formação das universidades medievais - educação medieval

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL ANTONIO CESAR ABDALLA CHIARADIA FORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: UNIVERSIDADE DE COIMBRA E ESTATUTOS UNIVERSITÁRIOS DE 1559 FRANCA 2009

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Page 1: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

ANTONIO CESAR ABDALLA CHIARADIA

FORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: UNIVERSIDADE DE

COIMBRA E ESTATUTOS UNIVERSITÁRIOS DE 1559

FRANCA

2009

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ANTONIO CESAR ABDALLA CHIARADIA

FORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: UNIVERSIDADE DE

COIMBRA E ESTATUTOS UNIVERSITÁRIOS DE 1559

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade

de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual

Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção dos

títulos de Bacharel e Licenciado em História.

Orientadora: Vânia de Fátima Martino

FRANCA

2009

Page 3: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

Dedico este trabalho primeiramente a Deus,

Trindade Santa, Uno e Indivisível em sua essência,

mas Trino em suas Pessoas.

Em segundo lugar à Virgem Santíssima,

Mãe de Deus, minha Mãe e Senhora minha.

Por fim à minha família e a todos os que lerem este trabalho.

Page 4: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

AGRADECIMENTOS

Agradeço antes de tudo a Deus, criador dos céus e da terra, que na pessoa divina de Nosso

Senhor Jesus Cristo obteve aos homens a salvação eterna. Sem Deus jamais estaria aqui,

como ser vivente e animado por uma alma racional. Agradeço-o por tudo que me deu em

minha vida, na ordem temporal e espiritual. Agradeço-o por ter-me feito cristão e assim me

dado a graça de servi-lo com minhas orações, ações, trabalhos e sofrimentos. Agradeço por

sua magnífica misericórdia, graça, Providência e paciência, apesar de meus pecados. Menção

especial faço à sua Providência, que rege este mundo e a mim também e se aqui estou hoje

como estou é graças à ela.

Em segundo lugar agradeço a todos os santos e anjos do Senhor, principalmente à Virgem

Maria, por todos os benefícios que me proporcionaram em minha vida com suas orações,

proteções e devido a grande insistência dos mesmos diante de Deus. Especialmente à Virgem,

pois ela é a Medianeira de todas as graças do Senhor, a Tesoureira dos infinitos tesouros de

Deus, estes que ela dá a quem quer, como quer, quando quer e quanto quer. Com menção

especial também aos meus santos e santas de maior devoção.

Em terceiro lugar aos meus pais e às minhas irmãs, minha família doméstica, por todo o

auxílio que me prestaram nesses quatro anos de Universidade e pelos outros tantos anos de

minha existência. Grande é minha gratidão.

Em quarto lugar a todos os meus amigos que aqui em Franca pude fazer, sejam os amigos de

classe como os que dividiram o mesmo teto de onde morei. Agradeço também aos meus

amigos mais próximos de Araras-SP. Agradeço também, muito mesmo, a Deus por ter me

dado bons amigos na cidade de Volta Redonda-RJ, que contribuem muito para a minha

pessoa, bem como a outros amigos espalhados pelo Brasil, que professam a mesma fé que a

minha.

Por fim agradeço à minha orientadora, profa. Vânia, por todo o auxílio que me ofereceu neste

tempo de Universidade. Agradeço também aos bons professores de História que tive, na

Universidade e em toda a minha vida.

Page 5: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

RESUMO

Com o fim do Império Romano começa a se formar na Europa a rede escolar cristã, nascida de escolas cenobíticas (nos mosteiros) e episcopais (nas sés das principais cidades). Passado o tempo esta nova pedagogia cristã e as escolas se desenvolve qualitativamente e quantitativamente, criando novos métodos pedagógicos, que culminam com a escolástica medieval, que tem duplo aspecto, filosófico e pedagógico. Após séculos de desenvolvimento das letras e das ciências nascem as universidades medievais, onde afluíam milhares de estudantes. O estudo dessas instituições de ensino superior sempre é interessante, pois podemos ver como surgiu esta nível de ensino que dura até os nossos dias, suas características, semelhanças e diferenças para com nossas universidades atuais. Buscando um maior aprofundamento neste tema decorreu a analise da história da Universidade de Coimbra e seus estatutos de 1559. Com tal fonte se pode entender mais sobre educação medieval e sobre o ensino superior daquela época, tanto no que concerne à administração da Universidade como também nos seus estudos específicos, com exercícios próprios, graus acadêmicos e vida cotidiana dos estudantes. Tal foram os temas que procuramos analisar neste trabalho. Palavras-chave: Educação Medieval. História das Universidades. Universidade de Coimbra. História de Portugal.

Page 6: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 7

CAPÍTULO 1 O ENSINO MEDIEVAL: O NASCIMENTO DAS UNIVERSIDADES

1.1 Antecedentes históricos. Do fim da Idade Antiga até a consolidação da civilização

cristã e de uma nova pedagogia .............................................................................................. 9

1.2 Do ano 1000 até as primeiras Universidades ....................................................... 14

1.3 A formação das primeiras universidades ............................................................. 20

1.4 Detalhes da corporação universitária ................................................................... 25

CAPÍTULO 2 TRÊS MODELOS PEDAGÓGICOS

2.1 Introdução ............................................................................................................ 28

2.2 A Escolástica ....................................................................................................... 28

2.3 O Humanismo Renascentista ............................................................................... 33

2.4 A Pedagogia Jesuítica .......................................................................................... 35

CAPÍTULO 3 UNIVERSIDADE DE COIMBRA. BREVE HISTÓRIA DA

UNIVERSIDADE

3.1 Introdução ............................................................................................................ 40

3.2 Antes da fundação de 1290 .................................................................................. 42

3.3 Fundação da Universidade em 1290 .................................................................... 43

3.4 Da fundação em 1290 até 1377, início da última estadia em Lisboa................... 44

3.5 De 1377 a 1537, última estadia da universidade em Lisboa ................................ 47

3.6 Da transferência de 1537 até 1559, data dos Estatutos de D. Sebastião .............. 53

CAPÍTULO 4 ESTATUTOS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1559)

4.1 Introdução ............................................................................................................ 58

4.2 O serviço de Deus na Universidade ..................................................................... 60

4.3 A administração da Universidade ........................................................................ 62

4.4 Os Estudos na Universidade de Coimbra segundo os Estatutos de 1559 ............ 72

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 88

Page 7: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 97

ANEXOS

Anexo A ................................................................................................................................ 101

Anexo B ................................................................................................................................ 103

Anexo C ................................................................................................................................ 104

Page 8: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

7

Introdução

Ao ocaso do Império Romano do Ocidente, dado no século V, começa-se a estruturar

toda uma nova e grande rede escolar que viria dar uma nota característica do mundo

ocidental, era o surgimento mais organizado das escolas cristãs.

A grande obra pedagógica iniciada desde muito cedo pelo corpo da Igreja acabou por

construir um grandioso sistema educacional, fruto de séculos de esforço para preservar e

propagar a cultura e as ciências em meio a uma Europa bárbara, pouco ou nada afeita às

letras, que surgia com as invasões dos povos germânicos e de outros vindos de regiões

longínquas, como os Hunos de Átila, concomitantemente com a queda do Império Romano do

Ocidente.

Não deixamos de lado o que fez o poder secular, na pessoa dos nobres, príncipes e

reis, que ajudaram nesta árdua tarefa fundando escolas e até Universidades. Porém há de se

ver neste empenho o fermento dos ensinamentos evangélicos, pois grande era a dependência

desses poderes aos eclesiásticos e num assunto tão sério como a educação, que se mal feita

pode ruir uma sociedade, era natural que se desse tal encargo aos mais aptos para esta tarefa e

se deixasse decisões muito importantes nas mãos do poder mais elevado, ou seja, no papado.

Do desenvolvimento lento e gradual das escolas vieram a surgir as universidades

medievais.

Nosso trabalho pretende mostrar de forma panorâmica a educação medieval e a

formação das Universidades. Porém deste estudo geral e abrangente iremos passar para um

caso particular e específico, a história da Universidade de Coimbra, a primeira Universidade

portuguesa, nascida no século XIII.

Para aprofundar mais ainda o estudo da educação medieval e das Universidades deste

tempo nos dispomos a analisar um documento do século XVI, os Estatutos da Universidade

de Coimbra, de 1559, no qual está regulada toda a administração e programas de estudos da

Universidade.

Antes de iniciarmos a exposição faremos uma nota sobre o tempo e espaço que

analisamos. Temporalmente, segundo a divisão clássica, abrangemos o nosso estudo pelos

séculos da Idade Média até o século XVI, já, pela mesma divisão, colocado na Idade

Moderna. Porém quanto a isto não nos preocupamos em afirmar que a Universidade de

Coimbra em 1559 era medieval.

Page 9: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

8

Já há muitas décadas os historiadores viram na divisão arbitrária que se fez da história

(a mesma que coloca a Idade Média entre a queda do Império Romano do Ocidente e a queda

do Império Romano do Oriente) traços de incoerência. Esta divisão é superficial, pois muitos

fenômenos históricos se processam dentro de um longo prazo de duração; o Império Romano

caiu no século V, mas já definhava há muito tempo. Da mesma forma encaramos a Idade

Média, ela não desapareceu de um dia para o outro, muitos de seus aspectos perduraram por

séculos, como apontam os historiadores que estudam a história sob a perspectiva da longa

duração.

Assim sendo, não temos receio de afirmar que a Universidade de Coimbra era

medieval, em pleno século XVI, como as outras também eram. A educação medieval se

consolidou através de um esforço de muitos séculos e seria inocência acreditar que de um dia

para o outro ela se transformou em “educação moderna”. Vemos em Coimbra, como

demonstraremos, que os estudos eram ainda medievais, pelo método e pelas leituras.

Justificada a questão temporal, agora vamos a espacial. Neste trabalho focamos

predominantemente a Europa Ocidental, da Germânia a Portugal, da Itália à Inglaterra. As

escolas cristãs ultrapassam esses limites, é verdade, mas dentro desses limites é que podemos

ver com mais claridade as características da educação medieval bem como a formação das

universidades.

Por fim, salientamos que para facilitar a leitura optamos por traduzir todos os textos

que utilizamos para tomar notas, bem como atualizamos para o português atual a grafia dos

textos que encontramos em um português já fora de uso, salvo em alguns momentos que

preferimos manter como no original para dar uma melhor compreensão.

Dadas estas justificativas podemos começar a exposição.

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1- O Ensino Medieval: o nascimento das universidades

1.1 Antecedentes históricos. Do fim da Idade Antiga até a consolidação da civilização

cristã e de uma nova pedagogia

Para descrever o ensino da Europa Ocidental na Idade Média às vésperas da formação

das primeiras universidades deve-se fazer uma retrospectiva histórica buscando suas origens,

situação que passamos agora a descrever brevemente.

Desde a queda do Império Romano até a consolidação da cultura crista no ocidente

verifica-se um longo processo de aculturação dos povos bárbaros, que envolve muitas das

expressões da cultura ocidental, seja na língua, nos costumes, no modo de guerrear, no

trabalho rural, etc.

Assim sendo, vemos que os cristãos, herdeiros e portadores da cultura greco-romana

tiveram que lidar com novos povos que por correntes migratórias chegavam à Europa. Com o

passar dos séculos os traços da cultura antiga foram incorporados a esta nova civilização que

solidificaram a partir de vestígios do mundo romano com os rústicos e vigorosos povos

bárbaros, todos sobre a égide de novas concepções de vida pautadas no cristianismo.

Os séculos V e VI marcam a decadência das escolas do mundo clássico, formadas pela

cultura greco-romana e destinadas a reproduzir esta cultura pagã em suas várias expressões.

Estes séculos balizam também a formação das escolas cristãs com seus métodos, conteúdos e

pedagogias próprias. Neste período a cultura clássica se encontra restrita a poucos centros de

estudo no mundo ocidental, como Atenas e outras cidades do mundo greco-romano, porém

sua procura era cada vez menor e a configuração social do período não favorecia que este tipo

de escola se desenvolvesse; as formas de ensino estavam mudando.

Estes séculos marcam também a consolidação da cultura crista no Ocidente, dando

suporte para, depois de séculos, a Igreja Católica se estabilizar e ocupar as bases culturais,

políticas e administrativa do mundo ocidental, tornando-se assim a instituição mais

importante do mundo ocidental, sem mesmo concorrente à altura de suas forças e

capacidades, como era antes de Constantino Magno o Império Romano. Naquele momento a

Igreja tinha por aliados reis e imperadores que a auxiliam em seus empreendimentos.

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Neste mundo em transformação as escolas católicas apresentam-se a partir de dois

modelos distintos: a escola episcopal e a escola cenobita. As escolas episcopais, escolas

nascidas junto às sés dos bispos católicos, remontam a tempos muito antigos. Desde os

primeiros séculos da era cristas já existiam “escolas” nas principais dioceses da Ásia e da

Europa.

Estas antigas escolas, embora instruíssem um número considerável de pessoas, por sua

vez não atuavam como um sistema básico de ensino. Basicamente eram escolas catequéticas,

mais preocupadas com a instrução dos catecúmenos e de alguns estudos teológicos. Como

exemplos destacamos as cidades de Antioquia, Alexandria e Cartago, onde teólogos, nem

sempre ortodoxos, fizeram seu nome, como Orígenes(†253), autor de vasta obra, e o bispo

Tertuliano de Cartago(†222). Mesmo assim não se deve supor que ali não se ministrasse as

letras aos seus freqüentadores.

Porém com o passar dos séculos esta escolas episcopais se firmam em todo o mundo

cristão, tendo cada diocese sua própria escola, mas agora com um caráter diferente. Nesses

séculos de transição estas instituições de ensino passam a se preocupar com a formação do

futuro clero; não que antes isso fosse inexistente, em todo, porém agora esta função se torna a

mais importante, recomendada pelos Concílios. A exemplo disto observamos dois textos de

concílios regionais, um de Toledo (527) na Espanha e outro de Vaison (529) na França,

respectivamente:

As crianças destinadas por vontade dos pais, desde os primeiros anos da infância à missão do sacerdócio, logo que sejam tonsuradas ou recebidas para exercer os ministérios eclesiásticos, devem ser instruídas pelo preposto na casa da Igreja, à presença do bispo. Todos os padres constituídos para presidir as paróquias, seguindo o hábito que é oportunamente observado na Itália, acolham nas próprias casas leitores mais jovens e procurem, alimentando-os espiritualmente como bons pais, ensinar-lhes os salmos, acostumá-los às divinas leituras e instruí-los na lei do Senhor, de modo que possam providencias bons sucessores para si mesmos e, assim, receber de Deus os prêmios eternos.

Sobre estas citações Manacorda ainda conclui que:

Ambos os concílios sugerem também que os adolescentes, atingida a idade de dezoito anos, tenham a liberdade de optar entre o matrimonio e o sacerdócio. Assim, a formação dos sacerdotes era também uma forma possível de instrução de leigos. (MANACORDA, 1996, p. 116)

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Exemplifica-se o ensino ministrado por obra do clero secular, eminentemente nas

cidades e com a finalidade já indicada. Porém as características do ensino feito pelo clero

regular, dos monges cenobitas, era um pouco diferente da iniciativa do clero secular.

O século VI marca o nascimento da grande Ordem Beneditina, sobre a Regra de São

Bento escrita por volta do ano de 529, como sendo um conjunto de regras para a vida num

mosteiro beneditino. Já muito difundidos no oriente, a partir de então novos mosteiros

florescem no ocidente, predominantemente nos ambientes rurais, afastados dos rebuliços das

cidades para maior comodidade da observância da vida monástica. Assim os beneditinos se

tornam hegemônicos na vida cenobita no ocidente, abrangendo com seus mosteiros parte

muito grande da Europa. Estima-se que no início do século XVI havia 37.000 mosteiros

espalhados por toda a Europa (ALSTON, online).

As prescrições da Regra, como aborda Manacorda, (1996, p. 116-120), embora não

mencione explicitamente o aprendizado das letras e outras ciências, aponta na direção em que

os monges eram instruídos nas letras. Observa-se, por exemplo, o parágrafo 38 da Regra de

São Bento explica o oficio do leitor semanal, indicando a obrigação de se fazer as pias leituras

nas horas das refeições.

Outro exemplo está no parágrafo 55. Neste parágrafo São Bento determina que o

abade providencie o necessário para os monges. Dentre os objetos citados, encontram-se

aqueles utilizados para a aprendizagem, como o estilo (graphium) e as tabulinhas (tabulas),

conhecidos como o “lápis e caderno” nos dias atuais. Conclui-se que os mosteiros beneditinos

ofereciam algum tipo de instrução.

O que não é possível dizer é se os adultos ou apenas as crianças eram instruídos nas

letras. Sabe-se que fora os adultos que abraçavam a vida monástica, haviam as crianças, que

eram levadas pelos pais ao mosteiro para que fossem educados para o monacato, os chamados

“oblatos” (oblati). Acredita-se que o primeiro deles tenha sido São Mauro, entregue ao

próprio fundador da Regra.

Embora não diga explicitamente, é muito provável, se não certo, que os oblatos eram

educados nas letras, isso deriva das próprias necessidades do mosteiro (leitores, sacerdotes,

outros professores, copistas, futuros missionários de outras regiões, etc.) e das próprias

prescrições da Regra, indicadas no parágrafo 48 da Regra de São Bento:

A ociosidade é inimiga da alma; por isso, em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual. [...] Da hora quarta até mais ou menos o princípio da hora sexta, entreguem-se à

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leitura. [...] Nos dias da Quaresma, porém, da manhã até o fim da hora terceira, entreguem-se às suas leituras, e até o fim da décima hora trabalhem no que lhes for designado. Nesses dias de Quaresma, recebam todos respectivamente livros da biblioteca e leiam-nos pela ordem e por inteiro; esses livros são distribuídos no início da Quaresma. [...] Também no domingo, entreguem-se todos à leitura, menos aqueles que foram designados para os diversos ofícios. Se, entretanto, alguém for tão negligente ou relaxado, que não queira ou não possa meditar ou ler, determine-se-lhe um trabalho que possa fazer, para que não fique à toa. (REGRA DE SÃO BENTO, online.)

Este parágrafo deve ser lido por inteiro na Regra. Verifica-se que aqui a leitura era

muito importante na vida monástica beneditina. A partir do século VI a Ordem começa a se

espalhar pela Europa atingindo muitos lugares, sendo responsável pela introdução do

Cristianismo na Bretanha e na Germânia, tendo, portanto, importância fundamental na difusão

do Cristianismo. Esse caráter monástico-evangelizador também se encontra em São

Columbano e seus monges, responsáveis pela evangelização dos celtas.

É importante compreender que não apenas o monaquismo se difundia, mas também a

educação cristã e a religião de Cristo. Assim foi que o mundo bárbaro conheceu as letras

romanas e suas ciências, assim da mesma forma como conheceu o Evangelho.

Em meio às aculturações bárbaras, este era o momento em que se definia o que da

cultura antiga deveria ser incorporado ou não na nova cultura cristã, os clássicos greco-

romanos passam por uma depuração quanto a sua utilização no ensino. Uma longa polêmica

se instala, utilizar ou não os textos de escritores pagãos para o ensino?

Essa questão muito controvertida foi abordada pelos Padres da Igreja. Podemos dizer

que São Gregório Magno definiu a questão (MANACORDA, 1996, p. 123-124). São

Gregório Magno não proíbe em absoluto o uso dos escritos pagãos, ao contrário “Instruindo-

nos nas letras seculares, somos por elas ajudados a compreender as espirituais.” (apud

MANACORDA, 1996, p. 124), mas apenas diz que se faça o uso consciente destes escritos

“[...] porque os louvores de Cristo, não podem estar na mesma boca com os louvores de

Júpiter... [...]” (apud MANACORDA, 1996, p. 124), “[...] afirma a coerência da consciência

cristã, exigindo que a formação do clero e a educação do povo cristão não sejam

contaminados pelas seduções pagãs.” (MANACORDA, 1996, p. 124). Eis aqui a aplicação do

que S. Paulo diz: “Examinai tudo: abraçai o que é bom.” (I Ts 5,21). A nova civilização

cristã não se jogou nas trevas da ignorância, pelo contrário, abraçou o que tinha de bom na

cultura antiga e se serviu dos bens culturais para fins mais elevados.

Page 14: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

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Concomitantemente ocorre a sistematização definitiva das disciplinas escolares, as

Artes Liberais. Estas se dividem em trivium: gramática, retórica e dialética; e quadrivium:

aritmética, geometria, astronomia e música. Marciano Capela1 foi quem consolidou a

estruturação das sete artes liberais em seu livro “Casamento da Filologia e Mercúrio”. Esta

obra era dividida em 9 livros que tratavam de cada uma das Artes liberais, era um verdadeiro

manual de Artes.

Afora esta obra mais geral de Artes, listamos as obras mais famosas para os estudos

das Artes liberais: para a gramática lia-se a Ars Grammatica de Donato2 ou a gramática de

Prisciano3. Para a retórica a obra magna era a Institutio Oratoria, de Quintiliano4, usava-se

também obras de Cícero5. Para a dialética, ou estudos lógicos, se utilizava das obras

disponíveis de Aristóteles6 (A parte dos estudos lógicos de Aristóteles era chamada de

Organon e já era utilizado) e de Boécio7, que traduziu e comentou uma importantíssima obra,

a Isagoge de Porfírio8, obra básica para quem desejasse se aventurar na “questão dos

universais” 9.

Para completar os estudos do trivium, era ensinado um pouco de filosofia com os

escritos antigos, Cícero, Aristóteles, ou dos Padres da Igreja, como Santo Isidoro de Sevilha10,

dentro do que tinha tradução disponível no momento.

Já para os estudos do quadrivium a disponibilidade de obras era menor.

Principalmente as obras de Boécio ganharam maior ressonância, ele traduziu parte da

1 Escritor pagão de origem africana. Morreu no século V d.C. 2 Élio Donato, gramático latino do século IV, sendo o mais influente de seu tempo. Teve São Jerônimo por

aluno. 3 Gramático latino, natural de Cesaréia, no norte da África. Veio a morrer no século VI. 4 Marcus Fabius Quintilianus † 95 d.C. Foi professor de retórica após exercer a profissão de advogado. Teve

por aluno Plínio, o jovem. 5 Marco Túlio Cícero (105-43 a.C.), famosíssimo filósofo, orador, escritor, advogado e político romano. Como

cônsul romano, cargo máximo da magistratura, destruiu a conspiração contra a República liderada por Catilina.

6 Filósofo grego (384-322 a.C.), aluno de Platão e fundador do Liceu. Teve Alexandre, o grande, por aluno. Foi indiscutivelmente um dos maiores filósofos da história, escrevendo obras dos mais diversos assunto. Granjeou fama entre os do seu tempo, na Idade Média não teve filosofo antigo que concorresse com ele em fama.

7 Filósofo, Teólogo e estadista romano. Foi de fundamental importância para a transmissão da cultura clássica para a Idade Média e seus escritos e traduções prestaram um serviço inestimável à ciência e cultura medieval.

8 Filosofo neoplatônico, morreu em 304 d.C. A Isagoge era uma introdução que ele escreveu a obra “Categorias”, de Aristóteles.

9 Questão filosófica de suma importância. Basicamente a “Questão dos Universais” tratava sobre os conceitos universais, como o conceito de árvore, casa, etc, enfim, todos os conceitos, se perguntando qual a relação dos conceitos com a realidade variável e particular, qual o seu valor objetivo e com que fidelidade eles exprimem a realidade contingente.

10 Santo Isidoro de Sevilha, bispo da mesma cidade, foi um grande erudito. Sua obra magna “Etimologias” tratava dos mais diversos assuntos, desde as artes liberais até mesmo geografia, agricultura, teologia, etc., e veio a constituir-se como verdadeira enciclopédia da Idade Média. Morreu em 636 d.C.

Page 15: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

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geometria de Euclides11, escreveu um tratado de aritmética e outro de música. A música

também era ensinada pelo canto gregoriano nas escolas. Quanto a astronomia, não possuímos

dados de como ela era estudada neste período.

No século VIII o Império de Carlos Magno se consolidou e os laços que o ligam a

Igreja se estreitam. Ao mesmo tempo os historiadores destacam o chamado “Renascimento

Carolíngio”, passageiro, mas importante, pois embora não teve força para perdurar por muito

tempo, agiu conscientemente na revigoração cultural, com a criação de novas escolas.

Este “Renascimento” proporcionou uma melhora no nível cultural do Império, tendo

como conselheiros alguns intelectuais, como Pedro de Pisa, gramático italiano e Alcuíno,

letrado monge beneditino inglês. A política imperial então vai se preocupar com a instrução

da população e inclusive com a formação do clero, o resultado dessa aliança com a Igreja, nas

palavras de Manacorda, proporcionou o “[...] crescimento da instrução e da aculturação [...]”

(cf. MANACORDA, 1996, p. 132).

Mesmo que passageiro este “Renascimento” deixou marcas profundas, como a

formação de novas escolas, além de do incremento das existentes, que futuramente

contribuíram para a formação das primeiras universidades.

No século IX já é possível ver com clareza a existência de três tipos de escolas:

A primeira é uma escola de Estado para os leigos, nas principais cidades; a segunda é uma escola eclesiástica que, a nível paroquial, era aberta também aos leigos, e a nível episcopal era reservada a formação dos clérigos; a terceira fica nos mosteiros, reservada geralmente aos oblatos, sem excluir absolutamente os leigos. (MANACORDA, 1996, p. 134)

A partir do desenvolvimento dessas escolas, já bem definidas no século IX, terão

início às universidades.

1.2 Do ano 1000 até as primeiras Universidades.

Por volta do ano 1000 a civilização cristã está plenamente consolidada na Europa. O

cristianismo já havia atingido os limites da Europa Ocidental e alcançado o mundo eslavo. No

11 Matemático grego, criador da “geometria euclidiana”. Escreveu tratados de matemática e astronomia. Faleceu

em 295 a.C.

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oriente, porém, o Império Bizantino sofre de uma constante ameaça do mundo islâmico e se

reduz a um território envolvendo a Grécia, parte dos Bálcãs, Chipre e a Ásia Menor e outras

pequenas regiões na Itália e Criméia (sob Basílio II). O islã por sua vez ocupa todo o resto do

Oriente Médio, o Norte da África e parte da Espanha.

Dentre estes três blocos de civilizações deve-se perguntar qual foi o caminho que a

Cristandade percorreu que possibilitou o surgimento dos grandes centros universitários e

quais foram às contribuições que a cristandade recebeu das outras civilizações? Nesse

processo busca-se identificar os fatores internos e externos que resultaram na formação das

primeiras universidades.

Desde o século IX a rede escolar na Europa se proliferou e cresceu, tanto

quantitativamente e qualitativamente, a atividade cultural e educacional se aprimorou.

Porém a política escolar sofre uma pequena mudança relatada por Manacorda:

A crise do império carolíngio levara a uma nova situação: a fonte agora imperial, do direito escolar passara de fato à Igreja, como também passa para ela o controle político, anteriormente do império sobre as escolas eclesiásticas [fruto da aliança feita por Carlos Magno com a Igreja, este se preocupou com a formação do clero]. Além disso, a Igreja foi abrindo suas escolas episcopais e paroquiais também aos leigos, dando-lhes ao mesmo tempo instrução religiosa e literária. Criou-se, em suma, um monopólio eclesiástico da instrução [...]’’ (MANACORDA, 1996, p. 143)

Nessas bases a Igreja solidifica todo o sistema educacional Europeu, mas não se deve

exagerar nas proporções de Manacorda, pois ainda assim, ao menos no século XII havia

escolas leigas na Itália (em Salerno desde o século X) (cf. VERGER, 1990, p. 19).

O ensino no período carolíngio esteve mais diretamente atrelado à Igreja do que os

séculos anteriores, tanto que é impossível analisar o nascimento das universidades sem medir

a relação das mesmas com a Igreja.

Duas áreas se destacaram por terem boas escolas, o norte da Itália (Bolonha, Ravena,

Pavia e até Roma) e na região do Loire ao Reno (Laon, Reims, Orleans, Tours, Chartres,

Paris, etc.) (VERGER, 1990, p.19 e p. 21). Em Salerno na Itália desde o século X funcionou

uma escola de medicina que mais tarde se tornaria uma universidade. Os métodos de ensino

ainda eram os antigos, solidificados na época de Alcuíno, “As sete artes liberais eram o

fundamento do ensino, a teologia era seu coroamento.” (VERGER, 1990, p. 21).

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Logo surgiram nas escolas do clero secular os “scholasticus” ou “magischola”12 que

acabaram por assumir o papel de docente mediante uma licença (licentia docendi). Mais tarde

assumiram o papel de chanceler do bispo e se tornaram os responsáveis pela distribuição da

licentia docendi. O chanceler tinha a faculdade de distribuir as licenças aos futuros docentes,

mediante a análise de suas capacidades.

Aproximadamente do século X ou XI em diante é que começaram a proliferar a

licentia docendi, os chamados “mestres livres” que obtinham tal licença passaram a ensinar o

trivium e o quadrivium a quem estivesse interessado ouvi-lo.

Um destes mestres livres foi Abelardo, citado por Le Goff (1989, p. 39) como: “[...] a

primeira grande figura de intelectual moderno”. Abelardo realmente agitou o cenário

intelectual de Paris na primeira metade do século XII. Nascido em 1079, vigoroso

argumentador, seu principal foco de estudo foi à dialética, procurando utilizá-la no estudo das

Sagradas Escrituras e na Teologia. Abelardo buscava com seu método vencer as contradições

aparentes da Bíblia e dos Padres (cf. VERGER, 1990, p. 22). Ele se envolveu na questão dos

universais, adotando uma posição média entre o Realismo e o Nominalismo.

Contudo parte do trabalho teológico de Abelardo foi condenada, primeiramente no

concílio de Soissons em 1121, acusado de sabelianismo13 e seu livro sobre a Trindade foi

queimado. Seu grande adversário foi São Bernardo de Claraval. Posteriormente em 1141 foi

novamente condenado no concílio de Sens, no qual não estava presente. Abelardo sabendo da

condenação recusou defender-se e apelou ao papa, mas este confirmou a sentença já proferida.

