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Revista Filosófica de Coimbra Publicação semestral Vol. 14 N.° 28 Outubro de 2005 Artigos Mário Santiago de Carvalho - Metamorfoses da ética peripatética: Estudo de um caso quinhentista conimbricense: As Disputas sobre os livros da 'Ética a Nicómaco' .................................... 239 Diogo Ferrer - Filosofia Transcendental e Universidade . O Plano Dedutivo para um Instituto de Ensino Superior a Estabelecer em Berlim de Fichte ................................................................... 275 Carlos Morujão - A Logica Modernorum : Lógica e Filosofa da Linguagem na Escolástica dos Séculos XIII e XIV .............. 301 Giannina Burlando - Recepción suareciana de Aristóteles: per- cepción, representación y verdad ............................................. 323 Alain David - Penser l'époque avec Lévinas et Derrida....... 349 Estudo José Reis - O Tempo em Heidegger ........................................... 369 Recensões ........................................................................................... 415

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Revista Filosófica de Coimbra

Publicação semestral

Vol. 14 • N.° 28 • Outubro de 2005

Artigos

Mário Santiago de Carvalho - Metamorfoses da ética peripatética:Estudo de um caso quinhentista conimbricense: As Disputassobre os livros da 'Ética a Nicómaco' .................................... 239

Diogo Ferrer - Filosofia Transcendental e Universidade . O PlanoDedutivo para um Instituto de Ensino Superior a Estabelecer

em Berlim de Fichte ................................................................... 275

Carlos Morujão - A Logica Modernorum : Lógica e Filosofa da

Linguagem na Escolástica dos Séculos XIII e XIV .............. 301

Giannina Burlando - Recepción suareciana de Aristóteles: per-

cepción, representación y verdad ............................................. 323

Alain David - Penser l'époque avec Lévinas et Derrida....... 349

Estudo

José Reis - O Tempo em Heidegger ........................................... 369

Recensões ........................................................................................... 415

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RECENSÕES

Gérard SONDAG, Duns Scot. La métaphysique de Ia singularité . Paris:J. Vrin ( Bibliothèque des Philosophes) 2005, 238p.

Dadas as dificuldades ( de incompletude e de transmissão ) da sua obra e a subtilezado seu pensamento , está longe de ser fácil escrever uma monografia sobre o filósofo eteólogo João Duns Escoto ( 1265/66-1308 ). Apraz - nos, por isso, saudar o recente apare-cimento da obra em recensão , da autoria de G. Sondag, docente de Universidade Blaise-Pascal ( Clermont ), que, decerto também porque iniciou a sua actividade de «escotista»sobretudo como tradutor , oferece ao leitor francófono uma síntese coerente e relativamenteacessível de um dos maiores pensadores franciscanos de todos os tempos . Ao lado depáginas de uma espantosa acessibilidade , lemos discussões pormenorizadas e bem infor-madas que estão longe de ceder à facilidade . Esta quase impossível combinação , aliada auma actualizadíssima informação bibliográfica, confirmam GS como um nome de referên-cia no universo escotista da francofonia . Sob o título complementar , « A metafísica dasingularidade », GS optou por uma apresentação sistemática da obra escotista ( a opçãocomporta os seus riscos, evidentemente). Tendo por ponto de partida a questãoepistemológica (p. 21-75), passa-se de seguida para o problema da possibilidade de umametafísica ou filosofia primeira (p. 77-129), na base da edificação de uma teologia (p. 131--164), a partir do qual se introduzem , por ordem , uma teoria do ser criado («créable») (p. 165--176), a psicologia (177-204) e a ética ou uma «teoria da vontade» (p. 205-221). É-nosproposto assim um Duns Escoto vocacionalmente metafísico , e isso dada a sua condiçãode teólogo cristão, evitando - se, em consequência , a bizarra e anacrónica leitura que faz dofranciscano um metafísico estrito e profissional. Os riscos inerentes à linha de opçãoindicada não se explicam só (ou nem tanto) pelo ponto de partida crítico ( tal como referi-mos na nossa tese doutoral sobre Henrique de Gand, ele parece - nos inultrapassável); nem,muito menos , pela dependência da teologia em relação à metafísica , sem que esta não eli-mine aquela , mas lhe dê a possibilidade da sua edificação ; ou sequer (o que já não será tãoóbvio ) por algumas das soluções preconizadas a atalhar as habituais dificuldades de inter-pretação do Doutor Subtil. Ponto mais frágil , encontrámo - lo nalgumas tónicas derivadasdo critério mais correcto ou fiável para aferir da « actualidade » de Escoto em termos deprogresso , segundo GS : uma ideia é nova sempre que depois da sua apresentação é impos-sível voltar atrás (vd. p. 223-4). Outro aspecto mais ou menos feliz da monografia dizrespeito ao facto de Escoto aparecer inserido num diálogo tradicional e diacrónico. A quemconhece alguns dos nossos estudos, saltará , no entanto, à vista, que não podemos acom-panhar o autor, sem mais, na expressão «pensamento franciscano» (vd. v.g . A Síntese Frágil,p. 20, n . 5). É claro que enunciado assim nada apontaríamos em reserva àquele critério,mas, como se disse, o mesmo não podemos afirmar quanto à justificação de algumas

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novidades, aparentemente irreversíveis. Sem que com isto queiramos deslustrar minima-

mente esta excelente contribuição de GS, enumeremos uma ou outra reserva sobre as ideias

filosóficas «progressivas» de Duns Escoto, tal como o A. as enumerou: o conceito unívoco

de ser; a teoria das naturezas comuns; a doutrina da individualidade e das diferenças últi-

mas; a doutrina teológica dos modos intrínsecos do ser; o conhecimento intelectual intui-

tivo; a definição da liberdade pela sincronia dos possíveis. Sem dúvida que, para a

metafísica, a doutrina da univocidade do ser tal como Escuto a enunciou representou uma

aquisiçào incontoraável. Todavia, isto não significa, como alega GS, que ela seja una

alternativa real à doutrina da analogia, designadamente na sua direcção teológica de imita-

çào ou de similitude (caso de Hoaventura); o ponto crítico, para nos, não está em dizer

que a analogia da similitude pressupõe sempre uni conceito unívoco (cela va de soí!).

