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Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria Geral de Justiça

Revista

do Ministério Público

do Estado de Goiás

Goiânia2011

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apresentação................................................................

Homenagem póstuma a IsaaC BenCHImoL.............

DIreIto CrImInaL

a atuação do ministério público no combate à corrupção:oportunidade de resgate da cidadania.............................angeLa aCosta gIoVanInI De moura

o princípio da insignificância na tutela penal ambiental:uma análise de jurisprudências......................................Bruna nogueIra aLmeIDa ratKe / raBaH BeLaIDI

universalidade dos direitos humanos e a tortura...............LuIZ antonIo Da sILVa JunIor

a investigação do terrorismo internacional e o uso da tortura...FLÁVIo CarDoso pereIra

DIreIto CoLetIVo

Destino dos instrumentos de crimes contra o ambiente...peDro aBI-eçaB

modelo constitucional de processo coletivo: um estudo críticoa partir da teoria das ações coletivas como temáticas...........FaBrÍCIo VeIga Costa

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SUMÁRIO

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DIreIto pÚBLICo

o exercício do cargo público numa sociedade de riscoe cometimento de improbidade administrativa ..............umBerto maCHaDo De oLIVeIra

as normas concretizadoras da transparência adminis-trativa e a internet............................................................reuDer CaVaLCante motta

a teoria dos princípios e o suporte fático das normas de di-reitos fundamentais...................................................................Bruno moraes FarIa monteIro BeLem

DIreIto estrangeIrothe fundamental right to aesthetic harmony: state’s obliga-tion and right of the citizen...........................................................CarLos VInÍCIus aLVes rIBeIro

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Caros leitores,tenho a grata satisfação de apresentar a 22ª edição da

revista do ministério público do estado de goiás. neste volumesão abordados temas das áreas do Direito penal, público, Cole-tivo e estrangeiro, todos de imensa relevância para o mundo aca-dêmico e, particulamente, para a atuação profissional dospromotores e procuradores de Justiça. Vale lembrar a imensa di-ficuldade experimentada pelo Conselho editorial para a seleçãodos artigos, uma vez que a esmp-go recebeu para apreciaçãoum número recorde de trabalhos, todos de grande qualidade téc-nica e solidez científica.

esta revista cumpre uma função essencial que é de va-lorizar a apresentação de pontos de vista sobre os mais diversosaspectos do conhecimento jurídico.

ao lado disso ela se manifesta com justa e reconhecidahomenagem a um dos mais queridos, competentes e dedicadospromotores que já perteceram à Instituição: Dr. Isaac Benchimol,que nos deixou prematuramente em janeiro de 2009, período emque realizava valoroso trabalho à frente da promotoria da saúdeda capital. Dr. Isaac foi um dos grandes promotores que integrouo ministério público do estado de goiás e seu exemplo deve ser-vir de inspiração a todos os colegas.

por fim, desejo que os leitores possam desfrutar do co-nhecimento oferecido pelos artigos incorporados ora publicados.

goiânia, dezembro de 2011.

Spiridon N. Anyfantis

promotor de Justiça

Diretor da esmp-go

APRESENTAÇÃO

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DONS

Senhor!

Dai-me o dom:

Da SABEDORIA, para que eu possa entender e saber divulgar

e dizer teus ensinamentos;

Da COMPREENSÃO, para que eu possa sentir corretamente

os sentimentos dos espíritos, até mesmo, daqueles mais endurecidos

Da HUMILDADE, para que eu possa aceitar e

transpor as vicissitudes, com dignidade;

Do PERDÃO, para que eu possa cativar o amigo

e emitir fluidos salutares ao inimigo;

Da BONDADE, para que eu possa servir sempre sem olhar a quem;

Da CURA, para que eu possa aliviar as dores

do espírito e corpo do meu irmão;

Da ALEGRIA, para que eu possa espargir a tua luz afim

de minorar o sofrimento do meu semelhante.

Senhor!

Que, a cada instante da minha existência, me torne digno

de haver sido criado a tua imagem e semelhança.

Isaac Benchimol

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É com grande felicidade e orgulho que esta família re-cebe mais uma homenagem prestada a esse homem de fé, pai,esposo, engraxate, cobrador de ônibus, contador, jogador de fu-tebol, professor, político, advogado, promotor de justiça, poeta eamigo Isaac Benchimol Ferreira.

ao recebermos distinta lembrança desta Instituição àmemória de Isaac Benchimol, temos a certeza de que sua pas-sagem terrena não foi em vão, como ele mesmo escreveu emsua poesia mestre: “[...] será árdua a tarefa, não em vão/ no fimacredito, serei digno de ti/me receberás alegre e feliz/pela cons-tatação que o teu ensinar/em mim pode se realizar”.

seu grande sonho, sempre dizia, era ser útil, contribuirde forma positiva para a mudança das coisas, e seu intuito foi al-cançado tanto na vida pessoal como na profissional.

um homem de origem humilde que nunca se deixou aba-ter. as dificuldades foram muitas, mas a perseverança de Isaacas tornou pequenas. Contrariou as estatísticas de quem nasceno chão árido do sertão nordestino. Herdou de seus pais rai-mundo e miriam a fé e a honestidade e assim seguiu com muitoestudo e muito trabalho até tornar-se promotor de Justiça do es-tado de goiás, onde realizou, frente à promotoria da saúde, tra-balho de dimensão nacional. Certa vez afirmou: “temos que ser

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HomeNAgem PóStumA A ISAAC BeNCHImoL FeRReIRA

Promotor de Justiça em Goiás(1947-2009)

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tão renitentes quanto são os problemas”.o bom trabalho realizado por Isaac Benchimol sempre

foi acompanhado de perto por nós. Demonstrava responsabili-dade para com suas atribuições e, principalmente, respeito aosque sempre o procuravam na certeza de seu pronto atendimentofrente à 82ª promotoria de saúde. era defensor do ministério pú-blico, representando-o com muito trabalho e orgulho.

não são poucos os agradecimentos que recebemos emseu nome. pessoas conhecidas e desconhecidas relatam agrande “ajuda” que lhes foi prestada. Isaac Benchimol falava quenão ajudava quem o procurava na promotoria, e sim que eradever seu trabalhar em prol de quem necessitasse.

a saudade é imensurável, mas a certeza da eternidadee do reencontro futuro acalenta nossos corações. em nós nãohá tristeza da “perda”, celebramos a oportunidade que Deus nosdeu de fazermos parte da mesma família. temos a certeza queIsaac continua em outra dimensão a trabalhar para a sua evolu-ção. em nossos corações estão guardados os momentos maisíntimos e preciosos, bem como a lembrança do seu sorriso, dasua força, do seu carinho, do seu amor, dos seus ensinamentose da sua fé inabalável.

Fica aqui registrado, ao ministério público do estado degoiás, os nossos agradecimentos sinceros por esta homenagemao pequeno homem na estatura, mas grande no coração, na sa-bedoria, no trabalho e em humanidade.

maria aparecida (esposa), marcos, Livia, samara, Lilian e tarcisio (filhos),

simone (nora) e samuel (neto).

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Angela Acosta Giovanini de Moura*

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO COMBATE À CORRUPÇÃO:

OPORTUNIDADE DE RESGATE DA CIDADANIA

THE ROLE OF THE PROSECUTOR IN FIGHTING CORRUPTION:

OPPORTUNITY RESCUE OF CITIZENSHIP

EL PAPEL DE LA FISCALÍA EN LA LUCHA CONTRA LA CORRUPCIÓN:

OPORTUNIDAD DE RESCATE DE LA CIUDADANÍA

Resumo:

O presente artigo faz uma reflexão sobre o enfrentamento da

corrupção e da improbidade administrativa pelo Ministério

Público. Embora a vulnerabilidade à corrupção não seja carac-

terística única do aparelhamento estatal, atingindo também a es-

fera privada, o enfoque teórico do trabalho situou-se apenas no

âmbito da organização estatal. Utilizando o método dialético,

foram abordados os impactos negativos que a corrupção im-

prime à sociedade. Enfatizou-se o papel do Ministério Público,

enquanto agente de transformação social, na prevenção das

práticas corruptas, mediante articulação de políticas públicas que

promovam o fortalecimento dos valores éticos da sociedade.

Abstract:

This article is a reflection about the tactics to combat corruption and

malfeasance in office by prosecutors and other legitimate actors, with

the effective participation of civil society in the process. Although vul-

nerability to corruption is not unique feature of the state apparatus,

* Especialista em Ciências Penais pela Uniderp e mestranda em Direito, Relações In-ternacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO. Promotora de justiça do Estado de Goiás.

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reaching also the private sector, the theoretical focus of the work

amounted to just under the state organization. Using the dialectical

method, we analyzed the negative impact that corruption gives to so-

ciety, destroying the dignity of individuals, undermining democracy and

deteriorating public services provided by the State. They emphasized

the role of the prosecutor, as an agent of social transformation for the

prevention of corrupt practices, through the articulation of public poli-

cies that promote the strengthening of ethical values in society.

Resumen:

Este artículo es una reflexión acerca de las tácticas para combatir

la corrupción y la conducta inapropiada de los fiscales y de otros

actores legítimos, con la participación efectiva de la sociedad civil

en el proceso. A pesar de la vulnerabilidad a la corrupción no ser

característica exclusiva del aparato del Estado, alcanzando tam-

bién el ámbito privado, el enfoque teórico de la obra se centrará

en la organización estatal. Utilizando el método dialéctico, se re-

firió a los impactos negativos que la corrupción produce a la so-

ciedad, destruyendo la dignidad de las personas, corroyendo la

democracia y causando daño a los servicios públicos prestados

por el Estado. Hizo hincapié en el papel de los fiscales, como

agentes de transformación social para la prevención de prácticas

corruptas, a través de la articulación de políticas públicas que pro-

muevan el fortalecimiento de los valores éticos en la sociedad.

Palavras-chaves:

Improbidade, sociedade, combate, prevenção.

Keywords:

Malfeasance, combat, society, prevention.

Palabras clave:

Impropiedad, combate, sociedad, prevención.

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INTRODUÇÃO

São diversas as teorias construídas, no campo da ciên-cia política, com o propósito de explicar e compreender a corrup-ção, fenômeno mundial observado em diversos países,independentemente do regime de governo adotado. Relacionadacom valores sociais negativos, incorporados pelo cidadão, a cor-rupção é inerente a cada sociedade e, por isso, reclama, no Bra-sil, a conscientização da cidadania, como elemento essencial aoêxito de quaisquer das frentes de combate eleitas para o enfren-tamento do problema.

As práticas corruptas e ímprobas apresentam-se sob asmais variadas formas e se caracterizam pelo alto grau de opera-tividade, em constante aprimoramento, desafiando a ação dosórgãos incumbidos da defesa do patrimônio público.

Integrando a agenda política do Estado brasileiro, o com-bate à corrupção tem buscado, a partir da pesquisa científica, adelimitação da dimensão danosa que a prática imprime ao regimedemocrático e o conhecimento dos fenômenos institucionais aosquais está associada. Destarte, mister se faz o reconhecimentode que instituições governamentais fortalecidas, no sistema po-lítico e econômico do país, funcionariam como escudo resistenteà instalação de práticas corruptas.

A corrupção, ao diminuir a resistência ética das institui-ções e consumir os valores da democracia, ameaça a estabili-dade e a segurança da sociedade, comprometendo odesenvolvimento do Estado de Direito, visto que as práticas cor-ruptas são meios de fortalecimento do crime organizado.

Nesse prisma, importa destacar que

[a]s organizações criminosas sabem onde a presença doEstado deixa brechas e ali florescerá. Dessa deficiência esta-tal, de um estado fraco que antes não provia as necessidadessociais, surgirá o crime organizado que, como uma bola de

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neve, o tornará mais debilitado ainda e com menor possibili-dade de suprir a carência da população, que será cooptadapelas organizações criminosas, seja pela sua participação oupela simples omissão com o silêncio. (GOMES, 2009)

A organização não governamental “Transparência Inter-nacional”, engajada na luta contra a corrupção, tem produzidorelatórios anuais com o fito de analisar os índices de percepçãode corrupção dos países do mundo, elencando-os de acordo como grau de corrupção entre autoridades públicas e políticas. Osúltimos relatórios1 apontam a posição preocupante do Brasil noranking global de corrupção, denunciando o impacto negativo im-posto pelo fenômeno à sociedade, uma vez que a corrupção,além de ser a causa da deficiência dos serviços públicos, osquais devem ser prestados de forma eficaz aos cidadãos, cons-titui barreira para a superação dessas deficiências.

Importa esclarecer que a ONG Transparência Internacionaldedica-se ao combate à corrupção e calcula anualmente, desde 1995,o Índice de Percepção da Corrupção (CPI, em inglês) para mais decem países. Nesse índice, cada país recebe uma nota de zero (paísmuito corrupto) a dez (país pouco corrupto). Tratam-se de dados ba-seados em pesquisas de opinião de um conjunto de empresários einstituições acerca de suas percepções sobre práticas corruptas.

A repressão do problema demanda a adoção de políticaspúblicas sociais sérias, o resgate de valores éticos e morais, o com-bate à pobreza, por meio de geração de empregos, saneamentobásico e moradia (GOMES, 2009).

A democracia participativa, como corolário do Estado De-mocrático de Direito, deve ser urgentemente estimulada, incen-tivando-se a sociedade a acompanhar ativamente o usoadequado dos recursos públicos, por meio dos portais de trans-parência, em sítios disponíveis na Internet.

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1 Disponível em: <http://www.transparency.org/publications/annual_report>.Acesso em: 30 nov. 2011.

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Nesse contexto, o Ministério Público, em razão das fun-ções constitucionais que exerce, assume postura de destaque erelevância para o enfrentamento da corrupção e da improbidadeadministrativa no aparelhamento estatal, não apenas por meioexclusivo dos mecanismos de investigação e ação judicial e ex-trajudicial à sua disposição, mas, sobretudo, como articulador depolíticas públicas que promovam a melhoria na educação e nobem-estar da coletividade, além da iniciativa na implementaçãode projetos, na órbita institucional, voltados para a conscientiza-ção da sociedade à prevenção das práticas corruptas.

DESENVOLVIMENTO

Corrupção e improbidade: aspectos históricos e conceituais

A história da humanidade é permeada por práticas corrup-tas. A imagem bíblica de Adão e Eva, estampada no primeiro livro doPentateuco Mosaico, é o primeiro registro arquétipo de corrupção.

Os pensadores gregos enfrentavam o tema com energia,porquanto temiam contaminar a pureza de suas ideias. A ideali-zação socrática de um projeto político em harmonia com a Jus-tiça, registrado por Platão em sua obra A República, procuravaencontrar um método eficaz para impedir que a corrupção e a in-competência tomassem conta do poder público. No século IVantes de Cristo, Aristóteles, em seus escritos sobre a geração ea corrupção, compreendia esta última como um fato de dissolu-ção e de destruição da convivência social.

Na sociedade Romana, a corrupção tornou-se endêmicaante as imunidades legais previstas a certos estamentos da so-ciedade, levando à divisão do império no ano de 395, conformeacentua Filgueiras (2008a, p. 353-362).

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A trajetória da organização da sociedade humana, se-gundo registros literários, é pontuada pela corrupção, eviden-ciando que o fenômeno não é contemporâneo, muito embora, nopassado, lhe fosse dada uma conotação diferenciada dos con-tornos atuais conferidos pela teoria política moderna.

No Brasil, a corrupção recua ao período da colonizaçãoportuguesa, época em que as práticas mercantilistas da coloni-zação voltadas ao extrativismo despertavam a cobiça, favore-cendo o suborno. Dean (1996) assinala que, em 1605, a CoroaPortuguesa constatou que funcionários régios, atuando no Brasilcomo guardas florestais, na fiscalização do corte ilegal e contra-bando da madeira, facilitavam o comércio ilegal de pau-brasil ede outras riquezas brasileiras, como ouro e diamante.

A construção do Estado brasileiro foi marcada por atosde corrupção, corrupção que prossegue nos dias atuais sem en-contrar qualquer resistência, mesmo diante do princípio repu-blicano da moralidade, que deve nortear a administração pública.

Atualmente, o país experimenta casos de corrupção quepenetram o sistema democrático e se entrelaçam com o crimeorganizado, visto que a globalização, ao permitir diversas intera-ções entre os atores globais, resultou na fragilidade da fronteiraestatal, tornando um desafio para um país monitorar todos seusfluxos internacionais (SANDRONI, s/d).

A corrupção vem se disseminando no Brasil e, insta-lando-se sorrateiramente, busca enfraquecer as estruturas esta-tais, ameaçando a democracia. A permanência, como uma desuas características, no aparelho estatal, impõe desafios àquelesque procuram combatê-la, uma vez que o mal, enraizado profun-damente, se apresenta impossível de ser extirpado. Nesse sen-tido, o combate à corrupção deve, igualmente, pautar-se pelapermanência, de forma a dificultar sua prática, reprimindo-a,constante e paulatinamente.

De origem latina, o termo está associado a ideias de

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decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, sedu-ção e suborno. Geralmente, a corrupção se vincula ao exercíciodo poder, por meio do qual a obtenção de vantagens, para oatendimento de satisfações pessoais, se realiza de forma imorale ilegal, justamente por quem deveria se manter no zelo e norespeito pela coisa pública.

Segundo Nye (1967, p. 417-427), a corrupção é um des-vio dos deveres associados a um cargo público para o benefícioprivado. Contudo, esse conceito pode ser estendido para englo-bar o benefício a partidos políticos, familiares e classes.

Sabella (s/d) compreende o termo corrupção como qual-quer conduta humana impregnada de desvalor ético ou violadorados princípios que norteiam a atividade administrativa.

Para Filgueiras (2008b, p. 359), a teoria política da cor-rupção está relacionada a fins normativos, tornando-se, atual-mente, um desvio das regras legais, embora em épocas remotasse vinculasse a questões de valores morais e virtudes cívicas.

A disseminação da corrupção no Estado brasileiro éapontada como consequência da dissociação que se verificaentre a ética e a política, por parte de muitos daqueles que ocu-pam o poder estatal, em desprezo às questões éticas para a sa-tisfação do interesse privado.

Nesse aspecto, Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p.292) conceituam a corrupção sob diferentes prismas:

Assim se designa o fenômeno pelo qual um funcionário públicoé levado a agir de modo diverso dos padrões normativos dosistema, favorecendo interesses particulares em troca de re-compensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal dequem desempenha um papel na estrutura estadual. Podemosdistinguir três tipos de Corrupção: a prática da peita ou uso darecompensa escondida para mudar a seu favor o sentir de umfuncionário público; o nepotismo, ou concessão de empregosou contratos públicos baseados não no mérito, mas nas rela-ções de parentela; o peculato por desvio ou apropriação e des-tinação de fundos públicos ao uso privado.

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A corrupção, em qualquer de suas vertentes, guarda es-treita relação com a improbidade. Contudo, o conceito de impro-bidade, conferido pela Lei de Improbidade n. 8.429/92, mormentenos artigos 9º, 10 e 11, situa a corrupção como uma das formasde materialização da improbidade administrativa.

A corrupção é conduta tipificada no Código Penal, enquantoos atos de improbidade possuem natureza civil. Para a Lei n.8.429/92, constituem atos de improbidade administrativa as condu-tas perpetradas pelos agentes públicos que causem lesão ao erárioe que atentem contra os princípios da administração pública.

A improbidade administrativa consiste na violação aosprincípios da administração pública, como a moralidade, a boa-fé, a lealdade, entre outros. O artigo 37, §4º, da Constituição Fe-deral de 1988, estabeleceu rigorosas sanções para a violaçãodos princípios que norteiam a administração pública, como a sus-pensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indis-ponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário.

Nesse diapasão, afirma Caetano (2010, p. 398) que

a probidade administrativa consiste no dever de o funcionárioservir à administração com honestidade, procedendo no exer-cício das funções, sem aproveitar os poderes ou facilidadesdelas decorrente em proveito próprio pessoal ou de outrem aquem queira favorecer.

Antes da entrada em vigor da Lei n. 8.429/92, as práticascorruptas que causassem danos ao erário ou que importassemem enriquecimento ilícito do servidor público eram punidas comsequestro e perdimento de bens. Com a edição da Lei de Impro-bidade, houve uma ampliação das sanções aplicáveis à espécie.

As disposições da Lei de Improbidade Administrativa nãose restringem ao agente público, sendo também aplicáveis a ter-ceiros que, mesmo não se revestindo dessa qualidade, induzemou concorrem à prática de conduta ímproba ou dela se benefi-ciam sob qualquer forma, direta ou indireta.

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A primeira espécie de improbidade administrativa é tratadapelo artigo 9º da referida lei. Configura-se com o enriquecimentoilícito auferido por meio de vantagem patrimonial indevida, praticadapor agentes públicos ou terceiros que concorreram para o ato.

Procurando garantir proteção ao patrimônio público, o le-gislador elencou, no artigo 10 da citada legislação, as ações ouomissões, culposas ou dolosas, dos agentes que causem lesãoao erário, como o desvio, a apropriação, o malbaratamento ou adilapidação dos bens públicos.

A terceira forma de improbidade administrativa, nos ter-mos do art. 11, decorre de atos ou omissões que atentem contraos princípios da administração, discriminados igualmente nocaput do art. 37 da Constituição Federal de 1988, consubstan-ciados nos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade elealdade às instituições.

A responsabilidade decorrente da prática de atos de im-probidade administrativa pode alcançar o âmbito penal, civil e ad-ministrativo. As sanções são cumulativas em razão do alto graude censura conferido pela legislação à conduta do agente ím-probo ou do terceiro que contribui para o crime.

O Ministério Público e os mecanismos de combate à corrupção

Os impactos negativos que as práticas corruptas impri-mem à democracia e à cidadania exigem prioridade absoluta naconstrução de uma agenda com medidas de combate ao pro-blema, porquanto o custo da corrupção, representado pelo es-coamento de recursos que deixam de ser aplicados na saúde,na educação, na segurança, na pesquisa científica, na tecnolo-gia, etc., para alimentar organizações criminosas compromete osserviços públicos prestados aos cidadãos.

Ao alimentar o crime, o país concorre para a queda doíndice de desenvolvimento humano, necessário para situá-lo no

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patamar dos países desenvolvidos, bem como perde competiti-vidade no mercado internacional.

Os custos da corrupção refletem na execução eficiente depolíticas públicas, prejudicando a qualidade de vida dos cidadãos,sobretudo nas áreas de educação e saúde, afetando o sentido deigualdade e de justiça social, além de disseminar um sentimentode desconfiança de toda a sociedade em relação às instituições.

O desvio de verbas públicas para o atendimento de inte-resses ilícitos gera externalidades negativas, traduzidas em custossociais que serão debitados ao cidadão, minando-lhe a dignidade.

Estudos (RAMALHO, 2006) realizados têm identificadoum conjunto de causas que geram ou podem gerar a corrupção(MAURO, 1997), apontando o elevado poder discricionário, por-que criam oportunidades para práticas corruptas; o baixo nível desalários, por estimular a busca de fontes alternativas para com-pletar a renda, e isso pode ocorrer tanto com os funcionários dosetor público quanto do setor privado; o sistema político, ante atendência manifestada pela competição política; e a aceitação dadesigualdade social e de direitos, por promover a impunidadesobre práticas corruptas.

Podendo ser apontada como uma das causas decisivas da po-breza do país, a corrupção “corrói a dignidade do cidadão, contamina osindivíduos, deteriora o convívio social, arruína os serviços públicos e com-promete a vida das gerações atuais e futuras” (TREVISAN et al., 2003).

As organizações criminosas se sustentam na corrupção.As empresas do crime crescem e se fortalecem na medida emque corroem a democracia. Disseminando práticas corruptas edelas se alimentando, as organizações criminosas enfraquecemas instituições públicas, aumentando, dessa forma, as condiçõespara a cooptação de novos integrantes às suas empreitadas.

As iniciativas para o enfrentamento da corrupção devem prio-rizar o fortalecimento dos mecanismos de prevenção, como tambémdiminuir a impunidade, por meio de uma justiça mais rápida e eficiente,

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de modo a induzir a mudança do comportamento oportunista. Nesse contexto, destaca-se a função conferida ao Minis-

tério Público pela ordem constitucional, instalada a partir de 1988,que, conferindo-lhe soberania estatal, outorgou-lhe papel deter-minante no controle e na fiscalização da administração pública edo regime democrático.

O Ministério Público, portanto, tem a defesa do interessepúblico como finalidade outorgada pela Constituição Federal de1988, nos artigos 127 e 129:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essen-cial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesada ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses so-ciais e individuais indisponíveis. § 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a uni-dade, a indivisibilidade e a independência funcional.[...]Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:[...]III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a pro-teção do patrimônio público e social, do meio ambiente e deoutros interesses difusos e coletivos; [...]

O novo modelo de Estado Democrático de Direito am-pliou as atribuições conferidas ao Ministério Público para outor-gar-lhe a função de garantidor dos direitos fundamentaisconquistados historicamente e, sobretudo, do princípio da mora-lidade administrativa. Possui, assim, um dever ético-político deagir em nome da democracia, em busca da consolidação dos di-reitos sociais, difusos e coletivos.

Nesse aspecto, imperiosa ao Ministério Público a adoçãode posturas proativas no cumprimento de suas funções institucio-nais, para além de uma atuação meramente demandista, comomeio de viabilizar o compromisso de transformar a realidade sociale salvaguardar os direitos fundamentais (VITORELLI, 2011, p. 47).

Diante desse panorama, iniciativas em prol do estabele-cimento de parcerias com entidades de ensino e demais entidadesformadas pela sociedade civil, objetivando a implementação de

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projetos permanentes que visem a ampla divulgação das práticascorruptas e dos atos de improbidade administrativa, com viés escla-recedor e educativo, de forma a cooptar o cidadão para o engaja-mento na luta contra essa modalidade criminosa, poderiam ensejaroportunidade valiosa para agregar-lhe valores positivos e diminuirpossíveis campos de atuação para as organizações criminosas.

Por outro lado, a par da atuação ativista em âmbito pre-ventivo, ainda conta o Ministério Público com eficazes instrumen-tos operacionais, como o inquérito civil e a ação civil pública, paradefesa e garantia do patrimônio público e social, do meio am-biente e de outros interesses difusos e coletivos, como a morali-dade administrativa.

O inquérito civil é ferramenta eficiente à função instru-mental do Ministério Público na investigação e no combate aosatos de corrupção, tendo como finalidade a coleta de elementosseguros da ocorrência do ato de improbidade administrativa,assim como da respectiva autoria.

A Lei da Ação Civil Pública, n. 7.347, de 24 de julho de1985, anterior ao texto constitucional, já tratava da responsabili-zação por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, abens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico epaisagístico, sendo recepcionada pela Constituição da Repú-blica, consoante disposto no inciso III, do artigo 129.

Constata-se, pois, a importância da ação civil públicacomo instrumento constitucional repressivo para a defesa judicialdos direitos fundamentais. Com efeito, a Lei Federal n. 8.078, de11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa doConsumidor, incluiu o inciso IV no artigo 1° da Lei da Ação CivilPública, para fazer constar as ações de responsabilidade pordanos morais e patrimoniais causados a qualquer outro interessedifuso e coletivo.

Indiscutível a legitimidade do Ministério Público para pro-mover as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, objetivando

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o cumprimento das propostas sociais, difusas e coletivas previs-tas na Constituição e, principalmente, no combate efetivo à cor-rupção institucionalizada, devendo estabelecer estratégias deatuação preventivas e repressivas para o êxito de sua missão.

O estabelecimento de parcerias nesse campo despontaimprescindível para o êxito da missão ministerial. A contribuiçãode aliados é valiosa, podendo ser prestada pelos Tribunais deContas, Comissões Parlamentares de Inquérito, ControladoriaGeral da União, Receita Federal, Banco Central, Polícia Federal,entre outros órgãos corresponsáveis pelo combate à corrupção.

Merece destaque a iniciativa da Secretaria Nacional deJustiça do Ministério da Justiça que instituiu, em 2003, a Estra-tégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem deDinheiro (ENCCLA), visando a articulação e a atuação conjuntaentre órgãos públicos que trabalham com a fiscalização, o controlee a inteligência como forma de aperfeiçoar a prevenção e o combateà corrupção e à lavagem de dinheiro.

A ENCCLA consiste na articulação de diversos órgãosdos três poderes da República, Ministérios Públicos e da socie-dade civil que atuam, direta ou indiretamente, na prevenção e nocombate à corrupção e à lavagem de dinheiro, com o objetivo deidentificar e propor ajustes aos pontos falhos do sistema anti-lavagem e anticorrupção.

Atualmente, cerca de sessenta órgãos e entidadesfazem parte da ENCCLA, tais como Ministérios Públicos, Poli-ciais, Judiciário, órgãos de controle e supervisão, como a Con-troladoria Geral da União, Tribunal de Contas da União, e outros,Banco Central, Agência Brasileira de Inteligência, AdvocaciaGeral da União, Federação Brasileira de Bancos, etc.

Vale ressaltar que a promoção da ação civil pública nãoé exclusividade ministerial, podendo ser manejada pela União,Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações,sociedades de economia mista ou por associações, desde que

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presentes os requisitos legais. No entanto, é o Ministério Público,segundo estatísticas, o principal utilizador desse instrumentoconstitucional, seja na defesa do patrimônio público e do princípioda moralidade administrativa, seja na defesa de outros interessesdifusos e coletivos

Como órgão garantidor do princípio constitucional damoralidade administrativa, o Ministério Público deve operacio-nalizar o combate à improbidade, investigando efetivamente cor-ruptos e corruptores, com vistas à sua punição, ante aimpotência da sociedade brasileira para a defesa da coisa pú-blica contra os reiterados atos de corrupção, exigindo-se a in-tervenção ministerial na dinâmica entre os Poderes constituídos,para reduzir as desigualdades sociais e ampliar a consciência eo exercício da cidadania.

A propósito, é necessário desconstruir a postura históricade aceitação da impunidade dos delitos e dos atos de corrupção,como estratégia de combate à reprodução contínua de novaspráticas ímprobas. Indubitavelmente, a impunidade estimula acorrupção, acabando por torná-la tolerável no meio social.

A valorização exacerbada do patrimônio, bens e riquezasenseja o tráfico de influência, a corrupção, a imoralidade admi-nistrativa, em prejuízo do agir honesto e correto. O erário é tido,muitas vezes, como extensão do patrimônio particular do admi-nistrador ou do agente político, e as eventuais punições previstasna legislação nem sempre se efetivam, em razão da manipulaçãoe dos recursos processuais sempre disponíveis aos poderosos.

A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção,ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 4.410/2002, ressaltaa importância da responsabilidade dos Estados em relação à de-finitiva erradicação da impunidade, como medida imprescindívele eficiente no combate à corrupção.

Não se afigura surpreendente o livre trânsito do crime or-ganizado na estrutura estatal, interferindo nos Poderes Judiciário,

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Legislativo e Executivo, a ponto de impor resistência às apura-ções dos grandes esquemas de corrupção.

Imperioso se torna, diante desse quadro, dar uma novadimensão ao combate à corrupção e ao crime organizado, pri-mando por fortalecer a atuação integrada e conjunta dos atoresjurídicos, dentre advogados, membros do Ministério Público e doJudiciário, policiais civis e federais, utilizando-se da mesma di-nâmica adotada pela cooperação internacional. Importante,ainda, o investimento no aprimoramento profissional e em novastécnicas de investigação dos mecanismos de corrupção, demodo a efetivar o princípio constitucional da moralidade adminis-trativa e dos direitos fundamentais.

Por outro lado, é expressivo o entendimento de que as me-didas repressivas, pelo efeito intimidatório que encerram, não seafiguram, por si só, instrumentos eficazes no combate à corrupção,mormente para evitar a reiteração de novos atos ímprobos.

Assim, novos métodos de enfrentamento do problema, comfoco numa atuação de ordem preventiva, agregando-se o poder pú-blico e a sociedade civil organizada, têm conquistado adeptos.

A eficácia das ações preventivas repousam no fato de serevelarem antes da prática corrupta, permitindo-se trabalhar osvalores éticos e morais do cidadão quando sua personalidadeainda se encontra em processo de desenvolvimento.

Nesse sentido, a Convenção Interamericana contra aCorrupção salienta a importância de ser estimulada a consciênciada população local em relação à existência e à gravidade desseproblema, bem como da necessidade de se reforçar a participa-ção da sociedade civil na prevenção e na luta contra a corrupção.

Ainda, perpetuando-se a corrupção no seio da sociedadepor meio de práticas cotidianas desonestas, torna-se fundamen-tal o fortalecimento de padrões éticos que possam refletir noexercício do poder estatal.

A atuação preventiva do Ministério Público no combate à

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corrupção, como articulador de políticas públicas, sensibilizandoos poderes constituídos para a adoção de medidas capazes deenfrentar os problemas locais, pode se apresentar vantajosa naresolução dos conflitos sociais, dificultando práticas corruptas.

O controle preventivo da administração pública, efetivadopelo órgão ministerial por meio de recomendações e de suges-tões, objetivando a adoção de soluções consensuais para as de-mandas sociais, decorrente do seu dever constitucional de zelarpelo patrimônio e pela probidade pública, antecipa os objetivosperseguidos na esfera judicial, muitas vezes com mais êxito.

O combate à corrupção deve ser conduzido como umprojeto institucional do órgão ministerial, considerando os diver-sos mecanismos de combate, priorizando-se as ações preventi-vas, até porque, uma vez concretizada a corrupção, oressarcimento integral dos danos causados ao erário pode restardiminuído. Por se antecipar à consumação da prática corrupta,as estratégias de prevenção podem contribuir com resultadosmais eficientes e positivos à sociedade brasileira.

Como agente de transformação social, a atuação pre-ventiva do órgão ministerial no combate à corrupção tem o obje-tivo estratégico de contribuir para a efetiva implantação dosdireitos de cidadania e para a construção de uma sociedadejusta, fraterna e solidária, comprometida com o respeito à coisapública, com responsabilidade e compromisso ético.

CONCLUSÃO

A corrupção estatal produz danos que atentam contraa democracia, o patrimônio público, a soberania, a segurançanacional, o desenvolvimento econômico e social, a segurança

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pública, as instituições democráticas, a justiça social, o EstadoDemocrático de Direito e a ordem jurídica.

Diante disso, a corrupção, em todas as suas formas, nãopode ser enfrentada apenas como infração à norma positivada.Impõe-se um aparato de investigação e combate que reúna me-canismos de informação e técnicas de inteligência para o enfren-tamento do problema.

A acumulação de riquezas, que comanda o sistema ca-pitalista no setor privado, não dita a atividade financeira do Es-tado, porquanto seu objetivo é o atendimento às necessidadescoletivas e ao bem-estar social. Assim, é obrigação do Estado ofornecimento e a garantia de serviços como educação, saúde,segurança, desenvolvimento econômico e social, dentre outrosserviços de interesse social necessários à elevação do índice dedesenvolvimento humano.

O Ministério Público, como agente transformador da rea-lidade social, é chamado, nessa ordem, para estimular a partici-pação social no combate à corrupção e à improbidade,utilizando-se de estratégias de atuação que possam contribuirpara o fortalecimento da cidadania, minando os mecanismos decooptação, largamente utilizados pelo crime organizado.

A complexidade das práticas corruptas reclama do Mi-nistério Público a adoção de estratégias de atuação repressivase preventivas em várias linhas de enfrentamento, incrementando-se as técnicas de investigação, treinamento, cooperação inter-nacional, articulação com os diversos atores, sobretudo com asociedade civil organizada, na busca de alianças que garantama eficiência e a eficácia de sua atuação.

Como órgão garantidor do princípio constitucional damoralidade administrativa, o Ministério Público deve fazer dosmeios legais de combate à corrupção e à improbidade adminis-trativa, à sua disposição, oportunidade de resgate da cidadania,porquanto a medida que contribui para a construção de uma

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nova consciência cultural de moralidade permitirá às futuras ge-rações incorporar novos valores éticos, rompendo com a tolerân-cia atávica diante de atos ímprobos e desonestos que atualmentepenetram as estruturas da sociedade civil e do Estado.

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Bruna Nogueira Almeida Ratke*Rabah Belaidi **

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA TUTELA PENALAMBIENTAL: UMA ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIAS

THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE IN CRIMINAL ENVIRONMENTAL

PROTECTION: AN ANALYSIS OF JURISPRUDENCE

EL PRINCIPIO DE LA INSIGNIFICANCIA EN LA PROTECCIóN

PENAL AMBIENTAL: UN ANáLISIS DE LA JURISPRUDENCIA

Resumo:

Em face da abrangência do tipo penal ambiental verifica-se a ne-

cessidade de abordá-lo à luz dos princípios da mínima intervenção

do Direito Penal e da insignificância, para utilizar a sanção penal nos

casos extremos, diante da ineficácia das sanções civis e adminis-

trativas. A aplicação desses princípios não é aceita de forma majo-

ritária pelos doutrinadores e entendimentos jurisprudenciais, que

fundamentam sua inconsistência com os princípios da prevenção e

precaução, fundamentos do Direito Ambiental, na impossibilidade

de verificar a real potencialização do dano ambiental perante o ecos-

sistema, além de todo dano ambiental gerar extrema gravidade.

Diante desse impasse, este estudo tem como objetivo demonstrar

a aplicação do princípio da insignificância nos crimes ambientais,

analisando a divergência da doutrina e jurisprudência.

Abstract:

Given the scope of environmental criminal type there is a needy

of addressing it under the light of the principles of minimum in-

tervention of criminal law and insignificance, to use the criminal

* Especialista em Direito Constitucional e Mestranda em Direito Agrário pela UFG.** Doutor em Direito Privado pela Universidade de Paris II, revalidado pela USP.Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFG.

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sanction in extreme cases, given the ineffectiveness of civil and

administrative penalties. The application of these principles is not

totally accepted by the majority jurisprudential scholars and un-

derstandings that underlie their inconsistency with the principles

of prevention and precaution, grounds of environmental law, una-

ble to verify the actual enhancement of environmental damage to

the ecosystem, beyond all the environmental damage generate

extremely gravity. Given this impasse, this study aims at demons-

trating the principle of insignificance in the environmental crimes,

showing the divergence of doctrine and jurisprudence.

Resumen:

Dado el alcance del tipo penal ambiental, se verifica la necesidad

de hacerle frente a la luz de los principios de la mínima intervención

del Derecho Criminal y de la insignificancia, para utilizar la sanción

penal en los casos extremos debido a la ineficacia de las sanciones

civiles y administrativas. La aplicación de esos principios no es

aceptada de forma mayoritaria por los estudiosos ni tampoco por

los entendimientos jurisprudenciales, que fundamentan su incon-

sistencia con los principios de cautela y acción preventiva, funda-

mentos del Derecho Ambiental, al no poder comprobar la real

potencialización de los daños ambientales frente al ecosistema,

además de todo ese daño ambiental ser de extrema gravedad. Te-

niendo en cuenta ese impase, este estudio pretende demostrar la

aplicación del principio de la insignificancia en los delitos ambien-

tales, mostrando la divergencia de la doctrina y de la jurisprudencia.

Palavras-chaves:

Agroecologia, princípios constitucionais penais, Direito Ambiental,

Direito Penal.

Keywords:

Agroecology, constitutional principles of criminal law, environmen-

tal law, criminal law.

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Palabras clave:

Agroecología, principios constitucionales penales, Derecho Am-

biental, Derecho Criminal.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal prevê, em seu artigo 225, que todostêm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de usocomum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-seao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988). Nesse sen-tido, a Carta Magna trouxe significativa inovação ao elevar o meioambiente e sua proteção ao direito fundamental do cidadão.

Para Prado (2007), o traçado seguido pela ConstituiçãoFederal está alinhado com a exigência de criação de uma novaordem jurídica, que contenha mecanismos que limitam a utilizaçãodos recursos naturais. Nessa perspectiva, a Carta Magna erigiu comodireito fundamental o direito ao ambiente ecologicamente equili-brado, indispensável à vida e ao desenvolvimento do ser humano.

A relação estabelecida entre esse preceito constitucionale o conceito do bem jurídico penal ambiental é direta e explícitana própria Constituição Federal, no artigo 225, §3º, que estatuique as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio am-biente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a san-ções penais e administrativas, independentemente da obrigaçãode reparar os danos causados.

Nesse sentido, o dano ambiental poderá gerar imposi-ções concomitantes de sanções civil, administrativa e penal, in-cumbindo à legislação infraconstitucional a definição eregulamentação dessa tríplice responsabilidade, observando-se

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os princípios constitucionais da prevenção e da precaução, iden-tificados como objetivos fundamentais do Direito Ambiental.

Canotilho e Vital Moreira (apud MOLITOR, 2007) expla-nam sobre o efeito negativo da tutela penal ambiental, “ou seja,um direito à abstenção”. Para Molitor (2007), o Direito AmbientalConstitucional apresenta duas vertentes, isto é, o dever negativoe o dever positivo. O dever negativo busca a preservação am-biental por se consubstanciar na obrigação de não destruir o meioambiente. O dever positivo busca a abstenção das pessoas, físi-cas e jurídicas, em favor do meio ambiente, utilizando-se do Di-reito Penal como instrumento coercitivo perante a ineficácia deoutros meios de proteção ambiental.

A proteção do meio ambiente buscou atender a umaconstante reivindicação da comunidade internacional, que pug-nava pela aplicação de sanções penais aos atos lesivos à natu-reza, citando-se o XII Congresso Internacional de Direito Penal,realizado em Varsóvia, em 1975 (FREITAS e FREITAS, 2001).

Salientam-se alguns aspectos utilizados para legitimar atutela penal ambiental: a) o meio ambiente como bem jurídico pe-nalmente relevante; b) a natureza subsidiária do Direito Penal; ec) a função instrumental da sanção penal (SILVA, 2008). O bemjurídico protegido no Direito Penal Ambiental é o meio ambiente,considerado em sua visão global. Milaré (2009) explica essa di-mensão global do ambiente por integrar um conjunto de elemen-tos naturais, culturais e artificiais, detalhando da seguinte formapara possibilitar o entendimento:

meio ambiente natural (constituído pelo solo, a água, o ar at-mosférico, a flora, a fauna, enfim, a biosfera); meio ambientecultural (integrado pelo patrimônio artístico, histórico, turístico,paisagístico, arqueológico, espeleológico etc.); e meio ambienteartificial (formado pelo espaço urbano construído, consubstan-ciado no conjunto de edificações e nos equipamentos públicos:ruas, praças, áreas verdes, ou seja, todos os logradouros, as-sentamentos e reflexos urbanísticos, caracterizados como tal).

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Com base nessa dimensão global de ambiente, a Lei9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como a Lei dos Cri-mes Ambientais, dispõe sobre as sanções penais e administrativasderivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente,tendo estatuído os crimes contra o meio ambiente em seu capítuloV, dividindo-os da seguinte forma: Seção I – Dos Crimes contra aFauna (ambiente natural); Seção II – Dos Crimes contra a Flora(ambiente natural); Seção III – Da Poluição e outros crimes am-bientais (ambiente natural); Seção IV – Dos Crimes contra o Or-denamento Urbano (ambiente artificial) e o Patrimônio Cultural(ambiente cultural); Seção V – Dos Crimes contra a AdministraçãoAmbiental (BRASIL, 1998).

A Lei 9.605/98 efetivou o ideário constitucional, além deatender a recomendações insertas na Carta da Terra e na Agenda21, aprovadas na Conferência do Rio de Janeiro, que impôs aos Es-tados a formulação de leis direcionadas à efetiva responsabilidadepor danos ao ambiente e para a compensação às vítimas da polui-ção. Trata-se de instrumento normativo de natureza híbrida, emboradenominada Lei dos Crimes Ambientais, pois estatui também infra-ções administrativas e dispõe sobre aspectos da cooperação inter-nacional para a preservação do meio ambiente (MILARÉ, 2009).

Para Silva (2008), a Lei 9.605/98 “é resultado de um pro-jeto de sistematização das penalidades anteriormente previstasem legislações esparsas”. Com a referida lei infraconstitucional,buscou-se efetivar uma consolidação de toda a legislação, queantes tutelava assuntos relativos ao meio ambiente, especificamenteno âmbito penal, pois havia, nas leis nacionais, vários dispositivosque eram totalmente separados por textos e datas, que regulavampenalmente alguns pontos referentes ao meio ambiente. Contudo,a Lei 9.605/98 não derrogou as leis anteriores.

O advento da Lei 9.605/98 pouco contribuiu para o aper-feiçoamento da legislação da matéria ambiental penal, pois setrata de uma lei excessivamente prolixa, casuística, tecnicamente

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imperfeita, inspirada por especialistas leigos em Direito, de difícilaplicação, tortuosa e completa, nos termos de Prado (2007).

Dessa forma, na tutela penal ambiental, por visar prote-ger bem jurídico de relevantíssimo valor social, se devem obser-var os princípios constitucionais que orientam o Direito Penal emface dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Não obstante, o tipo penal ambiental possui uma ampli-tude que, em razão de sua complexidade, pode alcançar condu-tas sem poder ofensivo ao bem ambiental tutelado. Em facedessa abrangência, verifica-se a necessidade de abordar a tutelapenal ambiental à luz dos princípios da mínima intervenção doDireito Penal e da insignificância, para utilizar a sanção penal noscasos extremos, diante da ineficácia das sanções civis e admi-nistrativas, e quando a lesão ambiental for relevante, isto é, pos-suir ofensividade concreta.

Destarte, a aplicação desses princípios não é aceita deforma majoritária pelos doutrinadores e entendimentos jurispru-denciais, que fundamentam a sua inconsistência com os princí-pios da prevenção e precaução, fundamentos do DireitoAmbiental, da impossibilidade de verificar a real potencializaçãodo dano ambiental perante o ecossistema, além de todo danoambiental ser de extrema gravidade.

PRINCÍPIO DA MÍNIMA INTERVENÇÃO DO DIREITO PENAL

O princípio da intervenção mínima ou ultima ratio esta-belece que “o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bensjurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, eque não podem ser eficazmente protegidos de outra forma”,“deve representar a ultima ratio legis, colocar-se em último lugar

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e só entrar em ação quando for indispensável para a manutenção daordem jurídica”, “é o que se denomina caráter fragmentário do DireitoPenal” (PRADO, 2007). Por esse princípio, apenas as ações maisgraves dirigidas contra bens fundamentais podem ser criminalizadas.

Sobre esse aspecto, Toledo (2000) ensina que, quandoa proteção de outros ramos do direito estiver ausente, “falhar ourevelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bemjurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve esten-der-se o manto da proteção penal, como ultima ratio regum”.

Nesse sentido, Roxin (apud SILVA, 2008) esclarece anatureza subsidiária do Direito Penal, ou seja, “onde bastem osmeios do direito civil ou do direito público, o direito penal deveretirar-se [...] consequentemente, e por ser a reação mais forteda comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar”.

O Direito Penal e o Processo Penal possuem a missão depreservar os direitos mais relevantes do homem, e não de resolvertodos os problemas sociais, assim, por se tratar de um sistema des-contínuo de ilicitudes, de caráter fragmentário, não se deve ocuparde qualquer ameaça aos bens jurídicos constitucionalmente rele-vantes, mas apenas das condutas que, por sua gravidade, colocamem risco a sociedade e o ser humano (JESUS, 2004).

Em consonância com esse princípio, somente será em-pregada a tutela penal quando os outros meios (cíveis e admi-nistrativos) não lograrem êxito na guarda dos bens tutelados.

Com esse alicerce, cita-se Milaré (2009), que crítica ocaráter altamente criminalizador da Lei 9.605/98, contrariando osprincípios penais da intervenção mínima e da insignificância, porelevar à categoria de crime condutas que deveriam ser conside-radas infrações administrativas ou contravenções penais.

No campo do Direito Ambiental, a legislação está voltadaa prevenir e reprimir as condutas praticadas contra a natureza e,após sua ocorrência concreta, à reparação do dano. Assim, seas outras esferas (cíveis e administrativas) forem suficientes para

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atingir integralmente os dois objetivos primordiais (prevenção ereparação tempestiva e integral) não há mais razão jurídica paraa incidência do Direito Penal.

Em análise dessa função instrumental de prevenção natutela penal ambiental, Silva (2008) afirma que é realizada atravésda prevenção geral e da prevenção especial. Na prevenção geral,a Lei 9.605/98 tipifica as condutas proibidas e comina penas pre-vistas aos infratores, com o intuito de estabelecer uma intimidaçãoformal para a abstenção de prática de condutas ilícitas. Na pre-venção especial, a tutela penal do meio ambiente busca a restau-ração do bem ofendido e a reeducação do infrator, tendo em vistaque a maioria das penas previstas na Lei de Crimes Ambientaissão as restritivas de direitos. Todavia, ressalta que o efeito maisforte da prevenção especial será sobre a pessoa jurídica infratora,“pois poderá criar uma rejeição a seus produtos”.

Esse caráter subsidiário do Direito Penal na defesa do meioambiente é apontado na Resolução (77) 28, do Conselho da Europa,adotada por seu Comitê de Ministros, em 1978, a qual dispõe que:

depois de considerar a necessidade de proteger a saúde dosseres humanos, animais e plantas... a necessidade de recorrerao Direito Penal como ultima ratio quando outras medidas nãose aplicam, são ineficazes ou inadequadas, o Comitê se vêobrigado a efetuar as seguintes recomendações a seus Esta-dos-Membros: 1. Os Estados-Membros devem submeter àconsideração o possível uso de sanções penais quando seproduzam danos ao meio ambiente.