Porém Pedro, o venerável, abade de Cluny consegui-lhe uma mitigação da sentença de

Roma e lhe reconciliou com São Bernardo. Abelardo foi acolhido no mosteiro de Cluny

(região centro-leste da França) onde morreu em 1142.

Apesar das condenações de seu trabalho teológico e de sua posição única frente à

questão dos universais, Abelardo fez escola com seu método dialético, que foi importante para

12 Escolástico era o eclesiástico que dirigia uma escola ligada a uma Igreja Catedral, a uma Sé Episcopal. O

“mestre-escola” era o outro nome dado a este professor antigo. Curiosamente um dos nomes que se dá aos professores no idioma inglês, além do “teacher” é “school master”, o mestre-escola.

13 O sabelianismo dizia que as três pessoas da Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, eram apenas modos ou aspectos de Deus-Uno, e não que as três pessoas da Trindade eram realmente distintas e processões imanentes, ad intra, de Deus-Uno. Pela teologia católica, por uma processão intelectiva de Deus Pai o Filho, Verbo de Deus, foi gerado, e por uma processão volitiva do amor de Deus a si mesmo procede o Espírito Santo. Cada uma destas três pessoas são distintas em Deus, mas unas em Deus, existentes desde sempre como algo inerente a própria natureza de Deus, eterno e imutável. Assim sendo, seria um erro afirmar que o Filho ou o Espírito Santo foram criados pelo Pai. Pelo dogma da Trindade se afirma a unidade da essência divina e a Trindade de suas pessoas.

Page 18: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

17

futuros estudos teológicos e filosóficos. Sua importância neste campo é algo fundamental na

história ocidental.

É importante dizer que mestres como Abelardo, dentre eles podemos citar Santo

Anselmo da Cantuária (Cantebury), São Bernardo, Hugo de São Vitor, Bernardo de Chartres,

dentre outros que futuramente farão sucesso no mundo escolar, movimentavam a cidade em

que estavam e atraíam muitos estudantes. Porém por vezes os mestres não conseguiam fazer

escola, e o desenvolvimento intelectual decaía e os estudantes migravam para outras escolas.

Nos tempos de Abelardo ocorreu o chamado ”Renascimento do século XII”, em que

os acontecimentos do mundo intelectual contribuíram para criar um clima favorável à

transformação da vida escolar na Europa e assim influindo diretamente no nascimento das

universidades.

O primeiro desses acontecimentos foi a grande quantidade de novas traduções. Na

época se verificou um interesse dos intelectuais medievais pelas obras da antiguidade clássica,

notadamente pelos escritos gregos, (cf. LE GOFF, 1989, p. 23-25), essas buscas pelos escritos

antigos levaram alguns homens até a fronteira da Cristandade para encontrá-los.

Foram até a fronteira, pois lá é que podiam encontrar os manuscritos e mais ainda

encontrar um tradutor. Os centros de tradução de então eram a Espanha e a Itália. Na Espanha

havia o contato com o mundo árabe, onde um afluxo muito rico de manuscritos e pessoas

ocorria, algumas minorias eram bi ou trilíngües (judeus, moçárabes). O mais importante

centro de tradução espanhol ficava em Toledo (cf. VERGER, 1990, p. 24).

Na Itália os principais centros de tradução foram a Cidade de Veneza, Pisa e a ilha da

Sicília (Palermo). Estas cidades estavam em contato com o mundo bizantino, donde afluíram

manuscritos gregos.

Os manuscritos traduzidos rapidamente se espalharam pela Europa. Elaboramos um

quadro das principais traduções feitas no século XII. Das obras da antiguidade pagã temos:

toda a Lógica, a Física e a Metafísica de Aristóteles, obras de Proclo14, Euclídes,

Arquimedes15, Ptolomeu16, Hipócrates e Galeno. Por estes autores se percebe que o

14 Matemático grego, discípulo de Euclides. 15 Matemático, físico e inventor grego, muito famoso pelo “Princípio de Arquimedes”, lei física da Hidrostática,

bem como pela atribuição de certos inventos a seu gênio criativo. Morreu em 212 a.C. 16 Notável matemático, geógrafo e astrônomo. Sua obra mais famosa foi o Almagesto, tratado de astronomia,

que influenciou enormemente todo o pensamento ocidental, até mesmo de Colombo. Teve outros trabalhos em teoria musical e tem um estudo sobre fenômenos ópticos.

Page 19: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

18

conhecimento das ciências naturais aumentou. De Platão17 se traduziu nesta época dois

diálogos, o Mênon e o Fédon. Dos árabes chegaram muitos manuscritos traduzidos,

principalmente de al-Khawarizmi18, al-Razi19, Avicena, al-Farabi20. Os manuscritos tratavam

tanto de filosofia como de ciências naturais. A medicina árabe foi fundamental para o

desenvolvimento da arte médica no mundo medieval.

Estas traduções estão ligadas à contribuição externa que a Cristandade recebeu, dos

Árabes e de Bizâncio. O papel dessas traduções é inestimável, desde então o mundo

intelectual nunca havia alcançado tal nível qualitativo tão alto. O que possibilitou novos

estudos, e novas polêmicas, a partir dos novos manuscritos árabes e gregos.

O segundo acontecimento de grande relevância do “Renascimento do século XII” foi à

revitalização dos estudos do Direito Romano. Não se pode dizer que o Direito Romano foi

redescoberto, como se estivesse “perdido” na Idade Média, Jacques Verger explica o

fenômeno: “[...] até o século XI, o Ocidente conhecera por toda à parte o triunfo das leis

bárbaras, do Direito consuetudinário ou, mesmo onde o Direito Romano sobrevivia, como na

Itália, de medíocres compilações extraídas do Código Teodosiano”. (VERGER, 1990 p. 25)

O que aconteceu foi que desde o final do século XI houve um aumento dos estudos,

organização, compilação das fontes do Direito Romano, impulsionados possivelmente por

querelas entre o Império e o Papado (cf. VERGER, 1990, p. 25), mas não somente.

Isto fez com que aumentassem os estoques dos textos do Direito Romano, assim como

também pesquisas, referencias, etc. Assistiu-se a difusão desses textos, agora postos a

disposição de mestres e alunos.

Concomitante a isso, o Direito Canônico se organizou e novas compilações das fontes

canônicas surgiram. As primeiras mais notáveis, frente à precariedade das antigas

compilações, foram a do Bispo Ivo de Chartres e do Bispo Bucardo de Worms. Porém a obra

magna do Direito Canônico compilado do século XII é o Decreto de Graciano21, composto à

partir de centenas fontes jurídicas por Graciano, monge camaldulense de Bolonha, por volta

de 1140-1150. Com esta contribuição os estudos do Direito Canônico se desenvolveram.

17 Filosofo grego discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles. Sua contribuição à filosofia é inestimável, tratou

de muitos temas, com amplitude e profundidade escrevendo em diálogos. Morreu em 347 a.C. 18 Matemático árabe conhecido como o “Pai da álgebra”. Nasceu em 780 d.C. e morreu em 850 d.C. 19 Também chamado de Rasis. Natural da Pérsia é conhecido por trabalhos de medicina, alquimia, de física e

filosofia. Morreu em 925 d.C. 20 Filosofo e cientista árabe, tratou, além de filosofia, de ciências naturais. Foi um dos maiores do seu tempo.

Morreu em 950 d.C. 21 Decreto continha 78 decretos papai, 105 cânones conciliares e 50 cânones apostólicos. Pode ser facilmente

encontrado em latim na internet.

Page 20: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

19

Outro fator do “Renascimento” foi o desenvolvimento urbano. Concomitantemente

com as transformações do mundo intelectual dá-se um grande florescimento das cidades pelo

Ocidente. E é nessas cidades em que afluíam os estudantes, não nos mosteiros dos campos,

que as futuras universidades se instalarão. O primeiro fator que fez com que o campo não

atraísse tantos estudantes como na cidade foi a qualidade do ensino. Verger (1990, p. 20) a

classifica como medíocre, o segundo se deve a uma restauração monástica, que fez com que

os monges se isolassem mais do mundo e voltassem a suas ocupações de copista, leitura e

meditação, etc., com isso muitos monastérios fecharam suas escolas “externas”, destinada ao

público geral, mantendo apenas as internar, reservadas aos oblatos.

Como já foi dito, porém, observamos melhor isto no século XII,

qualitativamente e quantitativamente o nível das escolas (e dos mestres e alunos) aumentaram.

Qualitativamente isso é marcado por mudanças de ordem pedagógica (Hugo de São

Vitor22 escreve o Didascalion, obra base da pedagogia escolástica vitoriana), difusão de

traduções e a aplicação de novos métodos no ensino, principalmente os dialéticos (herança de

Abelardo), tudo isso evidentemente fez com que o ensino de então fosse melhor que existia

antes.

Quantitativamente, “O século XII viu as escolas multiplicarem-se por toda a parte,

pelo menos nas cidades, visto que, ao contrário, já o dissemos, os grandes mosteiros rurais

tendiam a fechar as suas.” (VERGER, 1990, p. 28).

Por fim, para completar esse século de mudanças far-se-á um breve comentário sobre

algumas resoluções do III Concílio Lateranense, de 1179, e do IV Concílio Lateranense, de

1215, este já concomitante com as corporações universitárias, sobre a educação.

Em 1179, convocado pelo papa Alexandre III, o III Concílio de Latrão decretou que

em cada Igreja catedral houvesse um mestre que ensinasse os clérigos e os estudantes pobres,

o mestre então seria sustentado por uma prebenda para que não cobrasse nada dos estudantes

(cânon 18). Segundo Verger (1990, p. 29) essa resolução ao mesmo tempo reconhecia o

crescimento da demanda escolar e proclamava o princípio da gratuidade do ensino.

No mesmo cânon do Concílio é decretado também que seja dada a licentia docendi a

quem pedir, desde que seja apto. Isso multiplicou os mestres e conseqüentemente os alunos.

Já no ano de 1215, sob o pontificado de Inocêncio III, o IV Concílio de Latrão decretou:

22 Professor eclesiástico francês que ensinou em Paris e foi um teórico da pedagogia, filósofo e teólogo.

Conhecido por ser o fundador da pedagogia vitoriana. Teve por discípulo Ricardo de São Vitor. Morreu em 1141 d.C.

Page 21: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

20

[...] que a eleição do magischola [mestre-escola, chanceler] seja feita pelo bispo e seu cabido, confirma a obrigação de ensinar gratuitamente, reafirma que as escolas devem surgir nas igrejas-catedrais e nas demais igrejas e que devem estar abertas não somente aos “clérigos da mesma igreja”, mas também “aos alunos pobres”, e especifica que devem ser instruídos “na gramática e nas demais disciplinas”. (MANACORDA, 1996, p. 144)

Além dessas resoluções, mais uma é de grande importância, o Cânon 11 do mesmo

Concílio decretou que: “A Igreja metropolitana tenha um teólogo para ensinar as Escrituras

aos sacerdotes e outros e especialmente para instruí-los em matérias que são reconhecidas

como adequadas para a cura das almas.” (IV CONCÍLIO DE LATRÃO, online).

Resumindo, todas as grandes mudanças ocorridas no século XII, além das resoluções

do IV Concílio de Latrão no início do século XIII, foram de vital importância para as

nascentes universidades.

Com a crescente proliferação dos mestres livres, possuidores da licentia docendi, as

atividades estudantis se intensificaram ao redor das cidades. Esses mestres ensinavam a

clérigos e a leigos e freqüentemente ensinavam seus alunos fora das escolas episcopais

(MANACORDA, 1996, p. 145). Logo os estudantes e seus professores criariam suas próprias

organizações, e delas saíram as universidades.

1.3 A formação das primeiras universidades

As universidades nasceram no século XIII, ao menos são reconhecidas neste século, a

partir de uma corporação de ofício, que buscava seu reconhecimento e privilégios. Há um

trecho muito esclarecedor de Jacques Verger sobre a organização corporativa:

No latim medieval, a universidade era ao mesmo tempo studium e universitas [...] studium significava estabelecimento de ensino superior, universitas designava a organização corporativa que fazia funcionar o studium e garantia sua autonomia. Na vida do studium, a universitas era portanto a realidade fundamental [...] (VERGER, 1990, p. 48)

Porém, aqui Verger fala de uma universidade já instituída e oficializada, o studium, ou

studium generale, era o título conferido por alguma autoridade, o papa, ou o imperador, ou

Page 22: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

21

algum rei, que indicava o estabelecimento oficial de uma organização superior de ensino, as

universidades.

Mas para isso a corporação universitária (universitas) precisava ter seus privilégios

reconhecidos, a fim de organizar a sua maneira o studium generale (Estudo Geral). É

importante que se diga que o studium nasceu da universitas.

Para que fique mais claro faz-se necessário um breve resumo do nascimento das

primeiras universidades. Para tanto é dispensável alongar-se nos casos de Paris e Bolonha,

voltando após esta explanação a analisar o caráter corporativo das universidades medievais

ressaltando assim seus pormenores mais importantes.

Antes de tudo, porém, é fundamental ressaltar que as datas de fundação do século

XIII, ou melhor, as datas do estabelecimento do studium generale, são apenas datas dos atos

oficiais da autoridade, visto que os estudos e as corporações já existiam antes. O ensino pelo

menos desde o século XI pelo menos em Bolonha, Paris, Oxford, e desde o século X em

Salerno. Nisso acata-se a idéia de Verger quando diz que “[...] textos oficiais e definições

jurídicas intervinham tardiamente e só homologavam situações existentes [...]” (1990, p. 19 e

também em: Ruy Afonso da Costa, III parte, parágrafo 12, online). Abordar-se-á o nascimento

da primeira universidade do Ocidente Medieval, a Universidade de Bolonha.

Dentre as escolas episcopais e monásticas, em Bolonha havia prósperas escolas leigas,

existentes no norte da Itália desde o século XI, essas escolas se distinguiam especialmente por

que, além do ensino das Artes, ministravam aulas de noções práticas de Direito, arte notarial.

Com a “redescoberta” do Corpus Iuris Civilis, do Direito Romano, alguns mestres

passaram a ensiná-los com comentários. Os primeiros mestres notáveis dessa matéria foram

Pepone e Irnério, que ensinaram do fim do século XI a princípio do século XII. Este último é

o fundador da universidade de Direito de Bolonha (Rui Afonso, III parte, parágrafo 8).

A esta época, segundo a própria faculdade, remonta a fundação do studium, no selo da

Universidade a data de fundação é 1088. Porém ainda neste período os privilégios da

corporação universitária estavam mal definidos.

O primeiro privilégio marcante foi de concessão imperial, não papal. Como bem

lembra Verger (1990, p. 38-39), Bolonha era uma cidade, que do ponto de vista geográfico, de

disputa entre o poder papal e o imperial. Dentre essas lutas, no século XII os mestres de

bolonheses assumiram o partido imperial.

Em 1158 na Dieta de Roncaglia quatro juristas bolonheses auxiliaram na redação das

constituições imperiais que “[...] definindo os atributos da soberania imperial na Itália,

Page 23: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

22

lembraram que as comunas [cidades] não podiam exercer senão os direitos que o Imperador

concordasse em lhes conceder.” (VERGER, 1990, p. 39).

Após este auxilio os doutores de Bolonha obtiveram do imperador Frederico Barba-

Roxa a constituição Authentica habita, que deu aos estudantes e professores alguns

benefícios, como:

[...] punha os estudantes em viagem sob a salvaguarda do Imperador e proibia considerar os estudantes estrangeiros como responsáveis pelas dívidas de seus compatriotas; enfim, colocava os estudantes exclusivamente sob a jurisdição de seu mestre ou do bispo, subtraindo-os assim à da comuna. (VERGER, 1990, p. 39)

Ruy Afonso da Costa Nunes afirma que esta é a ‘’patente da fundação’’ da

Universidade. (III parte, parágrafo 10, online). Mas apesar disto, e talvez por causa disto, os

conflitos com a comuna, uma rotina nas cidades com muitos estudantes, continuaram e até se

intensificaram.

Com a morte do imperador (1190) a comuna passou a exigir um juramento dos

mestres de nunca ensinar fora da cidade. Os mestres aceitaram. Por volta dessa época (final do

século XII e início do século XII), os estudantes se agrupam para negociar com a comuna e

conseguir alguns direitos e privilégios, visto que só gozava de certos direitos quem era de fato

bolonhês, coisa que a maioria dos estudantes não era.

Formam-se duas universitates (corporações) apenas de estudantes, os Citramontanos,

composta por cidadãos italianos não bolonheses, e os Ultramontanos, formada por estudantes

não italianos. Essas formações muito originais, composta unicamente de estudantes, é um

acontecimento único desde então, a universidade de Bolonha não se constitui a partir de uma

organização de mestres, mas sim de estudantes e estes serão os responsáveis pela

administração universitária.

Um dos meios utilizados pelos estudantes para a obtenção de seus direitos foi a

secessão, ou seja, o abandono, o êxodo da cidade por parte dos estudantes. Isso era

inconveniente para a comuna, visto que a presença da universidade trazia prestígio à cidade e

movimentava uma série de atividades comerciais, como aluguéis. Da mesma forma isto era

prejudicial para os professores bolonheses leigos, que não recebiam alguma prebenda

eclesiástica e tinham seu salário pago pelos estudantes.

Frente a várias secessões, o contexto se tornou favorável aos estudantes, que agora

contavam com o apoio do papa Honório III. Este “[...] reconheceu aos estudantes o direito de

Page 24: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

23

secessão e condenou o juramento de residência que a comuna procurava extorquir aos reitores

[e mestres].” (VERGER, 1990, p. 41). Além disto, o papa “[...] atribuiu ao arquidiácono de

Bolonha o monopólio da colação dos graus [...]” (VERGER, 1990, p. 41).

Isto sem dúvida representou uma grande vitória dos estudantes, proporcionando ainda

um tempo de calmaria dos conflitos. O complemento dos privilégios da Universidade de

Bolonha se deu em 1228 e vieram por parte da própria comuna, que concedeu “[...] aos

estudantes estrangeiros todos os privilégios dos cidadãos de Bolonha.” (VERGER, 1990, p.

41).

Concluímos esse breve histórico da Universidade de Bolonha com uma citação de

Verger: “Pode-se, portanto, considerar que, por volta de 1230, a Universidade de Bolonha

estava definitivamente estabelecida, sólida com seus privilégios de origens diversas,

imperiais, pontifícias, comunais.” (VERGER, 1990, p. 41).

Na seqüência analisaremos o segundo caso, a fundação da Universidade de Paris. Se

Bolonha é destacada como uma universidade formada da iniciativa dos estudantes, em Paris o

que ocorre é o contrário, aqui quem tomou as rédeas da corporação são os mestres.

Desde o século XI a atividade escolar em Paris começa a florescer e tem um

desenvolvimento contínuo, sendo muito incrementado no século XII, onde Abelardo se

configura como uma das causas, entre as outras já citadas. Naturalmente, afluíram então

mestres e estudantes de toda a parte (cf. VERGER, 1990, p. 30-31).

A partir de 1150 começa-se a ensinar Direito e Medicina, somado às outras faculdades

de Artes e Teologia já existentes.

Jacques Verger aponta que entre os anos de 1170-1180 podem ter surgido alguma

associação entre mestres e alunos, ainda em forma embrionária. Porém afirma que entre 1200-

1210 haveria nascido “[...] uma verdadeira organização corporativa dos mestres e alunos de

Paris.” (cf. VERGER, 1990, p. 32-35).

Desde o final do século XII até 1231, data do reconhecimento máximo da

Universidade pelo papado, esta corporação entrou em conflito principalmente contra o Bispo

de Paris e seu chanceler, como também entre os habitantes da comuna. Porém os mestres a

alunos tinham o apoio do rei e do papa, que eram muito favoráveis ao estabelecimento do

studium, pois fariam muito bem ao Reino e à Cristandade.

O primeiro privilégio conseguido pela corporação ocorreu em 1200, “[...] dum conflito

entre estudantes alemães e os comerciantes [uma rixa de taverna terminada em morte de

estudantes por sargentos reais] que resultou o primeiro privilégio real obtido pela corporação

Page 25: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

24

de mestres e estudantes e esse ato assinalou a constituição inicial da universidade de Paris

[...]” (Ruy Afonso da Costa, III parte, parágrafo 10, online), Felipe Augusto concedeu o foro

eclesiástico aos estudantes, e declarou ser o seu “protetor particular” (cf. VERGER, 2001, p.

191-193).

A próxima conquista ocorreu em 1215, onde a essência da instituição se formou

através da aprovação dos Estatutos da Universidade por Roberto de Courson, legado

pontifício. Por este Estatuto o ensino e funcionamento da Universidade estavam

verdadeiramente definidos e aprovados, além disto, este privilégio garantiu a autonomia da

corporação (cf. VERGER, 2001 p. 193-198). Mesmo assim o bispo e o chanceler de Notre-

Dame não se dispuseram a abandonar suas antigas prerrogativas e fizeram oposição.

Já em 1219 ocorre uma pequena regulação acerca do ensino, feita pela Bula Super

speculam, que proibiu o ensino de Direito Civil na Universidade. Visava assim reservar para

Paris a faculdade de Teologia como o estudo máximo, fazendo dela utilíssima para a

Cristandade (cf. VERGER, 2001, p. 198-201).

Por fim, em 1231, o papa Gregório IX promulgou a bula Parens scientiarum,

verdadeira “Grande Carta da Universidade” (DENIFLE apud VERGER, 1990, p. 36). Enfim,

é a carta final do reconhecimento pontifício da Universidade, tendo em vista acabar com

qualquer oposição a sua constituição e a regular alguns pormenores. Alguns outros privilégios

e regulações ocorreram até o final do século XIII (cf. Ruy Afonso da Costa, III parte, online).

Assim dá-se por exposta, ainda que brevemente e superficialmente, a fundação das

duas primeiras Universidades do Ocidente. Estas duas universidades nasceram do crescimento

da atividade estudantil, são chamadas de fundação “espontânea”, entre elas figuram também a

de Oxford e de Montpellier. Mas cabe ainda descrever outros dois tipos formações

universitárias.

Algumas outras Universidades surgiram de migrações estudantis, de secessões de

núcleos estudantis bem constituídos, assinalamos os seguintes exemplos: Cambridge surgiu

de uma secessão de Oxford em 1208, Angers e Orleans surgiram de secessões parisienses de

1229 e 1231, respectivamente, e Pádua, formada a partir de uma secessão de Bolonha em

1222.

Outras Universidades foram “criadas”, ou pelo Papa ou por autoridades seculares

como Reis e Imperadores, estas antes mesmo de se estabelecerem já tinham sua carta de

fundação que definia seus estatutos e privilégios. Dentre elas destacamos as Universidades de

Nápoles (1224), Toulouse (1229), Salamanca (1218), Palencia, Valladolid e Lisboa,

Page 26: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

25

futuramente a Universidade de Coimbra, esta ultima sendo parte de nosso trabalho foi

fundada no final do século XIII.

1.4 Detalhes da corporação universitária

Feita uma exposição mais geral sobre as Universidades, temos agora o objetivo de

expor brevemente algumas minúcias da vida universitária e do funcionamento da corporação.

Nas universidades medievais havia subdivisões, “[...] divisões administrativas do

studium, ligadas à organização do ensino [...]” (VERGER, 1990, p. 48). Estas divisões são as

faculdades, que na Idade Média eram no máximo quatro, Teologia, Direito, Medicina e Artes,

“no máximo”, pois não era toda Universidade que tinha estas quatro faculdades.

Havia também outra subdivisão, ao menos em Paris e Bolonha, que eram as chamadas

“nações”. Estas “nações” eram “[...] organizações de auxílio mútuo e de defesa mútua dos

mestres e dos estudantes.” (VERGER, 1990, p. 49), isso porque reunia estudantes de uma

mesma origem geográfica que se ajudavam fraternalmente.

Em Bolonha havia duas “nações”, a dos Citramontanos e a dos Ultramontanos, como

já dissemos, a primeira comportava cidadãos italianos não bolonheses, a segunda continha

estudantes não italianos. Em Bolonha a inscrição em uma nação era obrigatória, e era

considerada como a “matrícula”. (cf. VERGER, 1990, p. 49-50)

Em Paris a faculdade de Artes abrigava quatro “nações”: a Francesa, a Picarda, a

Normanda e a Inglesa23, cada uma abrigando estudantes de uma determinada região. Em

Paris, cada “nação” tinha um procurador eleito, que assistia ao reitor da faculdade de Artes

(Le Goff, p. 65), este que era “[...]o verdadeiro chefe da universidade e os doutores em

Teologia, Direito e Medicina eram reduzidos a um papel secundário” (VERGER, 1990, p.

48).

Pegando apenas estes dois exemplos, Bolonha e Paris, observa-se que como a

organização era diversa, e era assim também com as outras universidades. Não há um padrão

23 Territorialmente a Francesa englobava toda a França, Itália, Espanha e Portugal, menos a parte da Normandia

(norte da França), que era outra nação (nação Normanda). A nação Picarda envolvia o extremo nordeste da França com a região dos Países Baixos. Por fim, a nação Inglesa, mais tarde chamada de Nação Germânica, era delimitada pela Grã Bretanha, Escandinávia, Germânia e região Eslava. (vide Anexo C)

Page 27: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

26

fixo de organização; cada corporação estabeleceu a sua, adequando-a da melhor maneira

conforme os costumes, tempos e lugares.

O ensino era feito por meio das faculdades. A faculdade de Artes era como a

preparatória para as outras, nela se ensinava as Artes Liberais, embora em certos momentos

esta faculdade se conformou como uma verdadeira faculdade de filosofia.

O programa das outras três faculdades (Teologia, Direito e Medicina) consistia na

leitura de livros fundamentais, comentados ou não. Faremos agora uma pequena exposição

dos programas de leitura destas faculdades. (cf. VERGER, 1990, p. 54-56)

Em Teologia os livros fundamentais eram a Bíblia e o Livro das Sentenças, de Pedro

Lombardo24, mas liam-se também os antigos Padres e teólogos modernos. Utilizava-se

também de algum material da escola de Artes. Não se pode esquecer esta relação do curso de

teologia (e até mesmo de Direito) com o curso de Artes, basta para isso lembrar de São Tomás

de Aquino (e de tantos outros), que em seus escritos teológicos sempre utilizava conceitos

definidos pela filosofia de Aristóteles, ensinada nas escolas de Artes.

Em Direito os livros básicos eram o Corpus Iuris Civilis25 e o Corpus Iuris Canonice,

para direito civil e canônico, respectivamente. Lia-se também coleções de cânones civis e

canônicos, entre eles: o Decreto, Decretais, Digesto Velho, Digesto Novo, o Infortiatum, as

Institutas, as Authentica imperiais, o Líber Feodorum, o Sextus e as Clementinas. Sem contar

as compilações como o Código de Graciano.

Em Medicina lia-se as obras de Hipócrates26, Galeno27, Constantino o Africano28 e o

Cânon de Avicena29. Considera-se possível também a utilização de ‘’relatos médicos’’

contidos na Bíblia, no Antigo Testamento, em que se narrava algumas doenças como lepra,

úlceras, etc.

24 Pedro Lombardo (1100-1160) foi professor da Universidade de Paris e bispo da mesma cidade. Seus quatro

“Livros das Sentenças” foram utilizados por séculos nas Universidades. 25 No último capítulo daremos mais detalhes sobre a maior parte dessas obras. 26 Grego, natural da ilha de Cós, nasceu em 460 a.C e morreu em 377 a. C.. É considerado o “Pai da Medicina” 27 Grego, natural de Pérgamo, nasceu em 129 d.C. e veio a morrer com 70 anos de idade. Depois de Hipócrates é

o mais ilustre médico da antiguidade. 28 Natural de Cartago, norte da África. Nasceu em 1020 d. C. e morreu no mesmo século em 1087. Fez

importantes traduções de textos médicos de gregos e árabes. Possivelmente foi mestre da escola de medicina em Salerno, mas de qualquer forma suas traduções muito contribuíram à esta escola.

29 Chamado entre os árabes de Ibn Sina, natural da Pérsia, nascido em 980 d.C. veio a morrer em 1037 d.C. Além de médico, foi um ilustre filósofo de seu tempo. O Cânon de Medicina de Avicena era um escrito que se dividia em cinco tratados: 1) medicina teórica e prática em geral; 2) dos remédios simples; 3) das doenças particulares a uma determinada parte do corpo; 4) das doenças não determinadas a uma parte do corpo; 5) da composição e aplicação dos remédios.

Page 28: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

27

O método de ensino se baseava em duas modalidades a lectio (aula) e a disputatio

(debate, disputa):

A primeira visava a fazer conhecer ao estudante as ‘autoridades’ e, através delas, permitir-lhe dominar o conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para o professor, o meio de aprofundar mais livremente certas questões do que num comentário de texto e, para o estudante, a ocasião de pôr em prática os princípios da Dialética, de experimentar a vivacidade de seu espírito e a precisão de seu raciocínio. (VERGER, 1990, p. 56)

Havia espécies diferentes de aulas, as ordinárias, dadas pelos mestres, e aulas

extraordinárias, dadas por bacharéis. Nos dois tipos de aula o método era o seguinte: “[...] o

professor, após uma aula de introdução, lia o texto a ser explicado30, interrompendo-se em

alguns trechos para um comentário mais ou menos profundo; os estudantes acompanhavam

em seu próprio exemplar do texto e tomavam notas.” (VERGER, p. 56-57). Havia também

outra modalidade de debate, os quodlibets. A disputatio era um debate com o tema já pré-

estabelecido pelo mestre de antemão, onde ele respondia sobre o assunto determinado. Já no

quodlibet o assunto não era pré-definido e o mestre deveria responder as questões colocadas,

sendo elas quais forem.

Outra peculiaridade das universidades eram os graus universitários. O primeiro era o

grau de estudante, que iniciava seus estudos. O segundo grau era o bacharel, que era um aluno

já provado pelo seu saber em avaliações. E o último era o Doutor (ou mestre), “verdadeira

luz” da faculdade. Na Universidade de Coimbra havia um grau intermediário entre o bacharel

e o doutor, era o licenciado. Não sabemos se isto existiu em todas as universidades e em todos

os tempos.