Outrossim em precisar que não falamos da mesma univocidade nas duas situações (em

Escoto ela é elevada à condição de teoria 1undante), o que, portanto, mina ainda mais o

frágil critério da vantagem (sic!) que GS descortina cm tal teoria. Também não deixa de

ser fraca a apresentação da teoria da analogia, como «enigmática», a partir de Aristóteles.

Independentemente do facto de as páginas que dedicou à teoria das naturezas comuns

passarem a ser doravante obrigatórias, não conseguimos compreender como é que uma tal

teoria pode representar uma «saída do platonismo». Igualmente a merecer ulterior discus-

são, estamos em crer, estará a solução preconizada para uma desontologização do possível

(i.e. retirar o ser do possível ao ser-possível, o que é possível não é real). Diversamente,

já nos parece ter sido muito feliz a leitura da doutrina da constituição do indivíduo, bem

contraposta às interpretações contemporâneas de teor 'individualista' e devidamente situ-

ada em clave metafísica. Em conformidade, os indivíduos da mesma espécie não se distin-

guem entre si radicalmente, a distinção radical situando-se antes nas diferenças individu-

ais, as únicas que são efectivamente últimas, mas também determinantes e positivas: «os

indivíduos humanos diferem 'per se' (i.e. não por acidente) mas não 'primo' (i.e. no prin-

cípio - o que sucede só com as diferenças individuais que não chegam para formar umaespécie)». Sentimos o mesmo apreço pelo sublinhado conferido à desimplicação da liber-

dade e da contingência, o que tem como efeito perceber o verdadeiro horizonte daquela

mais no espaço da interioridade ou vontade humana. Para terminar, deixemos ao leitor

interessado informação sobre a ainda recente publicação das Actas do Colóquio «DunsScot à Paris, 1302-2002» (Turnhout: Textes et Etudes du Moyen Age, 26).

Mário Santiago de Carvalho

Alessandro D. Conti , Esistenza e Verità. Fonne e strutture del reale in Paolo

Veneto e nel pensiero filosofico del tardo medioevo , Roma: Istituto

Storico Italiano per il Medio Evo ( Nuovi Studi Storici, 33) 1996,

324pp.

Embora com algum atraso relativamente ao seu aparecimento - desde 1996 que A.C.tem dado à estampa inúmeras publicações sobre Paulo de Veneza (1369-1429), entre asquais poderíamos citar o último trabalho de que temos conhecimento (« Paul of Venice'sTheory of Divine Ideas and Its Sources » in Documenti e Studi sulla Tradizione FilosóficaMedieva /e 14: 2003 ) - é entusiasticamente que acolhemos aqui a presente dissertação. Elaafigura - se-nos uma competente e exaustiva apresentação da metafísica de, talvez, um dosmelhores lógicos medievais, decerto graças ao tirocínio de três anos que passou em Oxford,o qual lhe permitiu não só definir a crítica ao nominalismo como sobretudo haurir do

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espírito realista oxoniense. Com efeito, a defesa de um isomorfismo linguagem e mundo,mas também a adopção da noção escotista da distinção formal, lida à luz da teoria da iden-tidade e da distinção de Wyclif, justificam o escrutínio de uma «original lógica das intensõesde base essencialista» (p. 21) em Paulo de Veneza. Dada a importância nuclear da proble-mática essência/existência para o estabelecimento da metafísica de um qualquer pensador,insistamos em como, nessa teoria ou na revolução operada em torno da respectiva teoriada identidade, um papel relevante deve ser assacado a Henrique de Gand, cuja solução,depois de apurada por Duns Escoto, chegará modificada a Paulo de Veneza via Burleighe Wyclif. Nessa foz há-de ler-se, então, o culminar de uma metafísica das essências decaracterísticas neoplatónicas, que defende o primado do universal frente ao singular: «afirmarque a essência e a existência diferem apenas 'secundum rationem ' é uma forma diferentede afirmar que o universal e o singular identificam- se 'realiter ' e distinguem-se`formaliter'...» (p. 177). Para o leitor menos informado, recordemos, ainda, que o Eremitaaqui tratado foi um escritor fecundo, contando-se, entre as suas obras, ao menos os seguin-tes títulos (vd. p. 9-20): Logica parva (ou Sunmtulae), Antepraedicamenta, Logica magna,Quadratura seu quaituor dubia, Sophismata aurea, Sennoni, Quaestiones rxii de Messiaadversos /udeos, Super 1 Sententiarunt Johannis de Ripa lecturae abbreviatio, Stunmaphilosophiae naturalis (ou Stunma naturalium). Em sete capítulos muito bem coordena-dos e exemplarmente redigidos, A.C. reconstrói uni sistema metafísico coerente apoiadonos seguintes pilares: «ente e categorias» (p. 33- 68), «potência e acto» (p. 69-88), « uni-versais e singulares» (p. 89-152), «a composição de essência e ser» (p. 153-178), «asubstância singular e o princípio de individuação» (p. 179-209 ), «as formas acidentais»(p. 211- 255) e «o 'complexe significabile'» (p. 257-293). O método adoptado em cadaum destes capítulos é invariavelmente o mesmo, dele resultando quase sempre uma pequenamonografia histórico-filosófica , muitas vezes apoiada numa versão breve do princípio docírculo hermenêutico: apresentação do problema, contextualização histórica, concepção doVeneto, proposta de interpretação da sua motivação profunda. Este trabalho nem sempreera fácil, haja em vista que, nalguns casos, Paulo de Veneza só tratou o tema de modoindirecto (um exemplo a reter, entre outros, será o de 'substância'). Apesar de tudo, noresultado final, A.C. pode, em rigor, propor-nos a sua tese, quer sobre o lugar do autoritaliano na filosofia medieval - a saber: representante ilustre do realismo tardo-escotistana tentativa de preservar o «modelo 'forte' de razão» (p. 299), quer dizer, da que dá contaexaustiva da complexidade do mundo natural e da sua ordem a partir de procedimentosheurísticos de tipo rigidamente dedutivo - quer, sobretudo, sobre o «programa ontológico»de Paulo de Veneza. Sobre este último, A.C. sublinha, como se disse já, a revisitaçãocrítica do essencialismo intensionalista de Wyclif, à luz da tradição medieval e tomando

em consideração tanto o pendor anti-nominalista do realismo mais contemporâneo quantoo trabalho de Gualter Burleigh (seja na questão ente/categorias, no tema dos universais,

na composição essência e ser, etc.). Por todas estas razões, a obra pode ser também, aqui

e ali, lida como uma monografia sobre o pensamento lógico-metafísico na viragem dos

séculos XIV/XV, período (sobretudo o último) sobre o qual não abundam estudos aturados.