Como exemplo claramente didático de aplicação do prin-cípio da mínima intervenção do Direito Penal Ambiental, Milaré(2009) cita que quando a reparação integral do dano ou o cum-primento total do Termo de Ajustamento de Conduta Ambiental –TAC – ocorrer antes do oferecimento da denúncia, não se justificaa intervenção do Direito Penal. Nesse caso, explica que a even-tual ação penal não teria cabimento e não poderia ser proposta,por estar ausente o interesse processual, pressuposto essencial

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para o exercício da persecução criminal. No mesmo sentido, destaca-se a ação penal n. 437886-

64.2008.809.0000 (200804378864), promovida perante o Tribu-nal de Justiça do Estado de Goiás, pela conduta prevista noartigo 54, §3º da Lei 9.605/98, perante a Primeira Turma da 1ªCâmara Criminal, Relator Des. Huygens Bandeira de Melo, j.16/12/10. O Prefeito Municipal teria firmado um Termo de Ajusta-mento de Conduta (TAC) em 2005, tendo expressamente assu-mido a obrigação de fazer consistente em providenciar a devidalicença ambiental do aterro sanitário municipal, bem como pro-ceder à disposição dos resíduos sólidos na mencionada área,com a observância do disposto nas normas legais-técnicas per-tinentes, previstas na Lei Federal n. 11.445/07, na Lei Estadualn. 14.248/02 e nas Resoluções CONAMA n. 01/86 e 237/97, deforma a evitar o espalhamento do material (lixo e outros poluen-tes), a propagação de odores, fogo e fumaça, a proliferação deinsetos e roedores, a atividade marginal de catação de lixo e apresença de animais no local. Narra a denúncia que, durante agestão de 2005 a 2008, o denunciado, ciente do risco de danoambiental grave, decorrente da existência de “lixão a céu aberto”,teria deixado de adotar política municipal de gerenciamento dosresíduos sólidos e outros poluentes lançados na mencionadaárea (BRASIL, 2010).

Diante do descumprimento do referido TAC (ineficiênciado âmbito civil) surge, então, o interesse processual para o inícioda persecução penal ambiental. Sobre a ineficiência da tutelacível-administrativa, Sirvinskas (2009), em estudo de campo, ob-serva que, na esfera administrativa e civil, a proteção ao meioambiente não tem sido eficaz. Constatou que na esfera adminis-trativa, das multas aplicadas pelo IBAMA no ano de 2008, so-mente 6% (seis por cento) foram recolhidas aos cofres públicos,e, na esfera civil, nem todas as ações civis públicas têm sido co-roadas de êxito, especialmente pela demora no seu trâmite.

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As causas dessas ineficiências são inúmeras, cita-seque: a) os órgãos administrativos, no Brasil, contêm sérias difi-culdades estruturais (carência de pessoal e de condições de tra-balho); b) a sanção cível não atinge seu objetivo em razão de aempresa infratora (que é a maioria dos agressores) embutir emseus preços o valor das sanções aplicadas (SILVA, 2008).

Em corrente contrária, Freitas e Freitas (2001) defendema não aplicação do princípio do Direito Penal mínimo nas infra-ções ambientais, com alicerce na preservação ambiental, pois osdanos ambientais têm consequências graves e nem sempre depronto conhecimento.

Winfried Hassemer (apud ANDRADE, 2005) também de-fende a não aplicabilidade do princípio da mínima intervenção dodireito penal ambiental, sustentando que o dano causado ao meioambiente não pode ser considerado de natureza leve, ao contrário,possui extrema gravidade. O autor sustenta a aplicação imediatado Direito Penal, como prima ratio, e, para tanto, sustenta que:

Não há que se falar na aplicação do direito penal mínimo emsede de crimes ambientais. A lesividade contra o bem ambien-tal é sempre máxima e, muitas vezes, desconhecidas, sendoque, em muitos casos, os efeitos danosos somente serãoconhecidos muitas décadas depois. Não se pode admitir, emprejuízo do bem ambiental, que se aguarde a ineficácia da pro-teção administrativa para que, apenas posteriormente, se uti-lize a proteção penal, pois, neste caso, ineficaz a tutelacriminal se o bem jurídico tutelado já tiver sido destruído.

A circunstância de ser o ambiente o bem jurídico protegidonos crimes ambientais não é suficiente para afastar o princípio daintervenção mínima do Estado em matéria penal. O dano ambientalnão deixará de ter importância jurídica em razão desse princípio,deixará de ter apenas relevância no âmbito penal. As outras áreas(cível e administrativa) serão empregadas para a responsabilizaçãocivil, como bem explica o Ministro Gilmar Mendes, na ação penal439/SP, do Tribunal Pleno, DJE 13/02/09 (BRASIL, 2009):

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Parece certo, por outro lado, que essa proteção pela via do Di-reito Penal justifica-se apenas em face de danos efetivos oupotenciais ao valor fundamental do meio ambiente; ou seja, aconduta somente pode ser tida como criminosa quando de-grade ou no mínimo traga algum risco de degradação do equi-líbrio ecológico das espécies e dos ecossistemas. Fora dessashipóteses, o fato não deixa de ser relevante para o Direito.Porém, a responsabilização da conduta será objeto do DireitoAdministrativo ou do Direito Civil. O Direito Penal atua, espe-cialmente no âmbito da proteção do meio ambiente, como ul-tima ratio, tendo caráter subsidiário em relação àresponsabilização civil e administrativa de condutas ilegais.Esse é o sentido de um Direito Penal mínimo, que se preocupaapenas com os fatos que representam graves e reais lesões abens e valores fundamentais da comunidade.

Salienta-se que o “Novo Código Florestal” (Projeto de Lei1.876-C, de 1999), aprovado na Câmara dos Deputados e em trâ-mite no Senado Federal como PLC n. 30 de 2011, alterará a Leidos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), ora em debate, e prevêo princípio da intervenção mínima do Estado nos crimes ambien-tais. Dispõe, em seu artigo 331, a implantação de programas de

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1 Projeto de Lei 1.876-C/99: “Art. 33. A União, os Estados e o Distrito Federaldeverão implantar programas de regularização ambiental de posses e proprie-dades rurais com o objetivo de adequar as áreas rurais consolidadas aos ter-mos desta Lei. [...] § 2º A adesão do interessado ao programa deverá ocorrerno prazo de 1 (um) ano, prorrogável por ato do Poder Executivo, contado daimplementação do CAR. § 3º Com base no requerimento de adesão ao pro-grama de regularização ambiental, o órgão competente integrante do Sisnamaconvocará o proprietário ou possuidor para assinar Termo de Adesão e Com-promisso, que constituirá título executivo extrajudicial. §4º Durante o prazo aque se refere o §2º e enquanto estiver sendo cumprindo o Termo de Adesão eCompromisso, o proprietário ou possuidor não poderá ser autuado e serão sus-pensas as sanções decorrentes de infrações cometidas antes de 22 de julhode 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em áreas de ReservaLegal, áreas de Preservação Permanente e áreas de uso restrito, nos termosdo regulamento. § 5º Cumpridas as obrigações estabelecidas no Programa deRegularização Ambiental ou no termo de compromisso para a RegularizaçãoAmbiental ou no termo de compromisso para a regularização ambiental das exi-gências desta Lei, nos prazos e condições neles estabelecidos, as multas re-feridas neste artigo serão consideradas como convertidas em serviços depreservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, legiti-mando as áreas que remanesceram ocupadas como atividades agrossilvopas-toris, regularizando seu uso como área rural consolidada para todos os fins”.

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regularização ambiental de posses e propriedades rurais, pela União,Estados e Distrito Federal, com o objetivo de adequar as áreas ruraisaos termos da legislação ambiental. Assim, o proprietário ou possui-dor firmará um Termo de Adesão e Compromisso (TAC) para os finsde composição ambiental e, durante o cumprimento desse termo,estará suspensa a punibilidade dos crimes previstos nos artigos 38,39 e 48 da Lei 9.605/982, interrompendo-se o prazo prescricional. Ocumprimento do TAC no prazo determinado acarretará na extinçãoda punibilidade, nos termos do art. 343 do Projeto de Lei (BRASIL,2011). Ou seja, a aplicação da sanção penal como ultima ratio, umavez que as medidas administrativas sejam suficientes para solucionara questão ambiental estas serão utilizadas, as sanções penais so-mente serão utilizadas em caráter subsidiário.

Por fim, o Direito Penal seria como um “soldado de re-serva”, conforme denominado nas doutrinas, que será utilizadoapenas na insuficiência dos outros ramos do Direito, em casosextremos de ofensa ao bem jurídico protegido. Salienta-se que oDireito Penal também não é a solução para as lesões ao am-biente, não resolverá os problemas do ecossistema, apenas apli-cará a sanção penal. A educação ambiental é, sem dúvida, asolução para minimizar esses problemas e atingir os objetivosprimordiais (prevenção e reparação tempestiva e integral).

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2 Lei 9.605/98: “Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservaçãopermanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normasde proteção: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas aspenas cumulativamente. [...] Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada depreservação permanente, sem permissão da autoridade competente: Pena – de-tenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.[...] Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais for-mas de vegetação: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa”.3 Projeto de Lei 1.876-C/99: “Art. 34. A assinatura do Termo de Adesão e Com-promisso para regularização do imóvel ou posse rural perante o órgão ambientalcompetente, mencionado no art. 33, suspenderá a punibilidade dos crimes pre-vistos nos arts. 38, 39 e 48 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, en-quanto este estiver sendo cumprido. §1º A prescrição ficará interrompidadurante o período de suspensão da pretensão punitiva. §2º Extingue-se a pu-nibilidade com a efetiva regularização prevista nesta Lei”.

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PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância decorre da natureza fragmen-tária do Direito Penal e do princípio da intervenção mínima da legis-lação penal. A doutrina, especificamente Claus Roxin, elaborou ateoria do Princípio da Insignificância em matéria criminal, cujo obje-tivo “é excluir do âmbito penal as condutas que não apresentam umgrau de lesividade mínimo para a concretização do tipo penal, evi-tando, assim, que a sanção penal seja imensamente desproporcio-nal ao dano causado pela ação formalmente típica” (SILVA, 2008).

O conceito do princípio da insignificância não está pre-sente nas Leis Ordinárias e na Constituição Federal, incumbindoà doutrina e à jurisprudência elaborar um conceito ao princípio.Nesses termos, Silva (2008) conceitua o princípio da insignificân-cia “como aquele que interpreta restritivamente o tipo penal, afe-rindo qualitativa e quantitativamente o grau de lesividade daconduta, para excluir da incidência penal os fatos de poder ofen-sivo insignificante aos bens jurídicos penalmente protegidos”.

Toledo (2000) fornece elementos fundamentais para a de-dução de uma definição do referido princípio: a) o caráter de ins-trumento para aferição qualitativa e quantitativa do grau delesividade da conduta típica; b) o efeito jurídico produzido pelo prin-cípio, qual seja, a exclusão da tipicidade da conduta insignificante.

A orientação do Supremo Tribunal Federal para a incidênciado princípio da insignificância deve verificar a lesividade mínima daconduta e, para tanto, levar-se-á em consideração os seguintes ve-tores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhumapericulosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidadedo comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provo-cada, salientando que o Direito Penal não deve se ocupar de con-dutas que, diante do desvalor do resultado produzido, nãorepresentem prejuízo relevante, seja ao titular do bem jurídico

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tutelado, seja à integridade da própria ordem social, conformejulgado em Habeas Corpus 94.505/RS, da Segunda Turma, Re-lator Ministro Celso de Mello, DJE 24/10/2008 (BRASIL, 2008).

Persiste uma corrente doutrinária contra a aceitação doprincípio da insignificância no sistema penal, “sob argumento quenão fora incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro porqueainda não devidamente legislado” (SILVA, 2008). Destarte, a Cons-tituição Federal reconhece expressamente a existência de princípiosimplícitos, em seu artigo 5º, § 2º, que dispõe: “os direitos e garantiasexpressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes doregime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionaisem que a República Federativa for parte” (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, Silva (2008) explica que a objeção comrelação à ausência de previsão expressa do princípio da insigni-ficância e, consequentemente, não incorporada ao ordenamentojurídico, não procede, “uma vez que se encontra esse princípiomaterialmente compreendido entre os enunciados dos demaisprincípios penais expressos na Constituição brasileira”, explicaque “o princípio da insignificância também é reconhecido atravésdo procedimento e concretização das normas constitucionais, noqual a complementação entre os princípios penais explícitos naConstituição revela sua existência”.

Aborda que uma das principais trincheiras de resistênciaao reconhecimento do princípio da insignificância e seus efeitosé o déficit conceptual que este apresenta (SILVA, 2008):

[...] uma vez que, argumenta-se, a indeterminação dos termospode pôr em risco a segurança jurídica. Tal argumentaçãoaduz que os critérios de fixação e determinação das condutasinsignificantes para incidência do princípio são determinadospelo senso pessoal de justiça do operador jurídico, ficandocondicionado a uma conceituação particular e empírica do queseja crime de bagatela.

Para Gomes (2010), alguns magistrados brasileiroscontinuam ignorando o princípio da insignificância, por vários

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motivos, destacando dois: (1) o princípio da insignificância nãoestá previsto expressamente na lei brasileira, conforme anterior-mente abordado; (2) juízes que são extremamente legalistas (oupositivistas-legalistas), pois “a formação jurídica no nosso paíscontinua (em geral) vinculada à doutrina do século XIX, isto é, aonascimento do Estado moderno (burguês-liberal)”. Critica queesse modelo de juiz não acompanhou a evolução do DireitoPenal ocorrida desde 1970.

Com relação à localização da incidência do princípio dainsignificância na teoria do delito e sua natureza jurídico-penal, hátrês correntes distintas, que o consideram como excludente de ti-picidade, excludente de antijuridicidade e excludente de culpabili-dade. A jurisprudência e a doutrina, majoritariamente, são adeptasde corrente que o considera como excludente de tipicidade, con-siderando atípicas aquelas condutas que importam numa afetaçãoinsignificante do bem jurídico tutelado (SILVA, 2008).

Assim, a aplicação do princípio da insignificância, causaexcludente de tipicidade material, admitida pela doutrina e pelajurisprudência em observância aos postulados da fragmentarie-dade e da intervenção mínima do Direito Penal, demanda oexame do preenchimento de certos requisitos objetivos e subje-tivos exigidos para o seu reconhecimento, traduzidos na irrele-vância da lesão ao bem tutelado e na favorabilidade dascircunstâncias em que foi cometido o fato criminoso e de suasconsequências jurídicas e sociais (BITENCOURT, 2009).

Todavia, prevalece perante a jurisprudência nacional(STJ e STF) a incidência do princípio da insignificância em ma-téria penal como excludente de tipicidade. Entretanto, no âmbitoambiental discute-se a incidência desse princípio em razão dosprincípios específicos que sustentam o direito ambiental, espe-cialmente o da prevenção e precaução.

Calhau (2011) ressalta a necessidade de buscar um equi-líbrio entre os princípios específicos do Direito Penal e do Direito

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Ambiental para uma efetividade na aplicação da norma penal am-biental, pois a aplicação do princípio da insignificância do DireitoAmbiental e o princípio ambiental da precaução chegam a ser “an-tagônicos”, além de pairar na atividade dos tribunais uma pro-funda “carência de qualquer espécie de fidelidade hermenêuticacom os objetivos constitucionais indicados à formação do conteúdo,e do alcance da proteção ambiental adequada ao Estado Democrá-tico de Direito”.

A discussão perante a não incidência do princípio da insig-nificância na tutela jurídica penal do ambiente centra-se em razãoda natureza do bem jurídico tutelado e da impossibilidade de auferira extensão do dano causado ao ecossistema. Essa discussão re-sulta em uma incerteza jurídica doutrinária e jurisprudencial.

Os Tribunais Regionais Federais entendem, de formamajoritária, que é inviável a aplicação do princípio da insignifi-cância em matéria ambiental. Nesse sentido, o posicionamentodo Procurador Regional da República Franklin da Costa, em pa-recer nos autos do recurso criminal 2002.43.00.001367-2/TO, daQuarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, relatorDesembargador Federal Carlos Olavo. Aduz o Procurador queconsiderar a destruição de área de preservação ambiental crimede bagatela é equiparar os crimes do meio ambiente, cuja des-truição compromete a própria existência humana, aos crimes pa-trimoniais, que podem ser recuperados.

[...] 'Ora, não se pode expressar em valor financeiro ou patri-monial um bem (o meio ambiente) que se refere à própria exis-tência do homem na face da terra' (fl. 50).Inclino-me também por este entendimento, considerando obem objeto de proteção legal, o meio ambiente. A preservaçãoambiental deve ser feita de forma preventiva e repressiva, embenefício de próximas gerações, sendo intolerável a práticareiterada de pequenas ações contra o meio ambiente, capazde, se consentida, resultar da sua inteira destruição. Assim,não pode ser considerado o princípio da insignificância, nocaso. Precedentes da eg. 4ª Turma deste TRF da 1ª Regiãocaminham neste sentido [...].

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Nesse diapasão, consolida-se entendimento do TribunalRegional Federal da 1ª Região sobre a inaplicabilidade do princípioda insignificância aos crimes ambientais, em razão da indisponibi-lidade do bem jurídico tutelado. Citam-se recursos: RSE 0002736-32.2006.4.01.3810/MG, Relator Juiz Federal Klaus Kuschel(convocado), Terceira Turma, DJ 08/07/11; RSE 0002440-68.2010.4.01.3819/MG, Relator Juiz Federal Marcus Vinícius ReisBastos (convocado), Quarta Turma, DJ 29/06/11; RSE 0001825-78.201.4.01.3810/MG, Relatora Desembargadora Federal Assu-sete Magalhães, Terceira Turma, DJ 31/03/11; ACR000171-79.2007.4.01.3804/MG, Relator Desembargador FederalMário César Ribeiro, Quarta Turma, DJ 08/04/10.

Observa-se que os enunciados do Tribunal Regional Fe-deral da 3ª Região seguem o mesmo entendimento, ou seja, ainaplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes ambien-tais, em razão do bem tutelado ser essencial à vida e à saúde detodos. Os danos ambientais, mesmo que de pequena monta,podem causar consequências graves e nem sempre previsíveis.Nesse sentido: ACR 2004.61.06.010764-4/SP, Relator Desem-bargador Federal Cotrim Guimarães, Segunda Turma, DJ30/08/11; RSE 2008.61.06.006180-7/SP, Relator DesembargadorFederal José Lunardelli, Primeira Turma, DJ 14/06/11; ACR2003.61.02.007430-1/SP, Relatora Desembargadora FederalVesna Kolmar, DJ 15/03/11.

No Tribunal Regional Federal da 4ª Região podem-seconstatar entendimentos contrários à aplicação do princípio dainsignificância, aliado ao bem jurídico que ostenta titularidade di-fusa e o dano que lesiona o ecossistema, pertencente à coletivi-dade. Assim, não pode ser mensurado, o que resulta naimpossibilidade da aplicação dos princípios da intervenção mí-nima e da subsidiariedade do Direito Penal. Cita-se: ACR0003230-23.2009.404.7005, Relator Desembargador FederalPaulo Afonso Brum Vaz, de 24/09/10; EINUL na ACR

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2002.72.04.002336-1, Relator Desembargador Federal PauloAfonso Brum Vaz, DE 07/05/07; ACR 0023502-49.2006.404.7100, Relator Desembargador Federal Victor Luizdos Santos Laus, Oitava Turma, DJ 17/08/11; AC 0000473-91.2007.404.7016, Relator Desembargador Paulo Afonso BrumVaz, Oitava Turma, DJ 03/08/11.

Todavia, observam-se pensamentos favoráveis à insur-gência do princípio da insignificância perante a Sétima Turma doTribunal Regional Federal da 4ª Região. Destaca-se a apelaçãoCriminal n. 0000682-53.2008.404.7007/P, interposta pelo Minis-tério Público Federal contra a sentença que julgou improcedentedenúncia proposta contra Rafael Bueno Menezes, absolvendo-oda prática do delito do artigo 344 da Lei n. 9.605/98, com funda-mento no artigo 386, inciso III5, do Código de Processo Penal. Orecorrido foi surpreendido no ato da pesca (com rede) com trêspeixes ainda vivos (um pintado, um mandí e um tambiú - pesoestimado em cerca de duzentas gramas), no reservatório da re-presa da Usina Hidrelétrica de Salto do Caxias, formada pelo RioIguaçu, em período no qual a pesca estava proibida, utilizando-se de petrechos não permitidos. Narra a acusação que o recorridofoi surpreendido pescando em alagado da bacia hidrográfica dorio Paraná. O fato de ele não ter retirado a rede do lago, e, con-sequentemente, não ter retirado os peixes, não afastaria a tipici-dade de sua conduta, tendo em vista que o referido delito é crimeformal, de perigo abstrato, não exigindo efetiva lesão ao meioambiente para sua consumação.

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4 Lei 9.605/98: “Art. 34. pescar em período no qual a pesca seja proibida ou emlugares interditados por órgão competente: Pena - detenção de um ano a trêsanos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Incorrenas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam ser preservadas ouespécimes com tamanhos inferiores aos permitidos;II - pesca quantidades su-periores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, téc-nicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, beneficia ouindustrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas”.5 CPP, Art. 386. “O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispo-sitiva, desde que reconheça: [...] III – não constituir o fato infração penal”.

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O revisor Juiz Federal Luiz Carlos Canalli, ao divergir dorelator, ressaltou, em seu voto, que a aplicação da excludente detipicidade por insignificância penal em crimes ambientais é admi-tida pela jurisprudência, em casos excepcionais, quando provadaa absoluta ausência de lesividade na conduta dos agentes. Con-siderou que o caso apresentado não possuía ofensa ao bem jurí-dico tutelado pela norma penal, o grau ínfimo da reprovabilidadeda conduta e a inexpressividade da lesão ao bem jurídico, sendoperfeitamente cabível a aplicação do princípio da insignificância.

Dessa forma, a orientação majoritária dos referidos TribunaisRegionais Federais é que não se apresenta juridicamente possível a apli-cação do princípio da insignificância nas hipóteses de crime ambiental.

Freitas e Freitas (2001) explicam que, em matéria demeio ambiente, nem sempre é fácil distinguir o que é e o que nãoé significativo:

Por exemplo, a morte de uma arara azul não pode ser consideradairrelevante, pois se trata de espécie em extinção. Assim, o magis-trado, para rejeitar uma denúncia ou absolver o acusado, deveráexplicitar por que a infração não tem importância. E mais, não sepode esquecer que o art. 37 da Lei n. 9.605/98 afirma não ser crimea morte de animal para saciar a fome, para proteger lavouras, po-mares e rebanhos ou por ser nocivo o animal, exigindo estas últi-mas modalidades autorização do órgão ambiental competente.[...] Tratando especificamente da proteção ambiental, a pri-meira indagação que deve ser feita é se existe lesão quepossa ser considerada insignificante. A resposta a tal perguntadeve ser positiva, mas com cautela. Não basta que a poucavalia esteja no juízo subjetivo do juiz. É preciso que fique de-monstrada no caso concreto. É dizer, o magistrado, para re-jeitar uma denúncia ou absolver o acusado, deverá explicitar,no caso concreto, por que a infração não tem significado. Porexemplo, em crime contra a fauna não basta dizer que é insig-nificante o abate de um animal. Precisa deixar claro, entre ou-tras coisas, que este mesmo abate não teve influência noecossistema local, na cadeia alimentar, analisar a quantidadede espécimes na região e investigar se não está relacionadoentre os que se acham ameaçados de extinção. Assim sendo,o reconhecimento do princípio da insignificância deverá ser re-servado para hipóteses excepcionais, principalmente pelo fatode que as penas previstas na Lei 9.605/98 são leves e admi-tem transação ou suspensão do processo.

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Marcão (2010) entende que o princípio da insignificânciadeve ser aplicado em matéria ambiental, contudo, com “parcimônia”:

uma vez que a mera retirada de espécie do seu ambiente na-tural já causa interferência no tênue equilíbrio ecológico, masnão há dúvida de que o elevado grau de maturidade e respon-sabilidade dos magistrados que integram as fileiras do PoderJudiciário Brasileiro assegura, sem sombra de dúvida, o cui-dado que se espera no manejo do instituto jurídico, que nadatem de ‘liberal’, ao contrário do que muitos sustentam com ra-zoável equívoco e até com um certo insinuar pejorativo.

Sobre o tema, importante a lição de Bitencourt (2009),que explica que se deve analisar não apenas o bem jurídico tu-telado, mas o grau de intensidade da lesão produzida:

a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deveser aferida não apenas em relação à importância do bem juri-dicamente atingido, mas especialmente em razão ao grau desua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida,como por exemplo, nas palavras de Roxin, 'mau-trato não équalquer tipo de lesão à integridade corporal, mas somenteuma lesão relevante; uma forma delitiva de injúria é só a lesãograve a pretensão social de respeito. Como força deve serconsiderada unicamente um obstáculo de certa importância,igualmente também a ameaça deve ser sensível para ultra-passar o umbral da criminalidade.

Em outra vertente, Nucci (2007) entende que o princípioda insignificância é perfeitamente aplicável no contexto dos deli-tos contra o meio ambiente e cita o caso do artigo 29, que prevêmatar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar qualquer animal de mí-nima importância para o ecossistema (ex.: uma borboleta ou umfilhote de pássaro que caiu do ninho).

O Superior Tribunal de Justiça, em precedentes, têm ad-mitido a incidência do referido postulado nos crimes contra omeio ambiente, quando, no exame do caso concreto, verifique-se não ter sido o bem jurídico tutelado pela norma extravaganteatingido pela conduta dos agentes, de acordo com o caso con-creto, analisando sempre de forma prudente e criteriosa, com a

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presença de certos elementos, como: (I) a mínima ofensividadeda conduta do agente; (II) a ausência total de periculosidade so-cial da ação; (III) o ínfimo grau de reprovabilidade do comporta-mento; e (IV) a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.Nesse sentido, cita-se: HC 143.208/SC, Quinta Turma, RelatorMinistro Jorge Mussi, DJ 14/06/10; HC 112.840/SP, QuintaTurma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ03/05/10; HC 93.859/SP, Sexta Turma, Relatora Ministra MariaThereza de Assis Moura, DJ. 31/08/09; e HC 86.913/PR, QuartaTurma, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJ 04/08/08.

No liame do caráter subsidiário do Direito Penal Ambiental,em relação à responsabilização civil e administrativa de condutasilegais, o Supremo Tribunal Federal aplica o princípio da insignifi-cância, fundamentando que o Direito Penal justifica-se apenas emface de danos efetivos ou potenciais ao valor fundamental do meioambiente, ou seja, para ter relevância penal a conduta tem que tra-zer pelo menos algum risco de degradação do equilíbrio ecológicodas espécies e dos ecossistemas, nos termos da Ação Penal439/SP, Tribunal Pleno, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 12/06/08.

CONCLUSÃO

Conforme salientado, não há dúvidas da incidência doDireito Penal como o “soldado de reserva”, principalmente no Di-reito Ambiental, que busca a prevenção e a precaução das lesõesambientais. Perante a abrangência do tipo penal ambiental an-teriormente abordado, se evidencia a necessidade de se subme-ter ao princípio da insignificância para excluir as lesõesambientais penalmente irrelevantes, em consonância com osprincípios constitucionais.

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A doutrina se preocupa com o resultado dessa aplicaçãodo princípio da insignificância no âmbito penal em se banalizar obem jurídico protegido. Mas, ao contrário, estabelecer condutasmais eficazes em outras esferas resultaria nos objetivos primor-diais (prevenção e reparação tempestiva e integral).

Busca-se um equilíbrio entre os princípios específicos doDireito Penal e do Direito Ambiental para uma efetividade na apli-cação da norma penal ambiental diante de sua natureza fragmen-tária. Contudo, para essa aplicação faz-se necessário estabeleceralguns critérios, nos mesmos termos estabelecidos para os crimescontra o patrimônio pelo Supremo Tribunal Federal.

Imprescindível estabelecer esses critérios com o intuitode unificar o entendimento jurisprudencial, analisando o bem ju-rídico tutelado e o grau de intensidade da lesão produzida peloagente dentro de um contexto, seria a denominada aplicaçãocom “parcimônia” pelos doutrinadores.

Silva (2008) sugere alguns critérios de extrema impor-tância para analisar a “avaliação dos índices de desvalor da açãoe desvalor do resultado que integram a lesão ambiental”, sepa-rados em duas etapas: (1ª) avaliar esses índices em relação aopróprio bem ambiental atacado; (2º) avaliar esses índices em re-lação ao meio ambiente de forma global. Se o resultado dessesíndices indicar um grau de lesividade ínfimo nas duas etapas, sereconhece a incidência do princípio da insignificância.

Dessa forma, utilizar o judiciário com lesões ínfimas aobem jurídico ambiental acarretaria um congestionamento de pro-cessos e morosidades, além de, certamente, não atingir os prin-cípios constitucionais ambientais. Espera-se que este estudoestimule a discussão sobre a incidência do princípio da insignifi-cância na tutela penal ambiental, conjuntamente com o fortaleci-mento de outras medidas judiciais e extrajudiciais para aprevenção e precaução ambiental, deixando a sanção penalcomo ultima ratio.

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Luiz Antonio da Silva Junior*

UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E A TORTURA

UNIVERSALITY OF HUMAN RIGHTS AND TORTURE

UNIVERSALIDAD DE LOS DERECHOS HUMANOS Y LA TORTURA

Resumo:

A tortura é utilizada pelo homem contra o seu semelhante desde os

tempos mais remotos. Historicamente, o seu uso tem ligação com o

momento vivido pela sociedade, tendo, inclusive, em algumas épo-

cas, aparecido de forma legalizada nos ordenamentos jurídicos. Ho-

diernamente, a tortura é considerada crime contra a humanidade,

existindo inúmeros instrumentos internacionais de combate a essa

prática. No Brasil, mesmo diante dos diversos tratados e convenções

internacionais ratificados pelo país e com a edição da Lei n. 9.455/97,

a tortura ainda é utilizada de forma indiscriminada pelas autoridades

públicas nacionais, visto que se encontra enraizada dentro das es-

truturas policiais, sendo raras as punições dos torturadores pelo

Poder Judiciário, um total desrespeito ao princípio da dignidade da

pessoa humana. Nesse sentido, o presente trabalho tem a finalidade

de traçar um panorama da prática da tortura na história e de seus

reflexos nos dias atuais, bem como de tentar estabelecer as causas

que explicam o descompasso entre a tortura noticiada pelas organi-

zações de direitos humanos e pela imprensa e a tortura efetivamente

investigada e punida pelas instituições públicas.

Abstract:

Torture is used by man against his fellow man since time immemorial.

* Especialista em Direito do Consumidor pela ESA/SP. Mestrando pela PUC/GO.Professor de Direito Penal da UNIP/GO. Advogado.

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Historically, its use is linked to the time lived by society, and even at

some times, appeared in the form of legalized jurisdictions. In our

times torture is a crime against humanity, there are numerous inter-

national instruments to combat this practice. In Brazil, even with the

various treaties and conventions ratified by the country and the enac-

tment of Law nº 9.455/97, torture is still used indiscriminately by na-

tional public authorities, since they are rooted within the police

structures, are rare punishment of torturers by the judiciary, a total

disregard to the principle of human dignity. In this sense, this paper

aims to draw a picture of torture in history and its impact today as

well as trying to establish the causes that explain the gap between

the reported torture by human rights organizations and the press and

torture effectively investigated and punished by public institutions.

Resumen:

La tortura es utilizada por el hombre en contra de sus semejantes

desde los tiempos más remotos. Históricamente, su uso corres-

ponde al momento vivido por la sociedad, inclusive habiendo sur-

gido, en algunas épocas, de forma legalizada en los ordenamientos

jurídicos. Actualmente, la tortura es considerada un crimen contra

la humanidad, existiendo innumerables instrumentos internacionales

de combate a dicha práctica. En Brasil, no obstante los diversos tra-

tados y convenciones internacionales ratificados por el país y la edi-

ción de la Ley n. 9.455/97, la tortura todavía es utilizada de modo

indiscriminado por las autoridades públicas nacionales, cuya prác-

tica se encuentra enraizada dentro de las estructuras policiales,

siendo nulas e, incluso, inexistentes las sanciones a dichos tortura-

dores por parte del Poder Judicial; derivándose en una total falta de

respeto al principio de la dignidad del individuo. En ese sentido, el

presente trabajo tiene la finalidad de trazar un panorama respecto a

la práctica de la tortura en la historia y sus reflejos en los días ac-

tuales, así como intentar establecer las causas que explican la di-

ferencia existente entre la tortura denunciada por las organizaciones

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de derechos humanos y que se muestra en los diversos medios de

comunicación, y la tortura efectivamente investigada, perseguida y

sancionada por las instituciones públicas.

Palavras-chaves:

Direitos humanos, tortura, punição, dignidade humana.

Keywords:

Human rights, torture, punishment, human dignity.

Palabras clave:

Derechos humanos, tortura, sanciones, dignidad humana.

UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

A ideia de universalizar os direitos humanos está expressa naDeclaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Na-ções Unidas, data de 10 de dezembro de 1948. No preâmbulo da alu-dida declaração encontram-se as premissas a partir das quais seusidealizadores afirmaram o caráter universal dos direitos humanos:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todosos membros da família humana e de seus direitos iguais e inalie-náveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, naCarta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidadee no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos ho-mens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso so-cial e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.Considerando que os Estados-Membros se comprometerama desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o res-peito universal aos direitos humanos e liberdades fundamen-tais e a observância desses direitos e liberdades.

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Dessa forma, para os adeptos da corrente universalista dosdireitos humanos, significa afirmar amplamente a sua validade, nãotolerando a diversidade existente no mundo, negando, assim, as di-ferenças pluralistas de religião, da cultura e do social. Por isso hágrande divergência nesse entendimento.

A universalização dos direitos humanos está ligada ao pen-samento ocidental, pós Revolução Francesa e independência dosEstados Unidos da América.

Segundo Culleton, Bragato e Fajardo (2009, p. 236) há vários:

argumentos contrários à ideia de universalidade dos direitoshumanos, tais como: a irrelevância da concepção liberal e dasocial-democracia dos direitos humanos para grande parte dahumanidade, inclusive o Terceiro Mundo; a dissocialização ea aculturação que se impõem mediante o desrespeito à diver-sidade cultural; e o fato de que, em muitas sociedades, inclu-sive ocidentais, o próprio conceito de direitos humanos érecente ou, até mesmo, ignorado.

Para os defensores do relativismo dos direitos humanos, de-vemos ter em mente o multiculturalismo do planeta, sendo impossí-vel estabelecer normas universais aplicáveis a todos os povos.Nesse aspecto, Boaventura de Sousa Santos (s/d) comenta que:

enquanto forem concebidos como direitos humanos universais,os direitos humanos tenderão a operar como localismo globali-zado - uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serãosempre um instrumento do "choque de civilizações" tal como oconcebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Oci-dente contra o resto do mundo.

Já Flávia Piovesan (2008, p. 149) nos traz a diferenciaçãode ambas as correntes: “Na ótica relativista, há o primado do cole-tivismo. Isto é, o ponto de partida é a coletividade, e o indivíduo épercebido como parte integrante da sociedade. [...] na ótica univer-salista, há o primado do individualismo”.

Apesar das diferentes visões sobre a existência de um direito

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universal, podemos afirmar que há princípios morais e éticos que sãocomuns a toda a humanidade, que estão além das especificidades decultura, como a vida, a dignidade humana, a não exposição à tortura, etc.

Assim, partindo dessa premissa, traçaremos algumas con-siderações sobre o crime de tortura, fazendo um retrospecto histó-rico, analisando as legislações e a prática desse delito no país.

A TORTURA NO MUNDO: DA ANTIGUIDADE AOS DIAS ATUAIS

Tortura, do latim tortum, particípio do verbo torquere, significatorcer, tormento, causar suplício físico ou psicológico. Sua prática sefaz presente na História desde os tempos mais remotos como meio deconsecução da confissão, de punição e de afirmação do poder, sobe-rano ou divino, civil ou militar. Como observa Pietro Verri (1992, p. 90):

A origem de uma invenção tão feroz ultrapassa os limites da eru-dição, e é provável que a tortura seja tão antiga, quão antigo é osentimento do homem de dominar despoticamente outro homem,quão antigo é o caso de que nem sempre o poder vem acompa-nhado pelas luzes e pela virtude, e quão antigo é o instinto, nohomem armado de força prepotente, de estender suas ações se-gundo a medida antes do poderio do que da razão.

A violência, como exacerbação do poder, confunde-se com a pró-pria história do homem. No dizer de Paulo Sérgio Leite Fernandes e AnaMaria Babette Fernandes (1996, p.149), “a tortura, forma extremada deviolência, parece ter se entranhado no homem ao primeiro sinal de inteli-gência deste”. A tortura e a violência sempre andam juntas. Quando sepensa em tortura vem imediatamente à luz a característica da força física.

Vigorou na Babilônia o Código de Hamurabi, ordenamentolegal do século XVIII a.C. que tinha como base o Princípios de Talião"olho por olho, dente por dente". Esse axioma previa aos criminosos

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a aplicação do mesmo mal que haviam causado. Estavam destina-das aos infratores penas como a empalação, a amputação de mem-bros, a quebra de ossos, o apedrejamento e a fogueira.

Via de regra, todos os povos antigos utilizaram a tortura comomeio de confissão dos acusados. Na “Grécia desconhecia-se o usoda tortura contra os homens livres, salvo se fossem estrangeiros oumetecos” (FERREIRA, 1991, p. 30). Aplicava-se a tortura, em prin-cípio, apenas aos escravos, que eram considerados como “coisas”pelo sistema jurídico daquela civilização. Sua utilização “destinava-se a extrair depoimentos dos indivíduos de classes inferiores, paraque assim suas declarações pudessem ter a mesma validade quetinham as de um cidadão grego” (FALKOSKI, 1999, p. 35).

Em Roma, durante a Monarquia e a República, do mesmomodo que como os helênicos, somente os escravos e os estrangei-ros eram torturados. No Alto Império, houve uma profunda alteraçãono processo romano. Apesar dos julgamentos continuarem públicos,a instrução dos processos feita pelos juízes se tornou secreta. Tem-se início o sistema inquisitivo. Segundo Verri (1992), foi a corrupçãodo sistema romano o fato gerador do amplo uso da tortura. Os im-peradores, buscando agradar a plebe e enfraquecer os nobres, úni-cos que poderiam refrear a tirania dos déspotas, equiparou estesaos servos. À medida em que se consolidava a tirania, a tortura,antes aplicada apenas aos servos, foi estendida aos homens livres.

Com a invasão bárbara a Roma, a sacralidade foi nova-mente utilizada como meio de determinar a culpabilidade ou inocên-cia de alguém. Nos chamados "Juízos de Deus" ou Ordáliasapelava-se para processos supersticiosos na busca da revelaçãodivina. Conforme Basileu Garcia (apud FERREIRA, 1991, p. 36):

Os homens, na dificuldade em que se enleavam para apurar osfatos que pudessem determinar as penas, apelavam para aeventualidade do poder das forças sobrenaturais. Queriam,então, que na deficiência dos meios de conseguir a verdade,fosse ela trazida pela revelação divina. [...]. Assim, na mais re-mota antigüidade, o acusado pelo crime era largado à correnteza

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de um rio, tendo os pés amarrados a uma das mãos. Se sub-mergisse, deduzia-se-lhe a culpa.

Nos "Juízos de Deus" também se utilizava a prova do fogo,na qual o réu, para provar que falava a verdade, colocava a mão sobrea chama ou dentro de uma tina com óleo fervendo para ver se supor-tava o tormento. Era um procedimento que se assemelhava à tortura,mas não se caracterizava como tortura judiciária, pois o acusado po-deria negar se submeter a tal prova, correndo o risco de perder a ação.

Com o reflorescimento dos princípios do Direito Romano Im-perial, a tortura foi reintroduzida nos processos europeus a partir doséculo XII e estendeu-se até a Idade Moderna (HUNT, 2009). No sé-culo XIII, a tortura passa a fazer parte dos códigos processuais, prin-cipalmente dos Estados centralizados, como Castella, Sicília e aFrança. Concomitantemente, a Igreja passa a admitir o uso processualda tortura, e o Papa Inocêncio IV, na Bula “Ad extirpanda”, autoriza asua aplicação nos tribunais da Inquisição, contanto que não houvessemutilação, nem perigo de vida aos torturados (FERREIRA, 1991).

A tortura era aplicada visando obter a confissão do acusado.Nos Tribunais Eclesiásticos da Inquisição era por demais valorizada,sendo reconhecida como a "rainha das provas". Os interrogatórios se-cretos facilitavam a prática da tortura, já que não havia testemunhas.Para Cesare Beccaria (1997, p. 61), as acusações secretas eram de-correntes da "fraqueza da organização". Segundo o citado autor:

Crueldade, consagrada pelo uso, na maioria das nações, é atortura do réu durante a instrução do processo, ou para forçá-lo a confessar o delito, ou por haver caído em contradição, oupara descobrir os cúmplices, ou por qual metafísica e incom-preensível purgação da infâmia, ou finalmente, por outros de-litos de que poderia ser réu, mas dos quais não é acusado.

Foram ditadas normas minuciosas que regulavam a aplicaçãoda tortura, como o "Manual do Inquisidor" - Directorium Inquisitorum,escrito em 1376 pelo frei Nicolas Eymeric, utilizado pelo Santo Ofício.

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De acordo com o Capítulo V desse Manual, objetivava-se, atravésda tortura, a confissão do acusado de seus crimes contra a fé.

No sistema inquisitorial que incidiu sobre os procedimen-tos processuais penais europeus desse período, o juiz procediaex officio, representando a acusação e prolatando a sentença. Eletinha como função averiguar os delitos que chegavam ao seu co-nhecimento e prolatar a sentença condenatória, se ficasse compro-vada a culpabilidade do acusado. Caso não houvesse prova de suaculpabilidade nem a confissão, o próprio juiz determinava os meioscoercitivos para obtê-la, ou seja, era ele quem escolhia o tipo de tor-tura, sua duração e intensidade (FERREIRA, 1991).

Com a condenação, a tortura assumia definitivamente seucaráter de pena. A execução da pena ocorria de forma pública, tor-nando-se um verdadeiro espetáculo. Essa cerimônia era imprescin-dível para estabelecer o terror entre a população, que deveriaobservar os exemplos daqueles que lesaram a coletividade e o pró-prio soberano (FOUCAULT, 1994).

No fim do século XVIII e começo do século XIX, a tortura eo espetáculo da punição vão se extinguindo. Tem-se início uma novaépoca, com a abolição dos antigos ordenamentos e a supressãodos costumes, projetos e redações de códigos modernos, novasteorias sobre a lei, o crime e o direito de punir.

A abolição da tortura legal na Europa teve como pontode partida um decreto de 1740 do rei Frederico II, da Prússia.A ele seguiram vários Estados no final do século XVIII, movi-mento que ganhou força com a Revolução Francesa e com asprimeiras declarações de direitos fundamentais, como a "De-claração de Direitos do Bom Povo de Virgínia", de 1776, e a"Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", adotadapela França em 1789.

A partir desse momento esses direitos passam a ser inscri-tos nas cartas políticas das nações ocidentais. Contudo, como ob-serva Hélio Bicudo (1997, p. 34):

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A trajetória da humanidade demonstra que aos povos não bastam,para o seu aperfeiçoamento, os direitos e deveres inscritos emseus códigos de conduta. A exigência de novos direitos e deveressurge na medida em que o homem se insere na comunidade -que não é estática, mas cada vez mais dinâmica - e se qualificacomo cidadão.

Todavia após as atrocidades ocorridas na Segunda GuerraMundial, os direitos das pessoas passaram a ser concebidos comodireitos dos povos e deveriam ser protegidos internacionalmente.Daí decorreu o movimento internacional de proteção dos direitoshumanos, que teve como marco inicial a Declaração Universal dosDireitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948.

No Brasil, nos

dois períodos ditatoriais republicanos, de 1937 a 1945, no chamadoEstado Novo, e entre 1964 e 1985, durante a ditadura militar, houveuma inovação na prática da tortura, que se voltou para o campo daluta política. Apesar da tortura ser sempre tortura em qualquer idioma,época ou país, é preciso examiná-la em função da política utilizadana sua aplicação. (FERNANDES E FERNANDES, 1996, p. 150)

A violência praticada com o aval indireto do Estado nessesdois momentos históricos atingiu diretamente todos que ousavamdiscordar do regime vigente, grupos que incluíam estudantes, inte-lectuais, jornalistas, artistas e políticos.

A grande maioria dos processos judiciais se encontravamcercados de irregularidades, caracterizando-se por investigaçõesilegais, "pela coação, confissões obtidas sob tortura, denúnciasvagas, gerais e imprecisas", que acarretavam “sentenças marcadaspelo absurdo, pela injustiça e pela ilegalidade” (ARQUIDIOESE DESÃO PAULO, 1985, p. 203). As confissões obtidas sob tortura cons-tituíam a base dos inquéritos policiais militares.

Com a redemocratização, em 1985, a prática da tortura comfins políticos cessou em nosso país. Entretanto, a omissão de nossasautoridades em apurar e punir os crimes cometidos durante a dita-dura militar “criou uma cultura de impunidade no âmbito das forças

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de segurança pública, o que permitiu o florescimento da prática detortura e maus-tratos” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2001, p. 14).

Como método de investigação e de punição, a tortura é em-pregada atualmente no Brasil contra os presos comuns, os “suspei-tos”, nas instituições para menores infratores, principalmente negrose pobres, confirmando, assim, nossa herança cultural de policiamentorepressivo e truculento, com raízes colonizadoras, agravada pelosdois períodos republicanos totalitários que passamos: o Estado Novoe a Ditadura Militar.

Segundo a Anistia Internacional, há relatos de tortura praticadapor agentes do Estado atualmente em mais de 150 países. As penas cor-porais judiciais estão presentes nas leis de, pelo menos, 31 países, taiscomo Afeganistão, Arábia Saudita, Nigéria e Cingapura. De acordo comessa organização, a impunidade dos torturadores é endêmica, citandocomo exemplo “a Turquia, país no qual as investigações contra 5777agentes de segurança acusados de tortura entre 1995 e 1999 resultaramem apenas 10 condenações” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2000, p. 79).

A ineficiência das punições acarreta em mais violência, poiscria a consciência da impunidade nos torturadores, afrontando a dig-nidade e negando a justiça às vítimas, que se veem impedidas deestabelecer a verdade.

TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA TORTURA NO BRASIL

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,marco legislativo da transição democrática do país, fundamenta-se noprincípio da dignidade humana. Na prevalência dos direitos humanos,proibiu a prática da tortura, tornando-a crime inafiançável e insuscetívelde anistia ou graça. Além disso, garantiu ao indivíduo preso o direitode ver respeitada sua integridade física e moral. Outrossim, determina

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que todos os demais direitos fundamentais porventura não previstosno texto constitucional, mas consagrados em diplomas legais interna-cionais, estão automaticamente incorporados ao nosso ordenamento.

O princípio da dignidade humana está consagrado em nossaConstituição como um dos fundamentos da República (artigo 1°, III),e, como valor supremo, abrange todos os direitos fundamentais, ouseja, os direitos de ordem econômica e social, civis e políticos. ParaFábio Konder Comparato (2003, p. 1), "o primeiro postulado da ciênciajurídica é o de que a finalidade-função ou razão de ser do Direito é aproteção da dignidade humana, ou seja, da nossa condição de únicoser no mundo, capaz de amar, descobrir a verdade e criar a beleza".

Para Alexandre de Moraes (2000, p. 60), referido princípioapresenta-se em nossa Carta Magna com

dupla concepção: como direito individual protetivo em relação aos

indivíduos e ao próprio Estado e como verdadeiro dever fundamen-

tal de tratamento dos próprios semelhantes, ou seja, o indivíduo

deve respeitar a dignidade de seu semelhante do mesmo modo

que a Constituição da República exige que lhe respeitem a própria.

Consequentemente, tal princípio está ligado intimamente aorespeito à vida humana, principal objeto de direito assegurado peloartigo 5º, caput, da Constituição Federal. No dizer do professor JoséAfonso da Silva (2008, p. 182), a vida humana "constitui a fonte pri-mária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Cons-tituição assegurar outros direitos fundamentais [...] se não erigisse avida humana num desses direitos". É no respeito à vida humana querepousam conceitos como o direito à existência digna, o direito à in-tegridade física e moral, dentre outros. Trata-se de um direito inalie-nável e indisponível.

Nesse sentido, “ofender a integridade física de alguém écomo agredir a vida” (SILVA, 2008, p. 183). Concluímos, dessaforma, que a integridade corporal constitui um direito fundamental

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do indivíduo, que interessa não só ao Estado, mas à própria huma-nidade. Apresenta-se a tortura retratada nesse contexto não sócomo um crime que atinge a pessoa individualmente, mas toda ahumanidade.

Diferentemente das Constituições anteriores, a ConstituiçãoFederal de 1988, como resposta específica às arbitrariedades cometi-das durante o regime militar, proíbe expressamente a prática da tortura,fazendo-o nos seguintes termos: “Art. 5°; inciso III - ninguém será sub-metido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...]”.