Estas são as características mais gerais das universidades medievais, exposta afim de

que o leitor tivesse o conhecimento panorâmico de aspectos mais gerais e pudesse adentrar o

tema específico de nosso estudo.

30 Por este motivo o professor universitário era chamado também de “lente”, “o lente de teologia”, “o lente de

medicina”, etc.

Page 29: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

28

2- Três modelos pedagógicos

2.1 Introdução

Este pequeno capítulo se propõe a analisar as três grandes abordagens metodológicas

pedagógicas que perpassaram nas universidades medievais até a Idade Moderna. São elas: a

escolástica, o humanismo renascentista e a pedagogia jesuítica.

Cada um destes métodos pedagógicos teve seu período de apogeu e declínio, porém é

importante ter em mente que eles coexistiram em determinada época e trançaram relações

entre si. Outro fato de se ponderar é a permanência destas pedagogias para além da Idade

Media e Moderna. Analisar isto não é o escopo deste capítulo, porém o leitor há de saber que

estes modelos perduraram em círculos restritos é verdade, até o século XX e até nos nossos

dias podem ser encontrados, evidentemente já com o refino e influência de estudos mais

modernos.

Ao ler a descrição de cada uma das pedagogias, deve-se também procurar relacioná-

las com a evolução dos estudos na Universidade de Coimbra, de como se deu a aplicação (ou

não) de cada um desses métodos nas diversas fases da dita instituição.

2.2 A Escolástica

O método escolástico foi o primeiro, talvez até o mais fecundo, a ser utilizado nas

universidades medievais, porém suas origens remontam a alguns séculos antes do surgimento

das primeiras instituições universitárias.

Podemos dizer com toda a certeza que a escolástica é uma criação dos cristãos e que,

mais que uma pedagogia, ela é antes de tudo um método de investigação filosófica, com

aplicação possível na teologia.

A Patrística católica, obra dos grandes Padres da Igreja nos seus primeiros séculos,

lançou os estudos filosóficos para dentro da Igreja Cristã, sempre buscando refinar os ensinos

da filosofia pagã, repelindo o que não fosse de acordo com a razão e com as palavras das

Page 30: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

29

Escrituras. Porém nem todos os Padres antigos foram isentos de erro. Numa divisão clássica,

a Patrística se inicia com São Clemente Romano (morto entre 95 e 97) e termina com Santo

Isidoro de Sevilha (560-636) no Ocidente, e com São João Damasceno (675-749) no Oriente.

Após este período tem início a escolástica.

O período patrístico difere do escolástico pela ausência de um rigor metodológico na

investigação filosófica e teológica; os Padres expuseram a doutrina católica se remetendo

mais à tradição recebida do que por uma argumentação bem concatenada com métodos

lógicos e dialéticos oriundos da filosofia. Na Patrística Ocidental se destacam os grandes

nomes de Santo Agostinho (354-430), autor de maior amplitude e profundidade deste período,

escrevendo obras nas áreas da Filosofia, Teologia, Teodicéia, Psicologia, Cosmologia e até

sobre a Filosofia da História na sua obra Cidade de Deus (De civitate Dei). Dentre outros

padres destacamos São Gregório Magno (540-604), que muito se aplicou em investigações

morais (mais especificamente no livro Moralia in Job ou Moralia, sive Expositio in Job).

Dentre os precursores da escolástica, Boécio (c.480-525) é colocado como o primeiro

(cf. FARRÉ, 1960, p. 75), que com seus livros próprios e traduções de outros escritos abriu

caminho para a futura escolástica. Boécio gozava de grande autoridade no século XIII entre os

escolásticos (cf. FARRÉ, 1960, p. 76).

Mas os avanços da escolástica até se tornar quase hegemônica nas universidades

medievais, o que se deu na época do auge do método no século XIII, foram gradativos e

demorados: “Para que surgisse uma modalidade bem definida, sobre tudo metodológica e logo

doutrinal, precisava-se de lugares de concentração onde se ensinasse, foi se formando uma

tradição e acumularam em bibliotecas os dons do saber.” (FARRÉ, 1960, p. 76).

Isto começou a ocorrer com o Renascimento Carolíngio com sua política de fundação

de novas escolas monacais e episcopais. Desde então surgiram novos escolásticos. Dentre eles

citamos os mais eminentes: João Escoto de Erígena (c.810-c.870), Santo Anselmo (1033-

1109), Roscelim (1120), João de Salisbury (c.1120-1180) e Abelardo (1079-1142).

Com Abelardo a escolástica dá um grande salto, este pensador a enriqueceu com

novos métodos de análise de questões filosóficas e teológicas: “Com o seu livro Sic et Non,

em que acerca de uma questão, reúne os textos pró e contra dos SS. Padres, sem a resolver

sistematicamente, preludia o método didático, que aperfeiçoado por Alexandre de Hales terá

grande voga em toda a escolástica posterior.” (FRANCA, 1964, p. 92) Em seu período de

vida podemos dizer que a escolástica se firmou realmente como o método por excelência.

Page 31: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

30

O auge da escolástica se deu, como já referimos, no século XIII, o século de grandes

sínteses teológicas com o dominicano São Tomás de Aquino (1225-1274) e com o

franciscano São Boaventura (1221-1274) e também com a Suma Lógica de Pedro Hispano

(c.1215-1277), escolástico português que foi eleito papa em 1276 (cf. VERGER, 1990, p. 81).

Esta escalada rumo ao apogeu se deu por uma confluência de fatores. Primeiramente ao

chamado “renascimento do século XII”, quando os estudos melhoraram muito

qualitativamente e quantitativamente, pela fundação de novas escolas e afluência maior de

estudante, como também por uma renovação dos saberes pelas traduções de antigas obras do

mundo clássico até então desconhecidas dos medievais que foram espalhadas pelo mundo

letrado do ocidente medieval, por exemplo, as obras completas de Aristóteles (cf. FRANCA,

1964, p. 99).

Em segundo lugar destacamos o surgimento dos estudos universitários. A primeira

universidade européia é a de Bolonha, fundada oficialmente em 1088 e a segunda é a de Paris,

fundada oficialmente no século XIII (Parens Scientiarum é de 1231), mas já funcionando

desde antes. Em terceiro lugar lembramos a fundação de duas novas ordens, a dos

franciscanos e a dos dominicanos, ambas fundadas na primeira metade do século XIII, das

quais seus religiosos afluíram abundantemente para os estudos universitários.

Neste ambiente favorável aos estudos a escolástica pode chegar ao seu apogeu, na

precisão da escrita e na conciliação da fé com a razão nas grandes sínteses escolásticas. Em

linhas gerais, formam a grande síntese filosófica da escolástica as seguintes teses:

Em criteriologia: existência da certeza e objetividade do conhecimento. Em metafísica: individualismo acentuado, construído sobre as noções aristotélicas de ato e potência, substância e acidente. Em cosmologia: composição substancial dos seres. Em psicologia: espiritualismo moderado, unidade, substancialidade e espiritualidade da alma, distinção entre o conhecimento sensitivo e o intelectual, origem sensitiva das idéias, livre arbítrio. Em teodicéia: transcendência e personalidade de Deus, Criação e Providência. (FRANCA, 1964, p. 86)

Não nos cabe aqui analisar cada uma destas teses, mas apenas notar seus aspectos

gerais. A base filosófica de um escolástico era a filosofia de Aristóteles, a lógica, a física, a

metafísica, os conceitos e definições eram todos aristotélicos, desde que não contrariassem a

fé católica. Neste tema, já antigo, da conciliação da Fé com a Razão, está uma das notas da

filosofia escolástica, que procurou harmonizar o que pode, aparentemente, ser tido por

contraditório. Esta relação do pensamento medieval da conciliação entre a Fé e a Razão já

Page 32: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

31

está presente até mesmo nos primeiros Padres da Igreja (cf. FRANCA, 1951, p. 147-155),

sendo Santo Agostinho um dos mais esforçados para a conciliação, é dele a frase (Sermão

43): intellige ut credas, crede ut intelligas (entende a fim de que creias, crê a fim de que

entendas). Mais tarde, Santo Anselmo diria: Credo ut intelligam, intellego ut credam (creio

para entender, entendo para crer) e também: fides quaerens intellectum (a fé que busca o

entendimento). Todo esse esforço chega até São Tomás que definitivamente resolve a questão

definitivamente: “Filosofia e teologia são duas ciências distintas, não contrárias: razão e fé

não se hostilizam.” (FRANCA, 1964, p. 104).

Cabe agora analisar mais de perto o método escolástico e suas implicações na

pedagogia. Nas escolas medievais um estudante medieval tinha por base seus estudos no

trivium (gramática, retórica e dialética) e no quadrivium (aritmética, geometria, musica e

astronomia), que era como estavam divididos os saberes básicos. O idioma aprendido era o

latim, língua na qual estavam as obras legadas pela cultura greco-romana.

A princípio o que chama a atenção é o vocabulário escolástico, que é muito complexo

aos leigos, mas ao mesmo tempo muito preciso. As palavras e os conceitos, como “acidente”,

“transcendente”, “imanente”, “gênero”, “espécie”, e tantos outros, cada qual possui uma

definição própria e precisa, oriundas da filosofia, geralmente de Aristóteles. Quem se

aventurava a responder questões ou a construir um sistema filosófico ou teológico deveria

utilizar as palavras e conceitos de forma precisa e logicamente concatenada, para não incorrer

em erros.

Se pegarmos alguns textos de São Tomás isto fica mais claro. Na Suma Teológica ele

responde a algumas questões em poucas linhas, mas estas estão carregadas de palavras e

conceitos bem definidos, fazendo que um leitor inexperiente se perca ou pouco entenda a

argumentação.

Assim sendo, o escolástico deveria dominar uma linguagem técnica, além dos métodos

lógicos e dialéticos, como o silogismo, analogia, etc. Isso sem contar o domínio da língua

latina, o idioma intelectual da época.

Com tudo isto podemos dizer que a teologia na época escolástica assume verdadeira

forma de ciência e se eleva acima de todas as outras ciências, o que justifica a posição de

excelência que gozou a teologia nas Universidades, apesar de muitas vezes as faculdades de

Artes serem as mais afamadas e influentes.

Outra base da escolástica são as Autoridades, que nada mais são que os grandes

sábios, cristãos (os Padres geralmente) e os pagãos (Aristóteles, Sêneca, Cícero). O jovem

Page 33: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

32

escolástico se apoiava nos estudos dos antigos para iniciar seus próprios estudos, ali

encontrava verdadeiras fontes de saber. A opinião dos antigos era respeitada e uma tese

apoiada com opiniões dos sábios tinha mais crédito. Mas tudo isto não impedia que se

revisasse e até corrigisse o que de errada havia nessas opiniões, como de fato ocorreu muitas

vezes. Sobre os argumentos de autoridade São Tomás diz: “O argumento de autoridade

baseado na razão humana é fragilíssimo.” (SÃO TOMÁS apud FRANCA, 1964, p. 133); “O

estudo da filosofia não tem por fim conhecer a opinião dos homens mas a verdade das coisas.”

(SÃO TOMÁS apud FRANCA, 1964, p. 133).

Em um mundo onde a cultura livresca não era muito difundida, os mais importantes

exercícios e testes eram feitos oralmente. Um texto gerava uma questio (questão) e com o

empenho de mestres e alunos para dar uma resposta surgia a disputatio (disputa). As disputas

eram organizadas e versavam sobre um tema previamente definido. Le Goff (1989, cf. p. 77-

78), citando o Padre Mandonnet, descreve o processo da disputatio muito bem, basicamente o

exercício ocorria pelas seguintes etapas: a) antes de tudo o mestre debatedor fixava o dia e o

tema da disputa com antecedência, b) na hora da disputa o mestre e seu bacharel debatiam

com outros mestres, bacharéis e estudantes que concorriam à disputa, c) após a disputa o

mestre ordenava todas as teses apresentadas e resolvidas na disputa e respondia todas as

questões de acordo com a sua doutrina, respondendo possíveis objeções lançadas

anteriormente, d) por fim, a resolução final do mestre sobre as questões era passada por

escrito, podendo ser publicada.

Havia também os quodlibets (quodlibetos) em que os mestres respondiam uma questão

de qualquer assunto por qualquer um que a fizesse, sem nada pré-estabelecido (VERGER,

1990, p. 57).

Concluindo, afirmamos que um aluno formado pelo método escolástico deveria

dominar bem uma linguagem técnica, métodos lógicos e dialéticos, os ensinamentos das

Autoridades, bem como possuir uma boa desenvoltura da fala e memória para os principais

exercícios.

Page 34: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

33

2.3 O Humanismo Renascentista

Não querendo entrar em uma discussão historiográfica, que aponta a existência de

“humanismos” e “renascimentos”, ao invés de “humanismo” e “Renascimento”, procuraremos

traçar um quadro mais homogêneo e geral do que e quais foram às inovações oriundas desses

movimentos nos séculos XV e XVI principalmente.

Manacorda (1996) indica que os humanistas do Renascimento têm sua origem na

atividade de mestres italianos, livres de regulamentos imperiais ou eclesiásticos, que

ensinavam em escolas comunais (cf. p. 168-175).

Por sua vez, Le Goff nos mostra como “[...] o ensino universitário se abria às novas

preferências.” (1989, p. 116) em seus estudos e métodos, como um maior interesse pelas

obras da antiguidade clássica, pela filosofia platônica e pelos estudos filológicos. De inicio

nas Universidades italianas de Bolonha, Pádua e Pisa, depois se espalhando pelas demais (cf.

p. 116-118).

Sem dúvida foi na Itália surgiram novos mestres que não se enquadravam nas relações

de trabalho pré-estabelecidas, fixos nas universidades ou numa escola eclesiástica, mas sim

dispersos pelas cidades, ensinando privadamente ou em academias ou escolas criadas por

particulares ou pela comuna (cidade) como já referimos, estes mestres estiveram ligados à

corrente renascentista em seu início no século XV, mas se fizermos um exame profundo em

algumas correntes filosóficas que foram difundidas nas Universidades nos séculos XIII e XIV,

como o averroísmo31, podemos também indicar aí a gênese do humanismo renascentista.

Porém se tivermos que dar um peso maior a uma dessas teses, que no todo não são

contraditórias e excludentes daríamos à primeira, pois se as universidades “[...] deixaram-se

arrastar momentaneamente na corrente da Renascença [...]” logo “[...] tornaram-se o ponto de

apoio desta resistência contra o novo espírito da Renascença [...]” (BRAGA, 1892, p. 244).

As mudanças pedagógicas sugeridas pelos humanistas aparentemente são sensíveis,

mas carregadas por vezes de filosofias contrárias ao purismo católico que gerou grande

repulsa nos séculos XV e XVI, mesmo porque boa parte dos mestres era adepta de doutrinas

31 A corrente do averroísmo latino surge no século XIII baseada nos comentários das obras de Aristóteles feitos

por Averroes (1126-1198), filósofo mulçumano da Andaluzia (Espanha). As suas principais teses filosóficas são a teoria das duas verdades, a unidade da inteligência ativa, a negação do livre arbítrio, negação da imortalidade pessoal, negação da Providência divina. O Averroísmo foi muito combatido em seu tempo, como evidentemente se percebe, suas afirmações contrariam em muito a doutrina cristã.

Page 35: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

34

completamente contra o cristianismo. Também se destaca o fato da oposição que fazia a

pedagogia humanística, à escolástica corrompida, decadente e pedante seja por uma escrita

presunçosa e oca, seja pela vangloria que reinava em alguns mestres do final da Idade Média.

Sobre esta decadência do método escolástico Pe. Leonel Franca comenta:

Como sintomas desta degenerescência interna, a linguagem carrega-se de barbarismos; o método didático, perdendo sua antiga singeleza e concisão, complica-se em distinções e subdistinções; a dialética, exorbitando de sua função de disciplina do espírito, arvora-se em soberana, absorvendo aos poucos a metafísica e a psicologia; as discussões transformaram-se em logomaquias e em justas pomposas de grande aparato tecnológico. A tudo isto acrescente-se a hostilidade de alguns filósofos contra as ciências experimentais, que então despertavam suscitando o entusiasmo geral e ter-se-ão as principais causas de decadência da escolástica. (FRANCA, 1964, p. 118)

Basicamente a renovação pedagógica humanista consiste em:

[...] leitura direta dos textos, inclusive os da literatura grega até então ignorada; o amor pela poesia; uma vida em comum entre mestre e discípulo, na qual o estudo e as disputas doutas são acompanhadas de passeios, diversões, jogos e brincadeiras; uma disciplina baseada no respeito pelos adolescentes, que exclui as tradicionais punições corporais; uma ampla série de aprendizagens que vai do estudo sobre livros à música, às artes e até os exercícios físicos próprios da tradição cavalheiresca. (MANACORDA, 1996, p. 180)

Cremos que estas mudanças tenham ficado mais reservadas ao ensino dos

adolescentes, com menor influência, mas não desconsiderável, na Universidade. Além destas

inovações, no ensino acadêmico renovam-se os elementos do conhecimento científico, onde

as Autoridades cedem mais lugar à observação empírica32 (cf. BRAGA 1892, p. 259), há o

surto das ciências experimentais, estas que nem sempre foram marcadas por um rigorismo

científico adequado, caindo muitas vezes na alquimia, cabala, magia e ocultismo, sendo que

só no final do século XVI em diante é que este rigor seria restaurado (Galileu, Kepler,

Newton, Copérnico, etc.). Os estudos filológicos da língua latina e grega também são uma

marca do período.

32 A visão de que antes do Renascimento se rejeitava a observação empírica em detrimento dos argumentos de

autoridade é falsa. Santo Alberto Magno, em sua obra sobre botânica (De Vegetatibus) diz sobre esta ciência: “Em tais estudos só a experiência dá certeza [...]” (SANTO ALBERTO MAGNO apud FRANCA, 1964, p. 134). O que ocorreu século XVI foi uma busca mais interessada e constante das verdades científicas através da experiência.

Page 36: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

35

Considerável foi a importância do humanismo renascentista na história. Mesmo os

jesuítas em seu método pedagógico aceitaram os estudos de Humanidades (poesia e literatura

clássica), o empirismo desenvolveu-se à sombra das concepções dos sábios do período e

tornou-se base da ciência moderna, também não se exclui o fato de que o Renascimento

influenciou consideravelmente a Reforma Protestante, o que ocasionou uma profunda

mudança no ocidente, inclusive o fato de o protestantismo ter uma outra dinâmica pedagógica

desvinculada da Igreja Católica. Por todos estes motivos temos a certeza de que o humanismo

renascentista foi um importante marco na história da pedagogia ocidental.

2.4 A Pedagogia Jesuítica

A Companhia de Jesus, a Ordem dos jesuítas, foi fundada em 1534 por Inácio de

Loyola33 e alguns companheiros em Paris. Seus objetivos eram abrangentes, deveriam lutar

para a maior glória de Deus neste século, combatendo erros contra a fé advindos do nascente

protestantismo, evangelizar os pagãos, ajudar de forma zelosa na salvação dos fiéis, etc. A

Ordem guardava grande zelo e fervor, sua organização era harmônica e até lembrava um

exército ao cumprir seus deveres, no espírito da Contra-Reforma.

Pedagogicamente a Companhia foi importantíssima para a história ocidental, pois seus

métodos foram implantados em uma grande quantidade de estabelecimentos: “Em 1750,

poucos anos antes da sua supressão (1773) por Clemente XIV, a Ordem de Inácio dirigia 578

colégios e 150 seminários, ao todo 728 casas de ensino.” (FRANCA, 1952, p. 5). Afora isso, a

Companhia controlou também universidades ou parte delas (como no caso da Universidade de

Coimbra). Muitos intelectuais, filósofos e teólogos de primeira grandeza se formaram nas

casas de ensino dos jesuítas.

33 Santo Inácio de Loyola (1491-1556), espanhol, basco, era militar de profissão. Foi ferido gravemente na

batalha de Pamplona (1522) e enquanto se recuperava fisicamente dos ferimentos leu hagiografias, a vida dos santos, decidiu depois das leituras abandonar sua vida passada e buscar o serviço de Deus. Depois de um tempo de retiro espiritual foi estudar em Paris, onde em 1534 funda com outros amigos a Companhia de Jesus e seus integrantes passam a ser conhecidos por jesuítas. Depois de muitos anos se dedicando a organização da Companhia em Roma morre nesta mesma cidade. Foi canonizado em 1622, pelo Papa Gregório XV. O lema dos Jesuítas é tirado de uma carta de São Paulo: “Ad Majorem Dei Gloriam”, “À Maior Glória de Deus” ou “Para a Maior Glória de Deus”.

Page 37: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

36

O método pedagógico era consistente, bem ordenado e regulado. Estão assentados em

dois documentos principais, as Constituições da Companhia de Jesus e o Ratio Studiorum ou

“Plano de Estudos da Companhia de Jesus” (cf. FRANCA, 1952, p. 5).

As Constituições foram elaboradas para servir como um regimento interno da Ordem,

nela, porém, há uma parte (4a Parte Principal) que trata exclusivamente do ordenamento dos

estudantes, colégios e Universidades dominados pela Companhia. A versão definitiva

aprovada pela Primeira Congregação Geral é de 1558 e a 4a Parte Principal trata de temas

como as questões materiais dos colégios, quanto à admissão e conservação dos estudantes nos

mesmos colégios e nas universidades, dos bons costumes, de como os estudantes podem bem

aprender, do que se ensinará nos colégios, escolas e universidades e outras tantas questões de

temas muito diversos.

Apesar de dar um amplo regimento dos estudos, as Constituições pouco falam de

como ministrar o ensino das Artes e dos estudos superiores, ou seja, há aqui uma preocupação

maior com a ordenação geral e com muitas minúcias necessárias ao bom funcionamento das

instituições de ensino, mas nem tanto uma preocupação em sistematizar a pedagogia e os

métodos.

O complemento e aperfeiçoamento definitivo às Constituições foi dado pelo Ratio

Studiorum após longas décadas de estudos pedagógicos, aplicação experimental, críticas e

melhoramentos que resultaram no texto final de 1599.

O Ratio Studiorum é um pequeno compêndio pedagógico que se preocupa em

estabelecer diretrizes gerais e específicas dos diversos ensinos oferecidos nos colégios

jesuíticos, como gramática (latina, grega e hebraica, mas deixa caminho livre para o caldeu,

siríaco e o idioma das Índias), retórica, humanidades, matemática, Sagrada Escritura, teologia,

filosofia, como também traça regras para toda a hierarquia pedagógica que envolve as casas

de ensino da Companhia, como o provincial, reitor, prefeito dos estudos, professores e bedéis

(assistentes dos professores). O texto está principalmente voltado para os professores.

Nas seções do texto, onde cada matéria é tratada individualmente, se discute as

aplicações de ensino de determinada matéria; sobre o que o professor deve fazer e não fazer,

de como expor um conteúdo em conformidade com a fé católica e de qual é a finalidade de

tais estudos.

Além disto, no texto há também as normas gerais dos professores, onde se expõe como

se devem formar os alunos não só para as ciências, mas também para a piedade e o serviço de

Deus. Nota-se por isto que os a Companhia de Jesus não se preocupou em apenas oferecer um

Page 38: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

37

estudo científico aos seus alunos, mas também ajudou seus alunos na tarefa de serem bons

cristãos, dentro da fé católica.

Nas regras dos provinciais, reitores, etc., se apresentam quais são suas competências,

evidentemente mais abrangentes que a dos professores comuns. Há também uma parte, com

vários capítulos, destinada à formação e regulamentação das Academias, de teologia,

filosofia, gramática, retórica e humanidades. Afora isto questões menores como a dos bedéis,

das provas de avaliação dos alunos, dos prêmios, das regras para os moderadores das

academias e dos escolásticos da Companhia, e por fim há também as regras de como se deve

proceder com os estudantes que estudam nos colégios e universidades da Companhia, mas

que não são membros da mesma Ordem.

O Ratio Studiorum é o modelo final da pedagogia jesuítica. Há nele uma inovação em

relação aos outros métodos já expostos, que é a reorganização de toda a escolástica e

aproveitamento de parte dos estudos do humanismo renascentista. Lendo o texto do Ratio,

bem como o texto das Constituições, isto fica muito claro, se pode perceber como os

conteúdos das matérias e o espírito de ensino estão de acordo com a norma mais ortodoxa do

ensino católico, mas se observa também a inserção de estudos típicos do humanismo, como

línguas e literatura clássica (greco-romana). Porém esta aceitação dos estudos clássicos vem

acompanhada de restrições, já mesmo no texto das Constituições, onde é dito que:

Nos livros de Humanidade étnicos não se leia coisa desonesta. Do demais poderá servir a Companhia como dos despojos do Egito. Dos cristãos, ainda que a obra fosse boa, não se leia quando o autor seja mal; para que não se tome afeição [ao autor]. E é bom que se determinem em particular os livros que hão de ler e os que não [serão lidos], assim nos de Humanidade como nas outras faculdades. (texto das “Constituições” em IPARRAGUIRRES, 1952, p. 453)

E ainda nas Constituições:

Acerca dos livros de Humanidade, latinos ou gregos, escusa-se também nas Universidades como nos Colégios, quanto for possível, de ler à juventude algum [livro] em que haja coisas que ofendam os bons costumes, se não são primeiro limpos das coisas e palavras desonestas. (texto das “Constituições” em IPARRAGUIRRES, 1952, p. 474)

Esta última parte refere-se a “purificação” das obras, que consistia em retirar ou

reformar tudo o que tivesse de desonesto nos textos. Tudo isto foi mantido no Ratio. Desta

Page 39: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

38

forma podemos concluir, com total certeza, de que a introdução dos estudos humanísticos foi

feito, mas com reservas. Desta forma conclui-se que o método pedagógico dos jesuítas

apresentou inovações, mas manteve-se arraigado à ortodoxia escolástica e católica, não só

quanto às doutrinas, mas também em relação à piedade cristã.

O texto das Constituições a Companhia deixa bem claro que a Companhia não se

envolveria no ensino de Direito e Medicina, mas apenas ministrará aulas nos cursos de

Humanidades e nas Faculdades de Artes e de Teologia: “O estudo de Medicina e Leis, como

mais remoto de nosso instituto, não se tratará nas Universidades da Companhia, ou ao mesmo

não tomará ela por si tal assunto.” (texto das “Constituições” em IPARRAGUIRRES, 1952,

p. 471). Tal prescrição ecoa no Ratio, que não apresenta normas aos professores desses cursos

e muito menos propõe a formação de academias destas Faculdades.

Como já relatamos, o ensino escolástico permaneceu na pedagogia jesuítica. Tanto no

Ratio como nas Constituições isto é bem claro, segue o texto do primeiro: “Os membros de

nossa Sociedade devem expressamente seguir o ensinamento de São Tomás na teologia

escolástica.” (texto do Ratio em FARREL, 1970, p. 33), porém se permitia que discordasse de

São Tomás na questão da Imaculada Conceição, ou em outras questões mais obscuras. O

Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, continua em voga na Companhia de Jesus. Em

verdade podemos ver nos dois documentos (Constituições e Ratio) certa evolução no

tratamento da obra de Pedro Lombardo, no texto das Constituições é incluído no estudo de

Teologia o Livro das Sentenças, mas no Ratio, na parte correspondente ao ensino de Teologia

Dogmática encontramos apenas a referência a Suma Teológica de São Tomás. Pe. Leonel

Franca (1952) diz que “[...] contribuíram outrossim os jesuítas para a introdução definitiva da

Suma theologica como livro de texto em substituição ao velho Pedro Lombardo, cujo Livro

das Sentenças se comentou durante três séculos nas aulas de teologia.” (grifos do autor, p.

35). Notamos, portanto, mudanças e aprimoramentos na pedagogia dos jesuítas, que cortou de

seu programa de estudo o Livro das Sentenças.

As aulas pouco diferiam estruturalmente das do modelo escolástico, a leitura de

passagens, citações e ditados aos alunos continuam, bem como as disputas escolásticas.

Porém no Ratio fica vedado ao professor se emaranhar em questões inúteis e obsoletas ou

mesmo lançar um argumento de autoridade em detrimento da razão interna da questão (cf.

FRANCA, 1952, p. 35), vemos nisto um esforço de regeneração do método escolástico,

decaído no final da Idade Média.

Page 40: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

39

É notório pelos textos do Ratio e das Constituições que o ensino é voltado para fins

maiores que o simples conhecimento, deve-se buscar as letras “[...] para ajudar a conhecer e

servir mais a Deus Nosso Criador e Senhor [...]” (texto das “Constituições” em

IPARRAGUIRRES, 1952, p. 440) e ajudar as almas alheias.

Decidimos abreviar por aqui a exposição do riquíssimo método pedagógico dos

jesuítas, por ser assunto muito longo e complexo, fora de nossas competências e limites deste

trabalho, mas cremos ter dado uma boa visão geral sobre tal assunto.

Page 41: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

40

3- Universidade de Coimbra. Breve história da universidade

3.1 Introdução

A Universidade de Coimbra se caracteriza por ser uma fundação real, diferentemente

de muitas outras que nasceram de forma “espontâneas” ou de migrações estudantis. Apesar do

desenvolvimento contínuo dos estudos em Portugal a partir dos séculos XI-XII, a

Universidade se estabeleceu graças ao poder real, este que foi quiçá o maior apoio de mestres

e estudantes durante muitos séculos.

Desde o final do século XI e início do século XII podemos identificar claramente dois

pólos aonde qualitativamente e quantitativamente os estudos se concentravam em Portugal:

Lisboa e Coimbra, cidades estas onde o rei e sua corte exerciam grande influência.

Mesmo antes de falar do estabelecimento da Universidade, gostaríamos de dizer que a

Universidade de Coimbra nasce em Lisboa, onde o Estudo Geral se instala pela primeira vez.

Porém com o tempo, por diferentes motivos, alguns do interesse real, o Estudo Geral fica

itinerante, vagando entre Lisboa e Coimbra. Enumeremos os períodos correspondentes em

que o Estudo ficou instalado em cada cidade: 1o- Lisboa (1290-1308), 18 anos, 2o- Coimbra

(1308-1338), 30 anos, 3o- Lisboa (1338-1354), 16 anos, 4o- Coimbra (1354-1377), 23 anos,

5o- Lisboa (1377-1537), 160 anos, 6o- Coimbra (1537- até hoje), neste ano completando 472

anos de sua última transferência e ao todo 719 anos de existência.