Como se viu pela referência bibliográfica acima, cabe sublinhar que A.C. continua a pri-

vilegiar a abordagem dos diálogos do autor com os seus coevos, e, tal como já nesta sua

dissertação, manuseando acertadamente fontes manuscritas várias e importantes . Uma afir-

mação em particular dá bem conta do lugar que A.C. atribui, por fim, à «geografia filosó-

fica» de Paulo de Veneza: um alegado sincretismo que, ao buscar uma difícil síntese de

exigências , à primeira vista muito díspares, o coloca na linha das grandes escolas doutrinais

de Duzentos , característica da grande parte da cultura universitária europeia dos primeiros

decénios do século XV (p. 8). Com tamanha competência para a reconstrução do sistema

metafísico do filósofo italiano medieval, o que faz desta obra de A.C. um trabalho de

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referência obrigatória , só nos resta aguardar anunciada monografia similar sobre a

epistemologia e a filosofia natural de Paulo de Veneza , que deverão ser caracterizadas,

talvez , como uma forma de «aristotelismo ecléctico ». Como temos repetido em tantas

ocasiões, não nos interessa tanto a afinação desse `lugar ' a partir dos tradicionais -ismos

da historiografia , quanto - essa sim - a afinação resultante exclusivamente do estudo dos

textos do autor nos seus diálogos histórico - críticos. Mas em ambos A.C. manifesta a neces-

sária prudência e competência.

Mário Santiago de Carvalho

Santiago Orrego Színchez, Li actualidad del ser ett la 'Primera Escuela de

Salamanca'. Con lecciones inéditas de Vitoria, Solo v Cano. Pamplona:

Ediciones Universidad de Navarra S.A. (Colección de Pensamiento Me-

dieval y Renacentista, 56) 2004, 513pp.

Inserida em prestigiada colecção da Universidade de Pamplona, a presente disserta-

ção de doutoramento de um jovem e promissor autor chileno , assume uma importância

enorme, quanto mais não seja pela publicação do Apêndice (p. 327-497) onde o leitor

passa a ter acesso à edição e tradução de nove textos manuscritos, centrais na tese, os

quais representam um substancial alargamento em relação à conhecida edição de L. Kennedy

(1972). São eles: de Francisco de Vitória (1492?-1546), Commentaria in Primam Partem

Divi Thomae (BUGranada, Cód. B-005), Commentaria in Tertiam Partem Divi Thomae

(BAVaticana, Ms. Ottob. Lat. 1056), a versão de 1539 de novo dos Commentaria in

Primam Partem Divi Thomae (BUPSalamanca, Ms 182 e BUBarcelona, Ms. 831); de

Domingo de Soto (1495-1560), Scholia in Tertiam Partem Sancti Thomae (BAVaticana,Ms. Ottob. Lat. 782), Commentaria in Primam Partem Divi Thomae (idid. Ms. Ottob.Lat. 1021 e 1042); e de Melchior Cano (1509-1560), Commentaria in Primam partem

Divi Thomae (BAVaticana, Ms. Ottob. Lat. 286) e Adnotationes in Primam Partem Divi

Thomae ( BUSalamanca , ms. 58 ). Estes três autores constituem a habitualmente designada«primeira escola salmanticense » ( integram a « segunda», Bartolomeu de Medina e DomingoBanez, pensadores condicionados pelo Capítulo Geral de 1551 em Salamanca). Aquela éavaliada por Orrego Sánchez como um « tomismo aberto », i.e., «um `tomismo essencial'que procura distinguir, primeiro , a doutrina da fé, por um lado, da doutrina especifica-

mente tomista, por outro lado; segundo , o fundamental do derivado ou secundário, nasteses do Aquinate; e terceiro, o próprio São Tomás da escola tomista» (p. 114). Podemosassim perseguir de perto o caminho que une a Paris do século XIII à Salamanca do séculoXVI, via que exige a menção de, pelo menos, Henrique de Gand, Egídio Romano, DunsEscoto, Capréolo, Ockham, Gregório de Rimini, Soncinas, o Ferrariense e sobretudoCaietano. Contudo, como não podia deixar de ser, o que interessa a OS é, primeiro, adeterminação dos autores e dos temas gerais que permitem a identificação de uma«metafísica salmantina » e, depois, compreender o seu conteúdo , que expõe sistematica-mente . No primeiro fito, encontramos , como aliás se percebe já pela lista dos temas tradu-zidos e editados em apêndice, o lugar privilegiado da Suma Teológica Ia (com relevo paraq. 3, a.4) e III' (mormente q. 17, e seus temas cristológicos). Sobre esta metafísica quesurge do próprio núcleo da teologia, acresce a informação de um percurso histórico-lite-rário, correcto e actualizado, por autores como, além dos já mencionados acima: Pedro deSotomayor, Maneio de Corpus Christi, João de Guevara (como é sabido estes dois últi-mos contam-se entre os principais mestres de F. Suárez), Francisco Zumel, João Vicente

