada doméstica, se encaixa perfeitamente nesse perfi l.

Maria é uma pessoa que vence as difi culdades do dia a dia

com muito esforço e dedicação, pois como ela mesma diz:

“Criar cinco fi lhos não é fácil principalmente quando o maior

medo é a fome, mas nós procuramos garantir nosso sustento

com o que eu e o marido ganhamos e com o que o governo

dá pra gente”, explica ela lembrando que quando era criança

passou muita fome e que não deseja o mesmo para os fi lhos.

sxc.

hu

Por: André Roja

Fotos: Divulgação

07

Page 8: Revista Mente Aberta n°2

DE SOBRA A BANQUETE

O brasileiro produz muito mais do que precisa para se alimentar, porém muitos não têm acesso ao básico. Com base nessa afi rmação,

pessoas e empresas dispõem-se a destinar alimentos, que seriam desperdiçados, às mesas de diversas instituições diariamente

O brasileiro produz muito mais do que precisa para se alimentar, porém muitos não têm acesso ao básico. Com base nessa afi rmação,

pessoas e empresas dispõem-se a destinar alimentos, que seriam desperdiçados, às mesas de diversas instituições diariamente

COTIDIANO

08 Mente Aberta

Por: Paulo Gratão

Fotos: Daiana Henrique

Lilian Matheus

Page 9: Revista Mente Aberta n°2

DE SOBRA A BANQUETE

Por: Paulo Gratão

Fotos: Daiana Henrique

Lilian Matheus

CEAGESP após a feirade terça-feira

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Page 10: Revista Mente Aberta n°2

Uma fatia de melancia simboliza um enorme sorriso, moldurado em um grande carro branco, e adentra as ruas do bairro Jardim Pery Novo, na zona norte da

capital paulistana. As 129 crianças e adolescentes assistidos pelo Centro da Criança e do Adolescente (CCA) São Francisco das Chagas fazem de sua refeição os alimentos que foram dispensados pelas classes mais abastadas. Maria Marlene Rodrigues de Andrade trabalha no local há 20 anos e ainda se lembra de quando, no fim da década passada, credenciou o CCA para ser beneficiado pela organização não governamental (ONG) Banco de Alimentos. “Foi graças ao Frei Ricardo, ex-pároco daqui. Ele tinha contato com outras igrejas e ficou sabendo, através de outro padre. Daí, fizemos o credenciamento no SESC.” O principal trabalho da Banco de Alimentos é receber produtos que seriam jogados no lixo, desde que estejam próprios para o consumo, e direcionar às pessoas que não têm condições de comprá-los. A ONG atua somente na capital paulistana, porém com uma grande abrangência. Hoje, são mais de 22 mil pessoas alimentadas graças ao trabalho iniciado timidamente em 1999.

Em uma segunda-feira de manhã, Isabel Marçal, coordenadora de operações e assessora da presidência da Banco de Alimentos, nos recebe para uma entrevista na sede da ONG, localizada no Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Antes de iniciarmos, alguns livros da ONG passeiam pelas nossas mãos e alguns trechos prendem a nossa atenção, como o do Atlas do Meio Ambiente do Brasil, de 1994, que responsabiliza o crescimento populacional pela fome no mundo, contradizendo o que pesquisamos previamente no site da Banco de Alimentos. A ONG mostra, com dados precisos, que o Brasil produz 25% a mais do necessário para alimentar toda a população. Fechamos os livros imediatamente, para que aquelas informações não influenciassem a entrevista que estava prestes a começar.

Após apresentar todo o espaço da ONG, que contempla uma cozinha experimental, chamada de “Cozinha Show” e um auditório para palestras, Isabel nos leva para uma sala de reuniões, onde acontece a entrevista. Em dez anos de funcionamento, o número de doações da ONG aumentou seis vezes, passando de 100 mil a 600 mil quilos. Isabel atribui esse resultado à credibilidade conquistada pela ONG e ao árduo trabalho feito para conscientização das pessoas. “É um trabalho bem de formiga. De mostrar a efetividade dele. Nesses dez anos, as pessoas foram conhecendo e também sabendo que poderiam doar.” Além de fazer o trabalho de recolher e entregar os alimentos, a ONG promove palestras de conscientização para a sociedade. Um dos projetos em andamento, inclusive, consiste em levar às escolas públicas e particulares oficinas culinárias que envolvam as partes de alimentos desprezadas pela grande maioria das pessoas, como cascas, folhas, talos e sementes.

O CCA São Francisco das Chagas não é o único beneficiado pela ONG. Junto a ele, existe uma lista com mais 50 instituições atendidas, tendo como público principal as crianças, mas não somente elas. “O perfil é bem heterogêneo, eu diria. A gente vai desde creches até asilos, casas de apoio, albergues,

hospitais. Temos uma igreja, que também faz um trabalho com a população”, diz Isabel. As principais condições exigidas para que a instituição possa ser beneficiada pela ONG é que a refeição seja feita no local e que preste algum outro atendimento às pessoas, além da doação de alimentos. “A instituição tem que fazer um trabalho com essa população atendida. Um albergue, por exemplo, onde a pessoa só vai lá dormir, comer e tomar banho não é elegível. Ela tem que ter algum curso profissionalizante. Uma creche, também, não pode só ficar com as crianças dormindo”, reforça a coordenadora da ONG.

Nesses critérios, o CCA de Maria Marlene se enquadra. As crianças e adolescentes, que se dividem em dois turnos, frequentam a instituição para aprender algo além da escola e não ficar pelas ruas. Marlene acredita que muitas vão para lá por falta de amor e atenção em casa, mas não hesita em dizer que as únicas refeições de muitas acontecem na escola e na instituição. Para participar da CCA, a família tem de ter uma renda total de zero a três salários mínimos e inscrever-se. Após visitas, são analisadas e selecionadas as mais necessitadas. Hoje, 50% do rendimento do CCA vêm da prefeitura e os outros 50% são oriundos de doações.

O campeão do desperdício e da boa ação

Um dos campeões de desperdício em São Paulo, devido à alta circulação de alimentos horti-fruti, é a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP). Por venderem em atacado, os permissionários (atacadistas) descartam caixas inteiras de alimentos apenas por alguns que não estão em condições de consumo. Desde 2003, a CEAGESP, percebendo essa necessidade, montou o seu próprio banco de alimentos, onde são distribuídos, em média, 121 toneladas de produtos por mês, segundo a assessoria de imprensa da CEAGESP. Em nível estadual, essa quantidade sobe para 320 toneladas de alimentos por mês.

Os alimentos que não estão em condições de venda, mas podem ser consumidos, são doados primeiramente pelos permissionários ao banco da CEAGESP e posteriormente distribuídos à ONG Banco de Alimentos e mais de 100 entidades da capital cadastradas. Entre os principais produtos doados estão mamão, manga, mexerica, cenoura, tomate, abobrinha, brócolis, couve e acelga

Em outubro do ano passado, a CEAGESP promoveu a Olimpíada da Solidariedade, baseada nos Jogos Olímpicos de Pequim. Em apenas nove dias, foram arrecadadas 41,5 toneladas de alimentos. Os funcionários e permissionários que mais doaram foram reconhecidos com medalhas de ouro, prata e bronze, de acordo com suas classificações. Mesmo sendo uma competição, todos os participantes ganharam o direito de assinar a bandeira do Brasil que foi enviada à seleção feminina de futebol em Pequim.

As consequências do bem

Uma das maiores razões que bloqueiam as doações, segundo Isabel, é a insegurança do doador quanto a um possível mal-

COTIDIANO

10 Mente Aberta

Page 11: Revista Mente Aberta n°2

estar do benefi ciado. A lei atual rege que se um estabelecimento doa um alimento a uma pessoa e esta adquire algum problema de saúde devido à ingestão o produto, o doador deve arcar com altas multas e indenizações. Quanto aos alimentos recebidos pela Banco de Alimentos, Isabel diz que esse é um problema presente, porém vem sendo combatido. “Muitas pessoas tinham medo de doar, porque não têm o respaldo de uma legislação que os exima da responsabilidade. Ao poucos foram vendo que nós, da Banco de Alimentos, fazemos um trabalho sério e pegamos a responsabilidade para nós. Também fazemos uma triagem dos alimentos, alguns que a gente não pega, outros a gente pega”.

Por essa razão, hotéis, restaurantes, mercados e estabelecimentos em geral, como o restaurante Max Juras, na zona norte de São Paulo, próximo à Rodoviária do Tietê, preferem jogar as sobras fora a correr o risco de arcar com multas. O funcionário Sebastião Resende, que trabalha há cinco anos no local, diz que a produção diária no horário do almoço é de 100 a 300 pratos e que a sobra é aproveitada para a produção de pratos comerciais à noite, ao preço de R$ 8,00. No fi nal do dia, chega-se a 5% de sobra, que em sua maioria é destinada ao lixo. “Vez ou outra esse alimento é doado a algum morador de rua já conhecido por nós. Não são doados a todos que pedem, pois se porventura algum deles passar mal, o restaurante responde por isso”, afi rma.

A solução para casos como o de Sebastião, que é um doador impedido pelo receio das multas, é a lei do Bom Samaritano, baseada na parábola bíblica do único homem que ajuda um estranho sem investigar sua origem. A lei está em tramitação no senado desde 1997, na época do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). O projeto desenvolvido pelo Serviço Social do Comércio (SESC), frente à necessidade de combater a fome e o desperdício, propõe que o doador de boa fé comprovada seja imune à responsabilidade nos casos de doar um produto e este provocar algum mal-estar ao benefi ciado. Além desta condição, a lei do Bom Samaritano tem em seus artigos trechos que benefi ciam o doador com a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços (ICMS) sobre os alimentos doados.

Nos programas de conscientização da Banco de Alimentos, constam informações sobre esse projeto de lei e

abaixo-assinados que visam acelerar a sua aprovação. “Nós promovemos no nosso site a consciência das pessoas em relação ao estatuto do bom samaritano, que é uma legislação que já está parada no Senado desde 1997. Levantamos um abaixo assinado com relação a essa lei, e acho que a própria atuação da ONG de conscientização das pessoas leva a isso.”

A rotina do desperdício

Questionada sobre as formas de desperdício no dia a dia, Isabel diz: “Acredito que a primeira é não utilizar cascas, folhas, talos e sementes. Isso é uma questão cultural, a gente acaba desperdiçando, ou nem tendo conhecimento de como realizar pratos com essas partes do alimento”. Em enquete realizada com 14 pessoas responsáveis pelas compras e pela despensa de casa, na cidade de São Paulo, com idades variadas entre 25 e 50 anos, 71% comprovam a tese de Isabel e não agregam essas partes do alimento à sua refeição alegando falta de costume.

Outra forma de desperdício muito comum, segundo a coordenadora, é não fazer o planejamento das compras do mês com base no consumo diário. As pessoas costumam ir ao mercado e comprar o que está faltando, sem planejar se tudo aquilo realmente será consumido. Essa vertente talvez já esteja sendo combatida, de acordo com as pessoas entrevistadas, já que 64% delas garantem programarem-se para as compras e apenas 43% diz que suas contas falharam e deixam sobrar alimentos sem sequer abri-los.

Para reverter este problema e ajudar trabalhos como o da Banco de Alimentos, a pessoa física pode contribuir com doações, mesmo sem ter empresa ou algo do gênero. “Muitas Pessoas Físicas enviam cestas básicas pra cá. Existem também campanhas em empresas, onde os funcionários se mobilizam e arrecadam produtos não perecíveis”, confi rma a coordenadora da ONG.

De acordo com Isabel, a sociedade mudará sua mentalidade apenas quando as escolas, que são a base de tudo, investirem em programas de conscientização. “Cada pessoa que tem esse conhecimento deve passar para os outros. Só assim a gente vai conseguir se conscientizar. A escola é um inicio forte, já faz parte da educação daquela pessoa. As faculdades também poderiam tratar dessas questões, afi nal de contas os universitários têm uma força muito grande e estão abertos para o conhecimento“.

Vencedores da Olimpíada da Soliedariedade promovida pelo CEAGESPVencedores da Olimpíada da Soliedariedade promovida pelo CEAGESPVencedores da Olimpíada da Soliedariedade promovida pelo CEAGESP

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Page 12: Revista Mente Aberta n°2

12 Mente Aberta

AÇÃOPor: Daiana Henrique

Fotos: Daiana Henrique

Moradores da Av. Rio Branco, centro de São Paulo

Moradores da Av. Rio Branco, centro de São Paulo

Moradores da Av. Rio Branco, centro de São Paulo

Page 13: Revista Mente Aberta n°2

O “APOIO” NECESSÁRIO

Por: Daiana Henrique

Fotos: Daiana Henrique

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Page 14: Revista Mente Aberta n°2

14 Mente Aberta

sim, a maior metrópole do país. Não podemos caracterizar como fome apenas a situação de quem não tem o que comer, mas também a forma de comer, pois quem vive de doação nunca se alimenta de maneira adequada, com os nutrientes necessários. “Por essa razão que a construção da APOIO é considerada um desafi o, pois desmistifi ca a lenda de que aqui em São Paulo ninguém passa fome”, ressalta Del Rio.

A contradição entre a miséria do Nordeste e Sudeste sempre foi discutida, é comum existir comparações, exatamente pela razão das pessoas acreditarem que as regiões desenvolvidas não são atingidas pela fome. Por esse motivo, conversamos com Patrícia Shimidt, 35 anos, também advogada, funcionária da ONG Amigos do Bem. Projeto atuante exclusivamente da região nordestina que visa combater a fome e miséria no sertão do Brasil.

A ONG Amigos do Bem seleciona locais desestruturados para moradia, e reestruturam através da implantação de centros médicos, educacionais e lavoura, além de instalarem saneamento básico e construírem casas de alvenarias. Os locais transformados por eles foram Catimbau, Agrovila e Inajá em Pernambuco e Torrões em Alagoas, essas cidades fi caram conhecidas como “cidades do bem”. Hoje o projeto ajuda seis mil e duzentas famílias cadastradas que recebem uma cesta básica a cada 45 dias e contam com a colaboração de quatro mil voluntários.

Segundo Patrícia a escolha da região é devido “existir fome em todos os lugares, mas a incidência ser maior no Nordeste, por isso lá se tornou o foco da miséria e grande parte das ações solidárias ocorre nesta região. As pessoas do sertão vivem uma realidade diferente da nossa. Eles não têm esperança de melhorias, há quem passe de três a quatro dias sem comer nada e eles não têm a quem ou ao que recorrer.”

Regiões completamente diferentes, desde sua povoação, cultura e clima, mas com uma semelhança: a necessidade de ajuda das ações sociais para seu povo não morrer de fome. Independente da potência da região, seja ela coberta de terra seca ou de riqueza, existem pessoas passando fome e vivendo de forma precária. Levar cestas básicas para famílias carentes é uma necessidade emergencial, mas é preciso mais que isso. É imprescindível a conscientização e investimentos para que pessoas parem de sofrer com a fome, quando curiosamente moram em um país que, segundo a ONG Banco de Alimentos produz vinte cinco por cento a mais de mantimento para suprir a necessidade de toda a sua população.