Os motivos de cada mudança serão abordados, mesmo que minimamente. Fizemos a

opção de fazer o breve histórico da Universidade a partir de seu início até os arredores de

1559, data dos estatutos que analisaremos. Não comentaremos sobre a história da instituição

nos séculos posteriores ao XVI, por não fazer parte do escopo de nossa análise.

As fontes impressas e a bibliografia referente à história da Universidade são escassas,

o que nos levou a ter acesso a apenas dois livros que tratassem mais diretamente sobre o tema,

um de Theophilo Braga e outro de Teixeira Bastos34. O grande problema é que não foi

34 De Theophilo temos “Historia da universidade de Coimbra nas suas relações com a instrucção publica

portugueza”, em quatro volumes, publicação do primeiro volume em 1892 e do último em 1902 e de Teixeira Bastos temos “A vida do estudante de Coimbra (Antiga e Moderna)”, obra de 1920 que reproduz textualmente duas conferências dadas pelo autor sobre o tema do título.

Page 42: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

41

possível, assim nos pareceu, ter uma idéia realmente abrangente sobre o Estudo

conimbricense, pois Theophilo é um historiador positivista que deu privilégio em boa parte de

sua obra às relações do Estado Português com a dita a Universidade, ou seja, pouco falou do

papel da Igreja na consolidação dos estudos. Sem contar o fato de que seu espírito anticlerical

é explicito, por diversas vezes durante sua obra ele ataca a Igreja de diversas formas, ou ainda

o que esteja ligado à ela, tendo ainda um ódio todo especial contra os jesuítas. Teixeira Bastos

descreve alguns aspectos importantes que podem completar a análise de Theophilo, mas ainda

assim é muito superficial por se tratar de uma transcrição de uma conferência.

Por outro lado, como não tivemos acesso uma bibliografia considerável, temos que nos

perguntar se de fato há meios concretos de se estabelecer as relações que gostaríamos de

descrever entre a Igreja e a Universidade. Esta é uma pergunta sem resposta no todo, mas se

fizermos analogias entre o Estudo Geral de Portugal com o Francês ou Italiano, temos que

inferir, e os indícios nos levam a isto, que a Igreja Católica teve papel importante no

estabelecimento da Universidade Conimbricense. Fizemos certo esforço para mostrar isto,

quando possível. Por exemplo, é inegável a participação da Igreja quando vemos a questão

das concessões papais, quando vemos o estatuto jurídico dos estudantes, quando vemos a

relação dos mosteiros e dos mestres com a Universidade, bem como quando olhamos o

Estatuto de 1559, futuro objeto de análise, ao ver tudo isto é clara a importância da Igreja

Católica. No texto procurou-se abordar estes temas para que o texto não ficasse nem

tendencioso nem muito positivista, mas quanto a esta ultima preocupação, não pudemos fazer

muita coisa com o material de que dispúnhamos e inevitavelmente nosso texto se assemelha a

um texto positivista.

Outro problema foi à falta de dados que nos possibilitasse escrever a relação do corpo

docente e discente com a Igreja e com o Estado Português. Isto só nos foi possível em

momentos muito específicos, como no caso de André Gouveia e seu corpo de professores

(caso de que faremos menção em breve), ou outros fatos que Teixeira Bastos descreve.

Page 43: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

42

3.2 Antes da fundação em 1290

O início da Universidade de Coimbra-Lisboa é similar aos outros centros, em que

desde o século XI a atividade intelectual começa a florescer nas cercanias das escolas

episcopais.

Desde o ano mil o primeiro acontecimento marcante de que temos notícia é a fundação

de um Colégio (Seminário) em Coimbra, junto a Igreja de Santa Maria, obra do bispo D.

Paterno. Esta organização tinha por finalidade, como é evidente, a formação do clero, porém

depois esteve aberta também a leigos desejosos de aprender (cf. BRAGA, 1892, p. 29).

Por esta época, e presumimos até o século XII, o ensino em Portugal tinha deficiências

de ordem quantitativa e qualitativa. Na obra de Theophilo Braga, citada anteriormente, o

período dos séculos XI e XII é mal relatado, e no século XIII é que voltamos a ter mais

informações sobre os estudos em Portugal. Pela obra, somos levados a crer que de fato não há

muitos acontecimentos relevantes na educação portuguesa por estes séculos, além do

desenvolvimento das escolas já existentes, o que era uma realidade não só em Portugal, mas

em toda a Europa.

Estas deficiências talvez estejam confirmadas pela concessão de D. Sancho I em 1192,

em que este monarca concedeu dinheiro ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra para que seus

cônegos estudassem na França (cf. BRAGA, 1892, p. 30).

Como dito, só vemos estes avanços no século XIII. Neste século se criaram novos

colégios e os já existentes se aprimoram ainda mais, citemos dois exemplos: em 1266 o bispo

de Évora e Lisboa criou um Colégio (Colégio dos Santos Paulo, Eloy e Clemente) onde se

ensina latim, grego, teologia e cânones; em 1269 foram fundados no Mosteiro de Santa Maria

os estudos de gramática, lógica e teologia pelo abade de Alcobaça (cf. BRAGA, 1892 p. 29).

A biblioteca do mosteiro de Alcobaça, nas palavras de Theophilo Braga, “É

indisputavelmente uma das mais opulentas coleções manuscritas da Idade Média [...]”

(BRAGA, 1892, p. 54), que ao cabo daquele século contava com 82 volumes.

Page 44: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

43

3.3 Fundação da universidade em 1290

Em meio ao fervilhar da atividade intelectual em Portugal, ocorreu a iniciativa do

clero e do poder real para a fundação da Universidade de Coimbra.

As causas, os motivos, da fundação são de ordem variada. No período que compreende

a segunda metade do século XIII, o Direito Romano foi vulgarizado em Portugal, por uma

influência provinda dos estudos da Universidade de Bolonha. Por sua vez, o poder real tentou

se apropriar do Direito Romano para o maior proveito do Reino e para a Defesa de seus

privilégios, da mesma maneira que o Imperador do Sacro Império. Ou seja, por parte do poder

real, era importante que houvesse um Estudo Geral em Portugal para suprimir a necessidade

de peritos de Direito.

As necessidades também existiam no clero. Se um jovem clérigo precisasse ter um

estudo mais aprimorado deveria recorrer a alguma universidade fora de Portugal e assim seu

mosteiro ou diocese o enviava custeando seus estudos. Porém não era algo certo a sua volta

para prestar seus auxílios a quem o enviou, visto que havia muitos perigos nas estradas o risco

de perder a vida era real, além disto, havia também os perigos que o estudante poderia

encontrar na nova cidade. Outro motivo era que tal jovem podia ser contratado por alguém

que lhe estivesse mais próximo, como um outro rei ou prelado e assim não voltar mais para

Portugal. Enfim, não era tão conveniente enviar os jovens para estudar fora, o melhor era

fundar um Estudo Geral.

Outro motivo da fundação foi à própria qualidade dos estudos. Com a Universidade

estabelecida era certo que os estudos se aprimorariam, tanto pelas rendas fixas que afluiriam,

como pelo incremento do corpo docente e dos estudantes, que inevitavelmente seriam atraídos

ao Estudo. Isso pode ser explicado tendo em vista o esplendor das universidades espanholas,

que atraiam muitos estudantes, elas que nas palavras de Theophilo “[...] faziam Portugal

intelectualmente feudatário da Espanha [...]” (BRAGA, 1892, p. 77).

D. Diniz, reinante desde 1279, teve grandes dificuldades no início de seu reinado e só

pode fundar os estudos só depois de uma década do início de seu reinado. Alguns bispos

portugueses se fizeram contrários à pretensão de D. Diniz, que gostaria que o rendimento de

determinadas Igrejas, das quais era o padroeiro, fossem destinados ao Estudo Geral.

Porém entre o baixo clero D. Diniz, encontrou um aliado. Em 1288 prelados, abades e

reitores se reuniram e fizeram uma petição ao rei, pedindo a instalação do Estudo Geral e ao

Page 45: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

44

papa Nicolau IV o “[...] consentimento para dos rendimentos das suas igrejas poderem pagar

os salários dos mestres e doutores [...]” (BRAGA, 1892, p. 79) do Estudo que queriam que

fosse instalado em Lisboa.

Em verdade Theophilo Braga (BRAGA, 1892) afirma:

Quando os prelados se dirigiram ao papa Nicolau IV em 12 de novembro de 1288, já os Estudo Geral estava organizado, dotado e funcionando ativamente em Lisboa; o que pediam ao papa recém-eleito era apenas a confirmação canônica da aplicação das rendas eclesiásticas. (p. 80)

Esta confirmação e a instauração oficial do Estudo ocorreu em 9 de agosto de 1290,

aqui já apartado o conflito com os bispos (cf. BRAGA, 1892, p. 81). O papa concede a licença

dos estudos em Artes, Direito Canônico e Civil e Medicina, mas não em Teologia (cf.

BRAGA, 1892, p. 80), que na época era oficialmente permitida unicamente na Universidade

de Paris. Porém o papa permitiu que se ensinasse esta faculdade nos conventos (para os

religiosos) dominicanos e franciscanos, o que era o costume na época, ou seja, a Universidade

não podia conferir graus em Teologia aos estudantes, e os estudos teológicos ocorriam alheios

aos outros da Universidade, tanto que nem sequer havia salário para os mestres em Teologia

dos conventos.

Junto à instituição vieram os privilégios. O papa supracitado concedeu o foro

eclesiástico aos estudantes e pediu a D. Diniz o arrendamento de casas devolutas para que os

estudantes, que pagariam o aluguel, como também pediu segurança e imunidade aos alunos e

seus servos. O rei assim fez e, expropriando propriedades clericais (e pagando a indenização),

mandou que se construísse casas para os estudantes (cf. BRAGA, 1892, p. 81-83).

3.4 Da fundação em 1290 até 1377, início da última estadia em Lisboa

Cabe agora analisar o relativamente curto tempo (menos de 100 anos) em que a

localidade do Estudo Geral mudou por quatro vezes, bem como os motivos destas mudanças.

Após 18 anos em Lisboa, ocorre a primeira mudança do Estudo para Coimbra. D.

Diniz pediu ao papa Clemente V que se transferisse de local da Universidade. Os motivos de

tal mudança foram rixas públicas entre estudantes e citadinos, certamente por conta dos

Page 46: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

45

privilégios que gozavam os primeiros, como aluguéis e foro privilegiado. (cf. BRAGA, 1892,

p. 111-112).

Outro motivo que Theophilo Braga alude foram os estudos teológicos do mosteiro de

Santa Cruz de Coimbra. Como já dito anteriormente, não havia a faculdade de Teologia

subordinada à Universidade, os estudos eram dados apenas nos conventos. Com estas

disposições, era difícil de manter um estudante interessado em Teologia na Universidade,

visto que eles correriam para Paris para se graduarem. (cf. BRAGA, 1892, p. 114).

Porém, tendo um razoável centro de estudos teológicos no mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra certamente isto seria um meio de diminuir o êxodo de estudantes e então dotar

Portugal de bons mestres em Sacra Pagina (Sagradas Escrituras).

Nos estatutos dados pelo rei D. Diniz se lê:

Fundamos na nossa Universidade de Coimbra, a qual neste ponto damos a preferência, e inauguramos radicalmente o Estudo Geral, querendo que sejam mestres em Sacra Pagina os religiosos das Ordens dominicana e franciscana... Também um Doutor em Decreto, e um Mestre em Decretais... Além disto, para que o reino possa ser melhor governado, queremos que haja um professor em Leis, para que os governantes e Juízes do nosso reino possam com o conselho dos peritos decidir as questões sutis e árduas. Também ordenamos que no sobredito Estudo, haja um Mestre em Medicina para que agora e no futuro os corpos de nossos súditos sejam dirigidos sob o devido regime da sanidade. Item, queremos que aí mesmo hajam Doutores e Mestres de Dialética e Gramática para que recebam com o fundamento de quererem ser ministros e juízes e nos que acharem mais agudeza de inteligência aqueles que desejarem chegar a maiores ciências. (Livro Verde, fl. 12 y.-Também na Monarch. Luzitana, P. v., App. Escr. XXV; e nas Provas da História geral., t. I, p. 75 apud BRAGA, 1892, p 106.)

Estas são as disciplinas que haviam, não sendo citada apenas a cadeira de Musica, que

a existência Theophilo dá como certa, desde dantes.

Antes mesmo dos Estatutos, D. Diniz em 1307 confirmou todos os privilégios da

Universidade de então e mais outros que acrescentou, como: deixa a encargo da Universidade

a eleição dos reitores, bedéis, conselheiros, etc., isentou os estudantes de “pedágios” se

viajassem no reino, entre outras garantias (cf. BRAGA, 1892, p. 107).

Uma coisa importante de se ter em mente é que a Universidade de Coimbra nesta

época não possuía ainda a licentia ubique docendi, que permitia que os graduados ensinassem

em toda a Cristandade, possuía apenas a licentia ubique regendi, ou seja, quem era graduado

podia apenas lecionar no Reino de Portugal.

Page 47: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

46

É de se notar, como faz Theophilo Braga, que “[...] desde 1307 a Universidade ficou

inteiramente real [...]” (BRAGA, 1892, p. 115). Ou seja, há uma preponderância muito grande

do poder real para a constituição do Estudo, abrangendo isto aos Estatutos, privilégios,

prebendas e até a determinação do local da Universidade.

As prebendas, o salário dos mestres e doutores, a partir de 1307 ficaram se não

completamente, ao menos principalmente a encargo real. Pela mudança à Coimbra os

prelados e abades que antes mantinham com suas rendas parte dos gastos do Estudo, agora

não mais contribuíam. Sendo assim D. Diniz obteve do papa a permissão de anexar os

rendimentos de seis igrejas do padroado para pagar os custos da Universidade.

Após 30 anos em Coimbra, a Universidade é transferida novamente para Lisboa por D.

Afonso IV. O motivo alegado é “a assistência que n´esta cidade fazia El-rei a maior parte do

anno” (Liv. IV da Canc., fl 30 y. Ap. J. P. Ribeiro, Ind. chr. apud BRAGA, 1892, p. 111).

Aqui se faz notável o caráter real da Universidade, ou a preponderância do poder do monarca

sobre ela.

Não podemos afirmar com seguridade uma data, mas entre estas duas estadias da

Universidade em Portugal foram fundada uma cátedra de árabe e hebraico, que Theophilo

alude como derivada da influência raymondista35 (BRAGA, 1892, p. 92).

Não temos notícias dos acontecimentos que marcaram os 16 anos (1338-1354) em que

a Universidade esteve em Lisboa. Somente recebemos novas informações sobre sua história

quando ela novamente é transferida para Coimbra, mas sobre esta mudança, nem sequer

sabemos o motivo. É bem possível que justamente por causa destas mudanças sucessivas

muitos documentos sobre a história desta instituição tenham se perdido (assim alude BRAGA,

1892, p. 123).

Nos 23 anos aproximadamente em que esteve em Coimbra (1354-1377) o mais

marcante de se destacar é a centralização dos estudos na Universidade. Em uma carta datada

de 22 de outubro de 1357, D. Pedro estabelece: “[...] que os Reitores e Conservadores não

consintam que alguém ensine fora das Escolas e dê lição, salvo de Partes [De partibus

orationis ars minor de Donato], ou de Regras, ou de Catão [Disticha Catonis, conjunto de

sentenças morais] ou de Cartula [uma cartilha ou abecedário], ou dos Livros menores; e os

que quiserem ler os Livros maiores os venham ler nas Escolas.” (BRAGA, 1892, p. 117).

35 O Beato Raimundo de Lúlio, pertencente a Ordem Terceira dos Franciscanos, foi um importante filósofo,

poeta, teólogo e missionário espanhol. Nasceu por volta de 1232 e veio a falecer em 1315.

Page 48: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

47

Caso alguém fosse pego ensinando os livros proibidos estava sujeito à multa e se reincidisse

mais duas vezes era expulso36.

3.5 De 1377 a 1537, última estadia da universidade em Lisboa

Em 1377 a Universidade foi transferida novamente para Lisboa. Um dos motivos

aludidos por D. Fernando é o seguinte: “E vendo e considerando, que se o nosso Studo na dita

cidade de Coimbra estevesse, por alguns lentes que de outros regnos mandamos vir não

queriam leer se nom na cidade de Lisboa”. (Carta de 3 de junho de 1377, Livro Verde, fl. 34

apud BRAGA, 1892, p. 120) Ou seja, havia mestres que não queriam vir ensinar em Portugal

a não ser que fosse em Lisboa. Talvez outro motivo foi o interesse de reconfirmar os

privilégios acadêmicos, harmonizando-os conforme o querer do poder real. (cf. BRAGA,

1892, p. 121).

D. Fernando obteve do papa Gregório XI em 1376 insígnias dos graus de bacharel e

doutor e em 1380 a mais importante das concessões até então, a licentia ubique docendi.

Assim entramos agora nos 160 anos em que a Universidade esteve em Lisboa. Período

em que o poder real interferiu duramente na Universidade, por vezes violando a autonomia

universitária como concebida na época. Theophilo Bragra chama este período de “Ditadura

Monárquica”, período iniciado por D. João I.

Gostaríamos de citar algumas destas intervenções que o poder monárquico fez. Sob D.

João I houve uma nova organização da instituição e de seu estatuto. As principais mudanças

feitas por este monarca foram: conferiu ao chanceler do rei o cargo de reitor da Universidade;

subordinou o foro eclesiástico dos alunos ao direito real comum (1384); nomeou quem seria o

provedor e recebedor das rendas da Universidade (em 1414), violando a autonomia que

existia. No reinado de Afonso V alguns lentes foram nomeados pelo rei (cf. BRAGA, 1892, p.

132-133).

Desde então o poder real passou a regular minuciosamente o funcionamento da

Universidade, como as durações dos cursos, anos de freqüência, as repetições dos textos, etc.

36 Para um comentário mais apurado sobre esta lei e os livros permitidos, conferir CARVALHO, Joaquim de,

Estudos sobre a Cultura Portuguesa do século XV,Vol. I, p. 302-309. A.D.1949.

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48

Neste tempo ainda, a Universidade perde uma de suas tradições que era a existência de dois

reitores simultâneos, um do Direito Civil e outro do Canônico, passa então a existir apenas

um reitor.

Já no reinado de D. João II a Universidade perdeu o direito de asilo que existia. Este

direito consistia em proteger qualquer procurado pela justiça, que não poderia ser retirado à

força do estabelecimento. Temos por fim, as intervenções de D. Manuel: “Por último, a

reforma da Universidade por D. Manuel, declarando-se Protetor, fazendo Estatutos, alterando

as funções do Reitor, e nomeando os lentes, assinala uma época nova na existência daquela

instituição pedagógica da Idade Média.” (BRAGA, 1892, p. 133).

Este é o saldo das intervenções que ocorreram no período em que a Universidade

esteve em Lisboa, tendo muita influencia no período posterior, em Coimbra, como veremos.

As mudanças como vemos ocorreram pelas mãos do poder real. Vale lembrar que, como

ainda veremos, este poder do monarca sobre a Universidade permanece no século XVI e nos

séculos posteriores. A explicação a este fato se infere por constituir Portugal neste período um

Estado centralizado, tendo nas mãos do monarca o destino do Estado português, sem que

prováveis fidalgos adversários pudessem ou quisessem fazer oposição. É o fenômeno do

Estado nacional moderno.

Abordaremos alguns acontecimentos importantes para o desenvolvimento da

instituição universitária de Portugal no decorrer dos séculos XV e XVI. Destacaremos os

quatro mais importantes, relativos ao século XV: a fundação da cátedra de teologia, o

protetorado do Infante D. Henrique, a tentativa de formar um novo Estudo Geral pelo Infante

D. Pedro e, por fim, a fundação dos colégios.

Uma cadeira assalariada, a encargo da Universidade, de teologia já se faz existente no

ano de 1400 (cf. BRAGA, 1892, p.134), no reinado de D. João I, antes disto, como já

dissemos, o estudo era administrado por frades mendicantes nos seus mosteiros. Porém não

sabemos exatamente de se desde esta data se conferiam os graus acadêmicos em teologia. O

que nos é certo é que por uma bula de 1453 do papa Nicolau V, o ensino de teologia dos

franciscanos de Lisboa, foi incorporado à Universidade, podendo, a partir desta cadeira,

conferir o grau de Mestre (Doutor) (cf. BRAGA, 1892, p.160-161). Assim se instala

definitivamente o ensino oficial da teologia, mais tarde aprimorado com novas cátedras (D.

Manuel).

Neste começo da segunda metade do século XV, figuram-se como matérias, cujas

cátedras estão assalariadas pelo padroado real, as seguintes: Leis (três cadeiras), Gramática

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49

(quatro cadeiras), Decretais (três cadeiras), Lógica (duas cadeiras), Física (uma cadeira),

Teologia (uma cadeira), Música (uma cadeira) (cf. BRAGA, 1892, p.134). Embora esta

relação das cadeiras não seja conclusiva para afirmar que apenas estas matérias eram

ensinadas na Universidade37, é correto afirmar que em se tratando das sete artes liberais o

ensino era realmente precário se olharmos pelo lado das matérias ensinadas, apenas três:

Gramática, Lógica e Música.

A solução desta precariedade pedagógica só começou a ser resolvida com a Proteção

do Infante D. Henrique38:

Os documentos do Arquivo da Universidade de Coimbra mostram que D. Henrique foi reformador, senão “o segundo criador da Universidade”, como pensava o erudito Brito Ribeiro, pois não só lhe doou instalações próprias, que mandou adornar e acomodar devidamente, senão que lhe insuflou vida nova com o acrescentamento do quadro de estudos. (CARVALHO, 1948, p. 297-298)

D. Henrique de fato foi essencial para o desenvolvimento da universidade, com ele se

inaugurou definitivamente o ensino completo do Trivium e do Quadrivium (Gramática,

Dialética, Retórica, Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Para tal, o Infante em 1431

doou grande terreno em Lisboa, onde se instalaram os Estudos das sete artes liberais que ele

desejara, como também as outras matérias da Universidade. Podemos dizer que D. Henrique

deu a infra-estrutura, tanto logística como intelectual, que a Universidade carecia.

Afora esta doação, o Infante ainda deixou em seu testamento prebendas para os lentes

que ocupassem a cadeira de Prima39 em Teologia, a cada ano eles receberiam 12 marcos de

prata, porém tinham também algumas obrigações que o Infante havia mandado, como fazer

orações e rezar missas pela alma do Infante40. O outro fato marcante do século XV acerca da

Universidade se deu pela tentativa de um novo Estudo Geral na cidade de Coimbra:

O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, que tanto se interessava pela Universidade de Lisboa suscitando a idéia da criação de Colégios junto dela, sentiu a falta que a Coimbra fazia o ter sido despojada do seu Estudo Geral

37 Poderiam haver outras matérias desprovidas de salário ou que fosse ensinada fora da Universidade. 38 “O título de Protetor da Universidade aparece pela primeira vez usado pelo Infante D. Henrique em uma Carta

de 20 de outubro de 1418. ” segundo BRAGA, 1892, p. 135. 39 As cátedras das Universidades eram chamadas pelo nome de horas canônicas, Prima, Terça, Nôa, Vésperas,

nestas horas determinadas do dia os religiosos devem fazer suas orações. Na organização dos cursos, houve a divisão dos estudos pelo mesmo nome das horas canônicas, mas o horário das aulas não é o mesmo correspondente ao da hora canônica, ex: a Prima é a hora canônica correspondente às 6 horas da manha, horário sem aulas na universidade.

40 Parte do Testamento pode ser encontrada no livro de Serafim Leite (vide bibliografia)

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50

em 1377 [...] Lembrou-se pois o Infante D. Pedro de fundar em Coimbra uma nova Universidade, e como Regente do reino em nome de D. Afonso V estabeleceu o Estudo geral por carta do último de outubro de 1443[...] (BRAGA, 1892, p. 144)

Apesar do apoio das autoridades religiosas de Coimbra, este novo Estudo Geral não

começou a funcionar, Theophilo alude isto ao assassinato repentino de D. Pedro em 1449.

Mas em 1450 Afonso V confirmou o que o regente havia feito, ordenando que se

estabelecesse em Coimbra uma nova Universidade, o rei chegou até mesmo a nomear o

Reitor. Porém mesmo assim a Universidade não chegou a funcionar, o motivo nos é ignorado.

Ao cabo de nossa exposição sobre o desenvolvimento da instituição universitária

portuguesa temos a fundação de Colégios juntos à universidade.

Em verdade, as outras universidades como Paris, Bolonha, Oxford, desde muito cedo

tiveram muitos Colégios agregados. Geralmente estes comportavam alunos pobres que viviam

em comum e obtinham ajuda financeira de algum padrinho seja ordem religiosa ou até

particulares. No caso das Ordens religiosas seus Colégios abrigavam primeiramente os

estudantes da referida ordem, e caso houvesse vaga, abrigava estudantes pobres necessitados

de ajuda. Dentro do Colégio podia se encontrar livros, além de haver uma disciplina literária

relacionada aos estudos universitários, bem como uma inspeção da moral (cf. BRAGA, 1892,

p. 159).

Não sabemos o porquê, mas os Colégios só aparecem a partir do século XV, o

primeiro deles foi o colégio de um particular, Dr. Mangancha, um legista sábio que não

deixando herdeiros deixou sua fortuna para a criação de um Colégio, cujas regras ele mesmo

estabeleceu41. Este Colégio, fundado por volta de 1450, tinha por objetivo ajudar estudantes

pobres nos seus estudos universitários, porém o instituto não conseguiu subsistir por muito

tempo e veio a fechar.

Apesar do nome, estes referidos Colégios tinham mais o caráter de asilo, hospício

(Hospitia) para alunos pobres, do que de instituição de ensino, como o nome nos remete. Este

caráter de escola designada com o nome de “Colégio” só aparece mais tarde, estando ligados

aos Colégios de Ordens religiosas (cf. BRAGA, 1892, p. 159). Porém dentro da complexidade

do ensino na época em que analisamos por vezes certos colégios maiores abrigavam estudos

universitários e eram incorporados à instituição universitária, como os Colégios de Santa Cruz

de Coimbra:

41 Para ver as regras deste colégio conferir em BRAGA, 1892, p. 156-158

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51

Entre a Universidade e os Colégios deu-se sempre uma alternativa de importância, ora tornando-se colegial a Universidade, ora os Colégios convertendo-se em Faculdades de Arte, como no tempo do predomínio jesuíta [...] (BRAGA, 1892, p. 172)

Como Theophilo Braga diz, “Em Portugal os Colégios ficaram inteiramente

absorvidos pelas ordens monásticas [...]” (BRAGA, 1892, p. 160), e quando a Universidade

volta para Coimbra em 1537 todas as Ordens estabeleceram ali seus colégios (cf. BRAGA,

1892, p. 159).

A partir da segunda metade do século XV inicia-se uma nova fase na Universidade de

Coimbra, esta que agora passa a sofrer a influencia do Humanismo.

Já no reinado de D. Duarte (1433-1438) pode-se perceber um interesse pela

antiguidade clássica em Portugal, a biblioteca de D. Duarte é prova disto, reúne exemplares de

textos da antiguidade clássica. Bem como no seu reinado já se destaca Eanes Gomes Azurara,

de grandiosa erudição.

Nos reinados de D. Afonso V e de D. João II (1438-1495) a penetração do humanismo

em Portugal continua modesta, como nos tempos de D. Manuel (1495-1521). Este último

monarca fez novo Estatuto à Universidade em 1504. Afora mudanças de ordem

administrativa, pedagogicamente podemos afirmar que a tradição escolástica fora mantida, a

despeito do que inversamente ocorria na Itália e na França, onde os mais influentes

estabelecimentos de ensino da Europa haviam se aberto (temporariamente, lembremos) ao

espírito da Renascença. Tal fato fez com que estudantes portugueses fossem estudar fora de

Portugal, e por vezes buscavam doutorar-se em Salamanca (cf. BRAGA, 1892, p. 315).

Porém não devemos esquecer os benefícios deste monarca (D. Manuel) que aumentou

o número de edifícios da Universidade, criou uma cátedra de Astronomia, proibiu os

estudantes de portar armas no recinto da Universidade42, pretendeu fundar nova Universidade

em Évora (em 1520 comprou terrenos para o novo Estudo geral, que só veio a ser fundado

definitivamente em 1559), manteve com bolsas de estudo alguns jovens em Paris (uns 50) e,

já no final do reinado, fundou novo colégio (Colégio de São Tomás) com a ajuda de um

reconhecido pedagogo português, Diogo de Gouveia (cf. BRAGA, 1892, p. 293-315).

O Humanismo só entraria vigorosamente em Portugal no reinado de D. João III (1521-

1557), porém é no fim de seu reinado (em 1555) que o Colégio real é entregue aos Jesuítas, o

42 Nas Universidades às vezes haviam conflitos estudantis que acabavam em morte.

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que produz uma quebra no domínio dos humanistas renascentistas na mesma instituição.

Theophilo Braga divide em três fases as reformas da Instrução pública portuguesa no reinado

de João III, a citação é longa, mas apresenta um bom resumo na evolução dos estudos,

desconsiderando os seus juízos históricos:

A primeira decorre de 1521 até 1537, em que, depois da chamada de mestres iminentes para os infantes, o rei determina a reforma dos Cônegos regrantes e a fundação dos Colégios de Santa Cruz de Coimbra, para os quais vieram regentes portugueses da França. A segunda efetua-se entre 1537, em que se faz a transladação da Universidade de Lisboa para Coimbra, para a qual são chamados sábios estrangeiros, até 1547, em que chega a Portugal Mestre André de Gouveia com um completo corpo docente, de verdadeiras capacidades, para regerem as disciplinas do novo Colégio real. A terceira fase começa pela perseguição aos mestres franceses, em que figura o detestável cardeal D. Henrique, até 1555, em que D. João III entrega o Colégio real aos Jesuítas, que desde esse momento se acharam dirigindo a educação pública portuguesa. (BRAGA, 1892, p. 337-338)

Fugindo de Lisboa em 1525 por conta de uma peste que assolava a cidade e

instalando-se em Coimbra, D. João III fundou dois novos Colégios junto ao mosteiro de Santa

Cruz de Coimbra, um era o Colégio de Santo Agostinho e o outro era o de São João Batista,

além da supracitada reforma dos Cônegos. Os cursos se iniciaram em 1528: “Em outubro

deste ano começaram a reger-se os cursos com alguns Mestres vindos de Paris, em forma de

Universidade [...]”(grifo do autor, BRAGA, 1892, p. 343)

A grande afluência de jovens aos vários afamados colégios de Santa Cruz de Coimbra

fizeram com que em 1530 mais dois colégios se fundassem, o de São Miguel e o de Todos os

Santos. Segundo Theophilo Braga todos estes acontecimentos estavam ligados ao projeto de

mudança da Universidade de Lisboa para Coimbra, o que se efetuou em 1537 (cf. BRAGA,

1892, p. 343).