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de Astorga, Diego Mas e Pedro de Ledesma, estes dois últimos considerados autores detratados sistemáticos de metafísica (sobre este tópico vd. pp. 47, 57, 103). É claro que,não obstante a importância que OS confere à necessidade deste seu estudo para se com-preender o carácter de charneira que atribui às Metaphysicae disputationes de F. Suárez,a metodologia parece -nos por si só insuficiente , haja em vista a obra de Pedro da Fonse-ca, anterior à de Suárez e por este tida em consideração . Seja como for, compreendemosque a investigação de OS é mais regional e «escolar», cumprindo, deste ponto de vista,tudo aquilo a que se propôs. Salienta-se , por isso, a tese nuclear da obra (pp. 113-292),em que OS acompanha com acribia e indiscutível minúcia interpretativas o pensamentodos três autores que formam o objecto material da sua dissertação, a fim de descortinar ostraços distintivos da ontologia salmanticense: a recusa da distinção real ('como uma coisade outra ') no quadro da inseparabilidade e intimidade da essência e do ser no ente; a dis-tinção propriamente real da essência e do ser nas criaturas ; a inclusão extrínseca do ser noente criado ; a negação do ser como ' parte ' do ente; por fim, a articulação de interioridadee exterioridade numa nova formulação da distinção real. Como está bem de ver , não é esteo lugar para discutirmos pormenorizadamente a interpretação de pontos tão sensíveis, emesmo subtis, numa proposta que visa ( e consegue ) sobretudo evidenciar a riqueza daprimeira fase da metafísica que se fazia em Salamanca em torno do ensino de textos teo-lógicos capitais de São Tomás . A complexidade histórica deste problema é por demaisevidente, e não sabemos se o A. foi capaz de a resolver de forma definitiva , haja em vistaa clara pluralidade de perspectivas mesmo dentro de uma só escola. Todavia, unia coisapodemos asseverar , a sua competência para, outrossim , resolver, quiçá definitivamente, acomplexidade literária do problema em causa, descoberta só possível , não tanto pelo seuponto de partida teórico-hermenêutico ( os trabalhos de C. Fabro dos anos 50 e 60, a quese opõe com maior ou menor felicidade ), quanto pela nova perspectiva formal que nosdeixou. Esta decorre directamente daquelas críticas que, como as de Fabro , tendiam asubestimar a produção em causa lançando-lhe a pecha do obscurecimento da noção tomasinade «esse» . Para terminar , lembremos tão-só, para suscitar o interesse para a leitura destemagnífico trabalho entre nós, como a escola de Salamanca sempre esteve ligada à escolade Coimbra , facto também testemunhado pelos manuscritos, alguns, que o A . mostra conhe-cer (mas talvez em segunda mão, via Kennedy ), e provenientes de Portugal. É o caso deBNL 3.023 e da Biblioteca da Ajuda 44-XII-20 (que o A. prova não serem atribuíveis aVitória), além do Ms. 123-1-17 da Biblioteca Pública de Évora e, da autoria de Pedro deLedesma, BNL 4 . 951. Estamos , no entanto , em condições de testemunhar , que OS acabade alargar a sua pesquisa nas Bibliotecas lusitanas ( especialmente a da Universidade deCoimbra e a Pública de Évora ), encontrando - se agora em condições de contribuir aindamais para o conhecimento dos laços que unem as duas «escolas » ibéricas.

Mário Santiago de Carvalho

Emmanuel Faye , Heidegger 1'introduction du nazisme dans la philosophie :

autour des séminaires inédits de 1933-1935, Paris, Albin Michel, 2005,

567 pp.

O recente livro de Emmanuel Faye, Heidegger, l'introduction da nazisme dons Ia

philosophie , inscreve- se na continuação de um conjunto de estudos elaborados e publicados

com a intenção de - através de uma metodologia próxima de um jornalismo sensacionalista

- desacreditar a personalidade e o pensamento de autores alemães que , sobretudo na década

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de 30 do século XX, por diferentes razões, tiveram relações de simpatia, ou de pelo menos

não hostilidade manifesta, com o regime nacional - socialista . O método é simples e poderia

ordenar - se em quatro fases principais . Em primeiro lugar, surge o anúncio de um escrito

inédito ou esquecido , ingenuamente ignorado por incautos ou deliberadamente ocultado

por apologetas , que trará clareza sobre as reais intenções do autor visado , assim como

sobre o verdadeiro sentido de toda a sua obra . Para além do presente livro de Faye sobre

Heidegger , na sua alusão aos "seminários inéditos de 1933 - 1935", o também recente livro

de Yves-Charles Zarka sobre Carl Schmitt 1 (/n détail nazi duns la pensee de C'arl Schmitt,

Paris, PUI , 2(1051 constitui o exemplo riais eloquente deste anúncio . l?m segundo lugar,

procede-se a wna abordagem de alguns passos da obra do autor , relidos de uma forma

catártica, em interpretações que são - lendo em conta a mera leitura da obra -- insustentá-

veis, mas que são, a cada passo, apoiadas quer pela manifestação de um sentimento de

indignação , quer pelo frequente uso de adjectivos como " odioso" , " monstruoso ", " peri-

goso", "brutal", "nazi", atribuídos ao autor e à sua obra . Em terceiro lugar, é a própria

biografia do autor que é considerada : em geral, nada de novo ou de desconhecido se acres-

centa, mas a biografia deve ser agora reavaliada em função do escândalo provocado pela

pretensa nova descoberta . Abre- se aqui o terreno para a especulação mais imaginativa.

Finalmente , em quarto lugar, retira - se a conclusão da análise , fundada quer na pretensa

novidade da documentação apresentada , quer na releitura da obra à luz do escândalo sus-

citado por esta mesma documentação : a obra de um tal autor não pode ser estudada como

uma obra jurídica , ou literária, ou filosófica, mas deve ser considerada antes apenas como

um testemunho documental do nazismo.

Consideremos então o livro de Faye segundo estas quatro fases , mas seguindo a ordeminversa à sua enumeração . Antes de mais , pode-se dizer que a conclusão que Faye retirada sua análise é absolutamente explícita, sendo repetida e relembrada em vários passos:«O estudo aprofundado dos seus escritos revelou-nos progressivamente que, longe demarcar unicamente a linguagem , a realidade do nazismo com que fomos confrontados lendoHeidegger inspirou na sua integralidade e alimentou até às suas raízes a sua obra, de talmodo que já não é possível dissociá-la do seu envolvimento político» (p. 18). E esta con-clusão tem, na perspectiva de Faye , consequências . Por um lado, as investigações acercado pretenso nazismo intrínseco à integralidade da obra conduzem Faye «a pôr em questãoa própria existência de uma "filosofia " de Heidegger» (p. 444). Por outro lado, essasmesmas investigações convidam Faye a escandalizar - se pela presença das Obras Comple-tas de Heidegger ( Gesamtausgabe ) em bibliotecas de filosofia , na medida em que «não éoutra coisa que uma conjura do espírito nazi aquilo de que os seus escritos preparam oadvento » ( p. 455 ). Do mesmo modo que havia uma discussão , na Alemanha dos anos 30,acerca da catalogação de autores judeus nas bibliotecas , surgindo a sugestão da criação deuma secção intitulada "judaica ", dir-se - ia que Faye se prepara para sugerir a criação deuma secção intitulada "nazismo ", onde deveriam ser depositadas as obras de autores comoHeidegger , Carl Schmitt , Erik Wolf, Oskar Becker ou Ernst Jünger.