Quando falamos de fome, imediatamente a imagem daqueles corpos desnutridos, quase sem vida, que são utilizados em campanhas em combate à fome

surge em nossas mentes. Relacionamos essas fi guras a lugares como África, Ásia ou até mesmo o sertão Nordestino. Mas será que este é o mais longe que a fome chega para quem vive na cidade mais rica do Brasil, São Paulo?

Através dessa reportagem veremos que não. Imagina-se que em cidades desenvolvidas como a capital paulistana ninguém passa fome. Em qualquer porta onde um pedinte esfomeado bater será recebido com um prato de comida, ou pode até mesmo recorrer ao lixo como meio de alimentação. Agora se faz a pergunta: um ser humano que tem como opção o lixo ao morrer de fome, vive de maneira digna?

Para lutar contra essa teoria, o advogado Manoel Del Rio, 62 anos, fundou o Comitê contra a Fome e o Desemprego. Criada no período da forte crise econômica, por volta de 1981, essa Organização Não Governamental (ONG), que hoje atende pelo nome de APOIO - Associação de Auxílio Mútuo da Região Leste, foi desenvolvida para combater o desemprego e a miséria em São Paulo.

Inicialmente o objetivo da campanha era reunir pessoas que enfrentavam difi culdades fi nanceiras para participarem de passeatas pelas ruas da cidade, pedindo e recolhendo alimentos. As famílias participantes dividiam em partes iguais as doações recebidas e levavam para casa no mesmo dia. Del Rio que liderou a campanha, afi rma a tese de que em São Paulo existe muita fome. “As pessoas que nos acompanhavam passavam mal, estavam fracos, desnutridos e desmaiavam. A fome em São Paulo não é como a africana ou da seca do Nordeste, que são regiões que atingem a miséria por inteiro. Aqui existem famílias que vivem muito bem, e ao lado tem um cortiço. Muitas vezes a pessoa tem aspecto que não transparece a fome, mas estão muito doentes.”

Depois de três anos em ação, essa campanha contra a fome acabou, pois já não surtia o mesmo efeito e as doações recebidas diminuíram consideravelmente. Com o seu fi m, deram sequência ao trabalho apoiando os sem-teto, que para o fundador da ONG é o maior causa do agravamento da fome: “Constatamos que as pessoas que tem mais vulnerabilidade alimentar são as que não têm moradia. É preciso resolver o problema habitacional caso queiramos combater a fome”, afi rma Manoel.

Na luta pela moradia, a APOIO se uniu ao Centro de Acolhidos, antigos albergues, e hoje atende cerca de mil moradores de rua, prestando auxílio de moradia e alimentação. Quando questionado o porquê da cidade de São Paulo ser a escolhida para atuação da ONG, Manoel assegura que, “tirando o problema da seca no nordeste, a fome no Brasil é igual em todas as regiões e aqui em São Paulo não é diferente”.

É comum pessoas da cidade paulistana atenderem em suas portas necessitados pedindo alimentos para suprir a fome, ou até mesmo, a imagem de pessoas recorrendo ao lixo para se alimentarem, essa é a certeza de que a fome atinge

AÇÃO

Manoel del Rio: Fundador da ONG APOIOManoel del Rio: Fundador da ONG APOIOManoel del Rio: Fundador da ONG APOIO

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Outro dia, durante um rápido café em uma lanchonete no centro de São Paulo, fui abordado por uma jovem senhora que aparentava ter bem mais idade do que

tinha realmente. Mecanicamente, nem me prestei a olhar o produto que ela oferecia e fi z uma rude negativa. Entretanto, estava ao celular e lembro-me de ter feito uma pergunta ao meu receptor que cativou a atenção da vendedora invisível, fazendo-a iniciar um diálogo inesperado comigo. Minha pergunta foi algo sobre “quando foi a última vez que você sonhou?”, a senhora esperou que eu desligasse o telefone e começou a falar:

“A última vez em que me lembro, estava em um país distante, cheio de pessoas felizes e generosas, que não tinham medo de compartilhar o pouco que tinham. Ninguém tinha motivo pra reclamar, afi nal comíamos, trabalhávamos e dormíamos uniformemente. Era um país sem igual: vivíamos em democracia e igualdade.

Essa última vez já faz tanto tempo. De lá pra cá não tive mais sonhos assim... Se eu não me engano, a última noite que sonhei foi há uns três anos, nos meus primeiros dias de viuvez. Depois que me mudei pra esse barraco com meus fi lhos, passei a eles a oportunidade de sonhar. Seria egoísmo meu retirar essa parte tão valiosa da infância, não é? Enquanto eles sonham, eu durmo à prestação. Essa noite, em especial, foi muito difícil, a fome incomodava muito. Ainda bem que as crianças comem na escola, por essa razão nunca faltam e vão até doentes.

Ontem recebi um bilhete da professora do meu menino mais velho, mas como sei ler muito pouco não consegui distinguir algumas palavras. Amanhã vou lá ver o que ela quer. Tenho que me lembrar de passar na feira depois... Como se eu fosse esquecer. Tem um homem muito bom que sempre me reserva uma caixa com algumas frutas. Eu as dou às crianças também.

Quando eu era moça, reclamava muito de cólicas e essas dores que as mulheres se queixam, mas isso até eu conhecer a dor da fome. Nunca vi nada igual. A maior fome que havia sentido aos 15 anos era de uma refeição à outra, mas essa fome de comer pedra é a primeira. Meu recorde será batido essa semana: quatro dias sem comer um pão inteiro.

Ah que saudade do meu tempo de solteira. Morava lá em Minas, com meus pais, até conhecer o Joaquim. Meu pai sempre foi contra nosso casamento, pois eu era muito nova e ele era muito

Quando foi a última vez

eles sonham, eu durmo à prestação. Essa noite, em especial, foi muito difícil, a fome incomodava muito. Ainda bem que as crianças comem na escola, por essa razão nunca faltam e

Ontem recebi um bilhete da professora do meu menino mais velho, mas como sei ler muito pouco

Morava lá em Minas, com meus pais, até conhecer

que você sonhou?doente. Mesmo assim me casei. Chegamos a São Paulo há uns 4 anos, quando eu tinha 25 e já tinha um fi lho de 5 anos. Dois anos e mais dois fi lhos depois, Joaquim morreu de câncer e me deixou sem lugar pra morar com as crianças. Voltar pra casa? Eu adoraria, mas meus pais preferem me ver morta a com eles de novo, por causa do Joaquim.

Nunca vivi como uma princesa. Minha família era muito pobre também e tive que trabalhar desde cedo, sem chances e poder estudar. Essa talvez tenha sido a razão de querer sair de casa, esperança de vida nova. Perspectiva de um futuro rico.

Hoje vivo com o que Deus me dá e sustento meus fi lhos conforme a sua bondade. Graças a ele consigo manter meus fi lhos. Estão magrinhos, é verdade, mas estão fortes e bem. Eu como conforme sobra. Não penso em roubar, nem em tirar dos meus fi lhos para mim. Já errei demais nessa vida e se alguém tem que pagar por erros, essa sou eu.

Agora, se me permite, vou continuar a vender minhas flores e tentar chegar em casa com algum dinheiro antes das crianças.”

Comprei todas as fl ores que tinham em seu cesto.

ERA UMA VEZPor: Paulo Gratão

Foto: Divulgação

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“ISSO NÃO É VIDA PRA NINGUÉM”

A história real de um casal de moradores de rua da maior metrópole do Brasil. Um paradoxo social

presente na vida de centenas de pessoas, que vivem em condições de extrema miséria

PERFIL

16 Mente Aberta

Por: Joseane Rodrigues

Fotos: Joseane Rodrigues

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“ISSO NÃO É VIDA PRA NINGUÉM”

O título que dá início a essa matéria foi proferido por Maria da Glória ao retratar sua atual situação. Sentada no velho sofá

da improvisada casa, ela narra, melancólica, a trajetória que a fez chegar onde está. Com 43 anos, a mineira, negra, de aspecto sofrido pouco conheceu sobre sua cidade, pois foi para o Mato Grosso com a família quando ainda era criança. Lá cresceu e viveu. Na escola, nem chegou a entrar: “Nunca cheguei a estudar, minha caneta era o cabo da enxada.”

Vinda de um casamento conturbado, como ela mesma disse, teve que aguentar muito até resolver separar-se defi nitivamente. “Havia muita traição. Até minha irmã, um trem que eu criei depois que minha mãe morreu, me traiu com ele.” Decepcionada com o casamento, Maria esperou seus quatro fi lhos crescerem para tomar a decisão de seguir adiante. Sem perspectivas, sua única companhia era a bebida. Atualmente ela não bebe, mas em compensação fuma compulsivamente. Enquanto conversávamos, em sua modesta casa, uns cinco cigarros foram acesos consecutivamente.

Hoje ela mora como o novo companheiro em São Paulo, mais precisamente debaixo do viaduto 25 de Março, ao lado do metrô Pedro II. Lá disputam com outras famílias um espaço em nome da sobrevivência. As muretas do viaduto é usada como parede para apoiar os poucos objetos que tem. Um sofá antigo e remendado divide espaço com os sacos de roupas e um pedaço de colchão fi no. O fogão a lenha é feito de cimento com uma grade na parte superior. O visual se repete em outros barracos, alguns com mais quinquilharias do que os outros, mas todos na mesma situação de penúria.

Valdir dos Santos de Jesus, homem de estatura média, franzino, com muita barba e poucos dentes. Nasceu no Rio Grande do Norte, na cidade de Natal, para onde pretende voltar se a atual situação não melhorar. Quando esteve em São Paulo pela primeira vez, trabalhou nas construções de túneis para o metrô, e em serviços gerais. Recém chegado de outro Estado, morou algum tempo debaixo da ponte até ter condições de alugar uma casa, situação que mudou com a moradia que conseguiu ganhar da então prefeita da época, Luiza Erundina (PT). Imóvel que, segundo ele, doou para um irmãozinho (amigo) quando foi trabalhar no Mato Grosso, num garimpo.

Foi lá, a 1.800 quilômetros de distância da grande metrópole, que Maria e Valdir se conheceram. Depois de fi car algum tempo sozinha, Maria entrou na vida de Valdir e juntos resolveram voltar para a terra natal dele. Seria uma longa viagem até seu destino fi nal. Sem dinheiro e com apenas alguns pertences na carroça percorreriam o caminho até o Rio Grande do Norte a pé, mas antes passariam em São Paulo para realizar um antigo sonho de Maria, conhecer a igreja do pastor David Miranda, Deus é Amor.

A viagem até São Paulo durou mais de cinco meses. “Viemos a pé pela BR, enfrentamos muitas difi culdades, só nós e nossa carrocinha”, fala Valdir. O sonho de conhecer a igreja foi concretizado, mas a viagem foi interrompida.

Por: Joseane Rodrigues

Fotos: Joseane Rodrigues

Valdir e Maria, moradores do viaduto 25 de março em São Paulo

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não só por parte dos órgãos públicos, mas pela população em geral. “As pessoas olham pra nós como se fôssemos nada, moradores de rua, peregrinos. Olham assim, como se olhassem para aquele cachorro”, aponta para o Rottweiler chamado Caíco, amarrado mais à frente, presente de um policial, diz Maria.

Mais tarde, com os olhos marejados, ela dá um exemplo do descaso humano. Um rapaz que morava do outro lado do viaduto acidentou-se e quebrou a perna, teve que colocar pino e não podendo andar, ficou doente. “Ele foi indo, foi indo, até que não aguentou e morreu à míngua em cima de seu colchãozinho, e ninguém fez nada.”

O sofrimento estampado no rosto de Valdir e Maria simboliza não só as condições do casal, mas de todos que estão no mesmo contexto de desigualdade. Com 47 anos e sem estudo, Valdir tem seu meio de sobrevivência ameaçado. Segundo ele, já teve duas carrocinhas apreendidas, além de mantimentos e objetos domésticos. “Esse Kassab aí é quem está fazendo tudo isso, já levaram duas carrocinhas minhas, comida, medicação e um radinho dela. É isso que me deixa indignado.” E aproveita para proferir as palavras que desde o início da entrevista já foram ditas por ele umas quatro vezes: “Em nome do senhor Jesus”.

Desenvolvimento social é algo distante da realidade vivida pelos moradores do viaduto 25 de Março. Revoltada com a gestão do atual prefeito, Maria desabafa. “O prefeito poderia tirar as pessoas da rua e colocá-las em lugar adequado, ele tem condições pra fazer isso e mesmo assim não faz. E depois poderia deixar as pessoas trabalhar em paz. Muitos aqui não têm estudo para trabalhar em uma firma e outros já estão velhos. Trabalhar como carroceiro ou camelô é um meio de sobrevivência, ele não devia nos proibir.”

Maria sofre de pressão alta e não é raro ouvir falar que sente dores pelo corpo. Com a saúde debilitada e sem saber ao certo o que tem, ela aguarda as consultas marcadas na Assistência Médica Ambulatorial (AMA). Enquanto o diagnóstico não vem, a falta de saneamento básico vai agravando mais seu estado de saúde. No minúsculo banheiro feito de tábuas, apenas um balde e um sabonete fazem parte do cenário. O vaso sanitário é inútil, uma vez que não dispõe de rede de esgoto e muito menos água. As necessidades fisiológicas são feitas em sacos plásticos e depois jogados fora, sem o mínimo de higiene. Roupas e vasilhas são lavadas quando sobra água, circunstância que dificilmente acontece.

Durante a entrevista, a equipe da Mente Aberta tentou fazer algumas fotos da casa do casal, ato que teve intervenção de alguns moradores vizinhos. Valdir afirma que o lugar é meio “barra pesada”, motivo de nunca deixar a casa sozinha. Quando sai

A desilusão

Em São Paulo, os emigrantes se alojaram debaixo de uma ponte no bairro do Glicério e o inesperado aconteceu. Valdir foi comprar café, enquanto Maria vigiava a carrocinha, no mesmo instante em que o rapa (gíria usada pelos carroceiros ou camelôs ao referir-se aos Guardas Municipais) apareceu. “Eles chegaram sem falar nada e levaram nossas coisas, sem motivo nenhum”, diz Maria sobre a atuação dos guardas. Nesse momento ela dá uma pausa e lembra o marido que na próxima terça-feira os guardas avisaram que viriam. “Vão pegar nossas coisas”, prevê o homem preocupado.

A carrocinha era tudo que o casal possuía, até os documentos de Valdir que estavam nela foram apreendidos. Não podendo prosseguir viagem, e sem lugar para ficar, a solução foi instalar-se debaixo do viaduto 25 de Março, onde vivem até hoje. Um ano depois de terem chegado à capital, Maria se diz arrependida. “Eu imaginei que São Paulo, por ser uma capital, cidade grande, era melhor para o pobre viver, mas me enganei completamente. Você convivendo no dia a dia é totalmente diferente do que a televisão mostra.”