Por fim, a Carta de 1988, em seu artigo 4°, inciso II, determinaa prevalência dos direitos humanos como princípio orientador das re-lações internacionais, bem como assegura, nos parágrafos 1° e 2°,do artigo 5°, a aplicação imediata das normas definidoras dos direitose garantias fundamentais, conferindo status de norma constitucionalaos tratados de direitos humanos firmados pelo Brasil. Essas inova-ções constitucionais refletiram imediatamente no Direito Brasileiro,tendo sido ratificada, em 1989, a Convenção contra a Tortura e OutrosTratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

MECANISMOS INTERNACIONAIS DE PUNIÇÃO E PREVENÇÃODA TORTURA

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em10 de dezembro de 1948, constitui um marco na construção do Di-reito Internacional dos Direitos Humanos, tem como pilares a digni-dade e a igualdade de todos os homens, reconhecendo a condiçãode pessoa como único requisito para a titularidade de direitos, inde-pendendo, desse modo, das condições sociais, culturais e econô-micas de determinada sociedade.

Acerca da tortura, a Declaração proclama que “ninguém

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será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desu-mano ou degradante” (artigo 5°). Dessa forma, podemos dizer quea Declaração Universal dos Direitos Humanos é, sem dúvida al-guma, o texto mais importante de proteção contra a prática da tor-tura. Dela decorreu uma série de pactos e convenções, no âmbitodos sistemas global e regional, além de influenciar as Constituiçõese leis nacionais. A partir dela reconheceu-se a tortura como delitoprevisto no direito internacional positivo, obrigando-se os Estados areprimi-la e impondo-se sanções aos violadores da norma. Sãoexemplos: a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950); oPacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966); a ConvençãoAmericana de Direitos Humanos (1969 - Pacto San José da CostaRica); a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou PenasCruéis, Desumanas ou Degradantes (1984); e a Convenção Intera-mericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985).

Todos esses tratados internacionais baseiam-se no respeitoà dignidade humana e na necessidade de tornar mais eficaz a lutacontra a tortura em todo o mundo. O termo “tortura” assim está de-finido no artigo 1° da Convenção da ONU:

qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físicoou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com ofim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ouconfissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pes-soa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de inti-midar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquerrazão baseada em discriminação de qualquer espécie, quandotal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público oupor outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ouainda por instigação dele ou com o seu consentimento ouaquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou so-frimentos que sejam conseqüência, inerentes ou decorrentesde sanções legítimas.

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A LEI N. 9.455/97 - LEGISLAÇÃO ESPECIAL PÁTRIA

A Lei n. 9.455, de 07 de abril de 1997, é, sem dúvida alguma,o principal instrumento de combate à tortura nacional, em que pesedisposição constitucional que a vede e convenções sobre o temaratificadas pelo Brasil. A citada lei foi votada e promulgada após otriste episódio da Favela Naval, em Diadema, São Paulo, época emque a sociedade clamava pela edição de uma lei que contivesse aviolência cotidiana, inclusive a policial.

Antes da regulamentação da lei em comento, nas raras hipóte-ses em que a tortura chegou ao conhecimento do Poder Judiciário, osmembros do Ministério Público e os juízes tinham de utilizar a legislaçãoque mais se aproximasse do delito de tortura. Tipificava-se sempre comomeio ou fim de execução de outros crimes, como homicídio, lesão cor-poral e abuso de autoridade, que possuem penas menos rigorosas.

A Lei n. 9.455/97 é a primeira norma nacional que traz a de-finição do que seja o crime de tortura, atendendo-se, assim, ao artigo5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e ao artigo 1°, do CódigoPenal Brasileiro, que consagram o Princípio da Reserva Legal ouda Anterioridade da Lei Penal: “não há crime sem lei anterior que odefina, nem pena sem prévia cominação legal”.

A presente lei estabelece diversas condutas típicas do delito detortura, que podem se praticadas por qualquer pessoa, e não exclusiva-mente por agentes públicos. Nesse aspecto, a lei brasileira não se coa-duna com as convenções internacionais, que exigem seja o sujeito ativofuncionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas. Al-berto Silva Franco (1997, p. 58) fez crítica a esse aspecto da lei, pelo fatode a tortura não ter sido tipificada “como crime próprio - aquele que requer,no sujeito ativo, uma determinada qualidade - mas sim, como crimecomum, isto é, aquele que pode ser executado por qualquer pessoa”.

Apesar de descaracterizado como crime próprio de funcionáriopúblico, consideramos válida a iniciativa da lei pátria em ampliar o rol

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de sujeitos ativos do crime de tortura, pois se poderá punir com maisabrangência e rigor essa prática repugnante, que não é reservada so-mente à atividade pública.

A INEFICÁCIA DA LEI DA TORTURA

A omissão generalizada do Poder Público em investigar epunir os perpetradores de tortura tem constituído um dos principaisfatores que contribuem para o uso sistemático e recorrente dessaprática no país. De acordo com Simone Schreiber (2000, p. 46):

Apesar da existência de um sistema integrado de proteção de di-reitos humanos, com normas e mecanismos de proteção de di-reito interno e de direito internacional, ao examinarmos os efeitosconcretos de atuação de tais aparatos de proteção, a realidade éextremamente preocupante. Há grande dificuldade de apuraçãoefetiva e de instauração de ação penal para a punição do crimede tortura e grande desinteresse do Estado Brasileiro em viabili-zar um sistema eficiente de prevenção. [...]. Apesar dos raroscasos de apuração de tortura, para responsabilização civil e cri-minal do agente, partiremos da premissa de que há tortura noBrasil. E há em grande escala, ou seja, tratando especificamenteda tortura do preso pelos agentes responsáveis pela investigação(polícia judiciária) e pelo encarceramento (agentes administrati-vos dentro das penitenciárias). Podemos afirmar que há práticacorriqueira de submeter o preso à sofrimentos físicos e morais, àtratamento cruel e degradante, pelos mais diversos motivos,desde a investigação, até a contenção da massa carcerária,como mecanismo de imposição de disciplina.

O Ministério da Justiça implementou, em 30 de outubro de2001, em parceria com a organização não governamental Movi-mento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), o SOS Tortura,serviço telefônico gratuito operado para receber denúncias sobre

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casos de tortura. Em menos de um ano, segundo dados divulgadospelo órgão, foram recebidas 1302 ligações referentes a tortura outratamento desumano ou degradante em todo o país. Os agentespúblicos concentram 71% das denúncias, das quais 57% relacio-nam envolvimento de policiais civis ou militares (DANTAS, p. C7).

O primeiro levantamento feito pelo Conselho Nacional dos Pro-curadores-Gerais de Justiça revelou que, do período entre a promul-gação da lei contra a tortura até o final de 2000, tinham sido oferecidas258 denúncias pelo Ministério Público em todo o país, mas somentedezesseis terminaram em condenação dos agressores. Do períodomencionado até agosto de 2001, o número de denúncias ofertadaspelo Ministério Público subiu para 502, ou seja, houve um aumento dequase 100%. Contudo, tivemos apenas mais duas condenações, alémdas dezesseis já citadas. Essas condenações incluem as definitivas etambém aquelas em que o réu ainda tem direito a recurso (ANISTIAINTERNACIONAL, 2001, p. 89).

Em setembro de 2010 a Pastoral Carcerária da ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil – CNBB – lançou um relatório sobrea prática de tortura em estabelecimentos prisionais e delegacias quechegaram ao conhecimento da Pastoral; no total foram catalogados211 casos. Segundo esse levantamento, dentre os 26 estados e Dis-trito Federal, a Pastoral mapeou casos em vinte estados, sendo omaior número de ocorrências nos estados de São Paulo (71), Ma-ranhão (30) e Goiás (25) (PASTORAL..., 2010, p. 7).

Outro estudo, realizado em 2009 na Faculdade de Sociologiada USP, analisou 51 processos criminais de tortura no Estado de SãoPaulo, entre 2000 e 2004, que incluíam um total de 203 réus, dosquais 181 eram agentes do Estado, destes 127 foram absolvidos, 33foram condenados por crime de tortura e 21 por outro crime (lesãocorporal ou maus tratos). Disso se conclui que apenas 18% dos réusforam condenados pelo crime de tortura (PASTORAL..., 2010, p. 7).

Após 10 anos da vigência da lei nacional contra a tortura, oBrasil, através do Decreto n. 6085/07, promulgou Protocolo Facultativo

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à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,Desumanos ou Degradantes, que prevê a implementação do Meca-nismo Preventivo Nacional - MPN - de combate a esse crime. Todavia,passados quatro anos sequer foi enviado ao Congresso Nacional umprojeto de lei criando e regulando o MPN.

Um grande instrumento previsto no Protocolo é a criação deuma Comissão ou Comitê de prevenção à tortura. Dentre seus ob-jetivos estariam o monitoramento e a fiscalização dos locais de pri-vação de liberdade, públicos ou privados, podendo fazer inspeçõessem a necessidade de autorização prévia, bem como requisitar do-cumentos, com a finalidade de combater e prevenir com mais eficá-cia a prática da tortura.

Dada a importância de se erradicar a impunidade relacio-nada a esse tipo de crime e a articulação dos movimentos sociaisde direitos humanos cariocas, o estado do Rio Janeiro foi pioneiroem aprovar uma legislação (Lei n. 5.778/10) que instituiu o Comitêe o Mecanismo Estadual de Prevenção à Tortura, que contribuirápara a apuração e a punição dos sujeitos ativos do crime de tortura.

Recentemente, em Goiás, a Polícia Federal deflagrou a“Operação Sexto Mandamento”, cujo principal objetivo foi prenderuma organização criminosa com alto poder de influência e de inti-midação composta por policiais militares estaduais das mais diver-sas patentes. As investigações demonstraram que os policiaiscometiam homicídios e simulavam confrontos com as vítimas no in-tuito de justificar as mortes. Dentre as 36 vítimas figuram casos detortura, ocultação de cadáver e execução de crianças, adolescentese mulheres sem qualquer envolvimento com práticas de crimes.

No final de junho do corrente ano, a Comissão Especial de De-fesa da Cidadania, instituída pelo governo do Estado de Goiás para apu-rar os crimes cometidos pelos policiais militares ligados a grupo deextermínio, apresentou ao chefe do Poder Executivo 45 propostas parapromoção e defesa dos direitos humanos no estado e dentre as primeirasestá a criação do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.

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CONCLUSÃO

Podemos concluir que o caráter repressivo e violento denossos agentes públicos, que geralmente se expressam através daviolência fatal ou da tortura, têm origens colonizadoras, fortalecidasno Estado Novo e na ditadura militar.

Nem mesmo com a previsão constitucional que veda expressa-mente o uso da tortura, com a ratificação de importantes tratados inter-nacionais e com a edição da Lei n. 9.455/97 essa prática foi erradicadade nosso cotidiano. Conforme alguns dados estatísticos demonstraram,há pouquíssimas condenações de tortura. Contudo, essa subutilização daLei da Tortura não se dá, infelizmente, porque a prática é pouco difundida.

A legislação antitortura brasileira é relativamente adequada;entretanto, os operadores do direito ainda relutam em utilizá-la. Umdos motivos reside na cultura da violência, ou seja, no incentivo co-letivo de empregar a violência como arma contra a própria violência.No entanto, o Estado Democrático de Direito não pode permitirações que se colocam acima do ordenamento jurídico.

Nas palavras do cientista político senegalês Pierre Sané(2001, p. A3):

O ciclo de violência que atinge a sociedade brasileira se forta-lece com a ausência de reações adequadas à cultura de bru-talidade e impunidade na qual operam os agentes do Estado.Esse círculo vicioso nunca será rompido sem uma reforma pro-funda em todo o sistema criminal. O fim das violações gravesdos direitos humanos no Brasil só será alcançado quando osresponsáveis por esses crimes terríveis souberem que nãoestão acima da lei. Sem um compromisso autêntico de pôr fimà impunidade e conferir substância aos muitos mecanismosde proteção aos direitos humanos que o Brasil possui nopapel, a retórica de hoje apenas abre caminho para mais vio-lações dos direitos humanos. Um dos desafios cruciais donovo Brasil é mostrar que as preocupações de ordem públicapodem ser resolvidas com eficácia, ao mesmo tempo em que

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se garantem os direitos humanos fundamentais de todos. Éuma lição que o Brasil precisa aprender com a sua história.

Sendo a tortura uma das mais graves violações dos direitoshumanos, sua prática sistemática representa um obstáculo impor-tante à consolidação da democracia. A impunidade também impedeo surgimento de uma cultura de respeito aos direitos humanos. Eli-miná-las é uma das condições essenciais para a prevalência do sis-tema democrático, dos direitos humanos e para o desenvolvimentode uma autêntica cultura de paz.

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Flávio Cardoso Pereira*

A INVESTIGAÇÃO DO TERRORISMO INTERNACIONALE O USO DA TORTURA

RESEARCH OF INTERNATIONAL TERRORISM AND THE USE OF TORTURE

LA INVESTIGACIÓN DEL TERRORISMO INTERNACIONALY EL USO DE LA TORTURA

Resumo:

O terrorismo pode ser considerado contemporaneamente como

uma das ameaças mais graves à paz e à tranquilidade social. Atra-

vés da imposição do medo e do uso de uma violência diferenciada,

busca-se a obtenção de interesses políticos, religiosos ou ideoló-

gicos, massacrando-se os direitos e as garantias fundamentais dos

cidadãos e abalando o próprio conceito do Estado Constitucional

de Direito. A questão que surge atualmente diz respeito à possibi-

lidade, em caráter de exceção, do uso da tortura contra os terroris-

tas, como forma de obtenção de informações que possam evitar

mortes de inocentes. A dúvida: seria possível torturar um terrorista

alegando estar amparado por uma causa excludente de ilicitude?

Abstract:

Terrorism can be considered simultaneously as one of the most

serious threats to peace and social tranquility. Through the im-

position of fear and use of a differentiated violence, seeking to

achieve political, religious or ideological interests, massacring

the rights and guarantees of the citizens and undermining the

concept of the Rule of Law. The question that nowadays arises

concerns the possibility, by exception, of using torture against

terrorists as a means of obtaining information that could prevent

* Pós-graduado em Direito Penal pela USAL - Espanha. Doutorando em Direito Pro-cessual Penal pela Universidade de Salamanca - Espanha. Especialista em Com-bate ao crime organizado, terrorismo e corrupção pela Universidade de Salamanca- Espanha. Professor convidado da Universidade de Salamanca/Espanha, da UFBAe LFG. Coordenador da ABPCP - GO. Promotor de justiça do Estado de Goiás.

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deaths of innocents. The question: Is it worth torturing a terrorist

claiming to be backed by an exclusive cause of illegality?

Resumen:

El terrorismo puede ser considerado contemporáneamente como

una de las amenazas más graves a la paz y a la tranquilidad so-

cial. A través de la imposición del miedo y del uso de una violencia

diferenciada, búscase la obtención de intereses políticos, religio-

sos o ideológicos, masacrándose los derechos y las garantías fun-

damentales de los ciudadanos y poniendo en riesgo el propio

concepto de Estado Constitucional de Derecho. La cuestión que

surge actúalmente dice respecto a la posibilidad, en carácter de

excepción, del uso de la tortura contra los terroristas, como forma

de obtención de informaciones que puedan evitar la muerte de

inocentes. La duda: ¿Es posible torturar un terrorista aduciendo

estar actuando bajo la protección de una justificación legal?

Palavras-chaves:

Terrorismo internacional, financiamento, risco, perigo, tortura.

Keywords:

International terrorism, financing, risk, danger, torture.

Palabras clave:

Terrorismo internacional, financiación, riesgo, peligro, tortura.

O FENÔMENO DO TERRORISMO INTERNACIONAL

O terrorismo é objeto de abundantes estudos não somentedo ponto de vista penal, bem como das ciências políticas, da so-ciologia, da filosofia e de tantas outras disciplinas. A razão consisteno fato de que a conduta terrorista não se circunscreve ao objetoimediato de seu ataque, transcendendo ao mesmo, vez que sua fi-nalidade, em realidade, consiste em afetar e atingir ao resto da so-ciedade ou a uma parte determinada dessa, com a finalidade

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1 Para um estudo profundo do tema, vid. Alcaíde Fernández (2000); Bueno Arús(2009); Campo (1984); Carrasco Jiménez (2009); Ebile Nsefum (1985); HinojosaMartínez (2008); López Calera (2002, p. 51 e ss.); López Garrido (1987); OlásoloAlonso e Pérez Cepeda (2008); Oliveros (1988); Townshend (2002); Wilkinson (1976).

explicita de impor um determinado interesse ou desejo.A matéria-prima do terrorismo é a radicalização dos conflitos,

e seu resultado final sempre é representado pelo medo. De outra parte,as motivações para a prática de um ato terrorista são variadas, o que,porém, não modifica suas características, que são sempre as mesmas.

Um ato terrorista pressupõe, em primeiro lugar, um ato deli-tivo contrário ao ordenamento jurídico. Em segundo, esse ato não sesatisfaz com o mal causado à vítima, mas sim, por suas característi-cas, busca provocar um razoável temor de ser vítima do mesmo tipode atos a um determinado grupo social ou segmento da população.

Por fim, importante salientar que o ato terrorista busca,por si só, coagir a livre vontade individual, de modo a obter força-damente, do grupo social ou de suas autoridades, o reconheci-mento ou a satisfação de seus particulares interesses ou desejos.

Após este sucinto intróito, cabe agora indagar: o que vema ser o terrorismo? E ainda: conhece o Brasil o terrorismo comoforma de delinquência organizada?

Costuma-se afirmar que a terminologia “terrorismo” apa-rece na história durante a Revolução Francesa, em ocasião do Co-mitê de Saúde Pública (Robespierre e Saint Just), nos anos 1791a 1794, e foi utilizado em trabalhos científicos pela primeira vezpor Gunzburg, em Bruxelas, na Bélgica, no ano de 1930.

O mais curioso é que resulta complexa a tarefa de se en-contrar um conceito unívoco e definitivo para o fenômeno delitivodenominado “terrorismo”1.

Em nossa opinião, se poderia conceituar um ato terroristaafirmando consistir o mesmo em uma negociação dos direitos funda-mentais através da utilização da violência como meio de terror porparte de estruturas organizadas que apresentam, em regra, nítidosfins políticos. Com isso queremos dizer que, embora o terrorismo secaracterize por sua finalidade política, nem toda violência políticapode ser considerada como um ato de terrorismo. Esse fenômeno queamedronta a sociedade contemporânea ataca frontalmente os direitoshumanos fundamentais, utilizando-se de métodos que se distanciam

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2 Tal conclusão já exclui, de antemão, os ataques cotidianos ocorridos em paísesque se encontram em meio a uma guerra civil, como o exemplo de alguns paí-ses africanos, nos quais o elemento democracia já não mais pode ser obser-vado. Em tal situação de total descontrole, ao nosso modo de ver, não setrataria puramente de atos terroristas, mas sim de um estado de beligerânciadesprovido de qualquer objetivo coordenado e fundado em uma meta política.3 Cite-se o exemplo da atuação do ETA, que se apresenta como um grupo quepratica o terrorismo como meio de alcançar a independência da região do PaísBasco (Euskal Herria), de Espanha e França. O ETA possui ideologia separa-tista/independentista marxista-leninista e revolucionária.

dos canais de contato e participação democrática. Nesse sentido, oterrorismo, enquanto atentado à ordem social, em realidade somentepoderá ser percebido em uma sociedade livre e democrática, ou seja,onde se visualiza um Estado Constitucional de direito2.

Também seria correto conceituar esse fenômeno delitivocomo sendo o emprego calculado da ameaça da violência que exer-cem indivíduos, grupos nacionalistas e agentes estatais para obten-ção de objetivos políticos, sociais e econômicos, violando a lei coma intenção de criar um medo insuperável em uma área eleita comoobjetivo que transcende às vítimas atacadas ou ameaçadas.

Em opinião de Portilla Contreras (2001, p. 911), entende-se por terrorismo o método ou a teoria metodológica mediante aqual uma organização ou um partido político tenta conseguir seusobjetivos recorrendo de modo preferencial à violência ou, em lingua-gem figurada, o terrorismo equivale à sucessão de atos de violênciaexecutados para infundir terror (GONZÁLEZ CUSSAC, 2006, p. 71).

Como características marcantes dessa espécie de imposi-ção violenta e desmesurada de objetivos de um determinado grupoou segmento político pode-se citar: 1. O terrorismo apresenta, nor-malmente, uma finalidade ligada ao aspecto político, seja disfuncio-nal ou funcional ao sistema, isto é, para provocar a desestabilizaçãodo regime político imperante ou para promover sua substituição poroutro3, seja como instrumento complementário das políticas gover-namentais de controle social, ainda que através do emprego demeios ilegais; 2. O terrorismo se baseia no uso da violência ou deameaça e se dirige definitivamente a um destinatário coletivo, re-presentado pela sociedade ou pelo Estado; 3. O terrorismo adotameios táticos e estratégicos que denotam a característica de estra-tégia predominante ou o método tendencialmente exclusivo.

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Assim, a violência não é isolada, senão sistemática, e issoé o que permite, no plano jurídico, aludir ao término “organizaçãoterrorista”. Em suma, o terrorismo ataca frontalmente os direitoshumanos, empregando meios violentos que não somente são ile-gais, mas também capazes de afetar a vida, a integridade física, asaúde e a liberdade de um número indefinido de pessoas.

As organizações terroristas perseguem objetivos políticosque são simplesmente inalcançáveis de maneira direta e imediatapor meio do emprego exclusivo do terrorismo, seja qual for a rea-ção do Estado agredido. Agora vejamos: isso não exclui que essesobjetivos possam ser alcançados de forma mediata, onde as açõesterroristas servem tão somente para desencadear um processoque, mal ou bem, irá conduzir à consecução do objetivo proposto,ou ao menos favorecer seu alcance.

Importante destacar que, com o advento do século XXI,novas ameaças ganharam relevo no mosaico dos problemas quecolocam em risco a segurança dos povos, a estabilidade dos paísese a concentração de esforços em favor da paz mundial. O terro-rismo internacional, devido a seu poder de infiltração em diferentesregiões e a sua capacidade para gerar instabilidade na comunidadeinternacional, constitui uma das principais ameaças da atualidade.

A expansão do terrorismo internacional na última décadaestá diretamente relacionada ao crescimento de sua vertente islâ-mica, que, por sua vez, ampliou-se na esteira da disseminação deinterpretações radicais do islamismo, que se opõem a qualquertipo de intervenção no universo dos valores muçulmanos e pregamo uso da violência, da guerra santa (jihad), como forma de defen-der, expandir e manter a comunidade islâmica mundial.

Nesse aspecto, percebe-se que, nas organizações extre-mistas islâmicas, em especial do ramo sunita, a pessoa, para ser seulíder, deve ter conhecimento religioso aprofundado, diferentementedas xiitas, que aceitam somente líderes que tenham descendênciadireta do Profeta Maomé, como a Al-Qaeda e os grupos a ela coli-gados, que utilizam o conceito radical de jihad para defender a par-ticipação ativa em enfrentamentos em que uma das partes se definacomo islâmica e se oponha a outra não islâmica ou ocidentalizante4.

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4 Vid., para mais detalhes, Resende Paniago (2007, p. 35 e ss.).

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5 Nesse sentido, “As tríplices fronteiras Brasil-Colômbia-Venezuela e Brasil-Co-lômbia-Peru são motivo de especial atenção pelos constantes deslocamentosdo grupo conhecido como Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia(FARC) que poderão utilizar-se de território brasileiro (região da floresta Ama-zônica) para a montagem de bases de guerrilha contra o Exército Colombianoe Forças dos EUA envolvidas no Plano Colômbia. No caso da tríplice fronteiraBrasil-Argentina-Paraguai cujo ponto de intersecção é a cidade de Foz doIguaçu no Paraná, constitui-se num elemento de preocupação de autoridadesbrasileiras pois lá residem aproximadamente 15 mil imigrantes de origem árabe-palestina e dentre estes, não está descartada a hipótese da presença de mili-tantes e simpatizantes de organizações extremistas islâmicas e de grupospalestinos contrários aos acordos de paz israel-palestina” (WOLOSZYN, s/d).

Prova contundente dessa assertiva é que podemos afirmarque a data de 11 de setembro de 2001 mostrou ao mundo comoum grupo de terroristas pode apoderar-se de um elemento da vidacomum, como é o caso de um avião comercial de passageiros, econvertê-lo em uma arma de destruição massiva, que pode causarconsequências incalculáveis em todas as partes do mundo. Em pa-lavras de Ulrich Beck (2003), sociólogo alemão, após os atentadosàs torres gêmeas e ao pentágono visualizou-se uma “instituciona-lização da insegurança”. Por isso a afirmação corrente e já conso-lidada do citado autor no sentido de que vivemos nos dias atuaisem uma verdadeira “sociedade do risco” (BECK, 2008).

Respeito à questão da atuação de grupos terroristas no ter-ritório brasileiro, bastaria dizer que, embora não estejamos na linhade frente dessa espécie de delinquência organizada, não se podendovisualizar destacados atos de terrorismo em nossa história recente,valeria mencionar que é cediço que notícias de financiamento a essetipo de crime já foram levantadas pela mídia e pelas polícias frontei-riças, fato este que demonstra que nosso território encontra-se sendoutilizado como uma pequena célula para o esconderijo de terroristasfugitivos de outros países, bem como porta de passagem de capitaisilícitos envolvidos no complexo processo de lavagem de dinheiro eoutros bens pertencentes a grupos criminosos5.

A preocupação que surge aos nossos olhos direciona-seà proximidade de grandes eventos no Brasil, a exemplo dos próxi-mos jogos olímpicos em 2016 e da Copa do Mundo de Futebol em2014. Embora se tenha ciência da preocupação do governo brasi-leiro e das organizações promotoras de tais eventos, espera-se um

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trabalho antecedente e logisticamente correto por parte das polí-cias brasileiras, de modo muito especial da valorosa Polícia Fede-ral, a qual possui, em seu quadro, profissionais capacitados aoenfrentamento do terrorismo.

A vinda de autoridades pertencentes a vários países e o fatode que algumas delegações estariam na mira de grupos terroristasfará com que o aparato policial seja estruturado e adequadamenteajustado à ameaça terrorista, vez que não se pode perder de vista otrágico e sempre lembrado ataque ocorrido nos Jogos Olímpicos deVerão em Munique, na Alemanha, no ano de 1972, tendo sido mor-tos, naquela data, onze membros da equipe olímpica de Israel.

O Brasil, segundo posicionamento do Ministério das Re-lações Exteriores, “repudia qualquer manifestação de violência po-lítica, principalmente a de grupos que se utilizam do terrorismopara impor ideologias e desestabilizar governos”. Nessa linha, opaís aderiu aos doze acordos internacionais da ONU que tratamdo tema e vem cumprindo as recomendações do Grupo de AçãoFinanceira Internacional Contra a Lavagem de Dinheiro (GAFI).

Participa ativamente, ainda, do Comitê Interamericanocontra o Terrorismo (CICTE), criado em 1999 para coordenar atroca de informações e discussão de estratégias contra terroristas(vide a Resolução n. 1373/01 da ONU, que prevê o intercâmbiode informações operacionais e a cooperação por intermédio deacordos bilaterais e multilaterais). Foi, também, um dos primeirospaíses a assinar, em 2002, a Resolução 1840 - Convenção Inte-ramericana Contra o Terrorismo - aprovada pela assembleia-geralda Organização dos Estados Americanos (OEA), que visa prevenir,combater e erradicar atividades terroristas.

Embora não seja a tipificação legal do terrorismo objeto dopresente estudo, interessante aduzir que tal atividade ilícita, ao con-trário do que ocorre na legislação espanhola (artigos 571 e 572 do Có-digo Penal), não se encontra claramente e taxativamente prevista nalei brasileira, salvo as disposições contidas na Lei n. 7.170/83 (Lei deSegurança Nacional) e na Lei n. 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos).

A nosso modo de ver, a imprecisão do termo “terrorismo”e a amplitude dessa expressão nas citadas leis brasileiras contrariaa regra da objetividade jurídica, que exige a definição clara e pre-cisa das ações constituidoras dos tipos penais.

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Assim, ausente se encontra uma definição do delito de ter-rorismo no âmbito do direito brasileiro, fato este que impossibilitasua punição, a salvo por crimes correlatos como a lavagem de ca-pitais, formação de quadrilha, etc.

BREVES OBSERVAÇÕES RELATIVAS AO FINANCIAMENTODO TERRORISMO

Uma constatação inicial: o terrorismo somente sobreviveao longo dos anos se apresentar uma sólida base financeira quepossa lhe assegurar uma estrutura de modus operandi apta à con-secução de seus objetivos. Dito em outros términos, se quer dizerque a prática da disseminação do medo através de grandes atospraticados por grupos terroristas apresenta um alto custo finan-ceiro, vez que, em sua grande maioria, dependerá de um mínimode organização logística.

O Direito internacional contemporâneo proíbe com clarezaaos Estados a utilização do terrorismo contra outros Estados em qual-quer circunstância. A resolução número 2.625 (XXV), da AssembleiaGeral da ONU, de 24 de outubro de 1970, relaciona essa obrigaçãoa dois princípios estruturais do direito internacional: o da proibição daameaça ou do uso da força e o da não intervenção em assuntos in-ternos de outro Estado (HINOJOSA MARTÍNEZ, 2008, p. 34).

Surge, pois, diante da impossibilidade dos países em uti-lizar-se desse expediente irracional e delitivo, a questão do finan-ciamento do terrorismo como forma de manutenção dasorganizações criminosas em plena atividade, já que, para pode-rem buscar seus objetivos de obtenção de fins escusos, haverá ogrupo de delinquentes de receber ajuda financeira para a conse-cução das suas metas.

Também importante destacar que a atividade terrorista sefinancia mediante atividades tanto legítimas como ilegítimas.

Existe uma grande variedade de atividades que contribuempara a manutenção econômica do terrorismo. A mais destacada eusual consiste no tráfico de drogas, porém, não se pode deixar de

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citar outras atividades, como o tráfico de pessoas, a falsificação deprodutos, os sequestros, a extorsão, a lavagem de capitais, etc.

Todavia, merece relevo mencionar que o vínculo entrea estruturação econômica do terrorismo e o comércio ilegal dedrogas acabou por apresentar, nos últimos anos, de forma exa-cerbada, um aumento quantitativo nunca antes visto. A razãose deve, principalmente, à expulsão dos talibãs do Afeganistão,pois muitos deles se reagruparam no Paquistão. Assim, o tráficode drogas ressurgiu em grande escala no norte do Afeganistão,com o aumento da produção dos cultivos. O tráfico se desen-volve desde o Paquistão, por meio de simpatizantes do regimetalibã, e a droga chega até alguns territórios da antiga UniãoSoviética, e, desde a Golden Crescent, até as rotas tradicionais,espalhando-se pelo mundo. Como consequência desse pro-cesso vicioso, os fundos recebidos do tráfico de entorpecentessão utilizados como modo de facilitação, estruturação e apoioàs atividades terroristas.

Mas o que vem a ser o financiamento do terrorismo?Trata-se de ato que, direta ou indiretamente recolha, for-

neça, receba, administre, custodie ou guarde fundos, bens ou recur-sos, ou que realize outro ato que promova, organize, apoie,mantenha, financie ou sustente economicamente a grupos ideologi-camente organizados e contrários à lei, ou a seus próprios integran-tes, sejam nacionais ou estrangeiros, que estejam predispostos ao usoda violência como forma de obtenção de um objetivo normalmente po-liticamente estratégico. Ademais, vale destacar que os recursos para ofinanciamento de atos terroristas não advém tão somente do narcotrá-fico, mas, como já visto, também do tráfico de imigrantes, da extorsão,da lavagem de capitais, da corrupção estatal e privada, etc.

Nessa direção e sem medo de errar, pode-se afirmar quea reciclagem de bens ilícitos e o terrorismo são delitos sem fron-teiras6 e que caminham juntos, tendo em vista a realidade atualdas grandes organizações criminosas como, por exemplo, as gran-des máfias, as quais necessitam de recursos financeiros “limpos”

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6 Em palavras de Martínez Burgos e Petroselli (2006), “El terrorismo constituyeun fenómeno en constante crecimiento que no respeta ningún tipo de fronterasgeográficas, ideológicas o culturales”.

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7 Trata-se de um organismo de natureza intergovernamental e multidisciplinarcriado em 1989 com a finalidade de desenvolver uma estratégia global de pre-venção e de combate a lavagem de capitais e, desde outubro de 2001, tambémcontra o financiamento do terrorismo, sendo reconhecido a nível internacionalcomo a entidade que define os padrões nessa matéria.8 Com mais detalhes sobre as recomendações do GAFI e GAFISUD, vid:http://www.felaban.com/lavado/cap2/recomendaciones_espec_gafi_gafisud.pdf.

e “desembaraçados” para que suas atividades e objetivos possamser alcançados com mais rapidez e eficiência.

Em consequência, é pertinente a pergunta acerca dascausas da ineficácia perceptível nos dias atuais, da luta contra ofinanciamento do terrorismo internacional. A nosso modo de ver,dois seriam os elementos fundamentais que poderiam ajudar aresponder a essa indagação. Por uma parte, a ausência de imple-mentação de instrumentos jurídicos aptos a fazerem frente a estasituação e, em segundo, a falta de vontade política de se buscaremsoluções para tal problemática.

Porém, não se pode esquecer que algumas ações vêmsendo postas em prática para se amenizar o crescimento do finan-ciamento do terrorismo, a exemplo da atuação do GAFI (Grupo deAção Financeira Internacional)7, que editou algumas recomenda-ções a serem empreendidas com vistas à redução dos riscos dodesvio de recursos para a manutenção e a estruturação das açõesde grupos organizados de terroristas.

Dentre as mais significativas, destacam-se a necessidadede ratificação e execução das recomendações e instrumentos de-lineados pelas Nações Unidas; a tipificação penal do terrorismo eda lavagem de capitais correlata; o congelamento e confisco debens e rendimentos oriundos de atividades ligadas ao terrorismo;a obrigação de informação sobre transações suspeitas relativasao terrorismo, especialmente no tocante às instituições bancárias;e a cooperação internacional entre os países8.

Em síntese, a repressão do financiamento do terrorismo éuma meta ambiciosa dos Estados, e seu êxito dependerá da capa-cidade destes em dispor de leis vigorosas e instrumentos de apli-cação apropriados ao enfraquecimento do poder financeiro dosgrupos terroristas.

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A TORTURA COMO FORMA DE OBTENÇÃO DE PROVAS EINFORMAÇÕES EM MATÉRIA DE TERRORISMO

a) Tortura e direitos fundamentais

Até o presente momento, resta clara a assertiva de que o ter-rorismo internacional consiste em problema grave que afeta as socie-dades modernas, desestabilizando, especialmente, a democracia e apaz dos Estados, infligindo temor e histeria quando de sua atuação.

Ademais, o financiamento do terrorismo é algo que pre-cisa sofrer um duro golpe, vez que mantém viva a prática dessaespécie de criminalidade.

Assim, não se discute, nos dias atuais, que o terrorismoconstitui um dos problemas mais graves que aflige a sociedadecontemporânea, mas também é certo que, em matéria de legisla-ção antiterrorista, fica patenteada a demonstração de que o Estadodemocrático demonstra mais claramente uma tendência autoritáriaque lesiona gravemente a eficácia das garantias individuais. Note-se, por exemplo, a patriot act americana e outras legislações eu-ropeias editadas após os ataques terroristas ocorridos em 11 desetembro de 2001 nos Estados Unidos da América.

Após tal ataque contra as Torres Gêmeas e o Pentágono,diante do surgimento de várias legislações de emergência, desta-cou-se inclusive o ressurgimento, através da doutrina de GuntherJakobs, na Alemanha, da tese de defesa de um “direito penal do ini-migo”, em contraposição a um direito penal do cidadão, no tocanteao combate contra a criminalidade considerada de mais gravidade.

Tal sustentação dogmática, diga-se de passagem, repelidaenergicamente pela maioritária doutrina penal, destaca-se pela de-negação dos direitos e das garantias fundamentais daquelas pes-soas tidas como “inimigas” (delinquentes organizados, terroristas,abusadores sexuais). Ou seja, tratando-se de uma verdadeira guerra,esses não cidadãos devem ser tratados como inimigos e, portanto,“exterminados” como verdadeiras fontes de perigo ao Estado9.

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9 Para um completo estudo, vide, dentre outros trabalhos, Aponte Cardona (2006);Del Valle (2001); Donini (2006); Faraldo Cabana (2005); Schünemann (2006).

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Iniciando uma perfunctória introdução ao tema do em-prego da tortura na luta contra o terrorismo, se pode afirmar, semmedo, que essa espécie de prática do terror está em geral proi-bida. A causa dessa proibição, segundo nos ensina Luís Greco(2007), consiste no atentado contra a dignidade humana.

De outra parte, o rigoroso respeito das garantias penais eprocessuais e, em especial, das garantias contra a tortura, não so-mente representa um valor em si mesmo, mais que isso, se referea um princípio de civismo jurídico na tutela da dignidade e dos di-reitos fundamentais das pessoas, assim como dos lineamentosbásicos da democracia e do Estado Constitucional de Direito.

Trata-se também de um fator de eficácia do Direito penale da própria luta contra a criminalidade, incluída, nesse contexto, abatalha contra o terrorismo internacional. A força insubstituível dodireito, em efeito, não consiste na força bruta e nem mesmo naforça militar como aquela que se manifesta na tortura ou nos atosde guerra. A nosso ver, reside, muito ao contrário, na assimetriaentre o direito e o crime, entre a resposta institucional e o terrorismo.

Assim, somente essa assimetria seria capaz de deslegiti-mar o terrorismo como crime, de neutralizá-lo politicamente, deisolar esse mal e de debilitá-lo social e moralmente.

Em palavras de Ferrajoli (2008), a batalha contra a tortura,talvez a mais infame das violências institucionais, não é somenteuma batalha em defesa da democracia e dos direitos humanos. Étambém uma batalha da razão em defesa das garantias mesmasda segurança, as quais dependem hoje, mais do que nunca, dacredibilidade moral antes que jurídica, dos denominados “valoresdo ocidente”.

Feitas essas observações preliminares, eis que nos cabe,à continuação, destrinchar a intrigante dúvida surgida no âmbitodoutrinário internacional: seria justificável e razoável a aceitação datortura em caso de ponderação de interesses, em situações de ne-cessidade extrema? Dito de outro modo, excepcionalmente seriacorreta a tortura de um suposto terrorista como forma de obtençãode informações que poderiam salvar a várias pessoas inocentes?

b) Os casos das ticking time bombs e Daschner

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Por desgraça, o tema da tortura voltou a estar “na moda”.Ainda que se trate de uma medida que foi considerada legítima nopassado para a luta contra o terrorismo, tal questão voltou à tonaapós os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.Em concreto, seu debate atualmente é mais intenso nos EUA, onde,após tais atos de terrorismo cometidos por membros da Al-Qaeda,instalou-se a já conhecida “guerra contra o terror”10.

Como ato consequente a esta discussão sobre o empregoda tortura em situações excepcionais, eis que se desperta recente-mente, na Europa, uma das discussões mais acirradas no âmbitopenal, ou seja, a partir dos polêmicos casos de um sequestro na Ale-manha (caso Daschner) e da bomba do tempo (ticking bomb) em Is-rael, questiona-se a respeito da proibição absoluta da tortura noscasos de situações extremas em que seu uso poderia ser o únicomeio para obter-se a informação necessária para prevenir lesõesmais graves a um número grande de pessoas inocentes.

Tentando oferecer uma análise honesta ao tema, vale res-saltar inicialmente que, como já visto, o status das pessoas acu-sadas como delinquentes de alta gravidade veio a deteriorar-se deforma vertiginosa desde os atos terroristas de 11 de setembro de2001. Uma vez etiquetados como “terroristas”, já não mais foramtratados como cidadãos comuns portadores de direitos, senãocomo inimigos que deveriam ser combatidos por todos os meios,inclusive por aqueles tidos como ilegais11.

Via de consequência instalou-se o absurdo enclausura-mento dos suspeitos de terrorismo na base de Guantánamo12 e,

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10 Chegou-se ao absurdo de presenciarmos a confissão da CIA, agência de in-teligência do governo norte-americano, sobre a realização de voos secretos paraa Europa, levando terroristas presos em Guantánamo e que se negavam a coo-perar com as autoridades americanas. Para um estudo completo sobre o assunto,vid. Costa Pinto (2008). A nosso ver, a CIA não poderia ter utilizado o território eu-ropeu para operações que violaram os direitos humanos e a lei internacional. Teriamsido também vergonhosas as omissões perpetradas por alguns governos de paíseseuropeus ao permitirem escalas desses voos em seus territorios, mesmo sabendoque se tratava de transporte ilegal de presos por atos de terrorismo.11 Vid., com mais detalhes, Ambos (2007, p. 81 e ss.).12 No intuito de compreender a total desqualificação daquelas pessoas presas nessabase naval, vid. Smith (2007) e Deutschmann e Ricardo (2008). Todavia, importanteesclarecer que, após a assunção de Barak Obama junto ao governo norte-americano,iniciou-se um projeto de aceleração de retirada daqueles presos que se encontravam

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ainda, na prisão iraquiana de Abu Ghraib. Ditas pessoas ficaramdurante anos sem contato com suas famílias e pior, sem direitoa um julgamento. Todavia, vale destacar que, com a assunçãodo novo presidente americano Barak Obama, iniciou-se um pro-cesso de humanização sobre aqueles presos, tendo sido algunsjá transferidos e submetidos a julgamento.

Chegado a esse ponto, cabe-nos, nesse instante, teceralgumas considerações acerca dos já citados leading cases (casosDaschner e Ticking Bomb).

O primeiro episódio a despertar o renascer da discussãodo emprego da tortura contra os delinquentes diz respeito ao casoconhecido como “Daschner”.

No mês de setembro do ano de 2002, Magnus Gaefgen,estudante de direito na Alemanha, sequestrou um garoto de onzeanos de idade, filho de um grande executivo do setor bancário deFrankfurt. Após, exigiu o pagamento da quantia de um milhão deeuros à título de resgate como pressuposto para a libertação dorefém. Gaefgen acabou sendo detido no exato momento em que re-colhia o dinheiro do resgate no local combinado com a família do menor.

Após um dia de interrogatórios sem êxito, o vice-chefe dapolícia de Frankfurt, Wolfgang Daschner, oficial responsável pelacondução das investigações, ordenou a um de seus subordinadosque iniciasse uma série de ameaças ao sequestrador Gaefgen,com a finalidade de obter informações concernentes à localizaçãodo cativeiro do menor.

Daschner chegou inclusive a ordenar a um de seus su-bordinados que provocasse dor no sequestrador, sem a realizaçãode lesões, desde que houvesse prévio e devido acompanhamentomédico, vez que considerou que era a única forma de encontrar avítima e salvar sua vida.

Após a adoção de tais medidas de ameaça de tortura, osequestrador decidiu confessar que havia matado o garoto e mos-trou a polícia onde havia enterrado o corpo.

Em sentença de 09 de abril de 2003, a Corte de Frankfurtcondenou Gaefgen à prisão perpétua por sequestro e assassinato.Mais que isso, Daschner e seu oficial subordinado também resta-ram condenados, respectivamente, por ordenar a um subordinadoque cometesse um crime e coação.

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Em grau de recurso, o Tribunal Superior Alemão, invo-cando a sui generis tese da “verwarnung mit strafvorbehalt” (§ 59StGB), que literalmente poderia ser traduzida como “advertênciacom reserva de pena”, absteve-se de impor uma pena aos dois po-liciais, considerando que a avaliação integral da conduta daquelesacusados e suas respectivas personalidades demonstravam quea imposição de sanção não se fazia necessária13.

Em resumo, implicitamente, a justiça alemã deixou trans-parecer ser correto o emprego da tortura em situações extremase no intuito de salvar a vida de vítimas inocentes.

De outra ponta, outra hipótese que despertou interesse foidenominada como “ticking time bomb scenario”.

Em qualquer caso sobre a justificação da tortura, o casoda ticking time bomb adquire sempre um papel protagonista14. Talsituação consiste naquilo que é chamado, pela doutrina, em tra-dução literal ao português, de “cenário de uma bomba de relojoa-ria”. Refere-se, portanto, a casos em que é detido um terroristaque sabe onde está escondida uma bomba controlada por um me-canismo automático e que poderá explodir a qualquer momento,com sérios riscos para a população.

Em Israel, durante anos, e especialmente a partir do in-forme da Comissão de Landau de 1987, se praticaram, nos inter-rogatórios envolvendo suspeitos de atos de terrorismo, o queeufemisticamente se denominou de “pressão física moderada”.

Tal método abarcava condutas como o shaking (sacudircom força e reiteradamente a pessoa detida, fazendo com que suacabeça balançasse rapidamente, vindo a provocar sérios danos ce-rebrais) e, ainda, permanecer durante um longo período de tempona posição chamada de shabach, ou seja, sentar em uma pequenacadeira, com o assento inclinado para a frente, com as mãos atadasàs costas e com um saco cobrindo a cabeça do preso até os ombrose ouvindo música em alto volume; e, por fim, a frog crouch, ou seja,

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em Guantánamo, destinando-os a outros locais para posterior julgamento.13 O que mais chama a atenção nesse episódio é que restou clara a distinçãoentre a tortura preventiva (administrativa), com vista à obtenção de informaçõespara prevenir a comissão de outros delitos; e a tortura repressiva, ou seja,aquela encaminhada à obtenção de provas para o processo penal.14 Para a obtenção de mais informações sobre o tema, vid. De la Cuesta Arza-mendi (1989, p. 702 e ss.).

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a posição de permanecer sobre as pontas dos pés por um períodolongo de tempo, com a privação prolongada do tempo de sono, etc.

Vale destacar que, em 1999, o Tribunal Supremo de Israelprolatou uma sentença memorável15, na qual, se utilizando de umaexcelente fundamentação jurídica, foram declaradas ilegais taispráticas ocorridas nos interrogatórios de pessoas suspeitas de ter-rorismo. A base de tal decisão foi a de que não seriam permitidastais condutas em um Estado de Direito.

Porém, eis que surge uma dúvida importante em tal julga-mento, vez que, no final da sentença, permanece um resquício pe-rigoso: ainda que não se pudesse legislar autorizando a tortura,ficou dito que nada impede que em algum caso excepcional sepossa, ex post, invocar um estado de necessidade para excluir aresponsabilidade por uma tortura praticada em situações sui ge-

neris, como naquela que configura, por exemplo, a denominadaticking time bomb scenario, na qual a única forma de obter infor-mações para desativar uma bomba que vai explodir em uma zonamovimentada por pessoas seria torturando a pessoa suspeita deter ativado tal artefato (MOLINA FERNÁNDEZ, 2010, p. 105-106).

Percebe-se que tal conclusão não é, a priori, absurda.Imaginemos que uma proibição absoluta da tortura nesses casos,apesar de humanitariamente correta, poderia resultar dolorosa emsituações de necessidade.

Como nos lembra Greco (2007), poderia se pensar nopior, ou seja, uma cidade inteira, como Munique, Nova York, Bar-celona ou Rio de Janeiro, irá desaparecer do mapa mundi senãose conseguir a confissão do terrorista responsável pela colocaçãoda bomba, que acaba de ser capturado pela polícia.

Trazendo a discussão ao nosso cotidiano, imagine-se a se-guinte situação: um grupo de membros do Ministério Público, nota-damente aqueles com atuação na área criminal no combate àsorganizações criminosas organizadas, empreende um voo de SãoPaulo até Porto Alegre, a fim de participarem de um evento sobre“técnicas de inteligência policial”. Minutos após o avião decolar, sãodetidos no aeroporto dois homens suspeitos que portavam uma lista

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15, Vid., Public Commitee Against Torture v. Israel, de 06 de setembro de 1999.

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com os nomes dessas autoridades. Ao serem indagados, um delesafirma que um grupo criminoso estaria insatisfeito com o trabalho doMinistério Público, que estaria apreendendo máquinas de caça-níqueise prejudicando as fontes financeiras daquele clã, e que teria sido co-locada uma bomba no avião visando tirar a vida dos promotores e,eventualmente, de outros passageiros, e que somente eles saberiama localização correta do artefato e o momento ajustado para a explo-são. Eis que surge a polêmica: poderia ou deveria a polícia exerceratos de tortura física ou mental sobre os dois suspeitos com o obje-tivo de descobrir mais informações sobre o ato terrorista ou não? De-veria ser evitada a morte dos promotores e dos demais viajantes?

Surgiria a dúvida: mantém-se a dignidade humana dos su-postos terroristas, livrando-os de toda sorte de coações e torturas,ou obtêm-se forçadamente suas confissões mediante o empregode atos de tortura física ou mental, como forma de se descobrireminformações que possam salvar a vida de inocentes?

Só a título de amor à discussão, vale relembrar o que ocorreuno ano de 1978, quando Aldo Moro, antigo primeiro-ministro da Itália,foi sequestrado por um grupo terrorista que ameaçava matá-lo.

Um dos supostos autores do sequestro foi detido e sequestionou, à época, sobre a possibilidade de torturá-lo com vistasà obtenção de informações sobre Aldo Moro.

Como relatado nos documentos do caso, um investigadordo serviço de inteligência italiano propôs ao general Carlo dellaChiesa que, acaso fosse torturado o suspeito, possivelmente po-deriam ser obtidas informações sobre a vida do sequestrado.