A tese fundamental acerca do nazismo intrínseco a toda a obra de Heidegger, a qualestá para o desenvolvimento do livro não propriamente como uma conclusão , mas comoum pressuposto, conduz Faye a considerar a vida de Heidegger, particularmente o períododo seu reitorado na Universidade de Freiburg ( sobretudo nos capítulos 2 e 3), fundamen-talmente a partir dos trabalhos de Hugo Ott . A adesão de Heidegger ao Partido Nazi(NSDAP ) e o episódio do reitorado , assim como o seu empenho em articular a chamadaMachtergreifung nacional-socialista com a sua contraposição a uma "filosofia dasubjectividade ", são referidos aqui como manifestações de um nazismo que perpassa pelospassos da vida e obra de Heidegger antes mesmo da nomeação de Hitler por Hindenburg,em Janeiro de 1933 . Contudo , a argumentação de Faye é , no que diz respeito à sustentação

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Recensões 421

desta tese, extremamente frágil. É certo que Faye se afasta das especulações de VictorFarías, no seu conhecido livro Heidegger e o nazismo, acerca das pretensões de Heideggerde fazer dentro do Partido Nazi uma defesa das SA, cujo poder se desvanece em 1934 (p.241). Contudo, se ele reconhece assim, honestamente, que não é possível encontrar qual-quer base documental para tais especulações, este reconhecimento apenas dá lugar a novasespeculações com idêntica falta de sustentação. É assim que, por exemplo, Faye sugere -conjugando os factos de Heidegger ter tido o Semestre de Inverno de 1932-1933 comosemestre livre, assim como de escrever a Elisabeth Blochmann dizendo ter nesse período«importantes actividades universitárias entre outras» (p. 98) ou de escrever a Bultmann,em 1932, no período de maior crise e instabilidade na República de Weimar, afirmando terpreocupações políticas (pp. 245-246) - que Heidegger pode ter aproveitado o tempo livrepara se aproximar do movimento nazi e do próprio Hitler, escrevendo alguns dos seusdiscursos. Não é aqui apresentado qualquer documento que sustente uma tal hipótese, anão ser a semelhança de terminologia que é sobretudo epocalmente determinada, mas aconfirmação de uma tal sugestão é apresentada por Faye como um trabalho «que seriaindispensável realizar um dia» (p. 244).

O tratamento por Faye da obra de Heidegger é, do mesmo modo que os aspectos dasua biografia, guiado fundamentalmente pela tentativa de desmascarar o seu pretenso —nazis-mo" enraizado e escondido. No fundo, uma tal tentativa baseia-se apenas no estabeleci-mento de uma associação directa entre a recusa por Heidegger de partir do ente humanocomo sujeito e consciência, tal como aparece no seu distanciamento em relação àfenomenologia de Husserl e na sua determinação do Dasein como ser-no-mundo, por unilado, e a defesa de uma redução do homem a mera expressão individual de uma comuni-dade que o subordina e violenta, por outro. Para Faye, a recusa por Heidegger de encarara essência do homem como sujeito não poderia deixar de implicar uma absolutização dacomunidade, resultando daí necessariamente urna perspectiva racista e viilkisch sobre ohomem. É assim que, na sua abordagem de Sein und Zeit, o §74 é encarado como o centroda própria obra, na medida em que o estar-lançado (Geworfenheit) do Dasein, enquantoser-com (Mitsein), ganha aqui a forma de uma comunidade na qual é partilhado um des-tino comum (Geschick): para Faye, esta alusão por Heidegger à comunidade significa, aomesmo tempo, «a vontade de destruir o pensar do eu» e a defesa da «indivisibilidadeorgânica da Gemeinschaft do povo» (p. 32). Na verdade, uma abordagem de Sein undZeit que não seja toldada por pressupostos previamente assumidos permite inviabilizar ainterpretação de Faye: ao longo de toda a sua obra, Heidegger afirma explícita e repetida-mente que o Dasein não é nem o homem enquanto sujeito individual, nem uma comunidadeenquanto ente humano colectivo, mas o próprio ser que - na sua irredutível diferença emrelação ao ente - acontece no "aí" de uma história.

A confrontação de Heidegger com o biologismo, que traz implícita uma confrontação

com o racismo nacional-socialista, expressa justamente esta recusa de Heidegger em fazer

um ente - seja o sujeito humano individual, seja uma qualquer comunidade de homens -

ocupar o lugar do ser. Ao pressupor que a recusa por Heidegger da representação do homem

como sujeito implicaria uma configuração da comunidade como todo orgânico unido pelo

"solo" e pelo "sangue", e a consequente elevação desta comunidade ao estatuto de "valor

supremo", Faye não pode deixar de afirmar que a confrontação de Heidegger com o

biologismo não significa, no essencial, uma confrontação crítica com o nazismo: a con-

frontação de Heidegger com o biologismo teria apenas o significado de uma confrontação

com uma compreensão liberal e darwiniana da vida, vigente numa esfera anglo-saxónica,

e não de uma crítica ao racismo e a uma perspectiva võlkisch da comunidade (pp. 161 e

ss.). A ânsia de provar uma tal tese - desmentida pela simples leitura da obra de Heidegger

- conduz Faye a atribuir a algumas passagens desta mesma obra um sentido exactamente

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contrário àquele que elas possuem . Veja-se , por exemplo , o comentário de Faye à seguintepassagem dos textos de Heidegger sobre Ernst Jünger, publicados em 2004 no volume 90das Gesamtausgabe : «O homem não é menos sujeito , mas é- o mais essencialmente , quandose concebe como nação , como povo , como raça , como unia humanidade posta de qualquermodo sobre si mesma». Diante de uma tal passagem , onde se toma clara a crítica de Heideggerà proposta võlkisch de estabelecer o povo ou a raça como ente supremo e centro desse mesmoente, a Faye apenas se lhe oferece observar : « Na enumeração dessa frase , a raça é apresen-tada como unia maneira perfeitamente legítima de conceber o homem» (p. 475).