Desempregados e analfabetos, o único meio de sobrevivência da família provém dos papelões e objetos de reciclagem encontrados por Valdir na rua. Com a pequena e velha carroça ele consegue arrecadar em média, R$ 160,00 por mês, dinheiro que garante duas refeições diárias. No café da manhã ingerem apenas o café puro. Pão ou qualquer outro alimento nesse horário é fora de cogitação. Normalmente comem arroz, feijão e de vez em quando macarrão. Pergunto se sentem vontade de comerem coisas diferentes, Maria solta uma leve gargalhada e responde: “Comer de que jeito? Só se ele achar no lixo quando tá catando papelão”. Na bacia de plástico sobreposta em um tijolo, usado como mesa, alguns legumes murchos são sobras do Mercado Municipal, que fica a poucos metros dali. “O lixo de alguns para nós é alimento”, complementa a senhora.

Há ainda os que o ajudam a ter uma vida mais digna. Uma delegada pernambucana que mora nos arredores sempre contribui com mantimentos ou roupas. No açougue do bairro, a dois quarteirões dali, conseguem ossos e pé de galinha para incrementar a refeição. O posto de gasolina BR que fica do outro lado da rua fornece água gratuita para seu Valdir, já que no local não tem água encanada. “Eles dão água pra mim porque me conhecem, sabem que sou do bem. Se não fossem eles, não sei como sobreviveria.”

Sem nenhum outro tipo de auxílio os personagens da vida real se queixam da exclusão social vivenciada diariamente,

PERFIL

18 Mente Aberta

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para recolher papelões na rua, Maria tem que fi car e cuidar das coisas, senão correm o risco de perder o pouco que têm. Ele ainda completa que, à noite, o lugar fi ca mais perigoso, pois vira ponto de tráfi co.

Esperança...

Desde o começo da entrevista Maria não largava um pequeno rádio de pilha. Estava ouvindo um programa evangélico, que, segundo ela, a ajuda ter mais esperanças. Apesar da vida que leva, Maria se mantém fi rme na fé e diz que, se não fosse por isso, talvez já tivesse cometido alguma besteira. “Às vezes dá vontade de sair louca e me jogar debaixo de um carro, só pra esquecer dos problemas.O mais deprimente é você olhar de um canto para outro e ninguém estender a mão pra te ajudar.”

Após a bateria de perguntas, Valdir levanta do sofá, que foi confi dente de suas revelações, e deixa Maria só, ocasião oportuna para ela abrir seu o coração. Ela diz que sente saudades dos fi lhos que deixou no Mato Grosso e espera um dia estar em condições melhores para escrevê-los. Não mantém contato agora porque tem

vergonha deles saberem como está vivendo.Há mais de dois anos com Valdir, Maria confessa que

mesmo gostando do companheiro não sabe qual vai ser o final dessa história, mas afirma: “Gostaria de terminar

meus dias em minha casinha, não queria acabar aqui, isso não é vida pra ninguém.”

Por alguns instantes ela fica em silêncio apenas contemplando o momento. Olha mais adiante, na direção do metrô, e diz que fica horas observando o movimento e imaginado para onde vai tanta gente. Desde que chegou à São Paulo o lugar mais longe que ela já foi é o posto de saúde, onde costuma fazer seus exames. ”Queria andar de metrô ao menos uma vez, nem que seja para ir embora. Fiquei sabendo que ele leva a gente até a rodoviária.”

Com esperanças de um futuro melhor eles se despedem de nossa equipe e aguardam, ansiosos, o dia em que serão realmente enxergados pela sociedade. Enquanto isso não acontece, a fome persiste em ser uma árdua batalha contra a existência e cada dia é uma graça estar vivo.

“O lixo de alguns para nós é alimento”

O casal alojado em sua casa improvisada embaixo do viaduto

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A LUTA ATRAVÉS DOS ANOS

Fatos, fotos e histórias de atos e pessoas que lutaram contra a fome nas últimas

décadas. O retrato de um Brasil solidário que se preocupa cada vez mais com o

problema que alastra o país.

HISTÓRIA

20 Mente Aberta

Por: Paulo Gratão

Fotos: Divulgação

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Um dos males mais primitivos da história sempre teve inimigos letais prontos para desafi á-lo. A fome, presença marcante desde as últimas gerações,

apresenta-se em diversas faces: desnutrição, desigualdade social, corrupção e desemprego. Desde os anos 1980 até hoje, a fome passa por todas essas etapas. Nessa reportagem você conhecerá histórias de atos que mobilizaram o país na luta contra a fome. Cada um a sua maneira, e em contextos diferentes, tinham o mesmo objetivo: erradicar a fome no Brasil.

ANTEONTEM – ANOS 19801985 - Fome, fraternidade e conversão

A Campanha da Fraternidade foi criada no Brasil, em 1962, no Rio Grande do Norte, com o intuito de arrecadar fundos para as ações sociais do Nordeste. Mais tarde, Dom Helder Câmara, secretário nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na ocasião, percebeu que essa ferramenta poderia ser utilizada como forma de evangelização. Por essa razão, os primeiros temas referem-se à renovação dos cristãos e das estruturas da própria Igreja. Em 1968, na Assembleia de Medellin, na Colômbia, a Campanha da Fraternidade direciona sua atenção às denuncias sociais das causas da miséria dos povos latino-americanos.

O professor Luiz Antonio Souza Amaral participa da elaboração e divulgação das campanhas desde 1982. Após muitas tentativas frustradas de marcar uma hora em sua restrita agenda, o simpático senhor nos recebe durante uma de suas reuniões, ao meio dia, no SESC Consolação, região central de São Paulo.

O texto base da Campanha da Fraternidade em questão isenta o alto crescimento populacional pelo aumento da fome no mundo, na ocasião. O posicionamento da Igreja quanto a isso é claro, segundo Luiz. “A Campanha da Fraternidade de 1975 com o tema ‘Fraternidade é Repartir’ já nos dava uma indicação de que o problema da fome de grandes parcelas da população brasileira não era a falta de recursos e de produtos alimentícios e sim a má distribuição da renda que impossibilitava os miseráveis de adquirirem o alimento necessário para a sua sobrevivência. A Campanha de 85 aprofunda a questão mostrando que a produção de bens, expressa pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB) não era acompanhada por uma justa distribuição desses bens, o que acarretava o empobrecimento de grande parte da população. O país caracteriza-se como grande produtor mundial de alimentos e, em contrapartida, a sua população segue esfomeada. Isso se devia ao modelo econômico que privilegia a concentração de renda.”

Questionado sobre o objetivo do convite feito ao cristão para jejuar voluntariamente, citado no texto base da Campanha, Luiz diz que a quaresma - quarenta dias entre a quarta-feira de cinzas e a sexta-feira santa, que relembram o período de exílio de Jesus no deserto - é um período de conversão social e pessoal, com orações e sacrifícios pessoais para que o cristão se aproxime do ideal da perfeição. “Daí a sugestão para sentirmos na própria pele o signifi cado da fome nos irmãos que passam essa necessidade, provocada pela injustiça social, a que estão submetidos. Jejum quaresmal é uma forma de nós sentirmos a necessidade de mudarmos a condições injustas em que estão nossos irmãos empobrecidos.”

Questionado sobre a escolha do ano e, por que não retomar o tema atualmente, Luiz afi rma que a campanha atual, que

trata sobre segurança pública, tem em seus tópicos questões que citam a fome como elemento de insegurança. “A fome está inclusa na Campanha 2009, no tópico Segurança Alimentar, porque a campanha apresenta uma diversidade de situações e que vai fazer com que você crie um foco na sociedade mais diversifi cado possível.” A percepção de Luiz é que com os programas sociais de renda mínima criados pelo governo nos últimos anos, a situação de fome e miséria no Brasil tem sido aliviada, quando comparada à época da campanha, embora ainda tenha um grande percentual de pessoas em situação de pobreza. “Os mecanismos de concentração de renda continuam tão graves como no passado e talvez até mais sofi sticados, o que continua garantindo ao país a degradante posição de um dos últimos na lista de distribuição de renda. Daí o fato da campanha da fraternidade continuar a trabalhar com os temas que geram a pobreza: educação, saúde, política, segurança pública. As campanhas atuais são formas de mudar a realidade injusta de uma sociedade nada fraterna que deixa grande parte da população à margem dos benefícios do progresso.”

ONTEM – ANOS 19901993 - Um por todos e todos por todos

“Chega! Vamos dar um basta nesse processo insensato e genocida da miséria que coloca milhares de pessoas nos limites insuportáveis da fome e do desespero.” Com essa frase, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, iniciou a carta da Ação da Cidadania, clamando por uma atitude coletiva contra a fome em 1993.

O mineiro Betinho sempre esteve envolvido em questões sociais desde a sua juventude até a sua morte em 1997. A pressa por viver, decorrente da hemofi lia que o acompanhava desde seu nascimento, e mais tarde, o vírus HIV contraído por uma transfusão de sangue, não o deixava perder um minuto sequer. No inicio dos anos 1990, já no Rio de Janeiro, liderou o Movimento pela Ética na Política, responsável pelo pedido de impeachment de Fernando Collor. O sociólogo foi responsável, também, pela criação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em 1981, dirigido hoje por Francisco Menezes, que nos concedeu uma entrevista por telefone. “Betinho dizia que o primeiro ponto que precisamos alcançar para termos ética é enfrentar o problema da fome no Brasil. Antes disso, começou a surgir aquela mobilização pela ética na política e em determinado momento ele compreendeu que precisava iniciar uma ação contra a fome no país. Com isso, a campanha veio se chamar ‘Ação pela cidadania contra fome e a miséria e pela vida’. Aí que começam a se formar os comitês no país todo.”

Segundo Francisco, durante o governo Collor, Betinho

Por: Paulo Gratão

Fotos: Divulgação

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mantinha um “governo paralelo”. Dentro desse projeto surgiu uma proposta chamada Segurança Alimentar, que não foi aceita pelo ex-presidente. O sucessor Itamar Franco abraçaria a ideia. “O Itamar recebeu a proposta e um dos seus focos era a criação de um conselho de segurança alimentar. Então ele chamou o Betinho para presidir esse conselho, mas ele não pôde devido seu problema de saúde e indicou Dom Mauro Moreli para o seu lugar”, afi rma Menezes. Ao mesmo tempo em que o conselho de segurança alimentar (CONSEA) era criado, os comitês da Ação da Cidadania ganhavam força. Personalidades iam à televisão pedir que cada brasileiro contribuísse da forma que pudesse.

Em 29 de junho de 1993 é promovido o primeiro grande evento da Ação da Cidadania. O “Pedalando contra a fome” contou com sete mil ciclistas pelas ruas do Rio, fazendo o percurso do Leblon até o Aterro do Flamengo. “Acredito que o Rio era, provavelmente, um dos lugares mais fortes por causa da presença do Betinho e de lideranças dentro da sociedade, que viviam aqui e acabaram incentivando, mas foi uma mobilização em todo o país”, afi rma Menezes.

A Ação da Cidadania promoveu diversos shows durante o ano e a Semana de Arte contra a Fome, que iniciou em sete de setembro e contou com apresentações de música, teatro e dança. O encerramento foi feito no Teatro Municipal do Rio com Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Grande Otelo no espetáculo “Cidadão!”.

A Ação e os comitês permaneceram por muitos anos e em 2005 começa a perder sua força. “Nós até falávamos no IBASE, campanha tem início, meio e fi m. O que não signifi ca que as coisas terminam aí. É como se ela tivesse plantado as posições para outros avanços. Durante o governo Fernando Henrique, esse tema não foi bem acolhido, tanto que o CONSEA foi fechado. Com a ideia do Fome Zero, o CONSEA retornou e abriu a entrada no governo Lula, mas a gente vê isso como uma consequência de tudo aquilo que se iniciou em 1993.” Questionado sobre a razão do término, já que uma das principais metas de governo do presidente Lula é a luta contra a fome, Menezes diz que a campanha tinha um caráter muito peculiar. As ações eram feitas da sociedade para a sociedade, os resultados eram bons, mas o problema persistia. Chegou-se à conclusão de que o foco em políticas públicas que visem os mais pobres, com a participação da sociedade sem sobrecarregá-la com toda a responsabilidade, obteria um resultado ainda melhor.

Menezes afi rma que hoje o Brasil está em uma fase melhor do que na ocasião do lançamento da campanha, há 16 anos, mas que o problema da fome não foi erradicado. As medições de desnutrição são insufi cientes, visto que muitas pessoas com sobrepeso estão com sérios problemas de saúde devido à alimentação inadequada. “Por exemplo, alguém que busca comida no lixo para se alimentar, aparentemente resolve o problema da fome, mas se ela se dedica a uma atividade degradante para se alimentar não pode ser que tenha resolvido o problema. Então nós não estamos de acordo em

dizer que só 4,5% da população abaixo do peso ou menor em relação à altura, sofrem com a fome. Preferimos as estatísticas e as medições que escutam as próprias pessoas. Essas pessoas contando como que se dá a capacidade delas de alimentação e a partir daí você tira conclusões mais certas.”

O IBASE hoje incide sobre políticas públicas como o Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e tantos outros que enfrentam a fome, de forma a incentivar sua implantação e manutenção, conforme o sonho de Betinho.

ONTEM – ANOS 19901998 - A voz do povo contra a fome

Sete de setembro de 1998, meio dia. Vinte e três capitais abrigavam um total de 115 mil pessoas prestes a entoar o grande grito. Cada uma gritava a sua maneira, desde que fi zesse o barulho necessário, o importante era usar a criatividade. A expectativa em torno do evento, que estava em sua quarta edição, era grande, já que vinha de encontro com políticas não praticadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). O tema era “Esse é meu país” e tinha como um dos principais lemas “A ordem é ninguém passar fome”, devido à alta infl ação nos preços oriunda dos primeiros anos de vida do Plano Real. Aproximadamente um mês antes, o editorial do jornal “O Migrante” já dava as coordenadas: “Seja criativo, no dia 7 de setembro, saia de casa com uma sacola em cores verde e amarela, com o lema ‘A ordem é ninguém passar fome’, para ser utilizada no momento do grito.” O jornal Correio da Cidadania, publicado dois dias antes do dia ofi cial do evento, contextualizou o seu editorial a favor das manifestações. “É uma alusão direta às potencialidades do Brasil, nosso país dispõe de todos os recursos naturais e tecnológicos para cumpri-la à risca – basta haver vontade pública.”

O Grito dos Excluídos surgiu a partir da Campanha da Fraternidade promovida pela Igreja Católica em 1993, que tinha o tema “Fraternidade e os excluídos – Onde Moras?”. Desde então, apegou-se aos principais problemas da sociedade para reivindicar de forma criativa e poética. Embora

HISTÓRIA

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extremamente pacífi co, o Grito já foi abafado por repressões policiais em diversas cidades como Belém (PA), Recife (PE) e Florianópolis (SC). Sem uma estrutura própria, a secretaria nacional funciona no espaço da secretaria da pastoral dos Migrantes, no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, e é mantida por entidades e o trabalho militante. Ari, membro da pastoral, Karina e Goretti, duas voluntárias, revezam-se para atender as necessidades do ato e dos militantes espalhados por todo o país.

O ano era triste para o Brasil, que perdeu a Copa do mundo para a França e, pior ainda para os manifestantes do Grito dos Excluídos, pois FHC pleiteava a reeleição que mesmo com todas as negativas, foi conquistada.

