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RevRevRevRevRevista Jurídicaista Jurídicaista Jurídicaista Jurídicaista JurídicaEscola Superior do Ministério Público

Ano 3 - Número 2 - Julho/Dezembro - 2004

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ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO(Rua Minas Gerais, 316 - Higienópolis - São Paulo/SP)

Conselho Editorial:Carlos Alberto de Salles

Hugo Nigro MazzilliLuiz Otavio de Oliveira Rocha

Luiz Roberto Cicogna FaggioniOswaldo Henrique Duek Marques

Ricardo Barbosa Alves

Diretor: Luís Daniel Pereira Cintra

Assessores:Edgard Moreira da Silva

Maria Amélia Nardy PereiraOswaldo Peregrina Rodrigues

Parisina Lopes Zeigler

Jornalista responsável:Rosana Sanches (MTb 17.993)

IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO (Rua da Mooca, 1.921)

Diretor-Presidente:Hubert Alquéres

Diretor Vice-Presidente:Luiz Carlos Frigerio

Diretor Industrial:Teiji Tomioka

Diretor Financeiro e Administrativo:Richard Vainberg

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REVISTA JURÍDICADA ESCOLA SUPERIOR DO

MINISTÉRIO PÚBLICODO ESTADO DE SÃO PAULO

Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público, ano 3, n.2, 1-268, julho/dezembro-2004

Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo2001 -

SemestralNão circulou em 2003ISBN 85.7060.206-5 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo)A partir de 2004 os fascículos serão numerados continuamente e recomeçam a

cada novo volume

1. Direito - periódicos I. Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. II. ImprensaOficial do Estado de São Paulo

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Escola Superior do Ministério Públicodo Estado de São Paulo

Rua Minas Gerais, 316, Higienópolis São Paulo-SP CEP: 01244-010

Telefone: (11) 3017-7990Fax: (11) 3017-7756

www.mp.sp.gov.br/escolasuperiore-mail: [email protected]

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1.921 - Mooca

CEP: 03103-902 - São Paulo-SPTelefone: (11) 6099-9800

Fax: (11) 6099- 9674www.imprensaoficial.com.br

[email protected] 0800-123401

Apresentação...............................................................Luís Daniel Pereira Cintra

A ação civil pública constitui, por si só,direito fundamental do ser humano?...........................Maísa Cristina Dante da Silveira

A tutela constitucional dos interesses difusos...............Gianpaolo Poggio Smanio

Homicídio e porte ilegal de arma de fogo.....................César Dario Mariano da Silva

Limites à prova da embriaguez ao volante: a questãoda obrigatoriedade do teste do “bafômetro”..............Damásio de Jesus

Transação penal e suspensão condicionaldo processo...................................................................Pedro Carlos Garutti

Natureza jurídica dos crimes de arma de fogoe assemelhados............................................................César Dario Mariano da Silva

Usucal de imóvel urbano:instrumento da política urbana.....................................Celso Augusto Coccaro Filho

O indiciamento em inquérito policial...........................Flávio Eduardo Turessi

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ÍÍÍÍÍNNNNNDDDDDIIIIICCCCCEEEEE

Cartão de crédito e manipulação da assinaturadigital..................................................................................Celeste Leite dos Santos

A normativiadade dos princípios constitucionaistributários....................................................................Elaine Garcia Ferreira

A reparação à saúde do consumidor a partir daocorrência do dano ambiental..................................Belinda Pereira da Cunha

O combate à corrupção nas prefeiturasdo Brasil........................................................................Antoninho Marmo Trevisan, Antonio Chizzotti,

João Alberto Ianhez,José Chizzotti e Josmar Verillo

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ÍÍÍÍÍNNNNNDDDDDIIIIICCCCCEEEEE

Revista Jurídica da ESMP - ano 3, n.º 2, p. 9-11, julho/dezembro-2004 9

AAAAAPPPPPRRRRREEEEESSSSSEEEEENNNNNTTTTTAAAAAÇÇÇÇÇÃÃÃÃÃOOOOO

A Escola Superior do Ministério Público, ao final de2004, leva ao conhecimento de todos o nº 2, ano 3, julhoa dezembro de 2004, da Revista Jurídica editada por estacasa de ensino do Parquet paulista. Estamos há três anosna Diretoria da Escola Superior. O trabalho é árduo, masmuito gratificante e dignificante. Nele busco a realizaçãode idéias nas quais acredito e, acima de tudo, busco con-cretizar eventos que tenham utilidade para o mister de-senvolvido pelos colegas e também pelos demais profis-sionais da área jurídica.

O ano vindouro aponta para grandes transforma-ções no campo jurídico, particularmente em virtude darecente Reforma Constitucional do Poder Judiciário,embora parcial, mas que alcança também o nosso Mi-nistério Público. Além disso, estamos na expectativa daedição de uma nova legislação de falências e recupera-ção de empresas; do necessário aperfeiçoamento nocombate ao crime organizado; na sedimentação de no-vos conceitos e paradigmas trazidos pelo Código Civilde 2002; de uma nova legislação de biossegurança etc.Portanto, nesse cenário, o papel da Escola se avulta ese evidencia relevante na capaci-tação, formação, aper-feiçoamento e reciclagem dos membros do MP paulista,de seus estagiários e servidores. A sociedade paulistaconfia no Ministério Público, mas ela o cobrará, exigindoeficiência na tutela dos interesses sociais que compe-tem ao Parquet. Por isso, o Ministério Público deveantever os acontecimentos e preparar-se para enfrentá-los com galhardia e êxito.

Dentro dessa filosofia de capacitação, formação, in-formação e aperfeiçoamento dos integrantes do Ministé-rio Público, a Escola traz a lume a presente edição.Colaciona-se estudos que sejam interessantes e úteis paraos misteres do Promotor de Justiça, bem como que o

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AAAAAPPPPPRRRRREEEEESSSSSEEEEENNNNNTTTTTAAAAAÇÇÇÇÇÃÃÃÃÃOOOOO

conduza a reflexões e ao debate de idéias num contextosocial e institucional que se mostra diferente daquelevivenciado nos últimos anos.

A Escola Superior do Ministério Público, em vistadessa perspectiva, na presente Revista, apresenta estu-do de temáticas diversas, que interessam diretamenteaos membros do Parquet, mas também aos demais ope-radores do Direito, e que envolvem as várias áreas domundo jurídico, cujos assuntos precisam ser refletidos edebatidos intensamente não somente no âmbito institucio-nal, mas por toda a comunidade jurídica.

Para tanto, foram compilados textos com temáticajurídica diversificada, mas dentro de uma abordageminterdisciplinar.

Os estudos ora apresentados versam discussãoacerca da posição da ação civil pública como verda-deiro direito fundamental, que, decorridos quase vinteanos de sua introdução no processo civil brasileiro comoinstrumento de tutela de interesses difusos e coletivos,já deveria merecer um tratamento diferenciado e maisadequado pelos Poderes Estatais, mormente por partedo Poder Judiciário, como instrumento poderoso de rea-lização e de concretização de eficiência da prestaçãojurisdicional e do desenvolvimento da própria justiça so-cial. Nesse seguimento, estuda-se a tutela constitucionaldos interesses difusos e a relevância dada pela CartaMagna de 1988 à disciplina desses interesses em vistados objetivos por ela traçados no seu artigo 3º e na pró-pria consecução de um Estado Democrático de Direito.

Na seara do Direito Penal e do Direito ProcessualPenal, encontramos trabalhos interessantes relativos aonovo Estatuto do Desarmamento; à prova criminal por meiodo “bafômetro” nos delitos de embriaguez ao volante deautomotores e à transação penal e suspensão condicional

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Luís Daniel Pereira Cintra,procurador de Justiça,

diretor da ESMP e presidente do CDEMP

AAAAAPPPPPRRRRREEEEESSSSSEEEEENNNNNTTTTTAAAAAÇÇÇÇÇÃÃÃÃÃOOOOO

do processo; ao indiciamento em inquérito policial, todosvicejados por conteúdo prático e de grande utilidade parao trabalho forense diário na Justiça Criminal.

Há mais de trinta anos a utilização eletrônica de da-dos vem tomando conta de diversos setores da socieda-de. Hoje estamos no mundo dos bits, inclusive no quetange à assinatura digital. O campo das fraudes não ficoupara trás e a criminalidade informática vem encontrandoinstrumentos e meios para a aplicação de golpes e mani-pulação desses eletrônicos, mormente quando relaciona-dos com o cartão de crédito. Por isso, o estudo acercadessa temática, que ora se apresenta na Revista, consti-tui ponto necessário para trazermos a questão ao deba-te e à reflexão no mundo jurídico.

No campo da saúde se verifica estreita relação en-tre o Direito Ambiental e o Direito das Relações de Con-sumo, razão pela qual o artigo “Reparação da Saúde doConsumidor a partir do dano Ambiental” apresenta inte-ressante reflexão jurídica no que pertine à tutela dos inte-resses e direitos transindividuais.

Finalizando esta apresentação, esperamos que apresente edição da Revista da Escola tenha utilidade parao desempenho funcional dos colegas de Ministério Públi-co, bem como para os demais profissionais do Direito, e,assim, agradeço a todos aqueles que se dispuseram acolaborar com seus trabalhos jurídicos nesta publicaçãoe sempre na expectativa de continuar recebendo a confian-ça de todos os nossos leitores na apresentação de críti-cas e na colaboração científica para o aperfeiçoamentodas publicações mantidas pela Escola Superior do Minis-tério Público.

A ação civA ação civA ação civA ação civA ação civil públicail públicail públicail públicail pública constitui, por si só, constitui, por si só, constitui, por si só, constitui, por si só, constitui, por si só,

direito fundamentaldireito fundamentaldireito fundamentaldireito fundamentaldireito fundamentaldo ser humano?do ser humano?do ser humano?do ser humano?do ser humano?

maísa cristina dante da silveira

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A AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONSTITUI,POR SI SÓ, DIREITO FUNDAMENTAL

DO SER HUMANO?

Maísa Cristina Dante da Silveira

Sumário: 1. Introdução; 2. Premissa maior: direitos funda-mentais do ser humano; 2.1 Fundamento; 2.2 Conceito; 2.3Conseqüências da positivação; 2.3.1 Doutrina tradicional –direitos fundamentais e direitos relativos; 2.3.2 Doutrina mo-derna – relatividade dos direitos fundamentais; 2.3.3 Balan-ço entre os entendimentos; 2.4 Proteção; 3. Premissa me-nor: ação civil pública; 3.1 Natureza jurídica; 3.1.1 Diferençaentre direitos e garantias; 3.1.2 Análise da legislação; 3.2Relevância da tutela coletiva; 4. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

Costuma-se afirmar que a ação civil pública é direito fundamen-tal do ser humano. Tal assertiva deriva de uma presunção. De fato,tomam-se como fundamentos da afirmação o fato de a ação civil pú-blica estar prevista na Constituição da República1 e o de servir à tutelade direitos fundamentais.

Porém, tais premissas podem levar a uma conclusão falaciosa.Isso se deve, dentre outros motivos, a existir divergência quanto àdeterminação da natureza fundamental de um direito com base sim-plesmente no seu posicionamento dentro da Lei Maior, conforme seexporá adiante.

1 Art. 129, III da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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Assim sendo, é objetivo do presente trabalho discutir, de manei-ra lógica, a natureza de direito fundamental da ação civil pública, o queserá feito através do desenvolvimento de uma simples dedução:

Premissa maior: Direitos fundamentais do ser humano são...

Premissa menor: A ação civil pública é...

Conclusão: A ação civil pública é ou não é direito fundamentaldo ser humano.

O tema é de destacada relevância devido ao fato de os direitosfundamentais do ser humano, conforme se analisará adiante, mere-cerem proteção diferenciada no ordenamento jurídico. Ademais, obe-decem a uma série de princípios próprios que visam a garantir a suaefetividade, o que faz, por exemplo, com que prevaleçam sobre outrosdireitos, considerados não fundamentais (embora haja franca tendên-cia a se admitir que todos os direitos constitucionais devam conviverharmoniosamente. Nesse sentido, v. item 1.3.2 abaixo).

2. PREMISSA MAIOR: DIREITOSFUNDAMENTAIS DO SER HUMANO

Para se tentar alcançar um conceito de direitos fundamentais doser humano é necessário, anteriormente, compreender o fundamentodesses.

2.1. Fundamento

Leciona a doutrina que os direitos humanos derivam, conformejá afirmou José Soder, da natureza que possui a pessoa humana deente dotado de dignidade congênita. Provém essa da racionalidade eliberdade que são peculiares ao ser humano2. Assim sendo, por serpessoa detentora, inatamente, de valor, o homem merece tratamento

2 Cf. SODER, José. Direitos do homem. SP: Companhia Editora Nacional, 1960. p. 6.

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especial. Por isso existem os direitos humanos: para garantir a pre-servação desse núcleo básico de dignidade que deriva da própria con-dição peculiar de ser humano.

Nesse sentido o conceito de direitos humanos encontra-se como de direito natural. De fato, Soder ensina que direitos do homem “sãodireitos naturais concretos. A noção genérica de direito natural, da suaexistência e do seu conteúdo, é de caráter abstrato, teórico. Direitosdo homem, ao invés, possuem aspecto prático, concreto”.3

E o mesmo autor continua sua explanação explicando que o con-ceito de direitos humanos, apesar de ligado de maneira indelével ao jusna-turalismo, existe também em outras correntes do pensamento jurídico.

Alerta que os positivistas consideram os direitos fundamentaiscomo fruto da evolução das relações sociais, posto que, para eles, osdireitos fundamentais não derivam da natureza do ser humano, masda positivação.

Além disso, também o materialismo dialético e histórico de Marxdiscutiu os direitos do homem. Para ele, tais direitos não seriam imu-táveis, mas poderiam ser aplicados conforme as possibilidades eco-nômicas de uma época.

Discutido o fundamento dos direitos do ser humano para algu-mas correntes de pensamento, cabe agora ensaiar um conceito.

2.2. Conceito

A conceituação é tarefa árdua pois, prevalecendo aquela corren-te que entende que os direitos fundamentais são inerentes à pessoahumana, o alcance desses direitos depende da visão que se tem, emum dado momento e em um dado local, do ser humano.

Essa dificuldade é visível na consubstanciação de tratados, pois,variando a concepção que se tem de direitos humanos, varia a predis-posição dos Estados em tutelá-los e em garantir sua efetivação interna-cionalmente (porque, uma vez assinado um tratado em que um Estado

3 Ibid, p. 6.

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se compromete a preservar determinados direitos, os demais Estadossignatários, em regra, podem intervir para assegurar essa preservação).

Ademais, pode-se oferecer como exemplo dessa diversidade deentendimentos a evolução de determinados conceitos advinda da Re-volução Industrial.

De fato, anteriormente ao desenvolvimento dos meios de produ-ção em massa o direito mais amplamente tutelado era o de proprieda-de, pois a maior fonte de riqueza era o cultivo das propriedades rurais.

Posteriormente, com o renascimento comercial e urbano e coma ascensão da burguesia decorrente da Revolução Francesa, os inte-resses da nobreza latifundiária ficaram relegados a um segundo pla-no. Ao mesmo tempo, as massas trabalhadoras, que haviam migradopara as cidades, exigiam que fossem tutelados direitos novos, cujaaparecimento decorreu do momento econômico e social que se inicia-va. Assim, passou-se a tutelar direitos como o direito ao trabalho, odireito à saúde e ao saneamento básico, dentre outros.

A despeito dessa dificuldade de conceituação, a doutrina nos ofe-rece alguns conceitos bem abrangentes, dos quais cabe ressaltar dois.

Primeiramente, Jorge Miranda afirma que:

Por direitos fundamentais entendemos os direitos ouas posições jurídicas subjetivas de pessoas enquan-to tais, individual ou institucionalmente consideradas,assentes na Constituição, seja na Constituição for-mal, seja na Constituição material, donde direitos fun-damentais em sentido formal e direitos fundamen-tais em sentido material. Esta dupla noção – pois osdois sentidos podem ou devem não coincidir – pre-tende-se suscetível de permitir o estudo de diversossistemas jurídicos, sem escamotear a atinência dasconcepções de direitos fundamentais com as idéiasde Direito, os regimes políticos e as ideologias.4

4 MIRANDA, Jorge. apud CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto (ed.). A proteção dos direitoshumanos nos planos nacional e internacional: perspectivas brasileiras. In: Seminário de Brasília

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Pretende assim estabelecer um conceito flexível, aplicável a qual-quer idéia que se faça do ser humano e, por conseguinte, dos direitosfundamentais da pessoa humana. Isso porque, para o renomado au-tor, existem direitos fundamentais formais, aqueles que são assim con-siderados por estarem previstos como tal na Constituição, e materi-ais, estes realmente derivados da natureza de pessoa do ser humano.Entende-se do exposto que, para ele, os direitos variam conforme opensamento prevalente em dado Estado.

No entanto, ressalta José Afonso da Silva, citado por Alexandrede Moraes, que:

O importante é realçar que os direitos humanos fun-damentais relacionam-se diretamente com a garan-tia de não ingerência do Estado na esfera individual ea consagração da dignidade humana, tendo um uni-versal reconhecimento por parte da maioria dos Es-tados, seja em nível constitucional, infraconstitucional,seja em nível de direito consuetudinário ou mesmopor tratados e convenções internacionais.5

Enfatiza, assim, uma visão menos positivista dos direitos hu-manos.

2.3. Conseqüências da positivação

Quanto às conseqüências que advêm da positivação dos direi-tos fundamentais do ser humano, pode-se constatar que a doutrinamais moderna diverge claramente da doutrina tradicional.

1.3.1. Doutrina tradicional – direitos fundamentais e direi-tos relativos

Entendem os doutrinadores clássicos que a previsão constitucio-nal dos direitos fundamentais constitui mera declaração, pois a forçadesses decorre da natureza humana do seu titular.

5 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 11. ed. SP: Atlas, 2002. p. 41.

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Nesse sentido ensina Carlos Alberto Menezes Direito:

Precisa ficar claro que os direitos fundamentais doHomem, quando considerados do ponto de vista cons-titucional, não adquirem mais força, pelo simples fatode que a sua valoração independe da ordem jurídicapositiva, uma vez que decorrem do homem enquan-to homem. (...) No dizer de PONTES DE MIRANDA,a concepção estatal trata da proteção e não da exis-tência de tais direitos. 6

Porém, ensinam tais estudiosos, a Constituição prevê direitosque não são fundamentais: são os direitos relativos ou secundários,que decorrem da consciência do povo, conforme ensina José Soder:

Com efeito, os direitos secundários não se deduzem, apenas,por um raciocínio teórico sobre a natureza do homem. Conhecem-seaplicando a natureza metafísica do ente humano às situações econô-mico-sociais concretas. Mas, estas últimas são grandezas variáveis,logo, são-no também os direitos de caráter secundário.7

Estes direitos têm fundamento de validade e existência na previ-são constitucional. Valem somente na extensão que a lei lhes dá, por-que se originam dela, no que diferem daqueles direitos absolutos, me-ramente declarados e excepcionados pela lei.8

Em relação aos direitos fundamentais, há que se analisar que aConstituição somente pode excepcioná-los nos limites daquilo que éaceito pela sociedade. Assim sendo, também as exceções postas pelalei variam conforme evolui a concepção do homem. Logo, não sãoverdadeiras exceções, mas é o próprio direito, na sua natureza, que élimitado...

6 DIREITO, Carlos Alberto Menezes. O Estado moderno e a proteção dos direitos do homem. SP:Freitas Bastos, 1968. p. 222.7 SODER, José. Direitos do homem. SP: Companhia Editora Nacional, 1960. p. 9.8 Cf. DIREITO, op. cit. p. 223.

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2.3.2. Doutrina moderna – relatividade dos direitos funda-mentais

A doutrina mais moderna, porém, entende que a previsão cons-titucional dos direitos fundamentais não é mera enunciação, maspositivação que legitima a proteção.

Discute-se atualmente, em vez daquela teoria que ensina quehá direitos previstos constitucionalmente que são na verdade relati-vos, a relatividade de todos os direitos fundamentais. Justifica-se talentendimento pela necessidade de evitar que, ao se considerar abso-lutos os direitos humanos, possibilite-se a exclusão de responsabiliza-ção por atos criminosos e ilícitos.

Assim, explica Alexandre de Moraes que: “Os direitos e garanti-as fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, nãosão ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direi-tos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relativida-de ou convivência das liberdades públicas)”.9

Também a jurisprudência entende nesse sentido tendo o próprioSupremo Tribunal Federal declarado que um direito individual “não podeservir de salvaguarda de práticas ilícitas”.10

Ademais, há julgado do STJ em que se afirma que:

está muito em voga, hodiernamente, a utilização adargumentandum tantum, por aqueles que perpetram de-litos bárbaros e hediondos, dos indigitados direitos hu-manos. Pasmem, ceifam vidas, estupram, seqüestram,destroem lares e trazem a dor a quem quer que seja, pornada, mas depois, buscam guarida nos direitos huma-nos fundamentais. É verdade que esses direitos devemser observados, mas por todos, principalmente, por aque-les que impensadamente, cometem os censurados de-litos trazendo a dor aos familiares das vítimas.11

9 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2. ed. Coleção Temas Jurídicos. SP:Atlas, 1998. p. 46.10 RT, 709/418.

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2.3.3. Balanço entre os entendimentos

A diferença, portanto, entre o entendimento daqueles doutrinado-res mais tradicionais e o dos atuais é muito tênue, e, pode-se argu-mentar, de pouco valor prático.

No entanto, há que se constatar que os primeiros afirmam exis-tirem direitos que não são absolutos devido à sua natureza, o que lhesretira aquele peculiar tratamento protetivo dispensado aos direitos fun-damentais. Além disso, estatuem que os próprios direitos fundamen-tais variam em extensão, mas com base na idéia que se tem do serhumano em dada sociedade, cabendo somente à Constituição esta-belecer exceções aos direitos absolutos.

Enquanto isso, os últimos ensinam que todos os direitos são rela-tivos, o que leva à diminuição, de uma certa forma, da proteção dispen-sada a todos os direitos fundamentais. Ora, a relativização é critério deinterpretação e aplicação dos direitos fundamentais, o que leva à limita-ção desses sem que haja necessidade de previsão constitucional.

2.4. Proteção

A proteção dos direitos fundamentais, motivo pelo qual são pre-vistos constitucionalmente, depende de três fatores.

Em primeiro lugar, deve existir no Estado um Poder Judiciárioindependente, livre em sua atuação. Isso porque é objetivo da funçãojurisdicional efetivar o respeito aos direitos humanos fundamentais, oque é garantido pelo fato de não poder a lei excluir a apreciação dequalquer lesão ou ameaça de lesão a direito.12

É também indispensável à tutela dos direitos humanos um siste-ma de controle da constitucionalidade efetivo. Isso se justifica pelo fatode ser a previsão constitucional o que realmente impede que os direi-tos sejam agredidos por atos do Poder Público. Há que se garantir,portanto, a estabilidade e eficácia dessa previsão.

Por fim, são necessários instrumentos de proteção dos direitos.Apesar de o art. 5º, § 1º da Constituição da República Federativa do

12 Art. 5º, XXXV da Constituição Federal.

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Brasil estipular a eficácia plena e aplicabilidade imediata dos direitosfundamentais (ressaltando-se que há direitos sociais de eficácia limi-tada), é indispensável a existência de mecanismos (como o habeascorpus) para a tutela dos direitos lesados.

3. PREMISSA MENOR: AÇÃO CIVIL PÚBLICA

3.1 Natureza jurídica

Há enorme dissensão na doutrina no tocante à natureza jurídicada ação civil pública. Serão elencados aqui os pensamentos de algunsdos autores mais destacados, atualmente, no estudo do assunto.

Inicialmente, cumpre destacar que Alexandre de Moraes não in-clui a ação civil pública no seu rol de direitos humanos fundamentais13,no qual elenca somente os direitos previstos no art. 5º da Lei Maior emais alguns. Ademais, também não se refere à ação civil pública quandotrata da tutela constitucional das liberdades14.

Da mesma forma, Michel Temer15, ao arrolar o que chama deinstrumentos de garantia de direitos (mandado de segurança, p.e.),fala em ação popular, mas não em ação civil pública. Pode-se concluirque o autor refere-se somente ao disposto no art. 5º da Constituiçãoda República.

Já o especialista no tema Hugo Nigro Mazzilli trata da ação civilpública (no sentido de ação coletiva) como instrumento processual deproteção aos interesses que a legitimam16.

Celso Bastos explica que, “apesar de a ação civil pública nãoestar prevista no capítulo dedicado aos direitos e garantias fundamen-tais, não deixa de constituir-se em uma das garantias instrumentaisdos direitos constitucionalmente assegurados.” 17

13 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2.ed.Temas Jurídicos. SP:Atlas, 98. p. 58.14 Id, Direito constitucional. 11. ed. SP: Atlas, 2002. p. 137-200.15 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 15. ed. SP: Malheiros, 1998. p. 175.16 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13. ed. SP: Saraiva, 2001. p. 65.

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O Professor Dircêo Torrecillas, por sua vez, ao falar da açãopopular18 (e, por conseqüência, da ação civil pública) afirma ser essaremédio constitucional.

Por fim, o Professor Manoel Gonçalves ensina que a ação civil pú-blica é remédio constitucional, pois, “embora não prevista no Título II daConstituição – “Dos direitos e garantias fundamentais”, alinha-se às de-mais garantias instrumentais dos direitos constitucionalmente deferidos.”19

3.1.1. Análise da legislação

De pouca valia é a análise sistemática das previsões constitucio-nal e legal da ação civil pública para a determinação da sua naturezajurídica.

De fato, ela está prevista, na Constituição Federal de 1988, comofunção institucional do Ministério Público, o que em nada esclarece.

De outro lado, a lei que a regulamenta, a Lei n. 7.347/85 (Lei daAção Civil Pública), é um texto legislativo de índole predominantemen-te processual (ressalvados, no entanto, os art. 10 e 13, que têm natu-reza de direito material), conforme ensina Rodolfo de CamargoMancuso20. Dessa forma, os interesses transindividuais (difusos, co-letivos e individuais homogêneos) a serem protegidos através da açãocivil pública devem estar previstos em leis próprias, de caráter subs-tantivo.

3.2. Relevância da tutela coletiva

Um outro aspecto a ser considerado para a determinação docaráter de direito fundamental da ação civil pública é a função ou im-portância da tutela coletiva. Pedro da Silva Dinamarco21 discorre profi-cuamente sobre o tema, elencando alguns aspectos que devem seranalisados aqui.

18 RAMOS, Dircêo Torrecillas Ramos. Remédios constitucionais. 2. ed. SP: Madras, 1998. passim.19 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 30. ed. SP: Saraiva,2003. p. 323.20 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública. 7. ed. SP: RT, 2001. p. 28.

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Ensina o autor que a ação civil pública é expressão do terceiromomento metodológico do direito processual, marcado esse pela bus-ca da instrumentalidade. Além disso, faz parte de uma das três ondasmodernas em direção ao pleno acesso à justiça. Afirma que “Essarevolução é causa e conseqüência de outra revolução, mais importan-te ainda: a da sociedade, que passou a ter consciência de novos direi-tos sociais, que devem ser tutelados coletivamente.”22

Sustenta que, principalmente quanto aos interesses individuaishomogêneos, é a ação civil pública instrumento de busca da efetividadedo princípio constitucional da isonomia23, pois se evita a chamadaloteria judiciária, que ocorre devido à possibilidade de existência dedecisões discrepantes entre si.

Ainda, ensina Dinamarco24 que a ação em análise contribui paraacabar com a litigiosidade contida. Essa ocorre porque muitas pesso-as, titulares de direitos coletivos lato sensu lesados, ficam sem tutelajurisdicional, o que gera inegáveis insegurança jurídica e instabilidadesocial. É a ação civil pública, dessa forma, recurso para se dar efetividadeà garantia constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional25.

A ação civil pública leva, ademais, ao desafogamento do PoderJudiciário e à diminuição da morosidade geral da prestação jurisdicional.Serve também à conscientização daqueles contumazes causadoresde danos a interesses metaindividuais. Eis porque Arruda Alvim26 afir-ma terem as class actions, que para muitos constituem a origem dire-ta do instituto da ação civil pública, papel transcendental (pois se trans-cende a finalidade de prevenção e reparação de prejuízo para alcançarverdadeira modificação da mentalidade social).

22 Ibid, p. 41.23 Art. 5º, caput e inc. I da Lei Maior.24 DINAMARCO, op. cit., p. 43.25 Art. 5º, inc. XXXV da Constituição Federal.26 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. Apud DINAMARCO, op. cit., p. 45.

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Finalmente, Ronaldo Campos Cunha sintetiza o assunto afir-mando que a ação civil pública veicula pretensão cujo conteúdo éinteresse geral.27

4. CONCLUSÃO

Podemos assim resumir as premissas maior e menor propostas:

Direitos fundamentais do ser humano são aqueles decorrentesda natureza de pessoa que possui o ser humano, motivo pelo qualmerecem tutela especial.

Ora, a ação civil pública é instrumento processual previsto cons-titucionalmente que serve à tutela de direitos transindividuais.

Logo, a ação civil pública é ou não é um direito fundamental doser humano?

A abordagem doutrinária mais comum, conforme exposto no item2.1, limita-se a afirmar ser a ação civil pública ou remédio constitucio-nal ou garantia.

Para tanto, deve-se lembrar que remédio constitucional é uminstrumento processual de proteção de direitos fundamentais violados,sendo que somente pode ser considerado direito fundamental devidoà sua função protetiva.

De outro lado, a garantia é considerada uma espécie de direitofundamental, conforme ensinamento de Jorge Miranda28.

Alguns doutrinadores preferem estabelecer se um direito é ou nãofundamental conforme a posição, no corpo da Constituição Federal, desua previsão. Há, nesse sentido, quatro correntes bem definidas.

Os primeiros entendem que somente são fundamentais os direi-tos enumerados no art. 5º, que compõe o Capítulo I, “Direitos e deve-res individuais e coletivos”, da Constituição Federal. Para outros, são

28 MIRANDA, Jorge apud CANÇADO TRINDADE, op. cit., p. 177.

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fundamentais todos os direitos e garantias individuais, não importandoa localização na Lei Maior. Justificam-se lembrando que o § 4º do art.60 da Constituição, ao estabelecer os direitos e garantias individuaiscomo cláusulas pétreas (imutáveis, portanto), não os restringiu combase em seu posicionamento na Lei Maior. Há uma terceira correnteque acredita ter natureza fundamental todo o rol de direitos constantedo Título II da Constituição, “Dos direitos e garantias fundamentais”.Por fim, há entendimento pelo qual direitos fundamentais são um con-junto de prerrogativas fundamentais dos seres humanos, que pode,inclusive, extrapolar os limites das normas constitucionais e do própriodireito positivo. Há que se destacar que prevalecem no Brasil as duasprimeiras correntes citadas.

Assim, devido à multiplicidade de entendimentos, conclui-se quea posição da previsão de um direito no texto constitucional não escla-rece e nem é critério seguro para a determinação da natureza funda-mental desse mesmo direito.

Se tomarmos, porém, a importância da tutela coletiva efetuadaatravés da ação civil pública, veremos que referida ação é, na verdade,corolário de diversos direitos fundamentais (no item 2.2 acima, porexemplo, citamos o princípio do pleno acesso à Justiça, o da isonomiae o da inafastabilidade da tutela jurisdicional).

Então, pode-se concluir que a ação civil pública também é direitofundamental porque se presta a dar efetividade a outros direitos damesma natureza.

Disso decorre que a previsão constitucional da ação civil públicamerece tratamento especial, não se podendo admitir reformas que res-trinjam o seu alcance. Ademais, a ação civil pública passa a dever serinterpretada de forma extensiva, o que é perfeitamente lógico, poisqualquer restrição imposta a um instrumento de efetivação de um di-reito leva, reflexamente, à restrição desse último.

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Deve-se proceder, por conseguinte, a uma última reflexão: é esseo tratamento dado ao instituto ora estudado?

Após a edição da lei que a regulamenta, e mesmo após a ediçãoda Constituição de 1988, foram editadas leis (em sentido amplo) querestringiram o campo de atuação da ação civil pública (e do MinistérioPúblico como autor da ação civil pública).29

Além disso, por motivos que não cabe aqui discutir, a ação civilpública é pouco utilizada como instrumento de defesa de interessescoletivos, através do ajuizamento por associações, sendo maiscomumente promovida pelo Ministério Público em defesa de interes-ses difusos.

Não seria o caso de se repensar os rumos que vem tomando oinstituto no Brasil, de modo a permitir uma maior tutela dos interessesque legitimam a propositura da ação e, por que não dizer, dos direitosfundamentais?

De fato, sedimentada a noção de que a ação civil pública consti-tui direito fundamental (como ocorreu com o desenvolvimento dessetrabalho), conclui-se que há muito que se modificar em relação à inter-pretação e aplicação desse instrumento.

Maísa Cristina Dante da Silveira,

bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca,mestranda em Direito Público pela Universidade de Franca

29 Exemplo disso é a Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que acrescentou o parágrafo único aoart. 1º da Lei da Ação Civil Pública. O dispositivo torna incabível ação civil pública para veicularpretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tem-po de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem serindividualmente determinados.

A tutela constitucionalA tutela constitucionalA tutela constitucionalA tutela constitucionalA tutela constitucionaldos interesses difusosdos interesses difusosdos interesses difusosdos interesses difusosdos interesses difusos

gianpaolo poggio smanio

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A TUTELA CONSTITUCIONALDOS INTERESSES DIFUSOS

Gianpaolo Poggio Smanio

Sumário: Introdução. 1. O meio ambiente – 2. A defesa doconsumidor – 3. Da família, da criança, do adolescente e doidoso – 4. Das pessoas portadoras de deficiência – 5. Dacomunicação social e do direito de antena.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 reconhece expressamente a exis-tência dos interesses difusos em seu art. 129, III, ao dispor sobre as fun-ções institucionais do Ministério Público, destacando a de promover oinquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio públi-co e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Reconhece os interesses difusos e, ao mesmo tempo, destina asua proteção ao Ministério Público, demonstrando não se tratar denorma meramente programática, mas preceptiva ou atributiva de direi-tos. A própria Constituição confere os meios de investigação, constan-tes do inquérito civil, e o instrumento de proteção judicial, a ação civilpública. Dispõe, inclusive, sobre a titularidade da ação, ao conferi-la aoMinistério Público.

De acordo com essa visão, também destacamos o art. 5.º, LXXIII,da Carta Constitucional, que trata da ação popular, também reconhe-cendo a existência de interesses difusos e coletivos e estabelecendoque qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular quevise anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrati-va, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

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A Magna Carta reconhece os interesses difusos e coletivos eimpõe a sua proteção pelo próprio cidadão, conforme os direitos e ga-rantias fundamentais, por meio da ação popular.

Notamos, então, pelos dois dispositivos constitucionais analisa-dos, que a Constituição Federal não somente reconheceu a existênciados interesses difusos e coletivos mas também estabeleceu um “sis-tema de garantia” desses interesses, definindo titulares do direito àproteção e instrumentos jurídicos de proteção, ao conferi-la ao Minis-tério Público, por intermédio do inquérito civil e da ação civil pública, eao cidadão, por meio da ação popular.

Ao Ministério Público coube a titularidade ampla, uma vez quepoderá tutelar, além dos interesses especificamente mencionados pelaConstituição, como o meio ambiente e o patrimônio público e social,os demais interesses difusos e coletivos, conforme a fórmula genéri-ca utilizada pelo mencionado art. 129 da CF.

Aos cidadãos coube titularidade restrita, posto que a ação popu-lar somente pode ter por objeto a anulação de ato lesivo ao patrimôniopúblico ou a entidade de que o Estado participe, à moralidade adminis-trativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

A Constituição, entretanto, não define os interesses difusos, oque é objeto da legislação infraconstitucional, tarefa realizada pelo Có-digo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que, em seu art. 82, I,os reconhece como interesses transindividuais, de natureza indivisível,de que são titulares pessoas indetermináveis e ligadas por circunstân-cias de fato.

Ocorre que o conceito de interesse difuso é um conceito consti-tucional autônomo, ou seja, conforme CANOTILHO e VITAL MOREIRA: “con-ceitos que, não obstante a sua utilização e definição a nívelinfraconstitucional, devem ser preenchidos em primeiro lugar atravésda análise do seu sentido na Constituição, pois são conceitos primari-amente constitucionais”1.

1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra:Coimbra Editora, 1991. p. 54.

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Prosseguiremos, portanto, para buscar esse conceito, apontan-do diversos dispositivos constitucionais tratando dos interesses difusos.

1. O MEIO AMBIENTE

O art. 225, caput, da Magna Carta assegura o interesse difusoao meio ambiente, estabelecendo concepções fundamentais sobre oDireito Ambiental, pois indica o direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado como direito de todos e dispõe a natureza jurídicados bens ambientais como de uso comum do povo e impõe tanto aopoder Público quanto à coletividade o dever de defender e preservar osbens ambientais para as presentes e futuras gerações.

O nosso Texto Constitucional está de acordo com a Declaraçãosobre o Ambiente Humano, realizada na Conferência das Nações Uni-das em Estocolmo, Suécia, em junho de 1972, na qual ficou estabele-cido: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade eao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambientede qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar, e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meioambiente, para as gerações presentes e futuras”.

Na definição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, “o meio ambiente é, assim,a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturaisque propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas assuas formas”2.

Esse conceito ressalta os três aspectos do meio ambiente: omeio ambiente natural, o artificial e o cultural.

O meio ambiente natural é aquele que existe independentemen-te da influência do homem, como a flora, a fauna, o solo, a água, emque ocorre a interação dos seres vivos.

2 Direito Ambiental Constitucional. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 2.

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O meio ambiente artificial, por sua vez, é aquele resultante dainteração do homem com o meio ambiente natural, ou seja, o espaçourbano construído, consubstanciado no conjunto de edificações e dosequipamentos públicos.

O meio ambiente cultural também é fruto da interação do ho-mem com o meio ambiente natural, mas com um valor especial adqui-rido, integrado pelo patrimônio artístico, arqueológico, paisagístico, tu-rístico etc.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência dos princí-pios constitucionais ambientais ao declarar liminarmente ainconstitucionalidade do art. 182, § 3.º, da Constituição do Estado deSanta Catarina, que afastava a obrigatoriedade de estudos prévios deimpacto ambiental, no que se referia às áreas florestadas ou objeto dereflorestamento para fins empresariais:

Mesmo que se admitisse a possibilidade de tal res-trição, a lei que poderia viabilizá-la, através de nor-mas gerais, estaria inserida na competência do le-gislador federal, já que a este cabe disciplinar, atra-vés de normas gerais, a conservação da natureza ea proteção do meio ambiente (art. 24, VI, da CF), nãosendo possível, ademais, cogitar-se da competên-cia legislativa a que se refere o § 3.º do art. 24 daCarta Federal, já que esta busca suprir lacunasnormativas para atender às peculiaridades locais,ausentes na espécie (STF, Pleno, ADIn n. 1086-7/SC,rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 16.9.1994).

Apontamos os seguintes princípios constitucionais do meio am-biente, fixados no art. 225 da CF:

1.°) Princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal: o PoderPúblico tem o dever de defender e preservar o meio ambiente, asse-gurando sua efetividade. A ação governamental deverá ocorrer na ma-nutenção do equilíbrio ecológico.

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2.°) Princípio da prevenção e da precaução: significa que deve serdada prioridade às medidas que evitem danos ao meio ambiente. A Cons-tituição exige, na forma da lei, a realização de Estudo Prévio de ImpactoAmbiental (EIA), que será público, para instalação de obra ou atividadepotencialmente causadora de significativa degradação do meio ambi-ente. A lei determina a proteção de ecossistemas, com preservaçãode áreas representativas e de áreas ameaçadas de degradação.

3.°) Princípio da educação ambiental ou princípio da informaçãoe da notificação ambiental: o Poder Público deverá promover a educa-ção ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização públi-ca para preservação do meio ambiente (a comunidade deve ser capa-citada para participar da defesa do meio ambiente).

4.°) Princípio da participação e cooperação: o Estado e a coletivi-dade têm o dever de defender o meio ambiente e preservá-lo para asgerações presentes e futuras. O Estado e a sociedade devem cooperarna formulação e execução da política ambiental. Os diferentes grupossociais devem participar dessas atividades juntamente com a Adminis-tração Pública. A comunidade deve ser educada com o intuito de estarcapacitada para a participação ativa na defesa do meio ambiente.

5.°) Princípio da ubiqüidade: o meio ambiente deve ser levadoem consideração antes da e durante a realização de qualquer ativida-de que venha a ser desenvolvida, de qualquer natureza. Decorre datutela constitucional da vida e da qualidade de vida.

6.°) Princípio do poluidor-pagador ou da responsabilização: opoluidor é obrigado a corrigir ou recuperar o ambiente, além de cessara atividade nociva. O responsável pelo dano ambiental deverá indeni-zar a sociedade. A responsabilidade será objetiva, independentementede culpa por parte do poluidor. As condutas consideradas lesivas aomeio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, asanções penais e administrativas.

7.°) Princípio do desenvolvimento sustentado: a compatibilizaçãodo desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidadedo meio ambiente e do equilíbrio ecológico. A conciliação dos valores

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consiste na exploração equilibrada dos recursos naturais, devendo serobservados os limites da satisfação das necessidades e do bem-es-tar da presente geração, para a conservação do meio ambiente nointeresse das gerações futuras.

8.°) Princípio da função sócio-ambiental da propriedade: a Cons-tituição Federal incluiu, entre os pressupostos do cumprimento da fun-ção social genérica, a utilização adequada dos recursos naturais dis-poníveis e preservação do meio ambiente. Fundamentou o princípiosegundo o qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelodireito urbanístico a fim de cumprir sua função social de propiciar mo-radia, condições adequadas de trabalho e de circulação humana.

2. A DEFESA DO CONSUMIDOR

A Constituição Federal trata em três artigos, fundamentalmente,da proteção ao consumidor dentro da relação de consumo, quais se-jam os arts. 5.°, XXXII, 150, § 5.º, e 170, V.

Assim, a defesa do consumidor é um dos direitos fundamentaisdo indivíduo e um dos princípios da ordem econômica do Estado, con-forme a disposição da norma constitucional. Essa novidade da Cons-tituição de 1988 demonstrou a preocupação do Poder Constituinte coma proteção do consumidor, em relação aos seus direitos básicos, umavez que o mercado de consumo não apresenta em si mesmo meca-nismos para superar a hipossuficiência econômica do consumidor.

Novamente, não foi a Constituição Federal que definiu o conceitode consumidor, o que foi realizado pelo Código do Consumidor em seuart. 2.º e parágrafo único, nos seguintes termos:

“Consumidor é toda pessoa física ou jurídica queadquire ou utiliza produto ou serviço como destinatá-rio final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidora coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis,que haja intervindo nas relações de consumo”.

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O conceito legal baseou-se no conceito econômico, interessan-do apenas o personagem que no mercado de consumo adquire bensou contrata a prestação de serviços como destinatário final. Pressu-põe que consumidor é aquele que age com vistas a uma necessidadeprópria e não para o desenvolvimento de outra atividade negocial.

A equiparação realizada pelo mencionado parágrafo único tratados interesses difusos ou coletivos dos consumidores consideradoscomo ente coletivo, ainda que indeterminado, desde que intervindo numarelação de consumo. Estão, portanto, incluídos os alunos de uma de-terminada escola, os associados de um plano de saúde, os doentesde um hospital etc.

Para que o conceito de consumidor seja concebido em sua intei-reza, tendo em vista a proteção estabelecida pela Constituição Fede-ral, devemos interpretar o referido art. 2.º do CDC, sistematicamente,com o art. 4.º, I, do mesmo diploma legal, que reconhece avulnerabilidade do consumidor como um dos princípios da Política Na-cional das Relações de Consumo.

O conceito de consumidor não pode ser entendido se não inse-rido numa relação de consumo. O consumidor é aquele que participade uma relação jurídica de consumo.

Essa relação jurídica envolve duas partes bem definidas; de umlado, o adquirente de um produto ou serviço, chamado de consumidor,e, de outro lado, o fornecedor ou vendedor de um produto ou serviço.Destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor,que, não dispondo de controle sobre a produção de bens ou de servi-ços que lhe são destinados, submete-se ao poder e condições dosprodutores e fornecedores. É a hipossuficiência ou vulnerabilidade doconsumidor, expressamente reconhecida pelo art. 4.º, I, do CDC. Essavulnerabilidade é a razão da proteção estabelecida pela ConstituiçãoFederal ao consumidor.

O “princípio da vulnerabilidade”, reconhecido pela ConstituiçãoFederal, leva em consideração a necessidade de instrumentos eficazespara a proteção dos economicamente vulneráveis dentro da relaçãojurídica de consumo e fez com que a Constituição estabelecesse aproteção aos consumidores como um direito fundamental individual.

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Também podemos afirmar que a Constituição estabeleceu emseu art. 5.º, XXXII, o “princípio da obrigatoriedade da intervenção doPoder Público” para a proteção dos interesses dos consumidores, aofixar o dever do Estado de promover, na forma determinada na lei, adefesa do consumidor.

Dessa forma, decidiu o Supremo Tribunal Federal:

(...) em face da atual Constituição, para conciliar ofundamento da livre iniciativa e do princípio da livreconcorrência com os da defesa do consumidor e daredução das desigualdades sociais, em conformida-de com os ditames da justiça social, pode o Estado,por via legislativa, regular a política de preços de bense serviços, abusivo que é o poder econômico quevisa ao aumento arbitrário dos lucros (STF, Pleno,ADIn n. 0319/DF, rel. Min. Moreira Alves, DJU de30.4.1993, p. 7563).

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90)veio, portanto, concretizar a determinação da Magna Carta de conferirao consumidor a proteção do Estado e um meio jurídico adequado deproteção, tendo em vista que a sociedade de massa contemporâneatrouxe à relação de consumo um diferenciador em relação a situaçõesque não são meramente individuais, mas sim transindividuais, de titula-res indeterminados e ligados por circunstâncias de fato, como a publici-dade enganosa ou a propaganda abusiva.

As disposições constitucionais e infraconstitucionais brasileirasestão de acordo com a Resolução n. 39/248, de 10 de abril de 1985, daONU, que estipula os direitos fundamentais dos consumidores, direi-tos universais e indisponíveis:

(...) os governos devem desenvolver, reforçar oumanter uma política firme de proteção ao consumi-dor (...)

As normas servirão para atingir as seguintes neces-sidades:

Revista Jurídica da ESMP - ano 3, n.º 2, p.29-46, julho/dezembro-2004 39Revista Jurídica da ESMP - ano 3, n.º 1, p. 35-72, janeiro/junho - 2004 39

a) proteger o consumidor quanto a prejuízos à saúdee segurança;

b) fomentar e proteger os interesses econômicos dosconsumidores;

c) fornecer aos consumidores informações adequa-das para capacitá-los a fazer escolhas acertadas deacordo com as necessidades e desejos individuais;

d) educar o consumidor;

e) criar a possibilidade de real ressarcimento ao con-sumidor;

f) garantir a liberdade para formar grupos de consu-midores e outros grupos ou organizações de relevân-cia e oportunidades para que estas organizaçõespossam apresentar seus enfoques nos processosdecisórios a ela referentes.

3. DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO

A Constituição Federal dispõe nos arts. 226 a 230 sobre a prote-ção à família, à criança, ao adolescente e ao idoso.

O primeiro princípio constitucional que destacamos é o daobrigatoriedade da intervenção estatal.

Em relação à família, o referido princípio vem estipulado pelo art.226, caput e § 8.º, da CF. Ao estabelecer que a família tem especialproteção do Estado e que este assegurará a sua assistência na pes-soa de cada um dos que a integram, a Carta Constitucional impõe umdever de atuação concreta ao Poder Público, não se tratando de meranorma programática.

A Constituição Federal estipula a proteção à família por meio doreconhecimento das “entidades familiares”, que podem ser constituí-das de três formas:

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a) pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (art. 226, §§1.º e 2.º, da CF);

b) pela união estável entre homem e mulher (art. 226, § 3.º, da CF);

c) pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus des-cendentes (art. 226, § 4.º, da CF).

O art. 227, caput e § 1.º, da Magna Carta trazem a obrigatoriedadeda intervenção estatal em relação à criança e ao adolescente.

Mais uma vez, impondo ao Estado o dever de assegurar à criançae ao adolescente, prioritariamente, os direitos fundamentais do cidadão,como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, àprofissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e àconvivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de todaforma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldadee opressão, e promover programas de assistência a eles, não se tratade mera norma programática.

As disposições constitucionais sobre a criança e o adolescenteestão de acordo com a Declaração Universal dos Direitos da Criança,adotada pela ONU em 20 de novembro de 1959, nos seguintes ter-mos: “a criança, em virtude de sua maturidade física e mental, precisade proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriadaantes e depois do nascimento”.

Da mesma forma, a Comissão de Direitos Humanos da ONUpreparou a Convenção dos Direitos da Criança, em 20 de novembrode 1989, obrigando os países signatários a adotar na sua legislaçãointerna os seus três princípios básicos:

1.º) a proteção especial da criança como ser em desenvolvimento;

2.º) o desenvolvimento da criança no seio de sua família;

3.º) a prioridade da criança para todas as nações signatárias.

O idoso também foi contemplado pela norma constitucional coma mesma garantia do princípio da obrigatoriedade da intervenção esta-tal, no art. 230 da CF.

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A norma constitucional que dispõe ser dever do Estado ampararas pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito àvida, também é norma de aplicação imediata, não se tratando de meranorma programática.

O Estado tem, portanto, por força das disposições constitucionaismencionadas, a intervenção obrigatória na proteção e defesa da família,da criança, do adolescente e do idoso. Essa intervenção deve assegurara sua eficácia na garantia da vida e dos demais direitos fundamentais.

O segundo princípio constitucional que destacamos é o “princí-pio da cooperação”.

Tanto o mencionado art. 227, caput, quanto o referido art. 230,caput, da CF determinam o dever de assegurar os direitos da criança,do adolescente e do idoso à família e à sociedade, além de ao Estado.

Dessa forma, não é apenas o Estado que tem o dever de atuação,mas também a sociedade como um todo. Surge, assim, o “dever de coo-peração da sociedade”, bem como da família, com o Estado, para asse-gurar os direitos fundamentais da criança, do adolescente e do idoso.

Também as entidades não governamentais (ONGs) poderão par-ticipar dos programas de assistência integral à saúde da criança e doadolescente, em cooperação com o Poder Público, conforme permis-são constitucional expressa constante do § 1.º do art. 227 da CF.

O terceiro princípio constitucional é o “princípio da prioridade”,em relação à criança e ao adolescente, estabelecido no já menciona-do art. 227, caput, da CF.

A prioridade na efetivação dos direitos da criança e do adoles-cente atinge tanto o Estado quanto a família e a sociedade. A respon-sabilidade pelo atendimento da criança e do adolescente é de todosdentro de uma comunidade.

A garantia da prioridade consiste em:

1.º) receber, primeiramente, proteção e socorro, em quaisquercircunstâncias;

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2.º) atendimento preferencial nos serviços públicos e de relevân-cia pública;

3.º) prioridade na formulação e execução de políticas sociaispúblicas;

4.º) destinação preferencial de recursos públicos nas áreas deatendimento à infância e adolescência.

O quarto princípio a ser destacado, este em relação à criança eao adolescente, é o “princípio da proteção especial”, estabelecido peloart. 227, § 3.º, da CF.

O princípio da proteção especial tem em vista a peculiar condi-ção da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento,o que os diferencia no tratamento das diversas questões a que estãosubmetidos, como a aplicação das medidas socioeducativas e em re-lação à tutela dos seus direitos fundamentais.

4. DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA

O art. 5.º da CF garante a igualdade de todos. O “princípio da igual-dade” é, portanto, pela sua colocação constitucional, a regra matriz dosdireitos e deveres individuais e coletivos, significando, em uma interpre-tação literal, a isonomia formal de todos perante a lei, no sentido de quea lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta asdistinções de grupos ou status social. Mas o sentido do princípio da igual-dade não pode ser limitado à literalidade, devendo ser considerado ma-terialmente como “igualdade de possibilidades virtuais”, pois o tratamentodesigual nos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exi-gência do próprio conceito de justiça. O objetivo, na visão de FABIO KONDER

COMPARATO3, é a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançadanão só por meio de leis mas também pela aplicação de políticas ouprogramas de ação estatal.

3 Direito Público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 59.

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Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:“Não ofende a qualquer princípio jurídico ou postulado de igualdade oato judicial que autoriza o candidato, com pequena disfunção motora,a executar a prova de datilografia em máquina elétrica” (STJ, 6.ª T.,RMS n. 5.121-0/BA, rel. Min. William Patterson, v. u., DJU de 15.4.1996).

Essa visão é a que dispõe a Constituição, ao tratar no art. 7.º so-bre a admissão e o salário do trabalhador. No referido artigo, traz umaprojeção do princípio da igualdade, explicitando que esta deve se esten-der à relação de trabalho, proibindo qualquer forma de discriminação.

A pessoa portadora de deficiência, entretanto, não está habilitadapara qualquer profissão. Um deficiente visual não pode pretender umemprego de motorista, em que a visão é essencial. Essa não é a intençãodo princípio constitucional, que veda qualquer discriminação, desde quenão haja correlação entre a situação discriminada e o bem protegido.

O ingresso no serviço público também está garantido constituci-onalmente para as pessoas portadoras de deficiência, conforme o art.37, VIII, da CF, que determina a reserva de percentual de cargos eempregos públicos aos portadores de deficiência.

Aqui, há uma exceção ao princípio da igualdade de todos perantea Administração Pública, criando-se uma reserva de mercado, a serdefinida pela lei, para as pessoas portadoras de deficiência. A preten-são da norma constitucional é proteger as pessoas portadoras de de-ficiência, buscando sua integração no serviço público.

O direito à educação especial também é guarnecido pela Cons-tituição, em seu art. 208, III.