Todavia, citado general italiano teria repelido tal sugestão,argumentando que a Itália poderia sobreviver à perda de AldoMoro, mas o país não poderia sobreviver à introdução e aceitaçãoda tortura. Finalmente, sem ter ocorrido a tortura ao sequestrador,Aldo Moro foi assassinado pelos terroristas16.

Deixa-se a pergunta: poderiam ter sido evitadas as mortesde Aldo Moro e tantas outras vítimas se acaso tivessem sido osseus respectivos sequestradores coagidos, através de atos de tor-tura, a confessar os locais de cativeiro?

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16 Para mais detalhes, vid. Llobet Anglí (2010).

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c) O uso da tortura como forma de causa de justificação penal

Quando se trata do tema referente à utilização de atos detortura como forma de se evitar a morte de pessoas inocentes, sur-gem, obrigatoriamente, dois temas relativos às causas de justifica-ção penal: a legítima defesa de terceiros e o estado de necessidade.

A primeira causa de exclusão da antijuridicidade refere-seao estado de necessidade justificante.

Através da expressão “estado de necessidade” se designam oscasos excepcionais em que a única forma que possui o Estado de salva-guardar um interesse maior ameaçado por um perigo grave e iminente é,de momento, autorizar ao cidadão a sacrificar outro bem de menor valor.

Desse modo, temos que, atualmente, a doutrina majoritá-ria (Zaffaroni, Jescheck, Mir Puig, Muñoz Conde) admite como fun-damento para o estado de necessidade justificante a preservaçãodo interesse predominante.

Dito de outro modo, em realidade, dois bens ou interessestutelados pelo Estado se encontram em conflito: o do necessitadoe o de um terceiro inocente. Um deles deverá prevalecer.

O grande dilema que se apresenta sobre o tema consisteno fato de que o estado de necessidade contém uma regra impres-cindível e perigosa, se acaso não interpretada de modo adequado.Graças a ela não se poderá produzir nunca o desatino de que secondene a alguém que tenha realizado algo que o próprio ordena-mento considera adequado, porque evitaria um mal maior. É umrecurso imprescindível para um sistema jurídico com conflitos ilimi-tados, porém, com disposições limitadas. Assim, permite dar umasolução adequada a ações tão intuitivamente corretas, como cau-sar danos a uma propriedade alheia para salvar a vida de alguém.

De outra parte, é uma regra que, a priori, parece autorizarações tão intuitivamente incorretas como extrair um rim de umapessoa sadia contra a sua vontade para transplantá-lo em outrapessoa que necessita desse órgão imperiosamente para salvarsua vida. Ou mais, torturar a um preso para obter uma confissãoque permita evitar um sangrento atentado terrorista17.

Com relação a esse último exemplo, deverá ser destacado

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17 Nesse sentido, vid. Molina Fernández (2005, p. 268-269).

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que determinado setor da doutrina estrangeira, notadamente anorte-americana (leia-se, Cohan, Ignatieff, Parry/White), bem comoo Tribunal Supremo de Israel, propõem a aplicação da excludentedo estado de necessidade àquelas hipóteses em que somenteseria possível evitar um ataque terrorista (catastrófico e iminente),utilizando-se da tortura, ou seja, naqueles casos relacionados coma teoria da ticking bomb.

Tal entendimento tem como fundamento o fato de que odano causado pela morte de várias (podem ser centenas ou mi-lhares) pessoas inocentes seria muitíssimo superior ao dano pro-vocado pelo uso da tortura contra a suposta pessoa que contenhainformações que possam evitar o atentado terrorista.

Porém, a nosso modo de ver, a questão não se apresentade fácil resolução, partindo do pressuposto de que o estado de ne-cessidade não se dirige a “salvar o bem mais valioso”, senão visaresolver o conflito surgido com a menor perturbação possível dostatus quo, ou seja, das condições preexistentes na sociedadeantes da aparição daquele18.

Como conclusão lógica, seria possível afirmar que a apli-cação da excludente do estado de necessidade como forma dejustificativa para atos de tortura contra pessoas envolvidas comtramas terroristas não passa de uma falácia defendida por umaminoritária parte da doutrina penal, não sendo apta a ser conside-rada como dogmaticamente correta.

Nesse sentido, como acertadamente nos recorda MolinaFernández (2010, p. 109-110), seria necessário refinar o modoem que se realiza a ponderação de interesses no estado de ne-cessidade, mostrando que o que poderia ser considerado aparen-temente como um mal menor pode ser, em certas ocasiões, ummal extremamente maior quando se valora tudo que se estariaem jogo, e não somente os interesses mais conspícuos do con-flito. Essa situação se reflete sobremaneira no caso da tortura. Oargumento da “necessidade” foi invocado sistematicamente pelosque a praticam e os resultados sempre têm sido os mesmos.Basta citar o caso recente das torturas levadas a efeito por solda-dos norte-americanos dentro das prisões de Abu Ghraib ou em

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18 Esse inclusive é o posicionamento assumido por Silva Sánchez (1982, p. 665).

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Guantánamo para dar-se conta de que aquilo que em uma análisetosca do conflito pode parecer um mal menor seria em realidademuito superior ao evitado. Em síntese, ao debilitar de forma notó-ria a luta geral contra a tortura, esses atos provocaram efeitos no-civos muito superiores aos seguramente exíguos benefícios quese haja obtido com a confissão dos torturados.

Aceita a tese do estado de necessidade, poder-se-ia estarincentivando o uso desmesurado e abusivo dessa causa de justi-ficação legal, deixando que a tortura passasse a vigorar como maisum meio para obtenção de provas.

Afastada a possibilidade de aceitação da excludente doestado de necessidade, torna-se mais complexo o tema da proibi-ção absoluta da tortura. A razão é simples: resta a análise da ex-cludente legal da legítima defesa de terceiros, notadamente notocante aos casos em que a tortura possa ser utilizada como formade salvação de vidas de inúmeras vítimas inocentes.

Dentro do tema da legítima defesa, cabe recordar-se que oataque ou o uso da força devem estar dirigidos contra a mesma pes-soa que se defende ou contra um terceiro, ou seja, o que se defendedeverá defender-se a si mesmo ou a terceira pessoa e a defesa devedirigir-se contra o agressor ou contra seus interesses legais(AMBOS, 2009, p. 40).

Analisando a questão específica do uso da tortura comoforma de obter-se eficiência no combate ao terrorismo, percebe-seque não existem argumentos doutrinários sólidos e incontroversosque venham a demonstrar que a dignidade humana ou a integridademoral de uma pessoa seria um bem de maior relevância que a suaprópria vida. Assim, é usual, em uma hipótese de tentativa de homi-cídio, admitir-se ao agredido defender-se de um ataque injusto atra-vés do emprego da justificante legal da legítima defesa. E indaga-se:e no caso da tortura, a situação não seria a mesma? Não seria jus-tificável o ato de tortura como forma de atuação permeada pela le-gítima defesa de terceiros ou legítima defesa coletiva?

Em nossa opinião, embora o tema seja discutível e objeto deinúmeras posições dogmáticas, nos parece mais acertado partir dopressuposto de que as democracias limitam os poderes que os go-vernos podem justificadamente exercerem sobre os seres humanosque governam. Ocorre que essas limitações incluem uma proibição

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absoluta de submeter as pessoas a qualquer forma de sofrimento quevenha a macular a sua dignidade, seu status libertatis de cidadão.

Considerar-se a aplicação da tortura em casos excepcionais,submetidos a discricionariedade do ser humano, o qual possui vícios,defeitos e qualidades, é fomentar a perda de uma das característicasmais importantes do Estado frente ao processo penal contemporâneomarcado pelo viés garantista: no processo justo, eficiente e respeitosocom os direitos e garantias fundamentais do sujeito submetido à per-secução penal, deverá o Estado, na obtenção da prova, “jogar limpo”,evitando-se o massacre das disposições constitucionais.

O uso da tortura, mesmo aceitando como razoáveis as consi-derações feitas por alguns estudiosos, em especial aqueles que acei-tam a justificativa da legítima defesa de terceiros ou coletiva19, nosparece algo contrário ao pensamento garantista que deve permear aatuação da justiça penal moderna. Mesmo tendo ciência de que a ado-ção de uma decisão pelas autoridades competentes, como no citadoexemplo da bomba colocada no avião dos promotores, é ato suma-mente delicado e dificultoso, não se poderia aceitar a institucionalizaçãodesse meio doloroso de obtenção de uma confissão, sob pena de ocor-rência de torturas equivocadas, desnecessárias e arbitrárias.

E mais, cabe recordar que, no caso da tortura, aproveitando-se da lição de Munõz Conde (2004, p. 123), a chamada defesa pre-ventiva não se baseia em uma agressão concreta, mas sim em umapredisposição, e que não se constitui, portanto, em legítima defesa.

CONCLUSÕES

Ainda que se considere o terrorismo como uma forma dife-renciada de violência, perpetrada por grupos organizados que visam,com esses atos, a obtenção da imposição de suas posições ideoló-gicas ou até mesmo hierárquicas, deverá o tema ser tratado com ocuidado que merece todo assunto que envolve a eventual exposiçãoe privação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, mesmo

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19 Cite-se o exemplo do brilhante trabalho de Llobet Anglí (2010).

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em se tratando de terroristas sangrentos. É cediço que a tortura é utilizada no mundo moderno,

mais precisamente no mundo policial, para a obtenção de infor-mações que possam levar à elucidação de alguns crimes. Maspergunta-se: seria aceitável a tortura como forma de se descobriro modus operandi de algumas pessoas envolvidas em furtos emsupermercados de uma determinada cidade? E já, na hipótese deum sequestro de uma pessoa, com vistas a obter a confissãoacerca do local do cativeiro?

Mesmo em se tratando de hipóteses absurdamente dis-tintas, não podemos aceitar a institucionalização deste “meio deobtenção de provas e de informações”.

Não seriam aceitáveis, da mesma forma, as teses de umestado de necessidade ou de legítima defesa de terceiros por partedos torturadores.

O Estado constitucional de Direito nos impõe uma análisefria e analítica da questão, de modo a não se aceitar que um meioescuso como a tortura seja efetivado pelo Estado como forma sui

generis e excepcional de obtenção de resultados evitadores de ou-tros males tidos como mais graves.

Fica posta a dúvida: qual bem seria mais valioso, a digni-dade e a integridade física e moral de um criminoso terrorista ou avida de pessoas inocentes?

Nos parece honesto responder que ambos os bens são pro-tegidos constitucionalmente, devendo evitar-se a tese da ponderaçãode bens em conflito como justificativa para se aceitar a imposição dosofrimento humano perpetrado através de atos de tortura.

Caso contrário, deveríamos aceitar um retrocesso nasconquistas garantistas obtidas até os dias de hoje, haja vista queestar-se-ia concretizando o retorno à utilização de métodos ilegíti-mos e desumanos a muito tempo já sepultados em nossa cultura.

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Pedro Abi-Eçab*

DESTINO DOS INSTRUMENTOS DE CRIMES CONTRA O AMBIENTE1

DEStinAtiOn Of inStRUMEntS Of EnviROnMEntAl CRiMES

DEStinO DE lOS inStRUMEntOS DE lOS DElitOS AMbiEntAlES

Resumo:

Concretizando mandamento constitucional expresso, a Lei

9.605/1998 tipificou as condutas lesivas ao meio ambiente e criou

diversas regras próprias, dentre as quais se destaca a que deter-

mina o perdimento dos instrumentos utilizados na prática desses

crimes, sendo objetivo deste trabalho analisar o destino desses bens

e como essa regra de perdimento equivocadamente não vem sendo

aplicada por alguns tribunais, desarticulando o sistema de proteção

penal do bem ambiental.

Abstract:

Materializing expressed constitutional act, law 9.605/1998 typi-

fied the harmful practices against the environment and created

several rules, among which stands out the one that determine

the confiscation of instruments used in commitment of such cri-

mes, and the purpose of this work is to analyze the destination

of these goods and how this rule of forfeiture has not been mis-

takenly applied by some courts, dismantling the criminal protec-

tion system of the environment.

* Mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP. Promotor de justiça do Estadode Rondônia.1 O presente artigo é baseado em tese aprovada no 11º Congresso de MeioAmbiente do Ministério Público do Estado de São Paulo, São Roque, 2007,tendosido devidamente atualizado, notadamente após o Decreto 6.514/2008.

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Resumen:

Al concretizar ley constitucional expresa, la Ley 9.605/1998 ha ti-

pificado las conductas perjudiciales para el medio ambiente y ha

creado una serie de normas específicas, entre las cuales se des-

taca la que determina la confiscación de los instrumentos utiliza-

dos en la práctica de esos delitos, siendo objetivo de este trabajo

analizar el destino de esos bienes y cómo esa regla de la pérdida

erróneamente no ha sido aplicada por algunos tribunales, des-

mantelando el sistema de protección penal del bien ambiental.

Palavras-chaves:

Crimes ambientais, instrumentos do crime, perdimento.

Keywords:

Environmental crimes, instruments of crime, forfeiture.

Palabras clave:

Los delitos ambientales, los instrumentos del delito, la pérdida.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objeto analisar qual a destinaçãodos instrumentos utilizados na prática de crimes contra o ambienteno ordenamento jurídico brasileiro.

Muito embora a lei 9.605/1998 (lei de Crimes Ambien-tais) determine com clareza que os instrumentos do crime contrao ambiente “serão apreendidos” e “vendidos, garantida a suadescaracterização por meio da reciclagem” (art. 25, caput e §4º), têm sido raras, na prática, as decisões judiciais impondo ao

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infrator a efetiva perda do bem. na maioria dos casos, decide-sepor sua restituição ao proprietário ou infrator, sob os mais variadosargumentos, alguns deles de duvidosa juridicidade.

Assim, embora a interpretação literal da lei aparente-mente não traga dúvidas, faz-se necessário examinar o assuntocom mais vagar, pois, ao que tudo indica, trata-se de mais umdispositivo legal que, como lamentavelmente ocorre em nossopaís, “não pegou”. trata-se, dessa forma, de problema a serexaminado com rigor científico, sob pena de a situação fáticaredundar em crise de eficácia da norma ambiental, dado seu cos-tumeiro descumprimento, mesmo diante de uma torrente de crimesambientais2.

O BEM AMBIENTAL E SUA IMPORTÂNCIA

A Constituição da República (1988) foi a primeira emnosso ordenamento a positivar a garantia de todos a um meioambiente ecologicamente equilibrado, essencial não só àspresentes como às futuras gerações (art. 225, caput).

visando dar efetividade ao direito fundamental anterior-mente citado, o parágrafo 3º do mesmo dispositivo constitucionaldispôs que as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão osinfratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções de naturezacivil, administrativa e penal, o que evidencia a nítida intenção dolegislador constituinte em maximizar a proteção do bem jurí-dico meio ambiente através da atuação em três esferas.

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2 Em todo o país, são frequentes os exemplos de instrumentos de crimes contra oambiente que não tiveram seu perdimento decretado. É o caso de motosserras, deveículos terrestres ou aquáticos envolvidos com transporte ilegal de madeira, palmito,ou espécimes da fauna silvestre, de maquinário utilizado na extração ilegal de miné-rios (dragas), bem como em atividades de mineração ou desflorestamento ilegais.

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bem difuso cuja imprescindibilidade é cada vez mais reconhecidaem tempos de caos ambiental planetário (sendo o aquecimento global e aescassez de água potável apenas dois dos mais assustadores sintomasjá vivenciados), o meio ambiente relaciona-se diretamente com a garantiada dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, iii), objetivo primordial da Repú-blica, bem como com o direito à vida (art. 5º, caput), devendo também serrespeitado por toda e qualquer atividade econômica (art. 170, vi). Comefeito, é impossível pensar em vida digna para as presentes e futurasgerações fora de um meio ecologicamente equilibrado, de modo que a exis-tência da espécie humana depende da proteção a esse bem.

A RESPONSABILIZAÇÃO AMBIENTAL E SUAS ESFERAS

Conforme estabelecido no texto constitucional, a respon-sabilidade ambiental ocorre através de três esferas autônomas,a saber: civil, administrativa e penal. nessa tríplice responsabili-zação inexiste bis in idem, como leciona fiorillo (2005, p. 47).

Por esta razão, em muitos casos o infrator incidirá tanto emtipos penais como administrativos (previstos no Decreto 6.514/2008),de modo que estará sujeito às autoridades judiciária e administrativa,que aplicarão, se necessário, as respectivas sanções.

no caso dos instrumentos do crime ambiental, em razãoda mencionada autonomia, o perdimento poderá ser decretadotanto pela autoridade judicial como pela administrativa (art. 72,iv, da lei 9.605/1998).

Porém, conquanto sejam autônomas, as esferas de res-ponsabilização ambiental são interdependentes, e casos haveráem que a decisão na esfera judicial (especialmente a penal) reper-cutirá sobre as esferas civil e administrativa. É o caso, por exem-plo, da absolvição com fundamento no art. 386, i, do CPP. Por

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outro lado, o infrator pode vir a ter o perdimento do instrumentodecretado na esfera administrativa mesmo sendo absolvido nojuízo penal (caso do art. 386, incisos iii, vii, do CPP, p. ex., poisaqui não se exclui a responsabilidade administrativa)3.

SISTEMÁTICA DA LEI N. 9.605/1998

O espírito da lei

As considerações acima são pertinentes na medida emque a leitura com viés teleológico da Carta de 1988 e da lei9.605/1998 denotam a preocupação do legislador em proteger

com vigor o meio ambiente, para isso punindo com mais rigor

aqueles que o degradam. Dessa forma, a Constituição trazdisposições sobre o meio ambiente que jamais haviam sidoexpressamente formuladas em nossa história constitucional;enquanto a lei de Crimes Ambientais de 1998 traz sanções muitomais severas do que aquelas estipuladas na legislação anterior4.

Dessa forma, a norma deve ser interpretada como um di-

ploma de caráter sancionador, ainda que descarcerizante5, haja vista

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3 Entendendo que a absolvição criminal não implica em impossibilidade de apli-cação da sanção administrativa, o tRf da 4ª Região decidiu que “tendo emvista a independência das esferas cível e penal, a conduta praticada pelodemandante pode resultar em um ilícito administrativo, caso em que a multaaplicada pela autarquia demandada não se subordina ao julgamento da açãocriminal” (relatora vânia Hack de Almeida, DJU 07/12/2005, p. 874).4 Anteriormente a 1998 verificava-se a existência de normas penais esparsasde proteção à natureza, sendo a lei de Contravenções Penais (art. 64), oCódigo de Caça (lei 5.197/1967) e o Código florestal (lei. 4.771/1965) osexemplos mais importantes. Em todos esses diplomas, as infrações eram trata-das como contravenções, sendo as sanções bastantes brandas e, no mais dasvezes, inócuas.5 Diz-se do caráter descarcerizante, pois, embora as sanções sejam bem maisseveras do que na legislação anterior, raras serão as vezes em que o infrator

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a importância do bem jurídico a ser protegido e da preocupaçãocada vez maior da humanidade em sua preservação.

Com relação aos efeitos da nova lei sobre a legislação an-terior, deve-se ressaltar que a mesma possui inegáveis efeitos der-rogatórios sobre as normas que lhe contrariarem, haja vista odisposto no art. 2º do Decreto-lei n. 4.657/1942 (lei de introduçãoao Código Civil), já que dispôs integralmente sobre a tipificação doscrimes contra o meio ambiente e, ainda, criou novas disposiçõesprocessuais. Desse modo, as regras dos Códigos Penal e de Pro-cesso Penal só se aplicam subsidiariamente às da lei 9.605/1998quando esta for omissa e no que não lhe contrariarem.

Dos instrumentos do crime e sua apreensão

Gilberto e vladimir Passos de freitas (2001, p. 278) con-ceituam os instrumentos do crime como sendo “tudo que tenha sidoutilizado para a prática do mesmo. São os materiais, as coisasque, usadas, não se destroem e as que podem ser substituídaspor outras semelhantes e que tenham sido usadas pelo agente”.

De fato, constituem instrumentos do crime tudo aquiloque foi usado para a prática do mesmo, razão pela qual Damásiode Jesus (1998) trata como instrumentos os veículos, tais comoo automóvel, a locomotiva, o avião e o navio, com os quais é rea-lizada a conduta típica.

Com relação aos instrumentos utilizados na prática de crimescontra o ambiente, a lei 9.605/1998, em caráter inovador e diversa-mente do que estabelece o Código Penal (art. 91, ii, “a”), preceitua que:

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terá sua liberdade restrita através de prisão, já que a maior parte dos tipos penais estãosujeitos à transação ou à suspensão condicional do processo previstas na lei9.099/1995. Ainda quando tais benefícios não forem cabíveis, será possível a substituiçãoda pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (art. 8º da lei 9.605/1998).

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Art. 25. verificada a infração, serão apreendidos seus produtose instrumentos, lavrando-se os respectivos autos.[...]§ 4º. Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendi-dos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem.[...]Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as se-guintes sanções, observado o disposto no artigo 6º:[...]iv - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da faunae flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos dequalquer natureza utilizados na infração;v - destruição ou inutilização do produto;[...]§ 6º. A apreensão e destruição referidas nos incisos iv e v docaput obedecerão ao disposto no artigo 25 desta lei.

Regulamentando a lei, o art. 134, do Decreto 6.514/2008,dispõe categoricamente que, após decisão que confirme o auto deinfração, os instrumentos utilizados na prática de infração “não maisretornarão ao infrator” (caput), devendo, nos termos do inciso iv, serdestruídos, utilizados pela administração quando houver necessi-dade, doados ou vendidos, garantida a descaracterização (a fim deevitar novas infrações). Segundo o inciso v, a descaracterizaçãonão se aplica aos equipamentos, veículos ou embarcações previstosno art. 72, iv, da lei 9.605/1998, os quais serão utilizados pela ad-ministração quando houver necessidade, doados ou vendidos.

Como se vê, enquanto a lei penal geral (art. 91, ii, “a”)determina que somente determinados instrumentos do crimedevem ser destruídos (quando forem objetos de porte, detençãoou fabricação ilícita), a lei ambiental penal não diferencia os ins-trumentos do crime ambiental, ou seja, não traz qualquer exceçãoà regra de perdimento6, de modo que qualquer instrumento

utilizado para a prática de crime contra o ambiente, seja de origem,

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6 Como forma de interpretar o dispositivo da lei 9.605/1998, o Ministério Públicode Rondônia, em encontro dos promotores de justiça com atribuições ambientais,realizado pelo Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente nos dias 20 e21 de junho de 2007, pacificou entendimento de que: “Os veículos utilizadosna prática de crime ambiental constituem instrumentos das referidas infrações,eis que o art. 25, § 4º, da lei 9.605/98 não criou qualquer distinção” (Enunciado 2).

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uso ou posse lícitos ou não, deverá ser utilizado pela administração,

doado ou vendido. trata-se de evidente exemplo de preponde-rância da lei especial e posterior sobre a lei geral e anterior. Outranão é a opinião de Carlos Ernani Constantino (2002, p. 102):

a lei Ambiental, em seu art. 25, caput, não fez tal ressalva, masordenou, pura e simplesmente, a apreensão dos instrumentos dainfração (penal ou administrativa), sem deixar consignada arestrição ‘desde que (os instrumentos) consistam em coisascujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fatoilícito’. Assim, mesmo que os instrumenta utilizados na infração(administrativa ou penal) sejam de fabrico, alienação, uso,porte ou detenção permitidos, deverão ser apreendidos evendidos. [...] isso com base no princípio de que lex specialisderogat generali, isto é: a lei especial (lei Ambiental) preponderasobre a lei geral (CP) em sua aplicação.

Com efeito, a exemplo do que já dispunha tanto a antiga le-gislação penal de tóxicos como a atual (lei 11.343/2006), o instrumentodo crime, seja seu uso, fabrico ou porte lícito ou não, deverá ter seuperdimento decretado, não se aplicando a regra geral do Código Penal7.

É possível, portanto, observar com clareza a intenção dolegislador em agravar o sancionamento das condutas penal-mente lesivas ao meio ambiente, através do perdimento doinstrumento utilizado na prática do crime, o que inegavelmentepossui caráter punitivo e pedagógico, constituindo-se em modernoe interessante instrumento de repressão, pois não ataca a liberdadedo agente, mas apenas seu patrimônio8.

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7 nesse sentido, sentença proferida no Juizado Especial Criminal de Guajará-Mirim-RO: “O Código Penal somente prevê o perdimento dos instrumentos docrime quando eles forem de origem ilícita. Já a previsão da lei ambiental asse-melha-se a da lei de drogas: os instrumentos utilizados na prática do crime,independentemente de sua origem lícita ou ilícita, poderão ser confiscados”(Ação penal 015.2006.011299-2, juiz Marcelo tramontini, j. 7.8.2007).8 Oportuno ressaltar que, em nosso direito, a propriedade pressupõe o atendi-mento de sua função social (CR, art. 5º, XXiii), assim como a atividade econô-mica deve respeitar o meio ambiente (CR, art. 170, vi). Posto isto, é evidenteque o proprietário de bens móveis que os emprega para a prática criminosa deatos contra o meio ambiente (bem todos e essencial, como já visto) não atendeao pressuposto de obediência à função social.

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importante destacar que o legislador não criou distinções

entre os instrumentos do crime ambiental, de modo que não cabeao intérprete fazê-lo. Assim, veículos, maquinário, ferramentas,armas de fogo9, tudo terá o mesmo destino. não exigiu a lei queos instrumentos sejam habitualmente empregados na prática decrime, bastando uma única utilização e sua relação com o resultado(consumado ou tentado) da infração10.

freitas e freitas (2001) atentam para o fato de a apreensão,

além de se constituir em valioso elemento de prova, em muitoconcorrerá para que cesse a atividade degradadora. É o queocorre, por exemplo, com a apreensão de veículos, barcos ouaeronaves empregados pelo agente para o transporte deoutros instrumentos usados para a prática delituosa ou para aretirada do produto do crime.

Depósito

Assim que forem apreendidos, os instrumento devem sercolocados sob os cuidados de pessoa encarregada de sua guardae cuidado até o momento da destinação definitiva. Surgem então,para a autoridade policial ou para o órgão ambiental, duas situaçõesmais comuns: nomear como depositário o próprio infrator ouuma terceira pessoa.

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9 As armas de fogo podem ser instrumento dos crimes previstos na lei10.826/2003, lei especial que derroga no particular a legislação ambiental.todavia, caso não incidam naqueles tipos, poderão ser objeto de crime da lei9.605/98 mesmo que o infrator não viole as normas da legislação que regula-mentam o uso e o porte de armas. É o caso, p. ex., de agente possuidor deporte de arma de fogo e proprietário de espingarda devidamente registrada quevenha a cometer crimes como os dos artigos 29, 32 ou 52. nesses casos, oinstrumento do crime é perdido, ainda que o porte seja legal.10 instrumento é “todo objeto que serve de ajuda para levar a efeito uma açãofísica qualquer; qualquer objeto considerado em relação à sua função, ao usoque dele se faz, utensílio; [...] recurso ou pessoa que se utiliza para chegar aum resultado; meio, intermediário” (HOUAiSS, 2001).

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A primeira hipótese deve ser evitada, utilizando-se ape-nas em casos excepcionais. isso porque, com o instrumento docrime em mãos do próprio infrator, grandes serão as chances deque este perpetue a prática ilícita ou mesmo oculte o bem, temendoas consequências da lei11. Apenas em casos isolados, quando a re-moção do bem for extremamente difícil ou quando não houver es-trutura suficiente para a mantença em depósito por terceira pessoa,pode se justificar a nomeação do infrator como depositário.

Assim, a colocação do instrumento apreendido em de-pósito de terceira pessoa revela-se a medida mais prudente, poisgarante a aplicação da lei e impede a reiteração da prática deli-tuosa. Para que isso seja cumprido, é aconselhável a atuação doórgão do Ministério Público, emitindo recomendação aos órgãosfiscalizadores ambientais, bem como à autoridade policial, a fimde que somente coloquem o instrumento do crime em depósitodo infrator em casos excepcionais e devidamente justificados12.

Restituição

Caso não tenha o depósito sido efetuado em favor doinfrator, será possível que este efetue pedido de restituição juntoao juízo criminal competente, nos termos do CPP, ou ajuíze

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11 Evidente que a casuística é variada, ainda mais diante da realidade multifa-cetária da sociedade contemporânea, bem como da diversidade entre asregiões do brasil. O infrator pode tanto ser uma grande empresa com sede fixae com um nome a zelar, como um madeireiro que explora os confins da regiãoamazônica, através de uma pessoa jurídica registrada em nome de “laranjas”.O caso concreto ditará a melhor medida.12 A atuação do MP revela-se importante, pois muitos órgãos ambientais e aprópria polícia têm o costume de deixar o bem em mãos do próprio infrator, jáque, além dessa medida acarretar menos transtornos ao servidor público buro-crata (que não necessitará providenciar um terceiro como depositário, o qualpoderia ser ele mesmo ou outro servidor do órgão) acaba por contentar o pró-prio infrator (que muitas vezes possui algum poder de injunção política).

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demanda cível (mandado de segurança, p. ex.) caso haja unica-mente a apreensão na esfera administrativa.

A legitimidade para pleitear a restituição é exclusiva doproprietário do bem13, sendo imprescindível a apresentação deprova do domínio. Havendo dúvida sobre esta, a questão deveráser discutida no juízo cível (CPP, art. 120, § 4º).

no caso do pedido de restituição criminal, devem seranalisadas as mesmas circunstâncias já estudadas a respeitodos problemas relativos à colocação do bem apreendido em depó-sito do infrator. Além disso, nesse momento deve-se ressaltar aincidência do disposto no art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, ou seja,se a regra é o perdimento do bem, não há razão justificável, salvoflagrante ausência de justa causa14, para a restituição ao infrator15.

A restituição pleiteada na esfera civil, geralmente através demandado de segurança, somente poderia se vislumbrar no caso depedido de anulação do auto de infração, o qual, recorde-se, é dotadode presunção de veracidade e legitimidade, visto tratar-se de atoadministrativo. Como se sabe, o mandado de segurança nãopossui dilação probatória, de modo que somente ilegalidadesconstatáveis icto oculi, vale dizer, flagrantes, poderiam ser corrigidas.

nesse sentido, em aresto assim ementado, decidiu otribunal de Justiça de São Paulo a respeito do tema:

Deve ser denegado o mandado de segurança em que plei-teada a liberação de veículo apreendido, em termo circunstanciado,por utilização em suposta prática de crime ambiental, uma vez quenão há direito líquido e certo do impetrante, pois o art. 25 da lei

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13 “Para fins de restituição é imprescindível a demonstração da propriedade dosbens” (tRf da 1ª Região, ACR 2006.36.01.000492-7/Mt, rel. Des. tourinhoneto, 3ª turma, DJ 20/04/2007 p.26, j. 10/04/2007, v.u.).14 Por exemplo: manifesta atipicidade, prescrição ou ausência de indícios mí-nimos de autoria ou participação.15 O Ministério Público do Estado de Rondônia, em encontro dos promotores dejustiça com atribuições ambientais, realizado pelo Centro de Apoio Operacionaldo Meio Ambiente nos dias 20 e 21 de junho de 2007, pacificou entendimentode que: “O art. 25, § 4º, da lei 9.605/98 determina que instrumentos utilizadosna prática da infração serão vendidos, garantida a sua descaracterização pormeio da reciclagem, sendo portanto vedada sua restituição” (Enunciado 1).

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nº 9.605/98 estabelece o perdimento de produtos e instrumentosenvolvidos nessas infrações.16

Ainda que o pedido de restituição seja considerado pro-cedente pelo juízo, isso não significará o retorno do bem ao infrator.isso porque pode haver apreensão pelo órgão ambiental e, comojá visto, as esferas de responsabilização são autônomas, não ha-

vendo, nesse particular, sujeição da esfera administrativa à judicial

(salvo, evidentemente, no caso de decisão do juízo cível que anuleo ato administrativo de constrição). Assim, segundo freitas e frei-tas (2001, p. 279-280), embora liberado o bem pelo juízo criminal,

isso não significa que ele deve ser devolvido ao proprietário.É que, além da apreensão pelo ilícito penal, outra deve serfeita em razão do ilícito administrativo (lei 9.605/98, art. 70)[...]Ora, o proprietário de veículo usado para transporte irregularde madeira poderá sofrer pena administrativa de perda do bem(lei 9.605/98, art. 72, iv).17

Por essa razão, deve-se ter a cautela de, em decisãojudicial (e em atos dela decorrentes, como alvará de liberação,p. ex.) que não anule expressamente o ato administrativo deapreensão, fazer constar a advertência de que a liberação nãodeve ser efetuada caso haja restrição na esfera administrativa18.trata-se, grosso modo, de hipótese semelhante à do alvará de

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16 MS n. 436.742/0, Cubatão, 3ª Câmara, rel. Des. Ciro Campos – j. 29.4.2003, v.u.17 É com pesar a constatação, na prática forense cotidiana, do posicionamento demagistrados e membros do MP fruto de um profundo desrespeito para com a auto-ridade administrativa, além do cabal desconhecimento da lei. É comum observar-se decisões judiciais determinando a liberação do bem em atropelo da autonomiadas esferas e, pior, como se o órgão ambiental estivesse subordinado hierarquica-mente ao Judiciário. Reitera-se que, salvo decisão em demanda judicial visando aanulação do ato administrativo, não é lícito ao juiz determinar a restituição do bemde forma incondicional se existe ato de apreensão na esfera administrativa.18 É bastante recomendável que o MP requeira a vinda aos autos do processocriminal de cópia do procedimento administrativo existente no órgão ambiental.Além da questão da apreensão de instrumentos, podem existir informaçõespertinentes para o próprio mérito da imputação.

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soltura, na qual o preso é posto em liberdade se por outro motivonão estiver detido.

Destinação

A apreensão é um estado transitório, pois o destino dobem é a restituição ao seu legítimo proprietário (em caso deabsolvição, p. ex.) ou seu perdimento, nos termos do art. 25, §4º, da lei 9.605/1998.

O mencionado dispositivo da lei de Crimes Ambientais nãodeixa dúvidas de que os instrumentos utilizados na prática do crimeambiental devem ser vendidos. O procedimento do leilão, segundoGilberto e vladimir Passos de freitas (2001, p. 279-280), será o doCódigo de Processo Civil, ante o silêncio da lei 9.605 e do CPP,devendo haver “severa fiscalização do juiz e do representante doMinistério Público a respeito do destino dos bens apreendidos”.

Entretanto, diante das especificidades do caso con-creto, pode se cogitar da aplicação analógica do disposto noparágrafo 2º do art. 25, doando-se os instrumentos em favor deinstituições científicas, hospitalares, penais e outras com finsbeneficentes que previamente manifestem interesse nestes. Amedida certamente seria recomendável tanto do ponto de vistatécnico (jurídico), como ético e social, além de ser procedimen-talmente mais prática do que o leilão, que em muitas ocasiõespoderia resultar infrutífero.

transação penal e suspensão condicional do processo

Diante das penas cominadas na lei 9.605/1998, torna-senecessário analisar quais as implicações da celebração de transaçãopenal ou da aceitação de proposta de suspensão condicional do

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processo em relação aos instrumentos do crime.Poderia se questionar da impossibilidade da decretação

de perda dos objetos ante o imperativo constitucional que vedaa privação dos bens sem o devido processo legal (art. 5º, liv).todavia, referido entendimento é equivocado, já que a transaçãopenal, bem como a suspensão condicional do processo, nãoconstituem exceções ao devido processo legal, mas sim subordi-nam-se à ele. Desse modo, somente haveria violação ao devidoprocesso, p. ex., no caso de infrator não assistido por advogado,por ocasião da aceitação da proposta ou por não ter acesso àesta mesmo preenchendo os requisitos.

Dessa forma, o perdimento do instrumento do crime não

ocorre tão somente através de sentença condenatória que o

determine, podendo (e devendo) ser determinado incidental-mente pelo magistrado, após a manifestação do MinistérioPúblico e do infrator, em respeito ao contraditório.

Além disso, o perdimento pode ser objeto de cláusula daproposta de transação penal formulada pelo MP, conforme enten-dimento pacificado no fórum nacional de Juizados Especiais(fOnAJE): “Enunciado 58 - A transação penal poderá contercláusula de renúncia à propriedade do objeto apreendido” (apro-vado no Xiii Encontro – Campo Grande/MS).

Analogicamente, é evidente que a proposta de suspensãocondicional do processo poderá conter cláusula semelhante, nostermos do art. 89, § 2º, da lei 9.099/199519.

frise-se que, caso não haja a não formulação, peloórgão do MP, de proposta envolvendo o perdimento do instru-mento do crime, como, por exemplo, no caso do infrator nãopreencher os requisitos necessários para o benefício (e sendo

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19 Caso na transação não seja aceito, pelo infrator, o perdimento como formade exclusão do processo, necessário o oferecimento de denúncia, constandonas condições da proposta de suspensão do processo igualmente a cláusulade perdimento. Se rejeitada novamente pelo infrator, a eventual condenaçãoobrigatoriamente deverá decretar o perdimento.

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caso de oferecimento de denúncia), o bem não poderá ser resti-tuído ao infrator, ante a expressa vedação contida no § 4º do art.25 da lei 9.605/1998. nessa hipótese, o destino do bem seriadecidido por ocasião da sentença.

Como se vê, há uma sistemática bastante distinta datradicionalmente estudada no âmbito do processo penalcomum, sendo certo o desafio imposto ao operador do Direito,ante a necessidade de instrumentos que concretizem a prote-ção do meio ambiente, superando a distância entre os arcaicosprocedimentos previstos nos Códigos Penal e de ProcessoPenal, motivo pelo qual as recentes normas ambientais, princi-palmente a lei 9.605/1998, as quais necessitam ser interpreta-das sob um novo viés. nesse sentido, decidiu o tribunal deJustiça do Estado de São Paulo que “Às teorias conservadorasdevem-se contrapor a criatividade e a proteção efetiva daqualidade de vida no planeta”, cabendo “aos juízes vasta fun-ção criativa, inçada de dificuldades” já que “à processualísticaresta apenas adaptar-se diante da nova criação doutrinária ebuscar soluções”20.

Jurisprudência

Os julgados reunidos e ora analisados estão longe deconstituir um exame exaustivo do entendimento dos tribunaisbrasileiros sobre a matéria. Entretanto, são inegável amostra decomo nossas cortes têm interpretado os dispositivos legaisanteriormente analisados, especialmente o art. 25, § 4º, da lei9.605/1998.

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20 HC n. 8.150-SP, rel. lagrasta neto, em Boletim IBCCrim, ano 10, n. 116, julho/2002.

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O art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998 e o princípio da proporcionalidade

Princípios são mandamentos de otimização (AlEXY,2005), normas que “ordenam que algo seja cumprido da melhormedida possível” (lOREnZEtti, 1998, p. 317), havendo hojeo reconhecimento pacífico da doutrina e da jurisprudência de quea proporcionalidade é princípio constitucional implícito a integrara ordem jurídica brasileira.

na visão de Alexy, a conflituosidade de princípios édecorrência natural da sociedade multifacetária atual. Analisandoos mecanismos de solução das colisões, ensina que inexistesuperioridade prima facie dos princípios em conflito, ou seja, umarelação a priori ou ex ante de preponderância, dado que aponderação somente poderia ocorrer diante do caso concreto.Embora tal raciocínio seja correto para a maioria dos casos,inexistindo, de fato, princípios absolutos, capazes de precedersobre os demais em quaisquer condições de colisão:

não se pode negar, por outro lado, a existência de mandamentosde otimização relativamente fortes, capazes de preceder aosdemais em praticamente todas as situações de colisão. Comoexemplos podem ser citados os princípios constitucionais dadignidade da pessoa humana, da cidadania, da proteção daordem democrática e o direito à higidez do meio ambiente.(CRiStÓvAM, 2006, p. 235)

Por essa razão, o próprio Alexy admite o estabelecimentode um sistema de condições de prioridades, a fim de proporcionarinformações sobre o peso relativo dos princípios. Em outras palavras,trata-se de estabelecer um sistema de prioridades prima facie, fi-xando a carga de argumentação e certa ordem no campo dos prin-cípios, embora tal prioridade de um princípio sobre o outro poderáalterar-se no futuro, cabendo, a quem pretender modificar essaprioridade, encarregar-se da prova (PADilHA, 2006, p. 122-123).no mesmo sentido, Canotilho (apud ESPÍnDOlA, 2002, p. 244)ensina que a ponderação entre os princípios ocorre “consoante o

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seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso”.feitas essas considerações, cabe analisar se a aplicação

do princípio da proporcionalidade por alguns tribunais, redundandona restituição de instrumentos de crimes contra o ambiente,encontra-se dentro de parâmetros científicos.

Ao manter decisão que autorizava a restituição deinstrumento de crime ambiental ao infrator mediante depósito,decidiu o tRf da 1ª Região que:

A apreensão de instrumento vinculado à prática de crime am-biental, de que trata o artigo 25, §4º, da lei 9.605/98, não setraduz em iniciativa absoluta, indiscutível, cabendo a mesmaser submetida ao crivo jurisdicional para aferição da proporcio-nalidade entre a perda do bem e o dano ambiental causado.21

Em semelhante sentido, o tRf da 3ª Região entendeuque havia desproporcionalidade entre o crime, a conduta depescadores ilegais (tipificada no art. 34 da lei 9.605/1998) e aapreensão de petrechos de pesca e embarcação22.

no caso em tela, percebe-se que as Cortes adotaram oprincípio da proporcionalidade para mitigar a regra legal do per-dimento, para isso usando como parâmetro o valor econômicodo instrumento do crime em relação ao dano ambiental causado.

Com a devida vênia, longe de ser algo de simples

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21 “PROCESSUAl PEnAl. CRiME AMbiEntAl. inStRUMEntOS DO CRiME.APREEnSÃO. PROPORCiOnAliDADE. REStitUiÇÃO DA COiSA APREEnDiDA.ARt. 118, DO CÓDiGO DE PROCESSO PEnAl. CAbiMEntO. 1. A apreensãode instrumento vinculado à prática de crime ambiental, de que trata o artigo 25,§4º, da lei 9.605/98, não se traduz em iniciativa absoluta, indiscutível, cabendo amesma ser submetida ao crivo jurisdicional para aferição da proporcionalidadeentre a perda do bem e o dano ambiental causado. 2. não dispondo a lei 9.605/98quanto à restituição de bens apreendidos, encontra-se tal medida, nos casos deque trata o artigo 25, da citada lei, submetido ao disciplinamento procedimentaldos artigos 118 e seguintes do CPP, devendo o julgador enfrentar cada uma dassituações a autorizarem ou não a restituição pretendida. 3. Assegurando o julgadora restituição do bem mediante termo de depositário fiel, resguardando a eventualaplicação do artigo 25, § 4º, da lei 9.605/98, não merece reparo a decisão re-corrida. 4. improvimento do recurso” (ACR 2004.37.00.007070-4/MA, rel. Ítalo fio-ravanti Sabo Mendes , 4ª turma, DJ 02/12/2005, p.147, j. 25/10/2005, v.u.).22 Ap. Crim. 25663, 5ª turma, relatora Ramza tartuce, DJU 03/05/2007, p. 361.

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percepção, a mensuração do dano ambiental é hoje uma dasquestões mais complexas sobre a qual se debruçam os estudiososde diversas áreas, especialmente em razão do equilíbrio ecológiconão ser aferível de forma estanque, pois a natureza é compostade um intrincado esquema de relações entre seus diversos com-ponentes, e a deterioração de um destes pode provocar reflexosimprevisíveis nos demais, afetando todo o equilíbrio23.

Um dos exemplos mais corriqueiros é o dos veículosutilizados na prática de crimes ambientais, geralmente conside-rados tais bens de valor muito superior ao do dano. É o caso bas-tante corriqueiro dos caminhões utilizados para a prática do crimedo art. 46, parágrafo único, da lei 9.605/1998 (“transportar”), edos veículos de todo o tipo usados no transporte de animaissilvestres para fins de comércio clandestino24.

nessas duas situações, é de se indagar se o princípioda proporcionalidade consiste em avaliar o valor de mercadodo instrumento do crime (p. ex., um caminhão) e compará-lo àquantidade de toras de madeira nele transportadas. na verdade,o dano ambiental da retirada dessas toras envolve a abertura deestradas (geralmente clandestinas, em razão da ausência deestudo de impacto ambiental) floresta adentro, a derrubadaacidental ou não de árvores de menor valor comercial (uma tora,ao cair, arrasta consigo diversas outras árvores que estão ao seuredor) que não serão exploradas. Ora, a derrubada dessas ár-vores afugentará vários animais e inutilizará inúmeros ninhos deaves silvestres, que, por sua vez, integram cadeias alimentarese de polinização. Além disso, o cálculo do valor do dano ambiental

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23 Por essa razão, Antônio Herman benjamin (1993, p. 235) alerta que “nem sem-pre o dano ambiental é reparável”, e não raros são os casos em que não se con-segue valorar adequadamente um bem ambiental e, por conseguinte, o dano.24 Há sentença proferida em 2006 pelo juízo da vara única da Comarca deUbiratã-PR restituindo veículo utilitário apreendido quando transportava ilegal-mente duzentas aves da fauna silvestre, algumas delas mortas em razão dascruéis condições impostas (autos de n. 83/2006). Houve interposição de recursode apelação pelo Ministério Público Estadual do Paraná, ainda não julgado.

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deve incorporar a perda de carbono fixado nas árvores destruídas.Conforme reconhece ney bello filho (2010, p. 275 e ss.):

O Judiciário necessita observar questões extremamente pontuaisa partir de um olhar global, [...] [a] tendência do Judiciário éobservar cada um destes casos isoladamente, sem conectá-los nem dar a eles a sua devida dimensão, olvidando que sãoapenas uma pequena parte do todo.

fato é que a fundamentação de decisões com base noprincípio da proporcionalidade, nem sempre feita com rigorcientífico, acaba por traduzir, no mais das vezes, um suposto“bom senso” diante da casuística, o que está longe do baliza-mento metodológico proposto por Robert Alexy (2005, p. 339).

Diante da abrangência dos princípios e do caráter plurale multifacetário da sociedade atual, é comum a colisão ou o con-flito aparente de princípios. bonavides (2006, p. 279) lembra quea colisão de regras se resolve na dimensão da validade, en-quanto a colisão de princípios na dimensão do valor. Portanto,no caso dos instrumentos do crime ambiental, deve-se sopesaros interesses constitucionais em jogo a fim de valorá-los:

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Interesses do infrator Interesse ambiental (difuso)Direito de propriedade (art. 5º, XXii); Princípio da solidariedade (art. 3º, i);Princípio da livre iniciativa (art.170, caput).

Princípio do meio ambiente ecologi-camente equilibrado e essencial àsaúde, qualidade de vida das presen-tes e futuras gerações, cuja defesa édever de todos (art. 225, caput);

Princípio da função social, condiçãosine qua non para o exercício do di-reito de propriedade (art. 5º, XXiii)25;

Atividade econômica deve primarpelo respeito ao meio ambiente(art. 170, vi).

25 Seguindo o espírito constitucional, e ampliando o alcance especialmente para

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Além da valoração anterior, deve-se registrar que há con-siderável tendência jurisprudencial que entende não haver a incidên-cia do princípio da insignificância (ou da ofensividade) em matéria decrimes ambientais26. Dessa forma, o argumento de desproporciona-lidade entre o dano ambiental e o valor do instrumento do crime perdeainda mais força, já que reconhecida a importância do bem difuso tu-telado e a considerável lesividade das condutas que o violam.

lembre-se, porque oportuno, o ensinamento de Paulo Affonsoleme Machado, segundo o qual a atividade degradadora do ambiente

acaba sendo uma apropriação do degradador dos direitos de outrem,“pois na realidade a emissão de um poluente representa o confisco do di-reito de alguém em respirar ar puro, beber água saudável, viver com tran-quilidade”. Por essa razão, o consagrado autor (2002, p. 314) cita omagistério de José de Aguiar Dias, que aduz não ser o conflito entre os in-teresses do homem e da natureza “permanente, como quer fazer crer adoutrina extremista, mas ocasional. E quando ele ocorre, então, semnenhuma dúvida, o que há de prevalecer é o interesse da coletividade”.

O art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, e o art. 91, ii, “a”, do Código Penal

Alguns julgadores têm entendido, com extrema criatividade,que a lei 9.605/1998 não determina o perdimento de veículos

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a matéria ambiental, dispõe o art. 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002, que “o direitode propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econô-micas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabe-lecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico eo patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.26 “Princípio da insignificância – inaplicabilidade – Crime contra o meio ambiente –natureza, verdadeiro patrimônio da humanidade, cuja existência e exploração racio-nal é assegurada a esta e às futuras gerações, que não pode sujeitar-se à tese deque eventual lesão seja insignificante em matéria penal” (tJMG, ApCrim 486.599-8, 5.ªCâm. Crim..v.u., rel. Des. Antônio Armando dos Anjos). “Crime contra a flora – Princípioda insignificância – inaplicabilidade – bem jurídico tutelado pela norma que não permitea aplicação do benefício, além da possibilidade de irreversibilidade do dano” (tRf da1ª Região, ReCrim 2003.34.00.041672-3-Df – 4.ª t. – rel. Des. Carlos Olavo). Emsemelhante sentido, ainda: tRf da 3ª Região, 5ª turma, RSE 4543, processo2005.61.24.000380-8, rel. André nabarrete, j. 30.10.2006, DJ 21.11.2006, p. 605.