Uma das grandes características do Grito foi determinante em 1998: não dar voz aos poderosos e lideranças. O Grito é do povo. Por mais que se trate de um ato público cobrando ações governamentais, candidatos e outros políticos não têm acesso ao microfone. Lula participou do Grito em Belo Horizonte (MG) e manteve-se distante dos palcos e megafones, embora fosse claramente o principal adversário de FHC naquele ano.

Apesar da chuva que tomou a cidade de Aparecida (SP), na ocasião, 5 mil pessoas fi zeram-se presentes e arrecadaram caminhões de alimentos para doar às cidades do Nordeste.

A criatividade proposta foi aderida pelos diversos manifestantes espalhados pelo país. Cada local tem um formato defi nido, sejam por romarias, celebrações, passeatas etc. Em Itapetinga (BA) gritava-se que “A fome é a mãe de todas as violências. É o retrato fi el da injustiça e vergonha nacional”. Já em Teresina (PI), discorreu-se sobre a indignação em forma de poesia. “Ouve Senhor o nosso grito / Minha dor, meu sofrimento / Sou pobre não tenho nada / Me falta o alimento / Com minha esposa e fi lhos / Dormimos sempre ao relento”, trecho extraído do texto “O Grito dos Excluídos”, de João Bezerra de Carvalho.

Não foi só no papel que a criatividade marcou presença. Rostos pintados, adesivos colados em lugares inusitados, faixas com trocadilhos como “divida eterna” ao invés de “divida externa”. Enormes cestos de pães - que eram a principal simbologia do evento – panelas vazias, balões que carregavam a sacola vazia com o lema do ato e todas as variações possíveis marcaram o Grito de 1998 que, se não conseguiu tirar FHC do poder, conseguiu trazer à tona, de um jeito bem brasileiro, as principais necessidades da população.

HOJE - 20002008 – A Fome e o processo trabalhista

Quem vê Rodrigo Brancher, natural do Rio de Janeiro e estudante de arquitetura, andando nas ruas de São Paulo não imagina o quanto ele é responsável pelas mudanças sociais que temos vivenciado. Ele e uma legião de comitês são conhecidos pela grande massa através de cartazes amarelados, com temas diversos, e que nos chamam à luta.

Rodrigo faz parte do Movimento Negação da Negação (MNN), que existe desde a década de 1980. “O MNN vem de uma trajetória antiga, na verdade, dentro dos partidos de esquerda. Quando começou o processo de formação do PT, já tínhamos companheiros que estavam tentando construir um partido. Mas na época, a gente já se opunha ao PT.” O perfi l do MNN é de jovens que estão na universidade e prosseguem,

posteriormente, com os trabalhos baseados em estudos Marxistas. Hoje, a aderência de trabalhadores é bem grande também, segundo Rodrigo.

Um dos últimos atos do MNN ocorreu na Avenida Paulista, dia 30 de março, protestando contra as demissões recentes e reunindo cerca de 20 mil pessoas. Para esse tema foi criado o cartaz “Programa único”, que está afi xado em vários pontos das ruas de São Paulo e de todo o país.

Sobre a escolha do tema “fome”, Rodrigo diz que o cartaz já tem cerca de quatro meses, mas foi feito no contexto da crise mundial de alimentos, seguido do cartaz que abordava o aumento de 135% no preço do feijão. “Os grãos, o milho, o arroz, o feijão tiveram um aumento absurdo, então o cartaz anterior ao da fome era o do aumento de 135% no preço do feijão. O da fome veio logo em seguida, justamente devido a esse disparar dos alimentos e que estava diretamente relacionado. Acho que a cada mês, você vê mais e mais gente na rua, que não têm como comprar o mínimo pra sobreviver, pois está desempregado, está na rua e não têm condições de pagar comida.”

Rodrigo diz que o MNN não se inspira em movimentos e lutas do passado, mas que se baseia em aspectos que tratem a fome como parte de um problema maior. “Se você for pensar na fome como um problema isolado, você pode até ter coisas que toquem o coração, que são muito bonitas, como a campanha do Betinho, que eu, honestamente não conheço muito. Mas o fundamental é justamente saber de onde vem o problema da fome.” Rodrigo explica que, hoje, uma grande massa de trabalhadores está fora do processo produtivo (mercado de trabalho) e vulnerável à situação de fome e miséria. Por essa razão, é preciso lutar por causas trabalhistas que são a base do sustento, pois a pessoa não terá condições de se manter se estiver fora do processo produtivo. “A grande questão são os processos da contradição da produção capitalista. Você não tem saída.”

Rodrigo considera que a fome e a miséria estão muito piores hoje do que há vinte anos. O estudante de arquitetura reconhece que programas sociais do governo amenizam a situação de fome em regiões precárias, porém tornam o indivíduo dependente de migalhas. “O Bolsa Família, por exemplo, condena aquela família, aquele trabalhador a viver de migalhas, pois não modifi ca de forma nenhuma a condição de vida daquela pessoa. É ainda usado como um instrumento político claro.”, afi rma.

23

Page 24: Revista Mente Aberta n°2

CAPA

24 Mente Aberta

Casa de Taipa em Manari/PE

Page 25: Revista Mente Aberta n°2

O PARADOXO DA FOME NOS EXTREMOS DO BRASIL

A distância econômica e geográfi ca entre Manari e São Caetano do Sul tornou-as exemplos de extremos do Brasil. Uma inicia e a outra encerra

o ranking do IDH, divulgado pela ONU em 2000. Qual o tipo de fome dessas cidades?

Reportagem e Fotos

Manari: Daiana Henrique e Paulo Gratão

São Caetano do Sul: André Roja, Joseane Rodrigues,

Kilma Mendes e Márcia Gama

25

Page 26: Revista Mente Aberta n°2

Hoje, Manari aumentou a expectativa de vida graças ao programa

Bolsa Família do governo federal, distribuído a mais de quatro mil

famílias e aos beneficiados pelo INSS. Mas a cidade continua sem

empregos formais. O medo da fome ronda cada manariense como

moscas durante todo o dia.

Marcada para sofrer

A fome é um mal presente em todas as cidades brasileiras,

direta ou indiretamente. Tão unânime quanto o sol e a chuva,

os famintos não estão localizados em um único lugar e sim,

espalhados por todas as linhas do mapa. Em 2000, a Organização das

Nações Unidas (ONU) emitiu o censo do Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH) das mais de cinco mil cidades brasileiras. Esse índice

é calculado a partir de fatores que englobam a educação, renda por

habitante e tempo de vida médio. O município que obteve as piores

notas nesses três indicadores foi Manari, em Pernambuco, atingindo

0,467. Em contrapartida, a cidade mais bem colocada no ranking foi

São Caetano do Sul, no ABC paulista, obtendo 0, 919 de nota.

Os dois extremos do Brasil utilizam seus méritos para fins

diferentes. Manari pede socorro e São Caetano almeja mais

crescimento e manter-se na posição quando a ONU emitir seu novo

parecer, em 2010. Assim como no restante do país, essas cidades têm

em suas faces a estampa da fome, de maneiras diferentes. Como os

dois municípios lidam contra esse fantasma que atormenta milhares

de pessoas no país?

Era uma vez... Manari

Amanhece em Manari (foto acima). O céu pernambucano, quase

alagoano, parece inacreditável para quem está acostumado com o

cinza que permeia a cidade de São Paulo. O azul sublime, entrecortado

por nuvens volumosas e nítidas, é interrompido apenas por severos

raios solares que castigam o chão já saturado do sertão nordestino. A

cidade, que abriga 16 540 habitantes, tem sua maior parte espalhada

pela imensa zona rural e apenas cerca de quatro mil pessoas dividem-

se em casas coloridas e mal cuidadas da zona urbana.

Manari emancipou-se em 1997. Antes era apenas um distrito de

Inajá, o que, para muitos moradores, contribuiu para a baixa nota

obtida no censo do IDH Em 2000. Manari era um bebê de apenas

dois anos e meio. Desde o decreto de emancipação, a cidade sofreu

as dores de uma ovelha desgarrada, sem infraestrutura própria nem

mesmo para o abastecimento de água, ou outras fontes de renda,

além da agricultura, a cidade caminhava sem perspectiva.

CAPA

26 Mente Aberta

Ruas de Manari

Page 27: Revista Mente Aberta n°2

cercada por três gerações de sua família, que a observam enquanto

conversamos. A aposentada vive com a família, composta por sete

pessoas, entre fi lho, nora e netos, que vivem exclusivamente da

agricultura. Nos temidos períodos de pouca safra, Maria tem que

transformar a sua humilde aposentadoria no sustento do lar, somado

ao Bolsa Família recebido pela nora, graças ao fi lho na escola, motivo

pelo qual ele não falta nem doente.

Maria assume que já passou fome em tempos de seca e antes de

ser contemplada pela aposentadoria. “Já passamos fome sim. Antes

passávamos uma necessidade muito grande mesmo, mas depois que tive

meus dois fi lhos, graças a Deus não passamos mais, sempre conseguimos

dar um jeito. Tira um pouco daqui, põe acolá, sempre dá o jeito. E hoje

tem o cartão do governo, o sindicato rural, antes não tinha nada.”

O abastecimento de água na casa de Maria é à base de carros

pipa. Sempre que falta, a família pede aos funcionários da prefeitura

que providencie um novo estoque. Para Edilene, nora de Maria, a

falta de água é apenas um dos fatores que mostra o descaso da

prefeitura pela área rural. “O prefeito cuida mais da cidade, ele

sempre anda por aí, mas só vem aqui no ano da eleição. Na cidade

ele sempre anda.”

Os netos de Maria das Neves nos levam à casa dos Nogueira,

vizinhos que, segundo Maria, passam por sérias necessidades,

fi cando algumas vezes à mercê da fome. Passamos por uma trilha

que se assemelha muito a passeios turísticos em parques ecológicos

de São Paulo. Ao chegarmos à casa, somos recebidos por Ivanildo

Nogueira, que mora com a esposa, mas jura que não é casado com a

companheira, e com o enteado que “não gosta de trabalhar”.

Ivanildo mora hoje em uma casa de tijolos, que construiu com a

ajuda do prefeito Otaviano, mas nos mostra sua antiga residência, que

fi ca aos fundos. Uma casinha de taipa que se esforça para continuar

em pé. O canto da sala de Ivanildo é reservado para uma de suas

galinhas, que está chocando seus ovos e nos observa atentamente,

enquanto as outras galinhas, mais jovens, passeiam livremente entre

a casa e o quintal.

Após passar os primeiros anos de vida em Inajá, Ivanildo foi tentar a

vida em São Paulo. Trabalhou durante algum tempo na grande metrópole

e garante que gostou muito da cidade e que antes tivesse fi cado lá, mas

a considera muito violenta. Hoje, vive da colheita e afi rma que passa

difi culdades em tempos secos. “Emprego aqui é roça: trabalhou, colheu,

comeu. Se não tem o que colher, não tem o que comer.”

Ivanildo não tem abastecimento de água. Poucos metros acima de

sua casa tem um barreiro, de onde tira água para o seu uso e o de sua

Maria Claudina de Sá, conhecida como Tersina desde que nasceu,

carrega em seu olhar cansado, de 84 anos vividos, toda a história

da cidade de Manari e refl ete, em sua trajetória, o sofrimento da

população. Idolatra o atual prefeito, Otaviano Martins (PSDB), por lhe

dar uma feira completa, como há muito não via, cerca de seis meses

antes dessa entrevista. “Já tarde da noite, eles me chamaram lá na

porta e falaram que era para eu receber um negócio, perguntei se

quem mandou foi meu fi lho e eles falaram que não, que tinha sido

o prefeito. Ele fez uma feirinha até que boa e mandou pra mim, sem

nem me conhecer.” Grande parte da cidade compartilha da opinião

de Tersina. Otaviano foi reeleito com 70% dos votos válidos, sendo

que nunca morou na cidade.

Tersina é aposentada, mas há dois anos seu benefício está

bloqueado e ninguém sabe explicar a razão. Não recebe o Bolsa

Família, pois já não tem forças de ir até à prefeitura fazer o seu

cadastro. Dos 22 fi lhos que pôs no mundo, fechou os olhos de 18,

e o mais recente foi envenenado pela ex-mulher, segundo Tersina.

Desde então vive com medo e não pode nem ouvir falar em morte

ou assassinato.

A velha Tersina nasceu em um sábado de 1925, às dez da noite.

Dividiu o ventre de sua mãe com uma irmã gêmea que morreu com

nove dias de vida. “Eu fi quei pra sofrer. Casei a primeira vez e o meu

marido morreu, depois casei de novo e o marido morreu de novo.”

Hoje, Tersina mora em uma das casas mais humildes da zona urbana

de Manari, com dois cômodos divididos entre quarto e cozinha. É uma

das únicas casas da zona urbana abastecidas por cisterna – calha

que escoa a água da chuva, armazenando para o uso – e com as

condições mais precárias possíveis. O banheiro é constituído de um

grande buraco no solo, para que as necessidades fi siológicas sejam

sanadas e um espaço reservado para o banho.

Enquanto conversava conosco, Tersina descascava um punhado

de maxixes, que seria sua refeição no dia seguinte, Dia das Mães, e

se desculpava por não poder nos oferecer um cafezinho quente. “Hoje

almocei e não almocei. Eu comi uma comida que nem gosto muito e

o médico falou que eu não posso comer muito disso. Comi papa de

leite, e lá na cozinha tem cuscuz, feijão e arroz, só.”

Mais tarde, Tersina saberia que seu Dia das Mães seria diferente.

Onde vive a maioria

A poucos metros da área urbana, é possível chegar a um mundo

totalmente diferente, com ovelhas e cabras cumprindo o papel de

cães protegendo as casas, vacas e cavalos disputando espaço com

automóveis e crianças correndo soltas mato adentro brincando com

o que encontram pela frente. Mais de 80% da população de Manari

vive na zona rural, assim como a maior fonte de renda da cidade, a

agricultura, que quando é castigada pelo sol, de nada vale. Grande

parte dos adultos da zona rural é analfabeta, em contrapartida,

quase todas as crianças caminham quilômetros por dia para chegar

às novas escolas, até que o trabalho as obrigue a abandonar essa

rotina. Na zona rural também fi ca o grande açude que, até um ano

atrás, era o principal reservatório de água de Manari. As pessoas e

os animais dividiam a mesma fonte até que a água encanada chegou

à zona urbana.

As classes mais pobres da cidade estão nos sítios espalhados

nesse cenário que, até hoje, não sabe o que é água encanada e muito

menos saneamento básico. O abastecimento na zona rural é feito

através de carros pipa, do próprio açude ou de barreiros que fi cam

mais próximos às longínquas casas que somem no horizonte.

Maria das Neves do Nascimento é moradora da zona rural e vive

27

Page 28: Revista Mente Aberta n°2

as predileções também são claras.