Desde 1529 “[...] o elemento escolástico começou a ser expungido sistematicamente

da Universidade [...]” (BRAGA, 1892, p. 356), pois por pressão os antigos mestres

renunciavam e os novos mais conforme o humanismo eram incorporados, como Pedro Nunes

e Garcia d´Orta.

O Humanismo entra em Portugal por vias das escolas de Paris. Nisso se destaca o

Colégio de Santa Bárbara, fundado em 1460 e arrendado em 1520 por Diogo Gouveia na

cidade de Paris, que se torna desde então um colégio português em Paris, no qual o rei

mantinha com bolsas por volta de 50 estudantes de Portugal. Diogo de Gouveia foi um grande

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pedagogo, em seu Colégio se formaram alguns grandes nomes do século XVI, como Santo

Inácio e São Francisco Xavier. Mas ali também se formaram humanistas, dentre eles se

destaca André de Gouveia, sobrinho de Diogo, que logo se tornou o regente do Colégio.

André mais tarde foi chamado para dirigir o Colégio Real fundado por D. João III, com

mestres de tendência humanista, fato que aludiremos em breve.

No início da década de 30 do século XVI realmente podemos observar o intento de D.

João III em mudar a Universidade de Lisboa para Coimbra. Já em 1532 se insinuava nos

documentos oficiais a mudança e em 1533 a Câmara de Coimbra enviou uma petição ao rei

pedindo a referida transferência. Em 1534 a Universidade em Lisboa sentindo que logo se

veria forçada a mudar para Coimbra fez “[...] calorosa representação contra tal plano [...]”

(BRAGA, 1892, p. 383).

3.6 Da transferência de 1537 até 1559, data dos Estatutos de D. Sebastião

Por fim, em 1537 é transferido o Estudo Geral de Lisboa para Coimbra. Os motivos

aludidos são alguns, comecemos com Teixeira Bastos:

Mas para o seu estabelecimento em Coimbra, depois duma estada de 160 anos na capital, deve ter concorrido poderosamente a necessidade de afastar os Estudos dum meio de bulício, ocupado pelas intrigas da corte, corrompido pelo fausto e ostentação, embriagado enfim pelos fumos da índia de que fala Afonso de Albuquerque, e que até nas próprias Escolas Gerais tinham penetrado. (BASTOS, 1920, p. 9)

Mas além de uma vida mais simples e pacata aos estudantes, houve também a

preocupação de afastar a Universidade de “novas idéias” e, como observa Theophilo Braga,

os primeiros anos da mudança tiveram um caráter contrário ao humanismo. A Inquisição

portuguesa foi instaurada em 1536 e os autos de fé se iniciaram em 1540. As relações

promíscuas do humanismo, bem como sua corrente filológica, preocuparam os espíritos mais

zelosos da ortodoxia católica em Portugal, inclusive o rei. (cf. BRAGA, 1892, p. 453-463)

Além disto, estes primeiros anos da nova instalação dos estudos em Coimbra foram

conturbados por conta da organização dos mesmos estudos na cidade. Dificuldades jurídicas,

administrativas e logísticas perturbaram a vida universitária. No aspecto jurídico lembre-se o

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fato de que a Universidade precisou de nova bula papal para funcionar com todas as suas

antigas prerrogativas. No aspecto administrativo deu-se o fato da falta de novos Estatutos bem

como a questão da eleição de reitor43. No que diz respeito à logística, houve certa confusão

entre os prédios da Universidade com o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, bem como os

incômodos que causavam o bulício da vida universitária aos monges regrantes do mosteiro.

Só a partir de 1543 é que a Universidade passou a melhor se organizar. Neste ano foi

escolhido para reitor o grande doutor Frei Diogo de Murça, com seu governo durando doze

anos44. Em 1544 a situação logística melhorou com a transferência das Faculdades maiores,

Teologia, Direito (chamado também de Leis), Direito Canônico (chamado de Cânones) e

Medicina, para os Paços Reais, novos complexos escolares. No mesmo ano D. João III por

meio de representante procuram vários mestres italianos de Leis para vir à Coimbra reger

cursos, mas todos os esforços malogram. Bem como, neste mesmo ano, foi dado novo estatuto

à Universidade. E em 1546 é estabelecida uma tipografia própria da Faculdade, que antes se

servia da existente no Mosteiro de Santa Cruz.

Como os Paços Reais não podiam comportar mais cursos, os cursos de Artes e

Humanidades foram transferidos em 1547 para o novíssimo Colégio Real, que num primeiro

momento funcionou no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e depois passou para o Bairro

Alto, noutro lugar da cidade. Este Colégio nasceu independente da Universidade só em 1551

passando a ter certa subordinação a ela por alvará régio, mesmo assim certa independência em

sua administração foi mantida. Ainda assim, o Colégio Real servia como preparatório às

Faculdades maiores, constituindo mesmo uma etapa obrigatória, eis o que podemos entender

por subordinação:

[...] que pessoa alguma não seja daqui em diante recebida a ouvir Leis ou Cânones, sem Certidão do Principal do Colégio de Artes, de como nele ouviram um ano de Lógica; para ser recebido a ouvir Teologia ou Medicina, sem mostrar certidão do dito Principal, de como no dito Colégio ouviu o curso inteiro das Artes. [...] (Documento real de 1548 em BRAGA, 1892, p. 502)

43 Desde 1537 os reitores passaram a serem escolhidos por nomeação real. Não sabemos até quando esta prática

perdurou. 44 Por tudo que estudamos, não temo um panorama preciso do pensamento do Frei Diogo de Murça. O estudo de

Joaquim de Carvalho, “Estudos sobre a Cultura Portuguesa”. É o que nos ofereceu a melhor perspectiva, olhando inclusive para os volumes do referido reitor: “Fr. Diogo apresenta feições de eramista, designadamente no desapreço da Teologia escolástica, na amplitude das leituras patrísticas, na preferência da exegese escrituraria, na unilateralidade dos estudos bíblicos, limitados, a bem dizer, ao Novo Testamento, e do Antigo Testamento, aos Salmos.” (CARVALHO, 1948, p. 128) Junte-se a isto uma formação teológica resolutamente anti-luterana (cf. CARVALHO, 1948, p. 115-135)

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Podemos imaginar como isto foi de tamanha importância quando o Colégio passou

para a administração jesuítica. Embora não dispusessem (os jesuítas) oficialmente de toda a

Universidade, o papel que possuía o Colégio de Artes era muito grande, sendo verdadeira

chancela aos estudos superiores, bem como aos estudos humanísticos e filosóficos de Artes.

Calcula-se que em 1558 havia, segundo Leonel Franca (1952, p. 14), 1000 estudantes no

Colégio Real. Vendo esta importância, não se pode duvidar que com os jesuítas todo um

movimento intelectual mais conciso se estabeleceu, pelo próprio caráter da administração da

Companhia de Jesus e de seus métodos pedagógicos que, fora de qualquer dúvida, eram

excelentes. A despeito do que diz Theophilo Braga, de que o controle dos jesuítas sobre o

ensino lançou Portugal num atraso intelectual, ficamos com a opinião de Serafim Leite:

O caminho seguido parece ter sido bom, porque em breve Manuel Alvares45, Pedro da Fonseca46 e os Conimbricenses47, se impuseram à atenção do mundo culto de além fronteiras na Europa, e levaram o nome da Universidade portuguesa ao ultramar longínquo. (LEITE, 1963, p. XX)

Inaugurado em 1547 o Colégio Real, é convidado para ser seu Principal o mestre

André Gouveia, doutor em Teologia, grande pedagogo humanista da época, que estava em

Bordeaux na França, sendo o Principal do Colégio de Guyenne (Guiena) e antes disto sendo o

Principal do Colégio de Santa Bárbara em Paris. Embora não muito conhecido, André

Gouveia foi um pedagogo de primeira linha, sendo elogiado por Montaingne como sendo “o

maior principal da França”. Vindo da França, Mestre André trouxe um corpo docente

capacitado, na tendência dos humanistas, que já havia trabalhado com ele48.

Mas, mal iniciada as atividades no Colégio Real, em 1548, morre o André Gouveia

inesperadamente. O governo do Colégio passa a João da Costa, doutor em Leis. De 1549 à

1551 vemos a debandada quase que geral dos “mestres franceses” do Colégio, alguns foram

perseguidos pela Inquisição, suspeitos de heresias e outros crimes canônicos, outros saíram de

Portugal antes. Buchanan ficou preso dois anos pela Inquisição, e Diogo de Teive ficou preso

45 Gramático jesuíta natural da Ilha da Madeira, sua gramática latina foi adotada pelo Ratio Studiorum como a

padrão. Sua gramática teve centenas de edições nos mais variados idiomas e perdurou por muito tempo. 46 Filosofo e Teólogo jesuíta natural de Proença-a-Nova, região central de Portugal. Seus trabalhos metafísicos e

lógicos lhe valeram o título de “Aristóteles Português”. 47 Os Commentarii Colegii Conimbricensis Societatis Iesus foram famosos comentários feitos à obra de

Aristóteles pelo Curso de Filosofia do Colégio de Artes de Coimbra, sob a administração dos padres jesuítas. 48 Citamos os nomes dos mais famosos professores trazidos à Portugal por André Gouveia: Nicolau Grouchy

(francês), George Buchanan (escocês), Diogo de Teive, João da Costa, Elie Vinet (francês), Guillaume Guerente (francês), Arnold Fabricio (francês). Relação completa dos professores do Colégio Real no início das atividades pode ser encontrada em BRAGA, 1892, p. 509.

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de 1550 à 1551, os dois sendo liberados49, Diogo de Teive até mesmo voltou para o Colégio

Real e foi seu último Principal antes do governo passar aos jesuítas.

Em 1555 por ordem de D. João III o Colégio Real foi entregue aos jesuítas. Neste

tempo o glorioso reitor Fr. Diogo de Murça se retira espontaneamente do quadro

administrativo da Universidade. Dispomos de um relato da época, de D. Nicolau de Santa

Maria, que descreve os motivos desta entrega aos jesuítas:

A ocasião que el rei D. João III teve para tirar este Colégio das Escolas menores aos Mestres seculares e estrangeiros, que tinha mandado vir de Paris, e o entregar à Companhia, foi ver o grande proveito que recebiam os estudantes de Lisboa debaixo da doutrina e disciplina dos Padres da Companhia do Colégio de S. Antão, e o trabalho que lhe davam os Mestres estrangeiros por serem maus de contentar em seus salários, e pelo contínuo cuidado que o mesmo rei tinha de prover aquele Colégio de Lentes substitutos, despachando a uns e aposentando a outros, e acrescentando a todos por causa de os trazer contentes e bem aplicados em suas cadeiras, e de tudo isto se livrava com entregar as ditas Escolas Menores aos Padres da Companhia. (Chronica dos Regrantes apud. BRAGA, 1892, p. 566, grifos nossos)

Este relato merece o comentário. Não foi possível encontrar os encargos econômicos

que todos os “mestres franceses” davam, nem saber acerca desta questão dos lentes

substitutos, mas o espírito religioso de D. João III e seu intento de atrelar mais os estudos à

religiosidade católica é um fato. De qualquer modo, não podemos descartar completamente

este testemunho de época, pois nem mesmo Theophilo Braga o desconsidera, sendo ele um

defensor dos “mestres franceses”.

O espírito religioso de D. João III é um motivo altamente relevante. Além das

condições de época, num século em que o catolicismo tinha uma profunda penetração na vida

comum dos indivíduos, é possível somar outros fatos ligados à esfera espiritual que

contribuíram para elevar o espírito religioso de D. João III.

Primeiramente citamos o estabelecimento oficial da Inquisição em Portugal (1536), a

instauração do Concílio de Trento (1545-1563), este que D. João III se manteve informado

por cartas de correspondentes portugueses em Trento,

E em segundo lugar, toda a influência que a Companhia de Jesus exerceu em Portugal.

Fundada em 1534, teve magnífica acolhida nos domínios portugueses, contanto inclusive com

a ajuda do rei para a aprovação papal. Some a isto às missões evangelizadoras que

49 Diogo cumpriu uma penitência de apenas 8 dias num mosteiro, precedida de um ato publico de abjuração.

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promoveram os jesuítas, com grande fruto, na América, África e Ásia, partindo muitas vezes

de Portugal. São Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia e aluno do Colégio de

Santa Bárbara sobre a direção de Diogo Gouveia, foi chamado o “Apóstolo das Índias”,

partindo de Portugal em 1541 foi pregar o Evangelho, após pequena estadia em Moçambique,

chegou à Índia, indo também à China, Japão, Málaca e ainda nas Ilhas Molucas (hoje parte

Indonésia). O Brasil teve por “apóstolo” o padre Manuel da Nobrega, que chegou em terras

brasileiras no ano de 1549.

Portanto, a Companhia gozava de um grande prestígio em Portugal e sobre o espírito

de D. João III ainda influía o que um conselheiro real, o douto Diogo de Gouveia, lhe dizia.

Não podemos esquecer que este foi professor de fundadores da Companhia de Jesus e tinha

um espírito mergulhado na reação católica do século XVI, chegando a acusar o próprio

sobrinho (André de Gouveia) de luterano. Afora isto, o tráfego de jesuítas por entre os

membros da família real e da corte era considerável, haviam confessores e tutores, D.

Sebastião, futuro rei, foi educado por um jesuíta, até mesmo o Cardeal Infante D. Henrique,

irmão de D. João III e outro futuro rei de Portugal, queria se fazer jesuíta e muito contribuiu

para a empresa da Companhia em Portugal.

Theophilo Braga diz explicitamente que “O interesse que mostrava D. João III pelo

desenvolvimento da Universidade ligava-se a uma preocupação religiosa [...]” (BRAGA,

1895, p. 107). Tudo isto que dizemos tem por finalidade provar as motivações religiosas de D.

João III na entrega do Colégio Real aos jesuítas, não que não tivessem qualidades intelectuais

e pedagógicas adequadas, isto a história mostra o contrário, mas não só por isto é que lhe

entregaram o Colégio Real.

Vindo a morrer em 1557 D. João III, o herdeiro mais próximo era seu neto, D.

Sebastião, em virtude de todos os filhos homens do monarca terem morrido. Por ser muito

novo ainda (nasceu em 1554) e tornando-se rei com apenas 3 anos de idade, Portugal passou

por um período de regência, compartilhado por D. Catarina da Áustria (regência de 1557-

1562), sua avó, e pelo Cardeal Infante D. Henrique (regência de 1562-1568), seu tio. Neste

período regencial são dados nossos Estatutos de 1559, que agora analisaremos.

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4- Estatutos da Universidade de Coimbra (1559)

4.1 Introdução

Para que se possa melhor compreender o funcionamento de uma Universidade não há

nada melhor, do ponto de vista formal, do que a análise dos Estatutos da mesma. Procuramos

em nosso trabalho, após um apanhado geral sobre as Universidades, descer até um caso

específico onde podemos enxergar com mais clareza como funcionava o ensino superior na

Idade Média.

A importância do documento que analisamos é grande. Desde muito tempo os

historiadores já sabiam da existência dos Estatutos universitários da Universidade de Coimbra

de 1544, 1559 e 1565, mas não puderam fazer análise alguma destes documentos por estes

estarem perdidos. Depois destes Estatutos os historiadores só tinham em mãos os de 1591,

1597, de Felipe I e o de 1612, de Felipe II, que vigororaram até a reforma pombalina do

século XVIII50. Os Estatutos de 1559 foram elaborados pelo Dr. Baltazar de Faria, que em

1555 foi nomeado visitador e reformador da Universidade.

Mesmo tendo esta informação, somente no século passado é que se descobriram os

Estatutos de 1559, dados por D. Sebastião. Estes vieram a ser publicados pelo Padre Serafim

Leite em 1963, que soube da existência do manuscrito por um erudito, Padre László Lukács,

estudioso sobre as classes de Latim e Humanidades nos primeiros colégios da Companhia de

Jesus (cf. LEITE, 1963, p. XXXVII-XXXVIII). O manuscrito foi encontrado em Roma.

Portanto, como fica evidente, nenhum dos trabalhos consultados da bibliografia trata

sobre estes Estatutos, e como não tivemos acesso a alguma obra que tratasse dos mesmos,

empreendemos um trabalho de análise a partir do próprio documento, somente. Mas não

deixamos de fazer notas sobre alguns aspectos universitários que já vinham de outros tempos,

bem como de fazer notas históricas para melhor compreensão. Nestes casos recorremos aos

historiadores.

A análise do documento não é simples. Pois ele é obscuro em certas passagens e não

define com clareza certos regulamentos, o que nos levou a interpretar as passagens da forma

50 Sabemos também da existência de um Estatuto de 1653, dados por D. João IV, qual temos em mãos também

numa versão digitalizada.

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que parecesse mais real e aceitável. Tudo isto sem contar o idioma, um português arcaico que

não facilita, tanto pela forma como pela grafia.

Uma polêmica levantada pelos historiadores acerca dos Estatutos é a acusação de que

ele era um “estatuto jesuítico”. Esta acusação é lançada pelos inimigos declarados dos

jesuítas, dentre eles Theophilo Braga. Não vamos nos esmiuçar na questão, visto que não é

nosso trabalho, mas colocaremos os argumentos. O argumento de Theophilo seria o seguinte:

pelo domínio que os jesuítas tiveram no Colégio Real, donde se supõe que quisessem dominar

também a Universidade, tendo por aparato pedagógico, teórico e prático, as normas contidas

nas Constituições da Companhia de Jesus, a Quarta Parte Principal, revisadas e aprovadas

pela Primeira Congregação Geral em 1558, sob a direção de Diego Laynez, segundo Geral da

Ordem (cf. BRAGA, 1895, p.229-232).

Sobre a questão Serafim Leite chega a dizer claramente: “Embora já tivessem a seu

cargo o Colégio das Artes, os Padres da Companhia de Jesus não conheceram os Estatutos de

Coimbra de 1559 senão depois de redigidos [...]” (LEITE, 1963, p. XVII).

Embora o argumento de Theophilo pareça plausível ele carece de comprovação

histórica e parece muito mais ser uma suposição do autor que um fato realmente comprovado,

visto que nada é apresentado como prova. É claro que no texto das Constituições haviam

normas para se reger as Universidades, mas isto não prova que os jesuítas tinham a intenção

de tomá-las. Basta que se analise o texto das Constituições para ver que nele não há muita

diferença do que já era habitual nas Universidades. O que há de “diferente” no texto é como

os jesuítas devem se portar diante de um instituto de educação superior, do que deve ou não

ser lido, qual a finalidade deste ensino, da piedade a ser incentivada e outras regulamentações

disciplinares.

Não se pode acusar de “jesuitismo” os programas de estudos da Universidade de

Coimbra, que pouco ou nada divergiam do que habitualmente já se ensinava nas outras

localidades, só pelo fato de se ler os mesmos livros que se recomendam nas Constituições.

Isto é algo sem cabimento, pois se assim fosse as Universidades deveriam ser acusadas de

“jesuitismo” antes mesmo de Santo Inácio fundar a Companhia. Houve sim um afastamento

do humanismo por parte das Universidades, mas não se pode atribuir isto a um plano

megalomaníaco de jesuítas.

O mais curioso é que Theophilo faz suas acusações sem nem mesmo ter em mãos os

Estatutos de 1559. Em verdade os inimigos dos jesuítas e da Igreja Católica sempre tendem a

exagerar nos fatos, quando não inventam os mesmos.

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Este mesmo autor chega até a se contradizer. Em 1555 quando o Colégio de Artes é

entregue aos jesuítas e Fr. Diogo de Murça sai da reitoria da Universidade, Baltazar de Faria

foi nomeado visitador e reformador da Universidade por D. João III. Em 1556, em reunião de

claustro se resolveu que cada uma das faculdades apontaria dois de seus membros para se

entender com Baltazar de Faria e encaminhar a reforma. Ao relatar este fato e expor quem

foram os eleitos, Theophilo acaba por confessar: “[...] é natural que entre estes membros não

predominasse o partido dos Jesuítas [...]” (BRAGA, 1892, p.565). Ou seja, fica claro que as

disposições iniciais da reforma não eram tão favoráveis assim aos jesuítas como pinta

Teophilo Braga, fato que ele mesmo confessa.

Concluímos a questão reafirmando a sentença de Serafim Leite. Mesmo porque D.

João III concedeu apenas a governança do Colegial Real à Companhia de Jesus, não de toda a

Universidade, fato que é claro nos documentos. Se a influência do Colégio se fez sentir nos

cursos superiores isto é outra questão, que não faz parte de nossa análise.

Damos fim a esta pequena introdução descrevendo a disposição da análise dos

Estatutos que faremos neste capítulo. Primeiramente trataremos do serviço religioso na

Universidade, depois a administração e por fim os programas dos estudos.

4.2 O serviço de Deus na Universidade

Envolvido em todo o ambiente de religiosidade católica que perdurava naquela época,

os Estatutos começam por ditar normas acerca do funcionamento religioso da Universidade:

“Porquanto a primeira coisa que se deve procurar é a honra e glória de Nosso Senhor Jesus

Cristo, haverá na Universidade uma capela na qual se celebrará o oficio divino para que o

possam ouvir os lentes e estudantes.” (LEITE, 1963, p. 11). Então se expõe como será a

administração desta capela. Estatuiu-se que ela fosse composta por 13 capelães, que seriam

estudantes pobres, de boa voz e virtude, que soubessem latim e que pudessem rezar missas.

Dentre os capelães havia um que seria o chantre (como se fosse o superior) eleito para seis

anos, dentre os outros doze, um deles seria o tesoureiro, um seria organista, quatro ajudantes

do culto divino e um “apontador”, encarregado de apontar as faltas alheias.

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A capela contava com uma provisão de mantimentos anual, de comida, bebida, velas e

roupas para o culto divino. Cada um dos capelães recebia um salário, conforme o ofício que

realizavam.

Deveriam ser rezadas sete missas por dia. O chantre era obrigado a rezar uma todos os

dias e os outros capelães se revezavam para rezar as seis missas restantes. Haviam missas e

procissões solenes em dias determinados do ano em que todos os membros da Universidade

deveriam comparecer ou sofrer as penas (multas) decorrentes desta falta. As maiores

solenidades se davam no dia de Natal e no dia 6 de junho, dia do nascimento de D. João III.

Algumas das ordenanças religiosas do Estatuto estão baseadas no Testamento de D.

Henrique, de 1460. Dentre elas destacamos os doze marcos de prata que dava o Infante para o

lente da primeira cadeira de Teologia, todos os anos, para que ele rezasse missas e fizesse

orações determinadas no dia de Natal e no dia em que se começa os estudos na Universidade.

Esta prática ainda vigorava no século XVI, e os Estatutos não deixam de se referir às

obrigações para com o Testamento de D. Henrique.

Na Universidade havia uma Confraria, de que estudantes e mestres poderiam pertencer

e receber seus benefícios, que eram missas de exéquias, rezadas após a morte pela alma do

defunto. Outro benefício eram os serviços do boticário da Universidade se caso um membro

da confraria viesse a adoecer.

Só era possível entrar na Confraria mediante doação de algum dinheiro, recebido por

dois “mordomos” eleitos por seis meses entre os fidalgos (ou seja, estudantes mais abastados),

estes tinham o ofício de pedir esmolas e fazer outros trabalhos, como avisar se há alguém

doente ou morto para que se tomem as providências. Outros dois “mordomos” eram eleitos

entre os bacharéis mais antigos para serem escrivões dos primeiros “mordomos”. Todos

residiam num imóvel pertencente à Confraria. Ela também possuía um capelão próprio, que

seria estudante pobre e virtuoso, encarregado de rezar missas todos os domingos e outros dias

de festas pelos confrades.

Por fim, o Estatuto estabelece normas para que se elejam Vigários e curas para as

Igrejas anexas à Universidade, que estavam sob a responsabilidade da mesma, que,

novamente, deveriam ser estudantes pobres e ao menos bacharéis de Teologia ou Cânones.

Não temos dados sobre como tudo isto funcionava na prática, no que diz respeito à

freqüência dos estudantes e mestres ou se alguma prescrição dos Estatutos era letra morta.

Descrevemos apenas o regulamento que o documento nos fornece. Supomos, porém, pelo

cuidado que se tinha à religião, o mesmo tributado nos Estatutos, que tudo funcionava

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razoavelmente bem. Estas missas e procissões deveriam ser comuns e de longa data já

(principalmente as missas) e para uma pessoa de médio espírito religioso deveria ser algo

natural a assistência nesses serviços. Lembramos que parte dos estudantes eram clérigos,

outros sacerdotes, que acabavam exercendo certa influência no resto dos alunos.

4.3 A administração da Universidade

Nesta parte trataremos do que diz respeito à administração, aos cargos, aos conselhos,

etc. O empreendimento não será, porém, minucioso. Julgamos fora de nosso escopo descrever

todos os pormenores das eleições, dos conselhos, das votações, dos encargos dos mais

diversos funcionários, etc., mesmo porque, se isto fosse feito, seria praticamente uma cópia

dos Estatutos, e em segundo lugar pela brevidade que compete ao presente estudo.

Procuramos então dar uma visão panorâmica do funcionamento da Universidade para que se

tenha uma idéia razoável de sua organização.

Por ordem dos Estatutos a Universidade de Coimbra tinha 61 funcionários51 ditos

oficiais e o Colégio de Artes, o Colégio Real, tinha 7 oficiais52, afora os professores. Há de se

distinguir entre os funcionários oficiais e outros que provavelmente, ou certamente, existiam,

pois é incrível de se imaginar que numa Universidade com mais de milhar de estudantes

houvesse apenas um varredor pertencente ao Colégio de Artes. Portanto é crível que os

Estatutos apenas enumere os cargos oficiais, não todos os funcionários que trabalham.

Outro ponto interessante de se notar é que para a Universidade, nada é dito nesse

sentido sobre o Colégio de Artes, os cargos eram quase todos eletivos, mesmo sendo dito que:

“Todos estes oficiais serão eleitos no conselho de deputados e conselheiros e confirmados por

El-Rei como protetor, conforme aos Estatutos.” (LEITE, 1963, p. 49). Quase todos os cargos,

51 1 reitor, 1 cancelário, 6 deputados, 6 conselheiros, 2 mordomos da Confraria, dois escrivães da Confraria, 1

chançarel, 1 conservador, 1 síndico, 1 recebedor ou prebendeiro, 1 escrivão das execuções, 1 escrivão do conselho, 3 bedéis (um de Teologia, um de Cânones e Leis, um de Medicina e Artes), 4 taxadores (dois da Universidade e dois da cidade), 1 escrivão da almotaçaria, 2 almotacés, 1 guarda (do cartório, livraria e das coisas da impressão), 1 meirinho, 1 veador e contador, 1 escrivão das contas, 1 escrivão da receita e despesas, 2 escrivães do conservador, 1 guarda das Escolas e porteiro do conselho, 1 inquiridor, distribuidor e contador dos feitos, 4 sacadores de rendas, 1 solicitador, 1 porteiro da fazenda, 6 homens do meirinho, 1 fiel das medidas (para medir e pesar os mantimentos vindos da feira), 1 escrivão do ouvidor, 1 meirinho do ouvidor, 1 procurador da Universidade na Corte, 1 solicitador dos feitos e causas. Alguns dos nomes dos ofícios não pudemos atualizar para os nomes que hoje se dão.

52 1 principal (espécie de reitor), 2 capelães, 2 guardas, 1 porteiro, 1 varredor.

Page 64: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

63

pois o cargo de “chanselário” (no português atual cancelário ou chanceler) não era um cargo

eletivo, mas pertencia desde os tempos de D. João III ao Prior do Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra. Acerca disto Serafim Leite comenta:

Os graus de licenciado e doutor eram conferidos aos estudantes pelo bispo ou seu vigário do mesmo modo que em Bolonha e nas mais Universidades de Itália, depois de examinados e aprovados perante ele pelos mestres [...]. Esta autoridade que o Papa deu ao Bispo de Lisboa, passou depois para o Prior de Santa Cruz de Coimbra no tempo de D. João III com o título de cancelário. (Adiantamento às Notícias Chronologicas I 583-584 apud LEITE, 1963, p74)

Como já aferimos, não é possível determinar se os funcionários oficiais do Colégio de

Artes eram eleitos, mesmo porque ele gozava de certa autonomia em relação à Universidade

desde 1551, autonomia esta determinada por alvará régio (LEITE, 1963, p. XVIII) e sempre

respeitada pelos Estatutos de 1559 a 1612 (cf. BASTOS, 1920, p. 10-11).

A periodicidade dessas eleições é um aspecto curioso. Cada cargo tinha sua duração

própria, independente dos outros. Listemos a duração de alguns cargos: O reitor era eleito

para 3 anos, os deputados para 1 anos, os conselheiros para 1 ano53, o chançarel (responsável

por selar as cartas com o selo oficial da Universidade) para 1 ano, síndico e bedéis são eleitos

por tempo indeterminado, os almotacéis para 3 meses, taxadores para 3 anos. Ou seja, as

eleições eram freqüentes na Universidade. Todos os funcionários oficiais deveriam fazer um

juramento próprio para o cargo, ou um juramento mais geral para os cargos menos

importantes, e só após o juramento é que eles poderiam exercer licita e validamente seus

ofícios.