li na sua insistência em encontrarem Heidegger a defesa de um pensamento vólkische de uni racismo biologista ( de uma "biologia alemã" e não de unia "biologia darwinianae anglo-saxónica ) que a argumentação de Fayc se revela mais frágil. E esta fragilidaderesulta de dois pontos fundamentais . Por um lado, é sabido que os principais dirigentesnazis concebem o nazismo como uma doutrina biológica, chegando Rudolf Hess acaracterizá - lo como "biologia aplicada' : assim, se ele surge como uma "biologia" destinadaa proteger a estrutura orgânica da comunidade de povo, um pensamento que conteste àcomunidade - como a qualquer ente individual e colectivo - o estatuto de "senhor doente ", criticando neste contexto o "biologismo ", não pode deixar de aparecer como imedia-tamente crítico daquilo a que se poderia chamar a °biopolitica " nacional-socialista. QueHeidegger tenha esperado entusiasticamente do nacional - socialismo, nos seus momentosiniciais, uma ultrapassagem da "metafísica liberal", em que é o homem individual e não acomunidade que aparece como " senhor do ente", em nada diminui a importância do seuconfronto com o racismo biologista e o pensamento vôlkisch desse mesmo nacional - socia-lismo, confronto esse pelo qual ele critica explicitamente o pensamento vdlkisch por par-ticipar da mesma essência que o pensamento liberal . Por outro lado, nas lições entre osanos de 1933 e 1935, que Faye analisa no seu livro ( capítulo 4 ), juntamente com passa-gens que tornam patente as suas esperanças em relação ao movimento nacional - socialista,assim como a importância dada à política concebida como acção edificadora de um Estado,em articulação com o poetar e o pensar (p. 174), é possível encontrar passagens em quea confrontação de Heidegger com o biologismo nazi emerge já de forma clara . Considere-se, por exemplo , a crítica que Heidegger dirige a Erwin Guido Kolbenheyer a 30 de Janeirode 1934, exactamente um ano após a nomeação de Hitler por Hindenburg (cf.Gesamtausgabe , vols. 36/ 37, p. 210 ); ou a retoma das críticas a Kolbenheyer nas liçõesdo Semestre de Inverno de 1934 - 35, às quais se juntam então críticas a Spengler e mesmoa Alfred Rosenberg (cf. Gesamtausgabe, vol. 39, pp. 26-28). A fragilidade da argumen-tação de Faye , na sua proposta infundada de que a crítica de Heidegger ao biologismo nãotraduz uma crítica ao racismo võlkisch e à "biopolitica" nacional-socialista , traduz-se sobre-tudo no facto de o livro nem sequer mencionar passagens centrais como estas.

Em vez de partir daquilo que Heidegger efectivamente diz sobre o nacional - socialismoe o biologismo , a análise de Faye centra- se sobretudo na terminologia usada : para Faye,a linguagem e terminologia usadas por Heidegger , ao usar termos como Stamm , Gestalt,Art, Geschlecht -segundo Faye, com base não se sabe em que fontes, Heidegger preferi-ria Geschlecht a Rasse por causa da origem latina desta última ( p. 162) -, são já manifes-tações óbvias do seu racismo e da sua "visão do mundo" nazi . Neste domínio , é importanteobservar que o vocabulário político do nacional-socialismo cunhou termos - comoVolksgenosse ou Volksgemeinschaft , por exemplo - que se tornaram correntes na lingua-gem alemã da época . Contudo, importa notar também que muitos termos políticos presentesno contexto do aparecimento do Estado nacional - socialista são termos comuns - o própriotermo Führer é corrente na República de Weimar e significa simplesmente "líder" - e que,consequentemente , a sua utilização diz pouco acerca do pensamento do autor que os usa.No desenvolvimento da sua análise , a concentração de Faye sobre alguma terminologia

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Recensões 423

usada pelo Heidegger dos anos 30 leva-o a estabelecer associações inteiramente arbitrári-as e sem qualquer sentido . O melhor exemplo deste tipo de associações encontra-se numareflexão de Faye acerca da palavra "guardião" (Hüter), usada por Heidegger tanto no seudiscurso do reitorado como em seminários e cursos . O emprego de um tal termo conduzFaye à seguinte observação : «"Guardião" (Hüter) é uma palavra que então se encontraempregue num contexto racial ou político : o raciólogo nazi Hans K. Günther publica assim,em 1928, uma apologia do eugenismo racial sob o título Platão como guardião da vida(Platon als Hüter des Lebens), e Carl Schmitt, em 1929, O guardião da constituição(Der Hüter der Verfassung), com uma edição aumentada em 1931 , onde descreve pelaprimeira vez a "viragem para o Estado total" (Wendung zum totalen Staat)» (pp. 202-203). Faye joga aqui manifestamente com o desconhecimento pelos seus leitores das obraspor si mencionadas , pois a simples leitura de tais obras conduzi-los - ia obviamente à con-clusão de que elas não têm qualquer relação nem entre si, nem com a obra de Heidegger.No caso de Carl Schmitt, a alusão ao "guardião da constituição' consiste na proposta decompreender o art. 48° da Constituição como uma atribuição ao Presidente do Reich da

tarefa de usar quaisquer medidas excepcionais para restabelecer a ordem e a segurança noEstado, e para defender a própria Constituição: em 1932, Schmitt identificará explicita-

mente a proibição das milícias paramilitares nazis pelo Presidente Hindenburg e pelo governo

de Brüning, a 13 de Abril de 1932 (cf. Legalitãt und Legitimitãt, Berlim, Duncker &Humblot, 1993, p. 68), como uni exemplo do exercício pelo Presidente do seu papel de

"guardião da constituição". Além disso, em Der Hüter der Verfassung, o conceito de

"Estado total" aparece certamente pela primeira vez; contudo , ele surge associado não a

uma defesa do nazismo ou de um Estado étnico racialmente homogéneo , mas à crítica de

um "Estado total de partidos", ou seja, à crítica de uma situação política na qual o Estado,

não tendo autoridade suficiente para se distinguir da sociedade, era ocupado por organiza-

ções e movimentos sociais que, como era o caso do Partido Nazi ou do Partido Comunista,

procuravam politizar a totalidade da vida social. Aliás, se fosse necessário provar o absurdo

de partir do termo Hüter para associar as obras de Schmitt e de Heidegger a um "contexto

racial", poder-se-ia também evocar a resposta de Hans Kelsen ao livro de Carl Schmitt:

seria estranho que Kelsen , um autor judeu e liberal, tivesse empregue justamente um tal

termo, pretensamente marcado por um "contexto racial ", para publicar, na sua polémica

com Schmitt, o texto Wer soll der Hiiter der Verfassung sein?. Tais associações

terminológicas têm tanto sentido como meditar sobre a eventualidade de a palavra alemã

para "carta de condução" (Führerschein) conter em si, de forma oculta, uma evocação do

Führerprinzip.