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e maquinários, pois esta não teria sido a intenção do legislador (sic).Segundo decidiu o tRf da 1ª Região, em caso de

caminhão apreendido ao transportar ilegalmente madeira:

não sendo o caminhão coisa cujo fabrico, alienação, uso ou de-tenção constitua fato ilícito, não há como considerá-lo, a princí-pio, instrumento de crime, até porque referido bem não é utilizadoexclusivamente na prática de crimes. não foi intenção do legisla-dor dirigir a norma do art. 25, § 4º, da lei 9605/98 aos bens queapenas ocasionalmente são utilizados nos delitos ambientais.27

Já o tRf da 3ª Região, em caso de pesca predatória,entendeu que:

a jurisprudência vem suavizando o conceito de instrumentosde crime, não entendendo como tais as embarcações e ostransportes utilizados, quando se trata de instrumento de crimede pesca predatória.28

Seguindo outro raciocínio, segundo o qual as disposições da lei9.605/1998 devem ser interpretadas à luz do art. 91 do CP e do art. 118do CPP (ignorando, portanto, que lei especial derroga lei geral, bem comoo espírito da lei ambiental penal), o tRf da 1ª Região decidiu que:

não obstante a restrição do alcance da regra do artigo 25 da lei9605/98, nada obsta que, mesmo em se tratando de crimeambiental, a apreensão observe-se com amparo no artigo 91, doCódigo Penal, ou no artigo 118, do Código de Processo Penal.29

na mesma e equivocada trilha seguiu o tRf da 5ªRegião, ao decidir pela aplicabilidade do art. 91, ii, “a”, do CP, nocaso de caminhão apreendido transportando ilegalmente carvãovegetal, por considerar que não se tratava de coisa cujo fabrico,

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27 (ACR 2004.41.00.001763-1/RO, rel. Hilton Queiroz , 4ª turma, DJ 21/03/2005,p.79, j. 21/02/2005. idêntica decisão em: ACR 2002.30.00.002164-8/AC).28 Ap. Crim. 25663, 5ª turma, relatora Ramza tartuce, DJU 03/05/2007, p. 361.29 Ap. Crim. 2004.37.00.007066-3/MA, 4ª turma, rel. Ítalo fioravanti Sabo Mendes,DJ 14/09/2005 p.33, j. 16/08/2005. Curiosamente, o mesmo julgador relatou acórdãounânime em que a turma se manifesta em sentido diametralmente oposto: “O §4º, do art. 25, da lei nº 9.605/98, afastou a possibilidade de se restituir coisa quetenha servido como instrumento para a prática de crime contra o meio ambiente”(ACR 2001.41.00.005007-9/RO, DJ25/04/2003, p.127, j. 01/04/2003).

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alienação, uso, porte ou detenção constituía fato ilícito30.tal criatividade não é elogiável.Com a devida vênia, os julgadores têm ido além do texto

legal, enxergando distinção onde a lei não diferencia, ignorando osefeitos derrogatórios da lei especial, negando vigência a texto de leifederal e olvidando o espírito impresso na lei 9.605/1998, mostrandocomo os operadores do Direito ainda carecem de conhecimentomais profundo acerca da legislação ambiental e mesmo dos princípiosconstitucionais que se irradiam por todos os ramos do ordenamento.

não obstante, o fOnAJE recentemente pacificou o en-tendimento de que: “Enunciado 97 - É possível a decretação, comoefeito secundário da sentença, da perda dos veículos utilizados na prá-tica de crime ambiental” (aprovado no XXi Encontro, vitória – ES, 2007).

Com relação ao enunciado acima, entendemos que o “possível”deve ser interpretado como poder-dever, não havendo discricionariedadejudicial. Em outras palavras, tratando-se de instrumento utilizado na prá-tica de crime ambiental, este deverá ter seu perdimento decretado.

Oportunamente, freitas e freitas (2001) mencionamaresto anterior à lei 9.605/1998, no qual já se determinava operdimento de aeronave utilizada em mineração ilegal:

Conforme decidiu o tRf da 1ª Região: ‘Aeronave utilizada nagarimpagem ilícita, em área indígena, está sujeita a apreensãoe perdimento, após sentença condenatória, transitada emjulgado, devendo ser leiloada e o produto recolhido à conta dofundo nacional de Mineração’ (Acrim. 0133132/RR, rel. JuizGomes da Silva, j. 13.04.1994, DJU 12.05.1994, p. 22.225).

Em verdade, a grande polêmica diz respeito aos veículos uti-lizados na prática das infrações, geralmente porque às vezes seu per-dimento representa, em si, uma penalidade que para o infrator soamais grave que a própria sanção cominada no tipo penal, não se po-dendo ignorar que geralmente tais veículos são de propriedade deelites econômicas locais, umbilicalmente ligadas ao poder político31.

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30 Apelação em MS n. 2004.81.00.001474-7, 4ª turma, DJ 14/10/2005, p. 934.31 Hoje é consenso que a decretação do perdimento dos caminhões e tratores empre-

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CONCLUSÕES ARTICULADAS

1. A lei 9.605/1998, integrante do microssistema jurídico am-biental, foi editada para cumprir mandamento constitucional ex-presso (art. 25, § 3º) e tem por escopo reprimir mais duramentea prática de crimes contra o ambiente, privilegiando instrumentosque não impliquem em restrição da liberdade individual.

2. nesse sentido, a lei 9.605/1998, no art. 25, caput, e § 4º, determinaexpressamente o perdimento dos instrumentos utilizados na práticade crimes nela definidos, assim como ocorre em outras leis (p. ex, lei11.343/2006).

3. O legislador da mencionada lei não criou distinções entreos instrumentos do crime que devem ter seu perdimentodecretado, não cabendo ao intérprete, portanto, fazê-lo.

4. Este perdimento pode ser decretado pela autoridade judiciá-ria ou pela autoridade administrativa, sendo ambas autônomas.

5. O temperamento da regra de perdimento do instrumento docrime com base no princípio da proporcionalidade necessitaavaliar a magnitude dos interesses difusos constitucionaisenvolvidos, especialmente os do art. 225, caput, art. 5º, XXiii,e art. 170, vi, da Constituição da República, que preponderamsobre o direito individual de propriedade.

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gados na extração e transporte de madeira ilegal na Amazônia (vulgarmente conhe-cidos como “toreiros”) imporia a necessidade de uma profunda reformulação do modode exploração desse recurso natural, hoje quase que totalmente realizado na ilega-lidade. injunções políticas e socioeconômicas, entretanto, têm ocasionado o flagrantedescumprimento do parágrafo 4º do art. 25, haja vista os inúmeros setores da sociedadeamazônica que lucram com o crime do art. 46, parágrafo único, da lei 9.605/98.

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6. Uma das razões da não desarticulação de esquemas con-solidados de reiteração delitiva na esfera ambiental reside nonão perdimento dos instrumentos do crime, medida que im-plicaria em ônus ao infrator, tornando a prática da infraçãobem menos lucrativa, e, portanto, desinteressante, além de tercaráter altamente pedagógico.

7. É equivocada a forte tendência jurisprudencial que tem ne-gado plena aplicação ao art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, im-pedindo, sob as mais diversas razões, o perdimento dosinstrumentos de crimes contra o ambiente.

8. Cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo cumprimento danorma que determina a apreensão e o perdimento, para isso ado-tando os procedimentos necessários na esfera judicial (peticio-nando ao juízo ou interpondo recursos, p. ex.) ou extrajudicial,através da promoção de reuniões com os diversos atores envol-vidos (órgãos ambientais, policiais e inclusive judiciários), a fimde uniformizar práticas e buscar a eficiência na atuação conjunta.

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Fabrício Veiga Costa*

MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO COLETIVO:UM ESTUDO CRÍTICO A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES

COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS

CONSTITUTIONAL MODEL OF COLLECTIVE PROCESS:

A CRITICAL STUDY ON THE THEORY OF COLLECTIVE ACTION

AS THEMATIC ACTIONS

MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESO COLECTIVO:

UN ESTUDIO CRÍTICO SOBRE LA TEORÍA DE LAS ACCIONES

COLECTIVAS COMO ACCIONES TEMÁTICAS

Resumo:

A concepção de processo coletivo centrada no sistema representativo

não é compatível com o Estado Democrático de Direito pelo fato de não

contemplar o cidadão como parte legitimada à propositura das ações

coletivas. O advento da cidadania como fundamento do Estado Demo-

crático de Direito é o fundamento regente para o entendimento do pro-

cesso coletivo a partir do sistema participativo, em que a legitimidade

processual contempla amplamente o direito de todos os interessados

difusos proporem ações coletivas. A Teoria das Ações Coletivas como

Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista mineiro Vicente de Paula

Maciel Junior, busca estudar o processo coletivo a partir do objeto, e não

a partir do sujeito, tal como propõe a Escola Paulista de Processo.

Abstract:

The conception process centered on collective representative sys-

tem is not compatible with the democratic rule of law because it

* Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC-MG. Prof. da Universi-dades Montes Claros e Araxá, Faculdades de Pará de Minas e Pitágoras-MG,da Fundação Pedro Leopoldo, e do Inst. Ed. Continuada PUC-MG. Advogado.

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does not contemplate the citizen as a legitimate part of the commence-

ment of class actions. The advent of citizenship as the foundation of the

democratic rule of law is the basis to understanding the ruling collective

process from the participative system in which the procedural

standing extensively contemplates the right of all stakeholders propo-

sing collective actions. The Theory of Collective Action as Thematic Ac-

tions, developed by the lawyer Vicente de Paula Maciel Junior, seeks

to study the collective process from the object, not from the subject, as

proposed by the Paulista School of Process.

Resumen:

El concepto de proceso colectivo centrado en el sistema represen-

tativo no es compatible con el Estado Democrático de Derecho por

el hecho de no contemplar el ciudadano como parte legitimada a la

iniciación de la acción colectiva. El advenimiento de la ciudadanía

como fundamento del Estado Democrático de Derecho es el funda-

mento regente para la comprensión del proceso colectivo del sistema

participativo, en el cual la legitimidad procesal contempla amplia-

mente el derecho de que todas las personas interesadas difusas pue-

dan proponer acciones colectivas. La Teoría de las Acciones

Colectivas como Acciones Temáticas, desarrollada por el jurista de

Minas Gerais Vicente Paula Maciel Junior, tiene por objeto estudiar

el proceso colectivo a partir del objeto, y no de los sujetos, en la forma

propuesta por la Escuela Paulista de Proceso.

Palavras-chaves:

Ações temáticas, sistema participativo, ações coletivas.

Keywords:

Thematic actions, participatory system, class actions.

Palabras clave:

Acciones temáticas, sistema participativo, acciones colectivas.

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INTRODUÇÃO

A reconstrução do Processo Coletivo a partir do ModeloConstitucional de Processo é uma necessidade no Estado De-mocrático de Direito. A superação do modelo de processo coletivo,centrado no sistema representativo, viabiliza o seu entendimentocrítico mediante a participação de todos aqueles juridicamente inte-ressados na construção do mérito das ações coletivas. Dessa forma,busca-se, com a presente pesquisa, apresentar um debate jurídicoacerca da problemática e da necessidade de discussão da procedi-mentalização do processo coletivo desvinculado de acepções au-tocráticas e individualistas. O advento do Direito Coletivo comoramo cientificamente autônomo demonstra a necessidade de pro-posições tendentes à criação de uma Teoria Geral do Processo Co-letivo, justamente para alcançar o desvencilhamento com o modelode processo centrado em pretensões de cunho individual.

Além disso, faz-se necessária a sistematização de toda alegislação brasileira esparsa referente aos Direitos Coletivos, com afinalidade de buscar a construção de um sistema jurídico de proteçãodas pretensões dos interessados difusos nos moldes democráticos.Reformas processuais pontuais não são suficientes para a rupturacom a acepção instrumentalista1 de processo, centrada no idealindividualista e liberal. Faz-se necessário repensar o processoconstitucional a partir do entendimento de que o devido processolegal, a isonomia processual, a publicidade dos atos processuais, o

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1 “A revisitação da metódica pluralista e aberta da visão instrumentalista dodireito processual para contextualizá-la e redimensioná-la à luz da teoria dosdireitos e das garantias constitucionais fundamentais é hoje caminho necessáriopara a ordenação do direito processual, a fim de que ele possa cumprir suasreais funções de instrumento como meio de proteção e de efetivação materialda Constituição, com a transformação positiva da realidade social. É essa umaexigência das próprias diretrizes do Estado Democrático de Direito, especialmenteno plano do direito coletivo, inserido constitucionalmente, na teoria dos direitose das garantias fundamentais” (ALMEIDA, 2007, p. 146).

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contraditório e a ampla defesa são corolários indispensáveis à efe-tivação dos Direitos Fundamentais garantidos no plano constituinte.

É nesse contexto teórico que precisamos pensar o pro-cesso coletivo sob a ótica crítica2 do princípio da Supremacia daConstituição, para, assim, implementarmos a participação dos inte-ressados no provimento a partir da Teoria das ações coletivas comoações temáticas. A democratização do acesso à jurisdição coletivapelo princípio da participação é fundamento suficiente para superar-mos o entendimento dogmático de uma jurisdição de autoridade,centrada no poder do julgador, e assim apresentarmos proposiçõessuficientes ao entendimento da jurisdição como um Direito Funda-mental, assegurado indistintamente a todos os cidadãos, de discu-tirem pretensões tanto de conotação individual quanto coletiva.

A hipótese científica que conduzirá todo o estudo pro-posto nesta pesquisa gira em torno da seguinte problemática: o atualmodelo de processo coletivo proposto pela Escola Instrumentalistacorrobora com o paradigma do Estado Democrático de Direito?Certamente não, uma vez que o fato de o Direito Processual Co-letivo ser discutido sob o patamar da representatividade não é sufi-ciente para viabilizar a participação direta dos interessados difusose coletivos na construção isonômica do provimento jurisdicional,cujos efeitos da decisão afetarão indistintamente todos aqueles aquem devem ser assegurados o direito de participação no debatede todos os temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida.

HISTÓRICO DO PROCESSO COLETIVO

Pensar o processo coletivo sob a égide individualista pro-posta pela Escola Instrumentalista é certamente admitir a existência

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2 “[...] a crítica, parece, é o único modo que temos de identificar nossos erros ede aprender com eles de maneira sistemática” (POPPER, 1987, v. 2, p. 396).

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de profunda incompatibilidade entre o sistema representativo e osistema participativo. É a partir dessa premissa que se pretendedemonstrar a construção do pensamento do Direito e do ProcessoColetivo enquanto disciplinas cientificamente autônomas e dota-das de um objeto próprio.

A proteção dos direitos coletivos, de natureza metaindi-vidual, é uma preocupação que transpassa a historiografia mundialdesde os primórdios, ou seja, a necessidade de disciplinar juridi-camente tais direitos coincide, certamente, com o advento dascivilizações. Nesse ínterim, pode-se afirmar que o antecedentehistórico mais remoto de que se tem notícia no estudo do DireitoColetivo é a ação popular romana. O interesse dos romanos paracom a proteção jurídica não apenas dos conflitos individuaiscertamente se explica pela construção do ideal de Democraciaprevalente ao longo de toda a história do Império Romano. Talafirmação se justifica pela solidificação da ideia de interessepúblico, muito evidente no Direito Romano e produto da construçãoda res publica que viabilizava o sentimento de cada cidadãoromano poder pleitear judicialmente, e também participar, detodas as decisões referentes ao interesse público. Por isso, restaclara a afirmação de que, embora a base do Direito Romano en-contrava-se sedimentada no Direito Privado, o cidadão romanopoderia participar ativamente da vida do Estado através do ins-trumento da ação popular, o que não significava a prevalênciados interesses estatais em detrimento dos interesses dos cida-dãos (LEONEL, 2002, p. 40-43).

A ação popular romana tinha caráter predominantementepenal e visava, acima de tudo, a defesa de coisas públicas e de carátersacro. Dentre os legitimados, as mulheres e os menores eram ex-cluídos por não serem reconhecidos como cidadãos. Ressalta-se,ainda, a impossibilidade de substituição processual em caso demorte do autor da ação, o que demonstra ser um profundo equí-voco, até porque se o objeto da ação versa sobre uma pretensão

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metaindividual não se justificava a extinção do processo com amorte do autor da ação. Admitia-se também, a qualquer tempo, aoposição de exceção à coisa julgada sempre que demonstrado ointeresse juridicamente legítimo de prosseguir com o debate jurídicode novas questões relacionadas à pretensão inicialmente dedu-zida em juízo e de caráter e interesse da coletividade (LEONEL,2002, p. 44-45).

Resta esclarecer que, através da ação popular, o cidadãoromano podia controlar a atividade estatal, com o propósito de ave-riguar se o interesse da coletividade estava sendo efetivamenteprotegido. Tratava-se de um instrumento hábil para controlar nãosomente a atividade estatal, mas, acima de tudo, limitar o exercícioabusivo das liberdades individuais que pudessem contrariar osinteresses da coletividade. Nesse sentido, afirma-se:

A ação popular tinha em Roma amplitude extraordinária,servindo não somente para a tutela de interesses individuaiscom conseqüências públicas (como no caso de defesa pessoaldo uso de vias públicas por meio do interdictum ne quid in locopublico vel itinere fiate; como ainda da utilização dos rios,ancoradouros, bebedouros, entre outras coisas, por força dosinterdictum ne quid in flumine publico ripave ejus Fiat; uso deesgotos públicos, por meio do interdito de cloacis, entreoutros); mas ainda, e sobretudo, para a tutela de interessesmais propriamente coletivos, como na defesa de sepulturacomum, efetivação de fundações instituídas por atos dedisposição de última vontade, oposição à colocação de telhas ejanelas de coisas que pudessem ser lançadas à rua, entre outras.(LEONEL, 2002, p. 47)

É recente a regulamentação da ação popular, tendo ocor-rido em 30 de março de 1836, com a lei comunal, na Bélgica, e, emseguida, na França, com a lei comunal de 18 de julho de 1837. NaItália, foram implementadas, em 20 de setembro de 1859, a lei 26,que previa a possibilidade de ação popular para matéria eleitoral, etambém a Lei 765, de 06 de agosto de 1927, que previa o uso daação popular em matéria urbanística (LEONEL, 2002, p. 52).

No Brasil não foi diferente, uma vez que a gênese do

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processo coletivo está na Ação Popular, que foi inicialmenteinserida no Direito pátrio através do artigo 113, inciso XXXVIII,da Constituição de 1934: “Qualquer cidadão será parte legítimapara pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesi-vos do patrimônio da União, Estados ou dos Municípios” (BRA-SIL, 2001a, p. 161). É de suma importância esclarecer que oprimeiro instrumento processual hábil, no Direito pátrio, para o con-trole das atividades estatais encontrava-se na Constituição de1934, especificamente no que tange ao controle do patrimôniopúblico. Sabe-se que, historicamente, tal possibilidade foi supri-mida na Constituição de 1937, que, pelo próprio contexto histó-rico, marcado por um regime político de exceção, o cidadãoencontrava-se impossibilitado de participar das decisões esta-tais e se encontrava refém do arbítrio dos detentores do poder.Assim, ressalta-se:

No intervalo observado entre a Constituição do Estado Novoaté a publicação da Carta de 1946, foi editado o novo ordena-mento processual civil unificado, sendo que neste havia aprevisão, no artigo 670, da possibilidade de ajuizamento deação pelo Ministério Público ou por qualquer do povo, com oescopo de dissolver associação civil com personalidade jurídicaque promovesse atividade ilícita ou imoral, reavivando aquelaespécie de ação que já fora prevista anteriormente na própriaCarta de 1934, tida pela doutrina de então como popular.(LEONEL, 2002, p. 52)

Com o advento da Constituição de 1946 houve o renas-cimento da ação popular em seu artigo 141, inciso XXXVIII:“Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulaçãoou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio daUnião, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicase das sociedades de economia mista” (BRASIL, 2001b, p. 103).Novamente, temos a possibilidade jurídica de controle do pa-trimônio público pelo cidadão. Dessa forma, observa-se:

[...] Em seguida, foram instituídas ainda duas ações de natu-reza popular no âmbito da legislação infraconstitucional, quais

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sejam: uma pelo artigo 35, §1º, da Lei 818, de 18.09.1949, re-lacionada à aquisição, perda e reaquisição da nacionalidadee perda de direitos políticos; e ainda outra, pelo artigo 15, §1º,da Lei 3.052, de 21.12.1958, relativa à impugnação do enri-quecimento ilícito (matéria hoje regulada pela Lei 8.429/92,que será tratada oportunamente). [...] (LEONEL, 2002, p. 54)

Em 29 de junho de 1965, em pleno período da DitaduraMilitar, foi sancionada a Lei 4.717, que disciplinava, no planoinfraconstitucional, a ação popular. Reconheceu-se a legitimidadeprocessual de qualquer cidadão pleitear a anulação ou a decla-ração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio dos entes daAdministração Pública Direta e Indireta. O requisito para acomprovação da cidadania e da legitimidade para a propositurada presente ação era o título de eleitor e a demonstração daregularidade no exercício dos direitos políticos. A sentença deimprocedência ou de carência da ação estava sujeita ao reexamenecessário e a de procedência à possibilidade de propositura derecurso de apelação recebido no efeito suspensivo (BRASIL,2007, p. 1080/1082).

Tal legislação denota a tentativa de o legislador institu-cionalizar o controle das atividades estatais diretamente pelo ci-dadão. Acontece que tal fiscalidade não era de naturezaampla, excluindo-se, por exemplo, a possibilidade de controledo meio ambiente e dos demais direitos de natureza metaindivi-dual e potencializador do exercício pleno da cidadania. Com isso,sabe-se que temos, nesse período da história brasileira, o inícioda legitimação do cidadão no controle e fiscalidade das ativida-des estatais, até porque tal controle era um tanto limitado emdecorrência do próprio contexto da historiografia brasileira, umperíodo de regime político de exceção.

A Carta de 1967, e a Emenda Constitucional 1/69, emseu artigo 153, inciso XXXI, previa: “Qualquer cidadão será partelegítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivosao patrimônio de entidades públicas” (BRASIL, 2001c, p. 165).

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Novamente, ressalta-se a existência de uma previsão legal umtanto genérica, que garante ao cidadão um controle restrito dasatividades estatais, à margem da legitimidade democrática e doModelo Constitucional de Processo Coletivo.

Em 24 de julho de 1985 adveio para o sistema jurídico bra-sileiro a Lei 7.347, que disciplinou a ação civil pública, cujo objetopode ser o meio ambiente, o consumidor e o patrimônio público.Esta representa mais uma tentativa de o legislador pátrio regula-mentar, através de uma legislação específica, o processo coletivo.Verifica-se que o tratamento jurídico-legal dado ao processo cole-tivo ainda continua adstrito à concepção representativa, por nãocontemplar o cidadão como legitimado para a sua propositura.

A Constituição de 1988 reiterou o tratamento jurídico-legal dado à ação popular como um instrumento hábil que legi-tima o cidadão no controle dos atos e das atividades estatais.

O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO NO ESTADODEMOCRÁTICO DE DIREITO

O fundamento teórico para a construção de teorias há-beis ao entendimento crítico do Estado Democrático de Direitoencontra-se na Epistemologia.

A garantia de participação na construção do mérito doprocesso coletivo não deve ser uma prerrogativa adstrita aopersonalismo do julgador, haja vista tratar-se de um DireitoFundamental garantidor da implementação da cidadania. Osistema representativo, como parâmetro ao estudo do processocoletivo, é a demonstração do caráter autocrático da legislaçãopátria, ao limitar o entendimento da legitimidade processualapenas àquelas pessoas autorizadas e escolhidas pelo legislador,

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como é o caso da exclusão do cidadão como legitimado para apropositura da ação civil pública.

No Estado Democrático de Direito a democracia é oregime político capaz de garantir, formal e materialmente, o exer-cício dos direitos fundamentais, cuja legitimidade perpassa pelaparticipação dos seus destinatários na construção das normasjurídicas a partir da teoria do discurso jurídico, conforme enten-dimento preconizado por Habermas (2003, p. 154):

Neste ponto, é possível enfeixar as diferentes linhas de argu-mentação, a fim de fundamentar um sistema dos direitos quefaça jus à autonomia privada e pública dos cidadãos. Esse sistemadeve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos sãoobrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular suaconvivência com os meios legítimos do direito positivo.

Nesse mesmo sentido se manifesta Habermas (2003, p.157): “A idéia da autolegislação de civis exige que os que estãosubmetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam en-tender-se também enquanto autores do direito”.

O fundamento da legitimidade democrática é a garantiaassegurada a todos os interessados de fiscalizar amplamente aconstrução participada do provimento. Nesse sentido, ressalta-se o entendimento de Dhenis Cruz Madeira (2008, p. 24):

Por conseguinte, obstruir a fiscalidade popular sobre anorma jurídica é dar margem à vida nua, criando-se um espaçodiscursivo indemarcado e não-fiscalizável. Com isso, fomenta-seo aparecimento do espaço do soberano (e não o da soberaniapopular), do locutor autorizado da lei, que, à semelhançado soberano de Kafka, diz o que pode e o que não pode,sem, contudo, ofertar os fundamentos de suas decisões,ou mesmo, permitir que o destinatário da norma aponte asausências do discurso normativo. Esse espaço do soberano,a nosso ver, permite a criação de uma dimensão políticaacima da jurídica.

Buscando-se os fundamentos teóricos precipuamente nadoutrina da legitimação democrática do direito preconizada por

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Jürgen Habermas3 e na visão crítica falibilista4 de Karl Popper,Rosemiro Leal se propõe a estudar o processo no Estado Demo-crático de Direito a partir da premissa de que este não é uma sim-ples espécie de procedimento, mas sim uma instituiçãoconstitucionalizada regente das estruturas procedimentais pre-paratórias de provimentos estatais (TEIXEIRA, s/d). Há umaidentidade científica existente entre a Teoria Neo-institucionalistado processo e a Teoria do modelo Constitucional do Processo,já que ambas buscam o seu fundamento teórico nos direitos fun-damentais. Todavia, daquela teoria se afasta na medida em quecoloca o processo como pressuposto de legitimidade “de todacriação, transformação, postulação e reconhecimento de di-reitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrati-vos” (LEAL, 2000, p. 97)”.

Os direitos fundamentais, considerados o substrato inter-pretativo da presente teoria, serão enunciados jurídicos proces-sualmente decididos por uma sociedade efetivamente apta ao

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3 “Os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica de uma for-mação pública da opinião e da vontade, a qual culmina em resoluções sobre leis e polí-ticas. Ela deve realizar-se em formas de comunicação, nas quais é importante o princípiodo discurso, em dois aspectos: O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivode filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultadosobtidos por este caminho têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o pro-cedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráterdiscursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública política e nas corpora-ções parlamentares implica, outrossim, o sentido prático de produzir relaçõesde entendimento, as quais são isentas de violência, no sentido de H. Arendt,desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa. O poder comunicativo deconvicções comuns só pode surgir de estruturas da intersubjetividade intacta. E esse cru-zamento entre normatização discursiva do direito e formação comunicativa do poder épossível, em última instância, porque no agir comunicativo os argumentos também for-mam motivos. Tal cruzamento se faz necessário, porque comunidades concretas quedesejam regular sua conveniência com os meios do direito não conseguem separar asquestões de regulamentação de expectativas de comportamento das questões referentesà colocação de fins comuns, o que seria possível numa comunidade idealizada de pes-soas moralmente responsáveis. As questões políticas distinguem-se das morais.” (HA-BERMAS, 2003, p. 190-191)4 “[...] Por falibilismo se entende aqui a opinião, ou a aceitação do fato, de quepodemos errar e de que a busca da certeza (ou mesmo a busca de alta proba-bilidade) é uma busca errônea. Mas isto não implica que a busca de verdade

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exercício da cidadania. A pressuposição democrática é que o direitoseja legitimamente projetado e construído por uma comunidade políticaconsciente e conhecedora do projeto constitucional consistente na de-mocratização da atividade legiferante (LEAL, 2004, p. 95-96).

O exercício da cidadania no Estado Democrático deDireito pressupõe o conhecimento da Teoria Processual dosDireitos Fundamentais5 discursivamente construídos pelos seusdestinatários. O referente lógico-jurídico para a compreensão daTeoria Neo-institucionalista do processo é a principiologia cons-titucional. Nos dizeres de Leal (2004, p. 97):

De conseguinte, o que se busca com uma teoria neo-instituciona-lista do processo é a fixação constitucional do conceito do que sejajuridicamente processo, tendo como base produtiva de seus con-teúdos a estrutura de um Discurso advindo do exercício perma-nente da cidadania pela plebiscitariazação continuada no espaçoprocessual das temáticas fundamentais à construção efetiva deuma Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático.

O processo deve buscar, na Hermenêutica ConstitucionalDemocrática, o referencial para a previsibilidade e objetividadedas decisões judiciais. A qualidade democrática de uma sociedadejurídico-política é definida pela produção das normas jurídicas apartir da institucionalização do Processo Constitucional (LEAL,2004, p. 98). O povo deve ser o pressuposto da legitimidade,criação, aplicação e alteração do direito.

O enunciado do processo para a Teoria Neo-instituciona-lista encontra-se nos princípios institutivos6: contraditório, isonomia

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seja errônea. Ao contrário, a idéia de erro implica a da verdade como padrão que po-demos não atingir. Implica que, embora possamos buscar a verdade e até mesmoencontrar a verdade (como creio que fazemos em muitíssimos casos), nunca pode-mos estar inteiramente certos de que a encontramos [...] Mas o falibilismo não precisa,de modo algum, dar origem a quaisquer conclusões céticas ou relativistas. Tornar-se-á isto claro se considerarmos que todos os exemplos históricos conhecidos de falibi-lidade humana – incluindo todos os exemplos conhecidos de erros judiciários – sãoexemplos do avanço de nosso conhecimento.” (POPPER, 1987, v. 2, p. 395-396).5 Importante destacar que a Processualidade Democrática dos DireitosFundamentais será discutida em tópico posterior.6 “[...] como elementos jurídico-existenciais do processo, em sua base institutiva,

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e ampla defesa.A marca fundamental do contraditório, no paradigma do Es-

tado Democrático, é a igual oportunidade de participação dos inte-ressados na construção dos provimentos estatais (LEAL, 2002). ParaDierle Nunes (2004, p. 42), o princípio do contraditório é entendidotão somente como um direito de bilateralidade da audiência, possi-bilitando às partes a devida informação e possibilidade de reação.Gonçalves (1992, p. 128) entende que o contraditório tem como basea liberdade na busca da decisão participada. Através do contradi-tório, deve ser assegurada a defesa, não podendo ninguém sercondenado sem ela (CARREIRA ALVIM, 2004, p. 159). É imprescin-dível a observância do contraditório pelo juiz, que deverá adotar asprovidências necessárias para assegurá-lo, para fazê-lo observar(ARAÚJO, 2003, p. 119). Trata-se de um direito-garantia das partesexercerem livremente o direito de nada dizerem (LEAL, 2004, p. 103).Nery propugnou pela correlação existente entre o contraditório, aigualdade e o direito de ação7. O exercício da função jurisdicional sedará com a obrigatória participação em contraditório dos interessadosnos efeitos dos provimentos judiciais (DIAS, 2004, p. 87-88).

Nesse contexto, observa-se que o princípio do contradi-tório desencadeia uma série de implicações na aquisição e navaloração da prova, em vista da decisão sobre o fato (CATTONIDE OLIVEIRA, 2001, p. 160).

Indispensável ao exercício do contraditório, a isonomia,enquanto direito-garantia constitucionalizada, preza pela liber-dade de tratamento jurídico igual que não se opera pela distinçãojurisdicional do economicamente igual ou desigual, ou seja, tal

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o contraditório, a isonomia e a ampla defesa são princípios (referentes lógico-ju-rídicos), sem os quais não se definiria o PROCESSO em parâmetros modernosde direito-garantia constitucionalizada ao exercício de direitos fundamentaispela procedimentalidade instrumental das leis processuais. Como princípios jurí-dico-institutivos do PROCESSO, o contraditório, a isonomia e a ampla defesa, me-recem estudo particularizado.” (LEAL, 2000, p. 103, grifos meus)7 “O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em mani-festação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade

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princípio constitucional não pode ser utilizado para conferir tra-tamento jurídico discriminatório aos indivíduos (LEAL, 2004, p.103). O professor Rosemiro Leal (2005, p. 78) alerta a comunidadecientífica para a existência das ações afirmativas como forma dediscriminação lícita contributiva para a produção da igualdade:

A pretexto de inclusão social das minorias e defesa dos direitosdos diferentes, acabam aplaudindo a excrescência conceitualde uma discriminação lícita (sic) contributiva para a produçãoda igualdade a ser desenvolvida em espaços políticos despro-cessualizados de autonomia pública e privada ocupados porinteligências salvacionistas dispostas a um movimento demudança geral de mentalidades.

O direito de igualdade perpassa pelo exercício amplo, efe-tivo e irrestrito dos direitos fundamentais nos patamares constitucio-nais8. A isonomia é o princípio garantidor da igualdade argumentativana formação do discurso de produção e aplicação do direito.

Sistema de Direitos, para Habermas, citado por Galuppo(2002, p. 204), é um conjunto de direitos fundamentais que tornapossível a participação de cada falante, da forma mais ilimitadapossível, dos discursos jurídicos, ou seja,

[...] é um conjunto de princípios jurídicos que garante a legitimidadede um ordenamento jurídico estatal contemporâneo, uma vezque estabelece as condições sob as quais as formas de comu-nicação necessárias para a gênese autonomamente políticado direito podem ser juridicamente (rechtlich) institucionalizadas(Habermas, 1994a: 134), e que contém os direitos fundamentaisque os cidadãos (Büerger) têm que garantir mutuamente unsaos outros, se eles desejam regular legitimamente sua vida emcomum por meio do direito positivo (Habermas, 1994a: 128).

A ideia de um Sistema de Direitos como garantia esubstrato da legitimidade do Estado Democrático de Direito

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das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litiganteso contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de açãoquanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório.”(NERY JÚNIOR, 2000, p. 130)8 “Ora, se os direitos fundamentais não forem executados judicialmente, nunca

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revela a importância da igualdade na Teoria Discursiva do Direito.A isonomia e a liberdade, pressupostos da legitimidade das nor-mas jurídicas, asseguram a inclusão dos cidadãos nos discur-sos jurídicos de justificação e aplicação9. A participação igualitáriade todos os cidadãos na formação da opinião e vontade pú-blica permitirá a construção discursiva do Estado Democrático.Ante o exposto, verifica-se que a igualdade é condição para aparticipação no discurso (GALUPPO, 2002, p. 207).

O princípio da isonomia é garantidor da igualdadeprocedimental de igual tratamento. O processo legitima o exercí-cio da função jurisdicional por meio da isonomia processual10. Aisonomia processual, pressuposto do Estado Democrático, afastaqualquer tipo de privilégio e proíbe quaisquer distinções nãoautorizadas pelo texto constitucional. Nos dizeres de Leal, “oProcesso na Teoria do direito democrático é o ponto discursivoda igualdade dos diferentes”.

Considerada a coextensão dos princípios do contraditório eda isonomia, a ampla defesa garante a irrestrita argumentação nodireito de defesa11. A dialeticidade entre as partes e a bilateralidade

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se poderá falar num piso de igualdade para incluídos e excluídos como pontode partida ao reconhecimento cognitivo, por igual tempo de argumentaçãoprocessual (ISONOMIA), de direitos a serem alegados ou pretendidos pelasminorias e diferentes. Só se saberá se alguém pertence ao bloco das minoriasou dos diferentes após atendimento dos direitos fundamentais à vida, à liberdade,à dignidade mínima para que se habilitem a disputar processual e igualmentedireitos em face de outrem. Antes de atendimento desses direitos fundamentais,as pessoas estarão sempre em níveis de uma desigualdade ilegal que os impedemde debater e pretender, no espaço-tempo procedimental, direitos em condiçõesargumentativas isonômicas.” (LEAL, 2005, p. 79)9 Ressalta-se que Rosemiro Pereira Leal não concorda com a distinção existenteentre discurso de justificação e discurso de aplicação.10 “A teoria neo-institucionalista distingue a isonomia substancial (material) da isono-mia processual. Em matéria processual, a isonomia equivale à igualdade temporalde dizer e contradizer para construção da estrutura procedimental, porque o direitoao processo não tem conteúdos de criação de direitos diferenciados pela disparidadeeconômica das partes, a disparidade econômica não pode impedir ou dificultar a prá-tica de atos processuais, diferentemente da isonomia substancial ou material, queconsiste em tratar os iguais de modo igual e os diferentes de modo diferente a fimde se atingir igualdade de condições econômica.” (ALMEIDA, 2005, p. 69-70)11 “A ampla defesa é co-extensiva aos princípios do contraditório e da isonomia,

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de ação são os elementos caracterizadores do contraditório, quedeverão oportunizar o direito de informação e reação; o princípioda ampla defesa se materializa quer na defesa técnica exercidapelo advogado, quer na autodefesa do acusado (CINTRA; GRI-NOVER; DINAMARCO, 2005, p. 57-59).

A busca incessante pela efetividade processual atravésdos princípios da celeridade e da economia processual não po-derá restringir nem limitar a interpretação dos princípios instituti-vos. A efetividade processual no Estado Democrático se dá coma coparticipação dos destinatários na construção do provimento,conforme esclarece Andréia Alves de Almeida (2004, p. 89):

A efetividade processual, no paradigma democrático aproxima-seassim do conceito de legitimidade, ou seja, somente é possívelquando os destinatários das normas se considerarem seusautores. São os destinatários da normatividade legislada queefetivam o ordenamento jurídico pela via procedimental do devidoprocesso legal, mediante o qual se reconhecem autores dasnormas vigentes e aplicáveis. Não há como operacionalizar ademocracia pelos órgãos jurisdicional, legislativo e executivo porsi mesmos, pois a democracia é um sistema aberto e nenhumadas esferas do Estado pode pressupô-la e/ou absolutizar valorescomo corretos e universais. Na razão (concepção) discursiva, aefetividade processual se dá e se preserva pela regência do devidoprocesso constitucional na atividade legiferante e jurisdicional.

Passaremos a seguir a discutir a problemática da recons-trução do processo coletivo a partir da Teoria das ações coletivascomo ações temáticas para, assim, compreender o Modelo Cons-titucional de Processo no Estado Democrático de Direito.

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porque se faz nos limites temporais do procedimento em contraditório. A defesa(argumentação) irrestrita só se efetiva pela participação dos advogados das partesou interessados na estruturação dos procedimentos jurisdicionais, sejam ordinários,sumários, especiais ou extravagantes, porque a defesa apenas poderá ser exercidade forma plena e ampla quando o direito à liberdade e de acesso à informação nãofor limitado. O direito à liberdade [...] consiste na possibilidade de coordenaçãoconsciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal [...] e tudoque impedir aquela possibilidade de coordenação dos meios é contrário à liberdade.A fim de garantir o exercício desses direitos, a CR/88 impõe a indispensabilidadedo advogado na atividade jurisdicional (art. 133).” (ALMEIDA, 2005, p. 71)

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TEORIA DAS AÇÕES COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS

A construção do mérito participado no processo coletivopressupõe a ruptura com o entendimento do direito coletivo apartir do sistema representativo para, consequentemente,repensá-lo no modelo participativo. Por isso, é imperiosa aampliação do rol de legitimados para, por conseguinte, permitirque o maior número possível de interessados possa defendersuas teses em juízo. O processo coletivo, no modelo constitucio-nal democrático, deve viabilizar amplamente o exercício da cida-dania através da participação ampla e direta de todos osinteressados na construção do mérito da demanda. Ou seja, o méritoda demanda não pode ser pré-definido apenas pelos legitimadospreviamente determinados em lei, uma vez que a legitimidadedemocrática do provimento jurisdicional perpassará pela ampliaçãoda participação de todos os legitimados e interessados nademanda: “Quanto maior fosse a participação na formação domérito, maior seria a legitimação da decisão do processo coletivoem relação aos efeitos que produziria em face dos interessadosdifusos” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 181).

É nesse contexto que se constrói a Teoria das ações co-letivas como ações temáticas:

A ação coletiva deve ser a demanda que propõe um tema,abrindo a possibilidade de que o próprio conteúdo do processoseja definido de modo participativo. O processo coletivo de-manda, portanto, uma fase inicial na qual o seu objeto seja for-mado. O mérito do processo é construído, dentro de umdeterminado período de tempo fixado na lei, até quando serápossível que os diversos interessados compareçam na demandae formulem seus pedidos. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 179)

A formação participada do mérito no processo coletivonão se dará no momento inicial de propositura da ação, mas simserá construída mediante a oportunização efetiva de todos osinteressados difusos juridicamente legitimados que apresentarem

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temas coerentes com a pretensão inicialmente deduzida em juízopara, a partir desse contexto, reconstruir o processo coletivo demo-crático a partir do sistema participativo. O momento processual paraa estabilização da demanda dar-se-á através da fixação dos pontoscontrovertidos, que será após a efetivação do direito de participaçãoem contraditório no processo decisório que afetará todos os interes-sados. A implementação efetiva do contraditório, enquanto princípioinstitutivo do processo (LEAL, 2000), dar-se-á através da efetivaparticipação de todos os interessados difusos na construção domérito do processo coletivo e, consequentemente, na construçãoparticipada do provimento jurisdicional. Trata-se de uma teoria cujoconceito de jurisdição não se encontra centrado solitariamente napessoa do julgador que, mediante a efetiva participação na cons-trução do mérito, terá reais condições de proferir sua decisão.Serão considerados legitimados à construção do mérito do pro-cesso coletivo todos aqueles interessados que demonstraremque sofrerão os efeitos da decisão judicial. Nesse sentido, temos:

Proposta uma ação cuja decisão envolva bem que afete umnúmero indeterminado de pessoas, o ideal seria que a leifixasse uma fase de divulgação para que os interessadosdifusos tomassem ciência e pudessem intervir no processo.Nas ações coletivas poderia ser estabelecida a obrigatóriaparticipação do Ministério Público, o que já ampliaria o rol doslegitimados presentes na ação e envolverá um órgão que tempor função primordial a defesa da legalidade.Recebida a defesa e os eventuais aditamentos à inicial, deveriahaver um despacho saneador no qual o juiz obrigatoriamente fi-xasse os pontos controvertidos e o objeto da prova e resolvesseas demais questões do processo. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 183)

Admitir o Ministério Público como o único legitimado apropor as ações coletivas é legitimar a violação do princípio docontraditório mediante a supressão da participação de todos osinteressados difusos na construção participada do mérito coletivo.A publicização da pretensão deduzida é o fundamento para aconstrução participada do mérito mediante ampla fiscalidade portodos aqueles juridicamente interessados.

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A CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PELO SISTEMA PARTICIPATIVO

A compreensão crítica do mérito participado perpassapelo entendimento do processo e das ações coletivas sob a óticado processo constitucional no Estado Democrático de Direito.

Toda problemática perpassa inicialmente pela distinçãojus-filosófica existente entre direito e interesse. Inicialmente, éimportante ressaltarmos o pensamento de Ihering, consideradoum utilitarista, que compreendia o direito a partir da ideia de exis-tência de um fim prático. É como explicita Vicente de PaulaMaciel Junior (2006, p. 20), citando Edgard Bodenheimer “Ihe-ring calcou o ponto central de sua Filosofia do Direito no fim. Ofim como criador de todo o Direito, não havendo norma jurídicaque não deva sua origem a um fim ou motivo prático”. É nessecontexto que Vicente de Paula Maciel Junior (2006, p. 20) afirmaque “Ihering entendia que os direitos não existem apenas pararealizar a idéia de vontade jurídica abstrata”. Dessa forma, sabe-se que, para Ihering, os direitos são vistos como interesses juri-dicamente protegidos.

A compreensão de Direito a partir da obra de Ihering éde caráter liberal e pautado na premissa de direitos individuais.Além disso, não se pode pensar o Direito enquanto ciência soba ótica processual, uma vez que os fundamentos metajurídicose de cunho axiológico representam o norte de toda a obra de Ihering.Dessa forma, é possível afirmar que atualmente a inaplicabilidadeda Teoria de Ihering evidencia-se na necessidade de proteçãojurídica não apenas de direitos individuais e de relações jurídicase privadas construídas entre particulares, mas, acima de tudo,no interesse em proteger direitos coletivos, cuja titularidade é dacoletividade, e não apenas de um indivíduo em si.

A partir dessas considerações iniciais, afirma-se que osinteresses jurídicos são construções individuais e de caráter

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liberal, cuja aplicabilidade no âmbito coletivo torna-se inviável.Dessa forma, sabe-se que, juridicamente, o mais adequado nãoé falarmos em interesses metaindividuais ou transindividuais,conforme preconizam alguns autores, mas sim em Direitos Cole-tivos, cuja efetivação dar-se-á através das ações coletivas edo processo coletivo. Nesse sentido revela-se o entendimentodo professor Vicente de Paula Maciel Junior (2006, p. 57-58):

Negamos em diversas oportunidades em nossa exposição aexistência de interesses coletivos e difusos. Sob o nossoprisma, os interesses são sempre individuais e, se assim é,não há como reconhecer que a manifestação individual dointeresse de uma parte em face de um bem possa ser difusa.O interesse é sempre identificável e relacionado a uma pessoaque manifesta sua intenção. Até mesmo a difundida expressãointeresses difusos foi idealizada tomando como pressupostobásico os sujeitos, para ressaltar que, com relação a essaespécie de interesses não há como identificar cada um daquelespossíveis interessados.

A garantia efetiva da participação pressupõe a publicizaçãoe a divulgação ampla da pretensão através de editais e outrosmeios de comunicação efetivos, tais como os veículos de comu-nicação, para que todos aqueles juridicamente interessadostenham a oportunidade de participação das discussões jurídico-constitucionais da pretensão. Essa foi a proposta adotada pelanova Lei de Ação Civil Pública em seu artigo 13:

Art. 13. Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará acitação do réu e, em se tratando de interesses ou direitosindividuais homogêneos, a intimação do Ministério Público eda Defensoria Pública, bem como a comunicação dos interes-sados, titulares dos respectivos interesses ou direitos objetoda ação coletiva, para que possam exercer, até a publicaçãoda sentença, o seu direito de exclusão em relação ao processocoletivo, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios decomunicação social.Parágrafo único. A comunicação dos membros do grupo,prevista no caput, poderá ser feita pelo correio, inclusiveeletrônico, por oficial de justiça ou por inserção em outro meiode comunicação ou informação, como contracheque, conta,fatura, extrato bancário e outros, sem obrigatoriedade deidentificação nominal dos destinatários, que poderão ser

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caracterizados enquanto titulares dos mencionados interessesou direitos, fazendo-se referência à ação e às partes, bemcomo ao pedido e à causa de pedir, observado o critério damodicidade do custo.

Importante esclarecer nessa publicização o objeto exatoa ser discutido, com o propósito de impedir alegações e discussõesimpertinentes e não relacionadas ao objeto em questão. O controledessa participação dos juridicamente interessados será feitodemocraticamente pelo Ministério Público e pelo magistrado,priorizando sempre o debate que venha a acrescentar e contribuirpara o deslinde da pretensão deduzida em juízo.

Imagine, por exemplo, uma ação civil pública cujapretensão é a extinção de festas populares na cidade de OuroPreto visando a proteção do patrimônio histórico-cultural, que épatrimônio da humanidade. Certamente o Judiciário deverá seincumbir de divulgar amplamente o objeto da presente açãocoletiva para oportunizar efetivamente a participação de todosaqueles interessados na proteção do patrimônio histórico-culturalda cidade de Ouro Preto. Tal participação não será asseguradaapenas aos cidadãos de Ouro Preto nem de Minas Gerais, tendoem vista a existência de sujeitos indiretamente interessados noobjeto da presente ação coletiva.

Talvez o grande desafio prático enfrentado pelo Judiciárioseja instrumentalizar efetivamente tal participação, argumentoesse que deve ser rechaçado e que não pode ser utilizado comosubterfúgio à supressão da construção participada do méritoparticipado das ações coletivas. Considerando que tal participaçãoé um Direito Fundamental assegurado a todos os cidadãos juri-dicamente interessados e atingidos pelos efeitos do provimentojurisdicional, afirma-se que problemas estruturais enfrentadospelo Judiciário jamais poderão ser argumentos utilizados parasuprimir tal participação.

Ressalta-se, ainda, a obrigatoriedade de observânciaefetiva dos princípios constitucionais da isonomia processual,

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contraditório e ampla defesa, para que não enfrentemos participa-ções meramente formais na discussão do mérito das ações cole-tivas. No momento da construção do provimento jurisdicional, omagistrado deverá apresentar argumentos jurídicos suficientespara admitir ou rechaçar as alegações apresentadas por todosaqueles que participaram do debate jurídico da pretensão coletiva.