O cargo mais importante da Universidade é o reitor, eleito para três anos no dia de São

Martinho (11 de novembro). Listaremos alguns de seus encargos para que se tenha uma idéia

de seu ofício. “O Reitor é cabeça de toda a Universidade ao qual todos os membros dela hão

de obedecer no que for lícito e honesto e cumprir seus mandados no que forem conforme aos

Estatutos.” (LEITE, 1963, p. 69). Apesar de ser a “cabeça” da Universidade, ele deveria

respeitar os Estatutos e ninguém lhe deveria obediência no que fosse contra a justiça.

“Ao Reitor pertence guardar os Estatutos e privilégios da Universidade [...]” (LEITE,

1963, p. 70). Ele também era responsável por mandar chamar os conselhos universitários,

deve ele procurar que os estudantes e as pessoas da Universidade “[...] vivam honestamente 53 A bem da verdade havia a possibilidade de alguns deputados e um dos conselheiros terem mais um ano de

mandato, como os Estatutos prescrevem.

Page 65: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

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assim nos costumes, trajes e vestidos, como nas armas e em tudo o mais que faz escândalo e

turbação ao bem estudar [...]” (LEITE, 1963, p. 70). Também deveria ele estar presente em

todos os autos e disputas (disputatio) que ocorressem.

No que diz respeito ao poder judiciário do reitor é dito nos Estatutos que ele “tem

jurisdição nos casos que acontecerem das portas das Escolas para dentro, e nenhuma outra

justiça poderá entrar dentro delas, tomar armas ou prender senão por seu mandato” (LEITE,

1963, p. 72). O reitor podia também impor penas, que seriam executadas pelo conservador, e

mandar que se prendessem as pessoas da Universidade.

Apesar de ter um poder muito grande, o reitor não podia, obviamente, desrespeitar os

Estatutos. Além disso, ele e toda a Universidade estavam de certa forma subordinados ao

protetor da instituição, que era o rei e seus sucessores. Tanto que, como já mencionado, os

que eram eleitos aos cargos oficiais, incluindo o de reitor, tinham de ser aprovados pelo rei.

Isso evidencia o que já expusemos, ou seja, o grande poder que exercia o monarca sobre a

Universidade.

Julgamos que os cargos mais importantes depois do reitor, excluindo cancelário que

não era eleito, eram os de deputados e conselheiros. Eles eram ao todo doze, seis deputados e

seis conselheiros. Entre os seis de cada grupo um deveria ser doutor em teologia, outro doutor

em cânones, outro em leis, outro em medicina, outro em artes e outro deveria ser um fidalgo

ou bacharel (qualquer). O procedimento eleitoral era o mesmo para os dois cargos. Pelos

Estatutos os candidatos a estes cargos não poderiam ser parentes do reitor ou parentes entre si

(até o quarto grau para os deputados e até o terceiro grau para os conselheiros). Nenhum dos

cargos comportava reeleição, mas dentre todos os seis de cada ofício, alguns deles poderiam

servir um ano a mais no conselho e na fazenda, passado esses dois anos, ao invés de um ano

para que eram eleitos, ele deveria sair e não poderia ser novamente eleito pelo prazo de dois

anos.

Acreditamos que estes eram os cargos mais importantes depois do reitorado pela

disposição que segue o Estatuto, pelas suas atribuições e pela solenidade com que eram

publicados os resultados dessas eleições. No dia 10 de novembro, véspera de São Martinho,

todo o corpo universitário, alunos e mestres, eram obrigados a assistir a missa e depois dela

havia a publicação dos eleitos, os quais se não tivessem motivo justo para não aceitar o cargo

tinha como punição a exclusão do corpo universitário (cf. LEITE, 1963, p. 56-57). As funções

desses cargos serão relatadas em breve.

Page 66: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

65

Haviam três principais atividades administrativas na Universidade: os conselhos, o

regimento da mesa da fazenda e o processo de supressão das vacaturas das cátedras, ou seja, a

contratação de novos professores. Desejamos relatar esses procedimentos de suma

importância brevemente, sem minúcias.

No capítulo 44 (LEITE, 1963, p. 134-140) se regulamenta sobre os conselhos

universitários, ali são descritos três. O primeiro ordinariamente se reúne: “De mês em mês,

em um sábado à tarde depois das lições de véspera, [se] fará conselho ordinariamente de

deputados e conselheiros, ao qual serão obrigados a vir todos [...]”, sob pena de multa. O

quorum mínimo, número mínimo de pessoas para a realização, era de 8 pessoas além do

reitor.

A este conselho “[...] pertence a eleição do conservador e de todos os outros oficiais da

Universidade, e assim dos mordomos e escrivões da confraria e capelães da Universidade, e

aos substitutos dos sobreditos; e criar outros de novo quando forem necessários [...]” (LEITE,

1963, p. 135). Por este trecho supomos que o conselho tinha também o poder de criar novos

cargos oficiais da Universidade.

Outra faculdade deste conselho era a de tratar e determinar “[...] as cartas e negócios

que houverem de ir para Roma ou para El-Rei, e assim outros [negócios] que tocarem ao

estado e bom regimento da Universidade.” (LEITE, 1963, p. 135). Era o mais ordinário e

simples dos conselhos.

Havia um segundo conselho em que participavam somente o reitor com os seis

conselheiros que ocorria de quinze em quinze dias, “E neste conselho [...] se tratarão as coisas

que tocam às cadeiras e lições e bom regimento delas, e todo o mais que é dito no capítulo do

ofício do Reitor e conselheiros [...]” (LEITE, 1963, p. 136). O quorum mínimo era de quatro

conselheiros mais o reitor. Era um pequeno conselho que tinha por objetivo supervisionar o

andamento das aulas.

O último conselho era chamado de “Conselho-mor”, o maior da Universidade, com

quorum mínimo de vinte e quatro pessoas mais o reitor. Nele:

[...] entrarão o Reitor, lentes de todas as quatro Faculdades maiores que lerão nas Escolas cadeiras ordinárias com salários, deputados, conselheiros, chançarel, conservador e síndico. E neste conselho se tratarão os negócios muito árduos e de muita importância que sobrevierem à dita Universidade, como gastos grandes, obras custosas e diferenças com a cidade, e outras coisas sobre os privilégios do Estudo, jurisdição do conservador. Consultarão sobre algum estatuto para se fazer novo ou para tirar dos que

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66

são feitos e recebidos, e reformação de toda a Universidade ou parte dela; e isto para mandar pedir ao El-Rei, que pelo tempo for, que ordene e confirme como protetor o que pelo dito conselho for acordado se lhe bem parecer. E também pertence a este conselho a determinação do recebimento [a] El-Rei, Rainha, Príncipe, Princesa ou Infa[n]te ou Legado ou Nú[n]cio do Santo Padre, se deve fazer quando à Universidade vierem, ou quando com algum dos sobreditos houver a Universidade de mandar tratar algum negócio; e assim lhe pertence diferir e determinar as diferenças que houver entre o Reitor e deputados quando forem assim discordes que se não possam determinar sem seu conselho e estas e outras coisas semelhantes, que muito importarem à Universidade [...] (LEITE, 1963, p. 136)

Apesar de longa a citação ela encerra todas as atribuições que os Estatutos dão ao

Conselho-mor, porém não é possível saber de quando em quando ele se reunia ou se cabia ao

reitor fazer esta convocação.

Um escrivão (não sabemos qual, o Estatuto não informa) tinha a tarefa de anotar em

um livro pequeno todas as coisas que foram determinadas, e antes de se iniciar novo conselho

a primeira coisa que se faria era verificar se as determinações do antigo conselho foram feitas.

Os Estatutos não indicam no qual dos três conselhos isto deve ser feito, mas imaginamos que

se refira a todos (cf. LEITE, 1963, p. 139-140).

Cremos que com esta exposição tenhamos dado uma boa idéia dos conselhos

universitários. Não quisemos expor as minúcias que dizem respeito à votação nesses

conselhos ou outros pormenores. Quem quiser saber em detalhes deve consultar os próprios

Estatutos.

A outra atividade administrativa de maior importância é o chamado “regimento da

mesa da fazenda da Universidade”, tratado no capítulo 27, que trata da administração das

finanças.

Pelo texto dos Estatutos não é possível determinar com clareza a periodicidade das

reuniões da mesa da fazenda, a passagem é um tanto quanto obscura:

Haverá nas Escolas Geais uma casa em que estará uma mesa na qual se ajuntará, para despacho das coisas da fazenda da Universidade, o Reitor com os três lentes deputados conforme aos Estatutos, dois dias cada semana que se declararam cada ano, passado o dia de S. Martinho, para as partes saberem o tempo em que hão de vir requerer seus despachos; e serão presentes no dito despacho o veador, que é contador, e o síndico [...] sendo o escrivão do conselho, que também escreve na fazenda, presente. (LEITE, 1963, p. 76)

Page 68: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

67

Não podemos saber com certeza se essas reuniões ocorriam todas as semanas ou em

semanas determinadas pela mesa, o certo é que nas semanas de reunião haviam dois dias para

os despachos da referida mesa. Porém, acreditamos que essas reuniões ocorriam em semanas

determinadas, não em todas, pelo sentido do texto, ao menos isto é o mais provável.

A primeira coisa que se fazia nestas reuniões eram ouvir o síndico, que apresentava as

demandas e negócios da Universidade, e o que deles diz respeito, bem como o que foi

requerido e feito sobre eles. O síndico deveria apresentar as demandas e apontamentos, que

seriam ou não feitas conforme a vontade da mesa. Cabia também a esta mesa dar despachos

aos outros oficiais da Universidade.

Esta mesa era responsável também pela administração dos imóveis pertencentes à

Universidade, tinha ela a faculdade de arrendar e demarcar terras, estipular e aplicar aluguéis,

bem como cuidar da conservação e tudo o que fosse necessário a estes imóveis. Havia a

possibilidade de vender imóveis. Deveria também esta mesa toma conta para que os “matos e

pinhais da dita Universidade” (LEITE, 1963, p. 82) não sejam destruídos, punindo a quem

ousá-lo.

Outro encargo era “[...] o pagamento das ordinárias e salários dos oficiais e esmolas

acostumadas, quando se devem fazer, e as despesas que se hão de fazer que são necessárias

paras as demandas que sobre a fazenda se fazem [...]” (LEITE, 1963, p. 82)

Também a esta mesa cabia a responsabilidade de prover as capelas e igrejas no que

fosse necessário e ordenar visitações e reformas às mesmas, bem como “[...] proverão sobre o

reparo e corregimento [reforma] dos celeiros e quaisquer outras coisas que pertencem à

Universidade e que ela deve mandar reparar.” (LEITE, 1963, p. 84).

Com tudo o que foi exposto sobre a mesa da fazendo ainda não esgotamos todas as

suas atribuições, mas cremos que escrevemos suas atribuições mais importantes para que o

leitor pudesse ter uma boa idéia de seu funcionamento. Faltaram alguns pormenores

desnecessários para esta exposição. Tenha-se sempre em mente que a mesa cuidava de todas

as finanças da Universidade e tudo o que diz respeito à propriedade material da mesma.

Outra atividade administrativa, embora esteja muito ligada aos estudos, é a eleição de

novos professores para as cadeiras vagas da Universidade. A primeira coisa que os Estatutos

dizem desta matéria, no capítulo 40, é o seguinte:

Page 69: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

68

“Item, tanto que alguma cadeira for vaga, o Reitor dentro de dois dias, do dia que constar que é vaga [a cadeira], fará por na porta das Escolas um edito em latim, feito pelo escrivão do conselho, assinado por ele, de como a cadeira é vaga, que se venham a opor a ela os que quiserem, contanto que sejam das pessoas que conforme aos Estatutos podem ler nas escolas.” (LEITE, 1963, p. 111)

As cadeiras vagas naquele tempo tinham um peculiar modo para serem preenchidas.

Antes de tudo se elegiam professores substitutos, para as aulas continuarem e então se

iniciava o processo todo de supressão da vacância da cátedra.

A primeira coisa que deveriam fazer nesse processo é a inscrição dos interessados,

desde que preenchessem os requisitos, como “opositores” (assim eram chamados os

candidatos), fazendo o juramento dos opositores diante do Reitor. A partir deste momento, o

opositor deve ficar praticamente incomunicável até que acabem todos os procedimentos, e isto

sob pena de perder a posição de opositor e de possível candidato à cadeira:

“Nem poderão os tais opositores durando a dita vacatura sair fora de suas casas ou colégios se não for à igreja ouvir os ofícios divinos ou a se confessar, ou a cumprir algumas estações de jubileus ou a Semana Santa, ou [ir] às escolas a ler, ou aos atos públicos a que por razão de seu grau são obrigados a serem presentes, ou ao conselho por razão de seu ofício, e assim, poderão ir à casa do Reitor requerer o que cumprir a bem de sua justiça ou sendo por ele chamado [...]” (LEITE, 1963, p. 122-123)

E isto é assunto de gravidade, pois se alguma pessoa falasse com esses opositores, lhes

mandassem algum bilhete ou recado, teria ele (o eleitor) seu voto anulado, salvo se falasse

publicamente com algum opositor sobre matéria que não toque direta nem indiretamente em

alguma coisa que diga respeito à cadeira vaga (cf. LEITE, 1963, p. 119).

Afora isto havia inúmeras leis contra alguma possível compra de votos ou

favorecimento de algum dos opositores, todas punidas com a anulação dos votos, se forem

eleitores, e se o opositor incidir em algum ato proibido ele era declarado inábil à vaga da

cadeira. Havia leis muito rígidas para os eleitores, que nem sequer podiam se juntar em favor

de algum opositor, não podiam apelidá-los e muito menos apostar sobre quem venceria. Já os

opositores não podiam fazer qualquer ato que pudesse ajudá-los a ganhar a vaga, desde a

compra de votos, evidentemente, até mesmo outras coisas como combinar com o outro

opositor de favorecê-lo ou fazer alguma injúria grave a um concorrente durante as lições.

Mesmo estando estas coisas nos Estatutos, Teixeira Bastos afirma que “[...] como eram

muitos [os opositores], e o júri costumava atender principalmente à antiguidade do grau,

Page 70: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

69

acabaram os opositores por combinar entre si os argumentos, o que reduzia o ato a uma mera

formalidade.” (BASTOS, 1920, p. 14).

Mas como concorriam estes candidatos? Terminado o prazo do edito e inscritos todos

os opositores, em uma sessão mais solene, estando presentes o reitor e dois conselheiros mais

antigos, havia a eleição das lições em que deveriam disputar os concorrentes. Consistia esta

praxe no seguinte: um “moço” sem suspeita abriria um livro em três partes e escolherá três

textos dessas partes, feito isto o opositor escolheria sobre qual dos três textos ele argumentaria

em lições, que podiam durar de uma hora à uma hora e meia, dependendo da cadeira que se

disputasse.

Quando terminada uma lição “[...] argumentarão os opositores, os quais argumentos

não poderão renunciar de nenhuma maneira [...]” (LEITE, 1963, p. 113). Havia, portanto, uma

aula e disputa, nos moldes escolásticos. Julgamos que havia várias lições, pois os mesmos

Estatutos dizem que “[...] durando a vacatura, poderá qualquer opositor ler as lições que

quiser para mostrar sua suficiência [...]” (LEITE, 1963, p. 124). Embora não se diga, deve ser

evidente que havia um prazo para essas lições, para que não ficasse por muito tempo a cadeira

vaga.

Terminado isto se iniciavam as eleições. Antes de tudo, logo no início de todo este

processo, havia a matrícula dos votantes, que podiam ser desde os alunos até os mestres com

cátedra, embora tivesse regras para os professores:

Os doutores e licenciados de todas as quatro Faculdades maiores não poderão votar nas quatro cadeiras das Faculdades em que forem graduados; porém sendo ouvintes em outras Faculdades poderão votar nelas tendo os cursos que se requerem. (LEITE, 1963, p. 114)

Que cursos eram estes? Para cada um dos cursos acadêmicos só votavam ou os

bacharéis da faculdade ou os estudantes que tivessem um numero determinado de “cursos”,

variável conforme a faculdade. “Cursos” era como se chamavam os anos escolares, “[...]

contando um ano um curso que seja ao menos de oito meses [...]” (LEITE, 1963, p. 227) e

ainda, e mais categoricamente, “[...] entender-se-á por um curso que ouviu, ao menos oito

meses em um ano, a ciência de que é a cadeira ou substituição [...]” (LEITE, 1963, p. 128). É

de suma importância entender esta divisão do estudo em cursos, pois ela apresenta grande

importância para o entendimento dos estudos da Universidade, que logo descreveremos. Por

exemplo, para Cânones e Leis os estudantes que quisessem votar deveriam ter dois cursos,

Page 71: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

70

portanto dois anos, os estudantes de Música e Matemática precisavam ter um curso ao menos

para votar, em Teologia o estudante deveria ter ao menos dois cursos, a não ser que fosse

licenciado ou mestre em Artes, então poderia votar tendo cumprido um curso apenas em

Teologia.

Nas eleições nem o reitor nem os conselheiros votavam e os votantes deviam fazer um

juramento também para poder votarem. É dito também que “[...] não será admitido a votar o

que não tiver ouvido todas as lições de opositor ou não [es]tiver bastante informado da justiça

dos opositores [...]” (LEITE, 1963, p. 117). O voto era secreto, tão secreto que se alguém

contasse em quem votaria, teria seu voto anulado. Os votos eram depositados em uma urna e

depois contados.

Porém a valor dos votos variavam, conforme os cursos ou graus que possuísse o

votante. Portanto os votos tinham pesos diferentes; por exemplo, o voto de um bacharel de

Leis valia dois cursos se votasse em um opositor de Cânones e mais quantos cursos ele [o

bacharel] tivesse na matéria, antes e depois de se bacharelar. Parece-nos que se a pessoa fosse

presbítero, um padre ordenado, o voto dele tinha um valor a mais em cursos (um curso a mais)

(cf. LEITE, 1963, p. 129). A legislação sobre o valor dos votos tinha muitas variáveis que não

abordaremos, que se tenha em mente que eles variavam conforme as qualificações dos

votantes. Na contagem dos votos, reduzia-se as pessoas, qualidades, etc., em cursos, e o

opositor que tivesse mais votos, dispostos em cursos, seria o eleito para preencher a vacatura

da cadeira à que concorria.

Se houvesse empate “[...] o mais antigo [...] será preferido, e os graduados nesta

Universidade serão preferidos aos graduados em outras, ainda que sejam mais antigos [...]”

(LEITE, 1963, p. 131). Havia, outros critérios de desempate como, por exemplo, se os

concorrentes tivessem o mesmo grau, mas um fosse graduado em Coimbra e o outro fora dela,

se preferiria o primeiro; outro, se concorresse um doutor e de fora e um licenciado de

Coimbra, se preferiria o último; por fim, se concorresse um doutor ou licenciado de fora com

um bacharel de Coimbra, se preferiria o primeiro.

Para ser elegível o candidato deveria ser bacharel ao menos, para os cursos de

Teologia e Medicina, para os cursos de Leis e Cânones deveria ser ao menos bacharel, tendo

cumprido oito cursos. Sempre se deveria ter o bacharelato na Faculdade corresponde à cadeira

vaga, um bacharel em Medicina não poderia concorrer para uma cadeira de Teologia, e assim

por diante (cf. LEITE, 1963, p. 133).

Page 72: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

71

Tendo-se apurado os votos e declarado o vencedor da oposição, tinha o eleito que

pagar uma taxa aos funcionários que organizaram todo o processo, qual sejam o reitor,

conselheiros, escrivão, o bedel e o guarda. E o reitor só chamava o eleito para fazer o

juramento e tomar posse da cadeira depois de ele ter saldado esta dívida, chamada também de

“propina”. Assim terminava todo o processo de supressão das vacaturas das cátedras.

Embora tenhamos dados por encerrados a descrição dos processos mais importantes da

administração universitária como determina os Estatutos de 1559, ainda descreveremos o

ofício de alguns funcionários oficiais que tem uma importância considerável. Apesar de ter

grande importância esses atos administrativos, a Universidade funcionava conforme o

trabalho de outros profissionais, de papel não menos importante. Vamos então citar alguns

outros ofícios e relatar o que de mais importante era de sua competência, mas não todas as

suas atribuições.

O chançarel, como já dissemos, era o responsável por selar as cartas com um selo

oficial da Universidade, o qual ficava sob sua guarda. O conservador era o guardião da justiça

na Universidade, tinha jurisdição civil e criminal sobre todas as pessoas pertencentes à

Universidade, fazia ele audiência, autos, processos; era ele também responsável por guardar

conservar intactos os privilégios já adquiridos pela corporação universitária, particularmente

os referentes à almotaçaria.

Os almotacés, funcionários da almotaçaria, caberiam taxar “[...] e repartir toda a carne

e pescado que se vender nos açougues da Universidade [...]” (LEITE, 1963, p. 177), procurar

que os açougueiros e pescadores cumpram seus contratos e também à eles pertence a tarefa de

“[...] reger e governar a feira franca, que se faz na Praça da Almedina [...] e almotaçar [taxar]

e pôr os preços aos mantimentos e mais coisas que a ela vierem [...]” (LEITE, 1963, p. 178).

Eram verdadeiros guardas dos mantimentos e da boa ordem da feira pública.

Ao síndico da Universidade cabia o ofício de “[...] ser procurador de todas as

demandas, feitos e causas que tocarem à Universidade, procurará seu proveito e conservação

de seus privilégios com toda a diligência.” (LEITE, 1963, p. 153) e nos conselhos devia ele

levar apontamentos sobre o que se deve fazer e requerer para o aprimoramento da instituição.

E o solicitador, outro cargo oficial, era o responsável por solicitar e requerer o “[...] que o

síndico procurar por parte da Universidade.” (LEITE, 1963, p. 199). E ao chamado “veador

da fazenda da Universidade” cabia, dentre outros encargos, averiguar se as obras estão sendo

feitas conforme as determinações (cf. LEITE, 1963, p. 214).

Page 73: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

72

Havia ainda um mestre de cerimônias, que era a mesma pessoa que desempenhava o

cargo de escrivão do conselho universitário, ele era o responsável por manter a boa ordem nas

procissões, doutoramentos, autos públicos, conselhos, etc. Também era responsável por

supervisionar os bedéis.

Na Universidade haviam três bedéis, um de Teologia, um de Cânones e Leis, um de

Medicina e Artes, eram como que ajudantes dos professores, aos quais deveriam

supervisionar e apontar as faltas. Os bedéis tinham ofício importante, eram responsáveis por

publicar “[...] os autos dos bacharéis, doutoramentos ou magistérios, repetições, lições de

ponto e todos os mais autos que se fizerem nas Universidades da qual é bedel [...]” (LEITE,

1963, p. 167). Eles eram também os responsáveis por avisar publicamente quais dias não

haveria aulas.

Os taxadores da Universidade tinham por ofício taxar os aluguéis e preços de todas as

casas dos membros da Universidade, obrigatoriamente uma vez a cada três anos e sempre

quando fosse requerido por algum particular.

Havia também muitos escrivões ligados a outros oficiais que tinham por oficio

registrar tudo o fosse feito. É interessante de notar que a alguns oficiais tinham o encargo de

supervisionar e apontar as faltas de outros oficiais.

Encerramos aqui a descrição do que diz respeito à administração da Universidade,

cremos ter dado uma visão razoável de seu funcionamento.

4.4 Os Estudos na Universidade de Coimbra segundo os Estatutos de 1559

A análise dos Estudos da Universidade de Coimbra segundo os Estatutos de 1559 é

sem dúvida a mais importante, pois podemos conhecer como exatamente funcionava o ensino

superior em uma Universidade no início da Idade Moderna, se bem que guardasse

enormemente os aspectos de um Estudo Geral tipicamente medieval. Pouco, quase nada, tinha

mudado nas estruturas do ensino.

Mesmo assim o empreendimento é árduo. Não foi tão simples encontrar um bom

método de exposição sobre a questão. Ainda nos deparamos com obscuridades nos textos e a

falta de dados permaneceu em alguns pontos. Mas procuramos fazer o possível para que nossa

descrição ficasse o mais inteligível possível dos leitores não habituados ao tema do ensino

Page 74: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

73

universitário medieval. Infelizmente pelos mesmos motivos da descrição anterior sobre a

administração universitária, qual seja a brevidade de nosso estudo e o risco de uma cópia

enfadonha, não faremos uma exposição minuciosa de tudo o que compete aos estudos, dos

autos públicos, dos exercícios escolásticos, das sessões de graduação, etc., mas daremos sim

uma visão panorâmica e abrangente de tudo o que diz respeito à estes assuntos e outros

referentes aos estudos. Não deixaremos também de citar fatos curiosos de que tivemos notícia

por meio do texto de Teixeira Bastos (vide bibliografia).

O ano letivo da Universidade de Coimbra começava no dia 1 de Outubro. O ano era

dividido em “terças”, como hoje dividimos em semestres, bimestres, etc. A primeira terça

começava no dia 1 de Outubro e termina dia 10 de Janeiro; a segunda terça vai do dia 11 de

Janeiro até o dia 20 de Abril; por fim, a última terça começa dia 21 de Abril e termina no dia

31 de Julho. Os meses de Agosto e Setembro eram de férias escolares. Essa divisão do ano

tinha finalidades administrativas e estudantis, no que se refere às leituras de textos, etc.

Os dias letivos na semana eram todos, menos as quintas-feiras, domingos e dias de

festas religiosas ou relacionadas a eles. No capítulo referente ao ofício do bedel (cap. 53) se

encontra todos os dias em que não havia aulas em Coimbra, era competência dos bedéis

avisarem que não haveria aulas nestes dias determinados.

Todos os anos os estudantes e bacharéis eram obrigados de fazer a matrícula em seus

cursos no início de Outubro, jurando obedecer ao reitor “[...] nas coisas lícitas e honestas que

tocarem à Universidade [...]” (LEITE, 1963, p. 74). O estudante deveria dar informações

pessoais, como de onde eram, e dizer em qual faculdade estudava e a quanto tempo estudava

nela. Quem anotava esses dados era um escrivão. A quem não fizer a matrícula anual “[...]

não gozarão dos privilégios da Universidade, nem serão havidos por estudantes dela, nem lhe

serão contados em curso todo o tempo que na Universidade estiverem [...]” (LEITE, 1963, p.

225), ou seja, este ano em que o aluno passar sem se matricular não contaria como um curso

(de 8 meses ao menos, como já referimos acima). De dois em dois anos no máximo os

estudantes tinham de “provar seus cursos”, tinham que diante do reitor, escrivão e mais duas

testemunhas suas dizer quantos eram os seus cursos, quantos anos freqüentou as aulas.

Sobre a freqüência nas aulas Teixeira Bastos nos apresenta informações importantes:

“A freqüência das aulas era livre. Nos primeiros tempos da Universidade não havia exames, de que se fala pela primeira vez nos Estatutos de D. João I; mas estes exames não se faziam nos primeiros anos do curso. Só muito tarde, com a reforma pombalina, se estabeleceu a prática dos atos por anos.” (BASTOS, 1920, p. 7)

Page 75: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

74

E ainda diz mais a frente:

“[...] nela[s] [nas aulas] se ditavam as postilas, (mais tarde chamadas sebentas), que o aluno tinha de apresentar, rubricadas pelo professor, para prova de freqüência. Mas os estudantes iludiam esta exigência: sem comparecerem nas aulas, adquiriam facilmente postilas, e atestavam a sua assiduidade com o testemunho de dois condiscípulos. Os próprios estudantes teólogos preferiam ouvir nos respectivos colégios as lições dos seus professores a comparecerem na Universidade. Metade dos estudantes não viviam em Coimbra, onde só apareciam por ocasião das matrículas.” (BASTOS, 1920, p. 12-13)

Este testemunho é de grande valor. De fato lendo os Estatutos não encontramos outro

meio de prova de freqüência além da “prova do curso” que já referimos e que Teixeira Bastos

diz. As postilas, ou sebentas, eram folhas de rascunhos que os estudantes usavam para anotar

o resumo da lição, nos Estatutos só há referencia marginal à elas, numa passagem obscura

sobre as aulas das cadeiras menores de Cânones e Leis (LEITE, 1963, p. 100). Os exames

realmente só se davam mais ao final dos cursos, na faculdade de Teologia só iniciavam no

terceiro ano, para os canonistas e legistas só havia exames no quarto ano.

Desta forma um tanto quanto laxa à freqüência ocorria que alguns estudantes se

dedicavam a uma vida devassa de diversões torpes. Os capítulos 75 e 76 regulam os bons

costumes que os estudantes devem guardar. Somadas as prescrições legais deste Estatuto mais

relatos históricos podemos ter uma idéia dos costumes e torpezas do estudante conimbricense.

Tendo acesso à parte do texto dos Estatutos manuelinos (c. 1504), podemos ver que a

legislação pouco mudou, continuando as mesmas regras antigas no Estatuto de 1559,

provavelmente continuando a ocorrer as mesmas torpezas.

Listemos algumas proibições: “[...] os estudantes não terão em sua casa mulher

suspeita [...] e o mesmo se guardará com os estudantes que se provar terem mancebas

[concubinas] [...]” (LEITE, 1963, p. 230), se acaso isso viesse a acontecer a mulher iria presa

e pagaria uma multa, o estudante ou lente pagaria uma multa e sua pena (e a da mulher)

ficaria à gosto do conservador da Universidade; os escolares “andarão honestamente vestidos

e calçados” (LEITE, 1963, p. 230) e então se enumera uma grande quantidade de proibições

de trajes, desde adereços, roupas e até mesmo cores mais gritantes (amarelo, verde, laranja,

vermelho) estavam proibidos, sob pena de terem recolhidas suas vestimentas pela

Universidade.

Page 76: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

75

Quanto aos animais a Universidade proibia expressamente as aves de caça, as “bestas

de cela”, cavalos e outros, só eram permitidos aos estudantes que provassem ter renda de cem

mil réis ao menos54.