Nos capítulos 5 e 8, Faye procede à análise dos dois seminários inéditos de Heidegger

que dão motivo ao subtítulo do livro: respectivamente , o seminário do Semestre de Inverno

de 1933-34, intitulado Ober Wesen und Begriff vou Natur, Geschichte und Staat [Sobre a

essência e o conceito de natureza , história e Estado], e o seminário do Semestre de Inverno

de 1934-35, intitulado Hegel, über deu Staat [Hegel , sobre o Estado]. Os excertos citados

por Faye permitem inferir que não se trata de textos irrelevantes para a consideração da

obra de Heidegger . Eles manifestam , por um lado , o empenho de Heidegger - já ampla-

mente documentado por estudos biográficos - na construção do Estado nacional-socialista,

e a sua esperança na adopção de uma alternativa política à vida pública (Offentlichkeit) de

uma sociedade liberal e "inautêntica". Mas, por outro lado, tais excertos contribuem sobretu-

do para compreender o modo como Heidegger pensa o Estado nacional - socialista a que

adere em 1933. E é nesta compreensão que Faye parece não estar minimamente interessado,

na medida em que aparece exclusivamente movido pela tentativa de provar, independente-

mente do que de facto digam os textos, a tese "inquestionável " do pretenso racismo e anti-

semitismo de Heidegger.

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424 Revista Filosófica de Coimbra

Os presentes seminários têm lugar num contexto em que, dentro do Estado nacional-so-

cialista, existe uma polémica acerca da relação entre o Estado e o povo, assim como acerca do

papel de Hegel enquanto pensador do Estado. Uma posição vdlkisch , vinculada a uma 'orto-

doxia' nacional-socialista, concebia o Estado como um mero aparelho instrumental do povo,

e o povo como um sujeito idêntico a si mesmo, como uma substância política orgânica, étnica

e racialmente homogénea . Uma segunda posição, partindo de Hegel , procurava garantir a

institucionalidade e transcendência do Estado em relação ao povo, opondo- se, mais ou menos

explicitamente, à colocação do povo como uni sujeito absoluto. Nesta polémica, a posição de

('ara Schniiit poderia ser ciuacierizada conto unia tentativa de introduzir uni meio-termo que

nacional-socialista: assim,compatibilizasse a instilucionalidade do Estado com a "ortodoxia"em Sitiai, &'iie,qun,ç, biilk, ao mesmo tempo que é negado ao povo o estatuto de sujeito polí-

tico, sendo assim rejeitada qualquer posição iYilkiSCh diante da crítica de nazis "ortodoxos"

coro Otto Koellrcutter ou mesmo Alfred Rosenherg, Schmitt não alude já ao "Estado total",

mas introduz uni terceiro elo - o movimento - como elemento que, extrínseco ao Estado,

deveria articular este mesmo Estado com o povo. No contexto de uma tal polémica, os semi-

nários comentados por Faye mostram que Heidegger assume uma posição sobre o Estado

próxima da de Erik Wolf ou Emst Forsthoff, caracterizada quer pelo apoio à construção de um

"Estado total" que fosse o contrário do "Estado total de partidos" do liberalismo, quer pela

rejeição de uma concepção vülkisch e racista do Estado, na qual este não fosse senão, como

dizia Alfred Rosenberg, um mero instrumento ao serviço da vida do povo.

Na sua ânsia de apresentar provas documentais acerca do pretenso racismo e anti-

semitismo de Heidegger, Faye descura completamente o tratamento teórico dos seminári-

os. É por isso que, em vez de procurar distinguir e caracterizar as posições próprias de

autores como Alfred Rosenberg, Alfred Baeumler, Carl Schmitt ou Erik Wolf, mostrando

as suas aproximações mas também as suas diferenças irreconciliáveis , e tentando articular

com estas os seminários heideggerianos , Faye se contenta com caracterizar tais autores

como pura e simplesmente "nazis", procurando depois mostrar como Heidegger se encon-

traria próximo desse todo pretensamente homogéneo . É assim que decide juntar , como um

todo homogéneo, Heidegger, Carl Schmitt e Alfred Baeumler (capítulo 6); ou, tambémcomo um todo homogéneo, Heidegger, Erik Wolf, Carl Schmitt e Alfred Rosenberg (capí-tulo 7), partindo aqui até do princípio de que seria possível a um jurista como Wolf ser "dis-cípulo", ao mesmo tempo, de autores tão antagónicos como Rosenberg e Schmitt (p. 299).Deste modo , no seu livro , Faye identifica algumas passagens importantes dos seminários deHeidegger, mas, preocupando-se apenas por manifestar o seu escândalo com as formulaçõesencontradas, falha inteiramente na compreensão do seu significado e relevância.

A falta de compreensão dos textos que analisa mostra-se, antes de mais, no que dizrespeito ao primeiro seminário tratado, na sua abordagem do paralelo estabelecido porHeidegger entre a relação ser-ente e a relação Estado-povo. No contexto da polémica quereferimos, a alusão ao povo como um ente que deveria ser entendido apenas como ente eque, nessa medida, não poderia ser posto no lugar do ser, e a crítica manifesta à proposta deautores que, como Rosenberg, viam no Estado apenas um instrumento ao serviço daabsolutização do povo, consiste manifestamente numa rejeição da proposta vdlkisch de pensarum povo étnica e racialmente homogéneo como um "valor" absoluto . Contudo, em vez dededicar atenção ao sentido que o paralelo traçado por Heidegger assume, quer como mani-festação de uma concepção autoritária e anti - liberal do Estado na sua relação com o povo,quer como manifestação de uma crítica a uma concepção vdlkisch do povo na sua relaçãocom o Estado, Faye apenas se preocupa por exprimir um sentimento de escândalo por umapassagem que se lhe torna , nessa medida , incompreensível (p. 217).