É importante que fique claro que o foco de discussão paraa construção participada do mérito na Teoria das ações coletivascomo ações temáticas é o objeto, e não o sujeito, uma vez que alegitimidade democrática do provimento jurisdicional não se limitaem oportunizar a todos os cidadãos o direito de participar direta-mente da construção do provimento, mas sim oportunizar, me-diante o princípio da publicidade, que sejam apresentados todosos temas e argumentos possíveis, coerentes e pertinentes com apretensão inicialmente deduzida. É nesse sentido que o méritoparticipado deve ser pensado: garantir efetivamente a oportuni-dade de apresentação de todos os temas, argumentos e alega-ções pertinentes à pretensão inicialmente deduzida em juízocomo forma de definir o objeto do processo coletivo e, conse-quentemente, viabilizar a construção participada do mérito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reconstrução do processo coletivo a partir do ModeloConstitucional de Processo perpassa pelo entendimento da Teoriadas ações coletivas como ações temáticas, que utiliza o sistema par-ticipativo como instrumento de ampla fiscalidade a ser exercida pelocidadão e centra todo o foco de seu debate não no sujeito, mas simno objeto. Dessa forma, o rol de legitimados não pode ser taxativo edeve contemplar amplamente todo aquele que demonstrar interesse

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jurídico na pretensão deduzida em juízo. É nesse contexto da reflexão científica que o presente de-

bate pretende esclarecer acerca da necessidade de implementa-ção da disciplina de Teoria Geral do Processo Coletivo como formade superação do entendimento individualista e autocrático no es-tudo do processo coletivo, como quer a Escola Instrumentalista.

Nesse ínterim, é oportuna a necessidade de sistematizaçãode toda a legislação pertinente ao Direito e ao Processo Coletivo,para que se obtenha a autonomia científica necessária ao reco-nhecimento de tal disciplina. A existência de legislações esparsascertamente compromete a identidade do tema em questão.

A regulamentação da procedimentalização do processocoletivo é considerada matéria urgente tendo em vista a finali-dade de esclarecer como se efetiva a possibilidade de participaçãoe de exercício do contraditório e da ampla defesa por todos aquelesjuridicamente interessados. É de suma importância, ainda, adelimitação do momento processual da estabilização da pretensãodeduzida e até qual fase do procedimento será possível a inter-venção de terceiros para construir discursivamente o méritocoletivo. Outra questão que merece destaque diz respeito aosreflexos da estabilização da demanda na constituição da coisajulgada e de seus efeitos legais.

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Umberto Machado de Oliveira*

O exercíciO dO cargO públicO numa sOciedade de riscO e O cOmetimentO

de imprObidade administrativa

ThE ExErCisE OF PUbliC OFFiCE in a risk sOCiETy

anD ThE COMMiTMEnT OF aDMinisTraTivE MisCOnDUCT

El EjErCiCiO DEl CarGO PúbliCO En Una sOCiEDaD DE riEsGO

y El COMETiMiEnTO DE Una FalTa aDMinisTraTiva

Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo confrontar a concepção de

“sociedade de risco” com o conceito legal de improbidade adminis-

trativa previsto na Lei n. 8.429/92, conhecida como Código Geral

de Conduta do Administrador Público no direito brasileiro. A partir

disso, buscar-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do

cargo público no contexto de uma sociedade de risco, com vistas

a contribuir para o debate de sua responsabilização por ato que im-

porte em violação da referida lei em função da não observância dos

princípios da precaução e da prevenção, inerentes a tal teoria.

Abstract:

This paper aims to confront the concept of "risk society" with

the legal concept of administrative misconduct under Law

8.429/92, known as the General Code of Conduct of the Public

Administrator in Brazilian law. From this, it will get a reflection

on the position of exercente public office in the context of a risk

society, in order to contribute to the discussion of accountability

for an act that matters in violation of that law on the basis of

* Mestre em Direito pela UFG. Doutorando pela Universidade de Coimbra. Pro-fessor da Faculdade de Direito da UFG. Promotor de justiça do Estado de Goiás.

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non-compliance with the principles of precaution and preven-

tion, inherents in this theory.

Resumen:

El presente trabajo tiene como objetivo hacer frente a la noción

de "sociedad del riesgo" con el concepto jurídico de falta admi-

nistrativa en virtud de la ley. 8.429/92, conocida como el Código

General de Conducta del Administrador Público en la legislación

brasileña. De esto, se conseguirá una reflexión sobre la posición

del ejercente del cargo público en el contexto de una sociedad

de riesgo, con el fin de contribuir a la discusión de la responsa-

bilidad por un acto que importa en la violación de la ley sobre la

base del no-cumplimiento de los principios de precaución y pre-

vención, inherentes a esta teoría.

Palavras-chaves:

Precaução, prevenção, responsabilidade, administrador, ímprobo.

Keywords:

Precaution, prevention, responsibility, administrator, dishonest.

Palabras clave:

Precaución, prevención, responsabilidad, administrador, deshonesto.

intrOduÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo relacionar a con-cepção de “sociedade de risco” com o exercício do cargo público naperspectiva da configuração de ato de improbidade administrativa,conforme previsto na lei n. 8.429/92, o Código Geral de Conduta

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do administrador Público no direito brasileiro. a partir disso, bus-car-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do cargo pú-blico no contexto de uma sociedade de risco com vistas acontribuir para o debate de sua responsabilização por ato queimporte em violação da referida lei, tendo em vista a repercussãosocial de sua conduta.

a pergunta que se pretende responder, em outras pala-vras, é: no que podem contribuir a teoria do risco e os princípiosque dela decorrem para o combate do fenômeno da improbidadeadministrativa? Embora saibamos que a concepção de socie-dade de risco tem sido estudada mais sob a ótica das inovaçõestecnológicas e dos riscos que oferecem ao meio ambiente e àsaúde do ser humano, o trabalho buscará apoio na doutrina pro-duzida nessa área, com o fito de transportá-la para a questão doexercício do cargo público e da possibilidade do cometimento deatos que violem a lei reguladora da questão no direito brasileiro.

É de se considerar que a adoção de medidas para solu-ção de problemas ambientais identificados muitas vezes apro-xima-se, ainda que de forma transversa, ao fenômeno daimprobidade administrativa. não raro as tentativas de solução deproblemas ambientais são, para os malversadores do erário, emmuitas situações, uma boa fonte de desvio de recursos. a “causa”é boa, ou seja, a “defesa do meio ambiente”. Os mecanismos deefetivação da tentativa de solução de um problema ambiental sãomuitas vezes de dificílima ou de impossível aferição posteriorquanto à real utilização dos meios sugeridos. Uma exemplificaçãotalvez torne mais clara essa afirmação. vamos tomar a hipótesede um rio poluído. imagine-se que, para a solução do problemada poluição nesse rio, seja apontada, como uma das providênciasviáveis, lançar um composto químico diluído na quantidade de ummilhão de litros de água, e que esse composto químico seja dealto custo. O composto químico é lançado, mas numa quantidadeequivalente à metade do que era previsto, enquanto nas planilhas

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de lançamento consta que foi lançado de acordo com o planejado.Como comprovar que essa fraude ocorreu? se, por exemplo, tomar-se amostras da água do rio onde foi lançado o composto químico,pode ser afirmado que a dosagem inicialmente planejada não sur-tiu o efeito esperado e, portanto, há necessidade de uma maiorquantidade. não será possível, nessa hipótese, dizer que não foilançada a quantidade do composto químico simplesmente porque,por exemplo, não se pode, diante do fluxo das águas no leito dorio e de diversos fatores naturais que possam ter influenciado (re-tenção nas areias no fundo do leito, às margens, etc.), aferir aquantidade lançada. Esse simples exemplo hipotético serve parailustrar quantos riscos há, em matéria ambiental, de improbidadeadministrativa. Portanto, a teoria do risco, produzido no âmbito dodireito ambiental, pode, cremos, ser transportada para servir deanálise da ocorrência do fenômeno.

cOnsideraÇÕes preliminares sObre a lei n. 8.429/92e delimitaÇÃO dO cOnceitO de imprObidade

a Constituição Federal brasileira previu, em seu art. 37,§ 4º, que “os atos de improbidade administrativa importarão asuspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a in-disponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma egradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

na sequência, em complementação a esse preceito, edi-tou-se a lei n. 8.429/92, a qual estabeleceu, em seu capítulo ii,em três seções distintas, os três grandes grupos de atos carac-terizadores de improbidade administrativa1: a) os que importem

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1 Essa tipologia já é absorvida pela jurisprudência, até mesmo em função da cla-reza da divisão feita no texto legal, conforme se depreende da decisão da Primeira

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em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os que causem prejuízo aoerário (art. 10); c) os que atentem contra os princípios da admi-nistração Pública (art. 11), compreendida, nesse tópico, a lesãoà moralidade administrativa.

Quando procedemos à leitura dos dispositivos legais quecontêm os tipos de improbidade administrativa (artigos 9º, 10 e11 e incisos), é possível identificar a coexistência de duas técni-cas legislativas na elaboração da lei n. 8.429/92: i) a primeira,que pode ser identificada na cabeça (caput) dos dispositivos tipi-ficadores da improbidade, com a utilização de conceitos jurídicosindeterminados, o que seria adequado como instrumento quepretende o enquadramento do infindável número de ilícitos depossível ocorrência, decorrentes da própria criatividade humanae de seu poder de improvisação; ii) a segunda, na formação dediversos incisos que compõem os arts. 9º, 10 e 11, com previsõesespecíficas, ou passíveis de integração, de situações que podemconsubstanciar, na vida cotidiana da administração pública, im-probidade, os quais facilitam o entendimento dos conceitos inde-terminados veiculados nos artigos principais e possuem naturezameramente exemplificativa, tendo em vista o emprego do advér-bio "notadamente" (GarCia, 2006, p. 248).

a previsão de dispositivos de combate à probidade naadministração pública tem sido enrobustecida no direito brasi-leiro, seja com alteração à Constituição Federal pelo constituintederivado, seja com a inserção em leis complementares e ordiná-rias de disposições que a essa questão fazem referência. assimé que, logo após a edição da lei n. 8.429/92, foi aprovada a

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Turma do superior Tribunal de justiça brasileiro, contida no recurso Especial n.874.040-MG (Diário de justiça Eletrônico de 12.11.2008): “5. Deveras, a título deargumento obiter dictum, o caráter sancionador da lei 8.429/92 é aplicável aosagentes públicos que, por ação ou omissão, violem os deveres de honestidade,imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições e notadamente: a) importemem enriquecimento ilícito (art. 9º) ; b) causem prejuízo ao erário público (art. 10);c) atentem contra os princípios da administração Pública (art. 11) compreendidanesse tópico a lesão à moralidade administrativa.”

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Emenda Constitucional de revisão n. 4, que deu nova redaçãoao § 9º do art. 14, constante do capítulo dos direitos políticos naConstituição Federal, prevendo que lei complementar estabele-ceria outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação,a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para oexercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato,e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência dopoder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ouemprego na administração direta ou indireta. além disso, é dignode nota que o artigo 15, que estabelece, no caput, a vedação decassação de direitos políticos, insere entre as hipóteses excep-cionais de perda e suspensão dos referidos direitos, no seu incisov, os casos de improbidade administrativa, nos termos do art. 37,§ 4º. ainda, entre os crimes de responsabilidade que podem serpraticados pelo Presidente da república, estão os atos que aten-tem contra a probidade na administração (art. 85, v, da Constitui-ção Federal de 1988). Também a lei de responsabilidade Fiscal(lei Complementar n. 101, de 04.05.2000), que estabelece nor-mas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade nagestão fiscal e dá outras providências, previu, em seu art. 73, queas infrações a seus dispositivos serão punidas segundo as nor-mas do Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 2.848, de7.12.1940, da lei n. 1.079, de 10.04.1950 (lei do impeachment),do Decreto-lei n. 201, de 27.02.1967 (lei de responsabilidadedos Prefeitos e vereadores) e da lei n. 8.429/92. Por fim, cumpreregistrar que a lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997 (que es-tabelece normas para as eleições), estatui, em seu art. 73, um rolde condutas vedadas destinado especificamente aos agentes pú-blicos, com “o indisfarçável propósito de evitar que a estrutura ad-ministrativa seja utilizada para fins políticos, relegando a planosecundário o interesse público”, com a cominação de sançõesque podem ser aplicadas pela justiça Eleitoral (tais como suspen-são imediata da conduta vedada, multa e cassação do registro

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ou do diploma), sem prejuízo da configuração, conforme o § 5º domesmo dispositivo, simultânea de ato de improbidade administra-tiva a ser punido nos termos do art. 11, inciso i, da lei n. 8.429/92.

É de se inferir que se há uma preocupação com a maté-ria é porque esta, obviamente, tem relevância no contexto do sis-tema democrático. E ninguém duvida disso. não é preciso muitoesforço e conhecimento para supor que o fenômeno da improbi-dade tem implicações negativas muito amplas na administraçãopública e, com isso, afeta milhões de pessoas de forma direta eindireta, especialmente quando a escassez de recursos públicosresulta em ineficiência ou mesmo insuficiência na prestação deserviços essenciais (saúde, educação, segurança, por exemplo)à coletividade. a preocupação presente no direito brasileiro é en-contrada também no direito internacional, como se percebe dossucessivos e recentes tratados internacionais sobre a matéria: a)a Convenção interamericana contra a Corrupção, concluída noquadro da Organização dos Estados americanos em 29.03.1996;b) o Código internacional de Conduta para os Funcionários Pú-blicos (resolução n. 51/59, das nações Unidas, em 12.12.1996);c) a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Eu-ropa, assinada em Estrasburgo em 30.04.1999; d) a Convençãoda União africana para a Prevenção e a luta Contra a Corrupçãoe Crimes assimilados, aprovada em Maputo em 11.07.2003; e)e, finalmente, a Convenção da nações Unidas contra a Corrup-ção, assinada em Mérida, no México, em 31.10.2003.

nessa linha, cumpre registrar que o conceito de impro-bidade administrativa é visto como espécie de má gestão pública.Osório (2007) procura situar a improbidade administrativa, nummarco ético-institucional, como espécie de má gestão pública, oque implicaria num escalonamento dos ilícitos de má gestão,aparecendo a improbidade em seu devido lugar. Pontua que anoção jurídica de boa gestão, no âmbito do direito administrativo,tem origem teórica inicial nas lições de Maurice hauriou, jurista

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francês que pioneiramente referiu-se ao princípio da moralidadeadministrativa, fazendo-o na perspectiva funcionalmente apoiadano ideário de boa gestão pública. O referido autor, ao tecer co-mentários à jurisprudência do Conselho de Estado francês, nocomeço do século xx, disse que

existia uma moralidade administrativa segundo a qual o admi-nistrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disci-plina interna da administração Pública, o que significava aobediência necessária a pautas de boa administração, transcen-dendo as minúcias ou previsões expressas nas regras legais.(OsÓriO, 2007, p. 39)

nessa ótica, a boa administração comportaria um espec-tro de condutas eticamente exigíveis dos administradores públi-cos, fossem ou não previstas expressamente no ordenamentojurídico passivo. seguindo esse raciocínio, ser bom administradornão equivaleria, originalmente, apenas ao mero cumprimento dalegislação, como também o mau administrador poderia descum-prir preceitos ligados à ética institucional, à moral administrativa.isso representou um ataque ao pensamento positivista predomi-nante no momento histórico por ele vivenciado. salienta Osórioque, muito embora seja possível identificar-se alguns vestígios daexigência de uma espécie de boa administração pública nas re-motas culturas ocidentais, é na pós-modernidade que se conso-lida essa “exigência ético-normativa por meio da mudança daadministração burocrática ao modelo gerencial”, e dentro desseambiente há o aumento dos níveis de responsabilidade pessoaldos agentes públicos. ressalta, ainda, que ninguém duvida deque hoje em dia haja um princípio essencial de boa gestão públicanas Constituições democráticas, como disse, inclusive, “muitoacertadamente o Parlamento Europeu, ao anunciar que tal prin-cípio suporta uma série de deveres de boa gestão, deveres ima-nentes ao sistema e não necessariamente explícitos”. registraque a confiança ou o trust entre administradores e administrados,que está no centro das democracias modernas, tem como ponto

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de partida a boa gestão pública, até mesmo em decorrência deque os primeiros têm que prestar contas de seus atos aos segun-dos. Poderia se afirmar, na ótica do autor, que a juridicização dodever de boa gestão pública é decorrente de profundas alteraçõesna teoria política do Estado, o qual passa a ter como suportenovos paradigmas teóricos de justificação, “entre os quais a buscae a implementação de resultados”, que alcança não só o nível ad-ministrativo, mas também o institucional. Pontifica que a boa ges-tão tem como pressuposto o respeito aos direitos fundamentaisda pessoa humana e a satisfação das demandas da cidadania,cumprindo as exigências do liame de confiança que une e deveunir governantes e governados, administradores e administrados2.

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2 E prossegue o autor (2007, p. 43-47) quando discorre sobre o imperativo ético daboa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dosagentes públicos: “O conceito de legitimidade pertence tanto ao campo da ética quantoao da teoria política. inclui um julgamento de valor sobre um sistema considerado glo-balmente, que será, assim, tido como legítimo ou ilegítimo, bom ou mau, conforme asrazões que impulsionam sua atuação e as necessidades sociais. Esse julgamento sedirige a um fim último do sistema, tomado este e seus elementos como meios aptospara produzir aquele, desde uma perspectiva interna ou externa de balizamento.Em síntese muito apertada, pode-se anotar que, no mundo pré-moderno, a legiti-midade dos sistemas políticos se fundamentou basicamente na religião ou empráticas próximas às religiões. no moderno, a legitimidade alicerçou-se funda-mentalmente na teoria do contrato social, na ética do consenso, no princípio desoberania popular e em discursos universalizantes na proclamação de direitos hu-manos. na pós-modernidade, os pressupostos de legitimidade passaram a serdeslocados para outros domínios, nomeadamente pelos critérios de eficiência, oque, para alguns autores, pode significar ocultar do discurso a discussão sobreos fins últimos do Estado, embora isto não seja realmente necessário.vemos a exigência de boa administração - tal e como funciona na atualidade -como produto específico da pós-modernidade, esse contexto no marco do qualos novos paradigmas ainda seguem abertos e os velhos em permanente questio-namento crítico. É certo que, nesse universo, o discurso político tem muito a vercom o econômico, especialmente no tocante aos paradigmas de qualidade, efi-cácia e eficiência dominantes no âmbito das atividades privadas. a gestão empresarial, entretanto, tem uns parâmetros próprios, distintos aos deconseguir exclusivamente satisfazer ao bem comum, o que produz paradoxos.Em relação às decisões públicas, o discurso ético da boa administração não seocupa exclusivamente de resultados, mas também de condutas eticamente cor-retas. Os meios e os fins são relevantes e positivamente valorados dentro dos pa-radigmas do bom administrador, daí a processualidade das relações nesse setor.ninguém duvida que a ética institucional do setor público impõe o ideal de boa ad-ministração e por, isso proíbe a má gestão pública.”.

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Osório observa, nesse ponto, que a corrupção tem sidoum assunto central no processo comunicativo de globalização,propiciando a união de esforços e energias internacionais, tantopara o seu combate quanto para se buscar o implemento, a difu-são e o fortalecimento de mecanismos preventivos e de diagnós-ticos precisos, tudo com vistas a objetivos comuns aos povoscivilizados e democráticos. Pondera, no entanto, que definir a pa-tologia da corrupção como “o uso indevido de atribuições públi-cas para obter benefícios privados” é muito amplo e ambíguo,“capaz de abarcar desde as mais insignificantes até as maiorespatologias imagináveis” (OsÓriO, 2007, p. 28). O termo carregaem si uma magia capaz de mobilizar a opinião pública e causarsérios prejuízos políticos e até econômicos e hoje os organismosinternacionais iniciam a adotar

[...] posturas mais coerentes e comprometidas com a soluçãodessas graves questões, abandonando o viés obsessivo pelaterminologia da corrupção, cujas entranhas resultam estreitaspara abarcar outros fenômenos. Esse é o caso do Código in-ternacional de Conduta para os titulares de cargos públicos,documento feito pelas nações Unidas. segundo esse Código,os titulares de cargos públicos serão, em última instância, leaisaos interesses públicos de seu país, tal como se expressempor meio das instituições democráticas de governo, de ma-neira eficiente e eficaz. Os agentes públicos devem ser dili-gentes, justos e imparciais, deveres genéricos, é verdade, quecomportam múltiplas formas de concretização e densidadenormativa, tarefa a cargo dos Estados soberanos. Tais deveressuperam o olhar limitado às desonestidades corruptas ou corrup-toras, alcançando outros domínios comportamentais, inclusivenão intencionais, apenas violadores de cuidados objetivos ediligentes que deveriam ser tomados.O que se nota é uma preocupação da OnU com problemasque transcendem os limites mais estreitos da corrupção pú-blica, deslocando o debate ao universo mais amplo da má ges-tão pública, embora os temas resultem entrelaçados e estamovimentação ainda seja tímida em seus sinais mais emble-máticos. (OsÓriO, 2007, p. 36-37)

ainda, registra Osório que alguns sistemas, como é o casodo brasileiro, estão enfocando mais a improbidade, expressão de

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conteúdo mais amplo, da qual a corrupção constitui apenas uma fa-ceta mais preocupante, mas não a sua inteireza. Dessa forma, na lin-guagem cotidiana a expressão improbidade substitui a corrupção,absorvendo o enriquecimento ilícito, tendo em vista que essa é a lin-guagem que se utiliza no meio forense e que é transplantada para osmeios de comunicação. O certo é que o Estado vem buscando mu-niciar-se de ferramentas para combater as variadas modalidades deatos ilícitos, seja as que abrangem a desonestidade ou as que assumema forma de ineficiências intoleráveis. ressalta que é nesse contextoque o direito brasileiro desempenha um papel de vanguarda, assu-mindo a liderança de um processo de renovação do sistema punitivo,“comprometendo-se com parâmetros de maior eficácia, desde oponto de vista das ferramentas disponíveis, não necessariamente dasinstituições competentes”.

na visão de silva (2008, p. 669), a probidade administra-tiva seria uma forma de moralidade administrativa que foi objetode atenção especial da Constituição, considerando-se que puniuo ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, § 4º),conforme anotado linhas atrás. a probidade administrativa traduz-se, assim, no dever do funcionário da administração atuar comhonestidade ao exercer suas funções, sem aproveitar-se dos seuspoderes ou das facilidades deles decorrentes em proveito pessoalou de outra pessoa a quem queira beneficiar. O desrespeito aesse dever caracterizaria a improbidade administrativa. Pontificaque a improbidade administrativa constitui-se numa imoralidadeadministrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondentevantagem ao ímprobo ou a outrem. no âmbito trabalhista a dou-trina desenvolveu uma concepção de probidade que se aproximamuito do dever do funcionário para com a administração3.

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3 O dispositivo da Consolidação das leis Trabalhistas (Decreto-lei n. 5.452, de 1ºde maio de 1943) que prevê a demissão do empregado por justa causa por ato deimprobidade é o art. 482, “a”, com a seguinte redação: “art. 482 - Constituem justacausa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbi-dade; [...]”. Em comentário sobre essa previsão, Garcia assim se manifesta: “aindaque en passent, é relevante tecer algumas considerações sobre o tratamento da

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a visão de silva no final do parágrafo anteriormente trans-crito, no sentido de que a “improbidade é uma imoralidade qualifi-cada pelo dano ao erário”, merece uma melhor reflexão, pois não éde todo acertada. Para a configuração da improbidade às vezes nãohá necessidade de prejuízo ao erário, e também nem toda infraçãoà legalidade (como previsto no art. 11 da lei n. 8.429/92) ou à moralpode ser vista de pronto como caracterizadora de improbidade.

Primeiramente, o art. 5º da lei n. 8.429/92 já sinaliza a des-necessidade de ocorrência do efetivo prejuízo ao erário para a con-figuração de improbidade administrativa ao estabelecer que“ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosaou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarci-mento do dano”. O gerúndio “ocorrendo” dá a exata noção de quepode não ocorrer e assim a lei será aplicável da mesma forma. nemtodos os incisos previstos no art. 9º necessitam do dano ao eráriopara sua configuração e o 11 e incisos não pressupõem a ocorrênciade dano ao erário público, pois nestes foram eleitas condutas queconfigurariam atos de improbidade administrativa que atentam con-tra os princípios da administração pública. ademais, o art. 21, i, es-tabelece que a aplicação das sanções previstas no art. 12 prescinde"da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público", o que reforçaa ideia da desnecessidade do dano ao erário para configuração deimprobidade. Essa conclusão é ainda mais robustecida pelo feixede sanções previstas para infração em seu art. 12, incisos i a iii, emque se prevê ressarcimento integral do dano “quando houver”.nesse ponto é de se observar, conforme anota Garcia, que o dis-posto no art. 21, inciso i, deve ser interpretado em harmonia, em es-pecial com o art. 10, pois para que haja subsunção de determinadofato às figuras previstas “neste dispositivo é imprescindível a oco-rrência de dano ao patrimônio público, o que, por evidente, não po-deria ser dispensado por aquele” (GarCia, 2006, p. 277).

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improbidade nas relações trabalhistas, seara em que sua presença consubstancia justacausa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador (art. 482, i, da ClT)”.

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Para melhor elucidação do conceito de improbidade ad-ministrativa, torna-se adequado abrir um parêntesis para incursio-nar nos critérios propugnados na doutrina para a aplicação da lein. 8.429/92. Garcia prega, nesse aspecto, a utilização do princípioda proporcionalidade, de tal forma que se estabeleçam “critériospassíveis de demonstrar a configuração da improbidade adminis-trativa em sua acepção material”, evitando-se a realização de umaoperação mecânica (“formal”) de subsunção do fato à norma.Destaca que à atividade de concreção dos valores que foram elei-tos pelo legislador na referida lei devem ser estabelecidos limites,“sob pena de se transmudar uma legitimidade de direito em umailegitimidade de fato”. É necessário “uma valoração responsávelda situação fática”, pois assim é que essa legislação, restritiva dedireitos fundamentais, manter-se-á em harmonia com os limitesconstitucionais, “não incursionando nas veredas da desproposi-tada aniquilação desses direitos”4.

Então, utilizando-se o princípio da proporcionalidade emsentido estrito, torna-se inadequada a aplicação da lei n.8.429/92, por não configurar ato ímprobo, quando desprezível alesão aos deveres do cargo, tendo em vista que, além da insig-nificância do ato, a aplicação das sanções previstas no art. 12 da

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4 Em relação ao princípio da aplicação do princípio da proporcionalidade, prosse-gue Garcia (2006, p. 104-105): “Este princípio deflui do sistema e visa a evitar res-trições desnecessárias ou abusivas aos direitos constitucionais, permitindo abusca da solução menos onerosa para os direitos e liberdades que defluem doordenamento jurídico. Em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade será ob-servado com a verificação dos seguintes fatores: a) adequação entre os preceitosda lei nº 8.429/92 e o fim de preservação da probidade administrativa, salvaguar-dando o interesse público e punindo o ímprobo; b) necessidade dos preceitos dalei nº 8.429/92, os quais devem ser indispensáveis à garantia da probidade ad-ministrativa; c) proporcionalidade em sentido estrito, o que será constatado a partirda proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido, vale dizer,entre a preservação da probidade administrativa, incluindo as punições impostasao ímprobo, e a restrição aos direitos fundamentais (livre exercício da profissão,liberdade de contratar, direito de propriedade etc.). afora estes, os quais formariama denominada razoabilidade interna, luís roberto barroso acrescenta a razoabi-lidade externa, que representa a compatibilidade entre o meio utilizado, o fim co-limado e os valores constitucionais.”.

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lei n. 8.429/92 ao réu importa lesão maior do que aquela que elecausara ao ente estatal. nesse caso, poderão ser aplicadas aoagente público outras sanções (de caráter disciplinar, como a ad-vertência, etc.), que tenham compatibilidade com a reprovabilidadede sua conduta e com a natureza dos valores porventura infringidos.a improbidade administrativa, conforme observa Osório (2007, p.179), deve ser a última ratio do direito administrativo sancionador.

Propugna, pois, que “à improbidade formal deve estarassociada a improbidade material”, sendo que esta

não restará configurada quando a distorção comportamental doagente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou denenhum valor; bem como quando a inobservância dos princípiosadministrativos, além daqueles elementos, importar em erro dedireito escusável ou não assumir contornos aptos a comprome-ter a consecução do bem comum (art. 3°, iv, da Cr/88).

vê-se, pois, que a improbidade administrativa não estárelacionada a qualquer situação de desbordamento de preceitosmorais ou mesmo a desvios de pouca monta do erário, passíveisde correção por outras vias punitivas, como, por exemplo, de ca-ráter disciplinar no plano administrativo.

Destaca que, tendo sido encampado o princípio da digni-dade da pessoa humana como direito fundamental, ele deve ser uti-lizado conjuntamente com o princípio da proporcionalidade para, apartir da ponderação, evitar ilegítimas restrições a tais direitos. Men-ciona como parâmetro a técnica utilizada no direito germânico paraidentificar a "justa medida"5 na restrição aos direitos fundamentais.

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5 assim se manifesta Garcia (2006, p. 106-107): “De acordo com scholler, 'na aferiçãoda constitucionalidade de restrições aos direitos fundamentais, o Tribunal FederalConstitucional (alemão) acabou por desenvolver, como método auxiliar, 'a teoria dosdegraus' (Stufentheorie) e a assim denominada 'teoria das esferas' (Sphãnrentheorie).De acordo com a primeira concepção, as restrições a direitos fundamentais devemser efetuadas em diversos degraus. assim, por exemplo, já se poderá admitir umarestrição na liberdade de exercício profissional (art. 12 da lei Fundamental) por qual-quer motivo objetivamente relevante (aus fedem sachlichen Grund), ao passo queno degrau ou esfera mais profunda, o da liberdade de escolha da profissão, tida comosendo em princípio irrestringível, uma medida restritiva apenas encontrará justificativa

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Portanto, se o dano causado ou o benefício auferido não é expres-sivo (como a destruição de uma folha de papel comum, utilizaçãode um grampo para fins privados, etc.6), que seu ato atingiu in totum

o fim previsto na norma e que, no contexto em que o ato foi prati-cado, o erro de direito era plenamente escusável, a aplicação dalei n. 8.429/92 apresentará nítida desproporção com o ato, estandoausente a proporcionalidade em sentido estrito, pois o ônus impostoao agente em muito superará a lesividade de sua conduta:

não sendo identificada a prática de um ato objetivamente re-levante, não se poderá ascender, sequer, ao "primeiro degrau"da escala de restrição dos direitos, o qual seria atingido com amera aplicação da lei n° 8.429/92. Os "degraus subsequentes",por sua vez, serão galgados na medida em que for identificadaa relevância do ato, valorada a sua potencialidade lesiva e cons-tatada a reprovabilidade da conduta do agente, o que permitiráque seja aferida a sanção que se afigura mais justa ao caso [...].

Prossegue reforçando que, detectada apenas a improbidadeformal, deve incidir apenas as sanções de ordem política ou adminis-trativa, de natureza e grau compatíveis com a reprovabilidade do ato.

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para salvaguardar bens e/ou valores comunitários de expressiva relevância deameaças concretas, devidamente comprovadas, ou pelo menos altamente pro-váveis". Evidentemente, operação como essa, à luz do direito pátrio, não deverásopesar uma ordem axiológica supralegal; na alemanha, ao revés, é constante aadoção dessa técnica pelo Tribunal Constitucional, o que, não obstante as críticas,encontra ressonância no direito positivo daquele país.”.6 Esses exemplos são fornecidos por Garcia. Embora bastantes ilustrativos, elessão extremos e acabam por não fornecer um parâmetro para que se possa excluira configuração do ato ímprobo. a lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997, que, entreoutras providências, regulamenta a atribuição do advogado-Geral de União pre-vista no art. 73, vi, da lei Orgânica da advocacia da União (lei Complementar n.73, de 10 de fevereiro de 1993, que possibilita, entre outras hipóteses, a desistên-cia em ações de interesse da União), estabelece, em seu art. 1º-a, que o “advo-gado-Geral da União poderá dispensar a inscrição de crédito, autorizar o nãoajuizamento de ações e a não-interposição de recursos, assim como o requeri-mento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursosjudiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públi-cas federais, observados os critérios de custos de administração e cobrança”. jáno seu art. 1º-b. estatui que “os dirigentes máximos das empresas públicas fede-rais poderão autorizar a não-propositura de ações e a não-interposicão de recur-sos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de

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Obtempera, contudo, que a atipicidade (material) não tem o pro-pósito de abrir as portas da impunidade, e, nessa linha, a “suaaplicação deve manter-se adstrita às hipóteses em que a con-substanciação da improbidade venha a ferir o senso comum, im-portando em total incompatibilidade com os fins sociais da normae as exigências do harmônico convívio social (art. 5°, caput, daliCC)”. lembra, em conclusão, frase atribuída a jellinek, que sin-tetizaria a ideia de proporcionalidade: "não se abatem pardaisdisparando canhões".

Osório (2007, p. 89-90) alerta para a visão da improbi-dade administrativa sob a ótica da moral privada, o que resultaem um “indevido controle da vida privada dos agentes públicose a distorção fundamental do conceito de probidade no campoético-normativo”. Observa que, em face da prodigalidade do di-reito em criar tipos sancionadores da falta de probidade, não rarohá confusão por parte do povo sobre esses conceitos, “imagi-nando que probo seria o sujeito moralmente correto do ponto de

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desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualiza-dos, de valor igual ou inferior a r$ 10.000,00 (dez mil reais), em que interessadasessas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas con-dições aqui estabelecidas” (ambos, artigos 1º-a e 1º-b, incluídos pela lei n. 11.941,de 2009). Como se vê, embora a configuração de atos de improbidade dependada análise de cada caso concreto, esses dispositivos nos permitem a reflexão nosentido de que, se a União ou as entidades públicas estiverem desistindo de valoresde até r$ 10.000,00, é possível admitir que, avaliadas as provas produzidas numaeventual ação judicial que questione um ato praticado imputando-o de ímprobo,possa ocorrer absolvição ainda que a lesão não se resuma aos valores ínfimos deuma folha de papel ou um grampo utilizado, conforme exemplos de Garcia. vejaque no âmbito penal a matéria já objeto de decisão pela sexta Turma do superiorTribunal de justiça, ao apreciar o rEsp 250631 / Pr, da relatoria do Ministro PauloGallotti (Dj de 18.02.2002, p. 525): “recurso Especial. Penal. Descaminho. Prin-cípio da insignificância. aplica-se o princípio da insignificância ao não pagamentode impostos em valores que o próprio Estado expressou o seu desinteresse pelacobrança. recurso especial não conhecido. acórdão. vistos, relatados e discutidosestes autos, acordam os Ministros da sexta Turma do superior Tribunal de justiça,na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade,não conhecer do recurso, nos termos do voto do sr. Ministro relator. Os srs. Mi-nistros Fontes de alencar, vicente leal e hamilton Carvalhido votaram com o sr.Ministro relator. ausente, justificadamente, o sr. Ministro Fernando Gonçalves”.

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vista de seus deveres privados” (fidelidade num matrimônio, pa-gamento de uma dívida junto ao vizinho, ajuda aos pobres quepedem esmolas, etc.). Defende que “aos agentes públicos se as-segura o supremo direito à imoralidade, dentro de limites maisestreitos, é certo”, e por isso considera incorreta a tese que buscaidentificar na improbidade uma imoralidade comum. Pondera, noentanto, que o regime jurídico de direito público é mais severo erigoroso que outros, o que reduz sensivelmente a vida privadados agentes públicos, sem indicar o desaparecimento desta.

sustenta, pois, que a improbidade não se identifica coma “mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qua-lificada pelo direito administrativo”, pois também os agentes pú-blicos gozam dos direitos fundamentais à intimidade, àprivacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilosde vida e personalidades. Dessa forma, os agentes públicos te-riam “espaços privados nos quais podem praticar atos imorais,desde que esses atos não transcendam os estreitos limites daética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros”.

O problema da falta de probidade administrativa deve serreduzido, segundo Osório, ao universo da ética pública, no con-texto de normas jurídicas especificamente protetoras das funçõespúblicas, dos valores imanentes às administrações Públicas eaos serviços públicos.

acresce que a definição de improbidade como “uma imo-ralidade administrativa qualificada” merece uma justificação.nesse ponto, a bem da verdade, os preceitos dos arts. 5º, lxviii,lxix e lxxiii, 37, caput, § 4º, 142, vi, e 85, v, todos da Constitui-ção Federal brasileira, versariam normas de ética institucional, oude moralidade administrativa. a moral administrativa seria “fontedo dever de probidade administrativa que se encontra no art. 37,§ 4º”, pois esse dever seria uma espécie de moralidade, ou seja,“probidade é espécie do gênero moralidade administrativa”, de talforma que a “improbidade é imoralidade qualificada”, ou seja, “toda

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improbidade deriva de uma imoralidade administrativa, mas nemtoda imoralidade constitui uma improbidade administrativa”. asse-vera também a correção em se afirmar que o dever de probidadedescende de uma “ética institucional peculiar ao setor público, tra-duzindo um ponto de encontro entre normas éticas e jurídicas, noslimites da segurança e da capacidade de serem previstas as deci-sões dos operadores do direito” (OsÓriO, 2007, p. 88-89).

no sentido, portanto, de uma correta aplicação da lei n.8.429/92 (lei Geral de improbidade administrativa - lGia7) e comos olhos voltados para o seu artigo 11, o qual seria, na sua visão,o ponto de partida para a interpretação desta lei, Osório (2007,p. 326) afirma que, interpretados de forma leviana os deveresconsagrados na lGia, redundaria em que qualquer ilegalidadepoderia ser entendida como improbidade. no entanto, a regrageral será muito diferente, direcionando com precisão para o ca-ráter excepcional da lGia e de seus tipos sancionadores paraalcançar condutas marcadamente danosas e patológicas, de talforma que nem toda parcialidade, desonestidade, ilegalidade ouimoralidade administrativas configuram uma improbidade admi-nistrativa, automaticamente.

Como se pode inferir das posições doutrinárias, o conceitode improbidade administrativa não é de fácil intelecção. É preciso,pois, esforço investigatório com eficiência para que os elementosque caracterizem a ocorrência de improbidade administrativasejam identificados e, nesse contexto, os princípios da precauçãoe da prevenção, desenvolvidos no âmbito do direito ambiental,podem ser úteis na análise do contexto fático em que se deu aconduta do administrador objeto de questionamento.

vamos analisar agora o conceito de sociedade de riscopara, depois, buscarmos a resposta à indagação que o presentetrabalho pretende dar solução.

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7 Osório (2007, p. 182 e ss.) rotula lei n. 8.429/92 de “lei Geral de improbidade adminis-trativa” por considerá-la um “Código Geral da Conduta” dos agentes públicos brasileiros.

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O Que vem a ser uma sOciedade de riscO?

luhmann(1993, p. 3), quando discorre sobre a concepçãode risco, observa que atualmente o risco é procurado por umaampla variedade de áreas especiais de pesquisa e mesmo por di-ferentes disciplinas científicas. afirma que o tratamento estatísticotradicional sobre o cálculo do risco foi explorado pela investigaçãoeconômica. Fundamental nesse desenvolvimento foi a brilhanteabordagem feita por Frank knight. seu objetivo inicial era o de ex-plicar o lucro empresarial em termos da função de absorção in-certa. segundo luhmann, essa ideia não era nova, pois o autorFichte já a teria introduzido no que diz respeito à propriedade daterra e à diferenciação de classe. no moderno contexto da econo-mia, porém, ela tem permitido a união astuta das teorias macro emicro-econômica. assevera que a distinção de knight entre riscoe incerteza tem, no entanto, petrificado em uma espécie de dogma- de tal forma que a inovação conceitual recebe a censura de nãoter aplicado o conceito corretamente.

no entanto, anota luhmann, outras disciplinas não en-frentam o problema de explicar o lucro das empresas, nem estãopreocupadas com as diferenças e as ligações entre as teorias domercado e da empresa. indaga, então: “por que então elesdevem tirar o conceito a partir desta fonte?”. Mais à frente, luh-mann sustenta que para a sociologia deveria ser o tópico do riscosubsumido embaixo de uma teoria da sociedade moderna, e de-veria ser formado pelo aparelho conceitual disso. Mas, adverte,não haveria nenhuma tal teoria, e as tradições clássicas que con-tinuariam guiando a maioria dos teóricos no campo da sociologiaforneceriam poucas aberturas de tópicos como ecologia, tecno-logia e risco, sem falar dos problemas da autorreferência. res-salta que não se pode, nesse ponto, discutir as dificuldadesgerais da pesquisa interdisciplinar, pois há cooperação ao nível

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de projeto e campos de pesquisa que pode ser definida comotransdisciplinar (cita como exemplo a cibernética e a teoria desistemas). nesse contexto, a pesquisa dos riscos poderia repre-sentar uma nova possibilidade.

Contudo, afirma que as consequências negativas da par-ticipação por diversas disciplinas e áreas de pesquisa especiaisseriam mais evidentes. não haveria nenhuma definição do riscoque pudesse satisfazer os requisitos da ciência. Pareceria quecada área da pesquisa envolvida estaria satisfeita com a orienta-ção fornecida pelo seu particular contexto teórico. Em funçãodisso seria de se indagar se, em áreas de pesquisa individuais, eaté na cooperação interdisciplinar, a ciência saberia sobre o queestaria falando. se só para razões epistemológicas poderíamosnão assumir que uma coisa como o risco existe, e que ele é sóuma matéria de descobrimento e investigação. a aproximaçãoconceitual constituiria o que está sendo tratado. O próprio mundoexterior não conheceria ele próprio nenhum risco, já que ele nãosaberia nem distinções, nem expectativas, nem avaliações, nemprobabilidade - exceto as produzidas autonomamente por siste-mas de observação no meio ambiente ou outros sistemas.

alerta luhmann (1993, p. 6) para o fato de que, quandobuscamos definições do conceito de risco, imediatamente encon-tramo-nos obscurecidos, com uma impressão de sermos incapazde ver além do nosso próprio para-choque dianteiro. Mesmo ascontribuições focando o tópico diretamente não conseguiriamapreender o problema de forma adequada. O conceito do riscoseria frequentemente definido como uma “medida”, contudo, sefosse só um problema da medição, não estaria suficientementeclaro sobre o que seria todo o distúrbio. Os problemas da mediçãoseriam problemas da convenção, e, em todo caso, os riscos damedição (assim como de erros de medição) não seriam os mes-mos como o que estaria sendo medido como um risco. Tais exem-plos poderiam ser multiplicados infinitamente, paradoxalmente

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nas ciências exatas especialmente, já que elas pareceriam as-sumir que a exatidão tem de ser expressa na forma de um cálculoe que o uso da língua diária consequentemente não necessitarianenhuma precisão. seria, contudo, geralmente concordante quenão se deve dar muita importância para questões de definição,já que as definições serviriam só para delimitar, não apropriada-mente para descrever (excluindo explicar) o objeto sob investiga-ção. a despeito de tudo, se não fosse de modo nenhum claro como que se supõe que cada um estivesse tratando, seria bastanteimpossível começar a investigar.

E, justa ou injustamente, ao sociólogo seria permitido as-sumir que essa imprecisão ofereceria a oportunidade de trocartópicos conforme a moda e a opinião, com mudança de patroci-nadores e turnos em atenção ao público. assim, teríamos a boarazão para concernir-nos inicialmente com a delimitação do ob-jeto da pesquisa dos riscos. Entende, desse modo, que teria boasrazões para se preocupar inicialmente com a delimitação do ob-jeto de pesquisa do risco.

Dispara luhmann (1993, p. 8) que as civilizações antigasteriam desenvolvido técnicas bastante diferentes para tratar comproblemas análogos, e, por isso, não teriam tido nenhuma ne-cessidade de uma cobertura de palavra, o que agora entende-mos pelo termo “risco”. a humanidade sempre teria estadonaturalmente preocupada com a incerteza sobre o futuro.

a maioria dessas civilizações, contudo, sempre confiouem práticas proféticas, que - embora incapazes de fornecer se-gurança fiável - sem embargo assegurariam que uma decisãopessoal não teria acordado “a ira dos deuses” ou de outros po-deres impressionantes, mas teria sido salvaguardada pelo con-tato com as forças misteriosas do destino. Em muitos aspectoso complexo semântico do pecado (conduta que contradiz instru-ção religiosa) também representa um equivalente funcional, jáque ele pode servir para explicar como se sucede o infortúnio.

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no comércio marítimo oriental antigo houve já o quepode ser descrito objetivamente como consciência dos riscos,acompanhada pelas respectivas instituições legais, que, em pri-meiro lugar, deveriam ser apenas distinguidas de programas deprofecias, apelações a deuses tutelares, etc., mas que de umponto de vista da lei - particularmente o tanto quanto a distribui-ção de papéis entre os fornecedores da capital e os marinheirosfosse envolvido - claramente exerciam a função de seguros. Talfato, com relativa continuidade até a idade Média, influenciou alei marítima do comércio e a lei do seguro marítimo.

Mesmo na antiguidade não cristã não teria havido, con-tudo, nenhuma consciência de decisão totalmente desenvolvida.assim, o termo “risco” teria aparecido primeiro no período transi-cional entre a idade Média e a primeira era moderna.

a etimologia da palavra seria desconhecida, segundoluhmann8. alguns suspeitariam que ela tivesse origem arábica.na Europa, a palavra poderia ser encontrada em documentosmedievais, mas ela teria vindo à tona só com o advento da im-prensa escrita, na fase inicial, ao que parece na itália e na Es-panha. não haveria nenhum estudo abrangente da etimologia eda história conceitual do termo, e isso seria compreensível desdeque a palavra, no início, aparece por vezes raramente e é usadaem uma grande variedade de contextos. Ela encontra aplicaçãosignificativa nos campos de navegação e do comércio. O seguromarítimo é um primeiro exemplo de controle dos riscos planejado,mas em outro lugar também encontramos formulações como “ad

risicum et fortunam” ou “pro securitate et risico” ou “ad omnem

risicum, periculum et fortunam dei” em contratos nos quais al-guém deve suportar uma perda no caso da sua ocorrência.

O termo risco teria permanecido, contudo, limitado a essedomínio, mas teria se estendido a partir de 1500, provavelmente

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8 busca, então, desenvolver a concepção sociológica de risco, sob a ótica do perigo(lUhMann, 1993, p. 17-22).

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com a expansão da impressão. anota que scipio aminirato teriaescrito, por exemplo, que seja quem fosse que propagasse umrumor geraria um risco (rischio) de ser perguntado onde teria ob-tido a sua informação. Também Giovanni botero teria escrito “chi

non risica non guadagna” e, seguindo uma velha tradição, distin-guiria essa máxima de projetos vãos e temerários. annibaleromei teria reprovado quem “non voler arrischiar la sua vita per

la sua religione”. Em uma carta dirigida a Claudio Tolomei porluca Contile, no século xv, seria encontrada a formulação: “vi-

vere in risico di mettersi in mano di gente forestiere e forse bar-

bare”. Desde que a língua existente tenha palavras para “perigo”,“ventura”, “possibilidade”, “sorte”, “coragem”, “medo”, “aventura”,etc., à sua disposição, poderíamos assumir que um novo termoentra em uso para indicar uma situação problemática que nãopoderia ser expressa de forma suficientemente precisa com o vo-cabulário disponível. De outro lado, a palavra ultrapassaria o con-texto original (por exemplo, na citação “non voler arrischiar la sua

vita per la sua religione”), de tal forma que não seria fácil recons-truir as razões do novo conceito, que nasce com base nessasocorrências casuais do termo.

beck (1992) afirma que a multiplicidade de definições dosriscos da civilização com o aparecimento de “mais e mais riscos”,possibilita a dramatização de “outro risco” para defender a utiliza-ção de um produto perigoso, bem como a manipulação conceitualpara assegurar o seu próprio negócio9. Destaca o autor a possi-bilidade de que as causas de efeitos danosos, como, por exemplo,a destruição florestal, serem manipuladas ao sabor de concep-ções individuais e apoiadas em explicações científicas elaboradaspara defesa de determinado ponto de vista. beck indaga:

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9 “The Multiplicity of Definitions: More and More risks. The theoretical content andthe value reference of risks imply additional components: the observable conflictualpluralization and multiplicity of definitions of civilization's risks. There occurs, so tospeak, an overproduction of risks, which sometimes relativize, sometimes supple-ment and sometimes outdo one another. One hazardous product might be defended

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O automóvel seria “o poluidor principal da nação” e assim overdadeiro “assassino florestal”? Ou é finalmente tempo parainstalar aparatos de alta qualidade e última geração de car-vão? Ou resultaria demasiado possivelmente inútil, desde queos poluentes que causam a morte da floresta sejam entregues“gratuitos à nossa entrada” (ou “gratuitos à nossa floresta”) daschaminés e escapamentos de países vizinhos?

aqueles que se encontram no pelourinho público comoprodutores dos riscos refutariam as acusações como pudessem,com a ajuda "de uma contra-ciência" que gradualmente está seinstitucionalizando na indústria, e tentariam fazer entrar outrascausas e, assim, outros causadores. O quadro reproduzir-se-ia.O acesso aos meios de comunicação, portanto, se tornaria cru-cial. a insegurança dentro da indústria intensificar-se-ia: ninguémsaberia quem seria o próximo a ser batido pela anátema da mo-ralidade ecológica. Os bons argumentos, ou, ao menos, os argu-mentos capazes de convencer o público, se tornariam umacondição para o êxito dos negócios. Os publicitários, “os artíficesde argumentação”, conquistariam seu espaço na organização(bECk, 1992, p. 32).