O Estado tem o dever de prestar educação a todos os cidadãos, espe-cialmente, o dever de atendimento especializado aos portadores de deficiên-cia, visando a sua integração na sociedade e evitando a sua discriminação.

A proteção das crianças e adolescentes portadores de deficiên-cia é outra decorrência da garantia constitucional de proteção, estipu-lada no art. 227, § 1.º, II, e § 2.º, da CF, que também determina o aces-so adequado das pessoas portadoras de deficiência aos logradouros,edifícios de uso público e veículos destinados ao transporte coletivo.

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Nesse dispositivo constitucional, destacam-se duas garantiasdistintas, mas interligadas.

A primeira é o dever de atendimento especializado à criança e aoadolescente portadores de deficiência, visando à sua integração soci-al, por meio do treinamento adequado, à facilitação ao acesso de bense serviços e à eliminação das barreiras arquitetônicas, de forma a per-mitir o livre acesso a qualquer local.

A segunda é a determinação da criação de normas legais para aconstrução dos logradouros, edifícios de uso público e veículos destina-dos ao transporte coletivo, que atinge não apenas crianças e adolescen-tes mas também todas as pessoas portadoras de deficiência, de modo apermitir e facilitar o amplo ingresso aos locais de circulação de pessoas.

Essa garantia constitucional é completada pelo art. 244 da CF. AConstituição determina que a lei, além de fixar regras para a constru-ção, fixe regras para a adaptação dos logradouros, edifícios de usopúblico e veículos destinados ao transporte coletivo já existentes, deforma a assegurar o acesso das pessoas portadoras de deficiência,conferindo maior praticidade às garantias mencionadas.

Pela análise dos dispositivos constitucionais, podemos concluir,com ANTONIO HERMAN BENJAMIN, que:

(…) a Constituição dividiu o tratamento das pessoasportadoras de deficiência em três categorias de nor-mas: as de natureza geral, impondo deveres e criandodireitos de proteção ampla, as de natureza especial,fragmentando ou melhor explicando aqueles e, final-mente, as de natureza especialíssima, cuidando ape-nas de certas categorias de pessoas portadoras dedeficiência (como as crianças e os adolescentes)4.

4 A tutela das pessoas portadoras de deficiência pelo Ministério Público. In: Direitos da pessoaportadora de deficiência. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 27.

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5. DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E DO DIREITO DE ANTENA

A “garantia constitucional da liberdade de comunicação social” éuma conseqüência natural da liberdade de expressão da atividade in-telectual, artística, científica e de comunicação, independentementede censura ou licença, determinada no art. 5.º, IX, da CF.

Nos arts. 220 a 224, a Magna Carta protege os meios pelos quaisa informação será difundida, ou seja, os meios de comunicação demassa. A regulamentação constitucional atinge os jornais, as revistas,o rádio e a televisão.

O princípio fundamental do Direito de Antena, previsto no art. 220da CF, é a proibição de restrições, resguardadas as previsões consti-tucionais, à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e àinformação, transmitidos sob qualquer forma, processo ou veículo.

A proibição de censura prévia é reconhecida jurisprudencialmente:“Abolida do novo Texto Constitucional a prévia censura ou licença inte-lectual, artística, científica ou de comunicação, e inexistindo na letra dacanção impugnada ofensa à dignidade pessoal de autoridade pública,confirma-se a concessão da ordem, presente ainda o interesse emradiodifundir a música” (TFR 4.ª Região, 2.ª T., REO n. 89.04.15300/RS, rel. Juiz José Morschbacher, DJU de 7.8.1991, p. 18089).

A proibição da censura prévia deve ser compatibilizada com asdemais normas constitucionais, como a referida proteção à criança eao adolescente e o estabelecimento de normas legais que garantam àpessoa e à família a possibilidade de se defenderem de propagandasde produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e aomeio ambiente (art. 220, § 3.º, II, da CF) e de programas ou programa-ções de rádio e televisão que contrariem os seguintes princípios, tam-bém estabelecidos pela Constituição, em seu art. 221:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas,culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímuloà produção independente que objetive sua divulgação;

Revista Jurídica da ESMP - ano 3, n.º 2, p.29-46, julho/dezembro-200446

III – regionalização da produção cultural, artística ejornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoae da família.

Assim reconheceu o TJ-SP, em duas decisões:

Mandado de Segurança. Liberdade de Imprensa as-segurada pelo art. 220 da CF e os Direitos da Criançae do Adolescente conferidos pelo art. 227 da CartaMagna. No conflito entre direitos, têm primazia os di-reitos da criança e do adolescente, ínsito no ataque aopudor, não integra a liberdade de informação. Afirmarque um direito é absoluto significa que ele é inviolávelpelos limites que lhe são assinalados pelos motivosque o justificam (TJSP, Câm. Esp., MS n. 13.176-0-2/SP, rel. Des. Denio Garcia, v. u., j. em 8.8.1991).

Mandado de Segurança. Objetivo. Efeito suspensivoa Agravo de Instrumento. Inadmissibilidade.Inexistência de qualquer decisão teratológica. Liminarque determinou o bloqueio dos serviços telefônicosconhecidos como “disque-sexo”. Hipótese em quedeles se serviam adolescentes. Ofensa ao direito dosjovens à educação, à dignidade e ao respeito. Cen-sura à manifestação, expressão e à informação nãocaracterizada. Ordem denegada (TJSP, MS n. 22.738-0/SP, rel. Des. Ney Almada, v. u., j. em 20.10.1994).

A regulamentação das diversões e espetáculos públicos é admi-tida pela Constituição, cabendo ao Poder Público informar a naturezada diversão e do espetáculo, as faixas etárias a que não se recomen-dem e os locais e horários em que sua apresentação se mostre inade-quada (art. 220, § 3.º, I, da CF).

Gianpaolo Poggio Smanio,

promotor de Justiça da Cidadania de São Paulo,professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

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césar dario mariano da silva

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HOMICÍDIO E PORTE ILEGALDE ARMA DE FOGO

César Dario Mariano da Silva

A Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2.003, também chamada deEstatuto do Desarmamento, trouxe significativas modificações no queconcerne aos crimes atinentes à posse e porte ilegal de arma de fogo.

De acordo com a revogada Lei nº 9.437/97, aquele que possuís-se arma de fogo em sua residência sem o devido certificado de regis-tro ou que a portasse ilegalmente receberiam a mesma pena, uma vezque teriam praticado o mesmo delito.

O Estatuto do Desarmamento modificou essa injusta situação,criando tipos penais diferenciados para um ou outro caso.

O art. 12 da nova lei dispõe que: “Possuir ou manter sob suaguarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, emdesacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de suaresidência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho,desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ouempresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”. Dessaforma, aquele que possuir ou mantiver sob sua guarda arma de fogode uso permitido nesses locais, mas não a portar, responderá pelopresente delito.

Por outro lado, diz o art. 14 do mencionado diploma legal:

”Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depó-sito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, em-prestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocul-tar arma de fogo, acessório ou munição, de uso per-mitido, sem autorização e em desacordo com deter-minação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de

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2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”. Com efeito, aqueleque portar, detiver, etc, arma de fogo de uso permiti-do, estará incurso no citado artigo, que possui penabem mais severa. Se a arma de fogo for de uso proi-bido ou restrito, o crime será o previsto no art. 16,“caput”, que comina a pena de três a seis anos dereclusão, e multa.

Quando pensamos na possibilidade de absorção, ou não, dosreferidos delitos pelo crime de homicídio praticado com o emprego dearma de fogo, deveremos analisar cada um deles separadamente.

A jurisprudência majoritária do Tribunal de Justiça do Estado deSão Paulo, na vigência da Lei nº 9.437/97, vinha entendendo que o porteilegal de arma de fogo não era absorvido pelo homicídio por duas ra-zões. A primeira porque, antes da prática do homicídio, o crime de porteilegal de arma de fogo já estava consumado, uma vez que bastava queo sujeito possuísse a arma em sua residência ou a detivesse em outrolocal para que ocorresse a consumação do delito, sendo que a práticado crime contra a vida não tinha o condão de retroagir para alcançar umcrime que já estava consumado. A segunda razão era de ordem doutri-nária, isso porque para que houvesse um fato anterior impunível, umadas hipóteses do princípio da consunção, os crimes deveriam atingir omesmo objeto jurídico e a mesma vítima. Ora, no homicídio o objetojurídico é o direito à vida e o sujeito passivo é o ser humano vivo, enquan-to no porte ilegal de arma de fogo o objeto jurídico é a incolumidadepública e o sujeito passivo é a coletividade (crime vago). Destarte, comoas vítimas e os objetos jurídicos são distintos, não poderia haver a ab-sorção com fundamento no princípio da consunção (nesse sentido: TJSP,1ª C. Crim. Extraord., Recurso em Sentido Estrito nº 331.779-3/4, SãoPaulo, Rel. Cerqueira Leite, 21.02.2001, v.u. ).

Com o advento do Estatuto do Desarmamento, os fundamentospersistem. A única diferença é que deverá ser analisado se houve ocrime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12), de

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porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14), ou de posse ouporte ilegal de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 16).

Se, antes de praticar o homicídio, o sujeito já possuía ou manti-nha sob sua guarda a arma de fogo de uso permitido nos locais preco-nizados no art. 12 do Estatuto, o homicídio não absorverá a posseirregular de arma de fogo de uso permitido, uma vez que esse delito épermanente e já estava consumado antes do cometimento do crimedoloso contra a vida, além de possuírem vítimas e objetos jurídicosdistintos, o que impede o reconhecimento do princípio da consunção.

Por outro lado, e se o sujeito já possuísse a arma de fogo de usopermitido ou a mantivesse sob guarda em sua casa e resolvesse saircom ela à rua para praticar um homicídio, haveria ou não a absorção doporte ilegal de arma de fogo de uso permitido pelo crime doloso contra avida ? Interpretando-se doutrinariamente a questão, não poderia haver aabsorção em face da diversidade de vítimas e objetos jurídicos. Entre-tanto, o Superior Tribunal de Justiça, quando trata do estelionato pratica-do com o uso de documento falso, entende que o crime fim absorve ocrime meio (Súmula nº 17), deixando de lado os requisitos do princípioda consunção, valendo-se, certamente, de política criminal a fim de quenão haja uma pena exagerada. Com isso, surgirão interpretações nes-se sentido, eis que o sujeito passou a portar ilegalmente a arma de fogode uso permitido, que já possuía ou tinha sob sua guarda, tão-somentepara praticar o homicídio, remanescendo, caso tenha ocorrido, o crimede posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12 do Estatu-to), que já estava consumado antes da prática do porte ilegal de arma defogo e do homicídio.

Entretanto, se for possível demonstrar que o sujeito, além depossuir ou manter sob sua guarda a arma de fogo de uso permitidoirregularmente, já a havia portado, transportado, adquirido, etc, antesda prática do crime doloso contra a vida, poderemos ter o concursomaterial do porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14) como delito de homicídio praticado com o emprego dessa arma.

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É certo, também, que haverá o concurso do art. 16, “caput”, doEstatuto, que trata do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo deuso proibido ou restrito, com o delito de homicídio, nas mesmas situa-ções já mencionadas, quando o aludido objeto material for empregadopara o cometimento do crime doloso contra a vida. Observamos quese a arma de fogo for de uso proibido ou restrito, mesmo que o sujeitoa possua ou tenha sob guarda nos locais descritos no art. 12, semautorização e em desacordo com determinação legal ou regulamen-tar, o crime será o do artigo 16, “caput”, do Estatuto, que comina penamais severa.

Do mesmo modo, aquele que, após o cometimento do homicí-dio, ocultar a arma de fogo, igualmente deverá ser responsabilizadopelo crime posterior (art. 14 ou 16 do Estatuto), eis que a prática dohomicídio não lhe deu autorização para ocultar ou ter em depósito aarma de fogo de forma ilegal e indefinidamente (nesse sentido decla-ração de voto vencedor do Desembargador Dante Busana, recursoem sentido estrito nº 328.792-3/6-00, j. 22.03.2001). Observamos, po-rém, que nessa última situação, se já houve o reconhecimento do cri-me de porte ilegal de arma de fogo em concurso com o crime contraa vida, certamente o sujeito não mais poderá ser responsabilizado pelocrime de ocultação da arma, uma vez que o tipo penal é misto alterna-tivo. Por outro lado, se após a já referida ocultação, o sujeito, por exem-plo, portar a arma de fogo, teremos nova conduta típica independentedas anteriores, visto que a situação fática é outra.

César Dario Mariano da Silva,

8º PJ do II Tribunal do Júri

limites à prolimites à prolimites à prolimites à prolimites à prova dava dava dava dava da embriaguez ao v embriaguez ao v embriaguez ao v embriaguez ao v embriaguez ao volante:olante:olante:olante:olante:

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damásio de jesus

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LIMITES À PROVA DA EMBRIAGUEZAO VOLANTE: A QUESTÃODA OBRIGATORIEDADE DOTESTE DO “BAFÔMETRO”1

Damásio de Jesus

A relevância da embriaguez na produção de acidentes de trânsito éfato notório em todas as partes do mundo2. Entre nós, noticiam os meiosde comunicação repetidamente a perda de milhares de vidas todos osanos3, não obstante as campanhas governamentais e a entrada em vigorda Lei n. 9.503/97, que introduziu o novo Código de Trânsito Brasileiro(CTB). A atividade docente e a vida em sociedade permitiram-me perce-ber que as ações preventivas são, ainda, demasiadamente tímidas. Porquê? Uma das respostas, a meu ver, encontra-se nas dificuldades que asautoridades policiais e administrativas têm na produção da prova sobre ainfluência do álcool e das substâncias a ele análogas, proporcionadas

1 Trabalho apresentado no Debate Técnico Volvo de Segurança no Trânsito, com o tema Comotornar obrigatório o teste do bafômetro no Brasil?, promovido pelo Programa Volvo de Segurançano Trânsito e pelo Departamento de Trânsito do Paraná, em Curitiba, no dia 7 de abril de 2004.2 Estados Unidos – 1991: 19.900 pessoas morreram em acidentes de trânsito ligados ao álcool;318.000 pessoas ficaram feridas em acidentes automobilísticos relacionados ao álcool. Custo:US$ 46,1 bilhões em 1990, sendo US$ 5,1 bilhões envolvendo despesas médicas. Desde adécada de 1970, nos EUA, os índices de acidentes vêm sofrendo significativa redução. Em 1991,o número de acidentes foi 20% menor do que em 1982. A redução foi maior entre os jovens de16 a 20 anos. Os números são mais expressivos se considerado o aumento de veículos e demilhas rodadas anualmente (40% de acréscimo entre aqueles anos).

Nova Zelândia – 1987: 3% das mortes de crianças até 14 anos; 20,1% das mortes de adultos(entre 25 e 34 anos).

Canadá – 1990: 50% do número de motoristas mortos em acidentes de trânsito apresentavamdosagem excessiva de álcool (27,3% acima de 1,5 g/l).

Noruega – 1989 a 1990: dentre 50% dos mortos em acidentes de trânsito, 28,3% denotavamconsumo de álcool, sendo 27% acima do limite permitido (0,5 g/l).

Chile – 1991: 50% dos acidentes de trânsito tiveram motoristas alcoolizados como protagonistas.3 No Brasil, antes da entrada em vigor do Código de Trânsito, em 1997, estávamos perdendocerca de 40 mil vidas por ano e ferindo 450 mil. Vigente a Lei n. 9.503/97, baixamos esse índice,hoje outra vez em ascensão por causa da ausência de fiscalização eficiente.

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pela não-colaboração dos condutores submetidos à fiscalização ou quan-do envolvidos em acidente de trânsito.

Nosso Direito Constitucional consagra o princípio segundo o qualninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo4, seguindo aConvenção Americana de Direitos Humanos (1969), o Pacto de SãoJosé da Costa Rica e a Convenção Americana dos Direitos e Deveresdo Homem (1948). Em face disso, não pode a lei infraconstitucionalimpor a obrigação da sujeição do motorista suspeito ao exame de“bafômetro” (etilômetro), sob pena de configurar-se presunção contraele5. Negando-se, não responde por crime de desobediência6. Emboraa regra mencionada refira-se mais ao direito ao silêncio do preso7, elaé aplicável a qualquer pessoa, detida ou não. O preceito significa que,na verdade, em nosso Direito, não se pode compelir o indivíduo a pro-duzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).

Sob o ponto de vista penal, considero intransponível, no atualestágio de desenvolvimento das garantias constitucionais, a supera-ção do direito ao silêncio, reconhecido no art. 5.º, LXIII, da ConstituiçãoFederal, com o intuito de obrigar o condutor a colaborar na produçãode prova contra si mesmo. De fato, é prova reconhecidamente inad-missível a coleta de sangue do condutor contra a sua vontade ou a

4 Art. 5.º, II, da Constituição Federal. Essa regra também decorre implicitamente dos princípios dapresunção de inocência, segundo os quais ninguém pode ser considerado culpado antes de asentença condenatória penal transitar em julgado (art. 5.º, LVII, da CF), e do direito do réu aosilêncio (art. 5.º, LXIII, da CF). Nesse sentido: CALLEGARI, André Luís. A inconstitucionalidade doteste de alcoolemia e o novo Código de Trânsito. Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 66, maio 1998.5 Por exemplo, art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503, de 23 de setembro de1997). Em nossa obra Crimes de Trânsito (5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 164), anotamosque “o motorista não é obrigado a submeter-se a esse exame. Nesse sentido: Ada PellegriniGrinover, As nulidades no processo penal, 6.ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p.132; Geraldo de Faria Lemos Pinheiro, A embriaguez no Código de Trânsito Brasileiro, Boletimdo IBCCrim, 83:3, São Paulo, out. 1999”. De citar-se ainda: CALLEGARI, André Luís. Op. cit.6 Como dissemos em nossa obra supracitada, o motorista, “negando-se, não responde por crimede desobediência. O agente policial, entretanto, pode conduzi-lo perante a autoridade policial,que o submeterá a testes de alcoolemia, exame clínico etc. (art. 277 do CT). Nesse sentido:Renato Ferreira dos Santos, Pode o cidadão recusar-se a submeter-se à realização do examecom bafômetro?, Uniprospectus, órgão de informação da Universidade Paulista (UNIP), SãoPaulo, abr. 1998, p. 10; Geraldo de Faria Lemos Pinheiro, A embriaguez no Código de TrânsitoBrasileiro, Boletim do IBCCrim, 83:3, São Paulo, out. 1999”. De citar-se ainda: CALLEGARI,André Luís. Op. cit.7 Art. 5.º, LXIII, da CF.

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submissão forçada ao conhecido teste do “bafômetro” (etilômetro).Essa limitação é imposta pela necessidade de tutela a direitos funda-mentais, como esclarece ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO: “No Brasil, odireito ao silêncio do acusado, que já era mencionado pelo art. 186 doCódigo de Processo Penal, embora com a sugestiva admoestação deque poderia ser interpretado em prejuízo da própria defesa, foi elevadoà condição de garantia constitucional pelo art. 5.º, LXIII, da Carta de1988, que determina: ‘o preso será informado de seus direitos, entreos quais o de permanecer calado (...)’; e a Convenção Americana so-bre Direitos Humanos também assegura ‘a toda pessoa acusada dedelito (...) o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nema declarar-se culpada (...)’ (art. 8.º, g). (...) De qualquer modo – e issoé o que interessa ao presente estudo – o direito à não auto-incriminaçãoconstitui uma barreira intransponível ao direito à prova de acusação;sua denegação, sob qualquer disfarce, representará um indesejávelretorno às formas mais abomináveis da repressão, comprometendo ocaráter ético-político do processo e a própria correção no exercício dafunção jurisdicional” (grifos do autor)8.

Com essa atitude, não se desprotege a ordem social. Na áreacriminal, mantido o delito de embriaguez ao volante9, o fato pode serprovado mesmo na ausência do exame do “bafômetro”, de acordo coma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Havendo outros ele-mentos probatórios, de regra, lícitos, legítimos e adequados para de-monstrar a verdade judicialmente válida dos fatos, não há razão paradesconsiderá-los sob o pretexto de que o art. 158 do CPP admite, parafins de comprovação da conduta delitiva, apenas e tão-somente, o res-pectivo exame pericial”10.

Nessa linha de raciocínio, é necessário concluir que técnicas cien-tíficas encontram obstáculo intransponível em nosso ordenamento emfunção do direito à não-auto-incriminação e especialmente do princípio

8 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O direito à prova no Processo Penal. Tese (Livre-docência)– Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. p. 113-115.9 Art. 306 do CTB.10 STJ, 5.ª T., RHC n. 13.215/SC, rel. Min. Felix Fischer, j. em 15.4.2003, DJU de 26.5.2003, p. 368.

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da presunção da inocência. É o que sustenta, mais uma vez, osupracitado autor: “A aplicação de modernas técnicas científicas ao ter-reno da prova também suscita uma problemática que tem relação coma matéria examinada nos tópicos anteriores: trata-se da admissibilidadede intervenções corporais no acusado, com o objetivo de obter materialpara exames laboratoriais destinados a fornecer dados probatórios; otema é sugerido há algum tempo pelos testes alcoométricos e, maisrecentemente, pelos exames de DNA. (...) Mas, o que se deve contestarem relações a essas intervenções, ainda que mínimas, é a violação dodireito à não auto-incriminação e à liberdade pessoal, pois se ninguémpode ser obrigado a declarar-se culpado, também deve ser asseguradoo seu direito a não fornecer provas incriminadoras contra si mesmo. Odireito à prova não vai ao ponto de conferir a uma das partes no proces-so prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de escolha da outra;em matéria civil, a questão tem sido resolvida segundo as regras dedivisão do ônus da prova, mas no âmbito criminal, diante da presunçãode inocência, não se pode constranger o acusado ao fornecimento des-sas provas, nem de sua negativa de inferir a veracidade do fato”11.

Essa rápida visão da doutrina constitucional e processual penalbrasileira demonstra claramente os percalços os quais surgiriam emfunção de eventual constrangimento imposto ao condutor para que produ-zisse prova contra si mesmo. Idêntica conclusão poderíamos extrair deeventual ilícito administrativo criado para punir a recusa a tal colaboraçãodo condutor. Ora, se o direito à não-auto-incriminação adquiriu um statusconstitucional, é evidente que nenhuma outra regra, muito menos de cu-nho administrativo, pode servir de instrumento de persuasão para que oindivíduo viole as suas próprias convicções e, especialmente, os seusdireitos fundamentais. Se assim ocorre no campo administrativo, igual-mente sucederá no Direito Penal, porquanto inadmissível a configuraçãode crime de desobediência12 em razão de o condutor negar a sua colabo-ração para a realização dos testes de embriaguez.

11 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit. p. 120.12 Art. 330 do Código Penal. Nesse sentido, a jurisprudência é antiga em termos da inexistênciade crime, como demonstram antigos arestos (RT 435/413; RJDTACrimSP 9/171).

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Uma incursão na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quantoà aplicação do direito à não-auto-incriminação, revela de igual forma aaversão aos meios de prova os quais violem tal garantia, destacando,especialmente na primeira ementa, a impossibilidade de que o PoderPúblico imponha medidas contra quem exerce tal prerrogativa. Vejamos:

“Ementa: Comissão Parlamentar de Inquérito – privi-légio contra a auto-incriminação – direito que assistea qualquer indiciado ou testemunha – impossibilida-de de o poder público impor medidas restritivas aquem exerce, regularmente, essa prerrogativa – pe-dido de habeas corpus deferido. O privilégio contra aauto-incriminação – que é plenamente invocável pe-rante as Comissões Parlamentares de Inquérito – tra-duz direito público subjetivo assegurado a qualquerpessoa, que, na condição de testemunha, de indicia-do ou de réu, deva prestar depoimento perante ór-gãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou doPoder Judiciário. O exercício do direito de permane-cer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dis-pensarem qualquer tratamento que implique restri-ção à esfera jurídica daquele que regularmente invo-cou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. Odireito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhe-cido a qualquer pessoa relativamente a perguntascujas respostas possam incriminá-la (nemo teneturse detegere) – impede, quando concretamente exer-cido, que quem o invocou venha, por essa específicarazão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelosagentes ou pelas autoridades do Estado. Ninguémpode ser tratado como culpado, qualquer que seja anatureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sidoatribuída, sem que exista, a esse respeito, decisãojudicial condenatória transitada em julgado. O princí-pio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sis-tema jurídico, consagra uma regra de tratamento que

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impede o Poder Público de agir e de se comportar,em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciadoou ao réu, como se estes já houvessem sido conde-nados definitivamente por sentença do Poder Judici-ário. Precedentes”13.

“Ementa: I. CPI: nemo tenetur se detegere: direito aosilêncio. Se, conforme o art. 58, § 3.º, da Constitui-ção, as comissões parlamentares de inquérito, de-têm o poder instrutório das autoridades judiciais – enão maior que o dessas – a elas se poderão opor osmesmos limites formais e substanciais oponíveis aosjuízes, dentre os quais os derivados das garantiasconstitucionais contra a auto-incriminação, que temsua manifestação mais eloqüente no direito ao silên-cio dos acusados. Não importa que, na CPI – a qualtem poderes de instrução, mas nenhum poder de pro-cessar nem de julgar – a rigor não haja acusados: agarantia contra a auto-incriminação se estende a qual-quer indagação por autoridade pública de cuja res-posta possa advir à imputação ao declarante da prá-tica de crime, ainda que em procedimento e foro di-versos. Se o objeto da CPI é mais amplo do que osfatos em relação aos quais o cidadão intimado a de-por tem sido objeto de suspeitas, do direito ao silên-cio não decorre o de recusar-se de logo a depor, massim o de não responder às perguntas cujas repostasentenda possam vir a incriminá-lo: liminar deferidapara que, comparecendo à CPI, nesses termos, pos-sa o paciente exercê-lo, sem novamente ser presoou ameaçado de prisão. II. Habeas corpus prejudica-do, uma vez observada a liminar na volta do pacienteà CPI e já encerrados os trabalhos dessa”14.

13 STF, HC n. 79.812/SP, rel. Min. Celso de Mello, j. em 8.11.2000, DJU de 16.2.2001, p. 21.14 STF, HC n. 79.244/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 23.2.2000, DJU de 24.3.2000, p. 38.

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Assim, se é certo que o condutor de veículo automotor podevalidamente opor-se aos exames de dosagem alcoólica ou de utiliza-ção de substâncias entorpecentes ou psicotrópicas, vislumbro diantedessa realidade brasileira uma única saída: a otimização dos meiospara a realização do exame clínico, cuja elaboração independe, emregra, da colaboração do motorista. Com efeito, dispõe o art. 277 doCTB: “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente detrânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita dehaver excedido os limites do artigo anterior, será submetido a testesde alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por mei-os técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN,permitam certificar seu estado” (grifos nossos).

Pois bem. Ainda que o condutor exerça o direito à não-auto-incriminação, é possível, diante dos indícios configuradores de crimede trânsito (art. 306 do CTB), encaminhá-lo à autoridade de políciajudiciária a qual, de imediato, expedirá a requisição para o exame clíni-co. Em razão da pesquisa do médico oficial, será possível aferir se ocondutor dirigia, de forma anormal, sob o efeito de álcool ou substân-cia análoga, o que se mostrará suficiente para a configuração do art.306 do CTB, haja vista ser desnecessário estabelecer, para efeitospenais, a dosagem de concentração do álcool no organismo do con-dutor. Como ensina a doutrina, basta a prova da ingestão dessas subs-tâncias e a influência por elas exercidas na forma de condução doveículo automotor em via pública. Constatando-se o comportamentoanormal à direção – ziguezagues, velocidade incompatível com a se-gurança etc. – já será possível a imposição de sanções penais (art.306). Ressalto que, no exame clínico, serão observados: hálito,motricidade (marcha, escrita, elocução), psiquismo e funções vitais,entre outras pesquisas médicas, cuja realização, em vários casos,independerá da colaboração do condutor do veículo automotor.

É bem verdade que dificuldades práticas envolvem o exame clí-nico, sendo elas as responsáveis pelo baixo estímulo demonstradopelas autoridades policiais e seus agentes na sua realização. Confor-me constatamos no Curso de Aperfeiçoamento aos Policiais Rodoviá-rios Federais, realizado no Complexo Jurídico Damásio de Jesus (São

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Paulo, 2002), o deslocamento da guarnição policial até as Delegaciasde Polícia e ao Instituto Médico Legal enseja um longo tempo para oencerramento da ocorrência e, especialmente nas rodovias federais, naausência de vigilância por período prolongado. Esses fatos, porém, nãopodem servir de desculpa e, principalmente, de inércia para o PoderPúblico. Bastaria o deslocamento de médicos legistas aos locais defiscalização para a realização imediata dos exames, conduzindo-se oscondutores aos Distritos Policiais para a lavratura do auto de flagranteno caso de resultados positivos no exame clínico. Nas cidades, a solu-ção também pode ser a mesma ou, em virtude de menores distâncias edo maior contingente de policiais militares, a imediata requisição de exa-me nos Distritos Policiais. Basta, a nosso ver, qualificar os agentes daautoridade policial e estimulá-los a realizar os procedimentos necessá-rios, sempre à luz das garantias e de direitos fundamentais.

ADENDO

MEDIDAS DE PREVENÇÃO

Na maioria dos Países, são recomendadas as seguintes medi-das no sentido de prevenir a ocorrência de crimes automobilísticosrelacionados com a ingestão de álcool:

· aumento de idade para o consumo de bebidas alcoólicas;

· aumento na incidência de impostos para comercialização (comelevação do preço final);

· restrição para funcionamento, locais e horários para estabele-cimentos que comercializam bebidas alcoólicas;

· emprego aleatório do “bafômetro” ou de instrumentos de medi-ção do consumo, observadas as determinações legais;

· inspeção veicular (adotada em vários Países, como a Suécia,desde 1965).

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PROPOSTAS RELACIONADAS AO BRASIL

· Inspeção veicular obrigatória anual (que tem por objetivo a veri-ficação das condições do veículo para trafegar).

· Inspeção veicular obrigatória aleatória (a qual tem por objetivo averificação das condições do veículo, do condutor e dos passageiros).

Essa inspeção poderia, a exemplo do que ocorre na Suécia, sernormatizada em lei federal, mas executada por órgãos estaduais, in-cluindo representantes da Secretaria Estadual da Saúde, represen-tantes da Secretaria Estadual da Segurança Pública, representantesde Municípios, representantes da Polícia Civil, representantes da Polí-cia Militar, representantes do Corpo de Bombeiros, representantes dasempresas de seguros, representantes de associações de motoristasprofissionais (liberais), representantes de associações de empresasde transporte, representantes de empresas concessionárias de rodo-vias estaduais e federais.

A composição cumpriria ser de 60% dos membros ligados a ór-gãos públicos; 40% dos membros ligados à iniciativa privada, deferin-do-se a execução à Polícia Militar Rodoviária (Estadual ou Federal).

Aos Municípios deveria ser delegada a fiscalização dos limitesurbanos (art. 23, III, do CTB, que atribui às Polícias a tarefafiscalizadora). O “Colégio” seria o órgão competente para:

· processar eventuais recursos;

· sugerir alterações na legislação nacional de trânsito;

· desenvolver campanhas de prevenção;

· celebrar convênios (com os Municípios) para a delegação deatividades de fiscalização;

· fixar programa de atividades fiscalizatórias: locais, horários, fre-qüências. A fiscalização (inspeção aleatória) poderia ser realizada empraças de pedágio e trevos de acesso aos Municípios, envolvendo autilização de “bafômetros” ou de outros instrumentos de aferição.

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PUBLICIDADE DE PRODUTOS ALCOÓLICOS

Medidas:

· vedação à utilização de menores;

· vedação à associação a esportes;

· vedação à associação a entretenimentos.

A publicidade deve orientar-se pela difusão do produto, suas ca-racterísticas, mas de maneira responsável, sem que contenha ou em-pregue qualquer apelo de consumo, sobretudo para adolescentes. Atu-almente, o Conar15 estabelece vedação à participação de pessoas deaté 25 anos, a utilização de símbolos, imagens, recursos gráficos douniverso infantil e o uso de imagens associadas à prática de esportes,dentre outras regras. Ao final das mensagens publicitárias, exige-se ainserção de “cláusula de advertência” (exemplo: “Evite o consumo ex-cessivo”). Dentre as inserções obrigatórias, apenas uma é relaciona-da à prevenção de acidentes automobilísticos (“Se beber, não dirija”).

Damásio de Jesus,

presidente e professor do Complexo Jurídico Damásio deJesus, doutor honoris causa em Direito pela Universidade de

Estudos de Salerno (Itália), diretor-geral da FDDJ,membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do

Comércio do Estado de São Paulo

15 O Conar é um órgão de auto-regulamentação que busca orientar a atuação no setor publicitário,à revelia da fiscalização estatal, ou seja, trata-se de mecanismo de controle efetuado pelo merca-do, por seus representantes. A atuação do Conselho não exclui, evidentemente, a do Judiciário ea possibilidade de ação coletiva para, por exemplo, evitar a divulgação de campanhas publicitá-rias que ignorem os riscos do alcoolismo na condução de veículos automotores. E há hipótesesgraves. O Conar apreciou, em abril de 2003, reclamação dirigida contra campanha de cerveja porincitar o seu consumo. Na propaganda, numa sala de aula, os alunos tinham à sua disposição latasde cerveja sob a mesa. O professor repetia uma frase em inglês e, ao final, todos consumiam abebida. Ao mesmo tempo, em casa, assistindo à cena, um consumidor saía de casa e se dirigia aum bar para consumir cerveja daquela marca. É interessante notar que, além da relação tipica-mente de adolescentes, jovens e professores, o ambiente da sala de aula era inadequado para aassociação do aprendizado com a bebida (escola – bebida). Ainda mais grave, o espectador saíade casa tendo em suas mãos as chaves de um automóvel. Pelo visto, voltaria para casa dirigindo.

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pedro carlos garutti

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TRANSAÇÃO PENAL E SUSPENSÃOCONDICIONAL DO PROCESSO

Pedro Carlos Garutti

1. Já há alguns anos temos observado que a doutrina, informandomal sobre a Lei 9.099/95, criou entraves desnecessários para a juris-prudência e a boa aplicação desta lei. Discussões acaloradas e intermi-náveis ocorram e ocorrem entre os operadores do direito sobre a natu-reza jurídica de vários institutos previsto na mencionada lei – que “cu-nhou um sistema próprio de justiça penal consensual que não encontraparalelo no direito comparado”1 - e, conseqüentemente, lavrando inten-so dissídio sobre os seus alcances e limites. As dúvidas de hermenêuticativeram origem e seguimento única e exclusivamente devido ao açoda-mento interpretativo inicial, levado, em alguns casos, pelo manifestoequivoco do legislador em englobar numa mesma ordenação jurídicasituações independentes e, sobretudo, muito pouco relacionadas, comoé o caso da pena antecipada e da suspensão condicional do processo.

A Constituição Federal (art. 98) permitiu a transação penal sóquanto às infrações penais de menor potencial ofensivo deixando asua definição para a lei ordinária.

De lá para cá o legislador tem procurado conceituar as “infra-ções de menor potencial ofensivo”, ora mostrando clara a sua inten-ção, ora metendo os pés pelas mãos, em todo caso apontando nítidae insofismável a tendência para o alargamento contínuo e inexoráveldo seu conceito.

Colhe-se da Lei 9.099/95, realmente uma revolução na JustiçaCriminal,2 que se considera infração de menor potencial ofensivo aquelacuja pena máxima é de um ano de prisão; que não tenha rito especial;

1 Ada Pellegrini Grinover e outros, “Juizados Especiais Criminais”, p. 14.2 Antônio Scarance Fernandes, “Processo Penal Constitucional”, p. 199.

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onde haja citação pessoal – a presença do autor do fato é indispensá-vel - e não se trate de caso de maior complexidade.

Reunidas estas condições, tem aplicação a Lei 9.099/95.

Compreende-se o cuidado do legislador em restringir ao máxi-mo os casos que iriam ao Juizado Especial Criminal, medida justificadaem se tratando da inauguração de uma nova forma de justiça criminal(consensual), desconhecida de muitos e de conseqüências ignora-das por todos.

A cautela se mostrou desnecessária pois desde o início as nor-mas despenalizadoras se revelaram um sucesso e o Juizado Espe-cial Criminal uma promissora forma de solução consensual do con-flito de interesses. Afastados os temores iniciais, veio a lume a Leido Juizado Especial Criminal Federal (Lei 10.259/01) alargando so-bremaneira o conceito de infração de menor potencial ofensivo paraabranger aquelas até dois anos de pena máximama:, silenciandosobre os ritos especiais.

Em boa hora o conceito federal foi estendido à esfera estadual(pela jurisprudência), possibilitando que maior número de casos fos-sem resolvidos pela justiça consensual. Damásio entende que a Lei10.259/01 derrogou o art. 61 da Lei 9.099/95 3.

O Código de Trânsito já havia possibilitado a transação em algu-mas formas delituosas apenadas em até três anos.

A recente Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), manda aplicar oprocedimento da Lei 9099/95 aos seus crimes que não ultrapassem aquatro anos de pena máxima.

Não precisa ser um adivinho para, a esta altura, se prever que oalargamento do conceito de “infração de menor potencial ofensivo” éuma questão de tempo. E assim deverá ser pois o Juizado EspecialCriminal vem dando os melhores frutos, suplantando em muito a nos-sa formalista e sempre morosa Justiça tradicional. De modo quemais e mais casos serão remetido à sua competência.

3 Damásio E. de Jesus, “Juizado Especial Criminal”, in Caderno Jurídico da Escola Superior doMinistério Público de São Paulo, vol. 2, outubro de 2002, p. 58. O festejado autor trás umextenso rol de juristas que se posicionam no mesmo sentido.

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Então, se a Lei 9.099/95 vai alargar a sua abrangência, cuidan-do não só dos “crimes de bagatela”, mas alçando horizontes maisamplos, se faz mister aprofundar e definir com total segurança oslimites de atuação dos operadores do direito quando dela cuidam, so-bretudo para evitar incertezas que tanto prejudicam a boa aplicação daJustiça. É preciso determinar com exatidão qual o papel do MinistérioPúblico e do Juiz nos dois institutos controversos.

2. É possível, com amplo apoio doutrinário, definir-se transaçãopenal4 como:

Acordo de vontades entre as partes, acusador e autor dofato5, com concessões recíprocas, visando solucionar consensual-mente um conflito de interesses criminal.

O seu fundamento está no poder discricionário regrado do Minis-tério Público6 de um lado e o princípio da autonomia da vontade doautor do fato de outro.

Sempre é bom recordar que poder discricionário regrado é a fa-culdade de operar ou deixar de operar dentro do campo fixado pelodireito e o hoje tão decantado princípio da autonomia da vontade doautor do fato é o sustentáculo da justiça consensual.

A questão primordial, segundo pensamos, é estabelecer comprecisão onde há e onde não há transação penal nos institutos con-templados pela Lei 9.099/95. Como deixamos assente no título destaexposição, por ora só nos cuida a pena antecipada e a suspensãocondicional do processo.

4 Ada Pellegrini Grinover e outros, op.cit. , p. 63.5 A melhor denominação seria “investigado”, “averiguado” ou equivalente.6 Conclusão 3.1 da Escola Paulista do Ministério Público: “A transação penal é instituto jurídiconovo, que atribui ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública a faculdade dedela dispor, desde que atendidas as condições previstas na Lei, propondo ao autor da infração

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3. Na PENA ANTECIPADA (art. 76) há transação penal7 poispreenche integralmente a sua conceituação, ou seja, um acordo devontades das partes, visando por fim à demanda, com perdas e ga-nhos recíprocos.

Fixada esta premissa, há que se tirar dela as conclusões legaispossíveis e necessárias de maneira que se mantenha o sistema raci-onal de distribuição de justiça e, sobretudo, não se fira os princípiosnorteadores de Processo Penal.

Como se sabe, a transação constituiu uma mitigação do princí-pio da obrigatoriedade da ação penal que já era aceita em casos deirrelevância (bagatela) e política criminal (ex.: briga de casal).

Agora, abriu-se ao Ministério Público uma opção na forma dereação ao delito que anteriormente não havia: pena antecipada ou de-núncia. Compete ao órgão acusador escolher, dentro dos padrões fi-xados na lei, a forma de combater a ocorrência delituosa. Se bem quea política de reação ao delito não possa ficar na dependência exclusivado Promotor de Justiça, não é menos verdade que se lhe deva reco-nhecer uma certa liberdade de atuação (discricionariedade). O “pode-rá” do texto não indica mera faculdade, mas um poder-dever do Minis-tério Público.8 Não obstante, o acusador deve ter alguma liberdade naapreciação dos casos que lhe são submetidos à análise.

De maneira estupenda, Mário Masagão definiu a discreção:“como a faculdade de operar, ou deixar de operar, dentro de umcampo sempre delimitado pelo direito”9 sendo esta idéiacomplementada por Celso Antônio Bandeira de Mello10. Ambos osmestres enfatizam a necessidade de que o agente tenha uma certaliberdade de ação, se bem que dentro dos limites impostos pela lei.

7 Júlio Fabbrini Mirabete, “Juizado Especiais Criminais”, p. .83.8 Ada Pellegrini Grinover e outros, op.cit., p. 125.9 “Direito Administrativo”, p. 138.10 “Atos discricionários seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade deavaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por elamesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles”, (in “Curso de Direito Adminis-trativo”, p..383).

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Pois bem. Na pena antecipada (mitigada) temos de um lado o atodiscricionário do Promotor de Justiça; e de outro seria sustentável atese de que o autor do fato teria direito subjetivo a esta pena? Haveriadireito subjetivo de alguém de ser apenado de uma determinada forma?

O conceito de direito subjetivo é tido como difícil e complexo:“Consiste na possibilidade de agir e de exigir aquilo que as nor-mas de direito atribuem a alguém como próprio”11.

A pergunta engloba a seguinte questão: se de um lado existepoder discricionário regrado poderia haver, em contrapartida, de outro,direito subjetivo de alguém? Parece-nos que a resposta há que sernegativa. Como falar-se em direito de “agir e exigir” algo que se insereno poder discricionário de outrem? O único direito do autor do fato éexigir um posicionamento justificado do Ministério Público propondo ounão a pena antecipada. Só.

Em síntese. Inexistindo direito subjetivo à pena antecipada nãohá que se invocar a proteção ou tutela jurisdicional consistente na pro-posta judicial substitutiva.

Desta forma, às vezes, mesmo preenchidas as condições pre-vista na lei, o Promotor de Justiça entende de forma fundamentadaque não é caso de pena antecipada. Se o juiz dele discordar não teráoutra alternativa a não ser utilizar, por analogia - permitida em proces-so penal - do preceito do art. 28 do Código de Processo Penal que, sede início visava o controle judicial do princípio da obrigatoriedade, hojeconfigura também “o amplo controle judicial da atividade ampla doMinistério Público dentro do processo”. Mirabete denomina esta fun-ção do juiz de “anormal, a de velar e fiscalizar o princípio daobrigatoriedade da ação penal pública”12.

Fora deste contexto haverá sublevação dos princípios nortea-dores de processo penal13.

11 Paulo Nader, “Introdução ao Estudo do Direito”, p. 372.12 “Processo Penal”, p. 105.13 Diz Afrânio Silva Jardim que: “Assim, o processo passaria a ter apenas dois sujeitos: o MinistérioPúblico não proporia a transação e o juiz o faria, ficando uma relação processual linear, o quesubverteria o sistema acusatório, o princípio da demanda” (in “Direito Processual Penal”, p.. 339).

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A proposta judicial de pena antecipada não encontra respaldojurídico e nem lógico dentro da sistemática do Juizado Especial Crimi-nal simplesmente porque o juiz não é parte e portanto não podetransacionar. Ele não tem o que transacionar. O juiz exerce a funçãojurisdicional do Estado, competindo-lhe a solução do conflito de inte-resses dentro do processo 14, sempre se colocando “entre as parte eacima delas”15. Tourinho Filho adverte que as funções das partes edo juiz são absolutamente distintas: “Para compor a lide, o órgão in-vestido do poder jurisdicional é distinto das pessoas ou órgãos titula-res do direito subjetivo em jogo”16 e adverte: “O Estado-Juiz, comoórgão superpartes e destas eqüidistantes, é quem soluciona o litígio”17.Em conclusão: não sendo parte não poderá transacionar.

Aí abalizadas opiniões em contrário perguntarão: como fica odireito do autor do fato? Respondemos com outra pergunta: direito aquê? A ser denunciado, a não ser denunciado ou a receber uma pena?Não tem sentido. Neste momento se está optando por uma forma dereação ao delito sem que se possa falar em direito subjetivo.

O juiz não pode fazer a proposta porque não é parte na relaçãojurídica e nem tem a iniciativa da ação penal. A jurisdição é inerte. Se ojuiz aplicar a pena antecipada contra a vontade do Ministério Públicoocorrerá o que se chama de “jurisdição sem ação” ou movimentaçãoex officio da jurisdição “hoje proibida em nível constitucional para aação penal pública”18.

Estamos numa FASE EXTRAPROCESSUAL. Ainda não foi ins-taurado o processo penal donde ser o Ministério Público o “dominuslitis”. Nem por isso a figura do juiz sofre qualquer “capitis diminutio”.Relevante é também a sua atuação nesta fase: aconselhando, cortandoarestas, fiscalizando, etc. Mas não se chega a ponto de poder substituira vontade de uma das partes. O juiz nunca é parte numa transação.

14Júlio Fabbrini Mirabete, “Processo Penal”, p..28.15Antônio Carlos de Araújo Cintra e outros, “Teoria Geral do Processo”, p. .24.16 Fernando da Costa Tourinho Filho, “Processo Penal”, vol 2, p. 47.17 Ibidem, vol.4, p. 6.18 Ada Pellegrini Grinover e outros, op.cit., p. 126.

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Damásio também entende que o juiz não pode fazer propostaao autuado nem lhe aplicar, imediatamente, pena restritiva de direitosou multa19.

Todavia, é bom deixar assente, que o “Forum permanente deJuizes Coordenadores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais doBrasil” – XIV encontro de São Luiz - aprovou o:

Enunciado 6: O art. 28 do CPP é inaplicável no caso de nãoapresentação de proposta de transação penal ou de suspensão condi-cional do processo, cabendo ao juiz apresentá-las de ofício, quandosatisfeitos os requisitos legais.

Isto porque a jurisprudência ultimamente tem se inclinado a verem tudo “direito subjetivo do réu”, sem argumentos ponderáveis, oque se nos afigura um despropósito.

PRIMEIRA CONCLUSÃO:

NA TRANSAÇÃO PENAL, ENTENDIDA COMOPENA ANTECIPADA, O JUIZ NÃO PODE FAZER A PRO-POSTA E NEM DEIXAR DE HOMOLOGAR O ACORDODAS PARTES.

DISCORDANDO DO PROMOTOR DE JUSTIÇADEVE SE SOCORRER DO ART. 28 DO CÓDIGO DEPROCESSO PENAL.

4. A determinação da natureza jurídica da SUSPENSÃO CON-DICIONAL DO PROCESSO20 é das mais complicadas e difíceis la-vrando-se intensa divergência na doutrina com reflexos negativos najurisprudência.

19 Damásio E. de Jesus, “Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada”, Saraiva, p. 81.

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Na verdade, a indagação que interessa é se na suspensão condi-cional do processo há transação penal? A nossa resposta é negativa.

Grinover e outros afirmam textualmente que “na suspensãocondicional do processo há transação... Mais particularmente pode-mos afirmar a presença da denominada conformidade processual”definida como a “aceitação de algo que reflete imediatamente sobre oprocesso” e mais “De qualquer modo, é indiscutível que também naconformidade processual há transação, porque o acusado abre mãode uma série de direitos e garantias fundamentais, em troca da expec-tativa de ver extinta a punibilidade depois de um certo período. Tanto oMinistério Público como o acusado cedem. O primeiro dispõe sobre oprosseguimento da persecução penal, o segundo sobre uma parcelados seus direitos e garantias”21. Na suspensão haveria uma transaçãoconsensual bilateral.

Mirabete diz que a suspensão condicional do processo é uma“transação processual” e que por isso não pode ser de iniciativa dojuiz. Argumenta que somente o Ministério Público é o titular da açãopenal pública, afastada a sua disponibilidade por parte do juiz22 .

Marino Pazzaglini Filho e outros seguem a mesma linha da“transação processual”, que somente é possível em virtude de con-senso entre o Ministério Público e o acusado. O consenso é o avalisadorda suspensão condicional do processo23. No mesmo sentido VictorEduardo Rios Gonçalves24.

Meditando sobre o novel instituto chegamos à conclusão de quefoge inteiramente à característica transacional. Isto porque não há acor-do sobre as condições impostas ao acusado. O art. 89 torna obrigató-rias as condições legais ali estipuladas, não possibilitando a menordiscussão sobre elas: ou se aceita ou não. Ora, em vista disso, o réu

20 Faça se justiça aos autores desta brilhante idéia: Weber Martins Batista e Luiz Fux (“JuizadosEspeciais Cíveis e Criminais e suspensão condicional do processo”, p. 354-362).21 Ob.cit. p. 190.22 “Juizados Especiais Criminais”, p. 144.23 Marino Pazzaglini Filho e outros, “Juizado Especial Criminal”, p. 95.24 “Juizados Especiais Criminais”, p. 57.

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é colocado ante uma situação predefinida da qual não pode discordarou fazer uma contraproposta. Onde a transação? Como diz Luiz Flá-vio Gomes: “o consenso necessário, imprescindível é do acusado, édizer, unilateral” (grifos no original)25, não havendo necessidade deconsenso mútuo, ou seja, aquiescência por parte do órgão acusatório.

A confusão ocorreu inicialmente, a nosso ver, porque a suspen-são condicional do processo veio a lume em local inadequado. A leiturado art. 89 da Lei 9.099/95 evidencia tratar-se de uma regra geral abran-gente de todos os tipos de delitos e procedimentos criminais, desdeque preenchidos alguns requisitos. Ora, em se tratando de uma regrageral deveria ter sido formulada num diploma de caráter geral, que dis-ciplinasse ou reformulasse o Código de Processo Penal ou a partegeral do Código Penal. Transação penal e suspensão do processosão institutos assemelhados, mas não idênticos.

Inserto na Lei 9.099, o art. 89 deu a impressão errada, data vê-nia, de fazer parte da justiça consensual e obedecer aos princípios datransação penal26. Se é certo que se trata de uma medida despenali-zadora, não é menos certo que foge completamente à idéia de acordode vontades, pelo menos bilateral. Que acordo seria este se as partesnão podem transigir sobre os aspectos primordiais do ajuste, ou seja,sobre as condições da suspensão?

Todavia, se estes argumentos não convencem satisfatoriamen-te, lembremos, então, que a Constituição Federal somente permitiu atransação para as infrações de menor potencial ofensivo. Ora, a sus-pensão condicional do processo abrange outros tipos de crimes maisgraves, por exemplo: o furto é passível de suspensão condicional deprocesso e não é infração penal de menor potencial ofensivo segundoas definições legais. Conclusão, a suspensão condicional de proces-so não pode ser entendida como transação. Se o fosse, não poderiaser aplicada aos crimes de furto.

25Luiz Flávio Gomes, “Suspensão Condicional do Processo”, p. 148.26 Conta-se à boca pequena que os autores do projeto não estavam bem certos da aprovaçãodeste tópico, embora convencidos de sua excelência. Daí o seu regramento em apenas umartigo para não chamar muita atenção dos legisladores...

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É bem verdade que a concordância do réu é imprescindível nasuspensão: consenso unilateral, segundo Luiz Flávio Gomes27. Masisto é lógico pois é ele quem irá cumprir as condições. Se estas condi-ções fossem impostas à revelia do interessado não atingiriam qual-quer finalidade prática pois não seriam cumpridas. Mas daí não se podeconcluir tenha havido transação na outorga da suspensão.

Expurgada da suspensão condicional do processo a idéia de tran-sação penal, resulta claro que se trata de um “incidente processual”como qualquer outro, muito embora com repercussões penais, está claro,já que cumpridas as suas condições, acarretará a extinção dapunibilidade. É muito importante a conclusão de que na suspensão nãohá transação porque, em contrapartida, resulta nítida a presença de umdireito do réu. Se não é transação é direito público subjetivo proces-sual do acusado, posição largamente defendida com raro brilhantismopor Luiz Flávio Gomes28, que encontra no art. 129, I da ConstituiçãoFederal o seu fundamento constitucional quando afirma que o MinistérioPúblico é o detentor exclusivo da ação penal pública, na forma da lei.Não se esquecer que sendo direito subjetivo poderá eventualmente seramparado por “habeas-corpus”29.

Assim, ficam salvaguardados os legítimos interesses do réu semmenosprezar as relevantes funções do Ministério Público tudo em con-formidade com o sistema jurídico processual penal brasileiro.

Consequentemente, em sendo direito público subjetivo30 do réudeverá ser tutelado pelo órgão jurisdicional quer haja ou não propostade suspensão pelo Ministério Público. Esta, na realidade, é a primordi-al característica da jurisdição: solucionar a lide deduzida em juízo. Entreduas posições antagônicas, ambas devidamente fundamentadas, ouseja, entre a pretensão do réu em ver o processo suspenso e a resis-tência do Promotor de Justiça em fazer a proposta, o juiz há que deci-dir qual é o interesse juridicamente protegido pela norma legal.

27 Op.cit. p. 148.28 Op.cit. p. 153.29 Neste sentido: “Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais” de Joel DiasFigueira Júnior e Maurício Antônio Ribeiro Lopes, p. 7.30 Neste sentido: Jesus, Damásio E., “Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada”, p. 108.