No que diz respeito à análise do segundo seminário, a incompreensão de Faye torna--se ainda mais patente. A frase escolhida como epígrafe do capítulo 8, a qual contém,

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Recensões 425

como correctamente assinala Faye (p. 377), uma crítica a uma passagem de Staot,Bewegung, Volk de Carl Schmitt, dá já uma indicação suficiente da posição de Heideggerno seio da contenda entre uma concepção vülkisch e uma concepção "hegeliana" do Estado:«Diz-se que em 1933 Hegel morreu; pelo contrário, foi só então que ele começou a viver»(p. 333). As passagens do seminário citadas por Faye demostram exaustivamente a preo-cupação de Heidegger em assinalar a necessidade de garantir, dentro do Estado nacional-socialista, a racionalidade e a institucionalidade do Estado, distinguindo-o quer da sua con-cepção como mero instrumento da homogeneidade de um povo absolutizado por uma "visãodo mundo" vólkisch, quer da sua concepção como assente exclusivamente no princípio docarisma pessoal do Führer. É obviamente neste sentido que se podem compreender pas-sagens do seminário como as seguintes: «Esquece-se que o Estado deve existir para alémde cinquenta ou cem anos. Mas então ele tem de ter algo a partir do qual exista. Ele sópode existir pelo espírito. O espírito, no entanto, é transportado por homens. Mas os homenstêm de ser educados» (pp. 343-344); «Dentro de sessenta anos, o nosso Estado certamentejá não será levado pelo Führer, e o que então acontecerá depende de nós» (p. 346). Con-tudo, apesar do sentido manifesto de tais passagens, e do interesse que elas relevam parao esclarecimento da relação do pensamento de Heidegger com o nacional-socialismo, Fayeextrai delas apenas a seguinte conclusão: «Vê-se que o objectivo afirmado desse seminário[sobre Hegel] é o mesmo que o de 1933-1934: a perenidade do Estado instituído pelo IIIReich» (p. 344). Com a pobreza e distorção da conclusão mostra-se, com suficiente evidên-

cia, toda a pobreza e unilateralidade da análise.

De um modo geral, o estudo de Faye vale sobretudo pela sua preocupação por uniareconstituição do ambiente intelectual em que Heidegger se movia nos anos 30, assim

como de algumas das suas relações, reconstituição essa que, na sequência dos estudos deVitor Farías e de Hugo Ott, é útil para a compreensão do seu pensamento e do contexto

em que este se integra. Neste sentido, a investigação acerca das relações de amizade entre

Heidegger e pensadores de algum modo ligados ao nacional-socialismo, assim como acer-

ca das suas polémicas explícitas ou implícitas com outros, constitui uni contributo impor-

tante para o estudo da filosofia heideggeriana. Inaceitável é, no entanto, o pachos em que

Faye coloca o seu estudo, assim como a utilização de toda a investigação, através das

interpretações mais descabidas e unilaterais, como mero reforço de um sentimento de es-

cândalo. E mais inaceitável ainda a conclusão que, adivinhando-se em cada página, Faye

torna explícita no final do livro: «Uma tal obra [de Heideggerj não pode continuar a figu-

rar nas bibliotecas de filosofia: ela tem antes o seu lugar nos fundos de história do nazis-

mo e do hitlerismo» (p. 513). Com uma tal conclusão, a qual constitui, ao mesmo tempo,

o ponto de partida e o ponto de chegada do seu discurso, Faye transforma aquilo que

poderia ser um estudo sério sobre a relação entre a filosofia e a política na obra de

Heidegger numa proposta de saneamento absurda e persecutória.

Alexandre Franco de SÓ

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ÍNDICE 2005Artigos

Alain David - Penser I'époque avec Lévinas et Derrida ........... 349

Alexandre Costa - Zenão de Eleia e o exercício aa filosofia atra-vés do paradoxo: um ensaio acerca da intenção filosófica dadialéctica zenónica ............. ................................ ................... 255

Amândio Coxito - Luís A.Vernei e Claude Buffier: dois filóso-fos do senso comum ..................................................................... 3

Andrzej Wiercinski - Poetry between concealment and unconceal-ment ................................................................................................. 173

Carlos Morujão - A Logica Modernorum: Lógica e Filosofia daLinguagem na Escolástica dos Séculos XIII e XIV ................ 301

Diogo Ferrer - Filosofia Transcendental e Universidade. O PlanoDedutivo para um Instituto de Ensino Superior a Estabelecerem Berlim de Fichte ...................................................................... 275

Diogo Ferrer - Hegel e as Patologias da Ideia .......................... 131

Giannina Burlando - Recepción suareciana de Aristóteles: per-cepción, representación v verdad ............................................... 323

Henrique Jales Ribeiro - Russell, Wittgenstein e a ideia de uma"linguagem logicamente perfeita " ............................................ 81

Mário Santiago de Carvalho - Metamorfoses da ética peripatéti-ca Estudo de um caso quinhentista conimbricense: As Disputassobre os livros da `Ética a Nicómaco' ....................................... 239

Mário Santiago de Carvalho - Sobre as origens dos paradigmasmodernos do universalismo e do individualismo (a propósito

de `cidadania' e `cultura') ........................................................... 43

Moisés de Lemos Martins - Espaço público e vida privada ... 157

Estudo

José Reis - O Tempo em Heidegger ............................................. 369

Recensões .................................................................................. 227, 415

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Revista Filosófica de Coimbra ISSN 0872-0851

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Director: Diogo Ferrer

Coordenação Redactorial: António Manuel Martins e Luísa Portocarrero F. Silva

Conselho de Redacção: Alexandre F. O. Morujão, Alexandre F. de Sá, Alfredo Reis,

Amândio A. Coxito, Anselmo Borges, António Manuel Martins, António Pedro

Pita, Carlos Pitta das Neves, Diogo Falcão Ferrer, Edmundo Balsemão Pires,

Fernanda Bernardo, Francisco Vieira Jordão, Henrique Jales Ribeiro, João Ascenso

André, Joaquim das Neves Vicente, José Encarnação Reis, José M. Cruz Pontes,

Luís A. F. C. Umbelino, Luísa Portocarrero F. Silva, Mariana Ramos Themundo,

Mário Santiago de Carvalho, Miguel Baptista Pereira.

Capa: Ana Rosa Assunção

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