Essa passagem de beck é bastante interessante de re-gistrar, tendo em vista demonstrar que a manipulação da próprianoção de risco hoje pode estar umbilicalmente ligada a uma co-municação “adequada”, o que vale também para a atividade ad-ministrativa dos governos, os quais procuram mascarar errosatravés de informações nem sempre fidedignas. não é infrequente

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by dramatizing the risks of the others (for example, the dramatization of climaticconsequences “minimizes” the risk of nuclear energy). Every interested party at-tempts to defend itself with risk definitions, and in this way to ward off risks whichcould affect its pocketbook. The endangering of the soil, plants, air, water and ani-mals occupies a special place in this struggle of all against all for the most beneficialrisk definition, to the extent that it expresses the common good and the vote ofthose who themselves have neither vote nor voice (perhaps only a passive fran-chise for grass and earthworms will bring humanity to its senses). This pluralism isevident in the scope of risks; the urgency and existence of risks fluctuate with thevariety of values and interests. That this has an effect on the substantive elementof risks is less obvious” (bECk, 1992, p. 31).

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o uso dos meios de comunicação para alardear medidas admi-nistrativas “imprescindíveis” para conter, como “única” soluçãoviável, resultados negativos de situações fáticas consumadas ouem andamento.

jaeger (2001, p. 16 e ss.), ao responder à pergunta “o queé risco?”, afirma que, no uso comum, risco tem uma larga variedadede conotações: o medo de riscos específicos; a preocupação coma interdependência dos sistemas humanos e tecnológicos; a incer-teza quanto a lucro ou perda financeiros; o medo das forças malé-volas da natureza; ou a emoção da aventura, ou a preocupaçãosobre a competência e a probidade daqueles que administram osriscos. apesar da variação no uso, contudo, essas noções unificamcaracterísticas que fundam a significação do risco. Todos os con-ceitos do risco pressupõem uma distinção entre predeterminaçãoe possibilidade, já que, se o futuro foi predeterminado ou indepen-dente de atividades humanas presentes, a noção "do risco" não fazsentido. seja qual for a variação na conotação, o risco contém aideia da possibilidade de um resultado, ou seja, a possibilidade éum elemento indispensável do risco. a incerteza seria o segundoelemento componente do risco. na sequência, adota como conceitode risco: “a situation or event in wich something of human value(including humans themselves) has been put at stake and wherethe outcome is uncertain”.

a administração dos riscos implica, prossegue jaeger(2001, p. 17), que os resultados indesejáveis podem ser às vezesevitados, e, onde inevitáveis, podem ser mitigados se as conexõesentre causa e efeito forem feitas de forma apropriada. assim, o riscotipicamente é normativo, bem como descritivo ou analítico. isto é,o risco implica o juízo de avaliação sobre o desejo de resultados.

as considerações anteriores sobre a conceituação doque é risco em muito aproximam essa teoria do campo de deci-sões que o administrador público tem que tomar para atender ointeresse público.

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O princípio da prevenção e da precaução em matéria de risco

luhmann (1993, p. 29), ao concluir o capítulo de sua obraonde procura trabalhar o conceito de risco, tece rápidas consi-derações acerca do “problem of prevention”, o qual, segundo ele,medeia a decisão e o risco. Por prevenção quer luhmann dizer,em linhas gerais, preparar-se para perdas incertas e futuras atra-vés da procura da redução da probabilidade da ocorrência des-sas perdas ou da sua própria extensão. a prevenção poderia serassim praticada tanto em caso do perigo como em caso do risco.Poder-se-ia se precaver até contra perigos não atribuíveis às pró-prias decisões. nós treinamos, por exemplo, no uso de armas,fazemos certas provisões financeiras de emergência, ou cultiva-mos amigos que podemos procurar se precisarmos de ajuda, re-flete luhmann. Contudo, tais estratégias de segurança são umaexibição suplementar. a motivação geral que estaria por trás des-sas providências seria a percepção de que a vida neste mundoé carregada de incertezas10.

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10 Prossegue luhmann afirmando que, pelo contraste, se estivermos tratando como risco, a situação seria em aspectos significantes diferentes, já que nesse casoa prevenção influiria na vontade de tomar riscos e isso afeta uma das condiçõesda ocorrência da perda. se houvesse um método de construção mais ou menosresistente a terremoto, cada um seria mais prontamente inclinado a construir emuma área propensa a terremoto. Um banco seria mais disposto a conceder umempréstimo se o interessado pudesse fornecer garantias suficientes. Para a loca-ção de uma estação de produção de energia nuclear, as possibilidades de rapi-damente evacuar a população civil (isso teria paralisado um projeto em longisland) seria um aspecto bastante importante. Mas o ciclo de redução e aumento de risco, determinado pelo fator de “estar pre-parado”, iria muito além disto, segundo luhmann. Os estudos no comportamentodos gerentes de riscos evidenciariam que eles demonstram uma tendência bas-tante comum de superestimar o seu controle sobre o curso de desenvolvimentode perigos possíveis, ou mesmo firmar a sua decisão rejeitando dados disponíveise obtendo estimativas diferentes, mais favoráveis. Em outras palavras, cada umativamente procura a confirmação da suposição que o curso de eventos perma-necerá receptivo para controlar. Esse tipo de comportamento poderia também serdescrito como uma estratégia de distribuição dos riscos. O risco primário da deci-são - que seria o primeiro assunto - seria absorto, completado e enfraquecido por

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Quem procedeu ao estudo no direito brasileiro sobre osprincípios da prevenção e da precaução de forma bastante didá-tica foi leite e ayala (2004), os quais anotam que esses princípiossão reputados estruturantes para a organização do Direito do

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um risco secundário, que, desde que ele seria também um risco, pode, em certascircunstâncias, aumentar o risco primário. nesse caso, o risco de eliminação dorisco permaneceria um risco. Desde que ambos, riscos primários e riscos de pre-venção, seriam riscos, implicariam os problemas de avaliação dos riscos e acei-tação. Mas a sua dependência mútua fá-lo-ia uma matéria complexa e que seria,para todas as intenções e propósitos, imprevisível. bem que poderíamos enxergara prevenção com olhos diferentes e aceitá-la de forma mais disposta, porque elaserve como segurança contra um risco primário. buscaríamos e encontraríamosum risco de álibi. saberíamos os riscos implicados em instalações técnicas e es-taríamos, por isso, mais dispostos a confiar no pessoal contratado numa relaçãode emprego para controlar tais riscos, ou na redundância de outro tipo. Finalmente, o problema em discussão também teria um aspecto político. Para aavaliação política do risco aceitável, permissível, a tecnologia de segurança, bemcomo todas as outras medidas tomadas para diminuir a probabilidade da ocorrênciade perdas ou reduzir perdas ou dano em caso de acidentes, desempenhariam umpapel considerável; o alcance da negociação seria presumivelmente encontradonesse campo e não naquele de opiniões divergentes quanto ao risco primário.Mas precisamente esse desenvolvimento levaria a política a um território enga-nador. só não é exposto ao habitual e à subavaliação de riscos, que inicialmenteprovoca a politização dos tópicos, mas também a torcimentos que resultariam dofato que cada um considera o risco primário como controlável ou incontrolável,dependendo do resultado que cada um estaria esperando realizar. Cada avaliaçãodos riscos seria e permaneceria um contexto atado. nem psicologicamente nemem condições sociais prevalecentes estaria lá uma preferência abstrata de riscosou a falta da preferência. Mas o que aconteceria se o contexto que produz a pró-pria avaliação dos riscos for um novo risco?Conclui luhman afirmando que seria necessário, nesse contexto, rever a distinçãode risco e perigo, em especial em relação à política. Mesmo se ele fosse só umaquestão de perigo no tocante à catástrofe natural, a omissão da prevenção tornar-se-ia um risco. seria aparentemente mais fácil distanciar alguém politicamente deperigos do que de riscos - mesmo onde a probabilidade da perda ou a extensãoda perda é maior em caso do perigo do que naquele do risco; e presumivelmentetambém independentemente da questão (mas isso necessitaria uma investigaçãometiculosa) de como a prevenção fiável em cada caso seria e o que ela custaria.Mesmo se a prevenção está disponível para ambos os tipos da situação, poderia ser semembargo relevante se o problema primário é tratado como perigo ou risco. Exemplificacom uma situação ocorrida na suécia, onde teria sido politicamente oportuno evacuar umgrande número de pessoas pelo helicóptero de uma área onde ocorreria um teste de ummíssil, muito embora a probabilidade e a extensão da perda no caso de um choque dehelicóptero fosse muito maior do que a possibilidade que uma única pessoa viesse a seratingida pelo entulho do míssil que cairia na área que era habitada de modo esparso. Masum caso foi, ao que parece, avaliado como um risco, enquanto o uso do helicóptero (alémdisso bastante incorretamente) só como um perigo (lUhMann, 1993, p. 29-31).

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ambiente. Esses princípios definiriam, em essência, um Direitodo ambiente de conteúdo precaucional e de antecipação. Evi-denciariam a importância da orientação de antecipação e o con-trole da previsão dos riscos, que ocuparia posição de destaquenos modelos democráticos participativos que qualificam os sis-temas constitucionais contemporâneos.

leite e ayala (2004) sustentam que, para a compreensãoda diferenciação do círculo de aplicação de cada princípio ser rea-lizada, é possível estabelecer uma distinção entre perigo e risco,estando presente, nas duas espécies de princípios, o elementorisco, mas sob configurações diferenciadas. Entretanto, afirmamque, se fosse a pretensão a união semântica das categorias derisco (atual e concreto ou potencial) e de perigo, seria possívelconsiderar que o princípio da prevenção se dá em relação ao pe-rigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precau-ção, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato.

O conteúdo cautelar do princípio da prevenção seria di-rigido pela ciência e pela detenção de informações certas e pre-cisas sobre a periculosidade e o risco fornecido pela atividade oupelo comportamento, que, assim, revelaria uma situação de maisverossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada peloprincípio da precaução.

a prevenção se justificaria pelo perigo potencial de quea atividade sabidamente perigosa poderia produzir efetivamenteos efeitos indesejados e, em consequência, um dano ambiental,logo, prevenindo de um perigo concreto, cuja ocorrência seriapossível e verossímil, sendo, por essa razão, potencial. sua apli-cação, portanto, procuraria evidenciar que seria provável que aatividade perigosa se demonstrasse de fato perigosa, ou seja,concretamente perigosa, evidenciando que seria possível queviesse a produzir os efeitos nocivos ao ambiente.

a emissão de efeitos poluentes ou degradadores pelaatividade perigosa seria potencial, provável e verossímil. seria

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objetivada a prevenção ou a cautela contra o risco de dano oulesão oriunda da possibilidade de que a atividade perigosa pro-duzisse concretamente os efeitos nocivos proibidos.

Dessa forma, não bastaria, simplesmente, que se tivessecerteza do perigo da atividade (periculosidade da atividade), masdo perigo produzido pela atividade perigosa. Ou, em outras pala-vras, de que a atividade perigosa colocasse o ambiente, poten-cialmente (de forma verossímil), em estado de risco (ou deperigo). Esta (atividade perigosa) deveria demonstrar também ve-rossímil capacidade de poluir ou degradar, entendendo-se, paraos efeitos da aplicação do princípio da prevenção, no seguintesentido: seria possível (juízo de verossimilhança) que a atividadeperigosa poluísse ou degradasse. logo, medidas preventivas se-riam necessárias (já que a origem do risco seria conhecida).

anotam leite e ayala (2004) que toda a análise sistemá-tica dos riscos de qualquer atividade deveria compreender, ne-cessariamente, a observação de três elementos: a avaliação, agestão e a comunicação dos riscos. O âmbito funcional da apli-cação do princípio da precaução se circunscreveria ao da gestãodos riscos, relacionado diretamente com o desenvolvimento dasatividades de participação generalizada nos processos políticosde tomada de decisões, e aí residiria a importância de sua qua-lidade para o desenvolvimento das instituições democráticas.

a incidência do princípio da precaução se adstringiria à hi-pótese de risco potencial, ainda que esse risco não tivesse sido inte-gralmente demonstrado, não pudesse ser quantificado em suaamplitude ou em seus efeitos, devido à insuficiência ou ao caráter in-conclusivo dos dados científicos disponíveis na avaliação dos riscos.

Portanto, o domínio específico de sua aplicação envol-veria a necessidade de resolução de problemas a partir de baseslimitadas de conhecimento, circunstância que enfatiza sua com-preensão a partir de uma dimensão programadora, que se con-centraria em buscar alternativas de tomada das melhores

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decisões possíveis, objetivando a superação dos estados de in-certeza. Uma atuação precaucional exigiria a tomada de deci-sões, ainda que o conhecimento disponível no momento nãoestivesse em condições de permitir uma correta avaliação dosriscos, com a finalidade de justificar ou fundamentar as ações oumedidas necessárias.

reconhecer a incerteza que permea a identificação e aavaliação dos riscos não permitiria sustentar, no entanto, que aaplicação do princípio da precaução prescindiria de tais ativida-des, pois seria a partir da avaliação que os graus de incertezacientífica poderiam ser estabelecidos, e, em consequência, fixa-se até que ponto a incerteza científica precisaria ser superadamediante decisões, e principalmente, se possível, qual o nível derisco considerado inaceitável.

Mesmo não sendo possível atingir um nível integral decompreensão dos riscos, dever-se-ia procurar caracterizá-los damelhor forma possível e da maneira permitida pelo conhecimentodisponível, com o objetivo de estabelecer diretrizes para a aplica-ção concreta do princípio da precaução e reduzir o nível de incer-teza verificado.

Denotam leite e ayala (2004) que a jurisprudência comuni-tária europeia, em diversas ocasiões, vem delineando as condiçõesa partir das quais poderiam ser justificadas medidas precaucionais,e cita, entre outros casos, o Pfizer (Tribunal de 1ª instância da Co-munidade Europeia),

no qual se discutiu a pertinência da implementação de medi-das precaucionais diante dos riscos à saúde humana, que es-tariam associados ao uso da virginiamicina como aditivo naalimentação animal. nesse caso, a afirmação dos riscos con-sistia na possível transferência da resistência antimicrobiana,do animal para o homem, resultando em redução da eficáciade certos medicamentos, contexto a partir do qual puderamser estabelecidas várias diretrizes de orientação para a apli-cação do princípio, sendo a mais importante, no sentido deque o princípio da precaução autorizava a decisão por medi-das preventivas sem que fosse necessário aguardar até que

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a realidade dos riscos e a gravidade de seus efeitos potencial-mente adversos estivessem plenamente demonstrados pormeio de provas científicas concludentes.

anota que no acórdão considerou-se expressamente que:

[...] salvo esvaziando-se o princípio da precaução do seu efeitoútil, a impossibilidade de realizar uma avaliação científica com-pleta dos riscos não pode impedir a autoridade pública com-petente de tomar medidas preventivas, se necessáriorapidamente, quando tais medidas sejam indispensáveis aten-dendo ao nível de risco para a saúde humana determinado poresta autoridade como sendo inaceitável para a sociedade.

não se exigiria, portanto, a demonstração exaustiva ecompleta sobre a existência de riscos, sua identificação e especi-ficação, caracterização ou demonstração segura sobre a extensãode seus efeitos, apreciação que se submete a um juízo de veros-similhança, que orienta a formação científica da convicção da atri-buição da qualidade de periculosidade ao comportamento. se acerteza não é pressuposto para uma atuação precaucional, pro-curar conhecer da melhor forma possível e permitida os graus deincerteza que permeiam a decisão é condição de relevante consi-deração na aplicação do princípio.

Prudência ou abstenção?

kourilsky (2001) desenvolve um raciocínio para demons-trar que o princípio da precaução e prevenção deve ser analisadocom profundidade para que não seja entendido como “absten-ção”. alerta que o cerne conceitual e operacional do princípio daprecaução residiria no aprofundamento do conceito de risco, ouseja, seria necessário dar conteúdo ao conceito de risco. nessacondição, indaga se poderíamos passar de uma compreensãoabstencionista para uma prática ativa do princípio da precaução.

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alerta que seria preciso ficar atento ao significado das palavras,pois o risco deve ser distinguido do perigo. O perigo seria aquiloque compromete a segurança, a existência de uma pessoa oucoisa. já o risco seria um perigo potencial, para mais ou paramenos, previsível. O risco não seria um perigo. Um perigo seriaalgo prejudicial à saúde. anota que há cerca de cem anos umalonga controvérsia teria abalado os parisienses sobre os riscosque poderiam envolver a instalação de uma rede de esgotos sub-terrânea: alguns temiam que ela espalhasse germes, que lon-dres e Estocolmo já tinham há anos. Enfim, não se verificouqualquer risco, mas um risco potencial pode ser zero. Poder-se-iam diminuir os riscos de um acidente de um avião ou de um au-tomóvel, mas não se poderia atingir o risco zero. no que dizrespeito aos riscos potenciais, o risco seria criado pela hipótese,e teoricamente poderia ser zero, a menos que a operação inte-lectual declarasse plausível anulá-lo e decidisse que a hipótesedevesse ser ignorada. Eles poderiam pensar que a velocidadesuperior a vinte milhas por hora é intrinsecamente perigosa parao organismo, mas o risco seria considerado hoje nulo, quer dizer,seria simplesmente colocado de lado. Passa, então, a analisar oprincípio da precaução e da prevenção.

afirma que a distinção entre o risco potencial e o riscocomprovado teria sua raiz na diferença entre prevenção e pre-caução. Precaução seria relativa aos riscos potenciais e preven-ção aos riscos comprovados. Muito frequentemente seconfundiria precaução e prevenção. Geralmente, pensa-se queos riscos potenciais seriam pouco prováveis e eles seriam in-conscientemente assimilados aos riscos comprovados, cuja pro-babilidade de controle seria ainda menor. isso seria, na suaconcepção, duplamente errado. Em primeiro lugar, as probabili-dades não seriam da mesma natureza (no caso da precaução,que seria a probabilidade de que a hipótese estivesse correta;no caso da prevenção, a periculosidade seria estabelecida e

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seria a probabilidade do acidente). além disso, e principalmente,os riscos potenciais, apesar do seu caráter hipotético, poderiamter uma alta probabilidade de realização. na prática, porém, aprecaução, sustenta kourilsky, poderia ser entendida como o pro-longamento dos métodos de prevenção aplicados aos riscos in-certos. analisa, também, a distinção entre precaução eprudência. À semelhança de qualquer ação humana, o exercícioda precaução apresentaria um risco. O primeiro seria o de seequivocar na definição e avaliação dos riscos potenciais. Estesseriam, por vezes, impossíveis de se quantificar (“riscos não-pro-babilizáveis”), porque as observações seriam incompletas ou osinstrumentos atingiriam seus limites práticos e teóricos. assim,inevitavelmente, há coincidências entre a vacinação realizada emuma população inteira e o aparecimento de uma doença particu-lar em um pequeno número de pessoas vacinadas.

se a frequência de coincidências é demasiada baixa, a corre-lação, como a ausência de correlação, será impossível de se estabe-lecer através de estatísticas. Esta é uma verdadeira lei de incerteza,tão implacável como a que rege a física de eletróns. E deveria ser res-saltado que o instrumento estatístico dá, naturalmente, resultados maise mais aleatórios à medida que estaria interessado em fenômenos maise mais raros. aqui estaria um verdadeiro limite teórico que não poderiaser afastado apenas pelo aumento do tamanho da amostra analisada.Mas esse aumento de tamanho, por sua vez, amplia as incertezas deinterpretação pela necessidade de ter em conta outros fatores (porexemplo, geografia).

O estabelecimento de medidas de precaução poderialevar a erros, se todas as consequências não tiverem sido pesa-das com antecedência. nem sempre seria fácil. O processo queteria levado, em 1987, ao Protocolo de Montreal sobre a proteçãoda camada de ozônio seria exemplar, pois levou a uma ação pla-netária. Talvez tivesse sido mais prudente se ater a alguns as-pectos da sua implementação. Os países ricos teriam feito um

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esforço para pagar os mais pobres, mas, para os frigoríficos,gases substitutos comprovadamente menos eficientes e o pro-cesso de destruição dos equipamentos antigos, peças, etc., te-riam criado certa confusão. Dever-se-ia estar ciente, ainda, quemedidas radicais de proibição poderiam fechar o campo experi-mental e eliminar qualquer possibilidade de provar ou refutar ahipótese que teria conduzido à decisão e, assim, inovações po-tencialmente úteis seriam, então, permanentemente retiradas.Daí a necessidade geralmente reconhecida para se desenvolveruma área de investigação. além disso, seria ingênuo ignorar quea precaução tem um custo e que seria, em geral, amplamente di-vulgado na comunidade. Por último, as medidas de prevençãopoderiam ser prejudiciais para os indivíduos não geradores derisco potencial. Estes teriam, então, direito a reclamar uma inde-nização do Estado ou da justiça. Do mesmo modo, aqueles queestão por trás do risco potencial poderiam contestar decisõescontrárias aos seus interesses e obter também reparação se aavaliação dos riscos potenciais estivessem errados.

no total, não seria um trocadilho afirmar que o princípioda precaução deveria reger a aplicação da precaução. Essa apa-rente tautologia reflete o fato de, bem como a prevenção, a pre-caução é filha da prudência. aplica-se ao público e ao privado,onde suas decisões têm riscos potenciais ou comprovados. aprudência exigiria se considerar a possibilidade e as consequên-cias das suas ações e as providências necessárias para que seevitasse causar dano a outrem. no âmbito da prudência, o prin-cípio da precaução exprimiria a demanda social para a reduçãode risco. Ela exigiria um reforço da prevenção e da utilização deferramentas adequadas para gerir riscos potencialmente gravese irreversíveis, cuja probabilidade de ocorrência seria baixa epouco conhecida.

as convergências entre precaução, prevenção e prudênciapoderiam justificar que se substituísse o princípio de precaução por

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um princípio de prudência, que abrangeria precaução e prevenção.Essa opção parece ser pouco realista da forma como o princípioda precaução é difundido. Poderia, contudo, ser útil para guardarna memória, se persistente a incompreensão sobre o significadodo princípio da precaução - por exemplo, se uma fração tão signi-ficativa da opinião continuasse a incluir o princípio da precauçãocomo uma regra sistemática de abstenção ou se fosse a alternativapara evitar bloqueios e promover um melhor entendimento nas dis-cussões internacionais.

a respOnsabiliZaÇÃO dO exercente dO cargO públicOnuma sOciedade de riscO

Cunha (2004, p. 115) observa que, em 1989 e 1990, oprincípio da precaução foi, respectivamente, consagrado comoprincípio geral da política ambiental pela Comissão Econômicadas nações Unidas para a Europa, e foi, universalmente, consa-grado na Declaração do rio de janeiro.

afirma que a sociedade evolui e a evolução acarretarianovos problemas, que postulariam novas soluções. a ordem ju-rídica teria a função de encontrar princípios ou regras metodoló-gicas para a solução desses problemas, diferendos ou interessesque colidem, onde o princípio da precaução deve ser encaradocomo um princípio metodológico, de procedimento, subjacenteao processo decisório e seu fundamento.

Finca que o domínio por excelência do princípio da pre-caução seria o do ambiente, área onde o risco releva e mais efeitosé apto a produzir, mas o princípio teria evoluído no sentido da apli-cabilidade nas mais diversas áreas do direito nas quais o conceitode risco apresentasse características análogas às verificadas na

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área do direito do ambiente. Cita, como exemplos, os direitos doconsumo, nomeadamente com a introdução das chamadas con-dições gerais dos contratos e a consequente proibição de inclu-são de cláusulas que possam significar o aproveitamento dadebilidade dos consumidores; e o do urbanismo, onde o tecidonormativo, através dos institutos planificadores, com os múltiplosplanos de ordenamento do território, pretende determinar, comantecedência, eventuais danos, para que estes possam ser co-rrigidos na fonte, com medidas do foro cautelar.

Cunha entende, pois, aberta a possibilidade de se aplicaresse princípio a outros ramos do direito.

nessa linha, Ericson e haggerty (1997, p. 51) obtempe-ram que vários ramos do direito, além da área criminal, têm sidoinstrumentos para interpretar práticas sociais do risco. E a lei civilespecialmente teria se expandido em nome do controle de risco.baseados em Pries, afirmam que a função principal da lei civilmoderna seria controlar o risco.

nesse sentido, porque não indagar: podem ser não só oprincípio da precaução e da prevenção, mas mesmo as noçõesde risco, desenvolvidas no âmbito do direito ambiental, utilizadastambém para a avaliação de decisões tomadas e que podem sesubsumir nas hipóteses de ato ímprobo previstas na lei de im-probidade administrativa? Ora, se formos analisar a atividade ad-ministrativa no seu cotidiano, verificaremos que a tomada dedecisão envolve, muitas vezes, situações que podem resultar emdanos não só às pessoas (administrados), como também preju-ízo ao erário. Então, sem muita dificuldade, pensamos que a res-posta a essa indagação seria, como apoio nas noçõesconceituais que foram até aqui desenvolvidas em relação à im-probidade administrativa e ao risco, positiva. E essa conclusãonão seria aqui uma afirmação leviana, desprovida de sustentaçãocientífica ou mesmo um oportunismo. não, absolutamente não.Percebe-se, indubitavelmente, a intersecção que há entre o

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dever de good governance (boa gestão pública, boa governação)e a administração de riscos.

Mas não se pretende aqui uma conduta de abstençãosempre que houver dúvida. Muito ao contrário. não só porque aconduta omissiva do administrador público pode lhe custar umprocesso judicial, mas levando em conta também que em deter-minadas situações a boa governação implica em natural contra-riedade de interesses de particulares, como acentua aragão(2005, p. 108-111) quando se refere à questão da legitimidade eà aceitação das decisões na democracia em termos de boa go-vernância e a síndrome social “sim, mas não no meu quintal”:

Por isso, a promoção da governância passa muito mais peloincremento da legitimidade, do que pelo reforço da autoridade.Da legitimidade acrescida resultará, idealmente, a aceitaçãovoluntária, pelos cidadãos, das directrizes da entidade decisó-ria, dispensando-se o recurso a meios de implementação co-activa das decisões. É nesta distinção que se baseia algumadoutrina para distinguir a governância do governo (ou gover-nação). na primeira, o respeito por regras apresentadas semcoação seria espontâneo, no segundo, estaria implicada a im-posição coerciva de normas. Contudo, esta parece-nos seruma visão demasiado redutora, por duas ordens de razões.antes de mais, porque mesmo com graus elevados de gover-nância, a imposição coerciva de certas normas pode ser um malnecessário. Estamos a pensar naquelas normas que, para tra-zerem benefícios para todos, não podem deixar de impor en-cargos a alguns. Por exemplo: a construção de um novo hospitalpsiquiátrico, de um novo cemitério, de um novo aterro, sendoprojectos de interesse comum, são normalmente rejeitados pre-cisamente por aqueles que se encontram fisicamente mais pró-ximos de tais instalações, porque residem, trabalham oupassam férias nas imediações. Quando o sindroma social "sim,mas não no meu quintal" se manifesta em toda a sua extensãocontra um "uso do solo localmente indesejável", formas especí-ficas de governância podem atenuar significativamente os sin-tomas, mas dificilmente eliminarão a totalidade da doença.Por outro lado, no extremo oposto, mesmo o cumprimento es-pontâneo pode ser determinado por causas bem diferentes dosimples reconhecimento da legitimidade.

Entendemos que a lei de improbidade administrativa é umadas intervenções legais (conforme anteriormente já mencionado)

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que teve por objetivo propiciar mecanismos de controle dos ris-cos de desvios administrativos11 que, na recente história demo-crática brasileira, e observando os fenômenos mundiais, tem sidoconstatados e comprovados pelos mecanismos de controle in-ternos da própria administração. as condutas previstas especial-mente nos “notadamente” dos artigos 9º, 10 e 11 da lei n.8.429/92 foram, naquele modelo, desenhadas em função da ex-periência de desvios administrativos passíveis de perpetraçãopor pessoas investidas, de forma transitória ou definitiva, em car-gos ou funções públicas.

Quando o administrador se vê diante de situações defato em que há margem de opção administrativa com apoio nadiscricionariedade, indubitavelmente deve se servir dos critériosde risco e estar orientado pelos princípios da precaução e pre-venção na tomada de decisão. a decisão administrativa deve serinclusive sempre motivada12 em casos tais, pois, conforme ver-bera Mello (2001, p. 63):

Motivo e motivação. 31. não se confunde o motivo do ato ad-ministrativo com a “motivação” feita pela autoridade adminis-trativa. a motivação integra a “formalização” do ato, sendo umrequisito formalístico dele (cf. 46 e ss.). É a exposição de mo-tivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra deDireito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estriboupara decidir e, muitas vezes, obrigatoriamente, (c) a enuncia-ção da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos eo ato praticado. não basta, pois, em uma imensa variedade

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11 Mecanismos que, inclusive, servem para perseguir os desmandos administrati-vos praticados no âmbito da gestão ambiental: “a má gestão pública do patrimônioambiental, com danos ao patrimônio público resultantes de graves equívocos ad-ministrativos ou de atuações dolosas, é outra hipótese emblemática, que tem me-recido crescente intreresse. Essa modalidade de conduta ímproba é relativamenterecente, mas tende a ganhar força. Os maus gestores da área ambiental devemser fiscalizados com suporte na lGia. Todavia, há campos muito nebulosos. ine-xiste uma definição rígida de improbidade ambiental. Costuma-se considerar osníveis de ilegalidade, bem assim o montante dos danos e a objetiva conduta doinfrator” (OsÓriO, 2007, p. 378).12 sobre a necessidade do dever de fundamentação das decisões administrativasveja-se: vieira de andrade (2007).

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de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agentetomou como base para editar o ato. na motivação transpareceaquilo que o agente apresenta como “causa” do ato adminis-trativo, noção que será melhor esclarecida a breve trecho(conf. ns. 43 e ss.).

além, disso, como registra o mesmo administrativista,

O desvio de poder, com alheamento a qualquer finalidade pú-blica, é um vício que encontra espaço para medrar precisa-mente quando o agente público está no exercício decompetência discricionária. a doutrina caracteriza generica-mente o desvio de poder como ilegitimidade específica destacategoria de atos nos quais a administração dispõe de certaliberdade. no desvio de poder, praticado com fins alheios aointeresse público, a autoridade, invocando sua discrição admi-nistrativa, arroja-se à busca de interesses inconfessáveis. Ébem de ver que o faz disfarçadamente, exibindo como capado ato algum motivo liso perante o direito.Trata-se, pois, de um vício particularmente censurável, já quese traduz em comportamento insidioso. a autoridade atua em-buçada em pretenso interesse público, ocultando dessarte seumalicioso desígnio. sob a máscara da legalidade, procura àesconsa, alcançar finalidade estranha à competência que pos-sui. Em outras palavras: atua à falsa-fé. Enquanto de públicoo ato se apresenta escorreito, na verdade possui uma outraface que se forceja por ocultar, já que é constituída de má-morte e orientada por escopos subalternos. Dele se podedizer, com Caio Tácito, que a ‘ilegalidade mais grave é a quese oculta sob a aparência de legitimidade'. a violação maliciosaencontra os abuso de direito com a capa da virtual pureza.(MEllO, 1992, p. 63)

Com apoio nas lições de jean rivero e Waline, lembraque, embora observem essas dificuldades, acentuam tambémque, por força da compostura esquiva, não se pode exigir umaprodução da prova com ela incompatível, sob pena de não seviabilizar o controle jurisdicional dessas condutas viciadas.lança, então que a convicção pode resultar de um “feixe de in-dícios convergentes”. Portanto, a teoria dos riscos desenvolvidosno âmbito do direito ambiental, e os princípios que dela defluemservem de apoio para, num feixe de indícios convergentes, deli-near a conduta ímproba do agente público.

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Mais. O agente público deve não só pautar sua condutaprocurando se servir da teoria do risco e dos princípios dela fun-dantes da precaução e prevenção com vistas a moldar sua deci-são de forma a torná-la também, sob essa ótica, proporcional erazoável. Deve também atuar no momento de decidir para queela própria, a decisão, não seja, na sua execução, uma fonte depossíveis desvios e atos de improbidade. significa isso que o ad-ministrador pode ser responsabilizado, com apoio na lei de im-probidade administrativa, por ter tomado uma decisão que, nãoobstante ter avaliado os riscos e se pautado nos princípios daprecaução e prevenção para dar solução à situação de fato en-frentada, tenha propiciado na sua execução desvios administra-tivos que poderiam ter sido plenamente identificados no momentoda decisão tomada. Ou seja, embora a decisão tomada tenha le-vado em conta os riscos que ela importaria do ponto de vista desua finalidade para dar solução, o administrador público não teriaavaliado de forma adequada os riscos que ela poderia represen-tar como meio de propiciar a prática de atos ímprobos no mo-mento de sua implementação. Está o administrador obrigado aadotar providências, em face do princípio da eficiência e da boagovernação, que impeçam ou dificultem ao máximo desvios deconduta das pessoas que irão executar a decisão.

cOnclusÃO

Como se vê, há um entrelaçamento entre as noções derisco e os princípios fundantes dessa teoria, especificamente, nocaso estudado, os princípios da precaução e da prevenção, e apostura que o administrador público, o agente público, deve ado-tar na sua tomada de decisão do ponto de vista concomitante da

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razoabilidade e proporcionalidade. isso resulta numa contribuiçãosignificativa da teoria do risco no que se refere à aferição da con-duta administrativa adotada e à configuração da improbidade ad-ministrativa do ponto de vista material.

a motivação da decisão tomada é, nesse contexto, desingular importância, pois dela é que se poderá inferir se, no de-cidir, estava o agente público atento aos riscos dessa tomada dedecisão e se atendeu aos princípios da precaução e da preven-ção. no entanto, a insuficiente motivação do ponto de vista daavaliação dos riscos não impede que isso seja aferido e, casoconstatado o não atendimento ou observância dos riscos possao administrador, em qualquer uma das hipóteses previstas na ti-pologia da improbidade administrativa, ser responsabilizadonessa perspectiva.

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Reuder Cavalcante Motta*

AS NORMAS CONCRETIZADORAS DA TRANSPARÊNCIA ADMINISTRATIVA E A INTERNET

RUlES oF FURthERANCE ADMiNiStRAtivE

tRANSPARENCy AND thE iNtERNEt

lAS NoRMAS CoNCREtiZADoRAS DE lA tRANSPARENCiA

ADMiNiStRAtivA y DE lA iNtERNEt

Resumo: O trabalho apresenta a transparência administrativa como um

dos elementos de concretização do direito fundamental à boa

administração. Em seguida, faz um amplo levantamento das nor-

mas vigentes com tal propósito. Por fim, sustenta que a Internet

é instrumento necessário à concretização desse direito.

Abstract:The paper presents the administrative transparency as an ele-

ment of realizing the fundamental right to a good administration.

Then make a broad survey of rules for that purpose. Finally, it as-

sures the Internet is a necessary tool to achieving this right..

Resumen:El artículo presenta la transparencia administrativa como un ele-

mento de la realización del derecho fundamental a una buena

administración. A continuación, realiza un estudio amplio de las

normas para tal fin. Por último, afirma que la Internet es una her-

ramienta necesaria para el logro de este derecho.

* Mestre em Direitos Coletivos e Função Social do Direito pela UNAERP. Pro-motor de justiça do Estado de Goiás.

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Palavras-chaves:Direito à boa administração, transparência administrativa, internet,

interpretação evolutiva.

Keywords:Right to a good administration, administrative transparency, internet,

evolutionary interpretation.

Palabras clave:Derecho a una buena administración, transparencia administra-

tiva, internet, interpretación evolutiva.

COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

observa-se que ao longo da história da humanidade,paulatinamente, na construção da identidade das democraciasocidentais, foi surgindo e consolidando-se a participação da so-ciedade civil nos governos muito além do voto. De maneira geral,entende-se, em meio às democracias ocidentais, que elas sãonão só representativas, i.e., o povo exerce o poder por meio dosseus escolhidos, mas também participativas, onde a sociedadetem participação nos governos diretamente, através de meca-nismos diversos.

Nessa seara, destaca-se o controle social do exercíciodo poder exercido pelos agentes públicos, inclusive pelos agen-tes políticos. A possibilidade de fiscalização ampla pela socie-dade foi construída ao longo da história, até que se chegasse aoatual conceito de direito fundamental à boa administração.

José Joaquim Gomes Canotinho (2008, p. 326-327)afirma que o conceito de good governance surgiu no âmbito da

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economia e política de desenvolvimento, adquiriu direitos de ci-dade no contexto das ciências sociais e veio a tornar-se uma di-mensão básica do Estado Constitucional, passando a conceituara good governance nos termos seguintes.

Good Governance significa, numa compreensão normativa, a con-dução responsável dos assuntos do Estado. trata-se, pois, nãoapenas da direcção de assuntos do governo/administração mastambém da prática responsável de actos por parte de outros po-deres do Estado, como o poder legislativo e o poder jurisdicional.

E mais adiante.

Mas, a ‘governação responsável’ diz respeito também à ‘essên-cia do Estado’, pois o desenvolvimento sustentável, centrado napessoa humana envolve como elementos essenciais o respeitodos direitos humanos e das liberdades fundamentais, incluindoos direitos fundamentais, a democracia assente no Estado dedireito, o sistema de governo transparente e responsável.

Canotilho vislumbra mesmo um novo ramo dentro danova ciência do direito constitucional. Sugere que seja o princípioda condução responsável dos assuntos do Estado, colocado nocentro das investigações científicas, com o avanço das democra-cias nos seguintes tópicos.

1. aprofundamento do contexto político, institucional econstitucional, através da avaliação permanente dos res-peito pelos direitos humanos, dos princípios democráti-cos e do Estado de Direito;2. centralidade do princípio do desenvolvimento susten-tável e equitativo, que pressupõe uma gestão transpa-rente e responsável dos recursos humanos, naturais,econômicos e financeiros (“boa governação”);3. recorte rigoroso de esquemas procedimentais e orga-nizativos da boa governação, designadamente:i – processos de decisão claros a nível de autoridades públicas.

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ii – instituições transparentes e responsáveis.iii – primado do direito na gestão de recursos.iv – reforço das capacidades, no que diz respeito à ela-boração e aplicação de medidas especificamente desti-nadas a prevenir e combater a corrupção.

o princípio da condução responsável dos assuntos doEstado enunciado por Canotilho surge como um dever dos go-vernos e, por conseguinte, um direito dos cidadãos.

tratando sobre o mesmo tema, sob a ótica da existênciade que tal dever consiste em um direito fundamental dos cida-dãos à boa administração, oportuno recorrer às lições de Juarezde Freitas (2007, p. 20 e 96).

[...] o direito fundamental à boa administração pública, que podeser assim compreendido: trata-se do direito fundamental à ad-ministração pública eficiente e eficaz, proporcional e cumpridorade seus deveres com transparência, motivação, imparcialidadee respeito à moralidade, à participação social e à plena respon-sabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal di-reito corresponde o dever de a administração pública observar,nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos prin-cípios constitucionais que a regem. [...] direito à administraçãoeficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres,com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à mo-ralidade, à participação social e à plena responsabilidade porsuas condutas omissivas e comissivas.

Juarez de Freitas (2007, p. 20) assinala que em seu con-ceito abrigam-se outros direitos, dentre os quais destacamos:

(a) o direito à administração pública transparente, que implicaem evitar opacidade(princípio da publicidade), salvo nos casosem que o sigilo se apresentar justificável, e ainda assim não-definitivamente, com especial ênfase às informações inteligí-veis sobre a execução orçamentária.

E mais adiante assinala (FREitAS, 2007, p. 43):

[...] o princípio da participação integra o conceito de direito funda-mental à boa administração, cuja concretização tende a melhor

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fiscalizar a conduta do agente público, em termos de eficiênciae eficácia, assim como representa valioso estratagema parafazê-la substancialmente legítima e democrática.

A transparência administrativa é que permite a participa-ção da sociedade na administração, ela é, outrossim, elementoconcretizador do direito fundamental à boa administração.

Este trabalho tem por objetivo despertar os leitores paraa gama de normas que, embora vigentes, não têm sido implemen-tadas nas várias esferas de governo, de modo a estimular suasindicabilidade. Por fim, destaca o papel da internet como fatorprimordial para a conquista da eficácia das referidas normas.

DO DIREITO À TRANSPARÊNCIA ADMINISTRATIVA NOSDOCUMENTOS HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS

os documentos históricos dos direitos humanos são in-dicadores da evolução do direito à transparência administrativa.

Na Bill of rights – inglaterra, 13 de fevereiro de 1689 –,há a indicação do direito de petição, vejamos: “5º. Que é direitodos súditos apresentar petições ao rei e que são ilegais todos osencarceramentos e perseguições por causa dessas apresenta-ções e petições”.

Na Declaração dos direitos do homem e do cidadão –França, 26 de agosto de 1789 –, destacamos os seguintes artigos:

Art. 14. todos os cidadãos têm o direito de constatar, por simesmos ou por seus representantes, a necessidade de con-tribuição pública, de consentir livremente com ela, de acom-panhar a sua utilização e de determinar a sua cota,distribuição, cobrança e duração.

Artigo 15. A sociedade tem direito de pedir a qualquer funcio-nário público a prestação de contas de sua administração.

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Na Declaração dos direitos do homem e do cidadão –França, 1793 –, temos :

Artigo 20. Nenhuma contribuição pode ser estabelecida se nãofor para a utilidade geral. todos os cidadãos têm direito de par-ticipar do estabelecimento de contribuições, de fiscalizar seuemprego e de obter uma prestação de contas dela.[...]Artigo 32. o direito de apresentar petições aos depositários daautoridade pública não pode, em nenhum caso, ser proibido,suspenso ou restringido.

A Declaração Universal dos Direitos do homem, adotada eproclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de de-zembro de 1948, contém vários dispositivos relacionados ao direito fun-damental à boa administração. Destacamos: “Artigo 21. 1. toda pessoatem direito de participar da direção de questões pública de seu país,seja diretamente, seja por intermédio de representantes de seu país”.

DO DIREITO À TRANSPARÊNCIA ADMINISTRATIVA EM TRA-TADOS INTERNACIONAIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO

Segundo Gianfranco Pasquino (1995, p. 291-292), autordo verbete “Corrupção”, em Dicionário de Política, a corrupção é:

[...] o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agirde modo diverso dos padrões normativos do sistema, favore-cendo interesses particulares em troca de recompensa. Cor-rupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenhaum papel na estrutura estadual. Podemos distinguir três tiposde corrupção: a prática da peita ou uso de recompensa escon-dida para mudar a seu favor o sentir de um funcionário público;o nepotismo, ou concessão de empregos ou contratos públicosbaseada não no mérito, mas nas relações de parentela; o pe-culato por desvio ou apropriação de fundos públicos ao uso pri-vado. [...] A corrupção é uma forma particular de exercerinfluência: influência ilícita, ilegal e ilegítima.

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Essa influência ilícita sobre os governos é combatidatambém por meio da transparência administrativa. ou, em outraspalavras, a transparência administrativa dificulta a corrupção efavorece o surgimento ou manutenção de uma boa administra-ção, razão porque alguns tratados internacionais de combate àcorrupção não se esqueceram de mencionar a importância daparticipação da sociedade civil e a transparência administrativa.

A Convenção interamericana contra a Corrupção, de 29de março de 1996, adotada em Caracas, em 29 de março de1996, foi promulgada no Brasil por meio do decreto presidencialn. 4.410, de 07 de outubro de 2002, e inicia seu preâmbulo comconsiderações, dentre as quais destacamos as seguintes:

PREÂMBUlo.oS EStADoS MEMBRoS DA oRGANiZAÇÂo DoS EStADoSAMERiCANoS,CoNvENCiDoS de que a corrupção solapa a legitimidade das ins-tituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e ajustiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos;CoNSiDERANDo que a democracia representativa, condiçãoindispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimentoda região exige, por sua própria natureza, o combate a todaforma de corrupção no exercício das funções públicas e aosatos de corrupção especificamente vinculados a seu exercício.PERSUADiDoS de que o combate à corrupção reforça as ins-tituições democráticas e evita distorções na economia, víciosna gestão pública e deterioração da moral social. As Partes, Considerando que a corrupção é um fenômeno difundido nastransações Comerciais internacionais, incluindo o comércio eo investimento, que desperta sérias preocupações morais e po-líticas, abala a boa governança e o desenvolvimento econô-mico, e distorce as condições internacionais de competividade.

os propósitos da Convenção interamericana de Com-bate à Corrupção estão elencados em seu artigo ii:

os propósitos dessa Convenção são:1. promover e fortalecer o desenvolvimento, por cada um dosEstados Partes, dos mecanismos necessários para prevenir,detectar, punir e erradicar a corrupção.2. promover, facilitar e regular a cooperação entre os Estados par-tes a fim de assegurar a eficácia das medidas e ações adotadas

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para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção no exer-cício das funções públicas, bem como os atos de corrupçãoespecificamente vinculados a seu exercício.

No tocante à boa governança, podemos extrair da Con-venção interamericana de Combate algumas medidas preventi-vas exigidas dos Estados partes. observe:

ARtiGo iiiMEDiDAS PREvENtivASPara os fins estabelecidos no artigo ii, desta Convenção, osEstados Partes convêm considerar a aplicabilidade de medi-das, em seus sistemas institucionais destinados a criar, mantere favorecer:[...]4.Sistemas para a declaração das receitas, ativos e passivospor parte das pessoas que desempenhem funções públicasem determinados cargos estabelecidos em lei, e, quando foro caso, para divulgação dessas declarações.5. Sistemas de recrutamento de funcionários públicos e deaquisição de bens e serviços por parte do Estado de forma aassegurar sua transparência, eqüidade e eficiência.[...]11. Mecanismos para estimular a participação da sociedadecivil e de organizações não-governamentais nos esforços paraprevenir a corrupção.

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, ado-tada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubrode 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, tem vi-gência no Brasil a partir do Decreto presidencial n. 5.687, de 31 deoutubro de 2003. Em seu preâmbulo destaca-se o reconhecimentoda importância da participação de pessoas que não sejam do poderpúblico para agirem na prevenção e no combate à corrupção:

PREÂMBUlo[...]tendo presente que a prevenção e a erradicação da corrupçãosão responsabilidades de todos os Estados e que estes devemcooperar entre si, com o apoio e a participação de pessoas e gru-pos que não pertencem ao setor público, como a sociedade civil,as organizações não governamentais e as organizações de basecomunitária, para seus esforços neste âmbito sejam eficazes.

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os propósitos da Convenção das Nações Unidas para o Com-bate à Corrupção se assemelham aos da Convenção interamericana,vejamos:

ARtiGo 1FiNAliDADEA finalidade da presente Convenção é:a)Promover e fortalecer medidas para prevenir e combatermais eficaz e eficientemente a corrupção;b) Promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional e aassistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção,incluída a recuperação de ativos;c) Promover a integridade, a obrigação de render contas e adevida gestão dos assuntos e bens públicos.

Na mesma linha, a Convenção das Nações Unidas decombate à corrupção determina aos Estados Partes signatários quepromovam a participação da sociedade no combate à corrupção:

CAPÍtUlo iiMEDiDAS PREvENtivASARtiGo 5PolÍtiCAS E PRÁtiCAS DE PREvENÇÃo DA CoRRUPÇÃo1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fun-damentais de seu ordenamento jurídico, formulará e aplicaráou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contraa corrupção que promovam a participação da sociedade e re-flitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dosassuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e aobrigação de render contas.

há de se relevar também o enunciado do artigo 10 dessaconvenção, especialmente dedicado à informação pública:

Artigo 10informação pública

tendo em conta a necessidade de combater a corrupção,cada Estado Parte, em conformidade com os princípiosfundamentais de sua legislação interna, adotará medidasque sejam necessárias para aumentar a transparência emsua administração pública, inclusive no relativo a sua organiza-ção, funcionamento e processos de adoção de decisões, quandoproceder. Essas medidas poderão incluir, entre outras coisas:a) A instauração de procedimentos ou regulamentações que

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permitam ao público em geral obter, quando proceder, informa-ção sobre a organização, o funcionamento e os processos deadoção de decisões de sua administração pública, com o devidorespeito à proteção da intimidade e dos documentos pessoais,sobre as decisões e atos jurídicos que incumbam ao público;b) A simplificação dos procedimentos administrativos, quandoproceder, a fim de facilitar o acesso do público às autoridadesencarregadas da adoção de decisões; ec) A publicação de informação, o que poderá incluir informes pe-riódicos sobre os riscos de corrupção na administração pública.

Não se olvide necessariamente que, nos termos do ar-tigo 5º, § 3º da Constituição Federal, verbis: “os tratados e con-venções internacionais sobre direitos humanos que foremaprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tur-nos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serãoequivalentes às emendas constitucionais”, o Brasil ratificou astrês convenções de combate à corrupção anteriormente indica-das e, há, portanto, um compromisso soberano da república bra-sileira perante a comunidade internacional para que, na esteirado aumento ao combate à corrupção, se incremente, igualmente,a transparência administrativa.

DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NA CONSTITUIÇÃOFEDERAL E A TRANSPARÊNCIA ADMINISTRATIVA

Ao lado e completando o princípio da moralidade, impes-soalidade e eficiência, o constituinte erigiu o princípio da publici-dade a orientar toda atividade da Administração Pública, verbis:

Constituição da RepúblicaArt. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dosPoderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu-nicípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoali-dade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, aoseguinte: [...]