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O campo em que se discute a suspensão do processo é dife-rente daquele da pena antecipada. Nesta, a fase é extraprocessual edeve haver consenso bilateral das partes e implica em aceitação deculpa31. Do acordo resultará a imposição de uma pena criminal quetem a sua legitimidade assentada no princípio da autonomia de vonta-de do autor do fato e no poder discricionário regrado do Ministério Pú-blico. Na suspensão do processo já foi instaurada a ação penal com ooferecimento e recebimento da denúncia; tem a natureza do “nolocontendere”32 e só se exige a concordância do réu (consenso unilate-ral). Isto é relevante na medida em que o juiz passa a ser o “dominusprocessus” com poderes de: fiscalização, movimentação e decisão.Na fase extraprocessual não há como o juiz substituir a vontade deuma das partes pois ainda não há verdadeiramente jurisdição. Daí nãopoder fazer a proposta de pena antecipada. Agora, a situação se in-verte, tudo se volta para a figura central do juiz pois a FASE É PRO-CESSUAL. Em havendo jurisdição, há substitutividade33, podendo ojuiz, à revelia do Promotor, suspender o andamento da ação penal.

Isto não implica em usurpação das funções ministeriais. O Pro-motor é o “dominus litis” e, como tal, JÁ exerceu na sua plenitude oseu poder-dever: deduziu a acusação em juízo. Provocou e movimen-tou a jurisdição que se exerce através do processo. Agora é a vez dojuiz decidir todos os incidentes ou questões processuais.

Tais conceitos sumamente conhecidos parecem esquecidosmomentaneamente quando, data vênia, se advoga a aplicaçãoanalógica do art. 28 do Código de Processo Penal para suprir a ausên-cia de proposta de suspensão do processo pelo Promotor de Justiça.Trocando por miúdos: dentro de uma ação penal em andamento,chama-se um órgão do executivo (Procurador Geral da Justiça) paradirimir uma controvérsia processual, com repercussões penais, queenvolve o “Ius libertatis” de uma pessoa, alijando o juiz de suas fun-ções, chamando-se uma das partes para decidir sobre o direito da

31 Luiz Flávio Gomes, . op. .cit., p. 199.32 Ada Pellegrini Grinover e outros, op. cit. p. 191.33 Antônio Carlos de Araújo Cintra e outros, op.cit. p.82.

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outra... Subverte-se a noção do “Trium personarum”...preconizado porBúlgaro. Quebra-se totalmente as noções básicas de direito. O juizfica submetido à vontade do Procurador Geral de Justiça que não temo menor poder ou função dentro de uma ação penal, muito menos emdetrimento do réu. Nem há necessidade de se invocar a norma cons-titucional de que não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciá-rio lesão ou ameaça de direito para se afastar a tese da aplicação doart. 28 nestes casos.

Na fase extraprocessual (pena antecipada) o Procurador Geral échamado porque o juiz não tem como dar início à ação penal sem oconcurso do órgão do Ministério Público que, constitucionalmente, é odetentor exclusivo da ação penal pública. A aplicação de pena anteci-pada contra a vontade do Promotor de Justiça configura jurisdição semação. Tem aplicação do art. 28.

Contudo, instaurado o processo, ao juiz cabe decidir todas asquestões de fato e de direito postas em juízo, estando proibido dedelegar suas funções a qualquer outro órgão34. O instituto da suspen-são ocorre dentro da ação penal. Inaplicável, pois, o art. 28. Por issoé que Tourinho Filho conclui que: “considerando a finalidade doinstituto o direito pretoriano haverá de permitir que o juiz propo-nha a suspensão ao acusado”35. E acrescenta: “trata-se de direitosubjetivo do réu” e “não se concebe deva o juiz limitar-se a aplicaro art. 28” porquanto seria uma pessoa “despida de qualquer poder”36.No mesmo sentido a lição de Damásio37.

O Magistrado pode suspender o processo contra a vontade doacusador sem ferir o direito do titular da ação penal. As respeitáveisopiniões em contrário se esquecem de que o juiz no exercício da juris-dição muitas vezes determina o arquivamento ou a extinção da ação

34Antônio Carlos de Araújo Cintra e outros, op.cit. p.87.35 Op. cit. vol 4, p. 55.36 Op. cit .vol. 4, p. 58.37 “O juiz, desde que presentes as condições legais, deve, de ofício, suspender o processo,cabendo recurso de apelação...Se o juiz pode aplicar de ofício a medida mais grave (sursistradicional) seria estranho que não o pudesse na mais leve” .(Damásio E. de Jesus, “Lei dosJuizados Especiais Criminais Anotada”, op. cit., p. 113).

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penal contra a vontade do Ministério Público quando, p.ex.: reconhecede ofício alguma causa de extinção da punibilidade; quando concede“HC” de ofício; ou a suspensão do processo em face do art. 366 doCódigo de Processo Penal; ou a suspensão do processo no caso deinstauração do incidente de insanidade mental do réu; e ainda a sus-pensão do processo por questões prejudiciais etc. Concorde ou não oMinistério Público o juiz assim delibera e não nos consta que se tenhaferido o direito do titular da ação penal. É sempre bom lembrar que atitularidade exclusiva da ação penal pública diz respeito ao seu impul-so inicial e não ao seu trâmite posterior. Também quando o juiz impe-de o exercício da ação penal e deixa de receber a denúncia obsta avontade do Ministério Público. Nunca ninguém discutiu esse poder.

Em suma, a determinação da suspensão do processo contraa vontade do Ministério Público não fere os direitos do titular da açãopenal.

5. A Lei Complementar Estadual n. 851/98, em seu art. 2638,tentou enfrentar e resolver o problema resultante do conflito entre oJuiz e o Promotor quanto à aplicação dos institutos da Lei 9.099/95.

No que tange à transação penal, parece-nos ter agido correta-mente, obedecendo ao sistema jurídico processual penal pátrio: noscasos em que o juiz não concorda com a transação proposta ou vice-versa, isto é, entenda ser caso de pena antecipada em desacordo como Ministério Público aplica-se o art. 28 do Código de Processo Penal(primeira conclusão deste trabalho).

No entanto, quanto ao instituto da suspensão condicional doprocesso, a Lei somente manda que se aplique o art. 28 nos casosem que o Juiz desacolhe a suspensão proposta pelo MP, silenciandosobre a outra possibilidade, isto é, no caso de recusa de proposta por

38 “Art. 26: Observar-se-á o procedimento previsto no art. 28 do Código de Processo Penal nosseguintes casos: I – se o Juiz deixar de acolher a proposta do Ministério Público prevista no art.76 da Lei federal 9.099/95; II - se o Juiz entender cabível a proposta mencionada no incisoanterior, não oferecida pelo Ministério Público; III – se o Juiz deixar de acolher a suspensão doprocesso proposta pelo Ministério Público, nos termos do art. 89 da Lei federal 9.099/95”.

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parte do Promotor. De maneira que a lei dá a entender que se o Pro-motor se recusar a fazer a proposta o juiz poderá fazê-la, não tendoaplicação o art. 28 (segunda conclusão deste trabalho).

Imagine-se a hipótese do Promotor formular a proposta de sus-pensão condicional do processo em flagrante ilegalidade. O réu con-corda. O juiz estaria obrigado a homologar o acordo? Parece-nos quenão. Manda a Lei Complementar Estadual n. 851/98 que o juiz apliqueo art. 28. Para o caso Tourinho Filho somente acena com o recursode apelação, fundado no art. 593, II do Código de Processo Penal39.

Esta hipótese é bastante complexa e de difícil solução jurídica. Aconclusão da Lei Complementar 851/98 parece-nos a única possível,se bem que a menção ao art. 28 do Código de Processo Penal se nosafigura incorreta, dentro do contexto processual penal pátrio. Houve im-precisão do legislador. O Ministério Público quer a suspensão. O juiz,discordando, pretende a continuidade da ação penal. Mas quem tocaráo processo já que o Promotor acha que deva ser paralisado? O juiz temo impulso oficial, mas isto não chega a ponto de dispensar a presençade uma das partes, o acusador, e nem pode nomear “ad hoc”, proibido anível constitucional (art. 129). O legislador foi obrigado a se servir doart. 28 para o deslinde da questão. Contudo, bastava por analogia aoque ocorre quando o Ministério Público não comparece à sessão doTribunal do Júri, por exemplo, (art. 448 do CPP), solicitar que a Procura-doria Geral designasse um representante do Ministério Público para ofi-ciar no feito40. O simples ofício à Procuradoria Geral já resolveria o caso.Mas, imagine-se a hipótese do Procurador Geral não fazer tal designa-ção por entender, acompanhando o Promotor, que é caso de suspen-são condicional do processo. A ação não poderá caminhar por falta deautor e nem está suspensa. Parece-nos que a única solução possível éa paralisação do processo e aguardar-se a prescrição.

A jurisprudência é vacilante havendo acórdãos nos mais varia-dos sentidos, inclusive do Supremo Tribunal Federal entendendo que

39 Op.cit. p. 56.40 Neste sentido: Júlio Fabbrini Mirabete, “Código de Processo Penal Interpretado”, p.. 1180.

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há transação na suspensão condicional do processo. Já o E. SuperiorTribunal de Justiça se inclina por reconhecer na suspensão do proces-so um direito público subjetivo do réu. Só o tempo dirá quem tem razão.

SEGUNDA CONCLUSÃO:

NA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSONÃO HÁ TRANSAÇÃO PENAL. O PROCESSO JÁ ESTÁINSTAURADO PELO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA.

PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS É DI-REITO PÚBLICO SUBJETIVO DO RÉU E, PORTAN-TO, O JUIZ PODE FAZER A PROPOSTA COM OU SEMA AQUIESCÊNCIA DO PROMOTOR DE JUSTIÇA.

NÃO CABE O ART. 28 DO CÓDIGO DE PROCES-SO PENAL.

Santos, agosto de 2004.

Pedro Carlos Garutti,

promotor de Justiça Aposentadoprofessor Universitário, advogado

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natureza jurídicanatureza jurídicanatureza jurídicanatureza jurídicanatureza jurídica dos crimes de dos crimes de dos crimes de dos crimes de dos crimes dearma de farma de farma de farma de farma de fogoogoogoogoogo

e assemelhados e assemelhados e assemelhados e assemelhados e assemelhados

césar dario mariano da silva

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NATUREZA JURÍDICA DOS CRIMESDE ARMA DE FOGO E ASSEMELHADOS

César Dario Mariano da Silva

Ansiosamente esperada, a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de2.003, mais conhecida como “Estatuto do Desarmamento” foi publicadae entrou em vigor na mesma data. Foram anos de acirrada discussãono Congresso Nacional, principalmente por causa dos grupos de pres-são ou “lobbies” dos fabricantes e comerciantes de armas. A lei foicriada com o propósito de diminuir a quantidade de crimes violentosem que há emprego de arma de fogo, principalmente os homicídios eroubos, além de possibilitar a prisão de assaltantes e outros marginaisantes da prática do crime.

Salientamos que a Lei nº 9.437/97 foi expressamente revogadapelo art. 36 do Estatuto.

O novo diploma legal, além de regulamentar a posse, o porte e ocomércio de armas de fogo, acessórios e munições no território naci-onal, criou uma série de crimes com o escopo de dar efetividade àssuas normas, punindo rigorosamente determinadas condutas graves.

Tratam-se de crimes de perigo abstrato e coletivo. Como crimesde perigo abstrato, não necessitam da demonstração de que efetiva-mente alguém foi exposto a perigo de dano, que é presumido de formaabsoluta pela lei, não admitindo prova em contrário. São, também, cri-mes de perigo coletivo (ou comum), uma vez que um número indetermi-nado de pessoas é exposta a perigo de dano. Assim, a objetividade jurí-dica dos delitos elencados no Estatuto é a incolumidade pública, ou seja,a segurança da sociedade como um todo, que deve ser preservada, evi-tando-se que bens jurídicos como a vida, a segurança e a integridadefísica da coletividade sejam lesionados ou expostos a perigo de dano.Em alguns crimes específicos, o Estatuto também protege a adminis-tração pública, como ocorre nos delitos descritos no art. 16, Parágrafoúnico, incisos I e II.

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Observamos que os crimes descritos no Estatuto prescindemda comprovação da ocorrência de perigo concreto, uma vez que aexperiência tem demonstrado que a posse ou o porte ilegal de armasde fogo, acessórios ou munições, ou outras condutas correlatas, colo-cam em risco a coletividade, sendo isso fato notório.

O sujeito passivo desses delitos será, via de regra, a coletivida-de (crime vago). Em alguns tipos penais poderemos ter pessoas de-terminadas como sujeito passivo secundário, como ocorre no disparode arma de fogo em via pública (art. 15).

Há corrente doutrinária entendendo que os delitos contidos noEstatuto são crimes de lesão e não de perigo, seja abstrato ou concre-to. Para esses doutrinadores, com a reforma penal de 1.984 e atualConstituição Federal, não pode mais existir em nosso direito qualquertipo de presunção, inclusive quanto a perigo. Como há necessidade deser demonstrado, dolo, culpa e culpabilidade, não se admite que hajapresunção sem efetiva demonstração de que houve realmente a ocor-rência de perigo (princípio da culpabilidade). Além disso, a presunçãode inocência vedaria o reconhecimento antecipado de culpa em senti-do amplo sem o necessário julgamento e advento de uma sentençacondenatória definitiva. De tal forma, quanto ao resultado jurídico, seri-am crimes de lesão, e quanto ao resultado naturalístico, seriam cri-mes de mera conduta (Cf. Damásio Evangelista de Jesus, Crimes dePorte de Arma de Fogo e Assemelhados, p. 11/12).

Considerando os delitos de arma de fogo como de lesão tere-mos dois planos de proteção superpostos:

1 - O plano A, em que as condutas são permitidas. Ex: venda deum psicotrópico com receita médica para aliviar a dor. Nesse caso, opsicotrópico atua como analgésico e seu uso é permitido pela lei, des-de que haja prescrição médica, como ocorre com a morfina. O cida-dão estará atuando de acordo com o direito e não estará rebaixando onível de segurança coletiva que é exigido pela legislação. Portanto, nãohá crime a ser punido.

2 – O plano B, em que as condutas são proibidas pela legislação.Nesse caso, o comportamento do sujeito está aquém do permitido e

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rebaixa o nível de segurança coletiva exigida pela legislação. Há, por-tanto, lesão ao interesse coletivo (incolumidade pública). Caso hajanorma tipificando essa conduta, teremos um ilícito penal. É o que ocorrenos delitos de armas de fogo, quando, por exemplo, o sujeito efetuadisparos em uma via pública, rebaixando o nível de segurança coleti-va, uma vez que qualquer pessoa da coletividade poderia, em tese,ser atingida pelo disparo.

Destarte, nos crimes de lesão não há simples perigo, mas efetivalesão ao objeto jurídico protegido pela norma. A coletividade como umtodo é lesionada, pois o nível de segurança coletiva exigido é rebaixado.Como nos ensina Damásio: “Os delitos de porte de arma e figuras cor-relatas são crimes de lesão porque o infrator, com sua conduta, reduz onível de segurança coletiva exigido pelo legislador, atingindo a objetivi-dade jurídica concernente à incolumidade pública. E são crimes de meraconduta porque basta à sua existência a demonstração da realizaçãodo comportamento típico, sem necessidade de prova de que o riscoatingiu, de maneira séria e efetiva, determinada pessoa”. (ob. cit, p. 14).

Nos crimes de lesão não se exige dano ao objeto material; háapenas lesão ao objeto jurídico tutelado pela norma sem a necessida-de do advento de resultado naturalístico, embora esse possa ocorrerem alguns casos. Os crimes vagos, de acordo com esse posiciona-mento, causam efetiva lesão ao objeto jurídico tutelado pela normapenal, não havendo necessidade, pois, de saber se houve perigo (abs-trato ou concreto) em determinada conduta. Assim, poderia ser de-monstrado, por exemplo, que o porte ilegal de arma de fogo defeituosanão causa lesão ao objeto jurídico por falta de potencialidade lesiva,sem se perquirir se crime de perigo abstrato admite, ou não, prova danão-ocorrência do perigo de dano em determinado caso concreto. Ade-mais, acabar-se-ia com a discussão doutrinária sobre as presunçõesno âmbito do direito penal.

Cuida-se, sem dúvida, de inovação em nosso direito, que sempreteve presente a diferenciação entre crime de perigo abstrato e concreto,notadamente em várias passagens no Código Penal e na legislaçãoespecial, como no Código de Trânsito Brasileiro e na Lei de Tóxicos.

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Preferimos, porém, continuar com o entendimento de que os cri-mes descritos no Estatuto do Desarmamento são de perigo abstrato,não necessitando da prova de sua ocorrência. Não entendemos, por-tanto, que haja violação ao princípio da culpabilidade ou da presunçãode inocência quando se presume a ocorrência de perigo em determi-nada conduta descrita pela legislação. Ora, a própria Constituição Fe-deral determina que o Legislador crie crimes e comine penas às con-dutas que sejam nocivas à sociedade. E este pode, dentro de suacompetência, elencar situações em que não há necessidade da de-monstração de perigo, eis que a experiência demonstra que elas sãoperniciosas à sociedade, sem se perquirir quanto à existência de víti-ma determinada ou de efetivo perigo de dano concreto há uma pessoaqualquer. Trata-se de opção política do Legislador para a real proteçãoda coletividade contra pessoas que poderão colocar em risco a segu-rança do grupo social ao praticar condutas típicas. Se houve a criaçãode tipos penais que sequer fazem menção à ocorrência de resultado,seja de dano ou de perigo, não cabe ao intérprete exigi-los, violando acompetência constitucional do Poder Legislativo.

Observamos, porém, que na segunda conduta descrita no art.16, parágrafo único, inciso II, do Estatuto, o crime é de dano e não deperigo.

Da mesma forma, não há violação ao princípio da culpabilidadeporque é exigido o dolo e culpa (em sentido amplo) para que a condutaseja tipificada penalmente e punida. Além disso, ninguém está sendoconsiderado culpado antes de uma sentença penal condenatória, tan-to que se exige o devido processo legal com todas as garantias cons-titucionais, como a ampla defesa e o contraditório.

Com efeito, esperamos que a nova legislação consiga, pelo me-nos, diminuir a sensação de insegurança existente na sociedade, quese vê desprotegida e acuada diante da criminalidade violenta.

César Dario Mariano da Silva,

8º PJ do II Tribunal do Júri

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celso augusto coccaro filho

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USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO:INSTRUMENTO DA POLÍTICA URBANA

Celso Augusto Coccaro Filho

Sumário: 1 – Introdução. 2 – Usucapião especial individual.2.1. Res habilis; 2.2. Tempo da posse e características daposse. 3 – Usucapião especial coletivo. 3.1. Constituciona-lidade; 3.2. Res habilis; 3.3. Legitimidade; 3.4. Posse; 3.5.Condomínio indivisível. 4 – Disposições comuns às duasmodalidades. 5 – Usucapião especial e meio ambiente.

1. INTRODUÇÃO

O Estatuto da Cidade, autodenominação da Lei n. 10.257, de 10de julho de 2001, inclui o1 usucapião especial de imóvel urbano entreos 18 institutos jurídicos e políticos que se alinham, ao lado dos planosde ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social,do planejamento das regiões e aglomerações metropolitanas, do pla-nejamento municipal, dos institutos tributários e financeiros e do estu-do prévio de impacto ambiental e estudo prévio de impacto de vizi-nhança, como instrumentos de consecução da política urbana,delineada no art. 182 da Constituição Federal.

1 O Estatuto da Cidade fez renascer questão de gênero, que já parecia sepultada. É difícilencontrar obra sobre esse assunto que não aborde o tema em seu intróito. JOSÉ CARLOS DEMORAES SALLES (Usucapião de bens imóveis e móveis. 3.ª ed. São Paulo: RT, [19-]. p. 29)antecede a recomendada adoção do brocardo Caesar non super grammaticos – quem o faz éTheotonio Negrão – com a coleta de opiniões divergentes de gramáticos, certamente consulta-dos por diferentes Césares: “Para o insigne Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o vocábuloseria do gênero feminino, de modo que se deveria dizer a usucapião. O ilustre Laudelino Freire,entretanto, afirma ser usucapião palavra do gênero masculino, de sorte que se imporia dizer ousucapião. No mesmo sentido, a opinião de Silveira Bueno”. Como resultado da diversidadeopinativa, o antigo Código Civil adotava o gênero masculino; a Lei n. 6.969/81 e o Estatuto daCidade, por seu lado, adotam o gênero feminino. Como se escreve sobre o último (e o recomen-da a mais agradável sonoridade), deveríamos aceitar o gênero feminino. Ocorre que o novoCódigo Civil manteve o gênero adotado pelo seu antecessor. Assim, para evitar a obviamente

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O usucapião especial de imóvel urbano é conduzido pelos obje-tivos nitidamente traçados na norma constitucional: deve servir aodesenvolvimento das funções sociais da cidade, ao bem-estar de seushabitantes e ao meio ambiente.

Como forma de aquisição da propriedade de bem imóvel, nasduas modalidades em que se apresenta, individual e coletiva, sua par-cela de contribuição à política urbana é afeita à função social da propri-edade, ao gerar a perda desse direito, para quem não o exerce, tendoem vista aquele escopo apriorístico, e sua aquisição, para quem agede forma coincidente à sua finalidade.

É antigo o debate sobre o fundamento do usucapião, contrapon-do-se teorias subjetivas às objetivas, como sói ocorrer no Direito Civil;mas, ao contrário de outros embates clássicos, que se alongaram comvitórias alternadas em sucessivas batalhas travadas pelos camposoponentes, as explicações subjetivistas logo cederam terreno, não sódiante das naturais dificuldades de averiguação de condutas e quere-res mas também porque o subjetivismo confere ao usucapião carac-terística social minimalista, que o instituto não merece possuir.

De fato, não há sentido em fundamentar o instituto na passivida-de do proprietário, que não exerce o direito na plenitude dos elementosque o compõem (usar, abusar, reivindicar, dispor), supondo a ele terrenunciado, permitindo ao possuidor que dele se aproprie, como naocupação de res derelicta.

Tal conclusão foi constituída sob a ótica do caráter absoluto eintangível da propriedade, que apenas admite violação pelo próprio titu-lar. Desconsidera a função e a finalidade social que justificam a exis-tência do próprio direito de propriedade.

No atual concerto jurídico, que ora revela plena harmonia – oextinto Código Civil de 1916 já não se presta como “ressalva” à Cons-tituição Federal ou trincheira de resistência de interesses retrógrados–, concebe-se apenas a propriedade que cumpre sua função social.

O caráter absoluto persiste, sob a ótica do poder exercido sobrea coisa, apenas quando possível concebê-lo de forma isolada, pelaestrutura interna, abstraindo-se o entorno social.

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O usucapião, como forma de aquisição da propriedade, reveste-sedo mesmo escopo e a ele se presta. A inação atribuída àquele queperde a propriedade indica violação à regra cogente da função social.O não-uso, a falta de aproveitamento, a inutilidade da coisa, que sereduz a mero componente patrimonial, ensejam análise objetiva, dopróprio fato, indicando absoluto contraste com a função social, quetraz implícitos uso e proveito.

O possuidor, que exerce a posse ad usucapionem, por outro lado,demonstra agir com base nos pressupostos da função social que de-verá justificar a aquisição de seu direito. É interessante notar que oatributo da função social, conferido pelo possuidor ao bem, antecede apropriedade, que o pressupõe. O possuidor confere à coisa possuídao atributo que lhe foi negado pelo proprietário, que teria o dever legal deconcretizá-lo, pelo seu exercício.

Consumada a aquisição, pelo decurso do tempo legal exigido –observando-se as demais qualificações da posse –, o possuidor, queantes dava plenitude à função social pelo exercício efetivo e de fato,passa a ser obrigado a observá-la.

A Teoria Objetiva de Ihering, que explica a posse como exterioriza-ção da propriedade, identificada pelos seus elementos ou poderes, foiadotada pelo antigo Código Civil2 e preservada no Diploma atual.

O art. 1.196 define o possuidor como aquele que “tem de fato oexercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.Tais poderes devem ser, contudo, exercidos em “consonância com suasfinalidades econômicas e sociais” (art. 1.228, § 1.º, do Código Civil).

Talvez se mostre inexato concluir que o possuidor deva ser iden-tificado pelo exercício da função social da propriedade, ou que, exer-cendo alguns dos poderes inerentes àquele direito – o uso, por exem-plo –, deva a ele ser negada a qualificação, verificado que o uso impri-mido não corresponde àquele que pressupõe a função social.

O exercício dos poderes da propriedade, não compatível com afunção social, implicaria, assim, negativa à caracterização da posse.

2 Com ressalvas de caráter subjetivo, indicadas pelas regras relativas à perda e aquisição daposse, que indicam, ainda que de forma enevoada, o elemento animus de Savigny.

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A conclusão não se acomoda às características da posse comum,mas é útil na análise da posse hábil para o usucapião especial urbano.

Primeiro, sob a ótica endógena do instituto, dos elementos queconstituem seus pressupostos: a posse deve ostentar a qualidade doanimus domini3; a utilização do imóvel é vinculada à moradia, do possui-dor ou de sua família; o direito será reconhecido uma única vez; há limi-tação de área; o lapso temporal reduzido, justificado pela concomitânciados demais pressupostos, indica a preocupação legal de propiciar aconcretização de garantias constitucionais fundamentais, como a habi-tação e moradia.4

São qualidades que indicam a função social da posse e autori-zam a aquisição da propriedade urbana: elementos de proveito efetivoe ação positiva, como morar ou habitar, dimensão do imóvel que nãoenseja a exorbitância de tais atividades, restrição à figura do posseiroou grileiro, dada a oportunidade singular de exercício etc.

A função social da posse que enseja o usucapião avulta nos ele-mentos externos do instituto, evidenciados na sua utilização como ins-trumento de consecução da política urbana.

A política urbana tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvi-mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana; esta,por sua feita, deve ser concebida “em prol do bem coletivo, da segu-rança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

A posse capaz de ensejar o usucapião é qualificada; não é qual-quer posse, como explica CAIO MÁRIO SILVA PEREIRA:

não basta o comportamento exterior do agente em faceda coisa, em atitude análoga à do proprietário; não ésuficiente a gerar aquisição, que se patenteie a visibi-lidade do domínio. A posse ad usucapionem, assimnas fontes como no direito moderno, há de ser rodeadade elementos, que nem por serem acidentais, deixamde ter a mais profunda significação (...)5

3 Aqui, não há novidade alguma, uma vez que o ânimo de dono é pressuposto de todas asmodalidades de usucapião.4 Art. 6.º da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional n. 26/2000.5 Instituições de Direito Civil. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. vol. 4, p. 105.

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Tais observações permitem afirmar que a posse ad usucapionem,na modalidade estudada, deve conter elementos identificadores da fun-ção social da propriedade, não só aqueles que a lei considera comopressupostos internos do instituto mas também aqueles ditados pelapolítica urbana, tal qual concebida pela Constituição Federal, impulsio-nada pelas diretrizes elencadas no art. 2.º do Estatuto da Cidade.

Resta concluir que o referido direito deve ser moldado à sua fun-ção social, tanto para evitar que arraigadas concepções afeitas à vetus-ta usucapio obstem seu exercício – principalmente no caso do usucapiãocoletivo – quanto no sentido contrário, isto é, que as mesmas concep-ções, não conformes às necessidades da política urbana, permitam oexercício que não se acomoda à expectativa social e da pólis.

2. USUCAPIÃO ESPECIAL INDIVIDUAL

O usucapião individual é objeto do art. 9.º do Estatuto da Cidade,que reproduz o art. 183 da Constituição Federal e é, por sua feita, re-produzido no art. 1.240 do Código Civil de 2002.

Tamanha insistência na fixação do instituto, com a reproduçãofiel de seus elementos essenciais, enseja poucas considerações aseu respeito.

2.1. Res habilis

Os arts. 183 da Constituição Federal e 1.240 do Código Civilapontam como bem apto a propiciar a aquisição por usucapião espe-cial área urbana de até 250m².

O art. 9.º do Estatuto da Cidade acrescentou, por sua feita, “ouedificação”.

O Texto Constitucional enseja insegurança interpretativa, no casode edificações: o limite de área é relativo ao terreno ou à soma dasáreas da terra nua e da construção?

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No caso de apartamentos, deve ser computada a área útil outotal, incluindo áreas comuns do condomínio?

Em obra que merece o nome que ostenta, BENEDITO SILVÉRIO RIBEI-RO expõe seu entendimento:

O mais consentâneo e justo é aceitar que o preceitoconstitucional teve por objetivo a área do terreno,mesmo porque foi também levada em consideraçãoa aquisição ou a regularização de parcelas de solodestacadas de loteamentos à margem da lei e nor-mas urbanísticas.

Nos casos de apartamentos, em que a fração ideal dosolo é mínima, é possível levar-se em conta a área daunidade autônoma, que pode ser pouco significativa. Aárea a ser considerada, no caso, é a total, não a útil 6.

A conclusão é, sem dúvida, compatível com os desígnios do ins-tituto: a soma das áreas de terreno e edificação, no cômputo do limite,subtrai da lei o escopo de propiciar moradia (que pressupõe aedificação). Além do que, é patético aceitar que o possuidor proceda àdemolição de construção de 100m² num terreno de 200m², para entãofazer jus ao seu direito, morando numa choupana, para erguer novaconstrução, após a aquisição da propriedade.

O que deve ser evitado são situações de visível distorção, comoabsorção de áreas contíguas à construção, até o preenchimento dolimite, com extravasamento abusivo do lote original ou daquele que fazpressupor a efetiva utilização para moradia.

JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES reclama melhor definição do TextoConstitucional, que deveria ter fixado a “metragem de construção pas-sível de usucapião”, o que poderia ter evitado:

(...) a incidência do usucapião especial urbano sobresituações que, por certo, não quis proteger (como, porexemplo, a de grandes construções levantadas so-bre uma área de duzentos e quarenta ou duzentos e

6 Tratado de usucapião. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. vol. 2, p. 881.

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cinqüenta metros quadrados de terreno). Não o ten-do feito, deu ao art. 183 redação que possibilitará aincidência da referida espécie de prescrição aquisiti-va a situações não objetivadas, esquecido de que anorma legal ou constitucional, depois de editada, sedesliga da pessoa ou do legislador que a criou, pas-sando a ter espírito condizente com o meio social paraque foi instituída7. (grifo do autor)

O receio é ponderável, e tais desvirtuamentos são inevitáveis.As hipóteses teratológicas esbarram, porém, nas leis edilícias, que,em zonas urbanas residenciais, costumam estipular coeficientes res-tritos de ocupação de terrenos por edificações. Também não se podeperder de vista que áreas construídas de dimensões maiúsculas con-trastam com a moradia, que é pressuposto legal da aquisição, sobre-tudo levando-se em conta a suficiência que justifica a limitação de área.

A inclusão da expressão “ou edificação” é prejudicial à referidainterpretação, por induzir, em análise precipitada, à idéia de alternativaexcludente (terreno ou edificação, como elementos distintos, cuja áreasomada não poderá ultrapassar 250m²).

A mens legis parece ser outra, de alternativa includente, com du-plo espectro: evidenciar o caráter acessório da edificação e suapertinência como res habilis do usucapião especial urbano e diferenciaro usucapião individual do usucapião coletivo, este dirigido à área urbana,tendo a lei omitido, no dispositivo específico, a palavra edificações. Talanálise será retomada nos estudos do usucapião urbano coletivo.

Outra vez atento à torpeza humana, fatto la lege, fatto la burla,José Carlos de Moraes Salles lembra outra possível fraude à lei e aosseus intentos, que reputamos de maior gravidade: a posse sobre áreamaior poderá ensejar a aquisição pelas demais modalidades deusucapião previstas no Código Civil, que exigem lapso temporal superi-or (exceto a hipótese prevista para o usucapião ordinário, no parágrafoúnico do art. 1.242), desarmando o proprietário, que poderia interromper

7 Op. cit. Usucapião de bens imóveis e móveis. p. 197.

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a prescrição ou contestar a posse após o qüinqüênio, de forma eficaz.A redução da área pelo usucapiente implicará antecipação do prazo,tornando inúteis as medidas que o proprietário pretendia exercer, noprazo que a lei lhe dizia correto.

Parece-nos que a repugnância do autor ao deferimento, em talsituação (rejeição apoiada pelos pontos de vista de CELSO BASTOS e deTUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO8), deve ser traduzida pela im-procedência da ação, mais uma vez com fulcro nos pressupostoslegais (“moradia suficiente”) e aplicação da lei segundo sua finalida-de social.

O Código Civil de 2002 fornece elementos de possível justifica-ção, ao prever a nulidade do negócio jurídico que “tiver por objetivofraudar lei imperativa” e também do negócio jurídico simulado (arts.166, VI, e 167), hipóteses que podem ser transmitidas aos “atos lícitos,que não sejam negócios jurídicos” (art. 185), caso da posse conscien-temente dirigida à aquisição da propriedade.

De qualquer forma, pleitos da natureza deverão ser analisadoscom aguçada sensibilidade jurídica e social.

Também relevante a observação realizada por Benedito SilvérioRibeiro, de que a área de terreno é o parâmetro do limite, propiciando aregularização de loteamentos “à margem da lei”.

Recente acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada de Minas Ge-rais vai ao encontro da tese. É enfático o Juiz relator Edgard PennaAmorim, que recusa de forma veemente sentença extintiva deusucapião especial urbano, de área situada em loteamento irregular,por ausência de pressuposto de constituição do processo: “Aliás, en-tendo que o objetivo da Carta Magna foi exatamente o de permitir aregularização do imóvel na hipótese como a presente, sendo inadmis-sível exigir-se a regularização do loteamento como pressuposto parao ajuizamento de ação de usucapião, data venia”9.

8 Apud SALLES, José Carlos de Moreira. Op. cit. Tratado de usucapião. 2.ª ed. p. 198.9 TAMG, 2.ª Câm., Ap. Civ. n. 334.490-5, j. em 26.2.2002, RT 803/399.

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Sábia decisão. O que está à margem da lei deve a ela se ade-quar e não se perpetuar na marginalidade, evidenciando-se a utilidadedo usucapião especial como instrumento da política urbana.

Embora não formulada sob a ótica urbanística, é pertinente eatual a observação de ORLANDO GOMES:

É socialmente conveniente dar segurança e estabili-dade à propriedade, bem como consolidar as aquisi-ções e facilitar a prova do domínio. A ação do temposana os vícios e defeitos dos modos de aquisiçãoporque a ordem jurídica tende a dar segurança aosdireitos que confere, evitando conflitos, divergênciase mesmo dúvidas10.

2.2. Tempo da posse e características da posse

O prazo relativamente curto justifica-se e acaba por compensara concomitância de outros pressupostos, não comuns às demais mo-dalidades de usucapião.

A lei também exige o animus domini, que qualifica a posse adusucapionem, em todas as suas modalidades, com o plus da utiliza-ção para moradia, que o integra.

O exercício singular do direito evita que a modalidade, pelo curtoprazo, se transforme em lucrativo negócio, possibilitando sucessivasaquisições e alienações.

O caráter social é patente, ao exigir que o prescribente não sejaproprietário de outro imóvel (durante o prazo da prescrição aquisitiva).Diante dos escopos da lei, a limitação deve ser entendida de formaampla, abarcando o promissário comprador, nos compromissosirretratáveis e não resolvidos pelo inadimplemento. Sob tal ótica, tam-bém é óbice a pendência de ação de usucapião de imóvel diverso,mesmo que sob outro fundamento.

10 Direitos reais. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 164.

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É prova negativa, fato constitutivo de direito que, observando-se regra processual de repartição do ônus probatório, incumbiria aoautor da ação e deveria integrar a petição inicial. São patentes as difi-culdades de realizar a prova, inerentes a toda negação de fato decunho genérico, de modo que sua exigência põe a perder o exercíciodo próprio direito que visa garantir. A afirmação de não possuir outroimóvel é, contudo, requisito da petição inicial, ensejando presunçãorelativa, que admite elisão.

A acessio possessionis, na modalidade estudada, encontra óbi-ce no caráter pessoal da posse. A lei exige a utilização para moradia,ensejando a indagação: moradia do próprio possuidor ou de sua pró-pria família, durante todo o lapso temporal, ou admissão da alienaçãoda posse e moradia a outrem, que poderá continuá-la, com a mesmacaracterística, até o decurso do prazo iniciado pelo antecessor?

Insere-se a moradia como elemento do caráter da posse queobriga à acessão, nos termos do art. 1.203 do Código Civil, ou é equi-valente à “prova em contrário”, ressalvada no mesmo dispositivo?

Mais uma vez, a característica do instituto, que premia aqueleque exerce a posse com “função social”, leva à conclusão de impossi-bilidade de acessão. A transmissão da posse, no exemplo menciona-do, será hábil para gerar a aquisição da posse pelo usucapião extraor-dinário, no qual a exigência da utilização para moradia é irrelevante enão integra o animus domini, mas não surtirá o mesmo efeito nousucapião especial. A data da transmissão passa a ser o termo inicialde novo qüinqüênio.

O Estatuto da Cidade inovou ao tratar, no § 3.º do art. 9.º, dasucessão na posse (hipótese diversa da acessão): “o herdeiro legíti-mo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que járesida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão”.

A inovação é restritiva. Evita o direcionamento, por intermédiode testamentos, e exige que o herdeiro resida no imóvel no momentode abertura da sucessão (que coincide com a data do falecimento).Não obriga que a residência tenha coincidido com o período integralda prescrição, ou seja, admite a soma de posses, aceitando o prazo

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antecedente, mesmo que o herdeiro não tenha residido no imóvel noseu curso. É imprescindível, porém, a demonstração de efetiva resi-dência no momento do falecimento, o que pressupõe, por óbvio, ante-cedência temporal suficiente para sua consolidação efetiva.

3. USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO

A notável criação do Estatuto da Cidade é o usucapião coletivo.É evidente a adaptação do antigo instituto à realidade das metrópolesbrasileiras, nas quais as favelas são paradoxal e concomitante causae efeito da degradação urbanística.

Os motivos de formação e preservação das favelas são objetode estudos sociológicos, aqui irrelevantes.

O Poder Público, omisso e leniente, em geral não sabe ou nãoconsegue lidar com tais aglomerados humanos. As soluções caminhamentre repressão – manifestada por interditos possessórios – e tímidaadmissão com tentativas de urbanização e de agregação regular à urbe.

A vigilância de imóveis dominicais, orientação social a invasoresde imóveis particulares e condução a abrigos provisórios, deslocamentoe fixação populacional programada, que podem se perfilar como exem-plos de política preventiva e fazem pressupor controle urbanístico, sãode raríssima observação.

Diante da inação ou incompetência estatal, o usucapião coletivopoderá se transformar em notável instrumento da política urbana, prin-cipalmente porque transfere a iniciativa de regularização aos ocupan-tes de tais áreas, dispensando intervenções muitas vezes destinadasa fins eleitorais.

A consagrada norte-americana JANE JACOBS, que se notabilizoupelas épicas jornadas destinadas a evitar a degradação de NovaIorque, durante a expansão da indústria automobilística dos anos 1960– e da conseqüente proliferação irracional e incontida de viadutos evias expressas (surto recentemente verificado em São Paulo, pese a

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estabilização da indústria de automóveis) –, é contrária a soluçõespaternalistas, tão comuns no Brasil (embora às vezes necessárias,diante do atraso cultural da população e conseqüente passividade einsensibilidade política).

No livro The Death and Live of Great American Cities, traçadiagnóstico de perfeita adequação à realidade das metrópoles brasi-leiras (basta substituir o termo “cortiços” por favelas, até porque oinglês slum o admite11):

O planejamento urbano convencional trata os corti-ços e seus habitantes de forma inteiramentepaternalista. O problema dos paternalistas é que elesquerem empreender mudanças muito profundas eoptam por meios superficiais e ineficazes. Para solu-cionar o problema dos cortiços, precisamos encararseus habitantes como pessoas capazes de compre-ender seus interesses pessoais e lidar com eles, oque certamente são. Precisamos discernir e levar emconsideração as forças de recuperação existentesnos próprios cortiços e evoluir a partir delas, o quecomprovadamente funciona nas cidades reais. Issoé muito diferente de tentar encaminhar condescen-dentemente as pessoas para uma vida melhor, emuito diferente do que é feito hoje12.

Prossegue, sem suspeitar do apoio e justificativa motivacionalque confere ao instituto previsto na lei brasileira: “O sucesso na recu-peração de zonas de cortiço pressupõe o apego de um número sufici-ente de pessoas aos cortiços em que desejam permanecer e a viabi-lidade de sua permanência”.

Tal “apego”, traduzido para o usucapião, revela-se no animusdomini qualificado pela “ocupação para moradia” prevista no art. 10 doEstatuto da Cidade.

11 HOUAISS, Antônio. Dicionário Inglês-Português. Rio de Janeiro: Webster’s, 1987. p. 727.12 Título em Português, que exclui a nacionalidade das cidades do original inglês: Morte e vidade grandes cidades. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 302.

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A iniciativa é transferida àquele que pretende transformar situa-ção caracterizada pela precariedade na solidez e perenidade do direitode propriedade.

A volatilidade é nociva, porque não enseja a fixação e certeza damoradia, justificando habitações paupérrimas e ausência de sanea-mento ou empreendimentos de urbanização, ou seja, ninguém investenada de si, capital ou trabalho, no que se mostra precário e volátil.

3.1. Constitucionalidade

A formação histórica das nações deixa marcas que se esmae-cem vagarosa e custosamente. Os habitantes das favelas perten-cem às classes desfavorecidas, originadas da colonização européiae da escravidão.

A marginalidade social e econômica é habitat profícuo para o de-senvolvimento da criminalidade; por inevitável relação de continência,a favela que abriga marginais sociais deve abrigar criminosos. Guetourbano, geograficamente insulada, terra de ninguém, alheia ao poderestatal, é ambiente propício para instalação de quartéis-generais docrime organizado.

Tal característica, aliada à estética depreciativa, saneamentodeficiente e preconceitos de graus variados, raciais, sociais e econô-micos, transforma a favela em tabu também no universo jurídico.

Desmente o direito de propriedade, desde a ótica do freiherr feu-dal prussiano até a propriedade comunitária de seus ancestrais germâ-nicos, que pressupunha, ao menos, a identidade do clã ou da tribo.

A difusa “exteriorização dos poderes inerentes à propriedade”,que decorre das dificuldades de identificação da posse singular, dacaótica composse não titulada, da ocupação clandestina e gradual deáreas públicas e particulares, da precariedade, desagrada até mesmoo defensor da informalidade jurídica.

Natural, nesse contexto, a existência de opiniões, não sistema-tizadas, que rezam da inconstitucionalidade do usucapião coletivo,

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diante da ausência de expressa estipulação no art. 183 da Constitui-ção Federal, que, por outro lado, prevê o usucapião individual.

Não há, porém, antinomia. O usucapião coletivo dá ensejo àexteriorização dos mesmos princípios que geraram o usucapião indi-vidual; acomoda-se à Constituição Federal, como instrumento da polí-tica urbana e auxiliar do direito à moradia, sobretudo após a edição daEmenda Complementar n. 26/2000.

Não colide ou se desvia da “ordem axiológica ou teleológica deprincípios jurídicos gerais”, que define o sistema jurídico de Claus-Wilhelm Canaris.

Dessa forma, ao lado do usucapião ordinário e do extraordinário,previstos tão-somente na legislação infraconstitucional, o usucapiãoespecial urbano não afronta a Constituição Federal, muito menos odireito de propriedade, garantia fundamental desde que cumpra suafunção social.

3.2. Res habilis

O art. 10 do Estatuto da Cidade estabelece como bem usuca-pível área urbana de mais de 250m². Lote menor é objeto do usucapiãoindividual.

Não há limite; pressupõe-se usucapível toda área ocupada. Sur-gem, porém, alguns paradoxos. Pode haver áreas de dimensões idên-ticas, uma delas densamente habitada, outra com população rarefeita.Embora a lei não dê relevância à determinação da área de ocupaçãoindividual, certamente será variável a parte ideal, calculada per capita.

É possível que, no primeiro exemplo, reste atribuída a cada indi-víduo ou a cada unidade familiar parte ideal inferior ao módulo mínimoadmitido no art. 4.º, II, da Lei n. 6.766/79, o que poderá impedir eventualextinção do condomínio, com a repartição equânime, quer pela contra-riedade à lei, quer pelo desvio de finalidade, uma vez que o confinamentode pessoas em área inferior às condições razoáveis de habitabilidadefere os princípios da política urbana.

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E, no segundo exemplo, poderá ser atribuída área individual su-perior ao limite de 250m2 do usucapião individual, o que também violaa lei (e a Constituição) e seus princípios, desta feita pela exorbitância.

Na segunda hipótese, a solução razoável é a diminuição do imó-vel usucapível, de modo a ensejar a devida adaptação.

Na primeira, contudo, parece-nos inviável o aumento de área nãoindicada no pedido inicial – mesmo quando possível, para terrenos con-tíguos –, pelo simples e insuperável motivo de que não teria havido aposse hábil para ensejar o usucapião.

Também não é viável a imposição de redução populacional, demodo a propiciar a repartição. Haveria a marginalização de popula-ções já excluídas.

Resta aguardar as soluções da jurisprudência, diante dos casosconcretos, cuja variedade pode ensejar adaptações imaginativas.

O artigo não repete a alternativa “ou edificação” que outorgou àmodalidade individual.

É possível divisar intencionalidade na omissão: evitar a conces-são do direito aos ocupantes de edificação de mais de 250m². A leiimpulsiona a regularização de favelas, mas não a de cortiços, pala-vras de significado diverso: favela é um “conjunto de habitações popu-lares toscamente construídas” e cortiço é uma “habitação coletiva dasclasses pobres”.13

No caso das favelas, a regularização e o assentamento definiti-vo propiciam a urbanização e atendem aos escopos da política urba-nística. No caso dos cortiços – de uma só edificação ocupada por umacoletividade de pessoas –, tal não ocorre; a concessão da propriedadede partes ideais de um prédio (cuja existência pressupõe prévia urba-nização) implica retrocesso e não progresso urbanístico.

13 HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2.ª ed., 36.ªimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 487 e 762.

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Outro pressuposto é a impossibilidade de identificar os terrenosocupados por cada possuidor. A respeito, enaltece FRANCISCO EDUARDO

LOUREIRO, esgotando o tema:

Superou-se o entrave do usucapião de favelas, emque não se localizava com precisão o espaço ocu-pado por cada uma das moradias, em vista de suafeição precária e volúvel. Além disso, as ações indi-viduais significariam perpetuar o recorte de vielas in-ternas ou, em termos diversos, impedir a futura ur-banização do local. Excelente a solução de se confe-rir a cada possuidor parte ideal do todo, em condomí-nio indivisível. Claro que o processamento de taisações exigirá dos juizes criatividade e compreensãodo alcance social da norma, para superar alguns obs-táculos, como a existência isolada de imóveis não-residenciais no interior da gleba – por exemplo, ba-res e templos – ou mesmo espaços comuns, comopequenas praças e vielas14.

Interessante notar que tais ínsulas – bares, por exemplo –, pesenão serem abrangidas diretamente e não constituírem imóveisusucapíveis, pela ausência do pressuposto da moradia, acabarão porse integrar ao todo, o bairro ou aglomerado urbano que a lei pretendeformar, que pressupõe comércio e prestação de serviços.

3.3. Legitimidade

O direito é conferido à população de baixa renda. O critério éimpreciso. Primeiro, parte do pressuposto de homogeneidade discutí-vel, tendo em vista que, mesmo em favelas, há diferençassocioeconômicas razoáveis. Resta concluir pela aferição da média,do traço predominante da coletividade ocupante.

Depois, o termo baixa renda é infeliz, a começar pela tormento-sa definição do que seja “renda”, que tantas controvérsias propiciouaos tributaristas.

14 A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 135.

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Parece-nos pressuposto de direito material, que deve ser ape-nas revelado mediante declaração na petição inicial, dispensando-seprova efetiva.

Eventual perícia técnica, ainda que não impelida por impugnação,deverá aferir a real situação econômica dos beneficiários, efetivos ocu-pantes da área, de modo a evitar prováveis desvirtuamentos.

O art. 12, II e III, do Estatuto da Cidade estabelece serem legiti-mados para a propositura da ação: a) os possuidores, em estado decomposse; b) como substituto processual, a associação de morado-res da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurí-dica, desde que explicitamente autorizada pelos representados.

Não incluímos a hipótese prevista no inc. I do mesmo artigo (“opossuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ousuperveniente”) que, a toda evidência, diz respeito ao usucapião indivi-dual. A lei não prevê, de forma expressa, a substituição processual dacoletividade por um possuidor isolado, o que é exigido pelo art. 6.º doCódigo de Processo Civil.

A aplicação subsidiária das normas relativas aos direitosmetaindividuais não ampara a legitimidade do possuidor, de forma isola-da, ainda que demonstre integrar a coletividade e deter as característi-cas do grupo de modo a representá-lo, solução prevista na class action15

do Direito norte-americano, sem correlato na legislação brasileira.

A menção aos “possuidores, em estado de composse”, do inc.II, também confronta o litisconsórcio mencionado no inc. I, que é facul-tativo e não unitário (no pólo processual ativo).

O inc. II do art. 12, ao prever a legitimidade dos “possuidores, emestado de composse”, leva a crer que há litisconsórcio necessário e

15 Embora a importação se mostrasse razoável. Assim estabelece o intróito da Rule 23 dasFederal Rules of Civil Procedures: “Prerequisites to a Class Action: One or more members of aclass may sue or be sued as representative parties on behalf of all only if (1) the class is sonumerous that joinder of all members is impraticable. (2) there are questions of law or factcommon to the class, (3) the claims or defenses of the representative parties are typical of theclaims or defenses of the class, and (4) the representative parties will fairly and adequatelyprotect the interestes of the class”.

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unitário, decorrente do estado de indivisão e concomitância de direitosque qualifica a figura jurídica. Todos os integrantes da comunidade,aptos a se beneficiar da sentença, deverão integrar o pólo processualativo, apresentando-se como compossuidores. O estado de compossedeverá, evidentemente, ser demonstrado, e, também de forma eviden-te, tal prova não é documental.

É de se indagar se o dispositivo chega a admitir a “composse”,dotada de capacidade processual e representada por administrador. Aredação desmente a palpitante possibilidade, ao se referir em primeirolugar aos possuidores em situação de fato de composse.

Também é parte legítima a associação de moradores da coletivi-dade, regularmente constituída, recusando-se entidades de fato, devi-damente autorizada pelos representados, isto é, pelos beneficiários enão pelos demais associados que porventura a integrem.

É hipótese de legitimação anômala, ou substituição processual,como expressamente previsto na lei.

CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO divisa a existência de direitotransindividual, na modalidade individual homogêneo, definido pelo art.81, III, da Lei n. 8.071/90, como aqueles “decorrentes de origem comum”16.

A conclusão sem ressalvas é foco de paradoxos. A sentençaproferida nas ações coletivas de defesa de interesses individuais ho-mogêneos é genérica (art. 95 da Lei n. 8.078/90), e a execução é in-dividual e variável, quantitativamente.

No usucapião coletivo, a sentença não é genérica; declara quecada um dos integrantes da população ocupante é proprietário de igualfração ideal do terreno. Mas as dificuldades não cessam.

Os possuidores não devem ser considerados individualmente, noscasos de ocupação por famílias, cujos componentes vivem juntos. Nãohá sentido, numa área ocupada por dez famílias de seis membros cadaqual, por exemplo, atribuir a cada um deles a fração ideal do terreno. Ofracionamento deve ser realizado pelas unidades familiares e não pelos

16 Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: RT, 2002. p. 55.

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indivíduos. Resta concluir, portanto, que cada família deverá ter umrepresentante, identificado como possuidor e incluído individualmenteno pólo ativo da ação (acompanhado do cônjuge ou companheiro).

Outra providência que nos parece indispensável é a obrigatoriedadede clara identificação dos possuidores, quando substituídos pela asso-ciação que os congrega, a não ser que o universo de associados coinci-da exatamente com o dos beneficiários e a ele se limite.

Note-se que a lei dá ensejo à aferição individual do preenchimen-to dos pressupostos para a aquisição da propriedade pelo usucapião.Assim não fosse, a acessio possessionis autorizada pelo § 1.º do art.10 seria inócua, pela impossibilidade de verificação ou demonstração.Se o possuidor pode acrescentar à sua a posse de seu antecessor,obviamente deverá demonstrá-lo, individualmente, na petição inicial.

Em suma, os possuidores deverão ser identificados, até porque,ainda com fulcro no dispositivo precedente, poderá haver impugnaçõesindividuais calcadas na ausência dos pressupostos legais.

Tanto por esse motivo quanto por aqueles que serão adiante de-senvolvidos, entendemos que a identificação deve ser realizada na faseprocessual petitória. RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA17 também crê ser im-prescindível a identificação, mas tão-somente na execução da senten-ça, uma vez que apenas na ocasião do registro imobiliário deverão serapontados os proprietários das partes ideais.

A necessidade de identificação singular dos possuidores tambémdecorre do caráter nuclear da parte final do caput do art. 10 (“desde queos possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou ru-ral”) e do § 3.º, que prevê a realização de acordos escritos entre os con-dôminos, para estabelecimento de frações ideais diferenciadas, excepcio-nando a regra geral da igualdade das frações. O dispositivo mencionacondôminos, levando a crer que o acordo deverá ser realizado entreaqueles já agraciados pela sentença, isto é, posteriormente a ela.

17 Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: RT, 2002. p. 58.

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O texto nos parece ter sentido equívoco, pois a sentença, que pos-sibilita o registro, deverá conter a definição das frações diferenciadas, re-ferindo-se aos acordos previamente apresentados (aliás, tais acordosdeveriam ser apresentados na petição inicial, evitando-se negociação entrecompossuidores, no curso da ação, por intermédio da venda de fraçõesde sua parte ideal, cuja mensuração independe da dimensão do terrenoocupada por cada qual). A expressão condôminos também não impressio-na, uma vez que a mesma sentença que declara a propriedade constitui ocondomínio, em frações iguais ou diferenciadas.

Outra tendência humana que a identificação prévia dos possui-dores poderá evitar é a “venda da sentença” pelos seus beneficiáriosou mesmo pela associação autora. Embora inacreditável, tal expedi-ente tem sido rotineiramente observado em ações coletivas.