Nas últimas eleições municipais, cerca de 70% da população

de Manari deu a Otaviano Martins o seu segundo mandato. Apesar

de nunca ter morado na cidade, o prefeito é aclamado e defendido

por grande parte das pessoas. Otaviano, que nos recebeu em sua

fazenda, na cidade de Itaiba, para essa entrevista, atribui esse

reconhecimento ao seu trabalho como prefeito. “Acho que o que eu

fi z foi uma administração que o povo gostou. Porque eles me deram

essa resposta nas urnas e eu acho que é uma prova que eles estão

satisfeitos com o meu trabalho. Eu sei que eu também tive 30% contra,

mas eu tive 70% a favor”. Otaviano assumiu a cidade pela primeira

vez em 2004. Sabia que se tratava de um enorme desafi o, mas só foi

conhecer a fundo quando pôs a mão na massa. “Não tinha asfalto, não

tinha água, o problema de água era seriíssimo naquela cidade. Nós

abastecíamos de carro pipa. A difi culdade era grande.”

Otaviano exalta todas as benfeitorias feitas na cidade durante

sua gestão. Quando questionado sobre a questão do desemprego,

o prefeito assume que chegamos a um ponto fraco de sua gestão.

“Infelizmente, eu como prefeito, não tenho condições de trazer uma

fábrica para criar empregos em Manari. A minha difi culdade em

governar é essa palavra ‘emprego’, porque o que o povo quer é

trabalhar em uma cidade que não tem outra renda fora a prefeitura,

o Bolsa Família e o velhinho aposentado. Tem só essas três fontes de

renda lá, fora a agricultura.”

O prefeito mostra-se compadecido com a situação da cidade e

assume que, ainda hoje, existem pessoas que passam fome em Manari.

Quando relatamos algumas visitas que fi zemos, especialmente a

aposentada Maria Tersina, que há dois anos não vê a cor do dinheiro

e nem é benefi ciada pelo programa do governo, Otaviano garantiu

que a pobre mulher terá uma rotina diferente. “Foi bom você ter

me falado, porque eu não sabia do caso dela. Segunda-feira eu

vou lá à casa dela e vou tomar uma providência! Vamos ver o que

está acontecendo com o cartão dela, entrar com os advogados da

prefeitura e tentar resolver esse caso. Quando sair o salário dela, eu

vou me comprometer a dar uma feira à ela todos os meses.”

Mente Aberta vai acompanhar essa promessa de perto.

O antecessor de Otaviano, no poder maior de Manari, também

teve duas gestões, com a diferença de ser fi lho natural da cidade.

José Vieira, ou “Santo”, como é chamado desde o seu nascimento,

foi o primeiro e o segundo prefeito de Manari. Sua gestão de 1999 a

2003 benefi ciou as pessoas que não tinham o apoio do Bolsa Família

e ganhavam cestas básicas e carros pipa como forma de sobrevivência.

Vieira ressalta a sua decepção com o povo manariense pelas últimas

derrotas. Fala aos quatro cantos que foi traído e faz questão de falar

sobre seu amor pela cidade, apesar de não manifestar interesse em

reeleger-se.

Vieira concorda com Otaviano quando diz que Manari precisa de

empregos. O ex-prefeito acredita que a solução para os problemas

da cidade seria uma fábrica, ou uma indústria, que empregasse pelo

menos duas mil pessoas.

Vieira não aposta em uma melhora no desempenho de Manari

para o próximo censo da ONU. “Eu acredito que ela permaneça no

último lugar, mesmo que tenha abastecimento de água agora, a

maior parte carente está na zona rural e lá não tem água.”

família. Recebe o Bolsa Família no valor de R$ 102,00 e paga todas as

contas em dia, como faz questão de mostrar. Ivanildo não teve estudo

na infância, começou a estudar à noite depois de adulto, mas parou.

“Eu ia pra escola, mas agora estou cuidando de roça. Toda noite eu ia

pra escola, depois não ia mais, aí parei de estudar.”

O almoço de Ivanildo foi bem magrinho: feijão e carne torrada.

O feijão ainda estava na panela, nadando em meio a tanta água do

barreiro. O arroz seria degustado apenas à noite, pois não teria como

comer duas vezes no mesmo dia. Mesmo assim, Ivanildo agradece a

Deus todos os dias por ter o que comer, pois, segundo ele, poderia

passar fome.

Manari também é política

Uma das fortes características de Manari é sua divisão política.

Nos moldes de uma democracia estadunidense, os “republicanos”

e “democratas” são representados por José “Santo” Vieira, do PR, e

Otaviano Martins, do PSDB. Nos poucos dias que passamos na cidade,

a rivalidade política entre os próprios moradores mostrou-se nítida, e

CAPA

28 Mente Aberta

Page 29: Revista Mente Aberta n°2

Na expectativa do novo IDH...

Nas entrevistas ficou claro que parte dos moradores

desaprova o resultado do IDH divulgado em 2000, quando

receberam tristemente a notícia: moravam na cidade mais

pobre do Brasil. As pessoas revelam as dificuldades que a

cidade enfrentou e ainda lutam para superar, mas ressaltam as

mudanças que aconteceram para melhor nesses doze anos de

emancipação.

A população conta com um atendimento escasso no hospital

da cidade, que é composto de apenas duas salas, uma para

consulta, outra para curativo. Tem médico quase todos os dias,

mas faltam recursos para seguir com os procedimentos. Sem

a medicação necessária, os especialistas da medicina se veem

obrigados a encaminhar os pacientes a prosseguir o tratamento

em cidades com distância de até 370 km de Manari, como

Recife, por exemplo.

Manoel de Barros Primo, um dos médicos da cidade, explica

que a procura por tratamento médico antes do abastecimento

da água era maior, porque o uso inadequado da água poluída

de barreiros provocava inúmeras doenças, entre elas a

verminose, tosse e problemas respiratórios que ainda atingem

um grande número de pessoas da zona rural. Mesmo com essas

dificuldades o médico ressalva sua expectativa para o novo

resultado do IDH. “Tem algumas coisas que Manari já passou de

outras cidades por aí. O projeto da educação melhorou muito

mesmo, aqui não tinha nem uma casa que prestasse. Agora

não encontramos mais casas de taipa, só precisa melhorar o

emprego, que isso não tem mesmo.”

O projeto educacional é sempre citado pelos moradores

como sinônimo de evolução da cidade. Para comprovar essa

melhora, conversamos com a professora Sheila Patrícia Vieira,

que leciona história para alunos da quinta a oitava série

na escola estadual. Para ela, a evolução na educação tem

acontecido vagarosamente. Sheila explica que lidar com alunos

que vêm da zona rural é mais complicado, pela falta de estímulo

e acompanhamento dos pais na educação dos filhos.

O número de crianças na escola tem aumentado

consideravelmente devido ao auxílio do Bolsa Família, que

os pais recebem como ajuda de custo para manter o filho

estudando. As salas iniciam o ano letivo com aproximadamente

60 alunos cada, mas a evasão ainda é um problema sério do

município. As desistências são muitas vezes causadas pela

necessidade de trabalhar. As crianças abandonam as escolas

em períodos de chuva que alegram o solo e produz alimento

para todos.

O problema das famílias de Manari parece ser o mesmo para

todas: a falta de emprego na região. Através delas é possível

aprender como sobreviver a um clima traiçoeiro que promove

o desgaste do solo, desfigurando a única fonte de renda para

milhares. Em 2010 será divulgado o novo resultado e a opinião

se mostra equilibrada entre os moradores: alguns creem que as

melhorias serão ressaltadas e a cidade ocupará um ranking melhor,

outros acreditam que a evolução devagar prejudicará e manterá a

cidade no péssimo resultado. A verdade é que, a partir de agora,

todos aguardarão ansiosos para o resultado que vai avaliar critérios

como educação, renda per capita e expectativa de vida, que irão

comprovar a verdadeira evolução que a cidade sofreu.

Confira algumas fotos da cidade

29

Page 30: Revista Mente Aberta n°2

são possíveis através de sistema de saúde adequado, com novas

unidades de saúde e equipamentos modernos, além de atendimentos

em diversas especialidades, tanto para o pronto atendimento como o

de rotina e emergência. A população ainda pode usufruir de programas

como Saúde Família, DST/AIDS, Prevenção e Controle à Obesidade

Infantil, Gerenciamento de Doenças Crônicas, Atendimento Domiciliar,

Humanização do Atendimento e Assistência Farmacêutica.

Com 70 anos de idade, a aposentada Maria das Dores Neves

sofre de pressão alta e toma medicamentos diariamente para auxiliar

no tratamento da doença. Ganhando um salário mínimo por mês, ela

conta com o cartão farmácia no valor de R$ 50,00 que a ajuda na

compra dos remédios. Há mais de quarenta anos na cidade, Maria fala

do programa com orgulho. “Desde que cheguei aqui fui sempre bem

tratada, a cidade é excelente, tudo funciona”.

Até que ponto a fome atinge São Caetano do Sul

A fome é um problema social que atinge milhares de pessoas, porém

em São Caetano do Sul, cidade com predominância da classe B, não há

dados que comprovam sua existência. Segundo Sonia Bovo, assistente

social do centro de inclusão social: “Existem famílias com baixa renda, mas

que não chegam a passar fome. Elas ganham uma cesta básica mensal,

além de participarem do Programa Mais Alimento, que dá o direito do

benefi ciado receber um cartão no valor de R$ 50,00 mensais para adquirir

alimentos que não constam na cesta básica.”

Os projetos viabilizados pela prefeitura têm por objetivo a inclusão

social. Sônia afi rma que a intenção é capacitar as pessoas com atividades

laboratoriais, educacionais e inclusão digital, para arrumar um emprego e

manter-se fi nanceiramente.

Irene Flores traz no rosto a expressão de uma vida sofrida pelos traumas

enfrentados na capital paulista. A falta de emprego por um longo período

trouxe consigo muitas difi culdades, inclusive a fome. “A fome é muito ruim,

passei várias vezes por essa experiência desagradável. A pessoa não pensa,

não tem vontade de viver. Ela vai muito além de uma dor no estômago, é

como se você realmente não existisse”, lembra Irene.

Morando atualmente em São Caetano do Sul, Irene faz alguns bicos

Enquanto isso em São Caetano...

Com o melhor IDH do país, São Caetano do Sul, no estado de São

Paulo, não se destaca somente pelo crescimento econômico da região,

mas também por outros fatores como: saúde, educação e qualidade de

vida que juntos fazem valer o título de “ Cidade Modelo”.

Com base nessas informações a equipe da revista Mente Aberta foi

conferir de perto o progresso contínuo desse município que agrega 132

anos de história e verifi car se há indícios de fome no local.

Quem chega a São Caetano do Sul pela primeira vez pode perceber a

tranquilidade que o município oferece. Entre prédios, avenidas e comércios,

senhores de meia idade jogam descontraídos uma partida de dominó,

enquanto outros preferem conversar para passar o tempo. Essa típica cena

de cidade do interior acontece em uma das saídas da estação de trem e foi

lá que encontramos o aposentado, Heraldo Pereira Uchoa. Ele que morava

em São Paulo, mudou-se para São Caetano do Sul em busca de qualidade

de vida, que diz ter encontrado. Já há oito anos na cidade, Pereira, como

gosta de ser chamado, vai à estação diariamente para colocar a conversa

em dia e rever os amigos. Quanto às condições de educação, saúde e

transporte público no município, o senhor fala entusiasmado. “A educação

aqui é boa e toda vez que preciso ir ao médico sou bem atendido, o

transporte e a segurança também são bons”.

O prefeito reeleito, José Auricchio (PTB) faz coro à afi rmação de Pereira.

Auricchio acredita que para uma cidade se tornar referencial é preciso

ter uma política pública bem elaborada e ainda ressalta que “investir na

educação é investir no futuro”. Segundo dados da assessoria de imprensa

da prefeitura de São Caetano do Sul, 35% do orçamento do município são

investidos nessa área e o resultado é a taxa de analfabetismo quase nulo,

de 2,99%, uma das mais baixas do país. O avanço pedagógico da cidade

pode ser comprovado pelo estudante, Henrique Leal, 13 anos, que mora

em São Paulo, mas estuda na região. Cursando a sétima série do ensino

fundamental, Henrique elogia a escola e diz que os professores são bons,

além da ótima infra-estrutura oferecida aos alunos.

A saúde pública é outro fator positivo em São Caetano do Sul, com

8% de taxa de mortalidade para uma população de 144 mil habitantes.

De acordo com a assessoria de imprensa da prefeitura, esses dados

CAPA

30 Mente Aberta

Cidade de São Caetano do SulCidade de São Caetano do SulCidade de São Caetano do Sul

Page 31: Revista Mente Aberta n°2

em uma sorveteria no centro e recebe o auxílio do Cartão Alimentação no

valor de R$ 50,00, dinheiro que complementa as compras do mês. “Esse

benefício me ajuda bastante, pois com ele posso comprar mais alimentos

para minha família”. Hoje com a cabeça erguida, Irene diz que a fome é

uma lembrança do passado, que ela faz questão de esquecer.

Para Aurrichio, a fome não chega a atingir a cidade. “Temos problemas

sociais, de habitação, principalmente, mas não temos fome por aqui. O

fato de estar bem localizada, com grande número de empresas, geração

de empregos, ausência de favelas e o tratamento de 100% da rede de

esgoto contribui para o crescimento e dificulta a existência da fome.”

Ser considerada cidade padrão do país não faz São Caetano do

Sul se acomodar, ao contrário, a cidade mantêm a mesma estrutura.

Auricchio afirma que há muito a ser feito em políticas de desenvolvimento,

de geração de empregos e qualificação da mão-de-obra, gerando

oportunidades de renda e crescimento para o município continuar

evoluindo. É com essa mentalidade que o prefeito visa um futuro ainda

mais brilhante para a região.

Programa de auxílio social à família de São Caetano do Sul.

•Mais Medicamento 3ª Idade – Além dos medicamentos oferecidos

na rede pública gratuitamente, os aposentados e pensionistas de 65 anos,

com renda de até 2 salários mínimos, recebem um cartão de crédito no

valor de R$ 50,00 para comprar medicamentos que não são encontrados

na rede pública, nas farmácias e drogarias credenciadas;

•Mais Renda Para o Estudo – Famílias que comprovem renda de no

máximo meio salário mínimo, e que tenham filhos matriculados na rede

municipal de ensino, recebem um cartão de crédito entre R$ 50,00 a

R$100,00 mensais para complementarem a renda;

•Mais Alimento - Famílias de baixa renda, que já ganham cesta básica

mensal, recebem um cartão no valor R$ 50,00 para adquirir alimentos que

não constam na cesta básica;

•Mais Emprego – Programa destinado a moradores com mais de 18

anos e que comprovem estarem desempregados há mais de 4 meses.

Receberão 1 salário mínimo, cesta básica e seguro de vida. O objetivo é a

capacitação profissional e a reinserção no mercado de trabalho.

Fome de oportunidades

Entre as ruas do movimentado centro de São Caetano do Sul, um

senhor pede trocados em nome da sobrevivência. Sentado na calçada

com suas vestes gastas, Claudomiro Soares estende seu chapéu aos

que ali passam. Ele veio com sua família de Goiás (GO) em abril, e

pede esmolas por não ter condições de arrumar um emprego. Com

problemas na perna esquerda, ele anda com dificuldades e necessita

do auxílio de uma muleta para se movimentar. Apesar de não saber

ao certo qual o problema, Claudomiro afirma já ter ido ao médico,

mas ouviu que seu caso não tem solução.