Outra proibição era a de festas: “[...] não poderão os ditos estudantes fazer convites

nem banquetes a pessoa alguma [...]” (LEITE, 1963, p. 232), nem mesmo podiam ter

tabuleiros e dados em casa para o jogo de azar, mas os Estatutos permitiam que se jogassem

esses jogos fora de casa, desde que não tivessem as peças dentro delas. Sobre agitações

noturnas dos estudantes temos um relato curioso que nos narra Teixeira Bastos:

“[...] pelo alvará de 20 de Julho de 1539 vê-se que ‘alguns estudantes da Universidade, não esguardando o que cumpre ao serviço de Deus e meu (fala D. João III) e à honestidade de suas pessoas, andam de noite, com armas, fazendo músicas e outras artes não mui honestas por esta cidade, do que se segue escândalo à Universidade’” (BASTOS, 1920, p. 16)

Bastos diz em nota que estes divertimentos continuaram, pois m 1838 uma portaria

toma providência contra alaridos noturnos, foguetes e tambores que os estudantes se

utilizavam, assustando os moradores da cidade (cf. BASTOS, 1920, nota p. 16).

Havia também a proibição de armas: “[...] nenhum estudante trará armas ofensivas

nem defensivas, de qualquer sorte que seja, nas Escolas nem fora delas pela cidade de dia nem

de noite; e o que o contrário fizer perderá as armas [...]” (LEITE, 1963, p. 233). De fatos as

armas eram um problema sério no mundo do século XVI, onde alguma rixa entre indivíduos e

partidos poderia acabar facilmente em morte, pois muitos portavam armas como se fosse uma

peça indispensável de seu vestuário. Esta proibição do porte de armas era uma constante,

desde antes pelos Estatutos manuelinos, passando pelos de 1559, continuando no de 1591 e

assim por diante, o que nos faz supor que essa prática era também constante.

Num relato do século XVIII do Dr. Ribeiro Sanches55 ele comenta sobre o clima de

guerra na Universidade: “Cada um tem sua sociedade particular, e daqui vem que todos vivem

armados com ânimo de ofender e de ofender-se, do mesmo modo que se vivesse entre

54 Infelizmente não podemos dar acuradamente o valor de cem mil réis em nossa moeda atual, porém podemos

dizer que era uma quantia considerável, pois é o mesmo valor que o salário da cadeira de Prima em Teologia; as cadeiras de Prima de Leis e Cânones tinham os salários mais elevados, cento e cinqüenta mil réis por ano (renda anual).

55 Doutor Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), ilustre médico português, iniciou o curso de Direito em Coimbra no ano de 1716, mas insatisfeito depois de três anos de curso, foi estudar na Espanha e veio a se fazer doutor em medicina pela Universidade de Salamanca em 1722. Figura entre os pensadores ilustrados pelo Iluminismo, chegando a escrever pra a Enciclopédia dos franceses iluministas. Viveu em várias localidades da Europa: Genova, Londres, Paris, etc., viveu 16 anos na Rússia, onde foi médico da Imperatriz Ana Ivanowna.

Page 77: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

76

inimigos [...]” (SANCHES apud BASTOS, 1920, p. 19). O mesmo médico ilustre diz noutra

passagem: “[...] os estudantes rondavam armados de noite, como se a Universidade estivesse

sitiada pelo inimigo, muitos tinham um cão de fila, que era sua companhia de noite [...]”

(SANCHES apud BASTOS, 1920, p. 19-20). Embora de outros tempos, é verossímil admitir

que isto ocorresse também em Coimbra no século XVI.

Voltemos a falar sobre os Estudos de Coimbra à luz dos Estatutos universitários de

1559. Para se matricularem em alguma faculdade maior (Teologia, Cânones, Leis e Medicina)

o estudante deveria ter a aprovação do Colégio de Artes; para os cursos de Direito o escolar

deveria ter uma certidão do principal do Colégio, de como tal pessoa foi examina e tida por

hábil o suficiente para ingressar no curso de Direito (Leis ou Cânones); para os cursos de

Teologia e Medicina se exigia que o estudante fosse bacharel ou licenciado em Artes,

devendo mostrar certidão (cf. LEITE, 1963, p. 243 e p. 302), e sendo apenas bacharel poderia

entrar no curso, mas deveria logo se licenciar em Artes se quisesse poder fazer as provas

finais.

É importante dizer que os estudantes não podiam cursar duas faculdades ao mesmo

tempo, por norma legal dos Estatutos, nem mesmo ter em conta mais que um curso por ano,

evidentemente.

Em contrapartida, para entrar no curso de Artes “[...] tenham ouvida Latinidade, de

maneira que saibam falar latim e compor [escrever] [...].” (LEITE, 1963, p. 314), deviam,

pois, ter o requisito básico dos estudantes medievais, o domínio da língua latina, que

aprendiam desde cedo nas escolas como as crianças de hoje aprendem sua língua materna.

Régine Pernoud (1996, p. 99) tece um útil comentário sobre o uso do latim no mundo do

ensino medieval:

Este mundo matizado possui uma língua comum, o latim, o único falado na Universidade; é sem dúvida o que lhe evita ser uma nova Torre de Babel. Apesar dos grupos diversificados de que é composta; o uso do latim facilita as relações, permite aos sábios comunicar de uma ponta à outra da Europa, dissipa, de antemão, qualquer confusão na expressão e salvaguarda também a unidade de pensamento.

Todas as aulas eram dadas no idioma latino. O capítulo 30 dá a descrição de como

deveriam ser as aulas e o que era permitido ou não ao professor nelas. A citação é grande, mas

lançará muita claridade sobre como tipicamente eram as aulas escolásticas:

Page 78: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

77

Lerão os ditos lentes muito suficientemente, declarando muito bem os textos com todos os entendimentos deles e provando os que lhe parecem verdadeiros; e, respondendo aos textos, razões e argumentos que fazem em contrário, examinarão todas as dificuldades dos ditos textos que lerão, e das glosas deles e as matérias pertencentes aos mesmos textos, que sobre eles se tratam e poderem convenientemente tratar, com tanto que não leiam matérias remotas dos textos que lêem, em modo que os tais textos com suas matérias fiquem bem entendidos e declarados, dizendo sobre isto o necessário do que os doutores escrevem e do que mais os lentes por seus bons engenhos e trabalhos poderem entender, resolvendo-se naquelas opiniões e conclusões que a seu parecer forem verdadeiras, e não tratarão matérias e questões extraordinárias dos ditos textos que lerem [...] e no ler das glosas não cuidem de dizer e trazer todos os textos que alegam prováveis ou contrários em um ponto ou conclusão, mas somente um ou dois dos principais, porque tal é coisa de se deterem muito [num só texto] e não cuidarão de gastarem o tempo em referir muitas opiniões de doutores [...]. (LEITE, 1963, p. 96-97)

Como se vê, o ensino era muito pautado nos textos e nos comentários sobre eles, mas

isto não havia como ser diferente tendo em vista as condições da época. Se bem que hoje em

dia isto pouco mudou, todo o ensino na área das Ciências Humanas é majoritariamente feito

sobre os textos e comentários que os professores e alunos fazem sobre eles. O que muda,

evidentemente além do idioma latino, é o fato de que os professores não lêem mais

integralmente os textos durante a aula e comentam em seguida (com ou sem comentários de

terceiros, chamados de glosas), hoje em dia o recurso da leitura do texto é algo mais marginal,

lê-se pequenos trechos para fazer breve comentário ou expor uma parte da matéria.

As aulas nas faculdades maiores duravam, para as cadeiras de Prima, uma hora e meia,

e para as demais cadeiras o tempo era de uma hora, no Colégio de Artes a duração era outra,

comentaremos em breve. No final das aulas os lentes diziam qual era o texto que abordariam

na outra lição (aula). Depois de terminada a aula ficavam na porta da sala para se necessário

responder alguma dúvida dos estudantes, estes que deveriam perguntar e serem respondidos

em latim, para “se acostumarem ao falar e entender bem [o latim]” (LEITE, 1963, p. 98), e os

professores só podiam sair depois de respondidas todas as perguntas.

A disposição das cadeiras (cátedras) na Universidade é de suma importância conhecer.

Elaboramos um quadro com as cadeiras das quatro faculdades maiores e o que se lia nessas

cadeiras, todos os valores dos salários são referentes à renda anual do professor lente:

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A) Teologia, quatro cadeiras maiores (não se fala sobre a existência de cadeiras

menores):

I. Cadeira de Prima: lia-se o Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, mais

algum expositor ao gosto do catedrático. O catedrático podia optar por ler

as Partes56 de São Tomás; salário de cem mil réis.

II. Cadeira de Véspera: lia-se as Partes de São Tomas de Aquino. Porém se o

catedrático de Prima ler São Tomás, então o de Vésperas lê o Livro das

Sentenças; salário de oitenta mil réis.

III. Terça: leitura do Antigo Testamento; salário de sessenta mil réis.

IV. Outra antes da Véspera: leitura do Novo Testamento; salário de sessenta mil

réis.

B) Cânones, cinco cadeiras maiores e duas menores, sete ao todo:

I. Cadeira de Prima: lia-se os Decretais57; salário de cento e cinqüenta mil réis.

II. Cadeira de Véspera: Decretais; salário de cento e vinte mil réis.

III. Terça: leitura do Decreto58; cento e vinte mil réis de salário.

IV. Outra antes da Véspera: lia-se o Sexto59; salário de sessenta mil réis.

V. Outra: Clementinas60; sessenta mil réis ao ano.

VI. Mais duas cadeiras menores em que se lia os Decretais; cada cadeira com trinta

mil réis de salário.

C) Leis, quatro cadeiras maiores e quatro cadeiras menores, oito ao todo:

I. Cadeira de Prima: leitura do Esforçado61; cento e cinqüenta mil réis.

II. Cadeira de Véspera: lia-se o Digesto Novo; salário de cento e vinte mil réis.

III. Terça: Digesto Velho; salário de cem mil réis ao ano.

56 A Suma Teológica de São Tomás de Aquino é dividida em partes, em 4 partes mais uma parte Suplementar. 57 Coletânea de escritos, decretos e leis dos Papas, em cinco livros. 58 O Decreto de Graciano, fundamental livro de Direito Canônico medieval. 59 Obra publicada em 1298. É chamado de Sexto por vir depois dos cinco livros dos Decretais. 60 Leis de Clemente V, de 1314. Além das quatro partes do Direito Canônico antigo (Decretais, Decreto, Sexto,

Clementinas) havia outras duas partes: Extravagantes comuns e Extravagantes de João XXII. 61 Uma das partes do Digesto, inclusos no chamado também de Corpus Iuris Civilis, o Código de Justiniano

(século VI). O Esforçado foi a primeira parte compilada do Digesto. Depois com a “redescoberta” do Direito Civil romano no Código de Justiniano, foram dividindo o Corpus em partes conforme as compilações eram feitas. A compilação mais antiga fora o Esforçado é chamada de Digesto Velho, e a mais recente é chamada de Digesto Novo. Todos os textos das seis primeiras cadeiras enumeradas são do Corpus Iuris Civilis (Corpo de Direito Civil), que reunia todas essas partes (Esforçado, Digestos, Código).

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IV. Outra: os três livros do Código; cinqüenta mil réis.

V. Duas cadeiras menores em que se lia o Código; trinta mil réis de salário.

VI. Duas cadeiras menores de Institutas62; vinte mil réis por ano.

D) Medicina, três cadeiras maiores e três menores, seis ao todo63:

I. Cadeira de Prima: lia-se Galeno, por três anos64, no quarto outros livros que

não pudemos identificar com certeza de quem eram65; cem mil réis ao ano.

II. Cadeira de Véspera: lia-se por Hipócrates, por quatro anos66; oitenta mil réis de

salário.

III. Cadeira de Terça: leitura das obras de Avicena, por quatro anos; cinqüenta mil

réis ao ano.

IV. Nona: Galeno novamente, por mais quatro anos67; quarenta mil réis.

V. Cadeira de Anatomia: lia-se em dois anos um livro breve de anatomia e por

outros dois anos o livro De usu partium de Galeno; quarenta mil réis ao

ano.

VI. Cadeira de Cirurgia: lia-se o livro Chirurgia e Greco in Latinum a se conversa,

de Guido Guidi, médico italiano do século XVI, e Terapeutica de Galeno.

Afora isto havia duas autópsias humanas por ano que o mestre era obrigado

a fazer e mais seis autópsias em animais; trinta mil réis.

E) Além disto, os Estatutos falam de uma Cadeira de Música: “Haverá uma cadeira de

Música e o lente dela lerá duas lições ao dia, depois da terça. Terá cantochão, e

62 As Institutas era uma espécie de manual de Direito Romano, constitui a primeira parte do Corpo de Direito de

Justiniano e é introdutório às demais partes. 63 Embora os Estatutos digam que há ao todo seis cadeiras de medicina, ele ao definir as leituras só aborda em 5

capítulos quais sejam as leituras, como se existisse apenas cinco cadeiras. Julgamos haver diferença entre a cadeira de Anatomia com a cadeira de Cirurgia e assim dividimos essas matérias que o Estatuto apresenta unidas. Tivemos dificuldades também em valorar os salários de cadeiras, há contradições internas nos Estatutos, a solução adotada nos pareceu bem.

64 No primeiro ano: lia-se a Tecna; no segundo no: De locis affectis; no terceiro ano: De differentiss febrium e De sinplicibus.

65 O primeiro é “De morbis spiritualium”, o segundo “De morbis membrorum naturalium”. 66 No primeiro ano: Aforismos; no segundo: Prognósticos; no terceiro: Prognósticos; no quarto ano: De ratione

victus in acutis. Na verdade como comenta em nota Serafim Leite, pode ser que no terceiro ano se lesse outro livro e que o copista tenha copiado erroneamente a matéria do segundo ano no terceiro.

67 Primeiro ano: Therapeutica; segundo ano: De Crisi, De diebus decetoriis, De pulsibus ad tyrones; no terceiro ano: De temperamentis, De naturalibus facultatibus; no quarto ano: De morbo et sunthomate.

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depois de véspera canto de órgão. E haverá por ano quarenta mil réis.68” (grifos do

autor, LEITE, 1963, p. 94)

Para o Colégio de Artes a disposição das matérias ficou um pouco confusa, faltando

dados nos próprios Estatutos. Fizemos o possível para preencher os dados de modo que

ficassem o mais próximo do real os cursos do Colégio de Artes de Coimbra. Assim fica a

relação das cadeiras do Colégio:

A) Línguas, 14 cadeiras ao todo:

I. Uma cadeira de Hebraico; salário de cinqüenta mil réis ao ano.

II. Uma cadeira de Grego; cinqüenta mil réis.

III. Dez cadeiras de Latim; salários variando de cem mil réis até quarenta mil por

ano.

IV. Duas cadeiras de “Ler e Escrever” 69; vinte mil réis cada.

B) Matemática, uma cadeira apenas; salário de cinqüenta mil réis por ano. Os

Estatutos não nos fornecem os conteúdos desta matéria, mas em outros pontos do

texto encontramos o nome de Euclides. É de se supor que Euclides fosse ensinado

na Universidade, pois seus escritos já eram tradicionalíssimos na educação

européia de então. Parece-nos que esta cadeira, diferente das cadeiras de Línguas,

está intimamente ligada à Faculdade de Artes, para a formação de

bacharéis/licenciados/mestres de Artes, como veremos.

C) Faculdade de Artes, curso de Filosofia. Esta era a parte principal dos estudos em

Artes, que só podiam ingressar, como já referimos, ouvintes que tenham ouvido o

curso de Latinidade e que saibam falar e escrever em Latim. Somente através

destes cursos é que o aluno de Artes poderia se graduar. Havia quatro lentes do

curso filosófico: um Dialético, um Lógico, um Físico e um Metafísico70, que

68 Curiosamente os Estatutos não colocam a cadeira de Música como pertencente ao Colégio Real,como era de

se supor, visto que a Música era uma das Artes Liberais. 69 Os Estatutos não nos dão mais informações sobre estas cadeiras, sobre qual seja a função delas, mas

pressupomos que estejam relacionadas com a prática da leitura e escrita (redação?) do Latim. 70 Cada um desses professores se ocupava de uma parte da filosofia. Se bem que a parte chamada Física se

ocupava também da natureza, porém ainda assim buscava os princípios filosóficos que a regia. Portanto seria um tanto quanto simplista ou exagero dizer que o livro Física de Aristóteles era filosofia pura ou um livro de física como concebemos hoje esta ciência. A Dialética, se bem que diferente da Lógica, está incluída na Lógica, tendo por outro nome “Lógica menor”. A Metafísica (do grego meta = além/depois e física = natureza/física) se ocupa da investigação dos princípios da realidade que transcende o mundo físico, a Cosmologia e a Ontologia são ciências que pertencem à Metafísica.

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assumiam as classes de cada um dos 4 anos totais de curso filosófico, cada

professor dando aula em um dos quatro anos (aproximadamente). As disposições

das leituras de cada ano seguem:

I. Primeiro ano. Primeira terça: Um manual de introdução ou explicação dos

termos escolásticos que os Estatutos chamam por “Terminos”, lia-se a

Dialética de Trebisonda71 e os Predicáveis de Porfírio; segunda terça: Os

livros Categorias e De Interpretatione (Da Interpretação) de Aristóteles;

terceira terça: Priores72 de Aristóteles e a Oratória de Quintiliano.

II. Segundo ano. Primeira terça: Posteriores e parte da Ética73, ambos de

Aristóteles; segunda terça: Tópicos e Elencos74, de Aristóteles; terceira

terça: havia aulas de matemática (aritmética, geometria e perspectiva) e

mais uma parte da Ética de Aristóteles.

III. Terceiro ano. Primeira terça: parte da Física de Aristóteles; segunda terça:

outra parte da Física e parte do livro De Coelo (Sobre o Céu); terceira

terça: Outra parte do livro De Coelo, o livro De Generatione (Sobre a

Geração e Corrpução) e o Tratado da Esfera, este ultimo do astrônomo

inglês John of Hollywood75 (João de Sacrobosco).

IV. Quarto ano. Primeira terça: Meteoros e De Anima (Da alma), ambos de

Aristóteles; segunda terça: o máximo que for possível da Metafísica de

Aristóteles.

Este é o quadro geral de estudo de todas as faculdades da Universidade de Coimbra.

Porém ainda faltam informações nos Estatutos para que possamos dar o complemento final de

cada um dos cursos. Pois excetuando o curso de Medicina e o Colégio de Artes em que as

aulas estão bem documentadas nos 4 anos letivos, os cursos de Teologia, Cânones e Leis não

apresentam mais informações do que as que já expusemos sobre isto. Porém é de se supor,

que cada cadeira destes cursos tivesse a duração de quatro a cinco anos sobre a matéria que

lhe compete, assim a cadeira de Prima de teologia passaria, pelo menos, quatro anos lendo

Pedro Lombardo, a prima de Leis quatro anos o Esforçado. 71 Jorge de Trebisonda (Georgius Trapesuntius), humanista cretense nascido em 1395, foi tradutor de autores

gregos, particularmente de Aristóteles. Ensinou em Roma, onde morreu em 1484. 72 Os Priores e Posteriores de Aristóteles têm por outros nomes Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos. 73 Pelo texto dos Estatutos não pudemos identificar se referia à Ética a Nicômano ou à Ética a Eudemo. Mas o

comum seria que fosse a Ética a Nicômano. 74 Obra Elencos Sofísticos, chamada também de Refutações Sofísticas. 75 Astrônomo inglês que ensinou na Universidade de Paris, aonde veio a morrer em 1256. Vê-se que depois de

quatrocentos anos ainda se estudavam sua obra.

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A outra hipótese seria que cada ano correspondesse a uma cadeira, assim a Prima seria

o primeiro ano, a Véspera o segundo, etc. Esta hipótese descartamos completamente, pois os

próprios Estatutos no capítulo 30 (LEITE, 1963, p. 96-99) dá a disposição de alguns horários

das aulas do curso de Cânones e Leis e com certeza podemos afirmar que em um mesmo ano

os alunos assistiam aulas de mais de uma cadeira. Assim supomos o mesmo para a Teologia.

Admitindo, portanto, que um estudante passava de quatro a cinco anos para assistir o

curso todo e que assistia a mais de uma cadeira (ou todas até) por ano, estas que no caso de

Teologia, Cânones e Leis seriam de apenas um texto específico, é claro e evidente que a

disposição horária na semana era variada. O lente de Prima teria quatro ou cinco classes para

reger e como é evidente não poderia fazê-lo num mesmo dia. Concluímos, portanto, que num

dia da semana ele dava sua aula para o primeiro ano, noutro dia para o segundo, em outro para

o terceiro e assim por diante, ou seja, o aluno não tinha aula da cadeira de Prima todos os dias,

isso seria impossível pela disposição horária.

Esta é a conclusão que chegamos do horário de aula para as quatro Faculdades maiores

da Universidade de Coimbra, embora isto não seja dito explicitamente para todos os cursos76

no texto dos Estatutos, pensamos que está é a forma mais racional de se resolver este

problema que a falta de dados nos lançou.

Como já dissemos, para as quatro Faculdades maiores, as aulas da cadeira de Prima

duravam uma hora e meia e as demais uma hora apenas. Este tempo era pouco se o

considerarmos isolado, mas num dia com mais de uma aula poderia dar um valor

considerável. As aulas ocorriam na proximidade da hora canônica correspondente ao nome da

cadeira, não exatamente na hora, a Prima era das 7:30h às 9:00h, os lentes de Véspera liam

das 15:00h às 16:00h. O horário variava conforme as estações do ano e conforme datas

religiosas e pregações que ocorriam (cf. LEITE, 1963, p. 96).

O Colégio de Artes tinha a carga horária mais pesada de todas. Em primeiro lugar é

dito que havia aula “[...] todo o ano, sem haver vacações [férias] [...]” (LEITE, 1963, p. 315).

No dia tinham ao todo seis horas de aula, três pela manha e três pela tarde, se bem que os

Estatutos dizem que somente as duas primeiras horas eram de aulas e a última era de

76 Não para todos. No capítulo 99 (p. 278-279) comenta-se sobre a disposição das cadeiras de Cânones e Leis e

é dito explicitamente: “[...] os ouvintes em Cânones e, em todos os cinco cursos [que tinham que ouvir], ouvirão as lições de prima e véspera [...]” (LEITE, 1963, p. 279). Diz também o mesmo capítulo que em certos anos deveriam os alunos ouvir determinadas cadeiras, vemos, portanto, claramente que se assistia aulas em cadeiras diversas no mesmo ano. Para o curso de Leis a se exige algo parecido. Embora nada seja dito quanto ao curso de Teologia.

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conferência77. Sem contar que é dito que “[...] haverá todas as semanas disputas, as terças-

feiras, quintas e sábados [...]”, ou seja, até mesmo no dia não letivo de quinta os estudantes

estavam ocupados, se bem que houvesse um revezamento nos dias, ou seja, numa semana à

terça-feira era dos estudantes de Lógica, a quinta dos estudantes de Física e na outra terça era

dos Metafísicos, depois disto se seguia a ordem por sucessão dos dias. Aos sábados havia

exercícios escolásticos também, bem como nos domingos do verão (cf. LEITE, 1963, p. 321).

Sem dúvida um curso pesado, feito para um estudante de verdade.

A idade mínima para ser admitido nos cursos, tanto das quatro faculdades maiores

como do Colégio Real não é dita nos Estatutos. A admissão se dá pela aptidão do candidato,

independentemente da idade. Esta aptidão poderia variar, evidentemente. É dito da vida de

Erasmo de Roterdã que com onze anos já lia perfeitamente Horácio e Terêncio, poetas

romanos (Terêncio era também dramaturgo). Se fossemos analisar por este lado o candidato

podia entrar muito novo para o curso de filosofia do Colégio de Artes, cuja admissão tinha

por critério único o domínio da língua latina.

Não possuímos dados que nos levem a afirmar com toda a certeza qual a idade dos

ingressantes nos estudos conimbricenses. Régine Pernoud em seu livro “Luz da Idade Média”

diz que na Idade Média os estudantes iniciavam seus estudos com sete ou oito anos e depois

de aproximadamente dez anos de estudo ingressava nas Universidades (cf. PERNOUD, 1997,

p. 96). Parece-nos que o mesmo se procedia em Coimbra, com os estudantes ingressando em

Artes na faixa etária de 14 a 16 anos aproximadamente e ingressando por volta dos 20 anos

nas Faculdades maiores. Isso para condições normais, pois podia sim algum aluno mais velho

ingressar nos estudos. Santo Inácio antes de entrar nos estudos da Universidade de Paris teve

de estudar em idade já avançada, por volta do 30 anos, visto que antes disso sua carreira

dependia mais das armas do que das letras.

Não havia nos Estatutos idade mínima para o ingresso, mas havia uma idade mínima

para os que quisessem se fazer doutores; para ser doutor em Teologia se exigia a idade

mínima de 30 anos; para Cânones e Leis, 25 anos; para se fazer mestre de Artes, 20 anos78. Os

Estatutos não dizem a idade mínima para a pessoa se doutorar em Medicina, mas pelo texto

inferimos que seja a mesma idade dos doutores teólogos, 30 anos (cf. LEITE, 1963, p. 310).

77 Não pudemos identificar o que seria ao certo estas conferências, o certo é que mestres e alunos participavam.

Provavelmente deveria ser alguma espécie de exercício. 78 Nos Estatutos de Évora de 1559 se exigia apenas 18 anos para se graduar como mestre em Artes.

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Falta-nos ainda falar sobre os graus acadêmicos, que eram ao todo três: bacharel,

licenciado e por fim doutor79. Exigia-se muitos anos para um estudante se tornar doutor,

descontando o tempo de obter o bacharelato ou licenciatura em Artes, um teólogo demorava

ao todo de 10 a 11 no mínimo para conseguir o doutorado, em Cânones e Leis demorava-se

aproximadamente 10 anos e em Medicina 8 ou 9 anos no mínimo80. Vamos expor com mais

detalhes cada um dos graus acadêmicos para os cursos. Novamente, não iremos expor todas as

minúcias da aquisição dos graus, somente uma visão geral.

O bacharel é o primeiro grau que o estudante podia adquirir. Para as Faculdades

maiores temos: demorava 8 anos para os teólogos serem bacharéis, 8 anos para os legistas e

canonistas, 7 anos para os médicos. Para se tornar bacharel em Artes, o artista demorava 4

anos. Este era o tempo mínimo para adquirirem o grau, pois se fosse reprovado nas provas

demoraria mais anos e se fosse estudante de má vida, corria o risco de nem sequer adquirir o

grau, como se expressa repetidas vezes os Estatutos: “E, não achando suficiente ao tal

estudante nas letras ou nos costumes, dilatarão, ao dito, os autos ou o excluirão deles segundo

bem parecer à Faculdade [...]” (grifos nossos, LEITE, 1963, p. 305).

Para as faculdades maiores o que geralmente acontecia é que, terminado 5 anos de

aulas (6 para teólogos) o estudante passava por provas específicas para adquirir o bacharelato,

embora já tivesse provas de seu curso desde o terceiro ou quarto ano, dependendo do curso. E

após fazer esses exames, que demoravam anos até, recebia em sessão solene o seu grau de

bacharel. Na verdade o que mais se esforçava era o teólogo, que tinha muitos exercícios para

fazer nesses anos, os médicos, canonistas e legistas normalmente no quinto ano já conseguiam

a aprovação nos exames de bacharel, mas eram obrigados a passar mais alguns anos

estudando (legistas e canonistas) ou praticando (médicos) para que pudessem receber

definitivamente o grau.

O grau era conferido conforme o desempenho do aluno nas provas, as quais assistiam

os doutores e bacharéis até. A prova consistia num exercício escolástico, em que o aluno lia e

argumentava sobre um trecho de uma Autoridade, sobre os livros que estudaram no curso.

Terminada sua exposição e terminado de responder aos doutores e bacharéis, conforme o 79 Havia relação entre os graus acadêmicos com os graus das oficinas medievais, estas que iam do aprendiz ao

mestre, na Universidade se ia de estudante a doutor, que era o mestre da corporação Universitária. A estruturação da Universidade em uma corporação de ofício das letras é um fato marcante na Idade Média, nos referimos a isto no primeiro capítulo.

80 Não temos total certeza dos prazos por causa da falta de dados contidos nos Estatutos, mas estes prazos aproximados no máximo pecam em um ano de prazo, podemos dar como certo que o prazo mínimo para o doutoramento não passa de 11 para os teólogos, de 10 para os canonistas e legistas e de 9 para os médicos, desde que não fossem reprovados em nada.

Page 86: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

85

exercício que fosse, terminava o auto. Depois vários desses autos que haviam, que em

Teologia durava anos, havia uma sessão final, chamada de “exame privado”, em que depois

de uma lição dada pelo bacharelando os doutores votavam sobre a suficiência do mesmo para

receber o grau. Se aprovado recebia o grau, se não fosse aprovado poderia tentar no outro

ano81.

Em seguida ao grau de bacharel vinha o de licenciado, muito mais rápido que o

anterior. Para Teologia bastava que o bacharel, passado oito dias de sua graduação, pedisse ao

reitor que lhe desse a “licença”, este então marcava uma data, e nesta data havia uma nova

votação e se aprovado recebia o grau de licenciado (cf. LEITE, 1963, p. 269-270). Para os

canonistas e legistas era mais complicado, deveriam ficar depois dos oito anos mais um ano

“lendo, passando ou praticando” (LEITE, 1963, p. 286), fazer novas provas e depois pela

votação final, então recebiam seu grau. Para os bacharéis médicos é dito que: “[...] não serão

obrigados a ouvir lição alguma de Medicina, ainda que serão obrigados a residir82 na

universidade três cursos cumpridos.” (LEITE, 1963, p. 309), nesses três anos havia provas,

autos escolásticos como já dissemos, terminado os três anos havia uma votação em que se

deliberava se o bacharel deveria passar para o exame privado, se aprovado ele fazia o exame

privado em que deveria tratar de alguns pontos de Hipócrates e Galeno, ao cabo havia nova

votação e se aprovado recebia então o grau de licenciado.

Após este grau vinha o ultimo e derradeiro, o doutorado, que era quase que uma

formalidade, de tão rápido e simples que era a sua aquisição. Para todos os cursos, os

candidatos passavam por um auto curto, dias antes83 de receber o grau, em que versavam

sobre algum assunto de sua competência. No fim, havia uma solenidade de doutoramento,

sem votação alguma, em que o doutorando recebia seu grau.