Na Capital de São Paulo, são célebres os casos de associaçõesde “perueiros” que se valem de liminares favoráveis aos interesses daclasse para angariar novos filiados pagantes, os quais, diante da faltade identificação dos associados no momento do ajuizamento, pas-sam a se beneficiar da decisão, a qualquer tempo. É interessante no-tar que há migração de filiados de uma associação, que não logrouobter decisão favorável, para outra, que alardeia a “liminar” ou a sen-tença, ou seja, aqueles que não tiveram seu direito reconhecido pas-sam a tê-lo, “mudando de carteirinha”.

É mostra da criatividade de alguns advogados, adeptos de re-gras inerentes ao meio, tal qual o “jeitinho” ou a “Lei de Gérson”.

Interessante notar que a migração de filiados e a concentraçãonuma só associação implicam novel violação ao princípio do juiz natu-ral. Os antigos expedientes da distribuição conduzida pelo rol invertidode litisconsortes, ajuizamento simultâneo de mandados de segurançae medidas cautelares etc. foram superados por temeridades proces-suais oriundas do direito metaindividual.

O usucapião coletivo é oportunidade para que tais desvarios pro-cessuais se reproduzam. Daí os porquês da prévia identificação e da

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comunicação de sucessão processual e identificação do cessionário,na hipótese de acessão da posse no curso da ação.

3.4. Posse

A posse exige o ânimo de dono, qualificado pela moradia efetiva.O caput do art. 10 menciona a ocupação pela população, o que induzi-ria à conclusão de que a qualidade da posse é verificada em função dacoletividade.

Os §§ 1.º e 3.º, entretanto, como visto, ensejam conclusão diversa.

Parece-nos que deve ser observada, prioritariamente, a posseda coletividade e, subsidiária mas conjugadamente, a posse dos indi-víduos, quando alegada acessão ou outra situação que não dispenseanálise individual.

A posse coletiva, quando inepta, implica rejeição do pleito, comou sem julgamento do mérito.

Situações individuais devem implicar a improcedência, em rela-ção ao indivíduo, ou mesmo sua exclusão do feito. Não deverá ocorrera diminuição da área usucapível, uma vez que não há vinculação deterrenos ou dimensão de frações aos possuidores individuais.

A ausência de tal vinculação permite concluir pela possível im-pertinência de situações que constituiriam obstáculo à aquisição, nousucapião individual.

É o caso de integrantes da coletividade que cedem em locaçãopara residência, a outros integrantes da mesma coletividade, partesda área sobre a qual a coletividade exerce a posse. O inquilino nãopoderia se valer do usucapião, pela ausência de animus domini. Nousucapião coletivo, tal obstáculo poderá ser contornado, salvo situa-ções flagrantes, em função da impossibilidade de definição dos terre-nos ocupados por cada possuidor.

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3.5. Condomínio indivisível

Além do conteúdo declaratório da propriedade da fração ideal, asentença tem caráter constitutivo, uma vez que, nos termos do § 4.º,cria condomínio especial indivisível.

Embora a área usucapida seja naturalmente divisível, a lei esta-belece indivisão permanente, que não viola a limitação temporal pre-vista no art. 1.320, §§ 1.º e 2.º, que tratam da indivisibilidade convencio-nal ou instituída por ato unilateral de vontade.

O condomínio será administrado pela coletividade que o consti-tui – a Lei não prevê administrador ou representante, o que induz àausência de capacidade processual –, e as deliberações obrigam atodos, inclusive ausentes ou discordantes, quando tomadas pela mai-oria dos condôminos presentes à reunião ou assembléia. Evidente-mente, a regra não implica que tais deliberações são imunes ao con-trole jurisdi-cional, havendo impugnação da minoria vencida.

A dissolução do condomínio dependerá da cumulação de doiselementos:

a) urbanização posterior à constituição do condomínio;

b) decisão de, no mínimo, dois terços dos condôminos (de to-dos os condôminos, e não daqueles presentes à reunião na qual to-mada a deliberação).

A partilha obedecerá aos quinhões de cada qual, que podem serdiversos, na hipótese do acordo de que trata o § 3.º do art. 10. Serãoinevitáveis os conflitos decorrentes da extinção do condomínio. Se, deum lado, a urbanização propicia a divisão em lotes, delimitados porvias públicas ou mesmo particulares, de outro, enseja diversidade decaracterísticas e valores, em função da localização diferenciada. Res-ta definir como será levada a efeito a partilha da área. O melhor critérioé atender a ocupações previamente estabelecidas por um ou outromorador, embora seja impossível “identificar os terrenos ocupadospor cada possuidor”, conforme o art. 10, caput.

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4. DISPOSIÇÕES COMUNS ÀS DUAS MODALIDADES

São comuns ao usucapião individual e ao coletivo:

a) Impossibilidade de usucapião de imóveis públicos: a Consti-tuição Federal impõe a restrição, sem ressalvas18; o Código Civil de2002 reproduziu a proibição no art. 102. Dessa forma, o usucapião es-pecial urbano, coletivo ou individual, é instrumento inócuo, no que dizrespeito a áreas públicas, preferidas de muitas favelas ou aglomera-dos irregulares, restando ao Poder Público atuar de forma preventiva eenérgica, ciente da perenidade da irregularidade.

b) A intervenção do Ministério Público é obrigatória: o interessepúblico que fundamenta a intervenção é flagrante no usucapião coletivo.

c) Ações possessórias e petitórias relativas ao imóvelusucapiendo ficam sobrestadas, até o deslinde da ação de usucapião:o art. 11 do Estatuto da Cidade inverte o comando do art. 923 do Códi-go de Processo Civil, que impede “ação de reconhecimento de domí-nio na pendência de processo possessório”. O caráter social que im-pulsiona o usucapião especial urbano prevalece sobre a questãopossessória, abstraindo-se a natureza da disputa da posse. Evidente-mente, as possessórias previamente ajuizadas podem se prestar comoprova de oposição à posse ad usucapionem. Também nos parece queo usucapião invocado em defesa tem o mesmo efeito, em relação aoutras demandas petitórias ou possessórias eventualmente ajuizadas,que tenham em mira o imóvel usucapiendo.

18 Duas interessantes ressalvas na casuística jurisprudencial, nenhuma delas violando a proibiçãoconstitucional, mas desviando sua aplicação de fatos que não comportam a subsunção: a) Naherança jacente, antes da sentença declaratória de vacância, o imóvel não se incorpora aopatrimônio público e pode ser adquirido por usucapião (STJ, 3.ª T., REsp n. 66.637/SP, rel. Min.Nilson Naves, DJU de 1.º.8.2000, RSTJ 142/216); b) “As ilhas marítimas, dentre elas compreen-didas as oceânicas e costeiras, efetivamente se encontram no rol dos bens pertencentes à União.Contudo, há que se ter presente que tal situação somente foi consolidada com a promulgaçãoda Constituição Federal de 1988. Decorre daí que se a posse tiver sido exercida no período de20 anos anteriores à atual Carta Magna, o imóvel é indiscutivelmente passível de usucapião”.(TRF 4.ª Região, 4.ª T., Ap. n. 2000.04.01.108179-0/SC, rel. Des. João Pedro Gebran Neto, DJUde 17.10.2001, RT 798/432). Para arredar a estranheza, o imóvel é área de terra “situada da Ruade Canela, Florianópolis, no interior da Ilha de Santa Catarina. Do contrário, o usucapião seriaimpossível em nações como a Grã-Bretanha e o Japão (...)”.

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d) O rito processual é sumário (art. 14 do Estatuto da Cidade c.c. art. 275 do Código de Processo Civil): parece-nos provável, porém,que as citações e intimações, pessoais e editalícias, possam prejudi-car a realização da audiência inicial no prazo do art. 277 do Código deProcesso Civil, mesmo computado em dobro, em função da intimaçãoda Fazenda. É recomendável a conversão de rito, nos termos do § 4.ºdo art. 277, sendo notório que, em determinadas circunstâncias, o pro-cedimento ordinário se mostra mais célere e menos oneroso.

e) Alegação do usucapião especial em contestação: é pacífica apossibilidade de invocação de usucapião como defesa do prescribente(Súmula n. 237 do STF). A sentença de improcedência, embora reco-nheça a consumação da prescrição aquisitiva, não é hábil para ensejaro registro da aquisição19. Os motivos impeditivos do efeito declaratórioda propriedade e conseqüente registro da sentença são os mesmosque justificam a impossibilidade de dedução de usucapião emreconvenção, segundo CLITO FORNACIARI JÚNIOR: “... a necessidade da par-ticipação de outros sujeitos que não se fazem presentes na possessória(confrontantes, terceiros interessados, Fazenda Pública); por outro lado,seria inviável a inserção de um procedimento especial dentro de outro, oque levaria à desistência do rito especial”20. Tais conclusões dizem res-peito ao usucapião ordinário e extraordinário; o Estatuto da Cidade con-fere ao usucapião especial urbano, tanto individual quanto coletivo, omesmo tratamento que a Lei n. 6.969/81, no seu art. 7.º, outorgava aousucapião pro labore por ela tratado: “o usucapião poderá ser invocadocomo matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer comotítulo para transcrição no registro de imóveis”. O art. 13 reproduz aregra: a sentença que reconhecer o usucapião afirmado em defesa étítulo hábil para registro no oficial de imóveis. Referindo-se ao usucapiãoda Lei n. 6.969/81, NELSON LUIZ PINTO realça o caráter dúplice da ação etranscreve lição de Kazuo Watanabe, extraída do artigo “Ação dúplice”

19 “Dúvida não há sobre a possibilidade da argüição de usucapião como matéria de defesa.Todavia, nesse caso, o Magistrado, acolhendo a argüição da defesa, não pode emitir julgadodeclarando a aquisição do domínio, mas, apenas, julgar improcedente o pedido de reivindica-ção.” (STJ, 3.ª T., REsp n. 139.126/PE, DJU de 21.9.1998, RSTJ 116/221).20 Da reconvenção no Direito Processual Civil brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 138.

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(Revista de Processo 31/140): “Quando isto se permite, diz que a açãotem caráter dúplice. A contestação nessa modalidade de ação não so-mente formula defesa do réu, como também poderá conter autênticospedidos em seu favor, sem necessidade de reconvenção”21. Exemploque deve conduzir o julgador, notadamente nas hipóteses de usucapiãoespecial urbano, diante do imanente interesse público, é acórdão pro-ferido com aguçada sensibilidade jurídica pela 3.ª Turma do STJ, quejulgou dispensável a dedução de pedido de reconhecimento deusucapião, na defesa que o afirma: “Alegada, pelo contestante de ação,posse velha, ainda que sem expressa referência ao termo ‘usucapião’,a alegação há de ser apreciada. Caso em que corretamente se enten-deu que ‘Os fundamentos jurídicos da resposta é que têm relevânciajurídico-legal. Não a falta de utilização da locução técnico-legal ade-quada.’ Inocorrência de ofensa a texto de lei federal”22.

f) O § 2.º do art. 12 confere ao autor da ação os benefícios daassistência judiciária e a gratuidade do registro da sentença: pese impe-rativo, o dispositivo deve ser aplicado cum granu salis. No usucapiãoespecial coletivo, a hipossuficiência econômica da população é pressu-posto do próprio Direito, o que implica a concessão da assistência judi-ciária gratuita, presumindo-se sua necessidade, que está in re ipsa, dis-pensado o atendimento ao disposto no art. 4.º da Lei n. 1.060/50. Nocaso do usucapião individual, a interpretação é diversa, uma vez que háhipóteses em que o usucapiente não é destinatário da assistência. Nãonos parece que o possuidor de apartamento de 250m² em área nobrede São Paulo possa, de forma legítima, se beneficiar da assistênciagratuita; certamente, o Estatuto da Cidade não o contemplou, emboratenha esquecido de deduzir a ressalva. Dessa forma, no usucapião es-pecial, a assistência deverá ser concedida caso o autor da ação afirmea impossibilidade de arcar com as custas e honorários processuais, porintermédio da declaração de que trata o art. 4.º da Lei n. 1.060/50.

21 Ação de usucapião. 2.ª ed. São Paulo: RT, 1992. p. 153.22 REsp n. 91.983/MT, rel. Min. Nilson Naves, DJU de 8.3.1999, RSTJ 119/314.

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5. USUCAPIÃO ESPECIAL E MEIO AMBIENTE

Não é sem razão que CELSO FIORILLO23 denomina de usucapiãoambiental a modalidade prevista no Estatuto da Cidade.

Como instrumento da política urbana, deve observar as diretri-zes gerais que a imprimem. Entre elas: 1.ª) a garantia do direito a cida-des sustentáveis (art. 2.º, I); 2.ª) o planejamento do desenvolvimentodas cidades, da distribuição espacial da população de modo a evitar ecorrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativossobre o meio ambiente (art. 2.º, IV); 3.ª) ordenação e controle do usodo solo, de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental (art. 2.º,VI, “g”); 4.ª) adoção de padrões de produção e consumo de bens eserviços e de expansão urbana compatíveis com os limites dasustentabili-dade ambiental, social e econômica do Município e do ter-ritório sob sua área de influência (art. 2.º, VIII); proteção, preservação erecuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cul-tural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art. 2.º, XII); audi-ência prévia nos empreendimentos potencialmente nocivos ao meioambiente natural ou construído (art. 2.º, XIII).

É manifesta a preocupação ambiental; a denominação usucapiãoambiental é oportuna, até porque se presta como lembrete dos princí-pios que devem imprimir a aplicação da lei aos casos concretos.

O excesso populacional nas camadas de baixa renda, quer de-corra de elevados índices de natalidade, quer decorra da migraçãodesenfreada e inconseqüente, enaltece a crise habitacional. Sem ca-pital para se fixar, tais camadas populacionais são levadas a escolhasevidentes e perniciosas: ocupação de bens de uso comum do povo,encostas, mananciais e outras, que não permitem habitação ou nãosão para tanto adequadas.

A ocupação das áreas de manancial é ostensiva, ao menos noEstado de São Paulo. Governos municipais, principalmente, revelam

23 Estatuto da Cidade. São Paulo: RT, 2002. p. 78.

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inabilidade para lidar com o assunto, e, motivados por interesses elei-torais ou não, costumam optar pela condescendência, não importu-nando os invasores. A abulia estatal é estímulo para o incremento daocupação e fixação da população, em zona atraente, com acesso gra-tuito a inesgotáveis recursos hídricos.

A passividade culposa ainda estimula o constante deslocamentohabitacional do campo para as cidades, criando urbes pantagruélicase avessas ao controle estatal.

A poluição provocada pela ocupação é alarmante, tendo ganhadorelevo, em função da notória escassez de recursos hídricos, que afligeo mundo e também atinge o Brasil.

O Estado se depara com inegável conflito, entre dois interesseslegítimos: o direito à habitação e moradia, de um lado, e a preservaçãodo meio ambiente, de outro. Tal conflitualidade interna é, aliás, caracterís-tica dos direitos difusos, que já trazem, de per si, o choque de interesses.

A visão imediatista acaba por gerar o prevalecimento da habita-ção, o que é equivocado, em função dos meios – em geral, mera com-placência com a ocupação, que se desenvolve de forma desordenada– e das nefastas conseqüências para o futuro da população, inclusiveos próprios invasores, que enfrentarão a acentuada escassez de re-cursos hídricos utilizáveis. Por esse motivo, a ocupação de tais áreasdeve ser coibida; o fato implica violação a todas as diretrizes da políti-ca urbana, de índole ambiental, acima elencados.

A mesma restrição deve ser estendida às ações de usucapiãoespecial, individual e coletivo. O usucapião é instrumento que deve per-mitir a consecução da política urbana, segundo suas diretrizes. Não podese prestar à violação da sustentabilidade ambiental e urbana, nem servira imediatismos cegos ao futuro e ao direito das gerações vindouras.

O juiz, ao aplicar a lei, deve atender aos fins sociais a que ela sedirige e às exigências do bem comum (art. 5.º da Lei de Introdução aoCódigo Civil).

Ao julgar pleitos legítimos, que denotem a observação dos pressu-postos exigidos para o usucapião urbano, deverá sopesar os interesses

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que se embatem, de norma imanente, mesmo nas ações individuais,e evitar que sua decisão acabe por se somar aos estímulos à ocupa-ção irregular e nociva.

Afinal, se a posse precária já induz à isenção estatal de respon-sabilidades (ou governamental, como sói ocorrer) a propriedade con-solidada ensejará álibi invencível.

Além da aplicação da lei em atenção ao bem comum e à finalida-de social, alinham-se outros argumentos que justificam a impossibili-dade jurídica do usucapião especial em mananciais ou áreas merece-doras de tutela assemelhada.

A escassez tem induzido sensíveis alterações na caracteriza-ção jurídica de bens naturais renováveis.

Anota MICHEL PRIEUR que lei francesa de 3 de janeiro de 1992, rela-tiva às águas, alterou o status do que antes era denominado chosecommune, que no antigo Código Civil brasileiro equivaleria à coisa forado comércio, que não admite apropriação. Afirma o ambientalista daUniversidade Limoges que a modificação “(...) renforce la responsabilitécollective sur ce bien commun en déclarant que ‘l’eau fait partie dupatrimoine commun de la nation’ et que sa protection dans le respectdes équilibres naturels ets d’intérêt general”24.

No Brasil, o Código de Águas estipula serem águas de uso co-mum “as nascentes quando forem de tal modo consideráveis que, porsi só, constituam o caput fluminis” (art. 2.º, “e”). A Lei n. 9.433/97, queinstitui a Política Nacional de Recursos Hídricos, define a água comobem de domínio público (art. 1.º).

É paradoxal prever a intangibilidade de um bem jurídico e permitirsua lesão por meios indiretos. Imóveis públicos, inclusive e especial-mente os de uso comum, não podem ser objeto de usucapião. A restri-ção deve estender-se também às áreas cuja ocupação permita a lesãoa outro bem público, áreas em que a moradia, fundamento do usucapiãoespecial urbano, se esmaece, pela evidente impropriedade de objeto.

24 Droit de l’environnement. 4.ª ed. Paris: Dalloz, 2001. p. 674.

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Concluindo, a posse ad usucapionem, nas hipóteses previstasno Estatuto da Cidade, deve ser qualificada pela função social, quesubmete a propriedade que dele deverá decorrer. As mesmas imposi-ções ditadas pela função social da propriedade devem ser transferidasà posse capaz de ensejá-la. A ocupação nociva ao meio ambiente,evidentemente contrária ao interesse comum, deve excluir da posse,ainda que presentes os demais pressupostos legais, a aptidão paragerar a aquisição da propriedade.

Celso Augusto Coccaro Filho,

procurador do Município de São Paulo e advogado

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flávio eduardo turessi

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O INDICIAMENTO EM INQUÉRITO POLICIAL

Flávio Eduardo Turessi

Sumário: I – Introdução. II – Suspeito, indiciado e réu. III – Oindiciamento. IV– Da obrigatoriedade de emotivação. V – Con-clusão.

I – INTRODUÇÃO

Afastando o preconizado juizado de instrução, houve por bem olegislador ordinário, não sendo objeto do presente trabalho a análisede sua opção, manter em nosso ordenamento jurídico o inquérito poli-cial como instrumento preparatório para o oferecimento da ação pe-nal. Nesse sentido, é a Exposição de Motivos do Código de ProcessoPenal: “Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar oupreparatório da ação penal (...)” (nº IV da Exposição).

Apontado por muitos como o responsável pela implementaçãodo inquérito policial no Brasil, o Decreto 4.824, de 22.11.1871, que re-gulamentou a Lei 2.033, de 20 de setembro daquele ano, disciplinava oinstrumento sub examine em seu art. 42, in verbis: “O inquérito policialconsiste em todas as diligências necessárias para o descobrimentodos fatos criminosos, de suas circunstâncias e dos seus autores ecúmplices (...)”.

Malgrado não tenham exclusividade para a realização de investi-gação criminal, à Polícia Federal e às Polícias dos Estados incumbepresidir o inquérito policial, que, não obstante seja prescindível ao ofe-recimento da denúncia ou queixa1, se correta e seriamente conduzido,

1 Nesse sentido: STF, RTJ 76/741, dentre outros.

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fornecendo elementos necessários para a formação segura da opiniodelicti pelo titular da ação penal, não pode ser desprezado.

II – SUSPEITO, INDICIADO E RÉU

Na busca dos elementos informativos sobre a infração penal,sua autoria e circunstâncias, ressalvadas as hipóteses em que o de-linqüente é preso em flagrante delito, a investigação criminal, voltando-se ao agente violador da norma penal, deverá aquilatar-lhe a condiçãode mero suspeito ou indiciado.

Para Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, “Há, portanto, escalade menos para mais, em relação à posição averiguada da autoria, asaber: suspeito, indiciado e réu penal. Daí se pode afirmar, com pontua-lidade, que, na técnica, se reservam as expressões “réu” para o sujeitoem face de quem é trazida a ação penal e “indiciado” à pessoa objeto deinvestigação, durante a fase de inquérito.” E complementa o saudoso ju-rista: “Em outras palavras, a pessoa suspeita da prática de infração pe-nal passa a figurar como indiciada a contar do instante em que, no inqué-rito policial instaurado, se lhe verificou a probabilidade de ser o agente.” 2

Deve o responsável pela presidência do inquérito policial, então,identificar se o suspeito praticou ou não atos de execução da infraçãopenal ou, ainda, se sobre ela teve o domínio, dirigindo a empreitadacriminosa, hipóteses em que se lhe emprestará a condição de indiciado.

III – O INDICIAMENTO

Cediço é que o indiciamento não encontra previsão legal em nos-so ordenamento jurídico. Com efeito, como ressalta Francisco DiasTeixeira, “o Código de Processo Penal, ao utilizar (poucas vezes) a

2 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. O indiciamento como ato de polícia judiciária, in RT577/313

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palavra “indiciado” não se refere a alguém contra quem tenha sido pro-ferida qualquer decisão nesse sentido, mas apenas à pessoa contraquem há indício de prática de crime.”3

Trata-se, pois, de expressão anômala do direito, que, mesmo semprevisão expressa, constitui-se em grave medida social, pois, aos olhosdo público leigo, o Estado, ao indiciar o indivíduo, marcou-lhe a atuação.

Citando Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, Adel El-Tasse asse-vera que o indiciamento “não há de surgir qual ato arbitrário da autorida-de, mas legítimo. Não se funda, também, no uso de poder discricioná-rio, visto que inexiste a possibilidade legal de escolher entre indiciar ounão. A questão situa-se na legalidade do ato. O suspeito, sobre o qual sereuniu prova da autoria da infração, tem que ser indiciado. Já aquele quecontra si possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, nãopode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito.” 4

Na qualidade de indiciado, o agente é interrogado pela Autorida-de Policial (art. 6º, inciso V, do CPP) , pregressado (art. 6º, inciso IX, doCPP) e identificado datiloscopicamente, observado o disposto na Leinº 10.054, de 07.12.00, que dispõe sobre a identificação criminal e dáoutras providências.

IV – DA OBRIGATORIEDADE DE MOTIVAÇÃO

Embora previsto no Código de Processo Penal, tendo sua discipli-na formalmente voltada àquele ramo do direito, o inquérito policial, as-sim como a atuação da Polícia Judiciária, devem ser discutidos tam-bém à luz das demais disciplinas e segmentos do ordenamento jurídico.

A Polícia Judiciária desempenha atividade tipicamente administra-tiva. Sua ferramenta de trabalho, o inquérito policial, afigura-se comoprocedimento administrativo a cargo de Autoridade do Poder Executivo.

3 TEIXEIRA, Francisco Dias. Indiciamento e Presunção de Inocência. Boletim IBCCRIM, nº 71.1998. Pág., 14.4 EL-TASSE, Abdel. Indiciamento em inquérito policial – ato obrigatoriamente movitado, in RT772/480.

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Destarte, força é convir que os atos praticados no curso dasinvestigações pela Autoridade são atos administrativos, notadamenteo indiciamento, que, revestido de finalidade pública, modifica, resguar-da e impõe direitos e obrigações ao indivíduo investigado. Por oportu-no, merece lembrança a lição de Hely Lopes Meirelles ao conceituarato administrativo como “toda manifestação unilateral de vontade daAdministração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim ime-diato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar di-reitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria.” 5

Dessa forma, como ato administrativo, deve o indiciamento re-vestir-se, para existir validamente no ordenamento, dos requisitos ne-cessários à sua formação, notadamente de motivação.

No dizer de Lúcia Valle Figueiredo, “Constitui-se a motivaçãona exposição administrativa das razões que levaram à prática do ato.Na explicitação das circunstâncias de fato que, ajustadas às hipóte-ses normativas, determinaram a prática do ato. Por isso mesmo nãose pode conceber que por motivação se entenda a mera alusão a dis-positivos legais. De verdade, os dispositivos legais apontados não ser-vem a justificar a prática de qualquer ato.”6

Como se não bastasse, no exercício do poder constituinte deriva-do decorrente, o legislador constituinte paulista explicitou, como requisi-to de validade do ato administrativo, a motivação, nos termos do art. 4º,da Constituição Estadual, in verbis: “Nos procedimentos administrati-vos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitosde validade, a igualdade entre os administrados e o devido processolegal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório,da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.” (grifo nosso)

Não se pode olvidar, pois, que a prévia motivação das razões doindiciamento, reveladas em despacho escrito da Autoridade, proporcio-nará verdadeiro avanço na atividade policial, permitindo controle mais

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.Pág., 139.6 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.Pág., 105.

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efetivo dos seus atos, evitando possíveis abusos e eventuais viola-ções a direitos e garantias fundamentais. Debruçando-se sobre o tema,o já citado Adel El-Tasse pondera que “A opção pela realização doindiciamento é típica decisão administrativa, sujeita ao controle peloMinistério Público, pela Magistratura e pela própria população, razãosuficiente para que se sustente ser a mesma um ato obrigatoriamentefundamentado, devendo ser os motivos da deliberação declinadosexpressamente pela autoridade.”7

Não se trata, pois, de providência inovadora na esfera de atribui-ção da Polícia Judiciária. Merece destaque, pela importância, a exigên-cia de prévia motivação na decisão de Autoridade Policial em normainsculpida no art. 37, parágrafo único, da Lei nº 6.368/76, verbis: “A auto-ridade deverá justificar, em despacho fundamentado, as razões que alevaram à classificação legal do fato, mencionando, concretamente, ascircunstâncias referidas neste artigo, sem prejuízo de posterior altera-ção da classificação pelo Ministério Público ou pelo juiz.” (grifo nosso)

No mesmo sentido, a Portaria DGP-18, de 25 de novembro de1998 8, que dispõe sobre medidas e cautelas a serem adotadas naelaboração de inquéritos policiais pela Polícia Civil do Estado de SãoPaulo, ao abordar a questão do indiciamento, dispõe, em seu art. 5º,verbis: “Logo que reúna, no curso das investigações, elementos sufi-cientes acerca da autoria da infração penal, a autoridade policial pro-cederá ao formal indiciamento do suspeito, decidindo, outrossim, emsendo o caso, pela realização de sua identificação pelo processodactiloscópico. Parágrafo único – O ato aludido neste artigo deveráser precedido de despacho fundamentado, no qual a autoridade polici-al pormenorizará, com base nos elementos probatórios objetivos coli-gidos na investigação, os motivos de sua convicção quanto a autoriadelitiva e a classificação infracional atribuída ao fato, bem assim, comrelação à identificação referida, acerca da indispensabilidade da suapromoção, com a demonstração de insuficiência de identificação civil,nos termos da Portaria DGP-18, de 31-1-92.” (grifo nosso)

7 EL-TASSE. Op. cit.8 Publicada no Diário Oficial do Estado em 26 de novembro de 1998.

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Analisando as atribuições afeitas à Polícia Judiciária Militar e àque-la Justiça Especializada, Ronaldo João Roth coloca que, “Na searacastrense, o trabalho do encarregado do IPM sofre o crivo da autorida-de delegante daquelas investigações, podendo esta, se necessário,corrigir o rumo das investigações, determinar diligências para esclare-cer certos fatos e, avocando a solução do apurado, até discordar daconclusão dos trabalhos, promovendo o indiciamento ou odesindiciamento de pessoa, tudo de forma fundamentada. A seguir oIPM sofrerá a fiscalização do Ministério Público e do Judiciário, osquais terão a oportunidade de, no momento adequado e com base noapurado, concordar, discordar e até requisitar providências, inclusiveo formal indiciamento de pessoa. Se, ao contrário, o indiciamento re-sultar ilícito, deve ser cancelado, uma vez que – ato administrativo queé – resultou, desse modo, nulo.”9

Lamentavelmente, a anunciada providência não integra, comoregra, a prática policial, prejudicando, sobremaneira, o controle de le-galidade dos seus atos.

Aos oito dias do mês de fevereiro de 2000, através do Ministérioda Justiça, foi instalada Comissão de Reforma do Código de Proces-so Penal, que, composta por juristas de renome, recebeu a difícil tare-fa de elaborar projeto de reforma do sistema processual penal brasilei-ro.

No âmbito da investigação criminal, pontuais alterações forampropostas pela comissão.

No tocante ao tema indiciamento, Fauzi Hassan Choukr fornece aredação final apresentada pela comissão, in verbis: “Art. 8º. Reunidos oselementos informativos tidos como suficientes, a autoridade policialcientificará o investigado, atribuindo-lhe, fundamentadamente, a situaçãojurídica de indiciado, com as garantias dela decorrentes.” (grifo nosso)10

9 ROTH, Ronaldo João. O indiciamento e a classificação do tipo penal no inquérito policialmilitar. Revista “Direito Militar”, AMAJME, 2000, nº 24, p. 32/36.10 CHOUKR, Fauzi Hassan. Comentários sobre o anteprojeto de investigação criminal, in RT789/457.

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Percebe-se, pois, que a providência ora debatida constitui-se emum dos reclamos do meio forense e da sociedade em geral, tendo porescopo primeiro, como não poderia deixar de ser, a busca incansá-vel pelo aprimoramento e transparência das atividades de Polícia Ju-diciária, e, dessa forma, o respeito aos direitos e garantias funda-mentais do cidadão.

V – CONCLUSÃO

O indiciamento em inquérito policial, não obstante sem previsãoexpressa em nosso diploma processual penal, como já foi dito, encon-tra-se absolutamente incorporado ao sistema de persecução penal vi-gente, cujas conseqüências, notadamente de ordem moral, não po-dem transformá-lo em instrumento de pressão social.

Engrandecido pela mídia, o ato passou a ter, como coloca Álva-ro Lazzarini, reproduzindo as ponderações de José Carlos Dias eLuís Francisco Carvalho Filho, “a conotação de uma condenação pú-blica. O reconhecimento posterior da inocência afirmado pelo Judiciá-rio não tem mais repercussão, é incapaz de apagar da memória acondenação policial anterior. O indiciamento marca a pessoa com ci-catrizes que nenhuma sentença absolutória tem o poder plástico deapagar de sua alma e do seu nome.” 11

Forçoso concluir que, ensejando inolvidáveis conseqüências ne-gativas ao investigado, o despacho que lhe atribui a condição de indiciadodeve ser claro, transparente, fundamentado e, principalmente, pautadoem idôneos elementos de convicção coligidos durante a fase extrajudicialda persecutio criminis, devendo o Ministério Público, no exercício de seusmisteres constitucionais, velar pela legalidade do ato.

11 LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: RT, 1999. Pág., 173.

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Assim, como ressalva Júlio Fabbrini Mirabete, “O indiciamentonão é ato arbitrário nem discricionário, visto que inexiste a possibilidadelegal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidadedo ato. O suspeito, sobre o qual se reuniu prova de autoria da infraçãotem que ser indiciado; já aquele que contra si possuía frágeis indíciosnão pode ser indiciado pois é mero suspeito.” 12

Flávio Eduardo Turessi,

promotor de Justiça em Pilar do Sul/SP

12 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1993. Pág., 88.

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das procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasde Justiçade Justiçade Justiçade Justiçade Justiça

Orlando bastos filho eEduardo Martines Júnior,promotores de justiça

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CARTÃO DE CRÉDITO EMANIPULAÇÃO DA ASSINATURA DIGITAL

Celeste Leite dos Santos

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Direito econômico; 2.1. Or-dem Pública Econômica; 2.2. Direito Penal Econômico; 2.3.Conceito de Crime Econômico; 2.4. Crimes econômicospraticados através das novas tecnologias de informação; 3– Crimes informáticos e direito legislado; 3.1. Dinamarca;3.2. Estados Unidos da América; 3.3. Portugal; 3.4. Fran-ça; 3.5. Alemanha; 3.6. Reino Unido; 3.7. Itália; 3.8.Grécia;3.9. Conselho da Europa; 4 – Cartão de crédito; 4.1. Con-ceito; 4.2. Uso Criminoso do cartão de crédito; 5.– Assina-tura Digital; 5.1.Formas de acesso ao PIN contra a vontadedo titular; 5.2. Funções da assinatura eletrônica; 5.3. Mani-pulação da assinatura eletrônica; 5.3.1. Sujeito ativo; 5.3.2.Sujeito passivo; 5.3.3. Objeto material; 5.3.4. Objeto jurídi-co; 6. Conclusão.

1 - INTRODUÇÃO

Há pouco mais de trinta anos a elaboração eletrônica de dadosinvadiu todos os setores da sociedade, provocando verdadeira revolu-ção nos usos financeiros, comerciais e econômicos em geral.

O termo informática, nasceu da fusão de informação e automá-tica, entendendo-se como o conjunto de atividades e de noções queresguardam a representação, transmissão, transformação e elabora-ção automática das informações mediante cálculos eletrônicos. Astransformações introduzidas pela informática resguardam hoje, os di-versos setores da sociedade pós-industrial.

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O americano Donn B. Parker, um dos maiores especialistas em“computer crime”, cogitou da possibilidade de uma “guerra informática”entre Estados, onde se pode visualizar a tentativa de danificar ou des-truir os dados (arquivos ou banco de dados) nos sistemas informativosdo inimigo.

As questões mais suscitadas na atualidade referem-se à segu-rança das informações, nas quais o tema assinatura digital e fraudedos cartões de crédito se insere, dado que o núcleo essencial é justa-mente a informação.

O grau de virtualidade operativa desses sistemas, ante a ausên-cia de regulação legal, denota a necessidade do Direito Penal intervirnos crimes informáticos, cumprindo a sua função de instrumento dedefesa social que se circunscreve ao denominado “mínimo legal”.

Do ponto de vista jurídico, há a necessidade de segurança técni-ca dos dados, havendo uma tendência à uniformização das legisla-ções dos distintos Estados.

O pano de fundo dessa problemática é a segurança informática,dada a escassa propensão das empresas em investir nesse setor.Por segurança informática deve-se entender todas as medidas e téc-nicas necessárias para proteger o hardware, o software e os dadosdos acessos não autorizados (intencionais ou não), para garantir aprivacidade de eventuais usos ilícitos como a divulgação, modificaçãoou destruição. A segurança informática se estende à elaboração mes-ma dos programas de dados e dos arquivos.

Falar em segurança do sistema informativo implica necessaria-mente em três níveis:

a ) físico – isto é, salvaguarda de destruição do centro EDPe de tudo o que interessa a elaboração dos dados;

b ) lógico – realizada principalmente via software;

c ) legal – ou pelo menos controle dos tipos legais.

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2 – DIREITO ECONÔMICO

Trata-se de concepção jurídica de caráter político que, subordinaas instituições à organização econômica imposta pelo Estado.

O direito econômico não é um ramo do direito caracterizado porseu sujeito, objeto ou características especiais, senão uma transfor-mação dos princípios inspiradores de todo o direito patrimonial a im-pulsos de um movimento que, frente à ideologia do último século, so-brepõe o coletivo ao individual e o público ao privado1.

O Direito Econômico é concebido hoje como o conceito normativoque tem por objeto delimitar, preservar e proteger a “ordem públicaeconômica”, as diretrizes fundamentais dentro das quais devem de-correr as relações e transações de caráter econômico2.

2.1. Ordem Pública Econômica

É o conjunto de normas imperativas que se referem à organiza-ção econômica do Estado, devendo ser observadas pelas pessoasprivadas no exercício de suas atividades econômicas.

Do conceito acima explicitado apreende-se que, a organizaçãoeconômica é a expressão jurídica da ordem econômica fundamentalde uma sociedade determinada. No caso da República Federativa doBrasil, adotou-se o modelo econômico constitucional3. Desse modo, aCarta Magna disciplina a matéria no Título VII – “Da Ordem Econômicae Financeira”, Capítulo I – “Dos Princípios Gerais da Atividade Econô-mica”, a matéria nos arts 170/181.

1 RUBIO, Sobre el concepto de Derecho Mercantil, vol. IV, p. 353.2 HERRERO, Cesar Herrero. Los Delitos Economicos – Perspectiva Juridica e Criminologica,p. 33.3 Preleciona Herrero, C, op. cit., p. 34: “ Nos Estados de Direito, estas diretrizes podem estarestabelecidas na Constuição. Nesse sentido, pois, o Direito Econômico teria por objeto o modeloeconômico constitucional”.

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A opção política do legislador brasileiro está inserta no art. 170da Constituição Federal, in verbis:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorizaçãodo trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fimassegurar a todos existência digna, conforme os dita-mes da justiça social, observados os seguintes princí-pios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI- defesa do meio ambiente;

VII – redução das desigualdades regionais e soci-ais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas depequeno porte constituídas sob as leis brasileirase que tenham a sua sede e administração do país.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercí-cio de qualquer atividade econômica, independente-mente de autorização dos órgãos públicos, salvo noscasos previstos em lei.

2.2.Direito Penal Econômico

As normas econômicas possuem natureza jurídica diversa, des-tacando-se:

a ) as de caráter administrativo não sancionador – planifica-ção imperativa da economia nacional (Novoa Monreal, 1978);

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b ) as revestidas de obrigatoriedade em que sua não ob-servância (ilícito administrativo) tem por conseqüência aimposição de sanções de índole administrativa;

c ) as que culminam ao seu descumprimento efeitos pura-mente punitivos. Este grupo de dispositivos legais consti-tui o denominado Direito Penal Econômico.

O Direito Penal, entendido como instrumento de defesa social,possui relevância jurídica e social no caso de comprovada inutilidadeou insuficiência de outras sanções.

Desde esse ponto de vista fala-se no princípio da “mínima sufici-ência”, que se expressa na filosofia jurídica dizendo que o conteúdo daordem é um fim essencial da comunidade, o que pode acarretar, parasua consecução, graves restrições da liberdade pessoal dos cidadãos;também, por isso, há de praticar-se, unicamente, nos limites do estri-tamente indispensável, porque a liberdade pessoal tem que ser tutela-da como um bem jurídico em si4.

Jorge de Figueiredo Dias esclarece:

o lugar da liberdade vem a cobrir-se com a mais radicale originária das realidades: o existir humano; com quese abre à sua investigação um novo campo de possibi-lidades (para onde, de resto, apontam já quase todas asconsiderações críticas anteriores): o da essência da li-berdade se cobrir com a peculiaridade irredutível do ser-homem, o de constituir ela, afinal, a originalidade de ummodo de ser próprio que, como fundamento oculto, seexprime no homem e na sua obra5.

4 E. Fortuna. Manualle di Diritto Penale dell’Economia,, p. 3.5 Liberdade, Culpa, Direito Penal, p. 136.

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Nessa linha de raciocínio, Klaus Tiedmann preconiza:

É certo que, em muitos sistemas, é mais propiamentea legislação civil e administrativa que se encontram, emuito justamente, em primeiro plano na luta contra adelinqüência econômica. Isto é particularmente certono que afeta a proteção dos consumidores. O direitopenal não cumpre, pois, nesta esfera, mais que umafunção subsidiária em relação com o direito econô-mico, o direito comercial ou financeiro. Constitui tãosomente a “ultima ratio” reservada aos atos mais gra-ves contra a regulação da vida econômica. Ao mes-mo tempo, devido a limitar-se a proteger os valores einteresses fundamentais de uma sociedade determi-nada, o direito penal reflete, de forma quase negati-va, estes valores fundamentais e dirige a opinião pú-blica até a finalidade de criar ou manter certas regrasmínimas nas relações e transações econômicas6.

Apesar do número e da duração de esforços científicos no direitopenal, na criminologia e na política criminal no âmbito das empresas eda vida econômica, os conceitos e os princípios essenciais do direitopenal econômico e empresarial não são tão claros no direito compara-do. Uma das razões poderia ser o fato de que a maior parte das recen-tes reuniões científicas sobre o tema tem dirigido seu interesse sobretu-do aos problemas criminológicos, a causa de inegável importância atualdesses problemas, olvidados durante muito tempo pela criminologia tra-dicional. (…) Não obstante essas divergências conceituais e termi-nológicas, o tema do colóquio não deverá em nenhum caso restringir-seaos delitos e contravenções cometidos com ajuda de uma empresa(“corporate crime”). Deverá compreender também os delitos cometidospor particulares contra a ordem econômica (incluindo-se a legislaçãofinanceira e social). E, assim mesmo, aqueles atos que pretendem des-de sua origem uma finalidade delitiva de conteúdo econômico (“crime

6 Concepto y principios del Derecho Penal Económico – incluida a protección aos consumidores.Boletim de Informação do Ministério da Justiça da Espanha, n. 248-250 ( 1981 ), p. 119.

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as business”). A existência de uma afinidade com o crime organizadonão deve impedir o estudo desta parcela particularmente perigosa dacriminalidade econômica7.

2.3.Conceito de crime econômico

É a infração jurídico-penal que lesa ou põe em perigo a ordemeconômica. O conceito de ordem econômica, conforme foi expostoacima, pode variar de acordo com a opção política adotada pelo legis-lador nos diversos ordenamentos jurídicos.

2.4. Crimes econômicos praticados através das novastecnologias de informação8

Poder-se-ia apontar como crimes econômicos dessa natureza:

a ) fraude informática – consiste na manipulação de dadosinformáticos que conduz, na realidade, a uma fraude;

A manipulação da assinatura digital se insere dentro dessamodalidade. Através desse expediente permite-se o conhe-cimento do número do cartão de crédito, identificação dapessoa signatária, obtenção do número do banco, etc.

b ) espionagem informática – trata-se de hipótese de “pira-taria de programas”;

Apenas a título de ilustração, cumpre ressaltar que exis-tem dois códigos básicos que compõem o programa:

1 ) código fonte – conjunto de fórmulas matemáticas com-preensíveis pela mente humana;

2 )código máquina ( ou código objeto )– tradução da lin-guagem do código fonte para a “linguagem da máquina” demodo que essa se torne operativa.

7 Cfr. Klaus Tiedmann, op. cit., p. 118-119.8 Cfr. Carlos M. Romeo Casabona. La reforma penal ante as novas tecnologias de información,in: Informática e Diritto, 3 ( 1987 ), p. 115-118.

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A pirataria de programas implica na reprodução do códigoobjeto (ou código máquina). Quando visa tão somente de-cifrar o código fonte, modificando-o, ou não,configura aespionagem informática.

c ) sabotagem informática – consiste na destruição de pro-gramas inteiros;

Trata-se da atividade de “hacking” (penetração não autori-zada nos sistemas informáticos) e sobretudo pela difusãode vírus.

d ) utilização espontânea de computadores alheios.

Nesta seara, preocupante é a crescente infidelidade dos adep-tos do sistema informativo.

Diante desses comportamentos ilícitos, a utilização de preceitosdo direito penal tradicional (furto, roubo, fraude, falsificação documen-tal, danos, etc) é inadequada e, objetada pelos doutrinadores dada aincidência do princípio da legalidade ( nullum crimen sine lege ).

3 - CRIMES INFORMÁTICOS E DIREITO LEGISLADO

Duas são as técnicas legislativas utilizadas na tipificação dos cri-mes informáticos: a) objetiva – baseia-se pelo critério do bem jurídicotutelado, b) subjetiva – norteia-se pelo critério da conduta do agente.

3.1. Dinamarca

A Lei n° 284 de 6 de junho de 1984 sobre cartões de crédito,disciplina os sistemas de pagamento com cartão, assim como siste-mas de pagamento análogos.

O referido diploma legal determina a aplicação do princípio dasubsidiariedade expressa de seus preceitos. Apreende-se a referida pe-culiaridade a partir da dicção do legislador que, incluiu normas penais

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que prevêem penas e interdições nos casos de utilização fraudulenta,porém ressalvando a possibilidade de sua aplicação se outra lei pos-suir sanção maior.

A Lei n° 229 de 6 de junho de 1985, modificou os arts. 193, 263 e279 do seu Código Penal, prevendo a hipótese de impedimento aobom funcionamento dos computadores, o aceso ilegal as informaçõese aos programas informáticos.

3.2. Estados Unidos da América

a ) A primeira lei penal sobre informática foi a Counterfeit AcessDevice And Computer Fraud and Abuse, sendo integrada e substituídaem 1996 pela Computer Fraud and Abuse Act, publicada em 6 de outu-bro de 1996 ( Pubblic law 99-474 ).

b ) Lei federal sobre fraude em cartões de crédito, de 12 de outu-bro de 19849. Estabelece penas severas no tocante a utilização frau-dulenta e falsificação de cartões;

Após a adoção da Credit Card Fraud Act, houve uma redução de50% concretamente entre 1985 e 1986, relativa a perdas por fraudenos cartões de crédito.

c ) Lei federal sobre veracidade nas operações de empréstimo10

- entrou em vigor em 1969 e foi modificada em 1970, 1974 e 1976. Tempor objeto proteger os consumidores nas operações de crédito. Nasseções 12 e 14 regula a emissão e utilização dos cartões de crédito e,também sanciona a utilização ilegal ou fraudulenta de cartões.

3.3. Portugal

A Lei n°. 109 de 17 de agosto de 1991 disciplinou o falso informático,a sabotagem informática, o acesso não autorizado, a interceptação ile-gal das comunicações no âmbito dos sistemas informáticos.

9 Credit Card Fraud Act of 1984 ( 18 USCS § 1029 [1996 ] ).10 Truth in Lending Act o Consumer Credit Protection Act of 1968.

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3.3.França

A Lei n° 19/88 estabelece o crime de falsificação de documentosinformatizados. Todavia, no tocante aos desvios na utilização dos car-tões de créditos, nada dispôs a respeito.

Em sede de criminalidade informática, a Lei n° 6619 de 5 de feve-reiro de 1988, introduziu o novo Capítulo III do Título II do Livro IV docódigo penal intitulado “Algumas infrações em matéria informática”. As-sim, foram introduzidos os arts. 462.7 e 462.8. no referido diploma legal.

O primeiro reveste particular importância ao punir a tentativa paraos delitos informáticos previstos nos arts. 462.1, 462.3, 462.4, 462.5 e462.6, com as mesmas penas previstas para o crime consumado.

O art. 462.8 prevê a participação de uma “associação” formada(ou um acordo estabelecido) com a finalidade de preparar, concretizarum ou mais falsos materiais, de uma ou mais das infrações previstasnos artigos precedentes e pune com a mesma pena prevista para ainfração mesma, ou no caso de concurso de crimes, com a penaestabelecida para a mais grave das infrações.

3.4.Alemanha

O parágrafo 263 do Código Penal, introduzido pela Lei de 15 demaio de 1986, prevê a figura da “manipulação de computadores”. Areferida figura delitiva integra a “utilização não autorizada de dados”,concebida como “modalidade autônoma da ação, destinada a influen-ciar o resultado de um processo de elaboração eletrônica de dados”.

Hipóteses como reprodução ilícita da senha do cartão de créditoou outros abusos levados a cabo com cartão magnético roubado oufalsificado, encontraria adequação típica no referido dispositivo.

No tocante aos crimes informáticos em geral,existe umanormativa detalhada e completa. Trata-se, em particular, de uma se-ção da Segunda Lei relativa à criminalidade econômica, aprovada em15 de maio de 1996.

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A lei em questão prevê hipóteses de espionagem de dados, dafalsificação de dados dotados de valor probatório, da alteração dosdados e da sabotagem informática.

3.5.Reino Unido

No tocante ao uso fraudulento de cartões de pagamento se apli-ca a lei sobre falsificações de 1981 de 27 de julho de 198111.

Aplica-se, ainda, a Lei sobre prova penal de 198412.

Na Inglaterra, o Computer Misure Act, aprovado em 20 de junhode 1990, prevê o acesso não autorizado puro e simples ao materialinformático com o fim de cometer ou agilizar o cometimento de um futu-ro crime, a modificação não autorizada no conteúdo de um computador.Com base nesse diploma legal um médico inglês difamado na Internetfoi ressarcido pelo provedor com a soma de 600 milhões de libra.

3.6. Itália

Em 1990 é publicada a Lei 23 de dezembro de 1993. Possui seuantecedente histórico na Comissão denominada do ministro Vassalide 1989 que, adotou o modelo “evolutivo”, no tocante aos crimesinformáticos. Por esse modelo, modifica-se as normas já existentesno código penal, estendendo o significado, de modo a incluir novoscrimes informáticos.

3.7. Suíça

Introduziu em 1996 modificações no seu sistema penal com afinalidade de assegurar uma proteção contra atos encontrados no âmbitoda criminalidade informática. Esta lei entrou em vigor em 10 de julhode 1996, modificando-se também dois artigos do Código Penal. Em

11 The 1981 Forgery and Counterfeiting Act of 1981.12 The Police and Criminal Evidence Act of 1984.

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particular, o crime de fraude informática, estabelecendo : quem, forne-cendo informações não corretas ou incompletas, alterando um progra-ma ou um registro ou modificando, de qualquer outro modo e sem auto-rização, o resultado de um processo de informação autorizado, de talmodo obtém uma vantagem para si ou ocasiona uma perda para outrossujeitos (norma inserta na seção 1 do capítulo 9 do Código Penal suíço).

3.8. Grécia

A Lei n° 1800 de 30 de agosto de 1988, introduziu algumas modi-ficações no Código Penal, ao equipar os documentos escritos aos da-dos contidos na elaboração de documentos eletrônicos, dispondo so-bre a “fraude informática”. O tipo penal refere-se à divulgação ilícitados dados ou programas que contém dados estatais, científicos ouprofissionais ou sigilosos. O refeido diploma normativo considera comodados sigilosos aqueles retidos por um sujeito por motivo justificado.

3.9.1. Conselho da Europa

Em 1989, foi elaborada uma lista mínima e uma lista facultativafacultativa a serem adotadas pelos países membros da ComunidadeEuropéia, na prevenção e repressão dos crimes informáticos:

A ) Lista mínima

a ) fraude informática;

b ) falso informático;

c ) dano dos dados ou programas informáticos;

d ) acesso abusivo a um sistema ou rede informática;

e ) interceptação abusiva de comunicações;

f ) reprodução abusiva de programas informáticos protegi-dos pela lei;

g ) reprodução não autorizada de uma topografia ( isto é,do circuito de um microprocessador n. d. r. ).

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B ) Lista facultativa

a ) alteração dos dados ou programas informáticos;

b ) espionagem informática;

c ) utilização não autorizada de um computador;

d ) utilização não autorizada de programas informáticosprotegidos pela lei;

4 – CARTÃO DE CRÉDITO

4.1. Conceito

O cartão de crédito é um documento nominativo legitimante,intransferível, cuja finalidade é permitir ao usuário beneficiar-se comas finalidades de pagamento pactuadas com o emissor e as resultan-tes do contrato celebrado entre este e o provedor do bem ou serviçorequerido por aquele13.

O cartão de crédito é emitido em favor do usuário, e é o docu-mento indispensável para executar o rol de direitos que surgem darelação trilateral conformadora sobre a base da celebração dos con-tratos: a ) entre a emissora com a pessoa a quem se lhe entrega; b )entre a emissora e o comerciante14.

4.2. Uso Criminoso do cartão de crédito

Geralmente, o uso delitivo do cartão de crédito é efetuado porterceiros não intervenientes na relação jurídica. Sem embargo, exis-tem hipóteses de conivência tanto de titulares como de proprietários

13 FARINA, Juan M. Contratos Comerciais Modernos, p. 601.14 Idem, ibidem, p. 601.

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de estabelecimentos aceitantes e/ou empregados dos mesmos, comodos próprios emissores, não pessoalmente senão sempre em virtudeda infidelidade de seus empregados ou colaboradores.

A ) Hipóteses de uso abusivo pelo titular15:

a ) configura-se o delito de fraude a obtenção de cartão decrédito com o propósito de realizar compras por um mon-tante que excederia a possibilidade de pagamento;

b ) existe um ardil inicial, que permite a realização do apro-veitamento patrimonial mediante a utilização do cartão decrédito muito acima do permitido, se o certificado apresen-tado era o suficiente equívoco como a induzir a um decisi-vo erro sobre o soldo regular e de um bom nível;

c ) a adulteração do cartão de crédito para ocultar sua ca-ducidade aos comerciantes do local em que se adquiremercadoria, configura uso de documento privado adultera-do em concurso ideal com fraude.

B ) Conduta Do Comerciante16

a ) comete o crime de fraude mediante uso de documentoprivado falso ( arts. 172 e 292, Código Penal Espanhol ) ocomerciante que falsifica formulários de crédito fazendofigurar uma compra inexistente e inserindo os dados dostitulares de cartões de crédito, e os negocia por um preçoinferior ao que figura neles17.

15 Amadeo, CNCrimCorr, sala VI, 31/7/85, in: Tarjeta de Crédito, JA, 1987-IV-1059 e ss.16 Idem ibidem, pp. 1059 e ss.17 No Brasil, a conduta configura o crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal) emconcurso com o crime de falsidade ideológica ( art. 299 do Código Penal ). Todavia o crime-meio(falsificação) restaria absorvido pelo crime-fim ( uso de documento falso ), porém há entendimen-tos doutrinários divergentes a respeito. Cumpre ressaltar que as condutas supra-citadas estãodispostas no Título X – “ Dos Crimes Contra a Fé Pública” de nosso diploma punitivo.

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C ) Conduta de terceiros

O cartão pode funcionar como forma de realização direta do cri-me ou como meio para a realização da atividade delitiva. Em qualquercaso estaremos diante de delitos patrimoniais.

Poder-se-ia apontar como hipóteses de uso criminoso do cartãode crédito, independentemente da qualificação penal dos mesmos:

a ) meio de pagamento de coisas ou serviços em estabe-lecimentos públicos ;

b ) sacar dinheiro da conta vinculada ao cartão, através decaixas automáticos etc.