O homem que nunca estudou, e passou a maior parte da vida trabalhando

na roça, veio para São Paulo em busca de melhores oportunidades, e mesmo

não encontrando emprego afirma estar melhor do que antes. “Aqui não

passo fome, ganho muitas coisas”. Com o passado marcado pela miséria,

ele lembra dos momentos de penúria enquanto morava em Goiás. “Já passei

fome, é muito triste, desmotiva qualquer um de viver”.

Quanto à cidade de São Caetano do Sul, Claudomiro diz que não

tem do que reclamar, pois as pessoas são muito solícitas em ajudar.

“A maioria das pessoas que passam por aqui me ajudam, é claro que

tem umas que fazem cara feia, mas são poucas”.

A falta de documentos o impede de participar dos projetos

governamentais e de se aposentar. Segundo ele, os documentos estão sendo

encaminhados por uma assistente social, e enquanto a aposentadoria não

chega, ele se contenta em garantir apenas o sustento da família.

Confira algumas fotos da cidade

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Page 32: Revista Mente Aberta n°2

SUSTENTABILIDADE

32 Mente Aberta

seguiu com a experiência e fundou em 2004 a Organização Cidades sem Fome com a fi nalidade de gerar empregos e diminuir a insegurança alimentar.

A descrença dos moradores em aceitar que as hortas lhe trariam benefícios e a falta de patrocínio foram algumas das adversidades surgidas no início do programa. Com o passar do tempo conseguiu-se provar a viabilidade da ONG, e atualmente existem 21 núcleos de hortas e dois pontos de vendas. E mais de 3 mil pessoas benefi ciadas, incluindo os moradores vizinhos às plantações que são favorecidos com o baixo preço dos produtos e a mudança estética dos espaços ocupados. Os participantes que exercem atividades agrícolas e comerciais dentro do projeto, são remunerados. Eles são selecionados através de um levantamento sócio-econômico realizados por Assistentes Sociais, quantidade de fi lhos e número de pessoas desempregadas são itens essenciais no processo de inclusão.

É o caso de Maria Santana, mãe de quatro fi lhos, que antes era catadora de materiais recicláveis e encontrou na agricultura uma oportunidade de mudar de vida. Ela que estudou até a 4º série, revela que muitas vezes faltavam alimentos em sua casa, pois o salário que ganhava com a reciclagem dava somente para comprar o básico, além das drásticas condições de trabalho a que era submetida. “Aprendi muitas coisas aqui como: plantar, colher e vender os produtos cultivados na horta. Minha renda aumentou e posso oferecer um futuro melhor para os meus fi lhos.”

Temp argumenta que casos como o de Maria são comuns na zona leste de São Paulo, onde o projeto está focado. Ele explica que a região abriga grande número de desempregados e analfabetos, condição que leva os moradores a procurarem meios de subsistência na reciclagem ou nos chamados bicos. “Aí é que entram aquelas lacunas de crise alimentar nas crianças,

A O r g a n i z a ç ã o Cidades Sem Fome, coorde-

nada pelo gaúcho, de descendência alemã, Hans Dieter Temp, está mudando o contexto visual e social da zona leste de São Paulo - SP. O projeto nasceu da iniciativa de Temp em transformar o visual do bairro Jardim Laranjei-ras, onde morava. Ape-sar do aspecto urbano que caracterizava o lo-cal, havia muitas áreas ociosas, sem nenhum tipo de utilização. A ideia era reaproveitar esses espaços e torná-los produtivos para o cultivo de vegetais. “Não imaginava que o desenvolvi-mento de hortas em áreas urbanas viesse a se transformar em uma organização social com repercussão em todo o Bra-sil e até no exterior. Acho que fui impulsionado pela situação, pela vontade de fazer algo diferente e trazer melhorias para a comunidade.”

A iniciativa surtiu tal efeito que a então prefeita Marta Suplicy (PT) o convidou para fazer parte da Coordenação do Programa de Agricultura Urbana, atuando pela Secretaria do Meio Ambiente. O objetivo era inserir a técnica de agricultura urbana em outras regiões da cidade, porém com a troca de gestão política a proposta foi abandonada. Temp, no entanto,

HORTAS URBANAS

Entre ruas e casas da periferia de São Paulo, um homem vem colorindo de verde a esperança dos mais necessitados

Por: Joseane Rodrigues

Fotos: Divulgação

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pois não há uma quantidade de alimentos igual todos os dias. Esse projeto vai de encontro com as necessidades da região.”

A geração de empregos na Cidades sem Fome tem por objetivo integrar o indivíduo com a sociedade e fazê-lo sentir capaz de interferir em seu processo de formação. Através de cursos ministrados na ONG como: reaproveitamento alimentar, higiene na manipulação dos alimentos, noções de educação ambiental, coleta seletiva, práticas agro-ecológicas, técnicas de produção de hortaliças e desenvolvimento sustentável, os participantes são estimulados a desenvolverem seus potenciais e assim introduzi-los no seu cotidiano.

Para a professora de análise de gestão econômica, Maria Cecília Petrólio, o trabalho agrícola em áreas urbanas agrega ao cidadão valores de sustentabilidade, pois utiliza os recursos naturais sem comprometer o meio ambiente e as gerações futuras. “É o que chamamos de desenvolvimento sustentável.”Segundo ela, ações como essas exercem um grande papel no fortalecimento da economia local, além da conscientização do consumo de alimentos saudáveis.

A boa alimentação, rica em nutrientes e com baixo custo, é outra proposta fundamentada pelo projeto, que pretende mudar os hábitos alimentares dos moradores locais. De acordo com Temp, a insegurança alimentar nos bairros carentes começa pelo costume de não comer hortaliças e verduras diariamente, depois atinge uma esfera mais dramática que é a falta de dinheiro. Para diminuir a insegurança alimentar e estimular o consumo de verduras e legumes, o Cidades sem Fome, que antes comercializava os produtos nas hortas, inaugurou dois pontos de vendas em locais estratégicos para facilitar o acesso da população. Um pé de alface, por exemplo, custa cinquenta centavos, 75% mais barato do que os vendidos nos mercados e feiras. A dona de casa Armezina Alves tornou-se cliente do sacolão desde sua inauguração, em julho de 2009. “ Compro aqui porque os preços são bons e os produtos estão sempre fresquinhos e, o que é melhor, não tem agrotóxico.” Moradora antiga do bairro Promorar II, Armezina diz que o visual da rua também mudou. “Esse terreno era cheio de ratos, entulhos e lixos, agora é outro ambiente”, afirma, apontando para a horta que fica quase em frente ao sacolão, terreno cedido pela Petrobrás, um dos maiores patrocinadores da Organização. Tão importante quanto diminuir a insegurança alimentar e gerar empregos é proporcionar às comunidades carentes um outro olhar, capaz de transformar áreas degradadas em espaços verdes, que tragam melhorias para a população. “Queremos que a horta seja um referencial e que as pessoas copiem a ideia e levem para o fundo de suas casas. Se tiver três metros de área é possível plantar um pé de chuchu, temperos ou o que o espaço permitir. Isso com certeza vai interferir na formação das crianças”, conclui Temp que é técnico em agropecuária e políticas ambientais.

É baseado nesses propósitos que o gaúcho, de olhar esperançoso, planeja um futuro promissor. Quer inserir a agricultura urbana em escolas, presídios e, quem sabe, levá-la a Brasília. Enquanto esse dia não chega, o projeto continua cumprindo com seu papel social nos arredores da periferia. “Por mais recursos que o Cidades sem Fome consiga desenvolver, sempre vai ser um grão de areia no meio do deserto. O poder de reaplicação e potencialização está no poder público, somos apenas os idealizadores.”

Hortas comunitáriasProcedimentos para construção das hortas comunitárias:

• Viabilização de terrenos baldios por parte de empresas ou orgãos públicos, através de contratos de comodatos• Ocupação do terreno e avaliação do solo feita por profissionais da área• Construção de poços artesanais que não atinjam o lençol freático• Transformação de restos de resíduos orgânicos em adubo, através da técnica de compostagem• Fertilização do solo com esterco de galinha• Plantação das sementes• Irrigação das hortas• Dedetização das plantações feita com fumo, garantindo alimentos 100% orgânicos• Colheita• Transporte das verduras e legumes até os sacolões• Comercialização dos alimentos

A Organização Cidades sem Fome conta com apoio de patrocinadores que ajudam a custear os gastos das hortas como: maquinários, transporte, sementes e ferramentas. O salário dos beneficiados, porém, é dividido conforme a venda dos produtos. De acordo com Temp, a meta é tornar as hortas auto-suficientes, estimulando assim a autonomia dos integrantes.

Para saber mais acesse: www.cidadessemfome.org

As hortas na zona leste de SPPor: Joseane Rodrigues

Fotos: Divulgação

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Page 34: Revista Mente Aberta n°2

FOME: ESCÂNDALO E VERGONHA

PARA A HUMANIDADE

PAUTA EM PROSA

34 Mente Aberta

Melhem Adas é professor de Geografia graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. Ainda criança foi morar com a família em

Cedral, interior paulista. Quando tinha 12 anos veio estudar e trabalhar na cidade de São Paulo. Atualmente reside em Ribeirão Preto.

As obras literárias de Adas são conhecidas pelos estudantes do ensino médio e ensino fudamental. Dentre os mais de 35 livros publicados, destaca-se “A fome: crise ou escândalo?”, pois refere-se ao tema que o professor tem dedicado toda sua vida acadêmica em parte dos seus 70 anos de vida.

Nesta entrevista, Melhem Adas fala sobre o quadro em que vivem os milhões de famintos e subnutridos do mundo.

Mente Aberta – Como tudo começou e quem o incentivou a escrever sobre a fome?

Adas - Eu fui influenciado pelos livros do médico Josué de Castro, na década de 1950 e 60: O livro negro da fome, Geografia da fome e Geopolítica da fome, além de outros. Josué Nasceu em Recife foi cientista e escritor, graduado em medicina na Universidade do Rio de Janeiro. Ele dedicou sua vida para o problema da fome e da miséria que infelizmente ainda destrói o mundo. Recebi, portanto, muita influência desse eminente cientista, cujas leituras me despertaram para essa situação escandalosa e vergonhosa da humanidade que é a fome.

Mente Aberta - Quais foram suas experiências adquiridas?

Adas- É uma tristeza profunda em perceber a falta de solidariedade humana em escala planetária, porque vemos uma sociedade muito injusta. A distribuição da riqueza é muito desigual, privando seres humanos até mesmo de alimentarem. O direito à alimentação é um direito já reconhecido pela ONU. Então é necessário que as nações se juntem para exatamente resolver essa situação dramática.

Melhem Adas

Por: Márcia Gama

Fotos: Divulgação

Page 35: Revista Mente Aberta n°2

Mente Aberta - Quais são as principais causas da fome no Brasil?

Adas - A principal causa não é falta de alimentos. Propaga-se que a produção de alimentos no mundo não é suficiente para atender a todos, mas a produção de alimentos do mundo é mais que suficiente para garantir cerca de 2.500 calorias diárias para todos os seres humanos e pelo menos 65 gramas de proteína por dia. Na verdade, a população não tem renda suficiente para se manter. Existe uma relação muito grande entre renda e alimentação.

O capitalismo mundial passou a substituir a sua agricultura de produtos alimentares pela agricultura comercial de exportação. O Brasil é um grande exportador de soja. Tem um dado da ONU espantoso 43% dos cereais exportados do mundo subdesenvolvido para o mundo desenvolvido destina-se a abastecer o gado do primeiro mundo.

Mente Aberta - O senhor acredita que a região Nordeste é a mais afetada pela fome no Brasil? A Seca é uma das causadoras?

Adas - Não, existem outras regiões inclusive as áreas metropolitanas do Brasil que são também bem afetadas pela fome.

A seca é um mito que na verdade é uma justificativa muito cômoda para aqueles que possuem responsabilidade na questão. No Nordeste se conhece a seca desde o período colonial e nada foi feito de significativo até os dias atuais. Faltou vontade política das elites em vista de um coronelismo exacerbado. O problema não é a questão da seca, é a falta de vontade política de resolver a questão. Por isso que Josué de Castro disse que a fome não é um fenômeno natural, a fome decorre de conjunturas econômicas defeituosas. E as conjunturas econômicas defeituosas são os homens e a sociedade que as constrói

Mente Aberta - Alguém morre de fome no Brasil?Adas - A desnutrição abre caminho para penetração de

outras doenças, não resta dúvida. Uma mãe mal alimentada gera um filho com problema, ela é uma presa fácil para inumeras doenças. O atestado de obtido não vai constar que a pessoa morreu de fome, mas de uma doença que se instalou decorrente de um organismo subnutrido.

Mente Aberta - Então a desnutrição é uma doença?Adas - Na verdade ela é uma doença decorrente da falta

de alimentos. Onze milhões de crianças, segundo dados da ONU, morrem anualmente no mundo antes de completar 5 anos de idade. Não que a fome seja a causa do óbito, mas uma criança com desnutrição tem o seu organismo vulnerável às doenças. Um sarampo, por exemplo, numa criança desnutrida causa a morte, já criança bem alimentada não. A desnutrição decorrente de falta quantitativa e qualitativa produz doenças. Assim, a fome é a expressão biológica de uma doença social como afirmou Josué de Castro.

Mente Aberta - O crescimento populacional pode ser considerado uma das causas da fome?

Adas - Não, em 1960 a taxa de fecundidade no Brasil era de 7,2%. A taxa de fecundidade é aquela relação entre o número de mulheres em idade reprodutiva e o número de crianças existentes. Nessa época para cada mulher em idade reprodutiva, considerada 15 a 49 anos de idade, existiam 7,2% de crianças. Hoje a taxa de fecundidade no Brasil caiu

para cerca de 2% e a fome continua. Então o crescimento populacional serviu durante muito tempo como bode expiatório para explicar a fome. Ele servia admiravelmente para mascarar as reais causas da fome que são fundamentalmente políticas, sociais e não biológicas.

Mente Aberta - O programa Fome Zero que o governo Lula implantou beneficiou muitas famílias de situação vulnerável?

Adas - Sim beneficiou. É um projeto eu tive oportunidade de ler. Falava-se de inicio que junto com implantação do Fome Zero se implantariam as reformas estruturais, como reforma agrária, a reforma previdenciária e a reforma tributária. Infelizmente isso não ocorreu.

Mente Aberta - O Bolsa Família. Esse programa visa o assistencialismo ou ajuda no desenvolvimento das famílias mais carentes?

Adas - Não resta dúvida que haviam a necessidade de uma ação emergencial por parte do gorverno federal em socorrer as vitimas da pobreza e da exclusão social no Brasil. Assim, o bolsa família amenizou o sofrimento de milhões de famílias brasileiras. Entretanto, pergunta-se ate quando é possível manter essa situação assistencialista e não promover as reformas estruturais necessárias para erradicar a pobreza.