É importante comentar sobre a questão da “penitência” dos alunos universitários para

se fazerem doutores. Durante as votações em algum exame privado, o qual conferia os graus,

desde o bacharel, o aluno poderia receber uma “penitência”, que era uma quantidade

determinada de anos que os doutores estipulavam ao aluno para que ele pudesse se doutorar,

ou seja, se os mestres penitenciassem o candidato à 5 anos de “penitência” ele não poderia

receber o grau de doutor antes desses 5 anos.

81 Se fosse reprovado por dois anos seguidos, o aluno canonista e legista não poderiam mais receber o grau de

bacharel: “e se for outra vez reprovado não será mais admitido ao dito grau” (LEITE, 1963, p. 285). 82 Será que a origem do tempo de “residência” que os médicos de hoje têm que passar para se especializarem

vem desta residência dos médicos medievais e modernos? 83 Para canonistas e legista era no dia mesmo da sessão solene de doutoramento.

Page 87: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

86

Falta-nos comentar sobre os graus do Colégio de Artes. Havia também os três graus

(bacharel, licenciado, doutorado), porém o último era chamado “magistério”, provavelmente

pelo fato dos artistas serem chamados de “Mestre em Artes” ao invés de “Doutor em Artes”,

mas o título é perfeitamente equivalente. O prazo mínimo para receber os graus era de: 4 anos

para o bacharel e os graus de licenciado e de mestre se podia obter no mesmo ano em que se

bacharelava, pois eram muito simples, damos porém um prazo máximo de 5 anos para o

estudante chegar a ser mestre em Artes, por causa das datas estipuladas84, se cumprisse todos

o requisitos, provas e não tivesse penitência alguma.

O grau de licenciado era dado a todos os bacharéis em uma única sessão solene. Mas o

grau de mestre só era dado a uma pessoa por vez, uma pessoa por domingo. Portanto,

dependendo da quantidade de pessoas que iriam receber o mestrado, podia haver certa demora

e o mestrando poderia acabar recebendo seu grau só no início do quinto ano ou, quando antes,

no período de férias (Agosto/Setembro).

Havia provas como nas Faculdades maiores, mas somente para bacharéis e

licenciados, não havendo prova alguma para o mestrado. Essas provas, como pudemos

perceber, eram muito mais rápidas que as das Faculdades maiores.

Por fim lembramos que o ensino era gratuito, bastava que o aluno se matriculasse. Mas

as despesas do estudo consumiam certa quantidade de dinheiro. Sem contar que as provas

para receber os graus eram todas pagas, ou seja, um estudante muito pobre precisaria de um

benfeitor, apesar de não serem tão caras assim as despesas, listemos algumas: para ser

bacharel em Artes o estudante deveria gastar quase 2 mil réis85; para o mestrado em Artes se

pagava mais de 3 mil réis além de luvas e bezerros e carneiros aos participantes da sessão86;

as provas do quarto ano de Cânones e Leis custavam 650 réis aos alunos, a sessão solene

licenciatura (não o exame privado) do teólogo ficava por volta de 5 mil réis, o exame privado

que precede esta cerimônia custava mais de 12 mil réis. E assim por diante, seria

desnecessário dar todos os valores de cada uma das provas e cerimônias, que se tenha em

mente que todas as provas, exames e cerimônias eram pagas e por vezes muito custosas87, se

bem que o aluno tinha muitos anos para arrecadar o dinheiro ou conseguir a mercê de algum 84 O exame final para os licenciados começava ou no dia 31 de Maio ou no primeiro de junho, portanto já no

final do quarto ano. 85 Aos estudantes muito pobres ainda havia esta possibilidade: “O Reitor e Faculdade, com bastante informação

de pobreza, poderão dar licença até três estudantes que se façam bacharéis, sem pagarem coisa alguma às arcas e examinadores, regentes nem oficiais.” (LEITE, 1963, p. 351).

86 Não sabemos se dava o animal vivo ou se era apenas uma porção, um pedaço, preparado ou cru do animal. Esse dado nos falta ao todo, mas é mencionado nos Estatutos.

87 Os alunos religiosos ou pertencentes a algum Colégio anexo à faculdade tinham desconto em algumas coisas.

Page 88: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

87

benfeitor, ou então, poderia até mesmo trabalhar de copista ou num outro ofício qualquer na

cidade. Muitos estudantes pobres se tornaram personagens importantíssimos do mundo

medieval:

Suger, que governa a França durnte a cruzada de Luis VII, é filho de servos; Maurice de Sully, o bispo de Paris que mandou construir Notre-Dame, nasceu de um mendigo; São Pedro Damião, na sua infância, guarda porcos, é uma das vivas luzes da ciência medieval, Gerbert d’Aurillac, é igualmente pastor; o papa Urbano VI é filho de um pequeno sapateiro de Troyes e [São] Gregório VII, o grande papa da Idade Média, de um pobre cabreiro. (PERNOUD, 1996, p. 97)

Page 89: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

88

Conclusão

Percorremos um longo caminho pela história geral da educação na Idade Media até o

estudo específico dos Estatutos da universidade de Coimbra. Cabe agora apresentar algumas

conclusões sobre o presente estudo.

Pode-se afirmar, sem dúvida alguma, que a protagonista da educação medieval foi a

Igreja Católica. Indiscutivelmente se deve a propagação das letras e das ciências muito mais à

Igreja que a qualquer outra instituição ou iniciativa. Mesmo o poder secular, na pessoa de

príncipes, reis e imperadores, quando fez algo em prol da educação o fez sob a tutela da

Igreja, com o auxílio de seus mestres e sob a influência de suas idéias. Bom exemplo disto é o

papel do monge Alcuíno na cultura das letras do Império Carolíngio, no chamado

“Renascimento Carolíngio”.

A transmissão do saber antigo, bem como o seu refinamento e purificação, se deve ao

corpo eclesiástico. As escolas episcopais que desde muito cedo, desde os primeiros padres da

Igreja, se preocuparam com a formação de clérigos e leigos, elas conservaram o patrimônio

cultural, intelectual, filosófico e científico do mundo greco-romano, porém purificando-os de

acordo com as novas luzes do Evangelho de Cristo.

Os críticos deste acrisolamento dos saberes muitas vezes são ignorantes acerca dos

benefícios que a fé cristã proporcionou ao conhecimento científico, benefícios estes que até

hoje os mais sérios cientistas usufruem.

A visão dos dois maiores e mais influentes filósofos pagãos do mundo antigo, Platão e

Aristóteles, acerca do mundo e do conhecimento que se pode ter dele (no que se refere à

Cosmologia) era muito precária e, com elas (a partir delas), jamais o conhecimento científico

do mundo, ou mesmo do cosmos, se teria desenvolvido plenamente.

“Para Platão o mundo submetido à observação dos sentidos não podia constituir objeto

de conhecimento certo.” (FRANCA, 1951, p. 183). Isto se devia a sua filosofia que afirmava

que a realidade verdadeira só poderia ser acessível por meio da inteligência dialética. A

verdade do mundo estava fora do próprio mundo, estava no “mundo das idéias”, no mundo

das Formas perfeitas inteligíveis. Fica claro, portanto, que o conhecimento verdadeiro não

poderia ser obtido por meio da ciência experimental, mas unicamente pelos processos da

inteligência.

Page 90: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

89

Aristóteles corrige este erro de Platão, imergindo a Forma na Matéria (o chamado

hilemorfismo), porém o Filósofo cai em outros erros. A cosmovisão (visão de mundo)

aristotélica estava permeada pela noção de acaso, “[...] que nele introduz um elemento

irracional e imprevisível [...]” (FRANCA, 1951, p. 184) na própria observação do mundo

físico. “Subsiste ainda a noção de uma matéria incriada, como força cega a limitar a

inteligibilidade total do universo [...]” (FRANCA, 1951, p.184), isto sem contar que a religião

por ele professada compreendia alguns fenômenos como ações arbitrárias dos deuses, por

exemplo, atribuindo um maremoto à insatisfação de Poseidon ao invés de procurar conhecer

como u maremoto se origina na natureza.

Como fica claro, as ciências naturais não poderiam se desenvolver plenamente a partir

destes pressupostos errados, que nem os romanos escapavam. Mesmo os conhecimentos

intelectuais e filosóficos deveriam se desenvolver com os novos pensadores cristãos, no

princípio com os Padres e mais adiante com os escolásticos medievais.

A fé cristã, que proclama os dogmas da criação e da Providência divina sobre o

mundo, mudou radicalmente as concepções científicas antigas. O mundo foi criado livremente

por Deus Onipotente; a existência do mundo é contingente, não necessária, ele existe e

subsiste unicamente por causa de Deus, um ser necessário.

Além disto, a fé cristã afirma que, nesta contingência das coisas, tudo o que existe,

existe precisamente da maneira como Deus concebeu e quis que assim existisse ou não. O céu

poderia ser rosa, mas é azul; os unicórnios poderiam existir, mas não existem; da mesma

forma, poderiam existir apenas unicórnios e nenhum cavalo galopando pelos prados.

Porém, Deus concebeu e criou todas as coisas de uma forma ordenada e harmoniosa,

pois a criação é obra de uma Inteligência infinita que regulou toda a natureza de uma forma

perfeita. Não há mais espaço para o acaso, para o irracional, imprevisível e ininteligível na

observação da natureza. A experiência se faz necessária para o conhecimento perfeito das leis

que regem toda a atividade desta natureza ordenada e harmônica. A fé cristã afirma também

que o homem é o senhor da natureza “enchei a terra e submetei-a” (Gn. 1,28), disse Deus ao

homem no Éden.

Elevada a este nível, a natureza e o homem, pode a ciência se desenvolver de uma

forma jamais vista. O filósofo Max Scheler (1874-1928), insuspeito por nem sequer ser

católico, se expressa nestes termos sobre isto:

Page 91: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

90

A idéia judeo-cristã de um só Deus Criador e seu triunfo sobre a religião e a metafísica da antiguidade foi, sem nenhuma dúvida, a condição primordial do surto magnífico das ciências da natureza e, portanto, a preparação para as pesquisas realmente objetivas e cientificas foi um acontecimento de alcance sem par na historia da ciência no Ocidente. A idéia de um Deus que é ao mesmo tempo, Espírito, Vontade, Atividade e Criador – idéia que não entreviram o gênio grego e o gênio romano, Platão ou Aristóteles, - envolveu de claridade incomparável o trabalho da investigação cientifica e da conquista do mundo infra-humano e conseguiu que no Ocidente a natureza fosse desencantada, exorcizada, distanciada e racionalizada em grau desconhecido aos povos do Oriente e da antiguidade.” (SCHELER apud FRANCA, 1951, p. 187).

Os sábios cristãos estão livres das “[...] doutrinas esterilizantes do ceticismo total

[Górgias, Pirro], do fenomenismo puro ou do determinismo absoluto [Demócrito] [...]”

(FRANCA, 1951, p. 188) e trabalham com mais constância, piedade e com mais verdade, pois

não buscam inventar teorias, mas apenas descobrir como Deus ordenou o Universo e procura

aplicar estes conhecimentos adquiridos para o bem dos homens, pela maior honra e glória de

Deus.

Muitos desconhecem estas coisas e acusam a Igreja Católica e sua fé de obscurantistas

e inimigas da ciência, o que não deixa de ser uma ingratidão. Chegam ainda a afirmar que os

monges copistas e sua atividade humilde pouco ou nada contribuíram para alargar o

conhecimento. O que se deu na verdade foi o contrário. Se não fosse a laboriosa atividade de

cópia os saberes antigos cairiam no esquecimento ou seriam perdidos no Ocidente bárbaro

que emergia das ruínas do Império Romano. O débito para com aqueles monges é grande, isto

deve ser reconhecido, eles são os autênticos conservadores dos saberes clássicos e suas

escolas foram povoadas por multidões de homens e mulheres ( estas nos mosteiros femininos)

que ajudaram a promover o conhecimento nas mais diversas áreas.

Assim o ensino foi florescendo na Europa cristã sob o influxo dos mosteiros e das

escolas episcopais, como já mencionamos. Leonel Franca (FRANCA, 1951, p. 178) comenta

que somente a Igreja seria capaz, em meio à desoladora ruína do mundo greco-romano, de

levar a cabo a educação dos povos:

Só a sua ação universal se estendia a toda Europa; só a sua organização hierárquica centralizada no papado podia assegurar a unidade do grandioso movimento de reconstrução; só a sua vitalidade resistente a todas as forças de dissolução permitiu a indispensável continuidade de um esforço multisecular.

Page 92: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

91

Desta forma fica mais compreensível o nascimento das universidades medievais nos

séculos XI-XII, nasceram fruto de um contínuo desenvolvimento das escolas eclesiásticas. O

aprimoramento dos métodos escolásticos e as contribuições dos tradutores também foram

elementos importantíssimos para que quantitativamente e qualitativamente os estudos se

aprimorassem e nascessem as corporações universitárias, idéia original de mestres e alunos,

bem inserida no contexto medieval das corporações de ofício.

Os reinos e o papado ajudaram que estas novas corporações a se estabelecerem,

regularem, ordenarem e se desenvolvessem sadiamente. Para isto muniram estudantes e

mestres de privilégios, quando não economicamente e humanamente as instituições. No

começo do século XVI existiam cerca de 88 Universidades espalhadas pela Europa, a maior

parte delas com seus papéis oficiais de fundação tinha uma assinatura papal. Se alguma

rigidez partiu das autoridades, dos papas e reis, foi para que a cultura, a fé e a sociedade não

ruísse. Como exemplo, citamos a proibição da “Metafísica” de Aristóteles, que em

determinada época serviu de base às heresias perigosas.

Da mútua cooperação da Igreja com os reinos para o estabelecimento das

universidades nasceu a Universidade de Coimbra em 1290 (reconhecimento pontifício), uma

das mais antigas, a quarta na Península Ibérica, ainda hoje em funcionamento.

Apesar da dependência da Igreja, a Universidade Conimbricense teve por

característica uma acentuada influência do poder real sob sua história. Os reis mudaram o

Estudo de Coimbra para Lisboa e vice-versa várias vezes, deram a ela infra-estrutura, mestres,

reformadores e Estatutos. Algumas destas interferências feriram a autonomia universitária, a

autonomia que as universidades, como corporação própria, tinham de se organizar a si

próprias.

Em nosso trabalho relatamos mais de 200 anos de história da Universidade de

Coimbra de forma breve, não há que se iludir sobre este assunto, muita coisa ficou de fora,

mas procuramos dar uma visão resumida e sintética dos acontecimentos mais importantes

desde sua fundação por D. Dinis até o reinado de D. Sebastião, neste que foram dados novos

Estatutos por Baltasar de Faria, visitador e reformador da Universidade. O estudo desta fonte

primária (Estatutos de 1559) nos permitiu possuir um conhecimento muito mais profundo das

universidades medievais, sua organização e seus programas de estudo. Gostaríamos de

apresentar algumas conclusões a que chegamos a este respeito.

Page 93: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

92

Antes de tudo, como ressaltamos no capítulo anterior, é de se notar o cuidado com a

religião católica pela Universidade, que reserva a primeira parte dos Estatutos para o cuidado

do sagrado.

Havia missas e procissões que os alunos e mestres eram obrigados a participar. Outro

cuidado dispensado está nas sessões de graduação do aluno, onde se investigam seus bons

costumes e, em Teologia, sua doutrina. Sobre a boa ordem dos costumes, lembremos as

disposições legais contra os mais diversos abusos dos estudantes, como o uso de armas,

convívio com mulheres, roupas escandalosas, etc., que os Estatutos proibiam.

Na verdade, seria estranho se não houvesse tal cuidado da religião. Em 1559 se estava

aberto o Concílio de Trento, a Contra-Reforma em atividade e Inquisição Portuguesa

funcionando com diligência. Isto sem contar toda a religiosidade da época, muito maior que

hoje, bem como o fato de que a Universidade estava sob a tutela do Rei e do Papa, ambos

conservadores da fé católica88.

Sobre este ponto, basta lembrar a grande balburdia que se instalou em Portugal por

conta da perseguição da Inquisição aos “mestres franceses” vindos para lecionar no Colégio

Real com Mestre André Gouveia. Mário Brandão, em sua obra “A Inquisição e os Professores

do Colégio das Artes”, narra com cores vivas este acontecimento. Os mestres foram acusados

de serem heterodoxos, heréticos. O processo se instaurou, alguns fugiram e outros foram

condenados.

Se a época estava carregada da religiosidade católica, os ares da heresia e do

humanismo sopravam também em todo canto e era preciso que se tivesse grande cuidado

nessas questões.

O fato é que o grande processo contra os professores foi mais uma destas tentativas

zelosas (que às vezes são exageradas) de se preservar a integridade da fé. Mas de forma

alguma se pode deixar de lado as inúmeras intrigas entre os mestres de André Gouveia com

outros mestres da facção de Diogo de Gouveia, o velho, este que chegou a acusar André de

Gouveia, seu sobrinho, de luterano. Essas intrigas abrem brecha para afirmar que os

partidários de Diogo perseguiram injustamente os “mestres franceses”. Mário Brandão não se

cansa de relatar as intrigas, porém, analisando friamente o caso, vemos que o processo

88 Em 1559 o Papa era Paulo IV, conhecido por ser muito zeloso para com a fé católica. Co-fundador da Ordem

dos Teatinos junto com São Caetano de Tiene, foi inquisidor-mor em Roma de 1542 a 1555, quando foi eleito Papa. É dela a seguinte frase: “Se meu pai fosse herege, eu iria apanhar lenha para queimá-lo”. Em seu mausoléu em Roma se lê o seguinte epitáfio: “Castigador sem mácula de todo mal e campeão acérrimo da Fé Católica”.

Page 94: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

93

inquisitorial foi necessário, pois o teor das denúncias (bem como certas atitudes dos mestres)

era muito grave89.

Passado este período de crise em Coimbra, ou seja, com a entrega em 1555 do Colégio

Real aos padres da Companhia de Jesus, bastava agora novos Estatutos Universitários para

reformar o ensino superior português. Esta tarefa foi reservada a Baltasar de Faria, nomeado

em 1555 visitador e reformador da Universidade. Quatro anos depois são apresentados os

novos Estatutos.

Apesar do longo tempo de elaboração e de seu aspecto muito harmônico, seus anos

depois, em 1565, novos Estatutos entrem em vigor em Coimbra. Sobre este fato nada

pudemos averiguar. Não sabemos as motivações desta empresa nem mesmo o que teria

mudado de um Estatuto para o outro, pois não tivemos acesso ao Estatuto de 1565. Até o

momento, pelo que sabemos, este documento está perdido, fora do alcance dos historiadores,

como estavam há 46 anos os Estatutos de 1559. Portanto qualquer hipótese, tese ou cogitação

não poderá ser confirmada no momento. Cabe-nos, portanto, analisar o que temos em mãos e

compor um quadro sintético sobre a Universidade de Coimbra em meados do século XVI. Tal

foi o estudo que empreendemos no capítulo precedente. Julgamos que nosso desempenho

tenha sido satisfatório e muito razoável, dentro dos limites de nosso trabalho e de nossas

capacidades.

A análise dos Estatutos é importantíssima, pois podemos ver claramente o

funcionamento de uma Universidade tipicamente medieval, na administração e nos estudos.

Temos consciência de que este foi um estudo muito focado em Coimbra e lamentamos a falta

de acesso a documentos de outras Universidades européias para estabelecer comparações e

assim compor um quadro mais apurado do ensino superior europeu do século XVI.

Administrativamente a Universidade de Coimbra, pelos Estatutos de 1559, nos

afigurou muito coesa e harmônica, embora nos tenha parecido que esta administração

concatenada tenha sido conseguida à custo de uma alta complexidade das tarefas dos

funcionários oficiais e das principais atividades da administração, como expusemos.

89 As acusações são várias: denúncias de heterodoxia, protestantismo, porte de livros proibidos, questões

relativas anão guardar o jejum ou a abstinência de carne nos dias determinados, a suspeita que se levantou de que André Gouveia tenha morrido impenitente, recusando a se confessar e irreverência às praticas católicas. É sabido que Nicolau Grouchy, um dos professores do Colégio, abraçou abertamente o protestantismo. Sem contar que alguns estudantes do Colégio de Santa Bárbara davam má fama aos “mestres franceses”, por práticas completamente fora da ortodoxia católica, o que levantava as suspeitas contra os mestres. Portanto havia motivo para se instaurar um processo inquisitorial.

Page 95: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

94

Os cargos mais importantes eram os de reitor, conselheiros, deputados e doutores

catedráticos. Em verdade os doutores eram o centro da Universidade, pois todos estes cargos

importantes, em sua maioria, eram preenchidos pelos doutores. Neste sentido, a corporação

universitária de Coimbra se assemelhava ao “modelo parisiense” e não ao de Bolonha, onde

os estudantes eram, ao menos nos primórdios da Universidade, os mais importantes membros,

cuidando inclusive da administração.

A “parte pedagógica” dos Estatutos não deixa de ser menos interessante. Deixando de

lado pormenores que tratamos no capítulo anterior, gostaríamos de comentar algumas coisas

relevantes.

Primeiramente o método pedagógico. Pela nossa exposição está claro que o método

era o escolástico, em voga já há muito tempo no ensino medieval. Os textos eram clássicos, de

estudo já muito antigo sobre eles, com exceção da “Dialética” de Trapesuntio e da “Cirurgia”

de Guido Guidi, do século XV e XVI, respectivamente.

Em verdade, Coimbra acompanhou o movimento de rechaço ao humanismo de sua época,

como as outras Universidades, que depois de um período de certo acolhimento às novidades

lançaram fora o humanismo e se tornaram como que fortalezas contra estas novidades.

Em Portugal o momento de maior aproximação ao humanismo se deu com a regência

do Colégio das Artes pelo principal André Gouveia e pelos mestres franceses por ele trazidos.

Desde o princípio estas contratações, por ordem de D. João III, desagradaram.

Doutor Diogo de Gouveia, o velho, gozava de ampla influência em Portugal e era

conselheiro real. Diogo era radicalmente contra o humanismo, cada uma de suas fibras

protestava contra as inovações. Sua oposição era maior que se pode imaginar. Era inimigo

mortal do Protestantismo e do humanismo de Erasmo de Roterdã:

Entre os portugueses nenhum, que saibamos, sobrelevou a Diogo Gouveia Senior na veemência do ataque ao grande humanista Roterdão, convencido de que, consoante a sentença tão repetida entre os franciscanos de Colônia, que um religioso conhecido lhe dissera ter ouvido de um colega alemão, fora Erasmo a pôr os ovos que Lutero chocara [...] (BRANDÃO, 1948, p. 84)

A associação de Erasmo com Lutero era evidente na cabeça de Diogo de Gouveia, que

trabalhou ativamente na condenação das obras de Erasmo na Espanha e na Universidade de

Paris. Numa junta em Valladolid, quando foi dar seu parecer sobre Erasmo, Diogo foi o mais

fanático dos adversários do humanista, desejando ver o mesmo queimado se não se retratasse

(BRANDÃO, 1948, p. 87-88). Na Universidade de Paris os trabalhos prosseguiram e em 1528

Page 96: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

95

obras de Erasmo foram condenadas, a obra “Colóquios” foi proibida, sob pena de morte para

quem a vendesse ou comprasse90 (BRANDÃO, 1948, p. 94).

Assim o humanismo, vindo a Portugal por influência francesa, não pode se instaurar

em Portugal pelos mestres de André Gouveia ou por outros, lembremos que toda a atmosfera

não era favorável à novidades.

Os jesuítas, também inimigos do movimento humanista, estavam exercendo grande

influência em Portugal e tendo muitos frutos na religião e nos estudos com seus colégios.

Porém a Companhia de Jesus não rechaçou por completo os novos estudos dos humanistas,

mas procurou purificar o que havia de errado e utilizar os estudos de Humanidades Clássicas

de acordo com a fé e moral católica.

O método escolástico da Universidade de Coimbra pode ser verificado nos capítulos

que tratam sobre como eram as aulas, de como os professores deveriam ministrar os estudos

(Cap. 30-35) e também pela relação dos livros utilizados e dos exercícios das disputas, muito

comum nos cursos universitários como pudemos demonstrar.

Em Teologia consideramos que o curso de Coimbra estava de acordo com as

exigências de seu tempo. As Partes de São Tomás foram lidas pela primeira vez nas

universidades européias pelo cardeal dominicano Tomás Caetano (1469-1534), um dos

maiores teólogos da Igreja Católica. Nos Estatutos de 1559 já vemos a presença das Partes de

São Tomás, mas ainda o Livro das Sentenças ainda está presente. Portanto o curso era bem

completo, com muita coisa a ser estudada pelos jovens teólogos.

O Colégio de Artes de Coimbra merece uma especial atenção. O curso de Artes era

necessário para que o estudante pudesse ingressar em uma faz quatro faculdades maiores.

Nele se fava uma educação filosófica, aristotélica como facilmente se observa, e, também, se

ensinava ao menos de forma introdutória todas as sete Artes Liberais, sem exceção de

nenhum, mesmo a Astronomia está presente.

Em verdade o curso de Artes de Coimbra era excelente, como comenta Serafim Leite.

O comissário da Companhia de Jesus, Pe. Jerônimo Nadal, após visitar Coimbra voltou a

Roma e “[...] procurou melhorar os estudos do Colégio Romano [colégio dos jesuítas e futura

Universidade Gregoriana] pelo padrão conimbricense [...]” (LEITE, 1963, p. XVII).

Não ignoramos o fato de que, após 1555 o ensino no Colégio se tornou um ensino jesuítico,

pois eles que administravam este estabelecimento.

90 Algumas obras de Eramos foram de fato parar no Index da Igreja Católica.

Page 97: Formação das Universidades Medievais - Educação Medieval

96

Na educação medieval o ensino das Artes Liberais era muito antigo e tradicional,

existente mesmo antes das Universidades, como expomos em nosso primeiro capítulo. Mas

logo este ensino se estruturou e foi incorporado como curso universitário, mais focado no

ensino da filosofia de Aristóteles. Era um curso muito importante. Como nosso estudo pode

demonstrar, em Coimbra este curso era introdutório, mas não devemos menosprezá-lo, tendo-

o como algo vulgar e sem importância ou como uma etapa burocrática a ser cumprida para o

ingresso numa das faculdades maiores. Uma boa formação filosófica é essencial na formação

de um teólogo ou de outros profissionais das ciências humanas. A filosofia desperta as

inteligências para assuntos mais elevados e conduz o homem por um caminho reto no pensar,

livrando-o de muitos erros de raciocínio à que os homens estão sujeitos.

Não sabemos o porquê dos cursos de Artes terem desaparecidos ao longo da história,

ou mesmo a formação em Humanidades, os estudos clássicos. Mas não podemos deixar de

lamentar esta ausência, que sem dúvida fez regredir o nível intelectual, cultural e moral dos

estudantes de ciências humanas e em determinadas áreas das ciências naturais. Mesmo o

estudo obrigatório, para o 1o e 2o graus, do Latim e da Filosofia desapareceu no Brasil em

1971. Isto acabou por privar os estudantes de uma monumental quantidade de obras e fontes

disponíveis nesta língua, verdadeiros patrimônios da cultura ocidental. Com certeza não

pertence ao escopo deste trabalho tratar, mesmo de maneira remota, sobre este

desaparecimento do ensino das Artes Liberais, mas deixamos este indicativo para um possível

estudo futuro.

Desta forma pretendemos concluir, com a esperança de ter feito um bom trabalho.

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Referências

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ANEXOS

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Anexo A

Lista de Reis portugueses, de Dom Dinis à Dom Sebastião.

Dinastia de Borgonha.

1- D. Dinis I. Governou de 16 de Fevereiro de 1279 a 7 de Janeiro de 1325. Cognominado de:

O Lavrador, O Rei-Trovador, O Rei-Poeta, O Rei-Agricultor.

2- D. Afonso IV. Governou de 7 de Janeiro de 1325 a 28 de Maio de 1357. Cognominado de:

O Bravo.

3- D. Pedro I. Governou de 28 de Maio de 1357 a 18 de Janeiro de 1367. Cognominado de:

O Justiceiro, O Cruel, O Cru, O Vingativo, O Tartamudo, O Até-ao-Fim-do-Mundo-

Apaixonado.

4- D. Fernando I. Governou de 18 de Janeiro de 1367 a 22 de Outubro de 1383.

Cognominado de: O Formoso, O Belo, O Inconstante, O Inconsciente.

5- D. Beatriz I. Governou de 22 de Outubro de 1383 a 6 de Abril de 1385.

Dinastia de Avis.

6- D. João I. Governou de 6 de Abril de 1385 a 14 de Agosto de 1433. Cognominado de:

O da Boa Memória.

7- D. Duarte I. Governou de 14 de Agosto de 1433 a 9 de Setembro de 1438. Cognominado

de: O Eloqüente, O Rei-Filósofo.

8- D. Afonso V. Governou de 9 de Setembro de 1438 à 11 de Novembro de 1477.

Cognominado de: O Africano. Abdicou em favor do filho.

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9- D. João II. Governou de 11 de Novembro de 1477 a 15 de Novembro de 1477.

Cognominado de: O Príncipe Perfeito, O Tirano. Abdicou em favor de seu pai.

10- D. Afonso V. Governou de 15 de Novembro de 1477 a 28 de Agosto de 1481.

Cognominado de: O Africano. Reassume a realeza.

11- D. João II. Governou de 28 de Agosto de 1481 a 25 de Outubro de 1495. Cognominado

de: O Príncipe Perfeito, O Tirano.

Dinastia de Avis-Beja.

12- D. Manuel I. Governou de 25 de Outubro de 1495 a 13 de Dezembro de 1521.

Cognominado de: O Venturoso, O Bem-Aventurado, O Afortunado.

13- D. João III. Governou de 13 de Dezembro de 1521 a 11 de Junho de 1557. Cognominado

de: O Piedoso, O Pio.

14- D. Sebastião I. Governou de 11 de Junho de 1557 a 27 de Agosto de 1578. Cognominado

de: O Desejado, O Encoberto. O Adormecido. Contando com o fato de que em 1557 D.

Sebastião tinha apenas 3 anos, ficando o reino sob a regência de D. Catarina e do Cardeal

Infante D. Henrique até 1568.

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Anexo B

Mapa de Portugal.

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Anexo C

Nações na Universidade de Paris durante a Idade Média.