O apoderamento de fato do cartão de crédito, pode ser conside-rado pelo direito penal tradicional como furto, fraude ou apropriaçãoindébita, segundo a modalidade comissiva. A regra do concurso decrimes (art. 69 a 71 do Código Penal Brasileiro) pode ser aplicada quan-do essa atividade punível por si só encerra outra ação constitutiva docrime, como a extração de dinheiro de um caixa automático, com car-tão indevidamente possuído pelo sujeito.

A diversidade de funções que hoje se assinalam aos cartões nasrelações normais do comércio (instrumentos de pagamento, instru-mentos de crédito, instrumentos de garantia, instrumentos deacreditação, etc) dá idéia do complexo elenco de possíveis condutasilícitas e abusivas relacionadas com as mesmas.

Todavia, o uso do cartão de crédito com manipulação do siste-ma ou rede de comunicações, escapa do mero uso do mesmo. Ocartão é utilizado fraudulentamente, porém neste caso não é o objetoprincipal do delito, mas apenas um meio posterior ou anterior àquele,idôneo para desfrutar do ato delitivo.

Trata-se de hipótese de fraude informática, segundo qualifica-ção da doutrina penal moderna.

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5. ASSINATURA DIGITAL

A assinatura digital é elemento desconhecido no Direito: firmafotostática, mecânica. Trata-se de evolução dos meios através dosquais se emitem vontade e promessas.

Cumpre a mesma função das firmas (assinaturas) manuais. Éde se ressaltar que nos ordenamentos jurídicos os Códigos Civis ouComerciais, via de regra, não possuem um capítulo dedicado à firmamanual. De outra parte, o art. 225 do Novo Código Civil atribui valorprobatório pleno à assinatura digital, na hipótese de ausência deimpugnação pela parte a quem for exibido o documento.

A assinatura digital vem sendo utilizada há vinte anos sem ex-pressa previsão legislativa. A esse respeito preleciona José HenriqueBarbosa Moreira Lima Neto:

Concluindo, não restam dúvidas que ainda que sem um discipli-namento específico, como ocorre com os cartões de crédito, o meioeletrônico vêm legitimado por um uso reiterado. O emprego do meioeletrônico em atividades comerciais, por exemplo, através de práticasrepetidas, deverá transformá-lo em verdadeiro uso comercial.18

A firma digital pode ser utilizada em entornos fechados ou abertos(internet). No primeiro caso, a mensagem de dados circula por um en-torno que utiliza os sistemas SWIFT, BOLERO, EDI. No segundo caso,embora atribua-se as mesmas funções, esta possui faces distintas,podendo ser inserir no contexto de um negócio jurícico celebrado entreempresários (B2B) ou entre empresário e consumidor (B2C).

Quando a firma digital é utilizada entre empresários, o objeto ju-rídico protegido não é propriamente o conteúdo, mas a segurança deque a mensagem não se perca, nem se altere durante o percurso,pois as partes são previamente conhecidas (EDI).

18 José Henrique Barbosa Moreira Lima Neto, Aspectos jurídico do documento eletrônico, p. 8.Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1780. Acesso em: 18 de marçode 2003.

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A principal função da assinatura é a atribuição da mensagem dedados de quem está celebrando o contrato, pois as pessoas não seconhecem. A relevância da identificação e atribuição no comércio ele-trônico é dada por uma função de segurança. Busca-se em primeirolugar a identificação das partes (essa ênfase não é necessária no en-torno fechado, pois as partes já se conhecem).Na hipótese de rela-ções de consumo, o uso do cartão de crédito com sua senha satisfaza segurança da mensagem durante o trajeto. A assinatura serve paraassegurar as partes que estão celebrando o contrato, pois estas nãose conhecem (v. g., um cliente que compra uma máquina fotográficabusca qual o vendedor eletrônico que oferece o melhor preço).

A assinatura eletrônica equivale funcionalmente à assinaturamanual, sendo largamente utilizada no comércio eletrônico.

Cerca de quinze países já disciplinaram a firma eletrônica, ex-cluindo do princípio da equivalência funcional: negócios jurídicos deimóveis; família e filiação; a atividade do notário (a assinatura eletrôni-ca nunca equivale funcionalmente à assinatura manual do notário).

A segurança que a assinatura digital pretende proporcionar é an-tes de tudo jurídica, visando ao seu reconhecimento nos tribunais. To-davia, para a obtenção desse efeito deve ser efetuada através de umtecnologia compatível, ou seja, aquela que não seja facilmente “burlável”ou “pirateável”.

Destarte, sempre existe um elemento de insegurança jurídicapresente nessas relações dada a possibilidade de ser interceptada,lida, modificada no mundo da internet. Mutatis mutandis, a assinaturamanual pode ser falsificada. Nesse ínterim, resta ao Direito Penal, noexercício de sua função de mínimo vital, tipificar a matéria.

O próximo passo desses instrumentos é a utilização da senha(número de identificação pessoal, PIN). Trata-se de instrumento queoferece maior segurança em relação a mensagem de dados firmadaseletronicamente. Porém, é facilmente vulnerável, embora seja maissegura que a assinatura digital ou e-mail. Pode ser utilizado através dosistema da chave única ou dupla chave (do emissor da mensagem e ado destinatário da mensagem, podendo ser pública ou privada).

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Na chave única (sistema simétrico) o destinatário aplica a chavedo signatário e, a mensagem é decifrada. O referido mecanismo é com-posto por cerca de 120 dígitos, sendo que uma máquina mais potenteleva dias para decifrar. O inconveniente é a necessidade do envio damesma de forma separada para cada destinatário. A possibilidade deum terceiro não autorizado ter acesso à mesma é considerável.

A tecnologia dominante é a da chave dupla (sistema assimétrico).Há uma chave para fechar a mensagem e outra para abri-la. A chaveda assinatura é privada do signatário. A chave pública é transmitida aodestinatário da mensagem de dados.

A chave pública ampara-se em um certificado de assinatura pe-los prestadores de serviço de certificação (ou autoridade de certificação– nos países em que a matéria foi disciplinada; porém não são autori-dades públicas).

O prestador de serviço de certificação administra a chave públi-ca e a chave privada, ou seja, possui um repertório público das chavespúblicas de seus clientes. Caso a chave pública não coincida com achave privada, a mensagem não se abre.

Desse modo, a assinatura não é uma identificação aposta nofinal do documento, mas uma combinação de dígitos única e irrepetível.

Pode-se apontar ainda as hipóteses de biometria ou assinaturabiométrica : se baseia em caracteres biológicos do destinatário, sus-cetível de identificação (v. g. , íris do olho, impressão digital, odor, etc).A assinatura biométrica significa aplicar os caracteres biométricos amensagem de dados. O único incoveniente desse método é o de quenão é passível de reposição, como se faz com outras chaves.

5.1.Formas de acesso ao PIN contra a vontade do titular

a ) obtenção do escrito onde o titular o tenha anotado, sejapor roubo, furto do mesmo, cópia, etc;

b ) comunicação oral mediante engano do agente do cri-me, que chama o titular fazendo-se passar por empregado

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do emissor, que precisa do PIN para confeccionar um novocartão para o titular, a quem acaba de subtrair o cartão;

c ) manipulação do sistema, especialmente da memória docomputador o qual está conectado o próprio caixa automáti-co, por exemplo, obtendo mediante analizadores a decodifi-cação dos dados durante a sua transmissão pela rede;

d )comunicação a um empregado do emissor para quecolabore com o ato criminoso etc.

5.2. Funções da assinatura eletrônica:

a ) autenticação – consiste na identificação e atribuição damensagem de dados, bem como a informação contida nele.

Implica na identificação do destinatário e atribuir o conteú-do da mensagem, de forma que não possa ser repudiadapelo signatário o seu conteúdo.

É o mesmo efeito que cumpre a firma autógrafa.

Trata-se de função relativa, pois é feita por semelhança.

b ) privacidade

A assinatura digital permite decodificar a mensagem, nomee outros dados do assinante.

Através desse expediente impede-se o conhecimento dosdados que circulam decodificados ( criptografados ) no en-torno aberto, impossibilitando o acesso ao número do car-tão de crédito, identificação da pessoa e qual é o banco.

c ) integridade

A tecnologia utilizada pela assinatura digital deve explicitarqualquer abertura ou alteração na mensagem de dados fir-mados entre signatário e destinatário.

A lei européia exige que as três condições acima sejamsatisfeitas pelas assinaturas avançadas.

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5.3. – Manipulação da assinatura eletrônica

Ao obter uma determinada assinatura digital através da manipu-lação do sistema ou rede de comunicações, o agente obtém todas asinformações necessárias para a consecução de posteriores fraudesde cartão de crédito. Desse modo, o cartão de crédito utilizado fraudu-lentamente não é o objeto principal do delito, mas apenas um meioposterior àquele.

É de se ressaltar que, o acesso aos dados que compõem a as-sinatura digital não é um acesso físico, mas eletrônico ou telemático.

Procurou-se fazer uma descrição hipótética do crime de mani-pulação de firma eletrônica19.

5.3.1. Sujeito ativo

a ) entornos fechados (EDI) – parte interveniente na rela-ção jurídica.

b ) entornos abertos (internet) – qualquer pessoa.

5.3.2. Sujeito passivo

a) entornos fechados (EDI) – parte interveniente na rela-ção jurídica.

Em outros termos, o empresário que tenha relações co-merciais com outro empresário conhecido (sistema B2B).

b ) entornos abertos (internet) – qualquer pessoa.

5.3.3. – Objeto material

O objeto material dos crimes informáticos latu sensu é o denomi-nado bem informático.Trata-se de bem incorpóreo com características

19 Já que não se encontra tipificação legal específica em nossa legislação pátria. Já se ressaltoua inadequação do uso das figuras penais tradicionais, dado que o mesmo ofende o princípio dalegalidade ( nullum crimen, nulla poena sine lege ).

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de direito real, ou seja, de inerência do direito bem que representa oobjeto, de jus in re propria. Apresenta-se também como defesa dosdireitos garantidos na Constituição.da República Federativa do Brasil.

O tema está inserto na Constituição portuguesa de 76 de forma ex-pressa no art. 35 e, na Constituição espanhola de 1978, nos arts. 18 e 105.

No crime de fraude de firma eletrônica aposta na utilização de umcartão de crédito na formação de um contrato, o objeto material não é ocartão de crédito (cartão de plástico ou dinheiro de plástico como deno-minam os autores), mas a informação contida nele. Em outros termos,o objeto material do delito são os dados que se traduzem na denomina-da firma digital, qualquer que seja a tecnologia empregada.

5.3.4. Objeto jurídico

O objeto jurídico é a segurança das informações nas relaçõeseconômicas.

6 - CONCLUSÃO

A proteção das informações que circulam no meio eletrônico é umbem digno de tutela penal, no exercício de sua função de “mínimo vital”.

A inadequação dos dispositivos penais vigentes frente à essanova forma de criminalidade ( “computer crime” ), conduz à reflexão.Uma suposta adequação típica do crime de assinatura eletrônica comos crimes de falsificação previstos no Título X – “Dos Crimes Contra AFé Pública” do Código Penal Brasileiro implicaria em um afronta aoprincípio da legalidade.

Celeste Leite dos santos,

advogada, doutora em Direito pela FADUSP, especialistaem Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra

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constitucionais constitucionais constitucionais constitucionais constitucionais tributários tributários tributários tributários tributários

Elaine garcia ferreira

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A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOSCONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS

Elaine Garcia Ferreira

Súmário: I - Introdução. 1. O Subsistema ConstitucionalTributário. 2. Princípios Jurídicos. 2.1. Diferença entre prin-cípios e regras. 2.2. Princípios Constitucionais Gerais. 3. AForça Normativa dos Princípios Constitucionais Tributári-os. 3.1. A Supremacia Constitucional Tributária e o Contro-le do Poder de Tributar. 3.2. Princípio da estrita legalidadeTributária. 3.3. Princípio da anterioridade Tributária. 3.4.Princípio da proibição do tributo com confisco. II.Conclusão.

I - INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico é formado por um conjunto de normasdispostas hierarquicamente. Nela as normas inferiores buscam vali-dade nas normas que lhe são superiores e, assim, sucessivamenteaté as normas constitucionais. A Constituição ocupa neste conjunto opatamar mais elevado dando fundamento de validade às demais nor-mas jurídicas, pois ela representa o escalão do direito positivo maiselevado que dá validade a si próprio já que encarna a soberania doestado que a editou. Num Estado Democrático de Direito a Constitui-ção é a lei máxima que submete todos os cidadãos e os próprios Pode-res Legislativo, Executivo e Judiciário. Uma norma jurídica só será válidase estiver em harmonia com as normas constitucionais. Nas Constitui-ções rígidas como a brasileira as normas constitucionais legitimam todaa ordem jurídica. As leis, os atos administrativos as sentenças valemem última análise enquanto desdobram mandamentos constitucionais.Conclui-se que as normas constitucionais além de ocuparem a cús-pide da pirâmide jurídica, caracterizam-se pela imperatividade de

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seus comandos, que obrigam não só as pessoas físicas ou jurídicasde direito público ou de direito privado como o próprio Estado. A Cons-tituição é Lei fundamental do Estado.

Como bem ensina José Afonso da Silva:1

“As Constituições têm por objeto estabelecer a es-trutura do Estado, a organização de seus órgãos, omodo de aquisição do poder e a forma do seu exercí-cio, limites de sua atuação e assegurar os direitos egarantias dos indivíduos e fixar o regime político edisciplinar os fins sócios e econômicos do Estado,bem como os fundamentos dos direitos econômicossociais e culturais”.

Para Gomes Canotilho, a superioridade hierárquica da Constitui-ção se revela da seguinte forma:2

“As normas de Direito constituem uma lei superiorque recolhe o fundamento de validade em si própria,as normas de direito constitucional são normas dasnormas afirmando-se como fontes de produção jurí-dica de outras normas e a superioridade normativadas normas constitucionais implica o princípio da con-formidade de todos os atos dos poderes políticos coma constituição”.

Mas mesmo na Constituição existem normas mais importantese menos importantes, As normas constitucionais não possuem todas,a mesma relevância já que algumas veiculam simples regras ao pas-so que outras verdadeiros princípios. Os princípios são as diretrizes eos nortes do ordenamento jurídico. A Constituição é um conjunto deregras e princípios jurídicos atuais e vinculantes. Os princípios possu-em acentuados graus de abstração traçando as diretrizes doordenamento jurídico.

1 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 10º edição, Malheiros Editores,2000, p.46.2 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5º edição, Coimbra, Livraria Almedina,1991 p.141.

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É preciso ressaltar que o constitucionalismo contemporâneoapresenta um problema que está presente no quadro interpretativo ena hermenêutica jurídica quando se fala em normatividade das Cons-tituições tanto das normas programáticas e sobretudo o grau de eficá-cia e aplicabilidade de todas as normas da Constituição. O recurso àsnormas programáticas vai projetar as bases na qual o Estado de Direi-to se apresenta por inteiro e se solidifica na medida que conseguerefletir a normatividade dessas normas atribuindo eficácia a elas. Se-gundo Paulo Bonavides:3

“Atribuindo-se eficácia vinculante à norma programáticapouco importa que a Constituição esteja ou não repletade proposições desse teor, ou seja, de regras relativas afuturos comportamentos estatais. O cumprimento doscânones constitucionais pela ordem jurídica terá dado umlargo passo à frente. Já não será fácil com respeito àConstituição tergiversar-lhe a aplicabilidade e eficácia dasnormas como os juristas abraçados à tese antinormativa,os quais, alegan-do programaticidade de conteúdo, cos-tumam evadir-se ao cumprimento ou observância de re-gras e princípios constitucionais”.

Deve-se sustentar que a supremacia constitucional serve demecanismo jurídico para garantir um Estado Social de Direito e impe-dir os abusos de poder e arbitrariedade , principalmente no campo datributação, observando também os princípios jurídico-constitucionaisque são especialmente eles que dirigem a atuação de todas as nor-mas jurídicas interferindo por conseguinte no exercício da competên-cia tributária.. Os princípios jurídicos constituem a base do ordenamentojurídico e as idéias fundamentais e informadoras da organização jurídi-ca da Nação. Como observou Luis Roberto Barroso:4

“O ponto de partida do intérprete há que ser sempreos princípios constitucionais que são o conjunto de

3 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 10º edição, Malheiros editores, 2000, p.211.4 Luis Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, 1º edição, São Paulo, Saraiva,1996, p.141.

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normas que espelham a ideologia da Constituição,seus postulados básicos e seus fins. Dito de formasumária, os princípios constitucionais são as normaseleitas pelo constituinte como fundamentos ou quali-ficações essenciais da ordem jurídica que institui”.

A Constiuição de 1988 tem o propósito de transformar a Repú-blica brasileira num Estado Democrático de Direito, submetendo a açãotributária das pessoas políticas a um extenso rol de princípios ( federa-tivo, da legalidade, da igualdade, da anterioridade, da segurança jurídi-ca, da reserva de competência etc...) que protegem ao máximo oscontribuintes contra eventuais abusos fazendários.

1. O SUBSISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

A Constituição brasileira é um sistema de proposições normativas,integrante de outro sistema de amplitude global que é o ordenamentojurídico vigente. Partindo para a análise dos subsistemas nele existentetemos o Subsistema Constitucional Tributário que para o autor Paulo deBarros Carvalho,5 é formado pelo quadro orgânico das normas que ver-sem matéria tributária em nível constitucional. Para ele a homogeneidadedesse grupamento de regras está determinada, assim pela naturezalógica das entidades normativas, que pelo assunto sobre que dispõem.Atribuem-lhe unidade duas circunstâncias: estarem todas elas legitima-das pela mesma fonte - a norma hipotética fundamental e consubstan-ciarem o ponto de confluência do direito positivo no que concerne àmatéria que lhes dá conteúdo. Como acrescenta o autor, o subsistemaconstitucional tributário realiza as funções do todo, dispondo sobre ospoderes capitais do Estado no campo da tributação ao lado das medi-das que asseguram as garantias imprescindíveis à liberdade das pes-soas, diante daqueles poderes. Uma construção harmoniosa e con-ciliadora, que visa atingir o valor supremo da certeza, pela seguran-ça das relações jurídicas que se estabelecem entre Administração e

5 Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, 14º edição ver. e atual., São Paulo:Saraiva, 2002 p.139.

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Administrado. Ao fazê-lo anuncia normas que são verdadeiros princípi-os tal o poder aglutinante que são portadoras penetrando e influencian-do um número de outras regras que lhe são subordinadas.

Esse quadro tributário encontra-se regido por muitos princípiosconstitucionais tributários acentuado pela rigidez, especificamentecanalizados para o campo tributário. É importante ressaltar que hámuitos princípios constitucionais gerais que devem ser respeitadoscomo linhas diretivas do ordenamento como os seguintes princípios:princípio da justiça, princípio da certeza do direito, princípio da segu-rança jurídica, princípio da igualdade, princípio da irretroatividade dasleis, princípio da universalidade da jurisdição, princípio que consagra odireito de ampla defesa e o devido processo legal, princípio que afirmao direito de propriedade, princípio da supremacia do direito público aodo particular, princípio da indisponibilidade dos interesses públicos,princípio Republicano, princípio Federativo etc....

O Intérprete do Direito deve enquadrar a um caso concreto anorma jurídica adequada, submetendo às prescrições da Lei, procu-rando e indicando o dispositivo adaptável a um fato determinado. ODireito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse co-letivo e também no individual. Interpretar é explicar, esclarecer, dar osignificado de vocábulo, atitude ou gesto, reproduzir por outras pala-vras um pensamento exteriorizado, mostrar o sentido verdadeiro deuma expressão, extrair da norma tudo que a mesma contém. Graçasao conhecimento dos princípios que determinam a correlação entre asleis dos diferentes tempos e lugares, sabe-se qual o complexo de re-gras que se enquadra num caso concreto. Pode toda regra jurídica serconsiderada como uma proposição que subordina a certos elementosde fato uma consequência necessária; incumbe ao intérprete desco-brir e aproximar da vida concreta, não só as condições implícitas notexto como também a solução que esse liga às mesmas.O autor CarlosMaximiliano no seu livro Hermenêutica e Aplicação do Direito dispõe oseguinte sobre o tema da interpretação:6

6 Hermenêutica e Aplicação do direito, Carlos Maximiliano, Rio de janeiro: Forense, 2003 p.247.

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“Preceito preliminar e fundamental da Hermenêuticaé o que manda definir, de modo preciso, o caráterespecial da norma e a matéria de que é objeto, e indi-car o ramo do |Direito a que a mesma pertence, vistovariarem o critério de interpretação e as regras apli-cáveis em geral, conforme a espécie jurídica de quese trata. A teoria orientadora do exegeta não podeser única e universal, a mesma para todas as leis,imutáveis no tempo; além dos princípios gerais,observáveis a respeito de quaisquer normas, há ou-tros especiais, exigidos pela natureza das regras ju-rídicas, variável conforme a fonte de que derivam, osistema político a que se acham ligadas e as catego-rias diversas de relações que disciplinam.”

2. PRINCÍPIOS JURÍDICOS. CONCEITO

Etimologicamente o termo “princípio” ( do latim principium, principii)traz a idéia de começo, origem. E em qualquer Ciência, princípio é co-meço, alicerce. Na compreensão do Direito como um sistema jurídico,é composto por normas jurídicas e estas são informadas por princípiose valores. Os princípios jurídicos são reconhecidamente adotados comomarco inaugural e fonte primordial de todos os sistemas jurídicos cons-titucionais. Sendo instrumentos eficazes de interpretação e integraçãodo direito nos diversos ramos da ciência jurídica. Estes podem ser implí-citos ou explícitos quando previstos no ordenamento jurídico e utilizadospara a correta aplicação aos casos que lhe são destinados.

A Corrente Jusnaturalista concebia os princípios gerais de Direi-to em forma de “axiomas jurídicos”. Com o advento da Escola Históri-ca do Direito e com a elaboração dos Códigos, o Direito Natural clássi-co entra em decadência, surgindo ao mesmo passo, desde o séculoXIX até a primeira metade deste século, a expansão doutrinária doPositivismo jurídico. A concepção positivista sustenta basicamente que

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os princípios gerais de Direito equivalem aos princípios que informamo Direito positivo e lhe servem de fundamento.

A principal característica do positivismo por um lado como movi-mento filosófico que marcou o século XIX, foi a rejeição de toda e qual-quer influência metafísica. Através do método “científico” estritamentebaseado na observação e nos experimento dos fatos positivos da rea-lidade, acreditavam os positivistas ser possível estabelecer leis e fór-mulas gerais para as diversas ciências. O Positivismo jurídico nascedo esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e ade-quada ciência que tivesse as mesmas características das ciênciasfísico-matemáticas, naturais e sociais. A característica fundamental daciência consiste é na distinção entre juízos de fato e juízos de valor. Aciência exclui do próprio âmbito, os juizos de valor, porque ela desejaser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto osjuízos em questão são sempre subjetivos ( ou pessoais) e contrários àexigência da objetividade. O Positivismo jurídico representa, portanto,o estudo do direito como fato, não como valor, na definição do direitodeve ser excluída toda qualificação que seja fundada em juízo de valore que comporte a distinçao do próprio direito em bom ou mau Nopositivismo jurídico se utilizava de um método próprio e de umformalismo reconhecendo o caráter de direito às normas jurídicas.

Já na fase do pós-positivismo surgem mudanças representati-vas que culmina com a compreensão dos princípios jurídicos e com oentendimento de sua natureza, sendo admitidos como normas- valo-res com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos.Para o autor Paulo Bonavides:7

“Com o pós-positivismo, que corresponde aos gran-des momentos constituintes das últimas década des-te século. As novas Constituições promulgadas acen-tuam a hegemonia axiológica dos princípios, conver-tidos em pedestal normativo sobre o qual assentatodo o edifício dos novos sistemas constitucionais.”

7 Paulo Bonavides, op. cit. P.237.

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Para o autor o exame teórico da juridicidade dos princípios cons-titucionais é indissociável de uma prévia indagação acerca da eficácianormativa dos princípios gerais de Direito, cujo ingresso nas constitui-ções se faz com a força positiva incontrastável, já que na Segundametade deste século surge uma revolução de juridicidade quando osprincípios gerais se transformam em princípios constitucionais.De acordo com Roque Antonio Carraza:8

“Sendo o princípio a pedra de fecho do sistema aoqual pertence, desprezá-lo equivale na maioria dasvezes, a incidir em erronia inafastável e de efeitosbem previsíveis: o completo esboroamento da cons-trução intelectual”.

E para o autor Antonio Bandeira de Mello:9

“O princípio é por definição mandamento nuclear dosistema, verdadeiro alicerce dele e disposição fun-damental que se irradia sobre diferentes normas com-pondo-lhes o espírito e servindo de critério para suaexata compreensão e inteligências exatamente pordefinir lógica e a tradicionalidade do sistema normativono que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmôni-co. É o conhecimento dos princípios que preside aintelecção das diferentes partes componentes detodo o sistema jurídico positivo”.

2.1 Diferença entre princípios e regras

Partindo da análise da norma jurídica e da sua concepção jurídica,pode-se discutir a diferença entre regras e princípios e a sua posição noordenamento jurídico, como também analisar o seu alcance com baseno estudo teórico do pensamento positivista e do pós-positivismo queapresentam diferentes critérios para estabelecer a diferença entre

8 Roque Antonio Carraza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 17º edição, MalheirosEditores, 2001, p.31.

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regras e princípios. Cumpre mencionar as lições do professor de CoimbraJosé Joaquim Gomes Canotilho que estabelece critérios para a distin-ção entre regras e princípios sob a influência das idéias de Ronald Dworkine J. Esser nos seus estudos sobre a matéria:

“Grau de Abstração; os princípios são normas comum grau de abstração relativamente elevado, demodo diverso, as regras possuem uma abstraçãorelativamente deduzida;

Grau de determinalidade na aplicação do caso con-creto, os princípios pôr serem vagos e indeterminadoscarecem de medições concretizadoras ( do legisla-dor? Do juiz?) enquanto as regras são suscetíveisde aplicação direta;

Caráter de fundamentalidade no sistema das fontesde direito : os princípios são normas de natureza oucom papel fundamental no ordenamento jurídico de-vido à sua posição hierárquica no sistema das fon-tes ( ex. princípios constitucionais) ou a sua impor-tância estruturante dentro do sistema jurídico ( ex:princípio do Estado de Direito);

Proximidade da idéia de direito: os princípios são“standards” juridicamente vinculantes radicados nasexigências de justiça ou na idéia de direito, as regraspodem ser normas vinculativas com um conteúdomeramente funcional;

Natureza Normognética: os princípios são fundamen-tos de regras, isto é, são normas que está na baseou constituem a ratio de regras jurídicas, desempe-nhando por isso uma função normogenéticafundamentante”.10

10 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição: editora Almedinapp. 1034-1035.

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No plano teórico o tema dos princípios e a força jurídica atribuídaa eles está intimamente ligado ao questionamento surgido no pós-positivismo, contrário as idéias positivistas, concebendo o sistema ju-rídico como um conjunto de regras e princípios e não somente comoum sistema de regras como ocorria no positivismo clássico. No mes-mo sentido assinala o jurista italiano Norberto Bobbio:11

“Os princípios Gerais são normas a meu ver normasfundamentais ou generalíssimas do sistema, as nor-mas mais gerais, o nome de princípios induz em en-gano, tanto que a velha questão entre juristas se osprincípios são ou não normas. Para mim não há dú-vida: os princípios gerais são normas como todas asdemais. E esta é a tese sustentada também peloestudioso que mais amplamente se ocupou da proble-mática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os prin-cípios são normas, os argumentos vêm a ser dois eambos válidos: antes de tudo se são normas aque-las das quais os princípios são extraídos, através deum procedimento de generalização sucessiva, nãose vê porque não devam ser normas também eles:se abstraio de espécies animais obtenho sempreanimais e não flores ou estrelas“.

2.2. Princípios Constitucionais Gerais

Há muitos princípios constitucionais gerais que devem ser ob-servados no setor dos fenômenos jurídicos tributários. Os princípiossão considerados linhas diretivas do sistema normativo e vão funcio-nar como mecanismo de ordenação jurídica e será a base ou alicercedo Direito Público. Os princípios sejam eles gerais, específicos, explí-citos ou implícitos conservam a sua normatividade e podem indicar orumo a seguir, amparando aos poucos os direitos fundamentais dos

11 Norberto Bobbio, Teoria dell Ordinamento Giurídico, Turim, Giappichelli Edeitore, s/d pp181 e 182.

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cidadãos, assegurando direitos subjetivos dos contribuintes e realizandoa idéia fundamental: do Estado de Direito. Nesse momento o contribu-inte manterá uma relação de igualdade jurídica com o Fisco. Dentre osprincípios constitucionais gerais mais importantes que influenciamnesse setor jurídico-tributário são: o princípio da justiça, da certeza dodireito. da segurança jurídica, da igualdade, da legalidade, dairretroatividade das leis, da universalidade da jurisdição, o princípio queconsagra o direito de ampla defesa e o devido processo legal, princípioda isonomia das pessoas, princípio que afirma o direito de proprieda-de, princípio republicano, princípio federativo etc. O quadro geral deatuação dos princípios constitucionais gerais visa promover os valo-res supremos da sociedade, inspirando a aplicação das leis e condu-zindo a certeza do tratamento normativo dos fatos já consumados, dodireito adquirido e da coisa julgada, .estabelecendo a segurança dasrelações juridicas estabelecidas pelos limites da lei.

3. A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOSCONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS

Na passagem do século XIX para o atual ocorreu a transição doEstado Liberal onde dominavam as idéias do liberalismo para um Es-tado Social de Direito, porque não dizer o Estado do “bem estar social”com novos fundamentos que visam tornar realidade direitos individu-ais e garantias fundamentais mediante uma política compatível com ajustiça do bem estar social. Essa premissa tem a sua efetividade con-cretizada no Brasil com o advento de um modelo constitucional noqual a ordem econômica e social faz parte integrante da atuação polí-tica do Estado, invocando a supremacia dos interesses coletivos so-bre os interesses individuais em busca do equilíbrio social e econômi-co. Se a Constituição Federal é a norma principal desse ordenamentojurídico dando unidade e sendo fundamento de validade de outra nor-ma, nela vão existir princípios explícitos ou implícitos de maior ou me-nor relevância servindo de diretrizes e ocupando alto grau na escalanormativa .Essas normas constitucionais se encontram estruturadas

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sob a forma de princípios e regras. E não há dúvida que existe umaconcordância doutrinária quanto ao caráter normativo dos princípiosconstitucionais. As discussões em torno do tema pode apresentar di-versas opiniões contrárias a respeito da normatividade e do alcancedesses princípios, mas podemos afirmar que negar esta normatividadeé deixar de lado as garantias e os direitos individuais e negar o EstadoDemocrático de direito e ignorar o supremacia da constituição.

Conforme observa o autor Luis Roberto Barroso:12

“O ponto de partida do interprete há que ser sempre os prin-cípios constitucionais que são o conjunto de normas queespelham a ordem jurídica que institui a ideologia da consti-tuição, seus postulados básicos e seus fins Os princípiosconstitucionais são as normas eleitas pelo Constituinte comofundamentos ou qualificações essenciais do ordenamento.”

Na verdade os princípios têm função interpretativa e integrativada lei e são por conseguinte, enquanto valores o critério com que seaferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa maiselevada. Pode-se afirmar que não há distinção entre princípios e nor-mas. Os princípios são dotados de normatividade e as normas com-preendem regras e princípios. Assim, chegamos ao reconhecimentoda superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa.Para Jorge Miranda:13

“A ação imediata dos princípios consiste em primeirolugar em funcionarem como critérios de interpreta-ção e de integração pois são eles que dão coerênciageral ao sistema”.

A inserção constitucional dos princípios operam nos textosconstitucionais da Segunda metade deste século o que chamamosde juridicidade. Dos princípios gerais se transformam em princípios

12 Luis Roberto Barrros, Interpretação e Aplicação da Constituição, 1º edição São Paulop.226 -227.13 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3º edição t. ii, Coimbra, 1991, pp.226-227.

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constitucionais. A normatividade dos princípios é afirmada categorica-mente pelo professor italiano Crisafulli:14

“Princípio é com efeito toda norma jurídica enquantoconsiderada como determinante de uma ou de mui-tas outras subordinadas, que a pressupõem, desen-volvendo e especificando ulteriormente o preceito emdireção mais particulares( menos gerais) das quaisdeterminam e portanto resumem potencialmente oconteúdo, sejam pois essas efetivamente postassejam ao contrário apenas dedutíveis do respectivoprincípio geral que as contém.”

Com o pós- positivismo os princípios passam a ser tratados comodireito e juristas como o alemão Alexy e outros como Esser, Dworkincontribuíram com seus estudos para o progresso da hermenêutica eas novas tendências para o reconhecimento da juridicidade dos princí-pios. Todos afirmando a mesma posição: os princípios são normas eas normas compreendem igualmente os princípios e as regras. Nomesmo sentido o Autor Norberto Bobbio:15

“Os princípios gerais , são apenas a meu ver normasfundamentais ou generalíssimas do sistema, as nor-mas mais gerais. A palavra princípio leva a engano,tanto que é velha questão entre juristas se o princípiosgerais são normas. Para mim não há dúvida: os prin-cípios gerais são normas como todas as outras”.

Quando se fala na função desses princípios podemos encarar aquestão dessa normatividade e da eficácia desses princípios e o seualcance quando se aplica o Direito ao caso concreto. A atuação do juris-ta deve estar atrelada aos princípios para que se possa alcançar a se-gurança jurídica e justiça que na realidade deve ser a pretensão de to-dos aqueles intérpretes do Direito.

14 Vezio Crisafulli, la Constituzione e le sue Disposizione di principi, milão, 1952 p.15.15 Norberto Bobbio, op.cit.p.158.

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3.1. A Supremacia Constitucional Tributária e o Controle doPoder de tributar

A Supremacia constitucional é fundamental para que se possaestabelecer um parâmentro de atuação do poder público no que tan-ge a tributação e aos abusos do poder público tanto na atividade legis-lativa, judicial ou no âmbito administrativo. Não se trata apenas deum conceito mas da efetividade de todo um mecanismo constitucio-nal disponível que busca a aplicação do direito ao caso concreto.Essa efetividade está diretamente ligada com a normatividade reco-nhecida no âmbito constitucional.

A Constituição regulou também as limitações ao exercício dascompetências tributárias e elencando os direitos e garantias funda-mentais, protegeu os contribuintes das investidas do Fisco e lhes con-feriu os meios processuais adequados a esse fim: o direito ao livreacesso ao judiciário, o direito de representação, mandado de seguran-ça e outros..Os princípios são fonte do direito e é a base de todo nossoDireito Público, especificamente do nosso Direito Tributário. Muitos prin-cípios merecem destaque e a fiel observância no que tange á compe-tência tributária já que são a condição primordial para a criação dostributos. Faz saber os seguintes princípios: o republicano, o federativo,o da autonomia municipal, o da anterioridade, o da legalidade e outros.Evidentemente, o rol dos princípios citados não é exaustivo porquetodos vão orientar a tributação, protegendo os contribuintes.

Conforme o autor Roque Antonio Carraza no estudo sobre otema:16

“Diante do princípio republicano é proibida a con-cessão de vantagens tributárias fundadas em privi-légios de pessoas ou categorias de pessoas. Deve-ras, com o advento da República foi-se o tempo en-tre nós, em que as normas tributárias podem sereditadas em proveito de classes dominantes”.

16 Roque Antonio Carraza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 17º edição: MalheirosEditores, 2001, p.64.

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Constitucionalmente, pois, um tributo não pode ter outro escopoque o de instrumentar o Estado a alcançar o bem comum. É o princí-pio da destinação pública do dinheiro obtido mediante a tributação. A leique cria um tributo exercita a competência tributária e deve em teseatentar para os interesses do povo e para o bem estar do país. ‘

3.2 Princípio da estrita legalidade tributária

O princípio da legalidade tributária teve a sua origem na MagnaCarta: “liberatum” documento imposto em 1215, pelos barões inglesesao Rei João Sem Terra, com a finalidade de limitar os seus poderesreais, em razão da maneira abusiva com que impunha tributos aos cida-dãos. Posteriormente temos a Constituição Federal dos Estados Uni-dos, de 1787 que conferia ao Congresso órgão de representação popu-lar a competência exclusiva para fixar e cobrar exações, impostos etributos. Mais tarde a “Declaração de Direitos” de 1789 em seu art 13,exigia a aprovação dos impostos por órgão de representação popular.As Constituições Brasileiras sempre acolheram o princípio da legalida-de tributária: Constituição Política do Império do Brasil de 1824, a Cons-tituição de 1891, a Constituição de 1934, Carta de 1937, de 1946, Emen-da Constitucional nº 18 de 1965, Carta de 1967, Emenda Constitucionalnº 1 de 1969 e a Constituição de 1988 refere-se ao princípio da legalida-de tributária em seu art 150, I que dispõe::”quando exige lei prévia para ainstituição ou majoração de tributos”. Esse princípio deve ser aplicado atodas as espécies do gênero, inclusive os tributos que não existem au-tonomamente como espécies tributária ( empréstimos compulsórios econtribuições parafiscais).Este princípio deve ser observado por todasas pessoas jurídicas de direito público interno que possuem competên-cia tributária como sendo: a União, os Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios. Em regra o tributo pode ser instituído ou majorado por sim-ples lei ordinária. A constituição somente exige que tais atos sejam vei-culados por lei complementar em relação aos impostos e contribuiçõessociais residuais, bem como quanto aos empréstimos compulsórios.

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3.3. Princípio da Anterioridade Tributária

O princípio da Anterioridade tributária somente foi introduzido nonosso ordenamento constitucional com a Emenda Constitucional nº18/1965 não tendo constado na Carta de 1967 e retornou com a EmendaConstitucional nº 1 de 1969 e foi mantido na Constituição de 1988. AConstituição de 1988, consagra o princípio da anterioridade da lei fis-cal no artigo 150,III, b que veda a qualquer dos entes públicos cobrartributo no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a leique os instituiu ou aumentou. A Carta Magna também consagra asseguintes exceções ao próprio princípio da anteriodade:

1- imposto sobre a importação

2- imposto sobre a exportação

3- imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ourelativas a títulos ou valores mobiliários

4- imposto sobre produtos industrializados

5- imposto extraordinário sobre motivo de guerra

6- empréstimos compulsórios para atender as despesas ex-traordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ouna sua iminência

7- as contribuições sociais de seguridade social que poderãoser exigidas decorridos noventa dias da publicação da lei que as hou-ver instituído ou modificado.

3.4 Princípio da Proibição de tributo com efeito de Confisco

Esse princípio não constava expressamente na Constituição an-terior e consta na atual Constituição de 1988, no artigo 150, IV e esta-belece que: “é vedada à União aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios utilizar o tributo com efeito de confisco”. O dispositivo Cons-titucional há de ser invocado sempre que o contribuinte entender que otributo, no caso lhe está confiscando os seus bens. Na verdade cabeao judiciário dizer quando um tributo é confiscatório.

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III – CONCLUSÃO

Partindo do estudo do conceito e da origem do Princípio Geral doDireito e da sua caminhada evolutiva nas fases do jusnaturalismo epós-positivismo nos séculos XIX e XX, passando por sua codificação efinalmente, chegando a constitucionalização do Direito Tributário Bra-sileiro, chegamos a conclusão que os princípios constitucionais sejameles implícitos ou explícitos formam o alicerce do sistema jurídico tri-butário que por sua vez deve materializar a consagração jurídica deum projeto político que é o Estado de Direito. A atividade estatal desen-volve-se dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico e des-sa forma deve respeitar os direitos subjetivos dos cidadãos

Todas as normas concernentes aos direitos fundamentais nãopodem se transformar em conceitos vazios de sentido e conteúdo.Em outros termos, a União, os Estados ,os Municípios e o Distrito Fe-deral ao fazerem uso de suas competências são obrigados a respeitaros direitos individuais e suas garantias. Como foi visto a Carta MagnaBrasileira delimita o exercício da competência Tributária das pessoaspolíticas. Evidentemente há da parte do Estado o interesse de arreca-dar os tributos de maneira simples, e segura. Afinal, é por intermédiodeste recolhimento que se instrumentaliza o Estado financeiramentede forma a alcançar os fins que lhe são propostos..

Na verdade embora os princípios na concepção jurídica e teóricado Direito sejam diretivas de caráter fundamental e geral utilizado pelointérprete do Direito, na maioria das vezes não consegue amparar ocontribuinte como verdadeiras garantias que são, para evitar exces-sos de abuso do poder público e por sua vez não conseguem assegu-rar a concretização do Estado Democrático de Direito e a proteçãodos direitos fundamentais.

A Constituição como norma fundamental do ordenamento quedá a ele unidade , nela as normas inferiores buscam validade por seruma norma superior formando aquilo que chamamos de pirãmide jurí-dica. Assim pode-se dizer que a Constituição é norma fundamental do

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Estado e não se pode negar a normatividade de seus princípios e asua eficácia social, ou seja capacidade de produzir efeitos jurídicos.

Elaine Garcia Ferreira,

oficial registradora e mestranda de Direito Tributário daUniversidade Cândido Mendes

BIBLIOGRAFIA

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A reparação à saúdeA reparação à saúdeA reparação à saúdeA reparação à saúdeA reparação à saúde do consumidor do consumidor do consumidor do consumidor do consumidor

a partir da ocorrênciaa partir da ocorrênciaa partir da ocorrênciaa partir da ocorrênciaa partir da ocorrênciado dano ambientaldo dano ambientaldo dano ambientaldo dano ambientaldo dano ambiental

belinda pereira da cunha

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A REPARAÇÃO À SAÚDE DOCONSUMIDOR A PARTIR DA

OCORRÊNCIA DO DANO AMBIENTAL

Belinda Pereira da Cunha

Sumário: 1.Aplicação do CDC em matéria ambiental. 2.Sistema da responsabilidade civil objetiva no DireitoAmbiental e no CDC. 3.Possibilidades de equiparação dacoletividade e das vítimas de acidentes de consumo e suacorrelação com os danos ambientais. 4. Dano: lesão eameaça a direito. 5. A jurisprudência e a classificação dodano patrimonial, moral e estético. 6. Dano biológico: pro-posta da aplicação italiana. 6.1. Dano ambiental. 8. Con-clusões. 9.Bibliografia.

1. APLICAÇÃO DO CDC EM MATÉRIA AMBIENTAL

O Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Públi-ca, constituem verdadeiro diploma processual coletivo em nossos dias,posto que, deles deveremos lançar mão para a tutela dos Direitosmateriais tomados em seu aspecto coletivo em sentido amplo, o quevem confirmado pelo artigo 90 da Lei 8.078/90.1

Sendo assim, será o Código de Defesa do Consumidor aplicadojuntamente com a Lei de Ação Civil Pública, para as outras questõescompatíveis com o sistema dos princípios gerais, que regem as rela-ções de consumo por ele tuteladas.

1 Leciona Nelson Nery Junior que “ as normas do CPC e da LACP são aplicáveis às açõesindividuais e coletivas fundadas no CDC, desde que não sejam incompatíveis com o microssistemado CDC. Caso contrarie dispositivo expresso do CDC ou seu espírito, a norma do CPC ou LACPnão pode ser aplicada”. Nery et al. Novo Código Civil e Legislação extravagante anotados. SãoPaulo: Ed. RT, 2002, p.799.

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É o que se observa quanto à tutela do Direito Ambiental, em ra-zão do artigo 117 do próprio Código do Consumidor, que introduziu oartigo 21 na Lei de Ação Civil Pública, ampliando a abrangência destalei, além de determinar sua aplicação a todos os interesses difusos ecoletivos, como se observa no artigo 110 do CDC.2

Assim é que, a ação civil pública passou a abarcar, por força doCódigo do Consumidor, a tutela das questões ambientais, mas nãosomente do que se pretendesse reparar pecuniariamente ou das obri-gações de fazer ou não fazer, por força da condenação prevista emseu artigo 3º, indo além para atingir a todas as espécies de açõescapazes de tutelar adequada e efetivamente os interesses e Direitosprotegidos pelo CDC, como prevê seu artigo 83.3

Trata-se, assim, da aplicação simultânea, sob o aspecto da tute-la do Direito ambiental, das relações jurídicas de consumo e de outrosDireitos coletivos em sentido lato, possam ser tutelados pela ação civilpública e pelo Código do Consumidor, o que reflete semelhante situa-ção encontrada, sob o aspecto material, propriamente dito, da aplica-ção desses Direitos.

Trata-se, isso sim, de um sistema muito próximo de proteção deDireito material, tal a similitude encontrada nos respectivos ‘núcleos’do bem da vida a ser protegido, em cada uma das situações possamser vislumbradas. É o que ocorre com o meio ambiente, com as rela-ções de consumo tomadas em uma sociedade de massa, com osinteresses coletivos lato sensu4, com o patrimônio histórico,paisagístico, urbano, entre outros.

2 Nesse sentido, expressa-se a professora Ada Pellegrini Grinover: “Diga-se, antes de mais nada,que a figura não se limita à defesa dos consumidores, mas se estende ao âmbito da lei da açãocivil pública, agora ampliado a todo e qualquer tipo de interesse ou direito: é certo que o artigo89, CDC, expresso nesse sentido, foi vetado; mas o veto foi ineficaz, porquanto permaneceuíntegro o art. 117, do CDC, que introduziu novo artigo à LACP (art. 21)...” In. Dano Ambiental –Prevenção, Reparação e Repressão. Coord. Antonio Herman V. Benjamin. “Ações ambientais dehoje e de amanhã”. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 250 - 256.3 Ibid., p. 256.4 Nos referimos a bens e interesses coletivos em sentido amplo, para expressar os interesses difusos,coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, nos termos do caput do artigo 81 do CDC.

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Nesse sentido, encontraremos na Lei 6.938/81, o mesmo siste-ma de responsabilidade civil de natureza objetiva, para as questõesque envolvam o meio ambiente, o que também se verifica para os inte-resses protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor5.

A própria Constituição Federal, como lecionam os professoresNELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, ao con-ferir proteção ao meio-ambiente, não alterou a “sistemática da res-ponsabilidade objetiva da Lei 6.938, de 31.8.81, que foi, portanto, inte-gralmente recepcionada pela nova ordem constitucional”.6

Tal construção legal, diante desses argumentos, parece não me-recer maior relevância, posto que a tutela ambiental encontra vastaproteção, a partir mesmo da Lei Maior, vale dizer, a própria Constitui-ção Federal assegurou o Direito ao Meio Ambiente, recepcionou o sis-tema da responsabilidade civil de natureza objetiva da Lei 6.938/81,além das previsões de EIA/RIMA, da Lei 9.508/98, da Carta de 92, deConvenções e Tratados, todos atendendo, além das leis específicas,à tutela referida.

Nos próprios manuais e tratados que se debruçam há anos sobreo tema, não haveria, ab initio, de encontrarmos justificativa plausível paraa aplicação do Código de Defesa do Consumidor às questões ambientais,se não fosse pela aplicação conjunta estabelecida para a parte proces-sual, em que é utilizado complementarmente à Lei de ação civil pública.7

Todavia, aqui nos ocupamos da relevância da aplicação do CDCàs questões materiais dos Direitos ambientais e que, nesse sentido,muitas das vezes também possa se encontrar como usuário e consu-midor o indivíduo meramente exposto às práticas de atos que pos-sam, além de comprometer sua qualidade de vida sadia, tomada em

5 “Em 1984 proferimos conferência em Uruguaiana-RS sobre o tema da responsabilidade civilpelo dano ambiental, onde foram levantados alguns problemas que, àquela época, a matériasuscitava, notadamente em face da então recente Lei de Política do Meio-Ambiente (Lei6.938/81), que prevê o regime da responsabilidade objetiva para reparação desses danos”.“Responsabilidade Civil, Meio-Ambiente e Ação Coletiva Ambiental”, in Dano Ambiental –Prevenção....Nery et al. op. cit. pp. 278-307.6 Ibidem, p.279.7 Nesse sentido Paulo Affonso Leme Machado, Édis Milaré, Antonio Herman Benjamin.

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sua dimensão ambiental, ser atingido nas dimensões de vítima dosacidentes de consumo, muitos deles desencadeados a partir dos cha-mados danos ambientais.

Ora, a própria definição de poluição encontrada na Lei 6.938/81,artigo 3º, inciso III, letra ‘a’, estabelece a relação própria de que trata-mos, ou seja, entre o Direito ambiental e os Direitos básicos do consu-midor, referindo-se, aquela, à “degradação da qualidade ambiental re-sultante de atividades que direta ou indiretamente “prejudiquem a saú-de, a segurança e o bem-estar da população”.

A Lei 8.078/90 preocupa-se com a saúde e segurança do consumi-dor, expressando-o entre os Direitos básicos, no artigo 6º, inc. I, como a“proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos, provocados porpráticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigo-sos ou nocivos”, reiterando-o especificamente como tema da seção I,do capítulo IV, que trata da qualidade de produtos e serviços, prevençãoe reparação dos danos, quanto à sua proteção à saúde e segurança.

2. SISTEMA DA RESPONSABILIDADE CIVILOBJETIVA NO DIREITO AMBIENTAL E NO CDC

A Lei 6.938/81, assim como a Constituição Federal, atribuiram,como o Código de Defesa do Consumidor, o sistema da responsabili-dade civil objetiva àquele que causar dano ao meio ambiente, em ra-zão dos princípios que regem as questões ambientais e, antes de tudo,por se tratar de um bem indivisível, portanto, difuso, que pertence atodos indistintamente.

Sendo assim, individualmente não se pode esperar a tutela difusado meio ambiente, sendo, no dizer de NELSON NERY JUNIOR, inclu-sive, quanto à demanda dos danos ambientais, carecedor de legitimi-dade aquele que, individualmente, pretenda fazê-lo.8

8 Id. Ibidem.

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Entende o professor que, individualmente, pode-se pretender res-ponsabilizar o causador dos danos ambientais, desde que haja afeta-ção no patrimônio pessoal do ofendido, podendo, nesse caso, ser a pre-tensão fundamentada na questão do ilícito extracontratual do artigo 159do Código Civil em vigor, na hipótese de abuso de direito pelo mau usoda propriedade, no caso do artigo 14, parágrafo 1o, da Lei do Meio-Ambi-ente, e, com base nas regras de responsabilidade civil objetiva do Códi-go de Defesa do Consumidor, caso se trate de relação de consumo.9

É certo que, acreditamos tratar-se precipuamente de hipótesede responsabilidade civil de natureza objetiva, a que busca todo aqueleatingido pela hipótese de dano, sob a tutela da Lei 6.938/81 ou sob ahipótese de proteção do Código do Consumidor.

Todavia, pretendemos inserir uma proposta de tratamento dou-trinário dentre os danos ambiental, patrimonial, à imagem e moral, afim de buscar-se a proteção desses mesmos Direitos materiais apon-tados, somente que também reparando os malefícios causados e naiminência de serem causados, à saúde da pessoa humana.

Quanto a isso, além da possibilidade de ser reparado o indivíduoem sua afetação patrimonial, mesmo em decorrência dos danos ambien-tais sofridos, também esperamos possa sê-lo se afetado em suaincolumidade física ou psíquica, o que será mais adiante desenvolvido.

Explica ADALBERTO PASQUALOTTO que “pela primeira vez,uma Constituição abordou a questão ambiental, traçando diretrizesadministrativas e fincando as pilastras do seu regime jurídico”10. É sobessa ótica que pretendemos que os danos causados à saúde huma-na, sejam reparados propriamente como tais, vale dizer, a partir da in-terpretação sistemática da Constituição, da Lei do Meio-Ambiente e doCódigo de Defesa do Consumidor, considerado o Direito à vida e àqualidade de vida sadia como bens maiores, protegidos reiteradamenteem nosso ordenamento jurídico, inclusive, como Direito ao Meio-Am-biente e Direito básico do consumidor.

9 Op. Cit, pp. 279-280.10 “Responsabilidade Civil por Dano Ambiental: Considerações de Ordem Material e Processual”,in Dano Ambiental - Prevenção, Reparação...op. cit., pp. 444-469.

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Como fundamentos da obrigação de reparar, no campo do Direi-to Ambiental, a responsabilidade civil persiste em sua natureza objeti-va, ainda que não ocupe a classificação decorrente da teoria do risco.

Significa dizer que, ainda que não se enquadre entre as ativida-des que ofereçam potencial perigo, que se justifique assumir, jure etde jure, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, exis-tem, ainda, situações que não se situam na ‘órbita do risco’, induzindo,porém, seus agentes a uma posição tratada pela doutrina de “virtualresponsabilidade objetiva”.11

Justifica-se, todavia, para essas situações não encontradas en-tre aquelas de risco, o que se chama de presunção de culpa, trazen-do, segundo PASQUALOTTO, a conseqüência da inversão do ônusda prova em benefício do demandante12, ou seja, para aquele que foialcançado pelo dano ambiental.

Neste ponto, poderemos vislumbrar a intersecção entre o DireitoAmbiental e Direito do Consumidor, sob o aspecto da responsabilidadecivil, notadamente em duas situações: reconhecendo a proteção do indi-víduo, que mereça ser reparado sob o aspecto biológico, porque foi atingi-do pelo dano ambiental, e, também, para a reparação pelo dano ambientalsofrido, que mereça a equiparação da parte lesada ou ameaçada em seuDireito, ao consumidor, conforme previsto pelo artigo 17 do Código doConsumidor, de que nos ocuparemos no próximo item.

Assim é que, do ponto-de-vista de Direito Ambiental, notadamentequanto à natureza jurídica da responsabilidade civil, definiu o ordena-mento positivo, pela relevância do bem a ser tutelado, que fosse de-corrente da teoria do risco, de forma direta ou indireta, o conseqüentedever de reparar o dano causado, sendo, portanto, objetiva.