Mente Aberta - Por que existe tanto desperdício num país de famintos?

Adas - O problema do desperdício é monstruoso não só no CEAGESP, como no transporte de grãos. As perdas que existem nas rodovias são absurdas e precisam ser evitadas. Na Europa, o europeu se comporta de forma diferente, os alimentos que sobram não são jogados fora. São conservados, porque eles já passaram por duas guerras e conheceram a privação. Eles dão valor à conservação dos alimentos.Infelizmente no Brasil verifica-se um grande desperdício, não só na colheita e no transporte, mas também junto as famílias cujas sobras e alimentos são desperdiçadas.

Mente Aberta - As ações educacionais e os projetos que as ONGs realizam de alguma forma resolvem o problema da fome e da miséria?

Adas - Ajudam, não resta dúvida, não podemos despreza- las. Tem ONGs trabalhando na África de forma fantástica, levando, por exemplo, técnicas de produção de alimentos e técnicas de aproveitamento de sobras de alimentos. Então o papel delas é relevante, pois nem todos os Estados são capazes de isoladamente resolver esse drama, ou seja, a fome.

Leia mais:

“A fome: Crise ou escândalo?”, por Melhen AdasEditora Moderna

Livraria SaraivaR$33,90

Por: Márcia Gama

Fotos: Divulgação

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Page 36: Revista Mente Aberta n°2

DIZEM POR AÍ

36 Mente Aberta

“Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas.”(Josué de Castro)

“Ainda há gente que não sabe, quando se levanta, de onde virá a próxima refeição e há crianças com fome que choram. “(Nelson Mandela)

“O Brasil tem fome de ética e passa fome em conseqüência da falta de ética na política.” (Betinho)

“Constatamos que as pessoas que tem mais vulnerabilidade alimentar são as que não têm moradia, é preciso resolver o problema habitacional se quiser combater a fome”(Manoel Del Rio)

“O problema está no desperdício, eu li um artigo, é monstruoso não só no CEAGESP, como no transporte de grãos a perda que existe nas rodovias. E isso precisa ser mudado inclusive culturalmente.”(Melhem Adas)

Fotos: Divulgação

Page 37: Revista Mente Aberta n°2

O QUE OS HOMENS FALAMFOME: ÁFRICA: O LUGAR DA MISÉRIA

A África é um continente que há décadas vem sofrendo com problemas sociais, e dentre eles o mais sério é a fome. Milhares de pessoas morrem por causa disso todos os anos. Mesmo quando possui algum tipo de alimento, esse alimento costuma ser insuficiente.

Esse continente é o mais pobre do mundo, pois as pessoas vivem com menos de um dólar por dia. A situação é crítica e não é de hoje..

Como os países africanos sozinhos não têm forças suficientes para resolver o problema, o ideal seria que os países ricos ajudassem a superar a fome. Outro problema que contribui e muito com a pobreza é a falta de emprego, pois em alguns lugares até existem alimentos, mas não há dinheiro para comprá-los.

É duro e ao mesmo tempo triste comparar o padrão de vida europeu com o africano. Quanta diferença! Quantas coisas poderiam ser melhoradas e passam despercebidas. A falta de interesse político também contribui com a pobreza e a miséria, uma vez que os próprios parlamentares viram o rosto para sua nação, rejeitando os problemas da população.

O atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse no começo do ano, que um dos objetivos do seu governo será a luta contra a fome. A esperança é que ele não esqueça a sua origem e possa de fato contribuir para melhorar a fome no mundo.

Devido à crise mundial o preço dos alimentos e principalmente dos cereais aumentou. O grupo dos oito países mais ricos do mundo vem estudando as causas desse aumento e adverte que o avanço das mudanças climáticas e o avanço na produção dos bicombustíveis podem fazer 1,7 bilhão da população mundial passar fome.

Somente os bicombustíveis foram responsáveis por 30% no aumento dos alimentos no ano passado, fazendo trinta milhões de pessoas a mais passarem fome e deixando mais de duzentas e sessenta milhões em situação de insegurança alimentar.

Os líderes mundiais se reuniram em 2008 na Assembléia Geral da ONU para revisar quais foram os avanços e os retrocessos na luta contra a pobreza. O resultado apurado não foi nada satisfatório. Estima-se que o número que era de 150 milhões de pessoas há oito anos, atualmente é 950 milhões.

O mais interessante disso é que exatamente há oito anos, os líderes mundiais se comprometeram a reduzir a fome pela metade até 2015. No caso da África, a fome, aumentou.

Enquanto não se encontra uma solução para a fome no mundo, os africanos continuam a ser os mais atingidos, pois cada vez mais pessoas estão comendo resto de comida e consequentemente ficando subnutridas. Até quando vamos ter que deparar com essas cenas e lamentarmos? Quando e quem tomará as decisões certas e agirá? A luta contra a fome é dura e muitas pessoas nesse momento estão passando por dificuldades. Por este motivo, toda ajuda é bem vinda, mas cabe a cada representante de seu País fazer sua parte.

Por: André Roja

Fotos: Divulgação

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Page 38: Revista Mente Aberta n°2

ECONOMIA

38 Mente Aberta

Por: Kilma Mendes

Fotos: Divulgação

Por: Kilma Mendes

Fotos: Divulgação

Por: Kilma Mendes

Fotos: Kilma Mendes

Divulgação

Milharal na zona norte de SP

Page 39: Revista Mente Aberta n°2

MUDANÇACLIMÁTICA

UM VILÃO NA CRISE DOS ALIMENTOSCatástrofes naturais infl uenciam de forma determinante na crise de alimentos. Desde a redução na safra deste ano há aumentos

signifi cativos nos preços para o consumidor fi nal

Por: Kilma Mendes

Fotos: Divulgação

Por: Kilma Mendes

Fotos: Kilma Mendes

Divulgação

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Page 40: Revista Mente Aberta n°2

Cícera da Silva, pequena agricultora de um sítio localizado em Taipas, zona Norte de São Paulo, perdeu parte da plantação de feijão devido às fortes chuvas no

primeiro semestre. Em consequência, o produto que restou foi vendido mais caro para o consumidor final. Apenas dessa forma conseguiu pagar os gastos que teve com a plantação. “Com o tempo inconstante não há como prever a colheita; devido à chuva perdi uma parte da plantação de feijão e o forte sol prejudicou o desenvolvimento do milho, mas mesmo assim não houve perda total: vendi tudo que plantei, um pouco mais caro, é claro, mas vendi tudo. Agora estou apreensiva em relação à plantação de mandioca, que irei colher no segundo semestre. Até agora está tudo bem.”

Para Raquel Ghini, pesquisadora de meio ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em-brapa), o agricultor que trabalha espe-cificamente em datas pontuais do ano tem prejuízos constantes com as mudanças climáticas, como, por exemplo, a produção de flores em Holam-bra, cidade do in-terior de São Paulo. Se houver qualquer problema em sua safra eles não terão tempo, nem condições ambientais para reverter os danos, pois há dias certos de cultivar e não há como prever o que vai acontecer. Raquel também res-salta que, apesar de todas as pesquisas realizadas, não há registro de pragas em plantio de alguma região especifica. Normalmente acontece com apenas um agricultor e logo as providências são tomadas para não alastrar.

Contudo, especialistas como Oliveira mantêm uma postura otimista em relação ao futuro das plantações brasileiras. Apostam em crescimento tanto a médio como a longo prazo, dependendo dos preços estimulantes do produto, condições climáticas favoráveis e incentivos governamentais através de políticas à produção ampliando o crédito agrícola, investido em programas de comercialização, em pesquisa, em assistência técnica, além de investimentos em universidades e formação de centros de pesquisa. Porém, sem esse incentivo e com mudanças climáticas desfavoráveis, o consumidor enfrentará a comercialização de alimentos com preços elevados, comprometendo o orçamento mensal, para manter uma alimentação adequada à família.

Outros fatores que influenciam na alimentação diária da população são os diferentes efeitos climáticos, a expansão imobiliária e a diminuição da cobertura vegetal. Mas são as catástrofes naturais, que variam de acordo com a região, podendo ser secas, enchentes ou pragas, que mais têm prejudicado a sociedade, principalmente com a redução na produção dos grãos e a alta dos preços.

ECONOMIA

40 Mente Aberta

Page 41: Revista Mente Aberta n°2

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgou neste ano levantamento com a estimativa atual da produção brasileira de grãos, que é de 137,6 milhões de toneladas, representando uma redução de 4,5% em relação à safra de 2007, e de 6,55% em relação à de 2008.

Comparando as safras de 2007 e 2008, a redução é ex-plicada pela quebra de produção do milho na primeira safra (6,8 milhões de toneladas) e da soja (2,4 milhões de tone-ladas), decorrente de clima adverso, sobretudo da falta de chuva ocorrida nos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e de Mato Grosso do Sul, sendo neste último, na parte centro-sul do Estado. O clima adverso provocou quebra na produção da safra para 2009. “A redução de produção na atual safra de grãos deve-se princi-palmente às estia-gens nos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Diferente do que se esperava, as chuvas excessivas ocorridas em Santa Catarina no primeiro semestre não chega-ram a causar grandes perdas na agricul-tura, pois as áreas de maior produção neste Estado fi cam na região oeste, que não foi atingida pela falta de chuvas e nem pelo excesso”, diz Eledon Oliveira (foto), gerente de Levantamento e Avaliação de Safras da Conab.

Segundo dados da Conab divulgados em abril de 2009, no mês de março as chuvas variaram em sua distribuição. Na região norte houve um aumento histórico, já no noroeste e no sudeste do Mato Grosso, no centro-leste goiano e no Distrito Federal foram insufi cientes para as lavouras em desenvolvimento. Em relação à área plantada no Brasil, o estudo constatou um aumento de 0,4% (191,1 mil hectares), passando de 47, 4 milhões de hectares na safra de 2007 e 2008, para 47,6 milhões em 2008 e 2009.

Quando o agricultor produz a lavoura em local aberto, afetada diretamente pelo clima, qualquer alteração prejudica os alimentos. Com isso, as perdas na produção geram défi cit. “Para o produtor, as perdas na produção geram menor renda, pois a implantação de uma lavoura requer recursos para aquisição de sementes, preparo do solo, pagamento de mão-de-obra, entre outros. Se a lavoura não produzir devido às variações climáticas, o produtor não terá renda (recursos fi nanceiros) para o pagamento das despesas. Essa situação vem ocorrendo há vários anos, o que justifi ca o grande número de produtores endividados. Para o consumidor, quando há redução na oferta de produtos, em consequência, há aumento dos preços, e ele acaba pagando mais caro para adquirir os produtos”, diz Oliveira.

Comparativo entre a produção de área plantada de

2007/2008 e 2008/2009

Apesar do aumento de 0,4% no aumento da área plantada, a colheita foi prejudica por problemas com o clima, como a seca e chuva excessiva.

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Algodão

Page 42: Revista Mente Aberta n°2

Muitas pessoas engajadas na luta contra a fome são,

geralmente, sobreviventes. Indivíduos que passaram

fome ou conviveram com ela, vendo um parente

ou amigo acorrentado a essa bola de ferro. A Mente Aberta

entrevistou quatro personagens de diferentes áreas, tendo em

comum a ligação com causas sociais, para tentar encontrar

soluções plausíveis que acabem com a fome e a miséria.

Para se combater um problema, é necessário conhecer

ou ter uma opinião formada sobre o seu conceito. A fome

é conhecida por todos. Em algum momento da vida todos

deparam com ela, nem que seja no intervalo das refeições

diárias. Mergulhando no tema, o senador Eduardo Suplicy,

o ator e cantor Luiz Araújo, a jornalista Carla Rodrigues e o

sociólogo e professor Marcelo Debonis falam o que é a fome.

MISSÃO:acabar com a fomeMente Aberta convocou um time de quatro profi ssionais de diferentes áreas para

apontar uma solução para a fome. A resposta está nas mãos de quem?

Eduardo Suplicy – “É a carência de alimentos que impedem

o ser humano de poder ter energia e boa saúde para realizar

o que é necessário na vida: trabalhar, estudar, conviver de

maneira saudável e poder conversar, orar e fazer amor”.

Marcelo Debonis – “Fome é quando não se tem o que

comer hoje e não sabe se terá amanhã. Fome pra mim é

caracterizada como alimentação inadequada e que resulta

em uma situação crônica”.

Carla Rodrigues – “É mais do que falta de comida, é

ausência absoluta de condições de sobrevivência digna”.

Luiz Araújo – “Não dá pra fugir muito do fundamental.

A fome, além do que sabemos, é o roubo da

dignidade humana”.

ESPECIAL

42 Mente Aberta

ISSÃO:Por: Paulo Gratão

Colaboração: Daiana Henrique

Fotos: Mente Aberta

Divulgação

Page 43: Revista Mente Aberta n°2

MISSÃO:acabar com a fome

O senador Eduardo Suplicy (PT) pertence à tradicional família Matarazzo. Sua aceitação política é quase unânime e a maioria dos projetos sociais que tramitam pelo governo ou já está nas ruas, teve ao menos um toque seu. No ano 2000, Suplicy foi convidado para passar três dias hospedado na favela de Heliópolis, em São Paulo, após participar de uma gravação sobre o livro “A Queda para o Alto”, de Sandra Mara Herzer, sendo responsável, também, pelo prefácio da obra. Desse período, o senador carrega recordações dos amigos que fez em Heliópolis. “Eu já conhecia o local desde os tempos do governo Jânio Quadros, quando os moradores brigaram para continuar

lá. Hoje, no entanto, Heliópolis cresceu e é uma cidade dentro de São Paulo.”

Suplicy é um dos idealizadores do programa federal Bolsa Família. Ao falar da dinâmica de distribuição, o senador não deixa dúvidas de sua participação ativa no programa desde a sua concepção. Em poucos minutos, o senador mostrou-nos cálculos para todos os tipos de situação e de renda possíveis e explicou um pouco da história do programa, que já havia sido apresentado, com outro nome, mas formato parecido, em 1991, mas só foi colocado em prática recentemente.Hoje, Suplicy está à frente do projeto Renda Básica de Cidadania no Senado, que visa partilhar a riqueza da nação entre todos os brasileiros.

Sandra Mara Herzer foi detenta da Fundação do Bem-Estar do Menor (FEBEM) e a obra em questão narra sua trajetória, sendo uma das primeiras lésbicas

brasileiras a ter sua história registrada em livro. Faleceu em agosto de 1982

O senador Eduardo Suplicy falou à Mente Aberta sobre o projeto de lei Renda Básica de Cidadania que está em tramitação no Senado. Essa iniciativa visa atender o direito de toda e qualquer pessoa de ter um recurso mínimo do governo para sobrevivência. À primeira vista, a lei assemelha-se ao Bolsa Família, mas Suplicy explica as diferenças. “O programa Bolsa Família refere-se ao direito de todas as famílias brasileiras, com renda per capita menor de R$ 137,00 por mês, receberem um complemento de renda. Se aprovado, o Renda Básica de Cidadania será garantido para todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país. Mas, por que pagar a todos? Porque obviamente os que têm mais contribuem para que eles mesmos e os demais venham a receber.”