É o que se depreende da própria Lei 6.938/81, que instituiu aPolítica Nacional do Meio-Ambiente, que também mereceu igual trata-mento pelas leis anteriores, como a que instituiu a Política Nacional de

11 Idem, op. cit. p. 446.12 Ibidem.

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Saneamento, Lei 5.318/67; a que criou a Secretaria Especial do Meio-Ambiente, Decreto 73.030/73, atualmente substituída pelo IBAMA; oDecreto-lei 1.413/75, que dispôs sobre o controle da poluição provocadapor atividades industriais.

Igualmente, é o que se verifica no Decreto 79.437/77, que pro-mulgou a convenção de Bruxelas sobre a poluição decorrente de der-ramamento de óleo, atribuindo responsabilidade objetiva ao proprietá-rio do navio causador do dano. É de se notar que, aplicando a conven-ção julgou o Tribunal de Justiça de São Paulo, proferindo a 3a CâmaraCível, decisão unânime, em 7.4.87, para reconhecer a responsabilida-de objetiva do proprietário do navio que causou vazamento e derrama-mento de óleo no porto de Santos, sendo irrelevante o fato de já seencontrar poluído o local.13

Segundo ÉDIS MILARÉ, a reparação ambiental ‘funciona atra-vés das normas de responsabilidade civil, que por sua vez funcionamcomo mecanismos simultaneamente de tutela e controle da proprie-dade’, pressupondo prejuízo a terceiro, possibilitando a reparação dodano, segundo a Lei 6.938/81, para os fins de recomposição do statusquo ante ou a indenização pecuniária.14

Busca, com isso, o legislador, a imposição de um ‘custo aopoluidor’, procurando cumprir os objetivos de dar uma resposta eco-nômica aos danos sofridos pela vítima, e, ‘dissuadir comportamentossemelhantes do poluidor ou de terceiros’.15

Ressalta que o dano ambiental impõe reparação integral16, deacordo com os artigos 14, § 1º, da Lei 6.938/81 e 225, § 3º, da Consti-tuição Federal, além de ser de difícil reparação, posto que afeta a uma

13 Apud Pasqualotto, in op. cit., p. 450. Também menciona o professor a Lei 6.453/77, quedetermina a responsabilidade objetiva para o operador de instalação nuclear, em decorrênciade dano causado por acidente nuclear; também o Decreto 79.367/77, que dispôs sobre normase padrão de potabilidade da água; a Lei 6.453/77, dispôs sobre responsabilidade civil e criminalpor atividades e danos nucleares.14 In Direito do Ambiente. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000. p. 420.15 Milaré baseia-se na doutrina italiana de Nicolò Lipari, op. cit. p. 425.16 Idem, p. 426.

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“pluralidade difusa de vítimas, mesmo quando alguns aspectos parti-culares da sua danosidade atingem individualmente certos sujeitos”.17

De tal disposição, considerado o bem material a ser protegido,propriamente dito, decorre a lógica da natureza jurídica objetiva, da res-ponsabilidade civil do causador do dano ambiental, considerando, comofazemos no Código do Consumidor, o mens legis et legislatoris, inscul-pido em seu artigo 6º, inciso VI, ou seja, para ser integral, efetiva a repa-ração, não se há de buscar a discussão do comportamento do agenteou dos meios econômicos a limitá-lo em suportar os danos causados.

É, por isso, objetiva a responsabilidade, mesmo nos termos daConstituição Federal, art. 225, que não é literal, nesse sentido, mas,todavia, não enseja, por isso, discussão. A responsabilidade objetiva,fundada na teoria do risco da atividade, requer tão somente oestabelecimen-to do nexo causal entre o evento e o dano, configurandoa mera assunção do risco, em razão direta de haver sido provocado oresultado.18

Ensina PAULO AFFONSO LEME MACHADO que, ao ser consa-grado como um dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, a“imposição ao poluidor e ao predador da obrigação de recuperar e/ouindenizar os danos causados” estabelece o sistema da responsabili-dade objetiva no Direito ambiental.19

Ainda que assim não fosse, é expressa, no artigo 14, § 1º, da Lei6.938/81, a responsabilidade do poluidor pelos danos causados ao meioambiente e aos terceiros afetados por sua atividade, independente-mente da existência de culpa, não deixando dúvida o legislador quantoao que pretendeu expressar com ‘a integral reparação dos danos cau-sados ao ambiente’, vale dizer, há de se buscar a inteira e real repara-ção, portanto, não se há de pensar na apuração da conduta subjetivado agente, prevalecendo sobre esta o risco da atividade praticada.

17 A essa pluralidade chama de ‘pulverização de vítimas’; op. cit. p. 423.18 Nesse sentido Adalberto Pasqualotto, op. cit. p. 454 e Édis Milaré, id. p. 429.19 In Direito Ambiental Brasileiro, p. 314.

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Trata-se do que explicou JOSÉ DE AGUIAR DIAS como sendo ‘situ-ação desejável a do equilíbrio, onde impere a conciliação entre os direitosdo homem e seus deveres para com seus semelhantes’, devendo preva-lecer o interesse da coletividade, onde houver eventuais conflitos.20

Considerada a atividade poluente como uma “apropriação dosdireitos de outrem’, tomada pelo poluidor, “repesentando um confiscodo direito de alguém em respirar ar puro, beber água saudável e vivercom tranqüilidade”21, não se há de apreciar a “subjetividade da condu-ta do poluidor, mas a ocorrência do resultado prejudicial ao homem eseu ambiente”, orientando-se a responsabilidade, atualmente, para osobjetivos que sejam de Direito, tais como a utilidade social e a justiça.

É sob esse mesmo sistema e, quiçá, pelas mesmas razões quese encontra regido o Código de Defesa do Consumidor, pela respon-sabilidade civil de natureza objetiva, o que já se vê expresso, no CDC,entre os Direitos básicos do artigo 6º, inciso VI.

Leciona NELSON NERY JUNIOR que a responsabilidade civilobjetiva no Código de Defesa do Consumidor, trata-se de sistema ge-ral estabelecido pela norma, sujeitando-se toda indenização derivadada relação de consumo ao seu regime, salvo quando o Código expres-samente dispuser em contrário, o que assumirá, portanto, neste últi-mo caso, regime de exceção.22

Do ponto-de-vista da relação jurídica de consumo, como referi-mos anteriormente, consiste em requisito de obrigatoriedade de se-gurança, para os produtos que ingressem no mercado de consumo,inclusive entre os Direitos básicos do consumidor, encartados no arti-go 6º, inciso I, do Código, que assegura a “proteção da vida, saúde esegurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimentode produtos ou serviços considerados perigosos ou nocivos. 23

20 Apud Paulo Affonso Leme Machado, op. cit. , p. 314.21 Paulo Affonso Leme Machado, ibid.22 Et.All. In Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: Ed. Revista dosTribunais, 2002, p. 725.23 James Marins. In Responsabilidade da Empresa pelo Fato do Produto. São Paulo: Ed. Revistados Tribunais, 1993, p. 116.

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Assim é que, o artigo 8º e seguintes, do Código do Consumidor,analisados sob o aspecto de cunho preventivo da norma, têm caráter co-gente e coercitivo dentro da sistemática legal de proteção ao consumidor,tomadas as questões afetas à saúde e segurança entre as mais relevan-tes suscitadas pela disciplina de proteção dos Direitos de que tratamos24.

Interpretada como manifestação inequívoca do Direito à vida, in-ternacionalmente reconhecido entre os textos do Direito constitucionalmoderno, a inclusão da proteção da saúde e segurança dos consumi-dores reafirma o dever do Estado em estabelecer a fiscalização eficazda responsabilidade civil dos fabricantes, pelos danos causados porseus produtos aos consumidores25.

Encontra LUCAN na previsão do artigo 8º, caput, do Código doConsumidor, quanto aos riscos à saúde e segurança dos consumido-res, conteúdo patrimonial “abrangendo o patrimônio dos consumido-res, além de sua integridade física e psíquica”26.

Quanto ao alcance do dano, pretendemos nos ater, mais adian-te, sobre o alcance e o eventual conteúdo patrimonial do dano à saúde,tratado entre nós como dano patrimonial ou moral, propriamente dito,sem a análise específica do dano à saúde humana, que consiste napreocupação de nosso trabalho e que ensejará exame específico.

Nota-se, assim, que tanto o Código do Consumidor como a Políti-ca Nacional do Meio-Ambiente como um todo – aqui compreendida aPolítica, propriamente dita, a Constituição Federal e Leis especiais –assumem como regime jurídico para a responsabilidade civil, diante dedanos causados aos bens especificamente protegidos, a teoria do riscoda atividade, que ocupa o papel nas lições de NELSON NERY JUNIOR,de “postulado fundamental da responsabilidade civil ensejadora da in-denização dos danos causados ao consumidor”.27

24 Ibid. Também nesse sentido Calais-Auloy e Stiglitz citados por James Marins.25 M. A. Parra Lucan. In Daños por Productos y Protección del Consumidor. Barcelona: BoshEditor, p. 27.26 “En este sentido, el concepto ‘seguridad’ sería más amplio que el de ‘salud’e el de ‘seguridadfísica’, y equivaldría a una garantía global de adequación de los productos a las legítimasexpectativas de os consumidores”. In op.cit. pp. 28 e 29.27 “Os Princípios Gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor”, In Direito do Consumidor,nº 3, 44-77. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 56.

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Chegamos ao ponto central e comum a estes dois sistemas deproteção dos respectivos ramos do Direito Coletivo lato sensu: o Direi-to Ambiental e o Direito do Consumidor, têm como eixo da responsabi-lidade civil por danos causados aos bens respectivamente tutelados,que a “simples existência da atividade econômica no mercado, exercidapelo fornecedor, já o carrega com a obrigação de reparar o dano cau-sado por essa mesma atividade”.28

E, o fato de estarmos referindo esse sistema de responsabilida-de objetiva, nas expressões terminológicas do Código de Defesa doConsumidor – embora pudéssemos meramente substitui-las, na mes-ma proporção do que fosse terminologicamente adequado nas ques-tões do Direito Ambiental –, dá-se em razão de pretendermos aquidemonstrar, o grande número, senão a possível totalidade de situa-ções, em que o dano ambiental atinja o lesado, também em sua esferade consumidor/usuário, propiciando, em muitos casos, a responsa-bilização civil ao seu causador, como fornecedor de produtos ou servi-ços, com base no Código do Consumidor.

Embora sugira certa retórica acadêmica a questão que se nosapresenta, entendemos possa assumir efetividade no campo da apli-cação do Direito, diante de danos causados ao Meio-Ambiente, emrazão da dificuldade de atingir-se a reparação integral, aqui tomadatambém por efetiva, em situações em que aquele que cooperou paracom a ocorrência do dano, não assumisse a posição de poluidor, masde outra feita não lhe pudesse ser tirada a posição de ‘fornecedor’.

A isso se coadunam, por inteiro, as lições de NELSON NERYJUNIOR, no tocante à responsabilidade civil no Código do Consumi-dor, ao explicar que embasada entre os Direitos básicos, do artigo 6º,inciso VI, de outro lado, regula expressamente dois tipos de responsa-bilidade, ou seja, pelos acidentes de consumo e pelos vícios do produ-to ou serviço.29

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

28 Ibidem.29 Idem, p. 58.

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Quanto à questão da responsabilidade decorrente dos aciden-tes de consumo, correlata às vítimas do evento, também abarcadaspelo conceito de consumidor, por equiparação, no artigo 17, do Códigode Defesa do Consumidor, é que nos ocuparemos adiante, a fim deresguardar os Direitos destas vítimas, inclusive quando decorreremde danos causados ao meio-ambiente, em que possam ser alcançadase que, por alguma razão, a responsabilização dos causadores possanão atingi-las efetiva e integralmente.

3. POSSIBILIDADES DE EQUIPARAÇÃO DA COLETIVIDADEE DAS VÍTIMAS DE ACIDENTES DE CONSUMO E SUACORRELAÇÃO COM OS DANOS AMBIENTAIS

A expressão do artigo 17 do Código do Consumidor revela o al-cance do conceito de consumidor, todavia, por equiparação, preocu-pando-se em atingir as vítimas do que se chama acidente de consu-mo, o que significa dizer que “todas e quaisquer vítimas do eventodanoso são também consideradas consumidores, gozando das ga-rantias estabelecidas no CDC”.30

A essa equiparação chama MARIA ANTONIETA ZANARDODONATO de “novo âmbito de tutela do consumidor”, vale dizer, bastaser vítima do acidente de consumo, do evento danoso, para ser alcan-çado pelo sistema de proteção do Código do Consumidor, passando aser desprezível o fato de tratar-se ou não de consumidor final, de haverparticipado da relação de consumo ou não.31

Para que seja equiparada a consumidor, mostra-se suficienteseja a vítima alcançada “em sua esfera jurídica pelos efeitos do aci-dente de consumo, interessando à perquerição que ora se almeja, oconhecimento de que a pessoa foi atingida em sua incolumidade físi-co-psíquica ou em sua incolumidade econômica”.32

30 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor – DireitoMaterial, p. 211.31 Proteção ao Consumidor, Conceito e Extensão, p.195.32 Idem, ibid.

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No que toca à extensão do conceito de consumidor, relativa-mente à coletividade de pessoas, expressa LUIZ ANTONIO RIZZATTONUNES que, o § único do artigo 2º, amplia a definição do seu caput,equiparando ao consumidor a coletividade de pessoas que possamser de alguma maneira afetadas pela relação de consumo.33

Assim é que, sendo a norma do artigo 2º analisada conjunta-mente com a expressão do artigo 17, teremos a proteção sob doisaspectos; o primeiro refere-se apenas à coletividade de pessoas pos-sam ser atingidas, pessoas essas determináveis ou indetermináveis;já sob o segundo aspecto, preocupou-se o legislador com a afetaçãodessas pessoas, tomadas coletivamente ou não, sob o aspecto dehaverem sofrido algum dano decorrente.

A seção a que pertence o artigo 17, explica RIZZATO NUNES,está inserida entre aquela da responsabilidade civil objetiva, vale dizer,responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, que tenha sido ocausador do acidente de consumo.34

A isto, associa a responsabilidade pelo mesmo regime, que temseu fornecedor, em reparar qualquer dano causado àqueles ou à cole-tividade exposta, ou que haja efetivamente sofrido uma lesão decor-rente da colocação no mercado de produto ou serviço, independente-mente de serem ou não consumidores para os fins de sua utilização.

Entende a doutrina que, trata-se de verdadeira consagração deconceito ampliado de consumidor, partindo-se do alicerce básico doartigo 2º, alcançando-se as demais, como ocorre na própria disposi-ção do artigo 17, que pode vir a atingir terceiros, estranhos à relaçãode consumo.35

33 In op. cit. p. 88.34 Comenta o autor que, na queda de um avião todos os passageiros – consumidores do serviço– são atingidos pelo evento danoso – acidente de consumo – originado no fato do serviço daprestação do transporte aéreo. Se o avião cai em área residencial, atingindo a integridade físicaou o patrimônio de outras pessoas (que não tinham participado da relação de consumo), estas,são, então, equiparadas ao consumidor, recebendo todas as garantias legais instituídas no CDC.In op. cit. pp. 88 –89.35 Maria Antonieta Zanardo Donato, in op. cit. p. 196.

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Nosso entendimento, passa, sobretudo, acerca do que sejamesses Direitos possam ensejar a intervenção daqueles que não façamparte da relação jurídica propriamente dita, sem ocuparem a tradicio-nal posição de ‘terceiro’. Certamente, estamos tratando de Direitosdifusos, assim compreendidos aqueles possam atingir uma coletivi-dade de pessoas indeterminadas e indetermináveis, ligadas por rela-ção de fato, como define o artigo 81, inciso I, do Código de Defesa doConsumidor, assim considerados outra categoria, protegida constitu-cionalmente e que mereça especial compreensão.

Como bem assevera FLÁVIA PIOVESAN, “enquanto os direitoscivis e políticos apresentam caráter individual, os direitos econômicose sociais são direitos de natureza coletiva, que implicam uma presta-ção positiva do Poder Público”36. Transita-se, com isso, para a “ideiade entes coletivos, que transcendem o indivíduo, como novos perso-nagens e novos sujeitos de direitos”37.

Sob o aspecto da compatibilização dos Direitos, sobretudo, apartir dos respectivos regimes jurídicos a que se submetam, ensinacom toda primazia NELSON NERY JUNIOR que, estamos na era do‘diálogo das fontes’ do sistema europeu, não havendo mais lugar paratratarmos de conflito de normas, mas sim, da realização dos Direitos,a partir da principiologia a que estejam submetidos, visandoprecipuamente sua aplicação finalística e, portanto, a efetividade daproteção do Direito material a ser tutelado38.

36 Et. All. In Direito, Cidadania e Justiça. “A atual dimensão dos direitos difusos na Constituiçãode 1988”, pp. 113-124.37 Norberto Bobbio explica os novos personagens citando a família, as minorias étnicas, toda ahumanidade em seu conjunto, como Direitos à sobrevivência. Apud Flávia Piovesan, In op. cit.,p. 115.38 Palestra proferida no I Ciclo Palestras de Direitos e Coletivos, na PUC/SP, em 29/10/2002.

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4. Dano: lesão e ameaça a direito

Ao tratarmos do conceito de dano, considerado o ramo do Direi-to em estudo, estaremos diante do sistema da responsabilidade quese possa atribuir a quem caiba o dever de, ao menos, procurar recu-perar ou reparar a lesão ou ameaça a Direito causado.

Trata-se da ampliação do conceito de dano, a fim de incluir-se,além da lesão já ocorrida, também a ameaça ao Direito ou ao interes-se da coletividade, envolvendo, assim, o que se passou a chamar dosDireitos coletivos tomados em seu sentido amplo.

Nesse sentido, a concretização da lesão torna-se dispensávelpara os fins da caracterização do dano, bem ainda, a identificação ouindividuação do seu causador, bastando a possibilidade da ocorrência,vale dizer, a ameaça ao Direito em razão de uma atividade ou compor-tamento adotado.

Esses conceitos, hoje recepcionados constitucionalmente, a partirda tutela do Direito diante da sua lesão ou ameaça, além do alcancemoral de sua proteção, merecem revisão e reflexão daqueles tradicio-nalmente positivados ou mesmo interpretados por nossos julgadores.

Das lições de ALVINO LIMA, extrairemos as explicações atuais,para a realidade e necessidade do sistema da responsabilidade civilobjetiva, a que nos referimos no primeiro capítulo de nosso trabalho,como regra dos Direitos Coletivos em sentido lato, propriamente, noDireito Ambiental e nas relações jurídicas de consumo que merecerema aplicação do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de que “Oentrechoque, entretanto, cada vez mais crescente de interesses, au-mentando as lesões de direitos em virtude da densidade progressivadas populações e da diversidade múltipla das atividades na exploraçãodo solo e das riquezas; a multiplicação indefinida das causas produto-ras do dano, advindas das invenções criadoras de perigos que seavolumam, ameaçando a segurança pessoal de cada um de nós; anecessidade imperiosa de se proteger a vítima, assegurando-lhe areparação do dano sofrido, em face da luta díspar entre as empresas

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poderosas e as vítimas desprovidas de recursos; as dificuldades, diaa dia maiores, de se provar a causa dos acidentes produtores de da-nos e dela se deduzir a culpa, à vista dos fenômenos ainda não bemconhecidos na sua essência, como a eletricidade, a radioatividade eoutros, não podiam deixar de influenciar no espírito e na consciênciado jurista. Era imprescindível, pois, rebuscar um novo fundamento àresponsabilidade extracontratual, que melhor resolvesse o grave. pro-blema da reparação dos danos, de molde a se evitarem injustiças quea consciência jurídica e humana repudiavam.”39

No mesmo sentido JOSÉ DE AGUIAR DIAS preceitua que “cul-pa e risco são títulos, modos, casos de responsabilidade civil. Nãoimporta que a culpa conserve a primazia, como fonte da responsabili-dade civil, por ser o seu caso mais freqüente. O risco não pode serrepelido, porque a culpa, muitas vezes é, sob pena de sancionar-seuma injustiça, insuficiente como geradora da responsabilidade civil.”40

39Dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa não era possível resolver um sem-número de casos, que a civilização moderna criara ou agravara; imprescindível se tornara, paraa solução do problema da responsabilidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, dapesquisa psicológica, do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência,para colocar a questão sob um aspecto até então não encarado devidamente, isto é, sob o pontode vista exclusivo da reparação do dano. O fim por atingir é exterior, objetivo, de simplesreparação, e não interior e subjetivo, como na imposição da pena“Os problemas da responsabi-lidade são tão-somente os problemas de reparação de perdas. O dano e a reparação não devemser aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem emergir do fato causador da lesão de umbem jurídico, a fim de se manterem incólumes os interesses em jogo, cujo desequilíbrio émanifesto, se ficarmos dentro dos estreitos limites de uma responsabilidade subjetiva.”

.” In Culpa e Risco, p. 113/116.40 In Da responsabilidade civil, p. 15. José de Aguiar Dias apresenta uma síntese do pensamentofrancês, quanto à necessidade de adoção da responsabilidade, independentemente da existên-cia de culpa: “Alei deixa a cada um a liberdade de seus atos; ela não proíbe senão aqueles quese conhecem como causa direta do dano. Não poderia proibir aqueles que apenas trazem em sia virtualidade de atos danosos, uma vez que se possa crer fundamentalmente que tais perigospossam ser evitados, à base de prudência e habilidade. Mas, se a lei os permite, impõe àquelesque tomam o risco a seu cargo a obrigação de pagar os gastos respectivos, sejam ou nãoresultados de culpa. Entre eles e as vítimas não há equiparação. Ocorrido o dano, é preciso quealguém o suporte. Não há culpa positiva de nenhum deles. Qual seria, então, o critério deimputação do risco? A prática exige que aquele que obtém proveito de iniciativa lhe suporte osencargos, pelo menos a título de sua causa material, uma vez que essa iniciativa constitui umfato que, em si e por si, encerra perigos potenciais contra os quais os terceiros não dispõem dedefesa eficaz. É um balanceamento a fazer. A justiça quer que se faça inclinar o prato daresponsabilidade para o lado do iniciador do risco.”

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Não foram em vão os esforços do autor ao demonstrar as teori-as francesa e alemã, que informam, inclusive, outros fundamentos,como o da repartição do dano; a obra de ALVINO LIMA destaca a repon-sabilidade civil do Estado, atualizada pelo PROFESSOR NELSONNERY JUNIOR.41

Neste sentido, ALVINO LIMA reproduzi o entendimento de ESMEIN,que sintetiza o fundamento da teoria do risco nos seguintes termos:

“Toda pessoa que, para atingir um fim qualquer, em-prega meios que podem fazer correr um risco, ofere-cer um perigo, seja para ela própria, seja para outros,deve tomar a seu cargo a responsabilidade do danoque pode ser causado. Desde que tenha os proveitosda empresa, módicos ou consideráveis, deve sofreras perdas inerentes aos processos empregados. Eisso, ainda mesmo que tenha tomado todas as pre-cauções desejadas, desde que não foi caracterizadauma culpa, seja da vítima, seja de um terceiro. Se oacidente é unicamente inevitável, é que ele constituium risco inerente à empresa, uma conseqüência ne-cessária de fato do processo utilizado. Aquele queobtém uma vantagem ao empregar este meio do qualnormalmente aufere proveito, deve sofrer as conse-qüências do acidente sobrevindo. Ele deve conhecerbem o processo ao qual recorreu, auferindo vantagense os inconvenientes. Se se enganou em seus cálcu-los ou se os maus resultados que ele devia prever serealizaram, a perda deve ficar a seu cargo.”42

No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil obje-tiva surge ao lado da teoria subjetiva, sendo esta regra geral de nossosistema civil, no corpo do próprio Código Civil de 1916, como nos arti-gos 1.519 e 1.520, § único, 1.528 e 1.529, que dispõem sobre a res-ponsabilidade pelo fato das coisas, bem como em outros textos legais

41 In Responsabilidade civil pelo fato de outrem, p. 182/191.42 Ob. cit. p. 181.

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do início do século que já se fundamentavam na corrente objetiva, comoa legislação sobre acidentes de trabalho do Decreto 3.724/19, commuitas alterações, que todavia não alteraram o sistema da responsa-bilidade objetiva, para os acidentes de que trata; a legislação sobretransportes aéreos, inaugurada com o Código Brasileiro do Ar (Decre-to-lei 483/38), passando igualmente por várias modificações até a en-trada em vigor do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86)43; eainda a Lei 2.681/12 que estatui que as estradas de ferro respondempelos danos causados aos seus passageiros e aos proprietários mar-ginais que sofrerem danos pela exploração de suas linhas.

Igualmente, a responsabilidade civil do Estado é regida pela dou-trina do risco desde a Constituição Federal de 1946, artigo 196, o quenão foi modificado pelas Constitucições que a sucederam, mantendo-se a Carta de 1988 na expressão da responsabilidade objetiva do Es-tado, conforme prescrito no artigo 37, parágrafo 6o.

Como já referimos e no mesmo sentido, o artigo 21, XXIII, “c”, daConstituição Federal mantém o sistema da responsabilidade civil ob-jetiva, para a ocorrência dos danos nucleares; também o artigo 225, §3º, impõe o dever de reparar os danos causados ao meio ambiente.44

É o que encontramos na expressão dos mais recentes textos le-gais como o da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/81,o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, e a Lei Antitruste, Lei8.884/94, todas voltadas para a defesa coletiva dos Direitos em sentido

43 Quanto a isso sustenta Andrea Salazar que: “Sobre a referida Lei, cabe mencionar que autoresdiversos sustentam sua derrogação frente o Código de Defesa do Consumidor que desde 1991regula as relações de consumo, abarcando inclusive aquelas decorrentes de empresas aéreas econsumidores”. A este respeito, v. o brilhante estudo de Claudia Lima Marques, “A responsabilidadedo transportador aéreo pelo fato do serviço e o Código de Defesa do Consumidor – antinomia entrenorma do CDC e de leis especiais”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 3, p.155/197.44 Refere-se aqui, ao Estado, compreendendo as pessoas jurídicas de direito público e as dedireito privado prestadoras de serviços públicos. No mesmo sentido o artigo 37, § 6º tampoucofaz tal ressalva e não há quem questione seu fundamento objetivo. E, por fim, a melhordoutrina sinaliza no mesmo sentido, como ensinam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de AndradeNery, para quem a Constituição Federal de 1988 “em nada alterou a sistemática da responsabi-lidade objetiva da Lei 6.938, de 31.8.81, que foi, portanto, integralmente recepcionada pelanova ordem constitucional”. In “Responsabilidade civil, meio-ambiente e ação coletiva ambiental”,in Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão, p. 279.

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amplo, assegurando a responsabilidade civil objetiva em caso de danosverificados ao meio ambiente, ao consumidor e à ordem econômica.

Quanto ao dano propriamente dito, constatamos a existência detrês teorias no que se refere à perquirição da responsabilidade civil, sobre-tudo em razão da ocorrência de causas sucessivas; a primeira é a daequivalência das condições; a segunda da causalidade adequada; e, aterceira, a dos danos diretos e imediatos ou da relação causal imediata.

Para a teoria da equivalência das condições ou teoria da condi-ção sine qua non – elaborada inicialmente pelo jurista alemão VONBURI, no Direito penal, depois desenvolvida pela doutrina civilista – éconsiderada toda causa e qualquer circunstância que haja concorridopara produzir o dano.

Explica AGOSTINHO ALVIM que a equivalência resulta de que,suprimida uma delas, o dano não se verificaria, vale dizer, para a impu-tação da responsabilidade é preciso que o ato praticado pelo ofensorse dê como condição, sem a qual o dano não se pudesse veriificar.45

Para a teoria da causalidade adequada, somente as condiçõespor si só e necessariamente capazes de produzirem o dano são tidascomo causas e, na hipótese de se verificar o dano em razão de outra(s)circunstância(s) acidental(is), não se está diante da causa adequada.Para esta segunda teoria, não há responsabilidade do agente pela morteda vítima, quando não se tratar de uma causa adequada a produzir oefeito verificado, o que parece se apresentar em solução oposta àque-la sugerida pela teoria primeiramente referida.

A terceira teoria, dos danos diretos e imediatos, denominada porAGOSTINHO ALVIM como ‘teoria da relação causal imediata’, requeruma relação de causa e efeito direta e imediata entre a inexecução daobrigação e o dano.46

45 Ob. cit., p. 368.46 In op. Cit. ibid. Para Carlos Roberto Gonçalves nessa teoria “o agente primeiro responderiatão-só pelos danos que se prendessem a seu ato por um vínculo de necessariedade. Pelosdanos conseqüentes das causas estranhas responderiam os respectivos agentes” ... “não seindenizam esperanças desfeitas, nem danos potenciais, eventuais, supostos ou abstratos”.

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Entre nós, dentre as teorias apresentadas, o Código Civil Brasi-leiro adotou a do dano direito e imediato, como se depreende do seuartigo 1.060 – “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, asperdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantespor efeito dela direto e imediato”, que explica que “suposto certo dano,considera-se causa dele a que lhe é próxima ou remota, mas, comrelação a esta última, é mister que ela se ligue ao dano, diretamente.Ela é causa necessária desse dano, porque a ela ele se filia necessa-riamente; é causa exclusiva, porque opera por si, dispensadas outrascausas. Assim, é indenizável todo dano que se filia a uma causa, ain-da que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não exis-tir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei que o dano seja oefeito direito e imediato da inexecução”.47

Convém ressaltar que, a reparação de um dano futuro é possível,como admitem Planiol, Ripert e Esmein, que “possa ser ressarcido umprejuízo, ainda não positivado, se a sua realização é desde logo previsí-vel pelo fato da certeza do desenvolvimento atual, em evolução, masincerto no que se refere à sua quantificação”; ou, ainda, “se consistir nasequência de um fato danoso atual, como seria o caso do dano causa-do a uma pessoa, implicando sua incapacidade para o trabalho”.48

Das lições de ULRICH BECK49 temos que “um dos aspectossignificativos das sociedades actuais é que geram riscos que não po-dem ser limitados no tempo ou no espaço e não são calculáveis oucontabilizáveis”. “Assiste-se, pois, actualmente à transição de umasociedade industrial para uma sociedade de risco, o que resulta, es-sencialmente, do desmoronamento de sistemas estáveis de seguran-ça e de compensação de danos baseados na calculabilidade do risco.Passa-se, assim, para um paradigma de incerteza. Na verdade, o con-ceito de risco (identificável) pressupõe a possibilidade de conhecer osistema e ser capaz de quantificar e prever os factores implicados. Já

47 Segundo AGOSTINHO ALVIM, “é a teoria do Código de Napoleão, adotada pelo nosso e poroutros códigos”. In op. cit. pp. 370-380. Ob. cit., p. 370.48 In Traité Pratique de Droit Civil, vol. 6, nº 544.49 Risk society and the provident state, Londres, 1995.

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a ideia de incerteza está associada ao conhecimento de algunsparâmetros do sistema, mas com impossibilidade de conhecimentoquantitativo dos factores determinantes.” 50

A atual sociedade de risco pode ser constatada no elenco dealguns casos, verificados para fins de estudos da responsabilidadecivil51, como o da contaminação de pessoas, de alimentos e do meioambiente em decorrência do acidente da usina nuclear de Chernobyl,na União Soviética e o acidente em Goiânia a partir de uma cápsula deCésio-137 que resultou em mortes e lesões a um grande número depessoas. O caso da talidomida, medicamento consumido especial-mente na Europa, por gestantes, entre o final dos anos 50 e início dosanos 60, provocou graves deformidades no feto e no nascituro.

Em relação à certeza ou não da ocorrência do dano, em razãode determinado fato, leciona AGOSTINHO ALVIM que haveria de se dara reparação, até porque “nem sempre há certeza absoluta de que cer-to fato foi o que produziu determinado dano”, o que bastaria para finsde responsabilidade, em razão do grau elevado de probabilidade”.52

Assim é que, além de ser a culpa presumida, se for o caso, hátambém de se presumir o próprio nexo de causalidade entre o eventoe o dano, como explica HENRI DE PAGE53.

Referentemente aos aspectos dos riscos e ocorrência dos danosem nossa sociedade atual, pedimos venia para discordar, ao menos emparte, das lições de JOSÉ DE SOUSA CUNHAL SENDIM, que explica osriscos das sociedades atuais, sociedades de risco, caracterizando-ospela impossibilidade de sua limitação no tempo e no espaço, bem comopela inexistência de meios de se calculá-los ou contabilizá-los.

50 Responsabilidade civil por danos ecológicos – da reparação do dano através de restauraçãonatural, p. 231.51 Alguns dos exemplos foram extraídos de Sergio Cavalieri Filho, “O direito do consumidor nolimiar do século XXI”, in Anais do 5o. Congresso Brasileiro e 3o. Congresso Mineiro de Direitodo Consumidor; e quanto aos danos nucleares os exemplos são de Caio Mario da Silva Pereira,ob. cit., p. 49.52 In op. cit.53 Citado por Caio Mario da Silva Pereira, ob. cit., p. 76.

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Entendemos, de outra feita, que devemos afastar a hipótese denão se poder calcular ou contabilizar tais danos, que em nosso pensa-mento também abarca o conceito de risco, para atacá-los no sentidode não se deixar de fixar em qualquer hipótese – principalmente na-quelas que envolvam dano biológico, ou seja, à saúde – o valor ou ocomportamento em que se possa converter, desde que aferível, o cor-respondente ao dano (lesão e ameaça), causado.

Assim, o Professor NELSON NERY JUNIOR, ao tratar dos “princí-pios reguladores da responsabilidade civil no Código de Proteção e De-fesa do Consumidor, traz preciosa contribuição para o estudo do tema:

“O Código adotou a teoria do risco da atividade comopostulado fundamental da responsabilidade civilensejadora da indenização dos danos causados aoconsumidor. A simples existência da atividade eco-nômica no mercado, exercida pelo fornecedor, já ocarrega com a obrigação de reparar o dano causadopor essa mesma atividade. A responsabilidade é,portanto, objetiva (arts. 12 e 18). Não é necessárioque tenha agido com culpa, tampouco que sua ativi-dade esteja autorizada pelo órgão competente dopoder público, ou, ainda, que tenha havido caso for-tuito ou força maior. Apenas e tão-somente as cir-cunstâncias mencionadas no CDC em numerusclausus como causas excludentes do dever de inde-nizar é que efetivamente podem ser invocadas pelofornecedor a fim de eximi-lo desse dever. Esse sis-tema é semelhante ao já existente no Brasil para odano causado ao meio ambiente (art. 14 da Lei 6.938/81), que não admite o caso fortuito e a força maiorcomo causas de exclusão da responsabilidadecivil”.Como o sistema do CDC, no que respeita à res-ponsabilidade civil, é o da responsabilidade objetiva,deve ser aplicado a toda e qualquer pretensãoindenizatória derivada de relação de consumo.” ...

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“(...) Isto porque o fundamento da indenização inte-gral do consumidor, constante do art. 6º, VI, do CDC,é o risco da atividade, que encerra em si o princípioda responsabilidade objetiva praticamente integral, jáque insuscetível de excluir do fornecedor o dever deindenizar mesmo quando houver caso fortuito ou for-ça maior.Como conseqüência, todo e qualquer danoocasionado ao consumidor, seja ele derivado do con-trato ou extracontratual, de publicidade enganosa ouabusiva, é indenizável de forma integral sob o regimeda responsabilidade objetiva.” 54

5. A JURISPRUDÊNCIA E A CLASSIFICAÇÃODO DANO PATRIMONIAL, MORAL E ESTÉTICO

Deparamos com importante esforço doutrinário e jurisprudencial,ao tentar-se definir o que é dano moral, valendo-se, inclusive, da lesãoao nome, à imagem e, ainda, ao buscar a reparação de dano sofrido,prevalecendo, em grande maioria dos casos, o modelo norte-ameri-cano que aplica o caráter punitivo da indenização.

Em que pese o entendimento de nossos tribunais, primeiro, acer-ca da ‘impossibilidade de reparação’ pelo dano moral sofrido diante daperda, por exemplo, da vida da pessoa humana, ou ainda, da dificulda-de de fixação do valor em pecúnia a ser pago, a título indenizatório, emrazão de dano moral, acreditamos que pensar-se em perda irreparável,para os fins que tratamos, é algo que tende a condenar o lesado econgelar o status quo adquirido após a lesão, sob a tênue justiificativade que não se haveria como reparar.

Em seara jurídica, maxima venia, devemos sempre procurar re-parar sob o aspecto civil e, punir sob o aspecto penal, as práticas econdutas rechaçadas pela lei, pelos bons constumes e também pela

54 Revista de Direito do Consumidor, vol. 3, p. 56/61.

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ética. Nesse diapasão, não se há de relegar à situação de irreparávelas maiores e piores lesões sofridas, tanto mais quando tratamos dosDireitos Difusos e Coletivos, que buscam a proteção do bem maior, degarantias constitucionais refletidas no Direito material que mereça atutela específica, vale dizer, sob o aspecto das relações jurídicas deconsumo do CDC, ou ainda do Direito Ambiental, da Criança e do Ado-lescente e assim por diante.

Verificamos verdadeiros esforços, em nossos julgados, em re-conhecer o Direito à saúde diante da classificação encontrada civil econstitucionalmente para o dano, vale dizer, sua esfera patrimonial emoral. Resta-nos que, diante da lesão ocorrida, debatendo-se entre odano moral e a possibilidade de ressarcimento, temos verificado, nasituação de acolhimento para reconhecer o dano, certa variação entreo enquadramento moral e patrimonial, como, por exemplo, na apela-ção cível de número 2001.001.10335, da lavra da décima câmara cível,tendo como relator o desembargdor Luiz Fux.55

Trata-se de agressão de motorista a passageiro, em transpor-te coletivo, que representando a indignação dos demais reclamou doexcesso de velocidade, sofrendo por isso, ‘agressão física violenta ecovarde levada a efeito pelo motorista de 25 anos contra um senhorde 65 anos, atingindo-o na face com os pés, causando-lhe lesõesincontestes e que resultaram em apenação transacionada no JuizadoEspecial Criminal’.56

Entendeu o douto julgador que “um dos escopos da fixação dodano moral é seu caráter exemplar, in casu de notável efeito pedagógi-co, tendo em vista a natureza do serviço prestado e a população aten-dida diuturnamente, o que, recebendo a devida divulgação, revela ex-pressivo caráter intimidatório difuso entre os diversos motoristas dosetor’, resultando provido o apelo da parte autora, para fixar a indeniza-ção em 300 (trezentos) salários mínimos e para majorar os honoráriosadvocatícios para 20% do valor da condenação.

55 Responsabilidade civil - empresa de transporte - ato ilícito praticado por preposto - agressãofísica - passageiro de ônibus - lesão corporal - responsabilidade objetiva - dano moral - indeni-zação fixação do valor. julgado em 07/11/2001.56 Idem.

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Entendemos que, a saúde foi reparada a título de dano moral e,se requerido fosse o dano patrimonial, versaria sobre a questão dasdespesas experimentadas por aquele que sofreu a lesão ou, ainda,sobre a projeção social do lesado, passando ao largo da possibilidadede indenização pelo dano sofrido pela saúde humana.

Outro entendimento jurisprudencial, encontramos no acórdão :RESP 297007 / RJ ; RECURSO ESPECIAL 2000/0142893-4, Fonte:DJ DATA:18/03/2002 PG:00256, que tem como Relator o ministro RUYROSADO DE AGUIAR, referente ao pedido de indenização por quei-maduras sofridas, com lucros cessantes e pedido de dano moral, emdecorrência de acidente ocorrido em sala de aula durante experimentocom álcool, orientado pela professora, causando sérias queimadurasem aluna pequena.

O resultado obtido através da ação, em grau de recurso especial,foi o de falta de prova da efetiva diminuição na renda dos pais da vítima,o que não permitiu o exame desse ponto do recurso especial; quantoaos juros a serem pagos pelo autor material do ilícito são contados naforma do art. 1544 do Código Civil e, por força do recurso houve a eleva-ção da indenização do dano moral de 200 para 700 salários mínimos,consideradas as circunstâncias da espécie, sendo 400 salários míni-mos para a vítima e 150 para cada um dos pais. A condenação deveincluir todas as intervenções que se fizeram necessárias durante atramitação do demorado processo e das que devam ser feitas no trata-mento das seqüelas deixadas pelo acidente, ainda que não possam serdesde logo definidas em número e em valor, o que ficará para a liquida-ção de sentença. Conforme a perícia, a natureza das lesões exige cons-tantes e periódicas intervenções, até sua definitiva consolidação.

Como se vê, a indenização procura aproximar-se da reparaçãodo dano, todavia, em seu aspecto moral e patrimonial, chegando a seconfundir com o impacto causado à saúde humana, decorrente dalesão sofrida e, quanto a isso, pretendemos nos referir à materialidadeprocurada na lesão ou ameaça a Direito ao tentar-se repará-las.

Como bem assevera EDUARDO MARTINES JUNIOR, “todos osdireitos e garantias fundamentais possuem uma clara e direta ligação

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com o princípio da dignidade da pessoa humana, dando a equívocaimpressão de que se esgotam no artigo 5º e, mais especificamente,nas disposições ligadas ao ser humano e sua relação com o Estado.Todavia, também no artigo 6º vamos encontrar desdobramentos doprincípio enfocado, pois ninguém tem existência digna sem educação,saúde, moradia, proteção à maternidade e à infância, dentre outros.”57

Ao tratarmos da proteção jurídica em face do dano moral ou esté-tico, devemos levar em conta, sobretudo, o aspecto constitucional davida humana, assim compreendido sua incolumidade física e psíquica.

Referentemente à classificação doutrinária, acolhida por nossostribunais, do chamado dano estético, julgou o Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul em Apelação Cível, número: 587007451, Relator:Luiz Melíbio Uiracaba Machado, sobre a responsabilidade civil dosmédicos no tratamento estético, julgando que as clínicas de estéticafirmam com seus clientes contrato de resultado e, em casos de recla-mação de ressarcimento de danos, relevando o fato de ter sido dada aatenção devida ao problema originário, sendo as obrigações profissio-nais de tratamento adequado.

Entendeu, assim, o Tribunal gaúcho que “ quem sofre danos emsua saúde tem direito a buscar os melhores hospitais e os melhoresmédicos para se curar a custa do autor do dano e, assim mesmo,ainda não recebe a compensação devida pelo sofrimento físico e psí-quico que lhe foi imposto” (apelação cível nº 587007451, terceira câ-mara cível, tribunal de justiça do RS, relator: des. Luiz Melíbio UiracabaMachado, julgado em 26/03/87)

No mesmo sentido foi o julgamento da lavra dessa côrte, entendendoo dano estético como lesão de alcance material e moral, na medida em que

57 Prossegue o professor no sentido de que: “ Essas disposições constitucionais vêmcomplementadas pelas leis ordinárias e no caso da criança e do adolescente, essacomplementação vem pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90, comespecial ênfase à dignidade nos artigos 15 a 18”. Estamos de acordo com tal afirmação e, poranalogia, também aplicaremos o CDC e a lei da Política Nacional do Meio Ambiente às ques-tões que envolvam os interesses a que visam tutelar. In Revista de Direito Social, no 6, ano 2,pp.77-120; Ed. Notadez, Porto Alegre, 2002 “A educação como direito fundamental do serhumano no Brasil”.

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decorre do sentimento de desgosto, tristeza, constrangimento viven-ciado por aquele que sofreu a lesão física permanente.58

Assim é que, na classificação de dano patrimonial e moral, parao que se chama de dano estético encontramos, na maioria dos casos,lesão à integridade física ou psíquica que possa decorrer, inclusive daalteração estética conseqüente do dano. É o que temos verificado nasdecisões de nossos tribunais, como a resultante da apelação cível quelevou a cabo a ação de indenização, por erro médico, em que se cons-tatou erro na avaliação diagnóstica, em razão de ter sido ministradomedicamento causando a perda da visão de um dos olhos da autora,sendo determinado a pensão de dois (02) salários mínimos até que amenor atinja 65 anos de idade e despesas com tratamentos futuros.59

58 Recurso: apelação cível número: 70000250803. Relator: Roque Miguel Fank. Ementa: aci-dente de trânsito. Atropelamento. Despesas médico-hospitalares e com medicamentos. Planode saúde. Dano estético. Critérios de fixação. Sendo o plano de saúde de cobertura parcial,todas as despesas excedentes, pagas pela vítima, devem ser ressarcidas, a título de danomaterial, inclusive as relativas ao custeio de medicamentos. O dano estético decorre do senti-mento de desgosto, tristeza, constrangimento vivenciado por quem sofre a lesão física perma-nente, independentemente da posição sócio-econômico-cultural da vítima ou de haver ou nãoredução da capacidade laborativa, bem como de sequelas funcionais. O “quantum” indenizatóriodeve ser estabelecido buscando não só a compensação do sofrimento experimentado pelavítima, mas, também, a capacidade econômica do causador, de forma a garantir a utilidade doprocesso e da condenação, evitando-se tanto o enriquecimento, de um lado, como a insolvên-cia, de outro. A condenação às custas e honorários deve corresponder aos decaimentos. Apela-ção parcialmente provida. (7 fls.) (apelação cível nº 70000250803, décima primeira CâmaraCível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: des. Roque Miguel Fank, julgado em 16/08/00).59 Recurso: apelação cível número: 595133661. Relator: Paulo Roberto Hanke. Ementa: indeniza-ção. Erro médico. Ação ajuizada contra médico-assistente e hospital, no qual o primeiro atua,como credenciado pelo INAMPS. Erro de avaliação diagnóstica, que se prolonga após segundainternação. Se bem que acometida a pequena paciente de síndrome rara e de difícilidentificação diagnóstica, tal circunstância não torna a conduta do médico-assistente escusável.Erro inicial, consistente em ministrar medicamento ‘Gardenal’, sem prévia avaliação neurológicasobre a necessidade do medicamento, o qual se mostrou, finalmente, como a causa determinanteda síndrome, que resultou na perda de um dos olhos da autora (evisceração) e quase cegueira naoutra vista. Estabelecida a relação de causa e efeito direta entre a ação do agente e o dano sofridopela menor, agravada a imperícia, pela negligência no retardamento ou demora de encaminha-mento da autora a centro especializado, onde ocorreu o diagnóstico correto. Condenação que semantém, inclusive, do hospital, em forma solidária. A alegação deste último, sobre não pertencero médico ao seu corpo clínico restou indemonstrada, ainda que, expressamente, oportunizada talprova. A despeito da ausência de prova de culpa, própria ou autônoma, do hospital, por negligên-cia de seus prepostos, ou por qualquer outro tipo, prevalece, no caso, a culpa objetiva ou mesmo,a culpa in eligendo, de seus prepostos. Irrelevância de ser, ou não, o médico funcionário ouceletista da entidade hospitalar, ou, até que não seja remunerado pelo hospital, e sim do INAMPs.Médico credenciado. Ocorrência de verdadeira sub-rogacao de preposição. Parcelas indenizatóriasdeferidas. Reembolso, por despesas efetuadas; indenização por dano estético; apelação cível nº595133661, sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: des. Paulo Roberto Hanke,julgado em 06/02/96) mantida a condenação, neste particular, inclusive no tocante aos valoresarbitrados. (apelação cível nº 595133661, sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:des. Paulo Roberto Hanke, julgado em 06/02/96).

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Procuramos demonstrar que a classificação entre dano patri-monial, moral e estético, tem toda ela resultado na condenação pecuniária,sem prejuízo de eventualmente sequer existir outro meio, em muitosdos casos, que se pudesse obter outro tipo de solução para a possívelreparação da lesão ou ameaça sofrida. Então, o dano estético, que sepossa confundir com dano à saúde, inclusive, pode ter merecido a cisãodoutrinária, também considerado o ordenamento positivo em nossosdias, entre o dano caracterizado em sua esfera material ou moral.60

Nos julgamentos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado deSão Paulo, mesmo no que se refere aos danos decorrentes de acidentede trabalho, verificou-se a condenação por dano moral, entendendo-seque “são cumuláveis as figuras do dano moral e estético, já que o últimonão cuida de modalidade do primeiro, tampouco e por aquele engloba-do. Constituição de capital. Exegese dos artigos 602 e 20, § 5º do CPC.Cirurgia plástica estético-reparadora. Direito à ampla reparação, naexegese dos arts. 1.538 e 1.539 do Código Civil Brasileiro. Dano moralquantificação. Avaliadas as circunstâncias do caso concreto, mostra-serazoável indenização no valor equivalente a 100 salários mínimos, o

60 Recurso: apelação cível número: 70005158613. Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins.Ementa: acidente do trabalho. Indenização de direito comum. Perda da visão do olho direito.Culpa do empregador. Dano material e moral. Requisitos da responsabilidade civil de direitocomum. A responsabilidade civil do empregador exige a prova acerca da conduta culpável, dodano e do nexo causal entre ambos. A aferição da conduta utiliza um padrão médio, objetivo, dobônus pater familiae, mas não pode se afastar, tampouco, de critérios subjetivos incidentes. Émaior a cobrança de condutas elevadas daqueles que detêm condições para tanto, pelo conhe-cimento dos dados implicados, especialmente no caso de empresas, quanto aos seus serviçosessenciais ou complementares. Dano físico ou material. Pensão a ser paga mensalmente, pro-porcional à invalidez parcial e permanente do autor 30% do salário que percebia à época doacidente. Dano moral. Dano in re ipsa, quando se trata de perda de capacidade funcional. Danoestético. Cicatriz corneana não configura dano estético, porque não causa repulsa. Quantificaçãoda indenização. Arbitramento pelo magistrado, com base no art. 1553 do CC, levando emconsideração tanto o caráter compensatório como o caráter inibitório-punitivo da indenização.Fixação desta a partir do interesse-tipo ferido e da produção doutrinária e jurisprudencial,mediante critérios aí estabelecidos, tanto relativos às partes e circunstâncias do fato como tendopor parâmetros condenações em casos assemelhados, dentro do bom senso e da razoabilidade.Sucumbência recíproca. Apelação e recurso adesivo providos em parte. (apelação cível nº70005158613, nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: des. Rejane Maria Diasde Castro Bins, julgado em 04/12/02).

No mesmo sentido os julgados da lavra do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, emque se cumula entre dano moral e material o chamado dano estético, avaliando o danoestético somente a partir da perda da capacidade laboral da vítima do evento.

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que encontra ressonância em entendimentos jurisprudenciais e doutri-nários para casos análogos.61

É interessante, todavia, notar que já se julgou em ação de indeni-zação a possibilidade, como referimos, de cumulação do dano moral eestético, ressaltando-se possível acumulação dos danos, ainda quedecorrentes do mesmo sinistro, se identificáveis as condições justifi-cadoras de cada espécie, julgando-se “improcedentes, todavia, tanto adobra quando também já deferido o ressarcimento pelo dano estético,sob pena de configuração de bis in idem, como a extensão, por analo-gia, do acima citado dispositivo legal ao dano moral, eis que são taxativasas hipóteses de incidência da dobra”.62

Reconhecendo a natureza jurídica objetiva da responsabilidadecivil do Estado na área da saúde, julgou acertadamente o Tribunal de

61 Recurso: apelação cível número: 70003095759. Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira.Ementa: responsabilidade civil. Ação de reparação de dano moral cumulada com dano estético.Furacão Negro Dakron. Produto colocado no mercado na finalidade do desentupimento de piase ralos domésticos. Consumidora que, não obstante a adoção das precauções regulares, vem asofrer intensa queimadura química, com a consequência de lesões que justificam cirurgia esté-tico-reparadora. Produto perigoso. Produtos e serviços que apresentem periculosidade exagera-da, de modo a não advertirem suficientemente o consumidor (unreasonably dangerous) nãodevem ser colocados no mercado de consumo. Inteligência do art. 10 do CDC. Dano moral.Dano estético. Apelo parcialmente provido. (apelação cível nº 70003095759, nona CâmaraCível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 27/11/02).62 Acórdão resp. 248869/PR; Recurso especial 2000/0015269-2, fonte DJ. Data:12/02/2001pg:00122 RSTJ vol.:00148 pg:00435. Relator: min. Aldir Passarinho Júnior (1110) Ementa civile processual. Ação de indenização. Acidente de veículos. Perda de braço. Dano estético e moral.Cumulação. Possibilidade. Lucros cessantes. Dobra. Decisão extra petita não configurada.Incabimento quando já deferido o dano estético. bis in idem. cc, art. 1.538, § 1º. Aplicaçãoanalógica inviável em relação ao dano moral. No mesmo sentido acórdão resp. 241087/RJ;recurso especial 1999/0111197-8 fonte DJ. Data:18/12/2000 pg:00185. Relator min. Carlos AlbertoMenezes Direito (1108). Ementa. Indenização. Atropelamento por ônibus. Precedentes da corte.

1. não viola nenhum dispositivo de lei federal a determinação do acórdão recorridosobre a possibilidade de inclusão do acidentado em folha de pagamento, comprovada a idonei-dade financeira da empresa ré.

2. já decidiu a corte que é possível acumular o dano estético e o dano moral oriundos domesmo fato, no caso, atropelamento de que decorreu a amputação de uma perna.

3. tratando-se de responsabilidade extracontratual, aplica-se a súmula nº 54 da corte.

4. não se justifica a intervenção da corte no valor fixado pelas instâncias ordinárias parao dano estético e o dano moral, se não se configura como abusivo ou desproporcional.

5. os honorários, no caso, incidem sobre o somatório das prestações vencidas mais umano das vincendas, mais as verbas do dano moral e do dano estético.

6. recurso especial conhecido e provido, em parte.