Quando cogitada a hipótese de o programa ganhar conceito assistencialista, Suplicy discorda. “Vai ser pago a todos, não como uma assistência ou como uma caridade, mas como um direito de todos partilharem igualmente da riqueza da nação brasileira.”

O Renda Básica de Cidadania é uma solução para a fome e a pobreza? Suplicy apresentou o projeto de lei como uma medida para amenizar a pobreza que assola a nação. Os outros entrevistados compartilham da opinião do senador? Confi ra:

Marcelo Debonis: “Essa proposta do Suplicy permite que o brasileiro continue consumindo o mínimo possível e isso é importante para a manutenção dos índices econômicos do Brasil. A gente vê hoje um presidente que manda as pessoas consumirem. Se o Suplicy vier com essa história aí da renda básica, é necessário ter um mecanismo de controle para que não ocorra como o Bolsa Família: ‘Trabalhar pra que, se eu ganho de graça?’ Se não tiver mecanismo de controle não vai funcionar. As pessoas vão se encostar, porque a lógica do sistema propõe isso.”

Luiz Araújo: “Acho que tem que ser direcionado. É claro que existem pessoas com mais necessidades, então tem que ser para elas. Não é todo mundo que precisa de uma ajuda mensal. Se direcionar esse valor para quem realmente precisa eu acho que é mais válido.”

Carla Rodrigues: “Eu conheço esse projeto de renda básica e não acho que ele se destine a acabar com a fome, mas sim a prover uma renda básica – como diz o nome – a todas as pessoas. A intenção de ser universal, independentemente de quanto cada um de nós ganha, parece ser uma decisão política: o Estado deve assegurar um mínimo a todos. Pelo menos é assim que eu entendo.”

Renda básica de cidadania é a solução?

A política da fome

Carla Rodrigues é jornalista e professora da Pontífi ca Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Foi assessora da Campanha Contra a Fome, de Herbert de Souza, o Betinho, no início da década passada e responsável pela mais famosa biografi a já lançada sobre o sociólogo. Para Carla, o jornalismo tinha papel fundamental à época da campanha como delator da fome. Já nos dias atuais, os profi ssionais deveriam adotar outra postura. “Hoje a imprensa faria um papel mais importante se debatesse o problema, porque a

etapa das denúncias já está cumprida.”A jornalista atribui o sucesso da campanha de Betinho

ao contexto em que viviam. A sociedade estava em meio o impeachment do ex-presidente e atual senador, Fernando Collor de Mello, e apta a mudanças radicais. A adesão era praticamente total. “Eram condições únicas que não se repetiram ainda, mas deixaram como marca uma sociedade mais solidária. O que era uma campanha – no sentido provisório do termo – virou permanente.”

A fome denunciada

Por: Paulo Gratão

Colaboração: Daiana Henrique

Fotos: Mente Aberta

Divulgação

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Page 44: Revista Mente Aberta n°2

Vidas secas,

“Retirantes”- Portinari

Proje

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O sociólogo Marcelo Debonis nasceu em Perus, uma das regiões mais pobres da capital paulistana. Hoje, faz parte da classe média morando a poucos quilômetros de distância do seu bairro de origem, no Parque São Domingos, zona oeste. Ele considera que tenha alcançado um patamar diferenciado daquele com que conviveu durante a infância, crescendo próximo a um dos maiores lixões que já existiu na cidade, e da pobreza iminente. Marcelo não concorda com a afirmação de que a fome é simplesmente não ter o que comer. “Quando a gente fala que no Brasil existem milhões de pessoas que passam fome, não quer dizer que eles estão todos sem comer. O ‘passar fome’ aí é ter uma alimentação que é insatisfatória segundo o padrão estabelecido pelo Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA).” O CONSEA determina que um indivíduo tem que ter acesso à comida de qualidade em quantidade suficiente para o seu sustento.

Hoje no país existem 13 bolsões de miséria, apontados pela Organização das Nações Unidas (ONU). A população que vive nessas condições, segundo Marcelo, é equivalente a duas vezes a Alemanha. Esse estudo teve base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) inferior a 0,4 (em uma escala

de 0 a 1). A princípio, em função do curso de especialização que Marcelo fazia na PUC - SP, trabalharia com o bolsão de miséria paulistano, localizado a Sul do Estado, na cidade Vale do Ribeira, mas mudou sua pesquisa para Perus, que vivia em condições similares. “Nós não precisamos ir aos bolsões de miséria. Nós podemos ir a Perus e nas franjas da cidade de São Paulo que encontraremos essa situação.” Tendo seus estudos e experiência pessoal como embasamento, Marcelo acredita que a fome é responsável por muitos dos males que podem acontecer com uma pessoa, afetando inclusive o desenvolvimento intelectual.

Para erradicar esse problema, Marcelo acredita que seria necessária uma política séria que priorizasse os migrantes, que chegam às grandes cidades sem nada. O sociólogo ressalta que isso não será uma tarefa fácil. “Hoje nós vivemos na era da descartabilidade. Tudo é descartável, inclusive as pessoas. Por que você vai pensar em aniquilar o problema da fome se não é um problema que te aflige diretamente e, portanto não é um problema seu? É um problema do outro, mas o outro não existe. Do ponto mais psíquico, mais ideológico, o problema não existe.”

Os bolsões de miséria e as pessoas descartáveis

Política, sociologia e jornalismo têm papéis fundamentais na luta contra a fome. Mas e a arte? “Você precisa se divertir de alguma maneira e a arte está aí para isso. Eles, que são o espetáculo nas comunidades carentes, ficam extremamente vivos vendo aquilo. Pra mim já pagou tudo, toda a temporada entendeu? Ver alguém que não tem como pagar um ingresso ali sentado, atento e cheio de fome de conhecimento, isso pra mim já valeu todo o espetáculo”, afirma Luiz Araújo. O ator protagonizou o musical “O Primo Basílio”, no teatro Brigadeiro, na região central de São Paulo, até o mês de outubro e já fez sessões de musicais para comunidades carentes, apoiado principalmente pela prefeitura.

O ator acredita no potencial de programas sociais, como o Bolsa Família, e é a favor do surgimento de novas medidas

para amenizar o problema, mas nada se resolve da noite para o dia. Atribui à exploração do país, desde os tempos antigos, a responsabilidade pela miséria. “Se verticalizar o tema, você vê que vem lá de trás, desde a nossa origem, desde as primeiras explorações do país. A fome vem de milhões de outras coisas erradas. Vem da estrutura de um país, como se administra. Fazer o ser humano passar fome é tirar a dignidade dele, tirar tudo dele. Quando eu vejo alguém passando fome eu pergunto se eu sou do mesmo material dessa pessoa, pois em 2009 alguém passar fome é tão absurdo, mas infelizmente a gente está em um país em que pessoas lutam para sobreviver”. Luiz acredita que a solução para a fome é cortar o mal pela raiz. Se a base educacional e cultural da população for resolvida, a situação atual do país tende a melhorar.

Para acabar com a fome, Carla acredita que seja necessário acabar com os problemas que geram a fome. O analfabetismo, a ignorância e o desemprego são apontados na lista de Carla como alguns dos responsáveis pela fome.

Afirma que não tem uma solução para esses problemas e que todas as pessoas que assumem cargos públicos ou instituições importantes tentam responder, até o momento, sem sucesso.

A fome de arte

A solução está nas mãos de todos! Fazendo coro ao que nossos entrevistados afirmam, parece não haver uma solução para erradicar a fome que não seja consertar a base. Ressaltando ainda a observação de Suplicy, não podemos deixar esse fato nos levar a crer que tudo é responsabilidade do governo. Cada um tem sua parcela de culpa e se todos nós nos comprometermos a fazer pelo bem-estar do próximo a metade do que fazemos pelo nosso próprio bem-estar, em poucos anos, a fome estará presente apenas nas editorias de História das revistas.

ESPECIAL

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Vidas secas, de Graciliano Ramos, é um livro que conta a história de uma família retirante devido à seca. Fabiano, Sinhá Vitória, o fi lho mais velho, o

mais novo, assim identifi cados pelo autor, e a cachorra Baleia, remetem o leitor à tristeza e ao sofrimento de viverem em uma terra castigada pelo sol. Apesar de ter sua primeira edição lançada no ano de 1938, a obra é comparada com a realidade atual de muitos brasileiros no Norte e Nordeste do país.

Graciliano retrata momentos diferentes da vida da família. Nos primeiros cinco minutos de leitura, nos transporta ao sertão e nos convida a ver sob o ângulo de Fabiano o seu fi lho mais velho quase morrer de fome e sede, sem poder fazer nada. Ler isso nos traz um sentimento incômodo, pois apesar de lidarmos com a fome diariamente, muitas pessoas nunca a vivenciaram e a experiência é o mais próximo do real possível.

Após sobreviverem a esse período de miséria, encontram uma fazenda tomada pela seca onde trabalham duro nos anos seguintes, por uma remuneração que quase não existia, tinham consciência, mas para Fabiano é melhor ganhar pouco do que nada. Outro fato marcante foi a prisão de Fabiano, sem motivo. Ele sentiu na pele o que é um sujeito com o sangue na garganta e teve que engolir o orgulho, o sentimento mais comum nessa região.

O autor tenta nos aproximar o máximo das características do sertão, escreve de forma popular, que leva a momentos de descontração em algumas vezes devido à forma única de expressão que é facilmente identifi cada nos dias atuais. “Safado, mofi no, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família.”

O livro mais importante de Graciliano chama atenção não só pela descrição da fome, das difi culdades e da incerteza de um futuro melhor, mas faltam palavras gentis, olhares com expressões brandas e principalmente gestos de carinho dos pais para com os fi lhos. O autor expõe um povo seco de sentimentos que até hoje sobrevive nas planícies vermelhas do nosso Brasil.

Vidas secas, Vidas secas,Vidas secas,coração seco

Um romance escrito no século passado nos remete aos dias de hoje. Com uma linguagem regional, brasileiros vivem

privados de necessidades básicas e reprimem sentimentos com naturalidade

“Retirantes”- Portinari

AMPLIE

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Os bolsões de miséria e as pessoas descartáveis

A fome de arte

Por: Kilma Mendes

Foto: Divulgação

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PERFIL Sebastiião Nicomedes, ou Tião, como é conhecido, nos olhou com um largo sorriso e chamou-nos para o salão vazio a frente, no galpão em que trabalha atualmente,

no Brás, em São Paulo, que tinha de fundo uma janela que vez ou outra mostrava o trem e seu evidente barulho que interrompia a conversa, mas contribuía para revelar muita coisa que era dita no silêncio.

Nosso personagem viu o mundo pela primeira vez em Assis, interior de São Paulo. Precocemente, enfrentou a morte de seu pai, com nove anos de idade e a de sua mãe, onze meses depois. Tião viveu em Assis até os onze anos.

Quando a permanência na casa em que foi criado passou a ser insuportável, sua irmã mais velha, que é freira, levou Tião e mais dois irmãos para Sabará, em Minas Gerais. Tião nunca gostou de amarras, mesmo que invisíveis. Ser criado em meio a freiras o impedia de muitas coisas as quais sonhava. O garoto tinha espírito livre e queria conhecer o mundo. Ao completar 17 anos, a porta do mundo abre-se a sua frente, rompendo a tutoria assinada por sua irmã.

Em 1986, Tião voltou para Assis, após sua excursão pelo país, mas não se sentiu na mesma casa que havia saído anos antes. “A família não era mais a mesma coisa. Tinham primos, cunhados, parentes de terceiro grau. A casa dos meus pais já não era minha e aí não deu pra fi car muito tempo lá. Aí foi que eu voltei pra São Paulo, e conheci a cidade pra valer”.

Antes desse retorno, Tião só tinha visitado São Paulo esporadicamente, sem compromisso. Foi ainda em 1986 que fi ncou os pés na terra da garoa. Morou em uma pensão até 1992, quando aprendeu o ofício de letrista. “No início eu amarrava as faixas. Eu ajudava a amarrar as faixas nos postes e nas lojas. Depois comecei a encher letras, contornava e preenchia. Fui pegando prática e comecei a trabalhar por conta”. Tião fez diversos anúncios em lojas da Rua Oriente e também da Rua das Noivas, no bairro da Luz. ”Trabalhava o ano inteiro sem perceber. Eu não estava procurando outro emprego mais”.

Em 2003, Tião arriscou tudo o que tinha. Abriu sua ofi cina de comunicação visual e viu que as coisas pareciam estar no rumo certo para melhorar. Mergulhou em um grande oceano verde de esperança e acreditou que o novo empreendimento iria lhe devolver o patamar perdido há alguns anos. Chamou vários amigos para o novo negócio: serralheiros, vidraceiros, pedreiros e vitrinistas. Eles investiram no aprendizado das novas técnicas de arte e no aprimoramento das que já possuíam. Eis que surge o primeiro serviço, Tião já tinha o pensamento fi xo: “Agora eu fi co rico!”. E tinha tudo para ser mesmo.

De madrugada, Tião e os amigos chegaram ao local, embora já sentisse algo que o avisava do perigo. Ele não tinha um bom pressentimento. O serviço iniciou, mas dada a sua complexidade, a loja abriu antes que ele fosse concluído, e os planos da equipe foram por água abaixo. Já tinha sido feito quase tudo, faltava apenas parafusar a placa. Tião foi incumbido da tarefa, e iria começar a parafusar pelo meio. Dois de seus amigos seguravam a escada e os outros dois seguravam a placa.

Ao olhar para a placa, o letrista se desequilibrou na precária estrutura. Sem haver tempo para pensar, Tião se viu atraído pela força da gravidade. Ao olhar para cima, viu que seus amigos, no intuito de segurá-lo, soltaram a placa que o seguia ferozmente para baixo.

Leia a história de Tião Nicomedes completa no Blog da Mente Aberta: www.revistamenteaberta.wordpress.com.br

O Despertar de Tião Nicomedes46 Mente Aberta

Texto e Foto: Paulo Gratão

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EXPEDIENTE

DIRETOR DE REDAÇÃOPaulo Gratão

REDATORA CHEFEDaiana Henrique

EDITORESAndré Roja

Daiana Henrique Joseane Rodrigues

Kilma MendesMárcia GamaPaulo Gratão

REPÓRTERES André Roja

Daiana HenriqueJoseane Rodrigues

Kilma MendesMárcia GamaPaulo Gratão

CRONISTAPaulo Gratão

COLUNISTAAndré Roja

ARTICULISTAJoseane Rodrigues

RESENHISTAKilma Mendes

Esta publicação é resultado do

Projeto Experimental dos alunos

de Jornalismo da UniSant’Anna.

Novembro/2009.

ORIENTAÇÃOProfa. Ms. Ana Vasconcelos

PROJETO GRÁFICO E DESIGNRodrigo Renzo Fraleoni

menteaberta

REITORLeonardo Placucci

COORDENADOR DA ÁREA DE COMUNICAÇÃO, DESIGN E ARTES

Roberto Mecca

PAULO GRATÃO DAIANA HENRIQUE

MÁRCIA GAMAJOSEANE RODRIGUES

ANDRÉ ROJAKILMA MENDES

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