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Justiça do Rio Grande do Sul, ao entender que o erro médico havido noexame de angiografia cerebral, além de demonstrar que o procedi-mento foi realizado sem a cautela de serem testadas as suas condi-ções de tolerância, resultando em ficar a vítima tetraplégica, represen-ta responsabilidade objetiva do Estado, a teor do art. 107 da Constitui-ção de 1969, que agasalhou a teoria do risco administrativo, sendo “...cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral, oriundosdo mesmo fato” (Súmula nº 37 do STJ). Interessante, todavia, notarque a condenação da ré ao pagamento de dano moral compreende areparação por dano estético, com a inaplicabilidade do artigo. 461, §3º, do CPC, por não se cogitar, na espécie, de obrigação de fazer.63

Assim é que, o dano estético, assim classificado, acaba por tra-duzir o dano moral que possa representá-lo, em razão das alteraçõesestéticas havidas na lesão sofrida, não representando uma espécie dogênero dano, propriamente dita. Além disso, vê-se afastada a obrigaçãode fazer que, independentemente do caso, parece não expressar o meiode reparação dos danos estéticos ou moralmente havidos, sendo certoa preferência pela fixação pecuniária, geralmente tímida e mitigada, mes-mo tratando-se de aspectos físicos ou imateriais da saúde humana.64

63 TJRJ – AC 2975/97 – (Reg. 060198) – Cód. 97.001.02975 – RJ – 1ª C.Cív. – Rel. Des. AmauryArruda de Souza – J. 14.10.1997.64 No mesmo sentido, julgado: 11013140 – responsabilidade civil – acidente de trânsito –responsabilidade civil – dano moral – dano estético – atropelamento – pensão – indenização pordano moral e material – atropelamento de moradora da região, que se encontrava próxima desua casa, situada junto à estrada, por caminhão que, na contramão de direção, procuravaultrapassar outros veículos – concessão de pensão e indenização por dano moral. Honoráriosfixados sobre o valor das prestações vencidas e sobre o capital constituído para garantir ocumprimento da obrigação. Age com manifesta culpa o motorista que ingressa na contramão dedireção objetivando a ultrapassagem de veículos parados, sem consideração às condições dolugar, vindo a atingir a vítima nas proximidades de sua residência. São cumuláveis a indenizaçãopor dano material e a indenização por dano moral. O bem-estar, a saúde e a vida são valores quequando ameaçados ou violados geram sofrimento moral. Em se tratando de responsabilidadeextracontratual, os honorários tem por base o valor da condenação (artigo 20, § 5º, do códigocivil) (TACRJ – ac 132/94 – (reg. 803-2) – cód. 94.001.00132 – 4ª c. – rel. juiz Carlos Ferrari – j.03.03.1994) (ementário TACRJ 31/94 – ementa 37539). E julgado: 17003164 – responsabilidadecivil do Estado – disparo de arma de fogo – responsabilidade objetiva do Estado –incapacidadepara o serviço – dano moral – dano estético – indenização – ação indenizatória – procedimentocomum ordinário. Jovem, com 12 anos de idade, em 1988, alvejada, na cabeça, por projétil dearma de fogo disparado durante tiroteio, na via pública, entre integrantes da polícia militar emeliantes. Vítima, no momento do fato, sendo transportada, no tráfego normal da cidade, emautomóvel conduzido por seu cunhado. Seqüelas graves à saúde da ofendida, tornando-lheincapaz, definitivamente, para o trabalho, sem condições de ambulação, necessitada,

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6. DANO BIOLÓGICO: PROPOSTA DA APLICAÇÃO ITALIANA

Antes mesmo de abordarmos o tema do dano biológico, em quepretendemos centrar nosso estudo do ponto-de-vista da responsabili-dade civil, para alcançarmos a efetividade do Direito material a serprotegido, devemos tratar da responsabilidade pelo dano causado àsaúde ou à segurança do consumidor, entendendo-o ora como espé-cie correspondente, ora como uma sua decorrente.

A par de perseguirem os Direitos do consumidor a inocuidadedos produtos e serviços, agindo na prevenção dos danos que o consu-mo puder provocar à saúde do público consumidor65, é operativo oreconhecimento dos Direitos essenciais do consumidor, consagradospelas Nações Unidas: a proteção à saúde, segurança e interesseseconômicos, ressarcimento dos danos, acesso à informação e edu-cação para o consumo, liberdade de constituir grupos ou organiza-ções, Direito de fazer ouvir suas opiniões nos processos de adoçãode decisões que os afetem.66

A Constituição Nacional Argentina foi modificada, incorporandoà primeira parte de seu artigo 42 que “os consumidores e usuáriosde bens e serviços têm direito, nas relações de consumo, à proteçãode sua saúde, segurança e interesses econômicos; a uma informa-ção adequada e verdadeira, à liberdade de escolha, e a condições de

permanentemente, de um acompanhante, para ajudar nos seus afazeres habituais do quotidiano,e portadora de danos estéticos, como informado pela prova pericial. Sentença de improcedênciada ação. Apelo da autora. Tiroteio em plena rua, durante horário e em local de grande afluxo depessoas, de que participam elementos da polícia militar estadual, e que provocam gravesferimentos em vítimas inocentes, não deve ser considerado procedimento no estrito cumprimentode dever legal, caso fortuito ou de força maior. O Estado, incubido da segurança pública, nomeio social, responde, objetivamente, pelos atos dos seus servidores que colocam em risco aincolumidade das pessoas em lugares públicos, quando, por qualquer motivo, não sejamexecutados com a perfeição necessária e causem prejuízos a terceiros, a quem deveria proteger.Indenização devida à pessoa vitimada, por danos materiais e morais provocados em razão deoperação militar conduzida de maneira culposa. Recurso provido, para se julgar como procedenteo pedido inicial. Voto vencido confirmatório da decisão recorrida. (TJRJ – ac. 5316/96 – Reg.180897 – Cód. 96.001.05316 – Capital – 6ª C.Cív. – Rel. Des. Ronald Valladares – J. 08.05.1997).65 Assim é a previsão da Diretiva das Nações Unidas de 1985: “... proteção dos consumidoresfrente aos riscos para a saúde e segurança” – artigo 3º, inciso I.66 Luis O. Andorno, “ Responsabilidad por daño a la salud o la seguridad del consumidor”, in LaResponsabilidad, coord. Alterini et Cabana. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, pp. 479-488.

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tratamento isonômico e digno”, consagrando em primeiro lugar o Di-reito à proteção à saúde e segurança do consumidor.67

Como assevera o professor argentino LUIS ANDORNO, “... a prote-ção à saúde e segurança das pessoas constitui o piso mínimo de defesadas mesmas, o que as permite gozar dos demais direitos”, pelo que énatural que esteja consagrado de modo expresso o Direito à proteção aobem da vida, vale ressaltar, saúde e segurança do consumidor.68

No mesmo sentido e direção o Código de Proteção e Defesa doConsumidor vigente em nosso país assegura a saúde, segurança eincolumidade física e psíquica do consumidor e, portanto, do indivíduo– tomada a tutela, inclusive, em seu alcance coletivo lato sensu – entreseus Direitos básicos.

A idéia de dano biológico, ou dano à saúde, não nasce no Direitoitaliano, inspirando-se, na verdade, da experiência francesa dedommage phiysiologique, com critérios de valoração centrados no cha-mado calcul au point. Todavia, é reconhecido que a experiência italianaé mais aprofundada na reflexão sobre os elementos a serem compu-tados para a indenização das vítimas e seus cálculos. A experiênciaitaliana de dano à saúde desenvolveu-se nos últimos vinte anos, frutode um confronto entre os juízes e estudiosos da saúde e do Direito.

O importante esforço das Cortes Constitucionais, de Cassaçãoe dos juizes de primeira instância, chamados ‘juízes de mérito’, apli-cando o princípio constitucional de Direito do indivíduo à saúde, medi-ante a regra do pleno ressarcimento do dano, conseqüente à lesão detal Direito, é obtido somente em parte a realizar o ambicioso projetoque originalmente pretendeu excluir a intervenção legislativa.69

Obteve pleno êxito a operação de credibilidade da figura de danoà saúde, como figura prioritária, autônoma, com respeito à figura dedano emergente, lucro cessante, dano moral, sobre o perfil da res-ponsabilidade.70

67 Na constituição argentina ‘isonomia é sinônimo de equidade’; op. cit. p. 480.68 Idem, ibidem, p. 481.69 Francesco D. Busnelli. In Rivistta di responsabilittà Civile e Previdenza: 2000. Il Danno allaSalute; Un’esperienza italiana; un modello per l’Europa?a Pp. 851-867.70 Op. cit. p. 852.

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O critério de avaliação do dano à saúde traçado pela Corte Cons-titucional é idôneo, moderando uniformidade pecuniária de base e fle-xibilidade na adequação à peculiaridade do caso concreto.71

É, todavia, considerado ‘totalmente desaparecido’, pode-sedizer ausente, a utópica crença inicial de formar-se uma jurispru-dência capaz de dar o que se chama de ‘uniformidade pecuniáriade base’. 72

Quanto a isso, entre nós, parece tratar-se de certa homoge-neidade pudesse ser encontrada em nossos julgados, de qualquer ins-tância ou tribunal, sob o aspecto da aplicação do entendimento da basepecuniária para fins de fixação dos valores indenizatórios.

A referência feita a uma jurisprudência chamada pela doutrinaitaliana de ‘anárquica’ – na qual um juiz singular conservava-se ár-bitro na afirmação de seu critério pessoal de avaliação –, vem se-guida de uma jurisprudência que obedece aos critérios de avalia-ção resultantes de diversas tabelas entre si consideradas, adotadaspelos tribunais.73

Trata-se do ponto de confluência entre o setor da responsabili-dade civil e o da segurança social: era indispensável uma intervençãodo legislador para adequar ao novo princípio o sistema normativo dasindenizações dos danos derivados dos infortúnios do trabalho,individuando-os no ressarcimento do dano à saúde, melhor, indeniza-ção do dano biológico.74

Da parte da Corte Constitucional italiana, foi claro e reiterado oconvite ao legislador, a proceder a reforma do sistema de seguros idô-nea a apresentar uma plena e integral garantia para o dano biológico,decorrente do infortúnio do trabalho.75

71 Conforme julgado nº 184, da Corte Constitucional italiana, de 14 de julho de 1986; inRivistta...Busnelli, op. cit. p. 852.72 Idem, ibidem.73 Id. Busnelli, p. 852.74 Ibidem.75 Côrte Constitucional italiana, decisão nº 356, de 18 de julho de 1991.

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Assim é que, na Itália, o dano biológico está se tornando ‘umafigura normativa do dano’, tanto no setor previdenciário ou securitário,quanto naquele da responsabilidade civil.76

Ora, ao dedicar a lei de 17 de maio de 1999, um artigo inteiro àdefinição de dano biológico, não o fez por acaso, pretendendo o legis-lador, a regulamentação, mesmo em via experimental, visando aosfins do seguro contra os infortúnios do trabalho, enquanto espera, naverdade, a definição de caráter geral do dano biológico e dos critériospara a determinação dos respectivos ressarcimentos.

Com o advento do decreto lei 38 de 23 de fevereiro de 2000, sãoduas as normas do ordenamento jurídico italiano que trazem a defini-ção de dano biológico; primeiramente, o artigo 55, da lei nº 144 de 17de maio de 1999, estabelece:

‘Na espera da definição de caráter geral de dano bio-lógico e dos critérios para a determinação do relativoressarcimento, o presente artigo define, em via ex-perimental, para os fins da tutela de seguro obrigató-rio, contra o infortúnio advindo do trabalho e as doen-ças profissionais, sendo dano biológico a lesão con-tra a integridade psicofísica, suscetível da valoraçãomédico-legal, da pessoa humana. As prestações parao conforto do dano biológico são determinadas na me-dida independente da capacidade de produção darenda do lesado’.77

Encontramos na doutrina italiana, como principais carac-terísticas do dano biológico: a existência de uma lesão à integridadepsicofísica; a possibilidade de se estimar a existência e a gravidade da

76 Nesse sentido, a lei nº 144, de 17 de maio de 1999, delega, no artigo 55, ao Governo, aprovidência, noprazo de nove meses, de reordenar a normativa que disciplina l’INAIL – Compa-nhia de Seguros e Previdência do Governo Italiano –, impondo princípios e critérios diretivos, aprevisão no objeto do seguro contra os infortúnios advindos do trabalho e das doenças profissi-onais; no âmbito do sistema de indenizações, uma idônea cobertura e avaliação do danobiológico. Ibidem.77 Marco Rossetti. Il danno da lesione della salute – biologico, patrimoniale, morale. Ed. Cedam.Padova: 2001, pp. 208 e ss.

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lesão segundo regras e princípios médico-legais; e a irrelevância darenda do lesado para os fins da liquidação do ressarcimento.78

Resta saber – e parece problemático ao Estado – estabelecerque o artigo 13 do decreto legislativo 38/2000 seja aplicável somenteno campo dos infortúnios trabalhistas, ou se desse possa decorreruma norma de valor geral, que faça referência ao dano à saúde, quenão seja causado exclusivamente por infortúnio advindo do trabalho.

A favor dessa tese restritiva, pode-se observar que o artigo 13 doreferido decreto disciplina somente as relações relativas aos segurosobrigatórios geridos pelo Instituto de Resseguros – ‘Inail’– e para asdemais em via experimental, até o momento em que seja aprovadauma disciplina geral no tema do dano à saúde.79

Mesmo não sendo afastada a hipótese de aplicação da definiçãodo artigo 13, do decreto-legislativo 38/2000 no campo da responsabili-dade civil, não aparece tal norma suscetível de aplicação analógicaenquanto a disciplina sobre seguro obrigatório contra os infortúnios notrabalho constitui um corpus das normas especiais referentes à ordi-nária disciplina da responsabilidade civil.

Com o decreto legislativo nº 70, de 28.3.2000 foram editadas pelaprimeira vez no ordenamento jurídico italiano, normas sobre o tema daliquidação do dano à pessoa de modesta identidade, estabelecendo odecreto em seu artigo 3º, uma definição geral de dano à saúde: “pordano biológico se entende a lesão à integridade psicofísica da pessoa,suscetível de avaliação médico-legal; é ressarcível independentementeda sua incidência sobre a capacidade de produção de renda do lesado”.

O professor GUIDO ALPA explica a possibilidade de ressarci-mento decorrente do dano biológico que venha a ser fatal e, conside-rando a morte sofrida pelo lesado em decorrência do dano, a indeniza-ção será recebida pelos sucessores da vítima.80

78 Idem, idibem.79 Op. cit. p. 209.80 Il danno biologico. Ed. Cedam. Padova: 1993, p. 96.

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Refere o professor italiano ao modelo de dano biológico chama-do ‘compromissório’ que difere do ‘modelo negativo’, para o qual ocor-re depauperamento do patrimônio psicofísico, resguardando o prosse-guimento da própria vida, não sendo possível o ressarcimento do danoà saúde caso sobrevenha a morte; neste caso, ocorrerá, eventual-mente, o ressarcimento do dano moral e patrimonial aos herdeirosdecorrentes da lesão ao crédito alimentar.81

Para o chamado ‘modelo positivo’ trata-se de argumentação ló-gica e prática; leciona a doutrina italiana: “se o bem a ser tutelado é asaúde ou a vida, e se se pode ressarcir a lesão causada à saúde, porque não liquidar coisa alguma quando a lesão é de tal gravidade, des-truindo o bem da saúde, atingindo a morte?”. Vale dizer, se o bem lesa-do é tutelado, liquidar coisa alguma no caso de ser destruído este bem,significaria negar que o bem é tutelado.82

O modelo compromissório foi proposto pelo Tribunal de Gênovaem decisão mais recente, considerado o período compreendido entreo evento lesivo e a morte da vítima; nesta difícil ocorrência, que podeser mais ou menos ampla – alguns meses ou alguns instantes – hálesão à saúde e por isso, dano biológico.

Para melhor se compreender a novidade da proposta italiana e,no dizer de GUIDO ALPA, “o problema real ou fictício aberto com esta”,deve-se percorrer os anos de 1974 à 1976, em que o mesmo modelogenovês encontrava-se em via de aperfeiçoamento.83

Assim é que, os primeiros pronunciamentos do Tribunal de Gê-nova registraram de modo claro, o conflito entre dois modelosinterpretativos do mesmo fenômeno, que assumiu por definição o nomede “dano biológico”. Ambas orientações – uma mais restritiva e outramais liberal – guardam a perspectiva de uma progressiva ampliaçãoda área do dano ressarcível.

81 Idem, ibidem, p. 97.82 Nese sentido pronunciou-se a Corte de Apelação de Roma, com a sentença de 13.5.1992;ibidem.83 In op. cit., p. 9.

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Ocorre que, a contemporaneidade dos pronunciamentos e a se-melhança de algumas argumentações empregadas nas suas respecti-vas motivações, poderiam, ao contrário, causar o equívoco de teremas duas questões origem comum, e que suas soluções adviriam deprincípio idêntico.A mesma Corte, talvez desviada da ordem de remessada primeira questão, tratou na motivação da sentença sobre o ‘danobiológico’ e, também, sobre as regras do dano moral; mas o equívocose dissolve ao se observar imediatamente que o dano não patrimonialfoi reclamado enquanto se indicava em que modo a lesão do danobiológico deveria ser quantificada.84

YUSSEF CAHALI refere em sua obra sobre o dano moral, distin-ção feita por SESSAREGO entre o dano biológico e o dano à saúde,sendo o dano biológico aquele que faz direta alusão, de modo objetivo, auma lesão provocada à integridade psicossomática da pessoa, afetan-do, quanto a isso, a normal eficiência do sujeito, o que se faz patenteatravés de atos ordinários, cotidianos e comuns da existência pessoal,devendo este dano, por sua característica, ser apreciado por médico-legista. Já o dano à saúde, “compromete por inteiro o modo de ser dapessoa; representa um déficit que atinge o bem-estar integral do sujeito,derivado da ação do dano biológico; sua apreciação compete normal-mente ao juiz, com base nos informes proporcionados pelos médico-legistas sobre a entidade e o alcance do dano biológico produzido.85

No Direito espanhol localizamos a mesma dificuldade em distin-guir-se dentre os danos morais, aqueles indenizáveis em razão daforça de trabalho que tinha a vítima, das lesões físicas propriamenteditas que tivesse sofrido. Nesse sentido, preocupou-se a professoraELENA VICENTE DOMINGO, com as conseqüências não pecuniáriasdo dano corporal, procurando separar nitidamente a figura dos danoscorporais, colocando-o como centro de atenção, para depois esgotaro estudo de suas conseqüências.86

84 Alpa. Il Danno ... ps. 23 e ss. “Um tratado unitário sobre os dois pronunciamentos terminaria, deum lado, por sacrificar o perfil da tutela à saúde, em vantagem da antiga questão sobre o ressar-cimento do dano moral; de outro lado, endossaria a construção doutrinária que põe no mesmoplano ‘dano biológico’ e ‘dano moral’, enquanto a sentença nº 88 de 1979 seguiu direção diversa”.85 Carlos Fernández Sessarego apud Yussef Said Cahali. In Dano Moral. Ed. Resvista dosTribunais. São Paulo, 1998, pp. 185 e ss.86 Los Danos Corporales: Tipologia y Valoracion., p.15.

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Acreditamos que, assim como em nosso ordenamento jurídico,encontra-se no Direito espanhol a discussão doutrinária acerca da iden-tidade própria do dano corporal, que em nosso estudo assumirá, as-sim como no Direito italiano, as características de ‘dano biológico’.

Significa dizer que, no estudo monográfico sobre o dano corpo-ral – ou dano à saúde – , ressalta-se a reparabilidade do dano em simesmo e a completa problemática que decorre de sua reparação, suasconseqüências pecuniárias e não pecuniárias.87

No que toca às conseqüências pecuniárias – dano emer-gente e lucro cessante – ‘encontramos oculto o dano corporal, isto é, aincapacidade funcional ou a seqüela decorrente...’ ; a importância dodano corporal era norteada em errôneo paralelismo com o Direito doTrabalho, ao limitar a capacidade para o trabalho, vale dizer, tendo porbase o lucro cessante, pela renda que deixasse de ser auferida. 88

A exceção a esta regra geral se dá com as pessoas sem rendasreais, vindo a confirmar a idéia sustentada, também pela doutrina es-panhola, de que o dano corporal em seu sistema carece de proteçãosuficiente, pois nestes casos, se tem em conta a seqüela deixada, porser a única referência da existência de um dano real e certo que setem a reparar.

Assim é que, a preocupação com o dano à saúde, dano biológi-co, ou o prejuízo psicológico, já identificada principalmente na Itália eFrança, é também referida pela expressão “injustiça” do dano, que emgeral parece destinada a todo o tipo de danos, encontrada no artigo2.059 do Código Civil espanhol, e de outro lado restringida no mesmoordenamento, quanto à reparação do dano moral, para aqueles danosderivados de delito.89

Todavia, a evolução para os danos corporais adveio, em certamedida, da contribuição negativa recebida do dúbio senso normativo

87 Elena Vicente Domingo, idem, op. cit., pp. 14 e ss.88 Idem, ibidem, p. 16.89 A professora Elena Domingo menciona sua já reiterada critica à restrição, quase unânime nadoutrina, citando, ainda, ALPA-BESSONE quanto à ‘progressiva elasticidade e extensão dainjustiça do dano a novos interesses’. In op. cit. P. 82.

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dos danos patrimoniais e morais, este último restringido por influênciados critérios utilizados no campo penal.

O dano corporal é valorado, em princípio, segundo o método uti-lizado no sistema tradicional, identificando-se a incapacidade funcio-nal e laboral do lesado; a grave conseqüência resultante deste métodoé que o valor da “integridade da pessoa variava segundo fosse suacapacidade de rendas, admitindo que as pessoas valem segundo ga-nham”. Seria o mesmo que se admitir que “o preço do dano corporalse calculava atendendo as medidas de suas ganâncias, com o que seconfunde o dano à saúde com a incapacidade laboral”90.

A partir daí, foram repensados os métodos valorativos para seapurar os danos havidos à saúde humana, levando-se em conta ostipos de efeitos derivados do mesmo dano, ou seja , aqueles estrita-mente patrimoniais e os morais.

Com origem italiana, os estudos partiram da previsão constituci-onal, no início dos anos 80, na tutela dos Direitos à saúde, como Direi-to fundamental do indivíduo e interesse da coletividade, consagradospela sentença emanada da Corte Constitucional, em 1981, que se tra-tava de Direito patrimonial, absoluto e de ressarcimento autônomo.

7. DANO AMBIENTAL

Pudemos encontrar interessante distinção na doutrina, entre oque seja poluição, dano e crime ambiental, estabelecendo suas dife-renças e semelhanças; a poluição é considerada ‘categoria geral’ divi-dida em três elementos: a poluição em sentido estrito, o dano ambiental,e crime ambiental. A primeira é uma “alteração das condiçõesambientais que deve ser compreendida negativamente, isto é, ela nãoé capaz de alterar a ordem ambiental”. “As suas repercussões sobre a

90 Neste sentido além da professora espanhola Elena Domingo, os professores italos estudadosALPA-BESSONE, FRANZONI e BESSONE-FERRANDA. Ibidem.

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normalidade do ambiente são desprezíveis e, por isto, não são capa-zes de transtorná-la”.91

Quanto à poluição em sentido estrito, considerada até certo pon-to ‘desprezível’, explica BESSA ANTUNES que “... todos aqueles quetenham contribuído, individualmente, para que a sua poluição despre-zível – portanto, não punível – tenha sido fator de contribuição para aocorrência de dano ambiental, são solidariamente responsáveis, namedida de suas participações”.92

Como bem esclarece o autor, ‘a mensuração da parcela de cadaum é extremamente difícil, quiçá, impossível’, razão pela qual do nos-so ponto-de-vista, se se trata de solidariedade, não haveria como res-ponder cada qual com a parcela de sua contribuição, tratando-se, issosim, da responsabilização in totum pelo dano causado.

O dano ambiental é, na classificação do autor, como ‘a poluiçãoque, ultrapassando os limites do desprezível, causa alterações adver-sas no ambiente’, ressaltando que é ‘a conseqüência gravosa aomeio ambiente de um ato ilícito.’; conclui, todavia, que “não se podeconfundir os danos que prejudicam a saúde com aqueles que afetamas condições estéticas do meio ambiente”.93

No nosso entendimento, maxima venia, o dano ambiental aindaque não implique, diretamente, em dano à saúde propriamente dito,dele acabará decorrendo referido dano, em maior ou menor grau, ain-da que tardiamente, tanto mais considerada a cadeia natural que seforma a partir dos ecossistemas de nosso planeta, ou seja, rios, ma-res, serras, montanhas, ar atmosférico, oceanos.

91 Paulo de Bessa Antunes. In Dano Ambiental: Uma abordagem conceitual. Ed. Lumen Juris. Riode Janeiro: 2000, pp. 180/181. Prossegue o autor que: “...A poluição, em sentido estrito, éportanto, um acontecimento irrelevante. A sua presença como fato do mundo físico não chega afazê-la ingressar no mundo jurídico”. “É importante, no entanto, que ela seja compreendida emrelação ao ambiente dentro do qual se insere. O fato de que uma fonte de poluição sejaquantitativamente desprezível não é o suficiente para que seu titular não esteja incidindo naprática de dano ambiental, pois é a capacidade de suporte do ambiente que deve ser levada emconsideração e não a emissão em si”. “A existência de inúmeras fontes de poluição desprezíveispode, de fato, constituir-se em dano ambiental”.92 Idem, ibidem.93 Ibidem, p. 182.

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JOSÉ RUBENS MORATO LEITE estuda algumas definições dedano ambiental como: “... é a lesão de interesses juridicamente prote-gidos”, ou ainda, “... que dano é toda ofensa a bens ou interesses alhei-os protegidos pela ordem jurídica. O interesse, nesta concepção, re-presenta a posição de uma pessoa, grupo ou coletividade em relaçãoao bem suscetível de satisfazer-lhe uma necessidade”.94

Extrai o Autor dessas definições que “dano abrange qualquer di-minuição ou alteração de bem destinado à satisfação de um interes-se”, o que significa que as reparações devem ser integrais, sem limita-ção quanto à indenização, devendo compreender os danos patrimoniaise extrapatrimoniais.95

Quase sempre esbarrando, por assim dizer, na dicotomiapatrimonial e extrapatrimonial do dano, encontramos em maciça dou-trina, a referência ao chamado ‘dano estético’, como aquele que possaacarretar um ‘enfeamento’, decorrente de modificação permanente ouduradoura, na aparência externa de uma pessoa causando-lhe humi-lhação, desgosto e dor moral.96

Quanto ao alcance coletivo do dano moral, refere JOSÉ ANTO-NIO REMÉDIO melhor doutrina, maxima venia, sustentando a possibi-lidade de afirmar sua existência, seja no tocante à tutela dos interes-ses sociais, ecológicos, seja do aspecto de proteção dos interessesda pessoa jurídica, pleiteando indenização por dano moral no caso deser atingida toda uma categoria profissional.97

Interessante notar, referem os Autores que “doutrinariamente,citam-se como exemplos de dano moral coletivo aqueles lesivos ainteresses difusos e coletivos como: ‘dano ambiental (que consistena lesão ao equilíbrio ecológico, à qualidade de vida e à saúde da

94 Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, p. 97. Morato Leite cita, respecti-vamente, a definição de dano ambiental de Sérgio Severo e Mário Júlio de Almeida.95 Morato Leite, op. cit. p.98.96 José Antonio Remédio et all, in Dano Moral; cita o autor definição de Teresa Ancona Lopes,Carlos A. Ghersi e Artur Marques da Silva Filho, pp. 30 e ss.97 Limongi França, Carlos Augusto de Assis e Carlos Alberto Bittar Filho Apud José AntonioRemédio et all. op, cit., pp. 34/35.

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coletividade) a violação da honra de determinada comunidade (a ne-gra, a judaica etc.) através de publicidade abusiva e o desrespeito àbandeira do País (o qual corporifica a bandeira nacional).98

Parece-nos certo que, do ponto-de-vista constitucional e infra-constitucional, a previsão de reparabilidade do dano causado, no as-pecto patrimonial e extrapatrimonial, encontra-se expressamente as-segurada, vale dizer, a Constituição Federal assegura a indenizaçãopor dano patrimonial ou moral, entre os Direitos e garantias, individuaise coletivos, insculpidos como cláusula pétrea, em seu artigo 5º.

Encontramos, ainda, no artigo 1º, da Lei de Ação Civil Pública,as disposições sobre as ações de responsabilidade de que trata estalei, estabelecendo que os danos morais e patrimoniais a serem repa-rados, compreendem os danos causados ao meio ambiente, ao con-sumidor, a bens e direitos de valor artístico, histórico, turístico,paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo e por infra-ção à ordem econômica.

No mesmo sentido, encontramos dispositivo de proteção a es-ses Direitos fundamentais no Código de Defesa do Consumidor, as-segurando entre os Direitos básicos, do artigo 6º, a efetiva prevençãoe reparação de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos,causados ao consumidor.

Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, tem comoobjetivo legal, o desenvolvimento moral, físico e social, físico e moral,punindo todo atentado em contrário à criança e ao adolescente, asse-gurando-lhes o Direito à integridade física, psíquica e moral.99 Tais Di-reitos fundamentais encontram-se, antes de tudo, assegurados e ele-vados à categoria de garantias constitucionais, também como princí-pio isonômico, em seu artigo 5º.

Assim é que, a construção doutrinária, traduz a expressão le-gal, vale dizer, a divisão do dano em patrimonial e moral, com o

98 Opinião de José Antonio Remédio et all e Carlos Alberto Bittar Filho, respectivamente; inop.cit., p. 35.99 Nesse sentido, aponta José Antonio Remédio, in op. cit., p. 36.

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desdobramento do dano moral em ambiental, paisagístico, afetaçãotraduzida à integridade física e psíquica, ou qualquer outro interessecoletivo stricto sensu.

Como já também se acenou entre nós, de data muito menosrecente, vem construindo a doutrina e a legislação italiana, fundamen-tação para a responsabilidade civil em caso de dano à saúde, propria-mente dito, assim compreendido como dano físico, psíquico, portanto,à integridade física e psíquica, devendo constituir-se em outra catego-ria específica e que não permita a confundibilidade com os danosmorais em sentido estrito.

Nesse sentido, o próprio reconhecimento quanto à existência ereparação do dano moral, antes de ser recepcionado pela Constitui-ção Federal de 88, mesmo não encontrando ainda previsão legal ex-pressa, teve indenização assegurada por muitas decisões de nossostribunais, atendendo ao pedido de reparação diante de sua ocorrência.

Nas questões atinentes ao meio ambiente, verificou-se emAÇÃO CIVIL PÚBLICA, a condenação por dano ecológico resultanteda edificação em morro litorâneo, com desaterro do local, em funçãodas obras, a alcançar patrimônio estético, turístico e paisagístico,julgando-se tais Direitos merecedores de tutela jurídica, a teor da LeiFederal 7.347/85.100

Interessante, todavia, notar que entre nós o instrumento da açãopopular, permite ao cidadão, tomado individualmente, possa por essemeio buscar a defesa do meio ambiente, com alcance evidentementedifuso, fugindo à regra dos legitimados autônomos, que possam fazê-lo com exclusividade, por força do Código de Defesa do Consumidor eda Lei de Ação Civil Pública.

100 Impossibilidade de autorização administrativa preponderar sobre legislação federal - Neces-sidade de preservação do meio local - Progressiva deterioração deste que não justifica sua maiordesproteção - Ação procedente - Condenação da ré a abster-se de utilizar o alvará, bem como areparar o dano - Recurso provido. (Relator: Marco César - Apelação Cível 157.725-1 - Guarujá -20.02.92)

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Nesse sentido, destaca ÉDIS MILARÉ ação popular que teve porobjeto os danos ambientais causados ao parque estadual de Vila Ve-lha, visando a erradicação de obras existentes na região dos arenitos.101

De outra maneira não haveria de ser, sendo certo que a açãopopular tem hoje características inovadoras, podendo-se considerar oprimeiro instrumento a legitimar o cidadão, individualmente, na tutelados direitos coletivos em sentido lato, nas suas hipóteses de cabimen-to, alargadas para as questões atinentes ao meio ambiente.102

Assim considerada ação constitucional corretiva, para as situa-ções, inclusive, em que o dano causado ao meio ambiente admita acorreção, tanto mais considerado o aspecto da ameaça ao Direito,abarcado pelo conceito de dano juntamente com a lesão, não se have-ria de restringir a hipótese de cabimento da ação popular, por se haverde alargar os caminhos para a defesa das questões ambientais, sepossível agindo preventivamente.

Belinda Pereira da Cunha,

advogada, doutora em Direito,professora da PUC e da ESMP

101 Trata-se de ação popular proposta por João José Bigarella e outros, contra o Estado doParaná e a Paranatur – Empresa Paranaense de Turismo, julgada procedente pelo Juiz AntonioGomes da Silva, da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba. In Direito do Ambiente,2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2001, pp. 666 – 675.102 Nesse sentido, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, in Os sindicatos e a defesa dos interessesdifusos; José Carlos Barbosa Moreira, in temas de direito processual civil, 1ª série; BelindaPereira da Cunha, in Antecipação da tutela no Código de Defesa do Consumidor; Édis Milaré, inop. cit.

o combate à corrupçãoo combate à corrupçãoo combate à corrupçãoo combate à corrupçãoo combate à corrupçãonas prefeituras do brasilnas prefeituras do brasilnas prefeituras do brasilnas prefeituras do brasilnas prefeituras do brasil

antoninho marmo trevisan,antonio chizzotti, joão alberto ianhez,josé chizzotti e josmar verillo

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O COMBATE À CORRUPÇÃONAS PREFEITURAS DO BRASIL

Antoninho Marmo Trevisan, Antonio Chizzotti,

João Alberto Ianhez, José Chizzotti e

Josmar Verillo

Sumário: 1 – Introdução. 2 – A AMARRIBO de Ribeirão Boni-to. 3 – O padrão típico de corrupção. 3.1. Sinais de irregulari-dades na adminstração municipal. 3.2. Os bastidores dasfraudes. 3.3. Investigações, provas e confronto. 4. – O exemplode Ribeirão Bonito. 4.1. O processo jurídico. 4.2. O proces-so político. 5 – As ONGs e o combate à corrupção. 5.1. Orecurso a leis e órgãos. 5.2. A legislação básica nacional.

POR QUE ESTA CARTILHA FOI ESCRITA

Este texto tem como objetivo indicar caminhos que se podemtrilhar no combate à corrupção. Ele é resultado da experiência bemsucedida da comunidade paulista de Ribeirão Bonito, da qual os auto-res participaram.

O testemunho sistemático de operações e atos suspeitos porparte de autoridades de Ribeirão Bonito, encabeçadas pelo então pre-feito, levaram a organização não governamental Amigos Associadosde Ribeirão Bonito (AMARRIBO) a liderar um movimento para omonitoramento, a cobrança e a contestação de atos das autoridadesmunicipais, buscando para isso o apoio da comunidade.

Como resultado, o prefeito da cidade renunciou para não sercassado, e hoje responde a diversos processos judiciais.

No curso do trajeto, os autores acumularam conhecimentos arespeito dos mecanismos empregados em fraudes municipais e dosinstrumentos que se podem empregar para combatê-las.

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A percepção pública é de que casos como o de Ribeirão Bonitonão constituem exceção no Brasil. O acompanhamento e supervisãopermanentes da conduta dos administradores públicos é uma formaessencial de controlar a corrupção. Para isso, é necessário informa-ção. Por isso esta cartilha foi escrita.

Na primeira parte, descrevem-se os sinais típicos da presençade corrupção numa administração municipal, como identificá-los equais as ações possíveis para combatê-la. A segunda parte relata aexperiência de Ribeirão Bonito. A parte final reúne informações sobreinstituições que podem ser acionadas para se contrapor à fraude, dis-positivos legais pertinentes e outros dados.

Os autores agradecem à Ateliê Editorial a oportunidade da edi-ção impressa, bem como às entidades e empresas que apoiaram apublicação e se dispuseram a disseminá-la mais amplamente. Agra-decem também ao Instituto Ethos de Responsabilidade Social peloapoio institucional prestado. Por fim, agradecem o empenho da Trans-parência Brasil na concretização deste projeto.

1. INTRODUÇÃO

O exercício da cidadania pressupõe indivíduos que participemda vida comum. Organizados para alcançar o desenvolvimento do lo-cal onde vivem, devem exigir comportamento ético dos poderes cons-tituídos e eficiência nos serviços públicos. Um dos direitos mais im-portantes do cidadão é o de não ser vítima da corrupção.

De qualquer modo que se apresente, a corrupção é um dos gran-des males que afetam o poder público, principalmente o municipal. Etambém pode ser apontada como uma das causas decisivas da po-breza das cidades e do país.

A corrupção corrói a dignidade do cidadão, contamina os indiví-duos, deteriora o convívio social, arruína os serviços públicos e com-promete a vida das gerações atuais e futuras. O desvio de recursos

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públicos não só prejudica os serviços urbanos, como leva ao abando-no obras indispensáveis às cidades e ao país. Ao mesmo tempo, atraia ganância e estimula a formação de quadrilhas que podem evoluirpara o crime organizado e o tráfico de drogas e armas. Um tipo dedelito atrai o outro, e quase sempre estão associados. Além disso,investidores sérios afastam-se de cidades e regiões onde vigoram prá-ticas de corrupção e descontrole administrativo.

Os efeitos da corrupção são perceptíveis na carência de verbaspara obras públicas e para a manutenção dos serviços da cidade, oque dificulta a circulação de recursos e a geração de empregos e ri-quezas. Os corruptos drenam os recursos da comunidade, uma vezque tendem a aplicar o grosso do dinheiro desviado longe dos locaisdos delitos para se esconderem da fiscalização da Justiça e dos olhosda população.

A corrupção afeta a qualidade da educação e da assistência aosestudantes, pois os desvios subtraem recursos da merenda e do ma-terial escolar, desmotivam os professores, prejudicam o desenvolvi-mento intelectual e cultural das crianças e as condenam a uma vidacom menos perspectivas de futuro.

A corrupção também subtrai verbas da saúde, comprometendodiretamente o bem-estar dos cidadãos. Impede as pessoas de ter aces-so ao tratamento de doenças que poderiam ser facilmente curadas,encurtando as suas vidas.

O desvio de recursos públicos condena a nação ao subdesen-volvimento econômico crônico.

Por isso, o combate à desonestidade nas administrações públi-cas deve estar constantemente na pauta das pessoas que se preocu-pam com o desenvolvimento social e sonham com um país melhorpara seus filhos e netos. Os que compartilham da corrupção, ativa oupassivamente, e os que dela tiram algum tipo de proveito, devem serresponsabilizados. Não só em termos civis e criminais, mas tambémeticamente, pois os que a praticam de uma forma ou de outra fazemcom que seja aceita como fato natural no dia-a-dia da vida pública eadmitida como algo normal no cotidiano da sociedade.

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É inaceitável que a corrupção possa ter espaço na cultura naci-onal. O combate às numerosas modalidades de desvio de recursospúblicos deve, portanto, constituir-se em compromisso de todos oscidadãos e grupos organizados que queiram construir uma sociedadejusta e solidária.

Em ambiente em que a corrupção predomine dificilmente pros-pera um projeto para beneficiar os cidadãos, pois suas ações se per-dem e se diluem na desesperança. De nada adianta uma sociedadeorganizada ajudar na canalização de esforços e recursos para proje-tos sociais, culturais ou de desenvolvimento de uma cidade, se asautoridades municipais, responsáveis por esses projetos, se dedicamao desvio do dinheiro público.

2. A AMARRIBO DE RIBEIRÃO BONITO

A organização não-governamental AMARRIBO foi criada para pro-mover o desenvolvimento social e humano da cidade de Ribeirão Bonito,no interior do estado de São Paulo. Ao procurar colocar seus planos emprática, deparou-se com a necessidade de combater uma administraçãomunicipal corrupta, que minava o progresso das iniciativas da ONG.

Tal atuação demandou meses de muito trabalho e gerou alto graude tensão. Numerosas reuniões se realizaram para discutir caminhos,orientações jurídicas e investigações. Milhares de e-mails e telefone-mas foram trocados. Além de todo esse trabalho, os membros da en-tidade tiveram de conviver com ameaças, cartas anônimas, acusa-ções falsas e todo tipo de golpe baixo que se pode esperar de quemchega ao ponto de desviar recursos da alimentação de crianças.

As ações anticorrupção são complexas, pois envolvem diferen-tes aspectos que se entrecruzam - políticos, jurídicos, legais, formais,estratégicos, de motivação e mobilização popular. Uma falha ou erroem qualquer desses procedimentos poderia beneficiar e fortalecer oscorruptos.

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3. O PADRÃO TÍPICO DE CORRUPÇÃO

O padrão de corrupção identificado em Ribeirão Bonito é típicode muitas cidades do Brasil. Em vez de procurar cumprir suas pro-messas eleitorais em benefício da população, os eleitos usam essasmesmas promessas para empregar amigos e parentes, para favore-cer aqueles que colaboraram com suas campanhas ou para privilegiaralguns comerciantes “amigos” em detrimento de outros. Grande partedo orçamento do município é orientado em proveito do restrito grupoque assume o poder municipal e se beneficia dessa situação.

Uma estratégia utilizada habitualmente em desvios de recursospúblicos se dá por meio de notas fiscais fictícias ou “frias”, que sãoaquelas nas quais os serviços declarados não são prestados ou osprodutos discriminados não são entregues.

A burla pode ser feita com as chamadas empresas-fantasmas,ou seja, que inexistem física ou juridicamente. Para isso, foi criado umcomércio fluente de venda de “notas frias” desse tipo de empresa. Hápessoas especializadas em negociá-las.

Mas a fraude também utiliza empresas legalmente constituídas ecom funcionamento normal. Com o conluio dos administradores públi-cos cúmplices do “esquema”, tais empresas vendem ao município produ-tos e serviços superfaturados, ou recebem contra a apresentação de no-tas que discriminam serviços não executados e produtos não entregues.

Tais fornecedoras ou prestadoras de serviço agem medianteacordo pré-estabelecido com o prefeito e/ou seus assessores. Asempresas emitem notas fiscais e a prefeitura segue todos os trâmitesadministrativos de uma compra normal. Quando necessário uma lici-tação, monta todo o procedimento de forma a dirigir o certame parauma empresa “amiga”, dificultando ou impedindo a participação deoutras. Depois, dá recibo de entrada da mercadoria, empenha a des-pesa, emite o cheque e faz o pagamento. Posteriormente, o montanteé dividido entre o fornecedor e os membros da administração compro-metidos com o esquema de corrupção.

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Em geral, os recursos obtidos dessa maneira chegam ao prefei-to e aos que participam do esquema na forma de dinheiro vivo, a fim denão se deixarem vestígios da falcatrua. Os corruptos evitam que taisrecursos transitem pelas suas contas bancárias, pois seriam facilmenterastreados por meio de uma eventual quebra de sigilo bancário.

As quadrilhas que se formam para dilapidar o patrimônio públicotêm se especializado e vêm sofisticando seus estratagemas. O modode proceder varia: apoderam-se de pequenas quantias de forma con-tinuada ou então, quando o esquema de corrupção está consolidado,de quantias significativas sem nenhuma parcimônia.

Uma forma de fraudar a prefeitura é por meio de notassuperfaturadas. Para serviço que foi realmente prestado e teria umdeterminado custo, registra-se na nota fiscal um valor maior. Nas lici-tações, o processo de superfaturamento se dá com cotações de pre-ços dos produtos em valores muito superiores aos de mercado. Nosdois casos, a diferença entre o preço real o valor superfaturado é divi-dida entre os fraudadores.

Notas preenchidas com uma quantidade de produtos muito supe-rior àquela realmente entregue é outra maneira de fraudar a prefeitura.Nessa modalidade, os valores cobrados a mais e que constam da notaemitida são divididos entre os “sócios”. Diferentemente dosuperfaturamento de preços, que exige uma combinação entre fornece-dores, o superfaturamento de quantidades só depende do conluio deum fornecedor com o pessoal da prefeitura que atesta o recebimento.

Esses tipos de fraude requerem, invariavelmente, a conivênciade funcionários da prefeitura - o responsável pelo almoxarifado devesempre dar quitação do serviço realizado ou da mercadoria entregue ea área contábil tem de empenhar a despesa e pagar as notas, emitin-do o cheque correspondente. Quando se trata de serviços técnicos,como por exemplo os de eletricidade, construção civil e hidráulica, aexecução deve ser certificada por funcionários capacitados, normal-mente um engenheiro ou técnico. Assim, quando há irregularidade, to-dos são coniventes, mesmo que por omissão. É praticamente impos-sível para o prefeito fraudar a prefeitura sozinho.

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Quando há necessidade de licitação, mesmo nas formas maissimples de tomada de preços e convite, a comissão de licitações daprefeitura é obrigada a habilitar as empresas. Segundo a lei n° 8.666/93, estas devem estar “devidamente cadastradas na prefeitura ou aten-derem todas as condições exigidas para cadastramento”. Para se ca-dastrarem, há uma série de pré-requisitos que as empresas devempreencher e documentos que precisam apresentar. Dessa forma, nocaso de empresas-fantasmas, é impossível que saiam vencedoras deuma licitação sem a participação ou conivência da comissão de licita-ções. E é muito fácil verificar se uma empresa existe ou não. Por isso,não há justificativa para que essas empresas-fantasmas sejam habili-tadas a participar de concorrências.

Existem quadrilhas especializadas em fraudar prefeituras com aparticipação do poder público municipal. Esses grupos e seus especia-listas são formados localmente, ou trazidos de fora, já com experiênciaem gestão fraudulenta. O objetivo é implantar ou administrar procedi-mentos ilícitos, montar concorrências viciadas e acobertar ilegalidades.

O método mais usual consiste em forjar a participação de trêsconcorrentes, usando documentos falsos de empresas legalmenteconstituídas. Outra maneira é incluir na licitação, apenas formalmente,algumas empresas que apresentam preços superiores, combinadosde antemão, para que uma delas saia vencedora.

As quadrilhas têm aperfeiçoado as suas formas de atuar. Por isso,é preciso que os controles por parte da sociedade também se aprimo-rem. Como foi observado no caso de Ribeirão Bonito, o Tribunal de Con-tas do Estado tende a verificar somente os aspectos formais das despe-sas. O órgão fiscalizador não entra no mérito se a nota fiscal contabilizadaé “fria” ou não, se a empresa é “fantasma” ou não, se o valor é compatí-vel com o serviço ou não e se o procedimento licitatório foi montado econduzido adequadamente ou não. O Tribunal só examina tais questõesquando estimulado especificamente. Contudo, mesmo que os aspectosformais examinados sejam irrelevantes diante da grosseira falsificaçãode documentos verificada em muitas prefeituras do país, os Tribunais deContas insistem em manter seus procedimentos.

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Como, na maioria das vezes, os aspectos formais são observa-dos cuidadosamente pelos fraudadores, o Tribunal, ao aprovar as con-tas do Município, acaba por passar atestado de idoneidade a um gran-de número de corruptos e exime publicamente de culpa quem desviadinheiro público no país. Na forma como atua hoje, os Tribunais deContas beneficiam indiretamente os corruptos.

Um sinal que pode indicar ato criminoso é o que acontece com ofornecimento de alimentos para a merenda das escolas em algumasregiões do país. Muitas vezes, os produtos que chegam não seguemnenhuma programação e muito menos qualquer lógica nutricional. Nemas merendeiras sabem, em alguns casos, o que será servido aos alu-nos. A escolha dos produtos que serão entregues às escolas é, narealidade, feita pelos fornecedores, e não pelos funcionários.

3.1. Sinais de irregularidades na administração municipal

Apesar de não determinarem necessariamente a presença decorrupção, a presença de alguns fatores deve estimular uma atençãoespecial. Entre eles estão:

· histórico comprometedor da autoridade eleita e de seus auxiliares;

· falta de transparência nos atos administrativos do governante;

· ausência de controles administrativos e financeiros;

· subserviência do Legislativo e dos Conselhos municipais;

· baixo nível de capacitação técnica dos colaboradores e ausên-cia de treinamento de funcionários públicos;

· alheamento da comunidade quanto ao processo orçamentário.

Algumas atitudes tomadas pelas administrações e certos com-portamentos das autoridades municipais se autodenunciam como fa-tores com muita chance de se relacionar à corrupção. Esses compor-tamentos são facilmente detectados, não demandando investigaçõesmais profundas. Basta apenas uma observação mais atenta. A sim-ples observação é um meio eficaz de detectar indícios típicos da exis-tência de fraude na administração pública.

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Sinais exteriores de riqueza

Sinais exteriores de riqueza são as evidências mais fáceis deserem percebidas e as que deixam mais claro que algo de errado ocorrena administração pública. São perceptíveis quando o grupo de amigose parentes das autoridades municipais exibe bens caros, adquiridosde uma hora para a outra, como carros e imóveis. E também na osten-tação por meio de gastos pessoais incompatíveis com suas rendas.Alguns passam a ter uma vida social intensa, freqüentando locais delazer que antes não freqüentavam, como bares e restaurantes, onderealizam grandes despesas.

Os corruptos assumem feições diversas. Há o do tipo grosseiroe despudorado, que se compraz em fazer demonstrações ostensivasde poder e riqueza, exibindo publicamente acesso a recursos extrava-gantes. Geralmente, não se preocupa em ser discreto, pois necessitaalardear o seu sucesso econômico e sua nova condição, mesmo quan-do os que estão à sua volta possam perceber que o dinheiro exibidonão tem procedência legítima. Com esse tipo de corrupto, a apropria-ção de recursos públicos é associada a um desejo incontrolável deascender socialmente e de exibir essa ascensão. Como não encontramaneiras de enriquecer honestamente, recorre a atos ilícitos.

Já o fraudador discreto tem formas de agir que tornam mais difí-cil a descoberta do ilícito. O dinheiro é subtraído aos poucos e em quan-tias pequenas, por meio de esquemas bem articulados com os forne-cedores. O resultado dos golpes é aplicado longe do domicílio. Emgeral, utilizando-se de “laranjas” (pessoas que, voluntária ouinvoluntariamente, emprestam suas identidades para encobrir os auto-res das fraudes), adquirem bens móveis ou semoventes: dólar, ouro,papéis do mercado de capitais, gado, commodities etc.

Entretanto, mesmo quando a corrupção é bem planejada, deixavestígios.

Às vezes, os que se sentem traídos na partilha acabam por de-nunciar o esquema. Além disso, a necessidade de manter os atos ile-gais ocultos torna difícil para o próprio corrupto, e até mesmo para os

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seus familiares, usufruírem da riqueza. Quando essa situação não geraum conflito entre os participantes da quadrilha, os comparsas acabampor ficar com a maior parte dos bens adquiridos.

Independente dos tipos de corrupção praticados, os cidadãos quedesejem um governo eficiente e transparente devem ficar atentos aosseus sinais. Um administrador sério e bem intencionado escolhe comoassessores pessoas representativas e que tenham boa reputação ecapacidade administrativa. Deve-se desconfiar de grupos fechados quegravitam em torno do poder. A nomeação de parentes de autoridades(prefeito, secretários, vereadores etc.) é também indício de corrupção.

Resistência das autoridades a prestar contas

Corruptos opõem-se veementemente a qualquer forma de trans-parência. Evitam que a Câmara Municipal fiscalize os gastos da pre-feitura e buscam comprometer os vereadores com esquemas fraudu-lentos. Ao mesmo tempo, não admitem que dados contábeis e outrasinformações da administração pública sejam entregues a organiza-ções independentes e aos cidadãos, nem que estes tenham acessoao que se passa no Executivo.

A Lei de Responsabilidade Fiscal impõe um princípio altamentesalutar ao equilíbrio financeiro das prefeituras: não se pode gastar maisdo que se arrecada. Também por defender a transparência absolutadas contas públicas, essa lei se tornou um entrave à corrupção. Mes-mo assim, em governos em que se praticam atos ilegais na adminis-tração, existe uma grande resistência à liberação de informações so-bre os gastos públicos.

Qualquer cidadão tem o direito de saber, e os políticos têm odever de demonstrar, como o dinheiro público está sendo empregado.Para que isso se transforme em prática usual, é necessário que osmunicípios brasileiros aperfeiçoem suas leis orgânicas, para tornarmais transparentes as ações das administrações municipais. As or-ganizações instituídas na cidade têm um papel fundamental nisso, pois,quando bem estruturadas e com enraizamento na sociedade, têm acapacidade de mobilizar as pessoas.

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Falta crônica de verba para os serviços básicos

Os orçamentos das prefeituras são, normalmente, previstos paracustear os serviços básicos da cidade, como manutenção e limpeza dasruas e praças, coleta de lixo e provimento de água e de esgoto. Tambémprevê verbas para os serviços sociais, educação, saúde e obras públicas.

A negligência em relação a esses serviços básicos, observadapelo aspecto de abandono que as cidades adquirem, pode ser um indí-cio não só de incompetência administrativa, como de desvio de recur-sos públicos. Esses sinais ficam mais claros quando se constata quea prefeitura mantém um quadro de funcionários em número muito maiordo que o necessário para a realização dos serviços.

Parentes e amigos aprovados em concursos

Eventualmente, concursos públicos podem ser abertos pelas auto-ridades recém-empossadas para pagar promessas de campanha e darempregos para correligionários, amigos e parentes. Isso acontece mes-mo quando a prefeitura se encontra em situação de déficit orçamentárioe impedida de contratar funcionários por força da Lei de Responsabilida-de Fiscal, que impede a administração pública de gastar mais do quearrecada e impõe à folha salarial um limite de 60% dos gastos totais.

Esses concursos públicos arranjados normalmente incluem pro-vas com avaliações subjetivas, que permitem à banca examinadorahabilitar os candidatos segundo os interesses das autoridades muni-cipais. Uma das artimanhas é incluir uma “entrevista” classificatória,realizada com critérios que retiram a objetividade da escolha. Con-cursos com essas características têm sido anulados, quando exami-nados pelo Judiciário, pois há uma reiterada jurisprudência determi-nada pelos tribunais sobre o assunto, inclusive por parte do Tribunalde Contas do Estado de São Paulo.

Falta de publicidade dos pagamentos efetuados

Normalmente, a Lei Orgânica do Município obriga o prefeito a afi-xar diariamente na sede da prefeitura o movimento de caixa do dia

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anterior (o chamado boletim de caixa), no qual devem estar discrimi-nados todos os pagamentos efetuados. A mesma lei exige tambémque, mensalmente, seja tornado público o balancete resumido com asreceitas e despesas do município. A ausência desses procedimentosfaz com que os cidadãos fiquem impedidos de acompanhar e verificara movimentação financeira da municipalidade, e assim pode ser indi-cação de acobertamento de fatos ilícitos.

Comunicação por meio de códigos sobre transferências deverbas orçamentárias

Quando aprovado pela Câmara Municipal, o orçamento deve serrigorosamente cumprido. As alterações posteriores devem ser nova-mente submetidas ao Legislativo local e tornadas públicas, para queas razões do remanejamento possam ser entendidas pelos cidadãos.Alguns prefeitos burlam essas determinações, publicando de formaininteligível as transferências de verbas do orçamento. Por meio decódigos, procuram esconder quais contas estão sendo manipuladas equais os elementos orçamentários remanejados. Esse esquema difi-culta a fiscalização dos gastos públicos.

Perseguição a vereadores que pedem explicações sobregastos públicos

Há, por outro lado, vereadores honestos e incorruptíveis queexercem seus mandatos com dignidade e responsabilidade. Esses,em geral, são marginalizados ou perseguidos pelo esquema de umprefeito corrupto, o qual se utiliza de qualquer motivo para dificultar aatuação desses vereadores, ou mesmo, para afastá-los da CâmaraMunicipal. No cumprimento de suas funções, os vereadores que sebaseiam na ética encontram obstáculos ao seu desempenho, poisnormalmente não são atendidos pelas autoridades municipais emseus pedidos de informações, principalmente os relacionados a des-pesas públicas.

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3.2. Os bastidores das fraudes

A engenharia do desvio de recursos públicos cria instrumentospara dar à corrupção aspectos de legitimidade. Criaram-se métodosmais ou menos padronizados e utilizados com uma certa regularidadenas prefeituras dirigidas por administradores corruptos. No cotidianoda administração, mesmo um olhar externo mais atento pode ter difi-culdade em perceber irregularidades contidas em coisas aparentemen-te banais, como o preenchimento de uma nota fiscal ou um pagamentoem cheque da prefeitura.

No entanto, a investigação mais aprofundada pode revelar comofunciona, nos bastidores, o esquema desonesto.

Empresas constituídas às vésperas do início de um novomandato

Nos períodos próximos à mudança de governo nas prefeituras,as quadrilhas começam a agir no sentido de implantar os sistemas decorrupção nas administrações futuras. Assim que o prefeito eleito éconhecido, os fraudadores dão início à montagem dos esquemas queserão introduzidos após a posse. Uma das primeiras e mais comunsprovidências é a criação de empresas, ou de empresas-fantasmasque passarão a fornecer para a prefeitura.

Para descobrir se alguma firma foi constituída com esse intuito,deve-se fazer um pesquisa na Junta Comercial, levantando os proto-colos e as datas de criação dessas empresas. É preciso estar atentopara a possibilidade de os sócios serem meros “laranjas”, que em-prestaram seus nomes para servirem de testas-de-ferro no esquemade corrupção. Os grupos de fraudadores costumam também manterum estoque de empresas “fantasmas” prontas para serem utilizadas.

Nesses casos, o Tribunal de Contas poderia exercer um impor-tante papel. Ao detectar que uma empresa é “fantasma”, esse órgãopoderia checar se em outras prefeituras do mesmo estado houve orecebimento de notas fiscais iguais. Com isso, se estaria criando ummecanismo mais poderoso de combate à corrupção.

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Licitações dirigidas

Um dos mecanismos mais comuns para se devolverem “favo-res” acertados durante a campanha eleitoral, bem como de canalizarrecursos públicos para os bolsos dos cúmplices, é o direcionamentode licitações públicas. Devido ao valor relativamente baixo das licita-ções que se realizam nas prefeituras de porte pequeno, a modalidademais comum de licitação é a carta-convite. O administrador mal-inten-cionado dirige essas licitações a fornecedores “amigos”, por meio daespecificação de condições impeditivas da livre concorrência, incluin-do exigências que os demais fornecedores em potencial não têm con-dições de atender.

Um indício da possibilidade de problemas em licitações é a cons-tância de compras junto aos mesmos fornecedores, sem que haja umcerto rodízio. Caso haja esse indício, vale uma investigação mais atenta.Sendo comprovado que está havendo direcionamento de compras afornecedores privilegiados, o fato configura formação de quadrilha.

Outro mecanismo, às vezes empregado, é realizar compras juntoa empresas de outras localidades, tornando mais difícil aos integran-tes da comunidade avaliar a sua reputação e idoneidade.

Fraudes em licitações

Um dos sistemas utilizados para justificar a aquisição fraudulen-ta de materiais e serviços é a montagem de concorrências públicasfictícias. Mesmo que haja vício na escolha, ou seja, mesmo que o pre-feito corrupto já saiba antes do processo qual firma vencerá a concor-rência, é preciso dar ares legais à disputa. A simulação começa pelanomeação de uma comissão de licitação formada por funcionáriosenvolvidos no esquema. Depois, a comissão monta o processo delicitação, no qual condições restritivas são definidas. Não raro, partici-pam do certame empresas acertadas com o esquema, que apresen-tam propostas de antemão perdedoras, apenas para dar aparência delegitimidade ao processo.

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Na investigação sobre possíveis embustes em licitações, umaimportante pista pode estar nos termos empregados e mesmo noscaracteres gráficos das propostas entregues pelas empresas. Muitasprefeituras ainda se utilizam de formulários que precisam ser preen-chidos a máquina. Um exame minucioso permite constatar se umamesma máquina de datilografia foi usada no preenchimento de pro-postas apresentadas por diferentes participantes do processo. O exa-me estilístico dos textos, em busca de termos, frases e parágrafos quese repetem em diferentes propostas, também fornece indícios.

Se na lista de participantes de licitações aparecem os nomes defirmas idôneas ou conhecidas, é essencial que, por meio de um conta-to direto, se confirme a sua participação no processo. Isso porque al-guns empresários se surpreenderam ao serem informados de quehaviam tomado parte em concorrências sobre as quais não tinhamconhecimento. Suas empresas foram incluídas pelos fraudadores, que,para isso, empregaram documentos falsificados. Essa operação deinserir empresas com boa reputação tem o objetivo de “branquear” oprocesso licitatório.

Fornecedores “profissionais” de notas fiscais “frias”

Uma pequena história ocorrida no aeroporto de Congonhas, emSão Paulo, e testemunhada por um dos autores desta cartilha, ilustrabem o que vem a ser a indústria de notas fiscais “frias”. Perguntadosobre sua atividades, um conhecido falsário do interior do Estado deSão Paulo, sem o menor constrangimento, respondeu : “Eu agora es-tou no ramo de fornecimento de notas fiscais ‘frias’. De agulha a avião,forneço nota de qualquer coisa, a um custo muito competitivo de 4%sobre o valor da nota.”

Freqüentemente, como no caso de Ribeirão Bonito, notas deempresas diferentes, mas evidentemente impressas com o mesmolayout e características e defeitos gráficos, aparecem na contabilidadede diversas prefeituras de uma região, indicando a existência de qua-drilhas especializadas nessa modalidade de fraude.

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Indícios de fraude no uso de notas fiscais de fornecimentos

O levantamento da documentação relativa às despesas realiza-das pela prefeitura pode revelar muitos indícios de desvio de dinheiropúblico. De posse de notas fiscais relativas aos pagamentos efetuados,é importante a verificação de alguns detalhes, como os seguintes:

· Notas fiscais com valores redondos ou próximos do valor deR$ 8 mil

A prefeitura pode adquirir bens e serviços por meio do procedi-mento de carta-convite, quando se trata de gastos de até R$ 80 milreais ao ano. A partir desse valor, é obrigatória a abertura de licitaçãoem uma modalidade mais complexa e exigente, a tomada de preços.Porém, serviços e compras (desde que não sejam para obras e servi-ços de engenharia) com valor de até 10% do limite de R$ 80 mil, isto é,R$ 8 mil, estão desobrigados de licitação (desde que essa quantia nãose refira a parcelas de um mesmo serviço ou compra de maior vulto) epodem ser realizados de uma só vez.

Há indícios de atos ilegais quando se verifica que há muitas no-tas fiscais próximas do limite de R$ 8 mil. Isso pode significar que,para maximizar a subtração de recursos, os autores procurem emitirnotas com valores próximos do limite.

Notas do mesmo valor ou de valores próximos, e que se repe-tem todos os meses, podem representar um ardil para partilhar osfrutos da fraude: a quantia de uma nota vai para o fornecedor, e o valorde outra é destinado ao administrador corrupto.

Também acontece que compras de grandes volumes do mes-mo produto sejam subdivididas em notas fiscais inferiores a R$ 8 milpara escapar às exigências de um processo de licitação mais comple-xo - o que é proibido pela Lei de Licitações e Contratos.

· Notas fiscais de fornecedores distantes e desconhecidos paramateriais e serviços que poderiam ser adquiridos na localidade.

Em uma localidade pequena, a aquisição, em localidades forado município, de bens de uso cotidiano (como gasolina, óleo diesel,

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material elétrico, alimentos para merenda escolar) para os quais hajafornecedores locais, é uma indicação de irregularidades.

· Notas fiscais seqüenciais, indicando que a empresa só fornecepara a prefeitura.

Quando uma empresa tem a prefeitura como seu único cliente,existe possibilidade de que tenha sido montada ou preparada para essefim. Isso, por sua vez, deve levantar suspeitas. Mas não é muito fácildescobrir esse tipo de falcatrua, pois às vezes os falsários simulamvendas e forjam notas fiscais para outras empresas e/ou órgãos sópara disfarçar a seqüencialidade das notas.

Contando com a atuação do promotor público da comarca, é pre-ciso obter o talão de notas da empresa e verificar se os outros clientesconstantes no talonário realmente existem e se de fato fizeram as aqui-sições registradas.

Os fraudadores podem utilizar certos estratagemas para evitarque as notas caiam nas mãos da Justiça. Houve, por exemplo, o casode um empresário que forjou um incêndio no qual as notas fiscais teri-am sido destruídas. Com isso, o boletim de ocorrência do “acidente”foi utilizado para justificar o desaparecimento de eventuais provas. Si-mular roubos e registrar boletins de ocorrência policial é artifício muitoutilizado por empresários desonestos.

· Notas fiscais com visual simples, quase todas com a mesmadiagramação

Também é motivo de suspeita a presença de notas fiscais pa-dronizadas, com o mesmo layout, mas que pertencem a várias em-presas diferentes. Há uma grande probabilidade de que talonários mui-to semelhantes tenham sido impressos no mesmo local. Isso é fácil deverificar, pois o nome da gráfica que imprimiu o talonário deve, obriga-toriamente, constar do rodapé das notas fiscais. Também vale a penaverificar se a gráfica que imprimiu os talões existe legalmente. Se agráfica é fictícia, as notas fiscais, obviamente, são ilegais.

· Notas fiscais de prestação de serviço preenchidas com infor-mações vagas

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Essa é uma maneira encontrada pelos fraudadores para con-fundir a fiscalização e evitar que se comprove se determinados servi-ços foram executados ou não. Geralmente, utilizam-se expressõesgenéricas e vagas, como: “serviços de eletricidade prestados a ...”, ou“manutenção feita no ...”, “serviços na praça principal” etc. Esse tipode prática não é aceitável, pois qualquer tipo de serviço deve ser dis-criminado na nota, incluindo-se o que foi feito, o tempo despendido e omaterial aplicado.

Além disso, o funcionário da prefeitura responsável pela fiscali-zação tem de atestar que o serviço foi realmente realizado. É impor-tante lembrar que quem atesta é co-responsável pela legalidade dopagamento.

Falta de controle de estoque na prefeitura

Uma artimanha muito utilizada é simular desorganização para jus-tificar ou encobrir desvios. Assim, os almoxarifados não registram entra-das e saídas dos produtos adquiridos. Na mesma linha, faltam registrosdas requisições feitas pelos diversos setores e não há identificação dosresponsáveis pelos pedidos. A falta de um controle rígido do estoque, deforma a impossibilitar a apuração do movimento de materiais de consu-mo nos depósitos das prefeituras, é traço de fraude.

Consumo de combustível, merenda escolar, cabos elétricos,tubulações etc.

A falta de qualidade da merenda escolar e o seu consumo des-proporcional ao número de alunos, a utilização de cabos, tubulações eoutros materiais de construção de forma incompatível com a dimen-são e a propriedade de seu emprego, além de gastos com combustí-vel em quantidade muito superior ao necessário à frota constituempráticas de desvio de recursos muito usuais em certas prefeituras.

No consumo de gasolina, diesel e álcool pela frota da prefeituraencontra-se uma das formas mais comuns de fraude contra os recur-sos públicos. Acontece, principalmente, quando não existe um controle

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de estoque ou quando o funcionário encarregado de monitorar as en-tradas e saídas faz parte do esquema de corrupção. Diante disso, sóse justifica que uma prefeitura tenha seus próprios depósitos de com-bustível se os preços praticados nos postos de gasolina instalados nacidade forem exorbitantes ou se inexistirem locais para o abastecimento.

No caso de Ribeirão Bonito, constatou-se que o encarregado nãoregistrava medições nem mantinha qualquer tipo de controle. No início,a fraude era feita com a entrega de apenas uma parte do combustível,enquanto a outra era armazenada em uma propriedade particular. Pos-teriormente, fazia-se a entrega do restante, como se fosse uma outracarga completa, e assim era registrada pelo controlador do depósito.

Mais tarde, como se sentissem desimpedidos para continuaremcom suas ações, e como consideraram que movimentar combustívelera muito trabalhoso e oferecia riscos, os fraudadores resolveram sim-plificar o método. Passaram então a entregar apenas as notas fiscais naprefeitura. O responsável pelo almoxarifado continuou a atestar o recebi-mento do combustível e a contabilidade manteve os pagamentos.

Outro artifício utilizado por algumas administrações corruptaspara tentar justificar o alto consumo de combustível é manter veículossucateados nos registros da prefeitura. Mesmo inadequados para ouso, são licenciados anualmente para que façam parte dos registrosda municipalidade. Dessa forma se justifica o consumo de combustí-vel acima das necessidades da frota real e se encobre o desvio. Nocaso de Ribeirão Bonito, o Tribunal de Contas do Estado computou osveículos “fantasmas” como ativos, para o cálculo médio de consumopor veículo.

Promoção de festas públicas para acobertar desvios de re-cursos

As festas públicas promovidas pela prefeitura merecem uma aten-ção especial, pois algumas empresas de eventos, pela própria nature-za dos serviços que prestam, têm sido grandes fornecedoras de “no-tas frias”. Isso se deve ao fato de ser difícil checar a veracidade dos

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cachês dos artistas e da comissão que cabe aos agentes. Há ocasi-ões em que as notas desses eventos são superfaturadas e parte dodinheiro volta ao prefeito e à sua equipe.

Pagamentos com cheques sem cruzamento

Os integrantes dos esquemas de desvio de verbas públicas sem-pre procuram evitar que o dinheiro transite por meio de depósitos ban-cários. Por isso, em muitos pagamentos feitos por administraçõesmunicipais desonestas, utilizam-se cheques não cruzados, o que de-sobriga o recebedor de depositá-los em uma conta bancária. Fazendoo resgate desse tipo de papel diretamente nos caixas das agências,evita-se que a circulação do dinheiro obtido ilegalmente deixe muitosrastros. Uma vez em espécie, as quantias podem ser divididas maisfacilmente entre os participantes das quadrilhas e sem que se conhe-çam os seus destinatários finais.

Alguns optam por deixar o dinheiro em suas casas, na forma depapel-moeda, e o utilizam para o pagamento de parte de suas despe-sas. Manipulando os resultados do furto dessa forma, diminuem a possi-bilidade de ser rastreados pela Receita Federal e dificultam investigações.

Outros fraudadores preferem transformar o dinheiro roubado emdólares obtidos no mercado paralelo, até como forma de investimento.As notas são, geralmente, guardadas em cofres residenciais, ou alu-gados de bancos. Em alguns casos, são feitos depósitos de moedaestrangeira em contas bancárias no exterior.

Uma forma que funcionários municipais encontraram de auxiliarnesse tipo de fraude é facilitar a retirada de cheques da prefeitura semo registro claro de quem o está fazendo.

Publicações oficiais

As publicações oficiais das prefeituras em periódicos locais ouregionais também podem ser instrumentos de fraude. O padrão decusteio de anúncios publicitários é o preço por centímetro de coluna.

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A contratação de um veículo para publicação de anúncios oficiaisprecisa passar por licitação. Se esta é mal feita (muitas vezes intenci-onalmente), usa-se como critério exclusivamente o preço por centíme-tro de coluna, e não se faz menção ao volume total a ser licitado. Issodeixa aberta a possibilidade de se superdimensionarem os espaçosocupados pelo material publicado (layouts generosos, tipografiaexageradamente grande etc.).

Existem ainda revistas especializadas em promover a publicida-de de prefeitos e administrações municipais. Isso onera os cofres pú-blicos e deve ser encarado no mínimo com desconfiança.

Conluio em ações judiciais

Todo órgão público é alvo de grande número de ações judiciais, eas prefeituras não são diferentes. Por vezes acontece de administra-dores inescrupulosos, em conluio com outros interesses, causaremdeliberadamente motivo para ações na aparência justas. Depois, emconluio com os autores da ação, o prefeito e/ou seus auxiliares simu-lam ou formulam acordos contrários ao interesses público. O resulta-do é posteriormente partilhado entre os demandantes e os membrosda administração municipal.

Notória especialização

Por vezes, prefeitos contratam advogados e outros profissionaiscom dispensa de licitação, baseados no argumento da “notória especi-alização”, a despeito da existência de profissionais internos na admi-nistração municipal. Além de nem sempre os advogados contratadosdeterem a notoriedade requerida pela lei, não raro a contratação se faza preços demasiadamente elevados em face da tarefa a ser cumprida.Parte do valor dos contratos pode retornar por vias transversas para ocontratante. Assim, é sempre importante vigiar se a “notória especiali-zação” está de fato presente e se a contratação excepcional é real-mente necessária.

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Declaração de renda do prefeito

Quando um prefeito tem a intenção premeditada da apropriar-sedos bens públicos, manipula sua declaração de renda antes mesmode assumir o cargo. De modo a se preparar para receber valores origi-nários de desvio de dinheiro público, a declaração inclui uma série debens semoventes, como obras de arte, ouro e gado. Como algunsdesses objetos podem ser valorizados artificialmente, têm a função de“esquentar” o dinheiro e de justificar um enriquecimento súbito.

Comprometimento de vereadores com o esquema decorrupção

Uma forma de prefeitos corruptos obterem apoio aos seus es-quemas é buscando, de forma explícita ou sutilmente, o comprometi-mento dos vereadores com o desvio de dinheiro público.

O envolvimento pode dar-se de forma indireta, por meio de com-pras nos estabelecimentos comerciais do vereador, o qual por sua vezé ameaçado pela interrupção dessas aquisições e por isso, muitasvezes, faz vistas grossas aos atos do prefeito. Outras maneiras que oalcaide usa para ganhar a “simpatia” de vereadores é pelo oferecimen-to de uma “ajuda de custo”, pela nomeação parentes dos membros dolegislativo municipal para cargos públicos e outras práticas de subor-no e nepotismo.

Há, ainda, os casos em que os vereadores participam direta-mente do esquema de corrupção, sendo recompensados por seu si-lêncio com uma importância mensal “doada” pelo prefeito. Não é deadmirar, assim, que tais vereadores sejam contrários a qualquer tipode investigação que se proponha contra o prefeito. Qualquer apoiodesses vereadores a processos que apurem irregularidades na prefei-tura (como criação de CPIs, processos de cassação etc.) traria comoconseqüência a revelação do seu envolvimento.

Favorecimentos como contraprestação

Uma das formas indiretas de compensação pelo “serviço” dedesvio de recursos públicos é o oferecimento de bens e serviços para

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os uso particular dos administradores corruptos por parte dos fornecedo-res beneficiados. Os “favores” consistem, muitas vezes, na cessão deveículos e imóveis em cidades turísticas para serem utilizados pelo pre-feito e seus familiares, realização de obras em suas propriedades, alémde presentes. Existem casos, ainda, em que comerciantes abastecema residência do prefeito com produtos (como por exemplo alimentos) eincluem esse fornecimento indiretamente na conta da prefeitura.

Algumas medidas podem ser tomadas para se certificar de queestá havendo esses tipos de favorecimento. No caso de veículos, pode-se obter os nomes dos seus verdadeiros proprietários fazendo umaconsulta aos órgãos de trânsito, como o DETRAN. Para isso, é neces-sário apenas conhecer a placa do veículo. Nunca se esquecendo deque o registro de propriedade pode ter sido feito em nome de empre-sas dos fornecedores, de seus sócios, ou de “laranjas”.

Quando se trata de construções e reformas executadas em pro-priedades, uma prova cabal de irregularidades é a demonstração de queestão sendo realizados gastos incompatíveis com os vencimentos esubsídios dos ocupantes dos cargos públicos. Um registro fotográficodas obras pode ser importante para a análise das despesas realizadas.

3.3. Investigações, provas e confronto

Existem várias maneiras de dar início às investigações para aconfirmação da existência de fraudes e a obtenção de provas. Só apósiniciadas investigações é que se podem mover processos visando res-ponsabilizar os fraudadores. A partir desse estágio, em que começa oconfronto direto com os corruptos, é preciso mobilizar a populaçãocontra os denunciados, que apelarão para qualquer meio no sentido dedeter os acusadores.

Formas de investigação de empresas-fantasmas

É muito mais comum do que se imagina a figura da empresa-fantasma, que inexiste legalmente ou de fato, e está envolvida no pro-cesso de corrupção.

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O pagamento a uma empresa fictícia significa que o serviço ou oproduto especificado não existiu,e que o cheque emitido pela prefeitu-ra foi diretamente para os fraudadores. A comprovação de negócioscom empresas “fantasmas” proporciona um fato contundente e rele-vante que, por si só, pode levar à condenação dos corruptos.

Esse tipo de fraude já é motivo suficiente para se fazer uma re-presentação ao Ministério Público, pedindo a abertura de inquérito civilpúblico, ou mesmo de ação civil pública.* Associações constituídas hápelo menos um ano, nos termos da lei civil, e que tenham entre suasfinalidades a proteção à ordem econômica e à livre concorrência, po-dem ajuizar diretamente uma ação civil pública.

* Com o advento da lei n° 10.628 de 24 de dezembro de 2002, a açãojudicial contra prefeito municipal por improbidade administrativa passou a serde competência do Tribunal de Justiça do Estado. Assim, representações pe-dindo a abertura de inquérito civil público por atos de improbidade administrati-va devem ser feitas diretamente ao procurador geral de Justiça do Estado, masnada obsta que se faça a representação ao promotor público da comarca.

Quando, no exame das contas da prefeitura, surgirem dúvidassobre a participação de empresas desonestas no esquema decorrupção, segundo os indícios citados anteriormente quanto a notasfiscais “frias” e empresas “fantasmas”, deve-se recorrer a alguns mei-os de investigação:

Junta Comercial

Verificar a existência efetiva da empresa. Nisso, é preciso levarem conta que o fato de uma firma estar registrada na Junta Comercialé importante, mas é insuficiente para comprovar sua existência físicaou sua idoneidade. Não há maiores dificuldades em se registrar umaempresa, e o registro acaba por ser usado para dar aparência de legi-timidade aos negócios escusos que mantém com a prefeitura.

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Caso a empresa não esteja registrada nesse órgão, ela não existe,pois esse é um requisito obrigatório para todos os estabelecimentosque atuem no mercado. As juntas comerciais (estaduais ou regionais)informam sobre a existência de empresas por meio de requerimentosfeitos em suas sedes.

Em um dos casos analisados pela AMARRIBO, os fraudadoresforam tão displicentes que, durante o processo de cassação do prefei-to de Ribeirão Bonito, juntaram cópia do contrato social de uma empre-sa cujo protocolo emitido pela Junta Comercial tinha data anterior àconstituição da própria firma. Isso mostra que não se deve confiar emcópias reprográficas (xerox) de contrato social, mesmo que tenhamsido autenticadas em cartório. É essencial verificar a sua existênciapor meio de certidão da Junta Comercial.

Receita Federal

Verificar se a empresa é registrada no Cadastro Nacional de Pes-soa Jurídica (CNPJ), da Receita Federal. Mas deve-se estar atento,pois os fraudadores podem usar o número do CNPJ de firmas querealmente existem, mas que nada têm a ver com o processo. A consul-ta pode ser feita pela Internet, pelo endereçowww.receita.fazenda.gov.br.

Receita Estadual

Verificar o cadastro da receita estadual, junto à Secretaria daFazenda estadual.

Constatação da existência física da empresa

Tarefa essencial para checar se uma empresa é “fantasma” con-siste em verificar a sua existência física. É necessário ir ao endereçoindicado na nota fiscal e ver se a empresa está realmente instalada nolocal. Depois, é preciso conferir esse endereço com aqueles fornecidos

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aos outros órgãos em que a firma esteja registrada. Caso as instala-ções não sejam encontradas no lugar indicado, convém averiguar commoradores e comerciantes das imediações se a empresa esteve ins-talada no local. O registro fotográfico pode servir como prova docu-mental em um eventual processo.

Constatação de existência física da gráfica emissora da notafiscal

Verificar se, de fato, existe a gráfica que imprimiu o talonário denota fiscal da empresa, seguindo os mesmos procedimentos do itemanterior.

Perícia nos serviços prestados

Quando se desconfia que a prefeitura fez pagamentossuperfaturados ou de notas fiscais “frias”, é necessário solicitar aoMinistério Público a instauração de inquérito civil público e a realizaçãode perícias sobre os serviços prestados. Com base nos resultados,instaura-se uma ação civil pública, visando a punição dos responsá-veis e o ressarcimento dos recursos desviados.

A perícia também pode examinar serviços prestados e materiaisempregados em obras. Pode haver, por exemplo, notas fiscais de ser-viços que na realidade não foram prestados; os 350 quilos de caboque o empreiteiro afirmou ter gasto em uma instalação podem ser, defato, apenas 50 quilos. Irregularidades desse tipo também são sufici-entes para se pedir ao Ministério Público instauração de inquérito e deação civil por improbidade administrativa.

Obtenção de provas

A obtenção de provas é fundamental para qualquer ação contra acorrupção. É difícil iniciar qualquer processo administrativo, judicial oupolítico na ausência de fatos comprobatórios. Quanto mais veementes

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os indícios, mais fácil a abertura dos processos. Para tanto, é neces-sário:

· checar cuidadosamente as denúncias, verificando se não con-sistem em meras desavenças políticas sem fundamentos sólidos;

· buscar informações nos órgãos públicos (Junta Comercial,Receita Federal, Receita Estadual);

· identificar colaboradores - funcionários da administração muni-cipal que não compactuam com os corruptos -, a fim de se obtereminformações sobre fraudes administrativas;

· analisar transferências e aplicações de recursos, como os pro-venientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fun-damental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Para esse caso,por exemplo, há manuais e cartilhas com informações detalhadas, nopróprio FUNDEF, órgão vinculado ao Ministério da Educação. Mais infor-mações podem ser encontradas no endereço www.mec.gov.br/fundef.

· documentar as provas, sempre que possível, com laudos, fo-tos e gravações.

Mobilização popular

Após anos de abusos e impunidade, muitas comunidades se torna-ram indiferentes e alheias ao processo orçamentário e os cidadãos foramtomados de um grande ceticismo em relação à possibilidade de puniçãode políticos desonestos. Por isso, para que a sociedade se mobilize contraa corrupção, é preciso que as pessoas sejam estimuladas e provocadas.O começo pode ser muito difícil, pois as primeiras reações são de incre-dulidade. Depois, surgem sentimentos de resignação e medo, e só maisà frente os cidadãos se indignam e reagem à situação.

No processo de mobilização, é fundamental que a sociedadeesteja constantemente informada sobre os acontecimentos. As notíci-as devem ser transmitidas pelos meios de comunicação disponíveis,como boletins informativos, jornais, programas de rádio e, se possível,pelas emissoras de televisão regionais e nacionais.

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À medida que as fraudes vão sendo comprovadas, devem serdivulgadas para a população, pois essas informações desenvolvemum sentimento de repulsa ao comportamento das autoridades corrup-tas e, ao mesmo tempo, estimulam a continuidade das investigações.Os cidadãos devem ser convocados a freqüentar as sessões da Câ-mara Municipal e cobrar dos vereadores providências no sentido deinterromper os atos ilícitos e de punir os culpados. É importante, tam-bém, estimular o debate organizado e promover audiências públicasde esclarecimento à sociedade.

No entanto, deve-se evitar, sempre, a divulgação de denúnciasinconsistentes, pois isso pode desacreditar todo o processo.

Órgãos públicos competentes para investigar e apurar a corrupçãono poder municipal devem, necessariamente, ser envolvidos. Da listadevem fazer parte o Ministério Público através do promotor público, oTribunal de Contas do Estado (ou do município, quando existir), a Câ-mara Municipal e, eventualmente, a Polícia Federal, a Secretaria da Fa-zenda, o Ministério do Planejamento e as agências reguladoras dos se-tores envolvidos). Vale, ainda, pressionar os dirigentes dos partidospolíticos,e os Conselhos Profissionais Regionais, como a Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), o Conselho Regional de Medicina (CRM), oConselho Regional de Contabilidade (CRC), entre outros.

É também essencial despertar o interesse do promotor públicopara as investigações, pois, sem o seu apoio, tudo se torna muito maisdifícil. Em cidades em que haja comprometimento do promotor com aadministração municipal, as investigações ficam prejudicadas e dificil-mente avançam. Para reverter situações como essa, deve-se pedir ainstauração de inquérito civil público, cujo arquivamento depende demanifestação do Conselho da Procuradoria Geral de Justiça do Estado.

A melhor maneira de motivar as autoridades judiciais no comba-te à corrupção é pela apresentação de fatos comprovados e consis-tentes. Quando a promotoria e o judiciário se mostram ativos na defe-sa do interesse público, o processo flui e atinge-se o objetivo pretendi-do. Uma investigação bem feita pode levar o promotor público a reque-rer o afastamento imediato do prefeito. No caso de Ribeirão Bonito, o

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judiciário aceitou o pedido do promotor e os tribunais superiores confir-maram a sua decisão.

Declarações de inocência e reação dos denunciados

Mesmo confrontados com provas contundentes, os corruptossempre negam o crime. Declaram inocência com muito cinismo e semqualquer escrúpulo.

À medida que as denúncias vão se acumulando e as provas sur-gem, os administradores desonestos e seu grupo lançam mão de diver-sos métodos de reação, procurando impressionar a população e silenci-ar os denunciantes. Apelam para declarações teatrais e assumem o papelde vítimas de perseguição política. Também partem para o constrangi-mento, por meio de ameaças e mesmo pelo uso de violência física.

Uma das formas usadas para abalar a convicção de parte daspessoas é a utilização de frases e temas religiosos. Com o intuito deprovocar comiseração, os denunciados recorrem a declarações emque invocam a justiça divina e lêem salmos e orações antes de sepronunciar a respeito das denúncias. Essas atitudes levam muitos aficar em dúvida, pois não conseguem identificar nisso a operação deuma estratégia concebida deliberadamente para confundir o público.

No caso de Ribeirão Bonito, muitas vezes as pessoas religiosasse mostraram estremecidas diante das palavras do prefeito, que de-clarava inocência apelando para imagens de cunho religioso. Isso acon-tecia porque, àquela altura, a comunidade ainda não tinha acesso àsprovas e aos documentos de que a AMARRIBO dispunha.

As provas, manipuladas pelos meios de informação controladospela autoridade municipal, não chegavam às diferentes comunidadesreligiosas, as quais tendiam a esquivar-se da controvérsia que neces-sariamente se instalou.

As declarações teatrais de inocência, a posição de vítima perse-guida, as ameaças claras e veladas feitas diretamente ou por meio deemissários ou parentes, ou até mesmo a violência física, podem cons-tranger pessoas e reduzi-las ao silêncio.

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Portanto, é importante, sempre que possível e sem atrapalharas investigações, apresentar as provas dos delitos para desmascararos fraudadores.

Alguns cuidados

Corruptos e fraudadores do erário público são pessoas sem qual-quer escrúpulo, capazes de qualquer coisa, como forjar e destruir do-cumentos e provas, subornar ou ameaçar testemunhas, intimidar osoponentes, atacar a integridade dos acusadores e até mesmo atearfogo na prefeitura, se julgarem necessário.

Deles pode esperar-se todo tipo de bandidagem. Não se devebaixar a guarda e nem recuar, pois é isso o que eles esperam.

4. O EXEMPLO DE RIBEIRÃO BONITO

A cidade de Ribeirão Bonito viveu uma experiência singular emsua história recente. Os Amigos Associados de Ribeirão Bonito(AMARRIBO), organização não governamental (ONG) criada para pro-mover o desenvolvimento social e humano da cidade, acabou por as-sumir a liderança de um processo para eliminar a corrupção no poderpúblico municipal. Além de desviar recursos públicos, o prefeito haviacometido inúmeros atos de improbidade administrativa. A demonstra-ção dos ilícitos desencadeou um movimento de repúdio, por parte dapopulação, a esse tipo de comportamento. A iniciativa foi bem sucedi-da e culminou com o afastamento do chefe do executivo municipal. Apartir desse exemplo, movimentos semelhantes se espalharam pelaregião e por numerosas cidades do Brasil.

Sem fins político-partidários, a ONG percebeu que seus objetivossociais conflitavam com as práticas de desvio de recursos públicos ob-servadas na cidade. Cidadãos e associados da AMARRIBO considera-ram que os esforços da organização seriam infrutíferos caso a corrupçãocontinuasse a dominar a administração pública. Depois de avaliarem

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seriamente a situação, os membros da ONG entenderam que não ha-via outra alternativa senão a de coibir os abusos constatados.

No caso de Ribeirão Bonito, a eliminação da corrupção se tornouuma questão de sobrevivência, porque nada que se pudesse fazer pelacidade seria capaz de consertar os danos causados pelo desvio de re-cursos. Os atos ilícitos praticados pelo chefe do executivo se alastra-vam por outros setores da prefeitura. E a desorganização generalizadadesmotivava os funcionários honestos. A máquina administrativa muni-cipal trabalhava para o seu próprio benefício,e não para o dos cidadãos.Diante dessa situação, a população se sentia impotente para reagir.

A convicção comum de que todo empenho associativo em favorda melhoria das condições de vida no município não pode prescindirdas responsabilidades do poder público, conduziu os associados àdecisão de promover o saneamento do poder público municipal, elimi-nando, como pré-condição, a apropriação dos bens públicos e as for-mas de corrupção que sustentam e perpetuam grupos desonestos nopoder público municipal.

4. 1. O processo jurídico

Em 9 de novembro de 2001, a ONG entrou com a primeira repre-sentação junto à Promotoria de Justiça da cidade de Ribeirão Bonito,pedindo abertura de inquérito civil público para a investigação dos desvi-os de verba de merenda escolar, aquisição de combustível,e notas “fri-as” de fornecimento de serviços. Cinco dias depois, ingressou junto aoTribunal de Contas do Estado de São Paulo com pedido de uma audito-ria especial antecipada, também para investigar os mesmos desvios.

Em 24 de janeiro de 2002, o Tribunal de Contas emitiu relatórioem que informa ter encontrado indícios de irregularidades em partedas denúncias. Afirmava ainda que não tinha como comprovar outrasacusações, por não ter localizado alguns documentos na prefeitura.Apesar disso, os conselheiros não tiveram a iniciativa de ouvir ninguém- acusadores ou envolvidos.

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Por ser excessivamente formal, o Tribunal de Contas só conduzinvestigações se o denunciante entregar provas evidentes de fatos re-lacionados a desvios orçamentários. Isso leva a questionar seriamen-te a eficácia dos procedimentos desse órgão na fiscalização dos gas-tos públicos.

A parte do relatório em que o Tribunal de Contas concluía que“nada se apurou” passou a ser usado publicamente pelo prefeito comoprova de idoneidade. Contudo, a regularidade dos procedimentos delicitações é examinada apenas formalmente pelo TCE. Não se verificase as firmas cadastradas ou participantes das concorrências existemfísica ou juridicamente. Quanto às notas fiscais, o tribunal faz um exa-me somente do ponto de vista contábil, sem perquirir sobre a existên-cia das firmas emitentes.

Apesar da omissão do TCE, em 4 de abril de 2002 o promotorpúblico da cidade ingressou com uma ação civil pública contra o pre-feito e diversos de seus assessores, solicitando o seu afastamentoimediato do cargo. O pedido foi deferido pela juíza da comarca em 8 deabril de 2002, e posteriormente mantido pelo Tribunal de Justiça.

Em 24 de abril de 2002, o prefeito renunciou ao mandato, teve asua prisão preventiva decretada e fugiu. Mais tarde, acabou por serpreso no município de Chupinguaia, estado de Rondônia.

4.2. O processo político

Logo após a abertura dos inquéritos judiciais no Ministério Públi-co e do procedimento administrativo junto ao Tribunal de Contas doEstado, a AMARRIBO, com o apoio dos cidadãos e de alguns vereado-res, pediu na Câmara Municipal a instauração de uma Comissão Es-pecial de Investigações para apurar os fatos.

A Comissão apresentou o resultado das investigações em 13 demarço de 2002, anunciando que as denúncias eram verdadeiras. Orelatório da CEI foi aprovado em sessão da Câmara Municipal do dia18 de março de 2002. Com base no artigo 4° do decreto-lei n° 201/67,leu-se denúncia de dois cidadãos, citando provas documentais das

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infrações político-administrativas cometidas pelo prefeito, contidas norelatório da Comissão. Outras provas de desvios de recursos públi-cos, surgidas posteriormente e que não eram objeto da CEI, tambémforam levantadas. Na mesma sessão, pediu-se a cassação do man-dado do prefeito.

A Câmara Municipal acatou a denúncia para o processo deimpeachment por unanimidade, com a exclusão de dois vereadoresque, por estarem envolvidos nos desvios, não votaram. Criou-se, en-tão, a Comissão Processante que dirigiria o processo de cassação.

Antes da conclusão dos trabalhos da Comissão Processante,em 24 de abril de 2002, o prefeito renunciou e logo após fugiu, deforma a evitar a prisão preventiva que fora determinada pela juíza dacomarca. A Comissão prosseguiu seus trabalhos e acabou por julgara denúncia procedente, o que servirá para a aplicação das penasprevistas na lei. A cassação do mandato deixou de ser aplicável emvirtude da renúncia do prefeito, mas as demais penas, como ainelegibilidade, podem ser aplicadas.

5. AS ONGs E O COMBATE À CORRUPÇÃO

A justiça brasileira é demasiadamente lenta. Muitas vezes, pro-cessos judiciais por improbidade administrativa são iniciados, mas osacusados só são julgados após o cumprimento integral de seus man-datos. Durante esse período, furtam o máximo que podem e acumu-lam recursos para sua defesa futura. Quase sempre alcançam esseobjetivo, alimentando o círculo vicioso da impunidade. Esse movimen-to acaba por frustrar a busca por justiça.

O processo político de cassação do mandato pela Câmara Muni-cipal (impeachment) se desenvolve mais rapidamente. O mecanismoé disciplinado pelo decreto-lei n° 201/67, de âmbito federal, e pela LeiOrgânica do Município, a qual, da mesma forma que o Regimento In-terno da Câmara de Vereadores, varia de cidade a cidade.

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É indispensável aprofundar-se no exame desses instrumentos le-gais, para informar o oferecimento de denúncias e para acompanhar oprocesso em todos os seu trâmites legais e formais. O domínio dessesestatutos é essencial, pois, geralmente, os fraudadores contratam ad-vogados hábeis, que exploram os erros cometidos na formalização etramitação de processos, conseguindo, assim, a sua anulação.

Desse modo, é recomendável a orientação e o acompanhamen-to jurídico durante o processo, o que pode ser viabilizado mais facil-mente por meio da colaboração de uma ONG. Sem a assessoria deum advogado, a chance de anulação do processo é muito grande.

Em cidades pequenas, é comum o prefeito cooptar a maioriados vereadores. Quando isso ocorre, é preciso mobilizar a sociedadepara pressioná-los e alterar o curso do processo. Também nessa ques-tão, a ONG pode vir a ter papel fundamental, no sentido de promover apressão popular e mudar a história.

Em situações em que não haja provas cabais dos desvios,,ouquando o apoio político não é suficiente para desencadear um proces-so de cassação, é aconselhável que a primeira providência seja a depropor a criação de uma Comissão Especial de Inquérito na CâmaraMunicipal, com o objetivo de apurar os fatos merecedores de investi-gação. Essa comissão investiga as fraudes e posteriormente, combase em suas conclusões, pode propor o impeachment do prefeito.

É preciso atentar para a formação da Comissão Processanteque dirigirá o processo de cassação. Se a equipe for subserviente aoprefeito, dificilmente encontrará fraudes, e, ainda, passará atestado deidoneidade ao corrupto. Aí, novamente, é importante a pressão de umaONG e da sociedade para evitar a constituição de uma de faz-de-con-ta, que acaba por nada apurar.

Deve-se observar que um vereador, ao apresentar a denúncia,fica impedido de votar na Comissão. E, no caso de ser também acu-sado de fraudes, não pode votar no processo. As regras para solicitaro seu impedimento e a convocação dos suplentes variam de acordocom o regimento de cada Câmara Municipal.

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Qualquer eleitor pode entrar com denúncia na Câmara Municipalpedindo a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito paraapurar atos de corrupção ou de improbidade administrativa. Tambémtem o direito de formalizar a denúncia para a cassação do mandato. Asformalidades essenciais estão no decreto-lei 201/67 e os detalhes po-dem variar em cada município. No confronto entre o decreto-lei e alegislação municipal, o código federal tem precedência.

Organização das ações da ONG

Como em qualquer processo de gestão, é importante que a co-munidade, por meio de uma ONG ou de lideranças organizadas, esta-beleça responsabilidades e funções, como, por exemplo:

· quem fará um levantamento de todos os recursos a seremmobilizados junto à população: associações de bairro, de moradores,entidades de classe etc.;

· quem estimulará a formação de grupos de apoio através deoutras entidades;

· quem redigirá os boletins informativos e quem cuidará de suadistribuição;

· quem mobilizará as vilas no corpo-a-corpo;

· quem será o interlocutor com a Câmara Municipal;

· quem falará com a imprensa;

O processos de coordenação central e comunicação precisamser conduzidos por um grupo reduzido, perfeitamente afinado, econectado on-line. A cada passo, sempre deverão ser tomadas provi-dências urgentes com o objetivo de:

· rebater imediatamente os boatos lançados pelos investigadose acusados;

· não cair no jogo do inimigo, que tentará desqualificar os mem-bros do grupo acusador, espalhando boatos e tentando criar fatos queos desqualifiquem;

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· insistir sempre no objetivo das denúncias, pois a todo instanteos corruptos tentarão desviar a atenção para outros temas e para ou-tras gestões. Para isso, argumentam que tudo sempre foi igual, bus-cando qualificar as denúncias como uma iniciativa político-partidária.Tentarão representar o papel de vítimas da perseguição de grupos depoderosos ou de injustiçados pela população. É preciso, porém, não sedeixar levar por discussões, pois desviar o assunto é técnica diversionista.

· formar caixa para custear as despesas necessárias;

· intervir sempre que o grupo apresentar algum tipo de desen-tendimento e focar os esforços sempre no objetivo maior para superaras divergências internas.

A participação em um processo político de cassação pressupõeque os participantes tenham claros os objetivos finais e uma direçãobem definida. Durante o percurso, é comum surgirem situações com-plexas, divergências pessoais e suscetibilidades feridas, que podemcomprometer a coesão do grupo. É urgente aparar as arestas, apro-veitar os aspectos positivos de cada um e superar diferenças, a fim demanter a união e atingir a meta.

Em qualquer grupo ocorrem discordâncias, além de egoísmos evaidades. Há pessoas mais, ou menos, suscetíveis. Ao se formar umconjunto de pessoas, é importante saber disso de antemão e se pre-parar para resolver as diferenças, aproveitando os aspectos positivosde cada membro. De nada adianta desanimar-se com os atritos queacontecem, pois são comuns a quaisquer grupos de pessoas.

É conveniente que as eventuais críticas não sejam feitas àspessoas, mas às suas ações. Críticas feitas diretamente à persona-lidade dos indivíduos tornam-se obstáculos difíceis de superar, namedida em que esse tipo de julgamento pode dificultar a convivênciae provocar a desagregação. O processo deve ser conduzido comenergia, cooperação, paciência e aceitação mútua, visando os obje-tivos sociais que unem o grupo.

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5.1. O recurso a leis e órgãos

Um grande conjunto de leis e normas dá respaldo às açõesanticorrupção. Há também uma série de órgãos aos quais se poderecorrer desde as investigações até o final do processo.

Tribunal de Contas do Estado

Apesar de o Tribunal de Contas se ater mais aos aspectos for-mais dos procedimentos e da documentação quando examina as con-tas dos prefeitos e das Câmaras Municipais, é importante que, por meiode representação, se faça a denúncia a esse órgão. Algumas análisescomparativas e partes do relatório que realizam podem vir a ser instru-mentos importantes no decorrer do processo. Eles podem ser usadosem eventuais pedidos de abertura de Comissão Especial de Investiga-ção ou de Comissão Processante, meios utilizados para pedir o afas-tamento político da autoridade municipal corrupta.

Mas é preciso saber lidar com os relatórios do Tribunal de Con-tas, que podem levar a interpretações dúbias. Assim, quando o Tribu-nal afirma que “nada se apurou”, normalmente é porque não investigouou nada encontrou. E quando diz que “não se comprovou a denúncia”,isso não significa que os fatos foram examinados e os acusados ino-centados, mas que o denunciante não apresentou provas consisten-tes e convincentes. Geralmente esses “resultados” são usados pelosfraudadores como atestado de idoneidade.

Ministério Público Estadual - Promotoria de Justiça dacomarca

Em caso de suspeita fundamentada e de indícios consistentes,a Promotoria de Justiça é o primeiro órgão ao qual devem ser dirigidasas denúncias, formuladas por meio de representação. Caso julgue adenúncia fundamentada, a Promotoria geralmente abre inquérito civilpúblico para investigar os fatos. Com a abertura desse inquérito, o pro-motor passa a contar com uma série de facilidades para investigar as

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fraudes. Uma vez comprovadas, inicia-se uma ação civil pública porimprobidade administrativa e ações criminais, quando for o caso.

Câmara Municipal

Qualquer cidadão pode fazer uma denúncia. Dependendo da re-levância das provas existentes, pode-se solicitar a abertura de umaComissão Especial de Investigação (CEI) para apurar fatos que impli-quem atos de improbidade administrativa ou de desvio de recursospúblicos. Se os fatos abrem a oportunidade de cassação do mandatodo prefeito, deve-se pedir a formação de uma Comissão Processante,em que serão feitos a denúncia e o pedido de cassação. Para isso, épreciso observar a lei orgânica do município, o regimento interno daCâmara Municipal e o decreto-lei 201/67 para os procedimentos a se-rem seguidos.

Procuradoria Geral da República

Muitos delitos cometidos no âmbito municipal, por envolveremrepasses de verbas da União, são da alçada da Justiça Federal. As-sim, o Ministério Público Federal também pode ser acionado para in-vestigar fatos que estejam em sua esfera de competência.

O acionamento do MPF é importante também porque, às vezes,o Ministério Público Estadual não age com a mesma presteza e de-senvoltura apresentadas pela instância federal.

A Procuradoria Geral da República dispõe de um sítio na Internet(www.pgr.mpf.gov.br) no qual se podem fazer denúncias, inclusive anô-nimas. Fornece os endereços das Procuradorias Regionais e os no-mes e endereços dos procuradores nos estados.

Secretaria da Receita Federal

Os fraudadores, em geral, são afetados por problemas com oimposto de renda, pois não têm como justificar a sua variação

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patrimonial e seu enriquecimento súbito. É importante que a ReceitaFederal investigue a situação desses indivíduos, porque, uma vez com-provadas as irregularidades, elas servem de prova nos processos po-lítico e judicial. Além disso, se a Receita verificar que há impostos devi-dos, os corruptos ficam sujeitos à acusação de sonegação fiscal, oque representa uma arma adicional contra eles.

Imprensa

Procure os órgãos de imprensa sérios e comprometidos com amoralidade. Informe-os sobre as fraudes, principalmente quando esti-ver munido de documentos. Denúncias divulgadas pela mídia motivamas autoridades a tomarem providências e mobilizam a população con-tra os fraudadores.

5.2. A legislação básica nacional

Decreto-lei 201, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre Cri-mes de Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores.

Lei n° 7.374, de 24 de julho de 1985, Lei n° 8.429, de 02 de junhode 1992 , Medida Provisória n° 2.225, de 4 de setembro de 2001. Dis-ciplinam a Ação Civil Pública -Dispõem sobre as sanções aplicáveisaos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercíciode mandato, cargo, etc...

Lei Complementar n° 101, 4 de maio de 2000 Lei de Responsabi-lidade Fiscal.

Lei 8666, de 21 de junho de 1993. Lei das Licitações.

Lei Complementar n° 64, de 18 de maio de 1990. Estabelece oscasos de inelegibilidade.

Lei n° 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Lei do Fundef.

Lei Complementar n° 75, de 20 de maio de 1993. Organização,Atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União.

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Lei n° 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Lei Orgânica Nacionaldo Ministério Público.

Lei Complementar 734, de 26 de novembro de 1993. Lei Orgâni-ca do Ministério Público Estadual de São Paulo.

Legislação subsidiária: Lei 1.079, de 10 de abril de 1950. Defineos Crime de Responsabilidade e regula o processo de julgamento doPresidente da República e os Ministros.

Legislação básica municipal: Lei Orgânica do Município, Regi-mento Interno da Câmara Municipal. Embora apresentem diferenças,de acordo com cada município, as leis orgânicas e os regimentos in-ternos seguem, em geral, princípios comuns.

Na Internet: BNDES. O sítio apresenta o conjunto da legislaçãoque regula a administração pública, propostas de nova legislação atu-almente em discussão, além de farta literatura relacionada a transpa-rência na administração pública.

Antoninho Marmo Trevisan, nascido em Ribeirão Bonito, é pre-sidente da Trevisan Auditores e Consultores e fundador da FaculdadeTrevisan e presidente fundador da AMARRIBO.

Antonio Chizzotti, nascido em Ribeirão Bonito, doutor em edu-cação pela PUC-SP e pós-doutorado em Paris, França. É professordo Programa de Pós-Graduação em Educação na PUC-SP, conse-lheiro da AMARRIBO.

João Alberto Ianhez, nascido em Ribeirão Bonito, relações pú-blicas e jornalista, presidente da Ianhez Comunicação Ltda e conse-lheiro da AMARRIBO.

José Chizzotti, nascido em Ribeirão Bonito, formado em direitopela PUC-SP, advogado, procurador do estado aposentado e conse-lheiro da AMARRIBO.

Josmar Verillo, nascido em Ribeirão Bonito, formou-se em ad-ministração na PUC-SP, é mestre em Administração pelo IESA,Venezuela, mestre e doutor em economia pela Michigan State University- USA, presidente da Alcoa América Latina e presidente do Conselhode Administração da AMARRIBO.

Rodrigo César Rebello PinhoCarlos Henrique MundMaria Cristina Barreira de OliveiraJosé de Arruda Silveira Filho

Procurador-geral de JustiçaRodrigo César Rebello Pinho

Membros NatosJosé Roberto Garcia DurandLuiz Cesar Gama PellegriniHerberto Magalhães da Silveira JúniorRené Pereira de CarvalhoFrancisco Morais SampaioJosé Ricardo Peirão RodriguesJosé Roberto Dealis TucunduvaOswaldo Hamilton TavaresFernando José MarquesIrineu Roberto da Costa LopesRegina Helena da Silva SimõesRoberto João EliasClaus PaioneJosé de Arruda Silveira FilhoThiers Fernandes LoboÁlvaro Augusto Fonseca de ArrudaPedro Franco de CamposGabriel Eduardo ScottiJosé Luiz AbrantesAntonio Visconti

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça

Corregedor-geral do Ministério PúblicoCarlos Henrique Mund

Conselho do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento FuncionalPaulo Hideo ShimizuMárcio Fernando Elias RosaHaraldo César BianchiLuís Daniel Pereira Cintra

Conselho Superior do Ministério PúblicoRodrigo César Rebello Pinho(presidente)Carlos Henrique MundAntônio Ferreira PintoEvelise Pedroso Teixeira Prado VieiraHerberto Magalhães da Silveira Jr.

Congregação da ESMPLuís Daniel Pereira Cintra (presidente)Antonio Carlos da PonteCélio ParisiDavid Cury JúniorEdgard Moreira da SilvaEduardo Martines JúniorEliana PassarelliIsa Gabriela de Almeida StefanoJosé Carlos Mascari BonilhaJosé Marcelo Menezes VigliarLídia Helena Ferreira da Costa PassosLuiz Antonio de Souza

Luiz Roque Lombardo BarbosaMaria Amélia Nardy PereiraNélson GonzagaOswaldo Henrique Duek MarquesOswaldo Luiz PaluOswaldo Peregrina RodriguesRita de Cássia Souza Barbosa de BarrosRonaldo Porto MacedoSérgio Seiji ShimuraSuely Amici PereiraVidal Serrano Nunes JúniorWallace Paiva Martins Júnior

Membros EleitosJúlio César de Toledo PizaMaria Aparecida Berti CunhaEliana MontemagniMarilisa Germano BortolinWalter Paulo SabellaDráusio Lúcio BarretoFranco Caneva JúniorHideo OsakiDaniel Prado da SilveiraMágino Alves Barbosa FilhoAntonio Carlos Fernandes NeryNelson Lacerda GertelMaria do Carmo Ponchon da Silva PurciniVercingetorix de Castro Garms JúniorRubem Ferraz de OliveiraMaria Cristina Barreira de OliveiraIrineu Penteado NetoJosé Benedito TarifaHerman HerschanderJorge Luiz Ussier

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