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há certo consenso na doutrina de que a publicidade é,na verdade, um subprincípio da transparência Administrativa,inerente a Estados Democráticos de Direito, tal como o criado naConstituição da República de 1988. Nesse sentido, WallacePaiva Martins Júnior (2004, p. 20-21) expressa que:

A ampla e efetiva publicidade da atuação administrativa, a mo-tivação de seus atos e a participação do administrativo na con-dução dos negócios públicos são subprincípios (einstrumentos) do princípio da transparência.

DAS REGRAS CONSTITUCIONAIS ACERCA DA PUBLICIDADE

A Constituição Federal de 1988, além de fixar a publici-dade como princípio geral da administração pública, também pre-viu algumas regras para sua efetivação em casos específicos.

Art. 5.° [...]XXXiii – todos têm o direito a receber dos órgãos públicos in-formações de seu interesse particular, ou no interesse coletivoou geral, que serão prestados no prazo da lei, sob pena deresponsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja impres-cindível à segurança da sociedade e do Estado;XXXiv – são a todos assegurados independente do paga-mento de taxas:a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa dosdireitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para adefesa de direitos e esclarecimento de situações de interessepessoal;[...]Art. 39. [...]§ 6.º os Poderes Executivo, legislativo e Judiciário publicarãoanualmente os valores dos subsídios e da remuneração doscargos e empregos públicos.[...]Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:[...]

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iv – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis [...][...]Art. 162. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípiosdivulgarão, até o último dia do mês subseqüente ao da arreca-dação, os montantes de cada um dos tributos arrecadados, osrecursos recebidos, os valores de origem tributária entreguese a entregar e a expressão numérica dos critérios de rateio.[...]Art. 165.[...]§ 3.° o Poder Executivo publicará, até trinta dias após o en-cerramento de cada bimestre, relatório resumido da execuçãoorçamentária.[...]Art. 225.[...]iv – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividadepotencialmente causadora de significativa degradação ao meioambiente, estudo prévio de impacto ambiental a que se darápublicidade.

DA PUBLICIDADE EXIGIDA NOS ATOS PREVISTOS NA LEIDE LICITAÇÕES E DO CONTROLE SOCIAL

A lei 8.666/93 prevê em vários artigos a necessidade dapublicidade dos atos na administração pública e outros em queprevê a possibilidade efetiva de o cidadão acompanhar as licita-ções e os contratos públicos. vejamos:

Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do prin-cípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta maisvantajosa para a Administração e será processada e julgadaem estrita conformidade com os princípios básicos da legali-dade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da pu-blicidade, da probidade administrativa, da vinculação aoinstrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos quelhes são correlatos.[...]ii - [...]

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§ A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveisao público os atos de seu procedimento, salvo quanto aoconteúdo das propostas, até a respectiva abertura.

Art. 4° todos quantos participem da licitação promovida pelosórgãos ou entidades a que se refere o art. 1° têm direito pú-blico subjetivo à fiel observância do pertinente procedimentoestabelecido nesta lei, podendo qualquer cidadão acompanharo seu desenvolvimento, desde que não interfira de modo aperturbar ou impedir a realização dos trabalhos.[...]Art. 7.° [...]§ 8.° Qualquer cidadão poderá requerer à AdministraçãoPública os quantitativos das obras e preços unitários de deter-minada obra executada.[...]Art. 15. As compras sempre que possível, deverão:[...]iii – ser processadas através de sistema de registro de preços;[...]§ 1.° o registro de preços será precedido de ampla pesquisade mercado.§ 2.° os preços registrados serão publicados trimestralmentepor decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadasas seguintes condições : [...]§ 6.° Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preçoconstante do quadro geral em razão de incompatibilidadedesse com o preço vigente no mercado.[...]Art. 16. Será dada publicidade, mensalmente, em órgão dedivulgação oficial ou em quadro de avisos de amplo acessopúblico, à relação de todas as compras feitas pela AdministraçãoDireta ou indireta, de maneira a clarificar a identificação dobem comprado, seu preço unitário, a quantidade adquirida, onome do vendedor e o valor total da operação, podendo seraglutinadas por itens as compras feitas com dispensa e inexi-gibilidade de licitação. [...]Art. 21. os avisos contendo os resumos dos editais das con-corrências, das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões,embora realizados no local da repartição interessada, deverãoser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez:i – no Diário oficial da União, quando se tratar de licitação feitapor órgão ou entidade da Administração Pública Federal e, ainda,quando se tratar de obras financiadas parcial ou totalmente comrecursos federais ou garantidas por instituições federais;ii – no Diário oficial do Estado, ou do Distrito Federal quandose tratar, respectivamente, de licitação feita por órgão ou enti-dade da Administração Pública Estadual ou Municipal, ou doDistrito Federal;

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iii – em jornal diário de grande circulação no Estado e também,se houver, em jornal de circulação no Município ou na regiãoonde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alie-nado ou alugado o bem, podendo ainda a Administração, con-forme o vulto da licitação, utilizar-se de outros meios dedivulgação para ampliar a área de competição.[...]Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2.° e 4.° do art. 17 enos incisos iii a XXiv, as situações de inexigibilidade referidasno art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento pre-visto no final do parágrafo único do art. 8.°, deverão ser comu-nicados dentro de três dias a autoridade superior, pararatificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de cincodias, como condição para eficácia dos atos.[...]Art. 34. Para os fins desta lei, os órgãos e entidades daAdministração Pública que realizem frequentemente licitaçõesmanterão registros cadastrais para efeito de habilitação naforma regulamentar, válidos por, no máximo, um ano.§ 1.° o registro cadastral deverá ser amplamente divulgado edeverá estar permanentemente aberto aos interessados, obri-gando-se a unidade por ele responsável a proceder, no mínimoanualmente, através da imprensa oficial e de jornal diário, achamamento público para atualização dos registros existentespara o ingresso de novos interessados.[...]Art. 39. Sempre que o valor estimado para uma licitação ou paraum conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas for supe-rior a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso i, alínea"c" desta lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoria-mente, com uma audiência pública concedida pela autoridaderesponsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteisda data prevista para a publicação do edital, e divulgada, coma antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis de sua realização,pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação,à qual terão acesso e direito a todas as informações pertinentese a se manifestar todos os interessados.[...]Art.41. A Administração não pode descumprir as normas e con-dições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.§ 1.° Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar editalde licitação por irregularidade na aplicação desta lei, devendoprotocolar o pedido até 5 (cinco) dias úteis antes da data fixadapara a abertura dos envelopes [...][...]Art. 61. todo contrato deve mencionar os nomes das partes eos seus representantes, a finalidade do ato que autorizou asua lavratura, o número do processo da licitação, da dispensaou da inexigibilidade, a sujeição dos contratantes às normasdesta lei e às clausulas contratuais.

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Parágrafo único. A publicação resumida do instrumento docontrato ou de seus aditamentos na imprensa oficial, que écondição indispensável para sua eficácia, será providenciadapela Administração até o quinto dia útil do mês seguinte ao desua assinatura, para ocorrer no prazo de vinte dias daqueladata, qualquer que seja o seu valor, ainda que sem ônus, res-salvado o disposto no artigo 26 desta lei. [...]Art. 63. É permitido a qualquer licitante o conhecimento dostermos do contrato e do respectivo processo licitatório e, aqualquer interessado, a obtenção de cópia autenticada, me-diante o pagamento dos emolumentos devidos.

DA PUBLICIDADE DOS ATOS PREVISTOS NA LEI DO PREGÃO,LEI FEDERAL 10.520/02

Uma nova modalidade de licitação foi criada com a lei Fe-deral 10.520/02 para União, Estados, Distrito Federal e municípios:o pregão, que se destina à compra de bens e serviços comuns.Sendo uma lei mais recente, já reforçando a necessidade do usodas novas tecnologias, expressou que “poderá ser realizado o pre-gão por meio de utilização de recursos de tecnologia da informa-ção” (art. 2.°, § 1.°).

vários dispositivos na lei do pregão impõem tambémpublicação de atos administrativos via imprensa oficial.

No mesmo sentido dispõe a lei do pregão, verbis:

Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocaçãodos interessados e observará as seguintes regras:

i - a convocação dos interessados será efetuada por meio depublicação de aviso em diário oficial do respectivo ente fede-rado ou, não existindo, em jornal de circulação local, e facul-tativamente, por meios eletrônicos e conforme o vulto dalicitação, em jornal de grande circulação, nos termos do regu-lamento de que trata o art. 2º;

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[...]iv – cópias do edital e do respectivo aviso serão colocadas àdisposição de qualquer pessoa para consulta e divulgadas naforma da lei no. 9755, de 16 de dezembro de 1998;[...]Art. 8º os atos essenciais do pregão, inclusive os decorrentesde meios eletrônicos, serão documentados no processo res-pectivo, com vistas à aferição de sua regularidade pelos agen-tes de controle, nos termos do regulamento previsto no art. 2º.

DA EXIGÊNCIA DE PUBLICAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS,INCLUSIVE EM MEIOS ELETRÔNICOS POR DISPOSIÇÃO EX-PRESSA, POR FORÇA DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

A lei de Responsabilidade, lei Complementar 101/05também aborda, em alguns artigos, os instrumentos da transpa-rência na administração, prevendo, necessariamente, a divulga-ção em meios eletrônicos de acesso ao público – internet – verbis:

Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aosquais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrô-nicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretri-zes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecerprévio; o Relatório Resumido da Execução orçamentária e o Relatóriode Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:i – incentivo à participação popular e realização de audiênciaspúblicas, durante os processos de elaboração e discussão dosplanos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; ii – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento dasociedade, em tempo real, de informações pormenorizadassobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicosde acesso público; iii – adoção de sistema integrado de administração financeira econtrole, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecidopelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.1

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1 A atual redação do parágrafo único do artigo 48 e o acréscimo dos seus incisos,bem como o artigo 48-A deve-se à lei Complementar 131, de 27 de maio de

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Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso ii do parágrafo únicodo art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquerpessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: i – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidadesgestoras no decorrer da execução da despesa, no momentode sua realização, com a disponibilização mínima dos dadosreferentes ao número do correspondente processo, ao bemfornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídicabeneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedi-mento licitatório realizado; ii – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receitadas unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.”

Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo fi-carão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder le-gislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, paraconsulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade.[...]Do Relatório Resumido da Execução orçamentáriaArt. 52. o relatório a que se refere o § 3.° do art. 165 da Consti-tuição abrangerá todos os Poderes e o Ministério Público, serápublicado até trinta dias após o encerramento de cada bimestre:[...]

Do Relatório de Gestão FiscalArt. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titu-lares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 Relatório deGestão Fiscal, assinado pelo:i – Chefe do Poder Executivo;[...]Art. 55. o relatório conterá:

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de 2009 que também acrescentou o artigo 73-B à lRF com a seguinte redação:Art. 73-B. Ficam estabelecidos os seguintes prazos para o cumprimento das de-terminações dispostas nos incisos ii e iii do parágrafo único do art. 48 e do art.48-A: i – 1 (um) ano para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípioscom mais de 100.000 (cem mil) habitantes; ii – 2 (dois) anos para os Municípiosque tenham entre 50.000 (cinquenta mil) e 100.000 (cem mil) habitantes; iii – 4(quatro) anos para os Municípios que tenham até 50.000 (cinquenta mil) habitan-tes. Parágrafo único. os prazos estabelecidos neste artigo serão contados a partirda data de publicação da lei complementar que introduziu os dispositivos referidosno caput deste artigo. Em uma das poucas normas de transparência que prevêemsanções, a l.C. 131/09 acresceu ainda o artigo Parágrafo único. os prazos es-tabelecidos neste artigo serão contados a partir da data de publicação da lei com-plementar que introduziu os dispositivos referidos no caput deste artigo. Art. 73-C.o não atendimento, até o encerramento dos prazos previstos no art. 73-B, dasdeterminações contidas nos incisos ii e iii do parágrafo único do art. 48 e no art.48-A sujeita o ente à sanção prevista no inciso i do § 3o do art. 23. A sanção aque se refere é a proibição de recebimento de transferências voluntárias.

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[...]§ 2º o relatório será publicado até trinta dias após o encerra-mento do período a que corresponder, com amplo acesso aopúblico, inclusive por meio eletrônico.[...]Das Prestações de ContasArt. 56. As contas prestadas pelos Chefe do Poder Executivo[...]§ 2.° o parecer sobre as contas dos tribunais de Contas seráproferido no prazo previsto no art. 57 pela comissão mistapermanente referida no § 1.° do art. 166 da Constituição ouequivalente das Casas legislativas estaduais e municipais.§ 3.° Será dada ampla divulgação dos resultados das contas,julgadas ou tomadas.[...]Art. 64. A União prestará assistência técnica e cooperaçãofinanceira aos Municípios para a modernização das [...]§ 1º. A assistência técnica consistirá no treinamento e desen-volvimento de recursos humanos e na transferência de tecno-logia, bem como no apoio à divulgação dos instrumentos de quetrata o art. 48 em meio eletrônico de amplo acesso público.

DA OBRIGAÇÃO DE NOTIFICAÇÃO DE ENTES DA SOCIE-DADE ACERCA DO RECEBIMENTO DE VERBAS DA UNIÃO,LEI 9.452/97

Uma outra obrigação que não vem sendo cumprida usual-mente pelos municípios é a notificação de entes da sociedadeacerca de verbas recebidas da União pelo Município. Notificaçãoque também deveria ser feita por meio do órgão oficial de imprensa.

lei 9.452, de 20 de março de 1997.Art. 1.°. os órgãos e entidades da administração federal, diretae as autarquias e fundações públicas, empresas públicas e so-ciedades de economia mista federais notificarão as respecti-vas Câmaras Municipais da liberação de recursos financeirosque tenha efetuado, a qualquer título, para os Municípios, noprazo de 2(dois) dias úteis, contado da data da liberação.Art. 2.° . A Prefeitura do Município beneficiário da liberação de recursos,de que trata o artigo 1.° desta lei, notificará os partidos políticos, os

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sindicatos dos trabalhadores e as entidades empresariais, comsede no Município, da respectiva liberação, no prazo de 2(dois) diasúteis, contado da data de recebimento dos recursos.

DA RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO EM REPASSAR IN-FORMAÇÕES PARA O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃOPARA VEICULAÇÃO EM MEIO ELETRÔNICO

A lei Federal n. 9.755, de 16 de dezembro de 1998, impõeao tribunal de Contas da União criar “homepage na rede de com-putadores internet, com o título “contas públicas” para divulgaçãodos dados que especifica. o artigo 3.° da referida lei dispõe:

Art. 3.° Para fiel e uniforme aplicação das presentes normas,o tribunal de Contas da União atenderá consultas, coligaráelementos, promoverá o intercâmbio de dados informativos eexpedirá recomendações técnicas, quando solicitadas.

Portanto, desde o ano de 1998, os municípios já têm aobrigação de estar coletando os dados para envio ao tCU, masnão surpreende não haver cumprimento também de tal normapor parte da grande maioria dos municípios brasileiros.

DOS ATOS OFICIAIS DO MUNICÍPIO E DA PREVISÃO NASLEIS ORGÂNICAS DE SUA PUBLICAÇÃO

Em regra, as leis orgânicas municipais impõem comoobrigação ao município a criação do órgão de imprensa local coma exigência da publicidade pela imprensa dos atos normativosdos dois poderes de forma integral. vejamos, a título de exemplo,

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a lei orgânica do Município de itumbiara.

Art. 110. A publicação das leis e atos municipais far-se-á emórgão da imprensa local ou regional ou por afixação na sededa Prefeitura e da Câmara Municipal, conforme o caso.§ 1.° a escolha do órgão de imprensa para a divulgação dasleis e atos administrativos far-se-á através de licitação, em quese levarão em conta não só as condições de preço, como ascircunstâncias de freqüência, horário e tiragem a distribuição.§ 2º. Nenhum ato produzirá efeito antes de sua publicação.§ 3°. A publicidade dos atos não normativos, pela imprensa,poderá ser resumida.§ 4° . o Município criará órgão de imprensa municipal, órgão oficialdo município com as publicações referentes aos dois poderes.

OUTRAS REFERÊNCIAS COMUNS EM LEIS ORGÂNICASACERCA DA PUBLICAÇÃO E DIVULGAÇÃO DOS ATOS, INI-CIATIVAS, AÇÕES E RESULTADOS ADMINISTRATIVOS

Destacamos outras referências importantes acerca dapublicidade na lei orgânica do Município de itumbiara, a títulode exemplo, que merecem destaque.

Art. 67. Compete ao Prefeito, entre outras atribuições:[...]Xiii – fazer publicar atos oficiais;[...]XXiii – apresentar, anualmente, à Câmara relatório circunstan-ciado sobre o estudo das obras e dos serviços municipais, bemassim, o programa de administração para o ano seguinte.[...]XXXv – publicar, até (30) trinta dias após o encerramento decada bimestre, relatório resumido de execução orçamentária.[...]Art. 82. A administração pública direta e indireta de qualquer dosPoderes do Município, obedecerá aos princípios da legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidade e também ao seguinte:§ 1.° A publicidade dos atos, programas, obras, serviços ecampanhas de órgãos públicos deverá ter caráter educativo,informativo ou de orientação social, dela não podendo constar

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nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pes-soal das autoridades de autoridades ou servidores públicos.[...]Art. 111. o Prefeito fará publicar:i – diariamente, por edital, o movimento de caixa do dia anterior;ii – mensalmente, o balancete resumido da receita e da despesa;iii – mensalmente, os montantes de cada um dos tributos ar-recadados e os recursos recebidos;iv – anualmente, até 15 de março, pelo órgão oficial do muni-cípio ou jornal de circulação normal do município e na faltadeste, no órgão oficial do Estado, as contas de administração,constituídas do balanço financeiro, do balanço patrimonial, dobalanço orçamentário e demonstração das variações patrimo-niais, em forma sintética, que ficará à disposição dos contri-buintes na Câmara Municipal por 60 ( sessenta) dias. [...]Art. 145. leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerãoos orçamentos anuais, o plano plurianual e as diretrizes orça-mentárias obedecendo às regras estabelecidas na Constitui-ção Federal, na Constituição do Estado, nas normas de DireitoFinanceiro e nos preceitos desta lei orgânica.§ 1.° o Poder Executivo publicará, até trinta dias após o encerramentode cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária.§ 2.° o Município divulgará, até o último dia do mês subseqüenteao da arrecadação, os montantes de cada um dos tributos arreca-dados, os recursos recebidos, os valores de origem tributária en-tregues e a entregar e a expressão numérica dos critérios de rateio.[...]Artigo 218.[...]Parágrafo único. o Poder Público Municipal divulgará, bimestral-mente o montante dos recursos efetivamente gastos com educação.[...]Artigo 285. incumbe ao Município:i – auscultar, permanentemente, a opinião pública; para isso,sempre que o interesse público não aconselhar o contrário, osPoderes Executivo e legislativo divulgarão, com a devida an-tecedência, os projetos de lei para o recebimento de sugestões;[...]

DO AMPLO DESCUMPRIMENTO DAS REGRAS DE TRANS-PARÊNCIA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

É fato quase notório a constatação de que a grande maioria

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das regras anteriormente elencadas são solenemente ignoradasdolosa ou culposamente pela grande maioria dos governos no Bra-sil, notadamente nas administrações municipais. Basta perguntar,salvo raríssimas exceções, se alguém já chegou a alguma prefei-tura e viu a relação dos produtos e preços adquiridos no último mês(art. 16, da lei 8.666/93, vide supra).

A maioria dessas normas também padece de um mal deorigem, que é a ausência de sanção expressa aos que as des-cumprem. Assim, para conseguir seu cumprimento, devem, o ci-dadão e o Ministério Público ou demais legitimados pela lei7.347/85, buscar medidas extrajudiciais consensuais (cuja tradiçãopatrimonialista de nossos governantes nem sempre reconhecem)ou ações judiciais: ação popular ou ação civil pública de obrigaçãode fazer (art. 461 do CPC), ou esta cumulada com ação de res-ponsabilidade por improbidade administrativa (lei 8.429/92, artigo11, ii – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício),se comprovado o dolo do agente2.

Acrescente-se que ainda há, por parte das administra-ções, invocação de antigos precedentes judiciais arraigados aum tempo passado, como é o caso da resistência à criação dodiário oficial impresso e via internet, em defesa à pseudopubli-cação no quadro de avisos da Prefeitura. Nesse sentido:

CoNStitUCioNAl, ADMiNiStRAtivo E PRoCESSUAlCivil. lEi MUNiCiPAl. PUBliCAÇÃo. iNEXiStÊNCiA DEÓRGÃo DE iMPRENSA oFiCiAl No MUNiCÍPio. AFiXAÇÃoNA SEDE DA PREFEitURA. FAtoS CoNSiDERADoS CoN-tRovERtiDoS PElAS iNStÂNCiAS oRDiNÁRiAS. Di-REito lÍQUiDo E CERto: iNEXiStÊNCiA. PRoCESSo DESEGURANÇA EXtiNto SEM JUlGAMENto Do MÉRito.

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2 É de se esperar que o dolo reste configurado se, após prazo razoável da ciênciainequívoca do descumprimento da norma pelo agente público, este não toma pro-vidências no sentido de cumpri-la. A ciência do descumprimento pode se dar atra-vés da recomendação (art. 27, p.u. iv da lei Federal 8.625/93 c/c artigo 6.º XX dalei Complementar 75/93) do Ministério Público, recebida em mãos pelo agente,ou por meio de notificação judicial(art. 867 do CPC), promovida pelo cidadão, peloMinistério Público ou por outros legitimados pelas leis 7.347/85 e 8.429/92.

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RECURSo NÃo CoNhECiDo. i – [...] ii - tratando-se de mu-nicípio que não possui órgão de imprensa oficial, é válida a pu-blicação das leis e dos atos administrativos municipais atravésda afixação na sede de prefeitura. Precedentes do StF e doStJ. [...]. lv - Recurso Especial não conhecido. (StJ RESP148315; RS; Segunda turma; Rel. Min. Adhemar Ferreira Ma-ciel; Julg. 01/10/1998; DJU 01/02/1999; pág. 00147)

A IMPORTÂNCIA DA INTERPRETAÇÃO EVOLUTIVA

o juiz não é apenas a boca da lei, como se dizia. o Juiz é,antes de tudo, um intérprete do ordenamento jurídico com vista a garantiros objetivos da República consagrados na Constituição. Não se decidecom justiça alheio à realidade social. o trabalho interpretativo do juizexige uma postura evolutiva, fato bem destacado por Flávia de Almeidaviveiros de Castro (2004, p. 79-82), cuja transcrição é obrigatória:

Constitui regra fundamental da hermenêutica que as normas jurí-dicas se interpretam em referência à realidade social do tempoem que deverão ser aplicadas. Assim a interpretação constitucio-nal ou infraconstitucional adquire um jaez evolucionista. A normadeve ser idônea a resolver os fatos da vida. o direito deve ser ob-servado sob o ponto de vista da atualidade, e há que se com-preender que o enfoque que hoje se estabelece sobredeterminada questão polêmica não é definitivo, mas mutante.[...]interpretar evolutivamente comporta a incorporação, no processoexegético, de elementos extranormativos, que possuem comotraço comum aquele da preocupação com o social. [...] A exigênciade uma interpretação evolutiva está em que o sistema jurídico viveconstantemente em ebulição e este movimento acarreta mudançasno sentido da norma, motivada pelas transformações que sofre oordenamento legal. Em conseqüência, a índole dinâmica e evolu-tiva do sistema põe em evidência a obrigação do intérprete deacompanhar a mudança do sentido normativo, com uma interpre-tação e uma aplicação evolutivas do direito. Se feliz em sua missão,manterá a eficácia das leis na vida social; do contrário, estas poucoa pouco se esclerotizarão e nada representarão para seus desti-natários. Assim, só será verdadeiramente acertado o resultado in-terpretativo cuja força se comprove na realidade social.

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o reconhecimento da internet como um canal atual decomunicação das massas é hoje algo inegável. A constatação deque todas as regras que exigem a publicação dos atos adminis-trativos devem ser relidas para que delas se extraia a compreen-são de que tais publicações só cumprirão a efetividade desejadapelo constituinte se tal publicação se der por meio da internet senos apresenta como uma imposição da realidade atual. A inter-pretação evolutiva apresentada pela juíza Flávia de Almeida vi-veiros de Castro é o respaldo jurídico para tal conclusão. Políticosnão afeitos à publicidade (um deles já disse, com grande reper-cussão nacional, que publicidade demais é burrice) se excusamde realizá-la na internet sob argumentos da ausência de previsãoorçamentária e da reserva do possível. Esses argumentos sãoinoponíveis, mesmo para pequenos municípios, haja vista quesão mínimos os custos diante das vantagens advindas da publi-cação. Sobre o tema já manifestara a transparência Brasil, pormeio de Cláudio Weber Abramo (2008, p. 3, grifo nosso):

A prestação de informações objetivas (excluindo-se desde logodessa categoria a propaganda) a respeito da ação administrativaé não só dever constitucional como condição básica para que talação possa ser aquilatada pelos que, na sociedade, têm o deverde interpretar e disseminar a informação – a imprensa, em pri-meiro lugar, seguindo-se entidades acadêmicas, associações detodos os tipos e organizações governamentais [...] Um programade coleta e disponibilização de informação pode ser condu-zido em qualquer prefeitura. Os custos já se encontram pre-vistos na maioria dos orçamentos municipais, a saber, nassuas áreas de comunicação. Basta redirecioná-los.

A NOVA LEI DE ACESSO A INFORMAÇÕES : LEI 12.527/11

Em 18 de novembro de 2011 foi publicada a lei Federalde acesso a informações, a viger a partir de 17 de maio de 2012.

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A lei tem como destinatários imediatos todos os órgãos públicosda administração direta e indireta de todas as esferas de governodo Poder Executivo, do Poder legislativo, das Cortes de Contas,do Judiciário e do Ministério Público. A eles estabelece diretrizese obrigações gerais e específicas.

Se alguma dúvida ainda pairava quanto ao papel da inter-net como canal de divulgação dos atos da administração pública,a entrada em vigor da nova lei 12.527/11 encerrará o questiona-mento. É o que se extrai do artigo 8º da nova lei:

Artigo 8º. É dever dos órgãos e entidades públicas promover,independente de requerimentos, a divulgação em local de fácilacesso, no âmbito de suas competências, de informações deinteresse coletivo ou geral por ele produzidas ou custodiadas.§ 1º Na divulgação das informações a que se refere o caput,deverão constar, no mínimo:i – registro das competências e estrutura organizacional, ende-reços e telefones das respectivas unidades e horários de aten-dimento ao público;ii – registros de quaisquer repasses ou transferências de recur-sos financeiros;iii – registros de despesas;iv – informações concernentes a procedimentos licitatórios, in-clusive os respectivos editais e resultados, bem como todos oscontratos celebrados;v – dados gerais para acompanhamento de programas, ações,projetos e obras de órgãos ou entidades; evi – respostas a perguntas mais freqüentes da sociedade.§ 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entida-des públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legí-timos de que dispuserem, sendo obrigatória a a divulgação emsítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).

A exceção contida no § 4º do referido artigo3 de que so-mente os Municípios com população de até 10.000 (dez mil) habi-tantes estariam dispensados de manterem a sua página nainternet completa – mesmo assim não dispensada de atender o

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3 Artigo 8º. [...] § 4º. os Municípios com população de até 10.000 (dez mil) habitantesficam dispensados da divulgação obrigatória na internet a que se refere o § 2º, man-tida a obrigatoriedade de divulgação, em tempo real, de informações relativas à exe-cução orçamentária e financeira, nos critérios e prazos previstos no artigo 73-B dalei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (lei de Responsabilidade Fiscal).

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artigo 73-B da lRF (vide supra) – e reforça o entendimento de que,para os demais entes públicos, a rede mundial de computadoresfoi definitivamente colocada como canal de comunicação obriga-tório entre governo com a população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas democracias modernas, o direito à boa administraçãotem sido reconhecido na doutrina nacional e estrangeira. A trans-parência administrativa é elemento de concretização do princípioconstitucional da publicidade dos atos da administração pública. Atransparência administrativa tem sido implementada pelo legisla-dor nacional, seja por meio da ratificação de tratados internacio-nais, seja por meio de leis que vem sendo paulatinamenteaprovadas, estas últimas não só no Congresso Nacional, mas tam-bém nos Estados e Municípios.

No entanto, apesar de haver leis de transparência em nú-mero razoável, estas, em regra, têm sido ignoradas. A falta de tradi-ção democrática em nosso país, a falta de sanções expressas e afalta de cobrança por parte dos cidadãos e dos órgãos estatais decontrole são causas que se somam. A publicação no vetusto quadrode avisos não é aceitável diante de uma interpretação evolutiva danorma, o que já tem respaldo na melhor doutrina. Não faltam recur-sos públicos para a ampla publicidade na internet, eis que o rearranjodas verbas destinadas à área de comunicação já seria suficiente. Anova lei de acesso às informações coloca a internet definitivamentecomo canal obrigatório de comunicação entre poder público e o povo.

toda mudança desejada está a exigir mais atitude dosatores sociais, sob pena de permanecermos criando leis que nãoconseguimos ver cumpridas.

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REFERÊNCIAS

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cionalidade. itinerários dos discursos sobre a historicidade cons-titucional. Coimbra: Almedina, 2008.

FREitAS, Juarez de. Discricionariedade administrativa e o direito fun-

damental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007.

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vivEiRoS DE CAStRo, Flávia de Almeida. Interpretação cons-

titucional e prestação jurisdicional. 2. ed. Rio de Janeiro: lumenJuris Editora, 2004.

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Bruno Moraes Faria Monteiro Belem*

A teoriA dos princípios e o suporte fático dAsnormAs de direitos fundAmentAis

ThE ThEOry OF PrinCiPLES AnD ThE FACTUAL

SUPPOrT OF ThE FUnDAMEnTAL riGhTS

TEOrÍA DE LOS PrinCiPiOS y EL APOyO

FáCTiCO DE LOS DErEChOS FUnDAMEnTALES

Resumo:

As regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam

ou não se aplicam na sua completa extensão. Por outro lado, os

princípios apresentam uma aplicabilidade variável, condicionada

pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. A partir

da distinção estrutural entre regras e princípios se visualiza a im-

portância de se examinar o suporte fático das normas de direitos

fundamentais. A configuração do suporte fático das normas sobre

direitos fundamentais influencia diretamente na sua forma de apli-

cação, na própria possibilidade de restrição aos direitos fundamen-

tais e na possibilidade de haver colisões entre estes. A adoção de

um modelo que assimile um suporte fático amplo das normas de

direitos fundamentais de liberdade exige do Estado um maior es-

forço argumentativo para a restrição de direitos fundamentais.

Abstract:

The rules are applied in the form of "all or nothing", they are

applied or not apply in its full extent. On the other hand, the

*Especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especia-lista em Direito Constitucional pela UFG. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticaspela Universidade de Lisboa. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais daOAB-GO. Professor de Direito Constitucional (Uni-Anhanguera).Procurador do Es-tado de Goiás e Assessor Técnico na Secretaria de Estado da Casa Civil.

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principles have a variable applicability, which is conditioned by

the importance that is assigned to it in this case. From the struc-

tural distinction between rules and principles emerges the im-

portance of examining the factual support of fundamental rights

standards. The configuration of the factual support of the stan-

dards on fundamental rights has a direct influence on your ap-

plication form, the very possibility of restricting the fundamental

rights and the possibility of collisions between such fundamen-

tal rights. The adoption of a model that assimilates a broad fac-

tual support standards of fundamental rights requires from the

State a greater effort to create restriction on fundamental rights.

Resumen:

Las reglas se aplican en forma de "todo o nada", o se aplican o

no se aplican en toda su extensión. Por otro lado, los principios

tienen una aplicación a una variable, que está condicionada por

la importancia que se le asignan en este caso. A partir de la dis-

tinción estructural entre reglas y principios se permite ver la im-

portancia de examinar el apoyo fáctico de las normas de derechos

fundamentales. La configuración del apoyo fáctico de las normas

sobre los derechos fundamentales tiene una influencia directa en

su formulario de solicitud, la posibilidad de restringir los derechos

fundamentales y la posibilidad de colisiones entre esos derechos

fundamentales. La adopción de un modelo que asimile un suporte

fáctico amplio de las normas de los derechos fundamentales de

libertad requiere del Estado un mayor esfuerzo argumentativo

para la restricción de los derechos fundamentales.

Palavras-chaves:

Teoria, direitos fundamentais, suporte fático.

Keywords:

Theory, fundamental rights, factual support.

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Palabras clave:

Teoría, derechos fundamentales, apoyo fáctico.

introduÇÃo

no Direito, a partir da segunda metade do século XX,percebe-se uma forte aproximação entre ética e direito, do queresultou a relação direta entre valores, princípios e regras, assimcomo a edificação da teoria dos direitos fundamentais sobre aideia de dignidade da pessoa humana. nesse contexto de supre-macia dos direitos fundamentais, os olhos se voltam para os de-veres fundamentais do Estado de respeitar, proteger e promoveros direitos de liberdade ou as liberdades públicas (direitos de pri-meira dimensão ou geração) e também os direitos sociais, eco-nômicos e culturais (direitos de segunda dimensão ou geração).

A participação do Estado, seja através do dever de res-peitar – fundamentalmente ligado a obrigações negativas (um nãofazer) –, seja através dos deveres de proteger e de promover, es-sencialmente relacionados com obrigações positivas (um fazer)–, tem como foco alcançar uma transformação social e permitir aemancipação de parcela da sociedade. num ou noutro ambiente,o discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fun-damentais e do reencontro com a Ética deve ter repercussãosobre o ofício dos advogados, públicos ou privados, juízes, pro-motores de justiça, vale dizer, dos operadores do Direito em geral,assim como sobre a atuação do Poder Público e sobre a vida daspessoas (BArrOSO; BArCELOS, 2003, p. 337).

O objetivo deste breve ensaio é, através da análise daestrutura das normas de direitos fundamentais, designadamentedaquelas que definem direitos de liberdade (liberdades públicas),

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contribuir para a compreensão da dinâmica entre o reconhecimentode tais direitos e a sua eficácia ou efetividade. num exercício dedelimitação negativa do objeto desta exposição, deve-se advertirque o enfoque que pretendo adotar será o jurídico-dogmático. Porisso, não serão objeto deste trabalho a análise dos fundamentos fi-losóficos ou políticos que sustentaram o reconhecimento das nor-mas de direitos fundamentais como princípios e do papel que ovalor da dignidade da pessoa humana possui nessa nova realidade.

o modeLo dos direitos fundAmentAis enQuAnto princípios

não se pretende, aqui, realizar uma distinção detalhadaentre regra e princípio. Assume-se como certa uma diferenciaçãoqualitativa, que leva em conta a forma de aplicação de cada umadessas espécies normativas – sendo certo que tal distinção de-corre da estrutura normativa que cada qual ostenta.

Assim, as regras garantem direitos ou impõem deveresdefinitivos, passo que os princípios garantem direitos ou impõemdeveres prima facie, ou seja, situações protegidas nos limites daexistência de uma outra norma de mesmo grau hierárquico emsentido contrário. Essa distinção leva em conta a forma atravésda qual a norma é aplicável.

Disso decorre que, a partir da simples verificação dospressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legislador naregra, esta automaticamente deverá produzir os seus efeitos,pois expressam mandamentos de definição. A norma que deter-mina a cobrança de iPVA sobre a propriedade de veículo auto-motor aéreo, aquático ou terrestre, quaisquer que sejam as suasespécies, por exemplo, é uma regra.

Por isso se diz que as regras são aplicadas na forma do

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“tudo ou nada” (DWOrKin, 2002), ou se aplicam ou não se apli-cam na sua completa extensão. Por isso se fala do conflito entreduas regras, ou seja, se duas regras prevêem consequências di-ferentes para o mesmo ato ou fato, uma delas deve necessaria-mente ser afastada do ordenamento (seja pelo critériohierárquico, cronológico ou da especialidade).

Enquanto a dimensão fundamental das regras é a da va-lidade, a dos princípios, segundo ronald Dworkin, é a do peso.isto é, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, queé condicionada pela importância que se lhe é atribuída no casoconcreto. Com base nessa distinção, robert Alexy (2000), na suateoria dos princípios, afirma que os princípios são mandamentosde otimização, ou seja, normas que exigem que algo (a sua con-sequência jurídica) seja realizado na maior medida possíveldiante das possibilidades fáticas e jurídicas. Daí que a verificaçãodos pressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legisladorem determinado princípio implica que os efeitos nele estabeleci-dos sejam implementados na maior extensão possível, segundoas condições do caso concreto.

isso porque, ainda segundo Alexy, ao contrário do queocorre no conflito entre regras, o caso de colisão entre princípiosdeve ser solucionado através da fixação de relações condiciona-das de preferência entre eles, técnica denominada de sopesa-mento, ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito.

Por exemplo, para se saber se a cobrança de estaciona-mento em centros comerciais é constitucional – desconsideradaaqui a questão atinente à competência legislativa – é possívelvislumbrar uma colisão entre a norma-princípio que define a livreiniciativa e o direito de propriedade e a norma-princípio que de-fine a liberdade de locomoção e o interesse estatal no planeja-mento urbano e na organização do trânsito. no caso delimitações estabelecidas pela municipalidade ao direito de cons-truir, pode-se identificar uma colisão entre a norma-princípio do

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direito fundamental de propriedade e da livre iniciativa e o inte-resse coletivo em se promover o adequado ordenamento territo-rial e do controle de impactos de vizinhança e de trânsito.

nesses dois casos, deixando-se de lado normas sobrecompetência legislativa, tem-se que a validade ou a invalidade daintervenção estatal decorrerá de um juízo ponderativo realizado apartir de condições de preferência, ou seja, condições a favor deum ou de outro interesse em dado caso concreto. Aqui não se pre-tende analisar a norma da proporcionalidade como método para asolução de colisões entre princípios, o que se almeja é tão so-mente sinalizar para a distinção que há entre regras e princípios.

É com foco nessa distinção que a teoria dos direitos fun-damentais, à moda alexyana, considera que os direitos funda-mentais têm, em sua maioria, estrutura de princípios, pois exigemque algo seja realizado na maior medida possível, segundo ascondições fáticas e jurídicas do caso concreto.

A partir dessa premissa, ou seja, da distinção estruturalentre regras e princípios, se visualiza a importância de se exa-minar o suporte fático das normas de direitos fundamentais.

o suporte fático dos direitos fundAmentAis

noções introdutórias

A configuração ou a extensão do suporte fático das nor-mas sobre direitos fundamentais influencia diretamente na suaforma de aplicação – subsunção, sopesamento, concretização,etc.; nas exigências de fundamentação nos casos de restrições adireitos fundamentais; na própria possibilidade de restrição a di-reitos fundamentais e na possibilidade de haver colisões entre tais

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direitos fundamentais. A verificação desses fatores, que às vezesé tida como pacífica em muitos trabalhos e decisões judiciais, de-pende sempre de uma precisa determinação do conceito de su-porte fático. A adoção de um modelo geralmente é feita de formaimperceptível ou mesmo involuntariamente, mas produz conse-quências do ponto de vista metodológico e prático relevantíssimas.

Aqui o suporte fático será, numa concepção restritiva,adotado apenas para simplificar o discurso, considerado comosinônimo de âmbito de proteção1. A definição do âmbito de pro-teção de um direito fundamental responde à seguinte indagação:quais atos, fatos, estados ou posições jurídicas são protegidospela norma que garante o referido direito? (SiLVA, 2010, p. 72)

É através do exame do suporte fático do direito de liber-dade de manifestação artística, por exemplo, que podemos saberse tal direito protege a conduta do artista que deseja pintar um murocolocando um cavalete no meio de uma esquina movimentada, res-tringindo, com isso, o trânsito de pedestres ou mesmo de veículos.

É por meio do exame do suporte fático do direito de pro-priedade e da livre iniciativa que se pode perquirir se a vedaçãoda cobrança de estacionamento em centros comerciais privadosou a imposição de limitações de altura ao direito de construir edi-fícios em determinadas áreas da cidade seriam inconstitucionais.

É a partir da extensão que se queira dar à liberdade deexpressão que se pode concluir pela validade ou invalidade doato estatal que impede a publicação de um livro contendo ideiasantissemitas.

É ainda segundo o entendimento que se adote acercado suporte fático da liberdade religiosa que se pode avaliar aconstitucionalidade de uma lei que proíbe discursos ou prega-ções supostamente homofóbicas.

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1 não se ignora, contudo, que o âmbito de proteção, entendido como aquilo que se pre-tende proteger com determinada norma jurídica, é um dos elementos do suporte fático,ao lado da intervenção. Para mais desenvolvimentos, cf. Silva (2010, p. 68 e ss.).

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Os exemplos fornecidos dizem respeito às liberdades pú-blicas, que têm como função primordial proteger algo contra inter-venções indevidas. nesse caso, a consequência jurídica da normagarantidora, que é a cessação da intervenção no âmbito de prote-ção do direito fundamental, somente é produzida se houver um atointerventivo ilegítimo no âmbito de proteção da mesma norma2.

não se esquecer de que aqui essa construção refere-seàs liberdades públicas como direitos de defesa, ou seja, em re-ferência à dimensão negativa dos direitos fundamentais, valedizer, a dignidade da pessoa humana como limite às intervençõespositivas do Estado. Fica de fora, nessa breve exposição, o es-tudo da dignidade da pessoa humana como tarefa, ou seja, nasua dimensão positiva, isto é, como o direito a prestações mate-riais ou jurídicas em favor das pessoas (SArLET, 2007, p. 378).

Essa percepção exige a definição do que é esse algo,qual a sua extensão e quais os tipos de possíveis intervenções.Assim, como definir o suporte fático de normas que garantem aliberdade de expressão ou o direito à privacidade? Tanto aquiloque é protegido (a livre expressão do pensamento ou o direito àintimidade), como aquilo contra o quê se protege (uma interven-ção, estatal ou privada) fazem parte do suporte fático dos direitosfundamentais (SiLVA, 2010, p. 71).

Do ponto de vista prático, a inclusão ou a exclusão dedeterminada conduta do âmbito de proteção de dada norma dedireitos fundamentais influencia o método de interpretação e

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2 Virgílio Afonso da Silva esclarece que o suporte fático de um direito fundamental deveconjugar todos os elementos que, quando preenchidos, dão ensejo à realização daconsequência jurídica da norma que garante esse direito, seja ela uma norma de di-reito fundamental de liberdade seja ela uma norma de direito fundamental social. Con-soante o pensamento do mesmo autor, com relação às normas de direitos sociais, nasua dimensão positiva, tanto o conceito de âmbito de proteção como o de intervençãodevem ser alterados. O âmbito de proteção então passa a ser composto pelas açõesestatais que fomentem a realização desse direito (direito à saúde, por exemplo). A in-tervenção, por seu turno, deve ser entendida como uma ação estatal promotora, ouseja, um agir. Já o que deve ser fundamentado é uma omissão ou uma ação insufi-ciente, e não mais uma ação dita como restritiva (cf. SiLVA, 2010, p. 72 e ss.).

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aplicação do direito e depende do modelo de suporte fático ado-tado. Essa opção reflete, de maneira especial, na fundamentaçãodo ato de intervenção estatal e, em consequência, no ônus ar-gumentativo do autor deste ato.

Para saber se tais condutas são protegidas pela referi-das normas sobre direitos fundamentais pode-se adotar um dedois modelos básicos: i) ou se inclui no âmbito de proteção todaação, fato, estado ou posição jurídica que tenha qualquer carac-terística que, isoladamente considerada, faça parte do “âmbitotemático” ou do “âmbito da vida” de um dado direito fundamental(modelo do suporte fático amplo); ii) ou, ao invés disso, se realizapreviamente uma espécie de triagem capaz de excluir algumascondutas que se acredita não serem protegidas pelo direito (mo-delo do suporte fático restrito) (SiLVA, 2010, p. 78).

A adoção de um ou de outro modelo repercute direta-mente no método de interpretação e aplicação do direito utilizadopara se saber se dada intervenção estatal deverá ser conside-rada uma mera restrição – fundamentada constitucionalmente –ou uma violação. A depender do modelo adotado, não é possívelsequer assimilar a ideia de restrição, de modo que qualquer in-tervenção, nesse caso, deverá ser tida como mera delimitaçãodo direito fundamental em causa.

Para se compreender o que acaba de ser afirmado, épreciso examinar os dois modelos de suporte fático das normasde direitos fundamentais: o restrito e o amplo.

Suporte fático restrito

Através desse modelo se excluem, a priori, determinadascondutas do âmbito de proteção dos direitos fundamentais. na ju-risprudência do STF aparece, com frequência, ainda que sem re-ferência expressa a uma teoria sobre o suporte fático dos direitos

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fundamentais, argumentos que se baseiam em uma exclusão ini-cial de alguma ação, estado ou posição jurídica do âmbito de pro-teção de certos direitos.

Assim, é possível citar o caso em que o min. Celso deMello afirmou que a “cláusula tutelar da inviolabilidade do sigiloepistolar” não pode proteger a prática de atos ilícitos, como osdelitos contra a honra3. O min. Moreira Alves declarou que práti-cas de discriminação contra judeus ou outros grupos étnicos oureligiosos não estão incluídas no âmbito de proteção do direito àliberdade de expressão4. Ou seja, para ele, o direito à livre ex-pressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestaçõesde conteúdo imoral que impliquem ilicitude penal.

Adepto do modelo de suporte fático restrito, José CarlosVieira de Andrade (2004, p. 294) traz, ainda, os seguintes exem-plos: i) a liberdade religiosa não protege a conduta de efetuar sa-crifícios humanos ou de furtar o material necessário à execuçãode uma obra de arte.

nos três exemplos mencionados anteriormente parte-sede uma concepção restrita do suporte fático dos direitos funda-mentais, do que resultou o argumento de que não há que se falarem restrição a direitos, nem em sopesamento de princípios, masapenas em delimitação do âmbito de proteção da norma.

O problema é revelar os critérios utilizados para se fixaros limites de cada direito fundamental, ou seja, onde começa o di-reito de um e onde termina o direito do outro. A partir desse modeloficam, desde logo, excluídas algumas condutas do âmbito de pro-teção dos direitos de liberdade. Em outras palavras, o modelo desuporte fático restrito, que comprime o âmbito de proteção de dadodireito fundamental, tem o expresso objetivo de evitar colisõesentre direitos fundamentais e, com isso, excluir o sopesamentocomo forma de interpretar e aplicar o direito (SiLVA, 2010, p. 89).

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3 hC 70814 / SP, Primeira Turma, relator: Min. Celso de Mello, DJ 24-06-1994.4 hC 82.424 / rS, Plenário, relator: Min. Moreira Alves, DJ 19-03-2004.

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Por isso que aceitar os pressupostos teóricos da teoriados princípios nos moldes desenvolvidos por Alexy implica, ne-cessariamente, a rejeição das teorias restritas sobre o suportefático, pois neste modelo os limites (e não as restrições) seriaminternos ao próprio direito, e não externos. Admitir o método daponderação como meio de solucionar colisões entre direitos pres-supõe a adoção da ideia de que as normas com estrutura de prin-cípios são mandamentos de otimização e, por isso, sujeitas arestrições externas.

Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 96) tece profundas crí-ticas ao modelo de suporte fático restrito. O autor denuncia, emprimeiro lugar, o conservadorismo fomentado por tal modelo, namedida em que um enfoque originalista ou histórico-genético fazcom que a proteção dos direitos fundamentais fique represadaao contexto em que ocorreu a promulgação da Constituição, im-pedindo a atualização do âmbito de proteção dos direitos funda-mentais a uma realidade cambiante.

Além disso, meio que por intuição, o modelo de suportefático restrito produz uma exclusão a priori e em abstrato de cer-tas condutas, que não ficariam protegidas pelo direito. A condutade se mostrar as nádegas em público é um bom exemplo. Emabstrato tal conduta poderia ser considerada ilícita, mas, deacordo com as circunstâncias fáticas verificadas no caso do di-retor de teatro Gerald Thomas, o STF a considerou protegidapela liberdade de expressão, motivo por que não vislumbrou aocorrência de ilícito penal.

Outra crítica que se faz à teoria do suporte fático restritodiz respeito à fragilidade na distinção entre regulação (interven-ção no meio) e restrição (intervenção no conteúdo), em se tra-tando, por exemplo, da liberdade de reunião. Assim, não seriapossível afirmar, sem grandes ressalvas, que intervenções naforma de exercício deste direito fundamental não possam implicarrelevantes restrições ao seu conteúdo, o que poderia ocorrer

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caso a Administração resolvesse pura e simplesmente proibir reu-niões e debates públicos no centro da cidade e durante o dia. Tal“regulamentação” poderia ser vista como uma “restrição”, muitoembora versasse tão somente acerca do local e do horário.

Suporte fático amplo

A grande diferença entre o modelo de suporte fático res-trito e o de suporte fático amplo é que o primeiro parte da defini-ção daquilo que é definitivamente protegido, excluindo-se outrascondutas que, por outro lado, são definitivamente desprotegidas;ao passo que o segundo modelo define apenas aprioristicamenteo que é protegido prima facie e, feito o sopesamento, poderá serprotegido definitivamente. O primeiro pergunta: o que é protegidodefinitivamente por esse direito? O segundo pergunta: o que éprotegido prima facie por esse direito? nesse caso não se con-fundem a restrição permitida e a violação. Esta, por não ter pas-sado no teste da ponderação entre os bens ou interesses emcausa, deve ser afastada pelo aplicador do direito.

Os defensores do modelo de suporte fático amplo dizemque as exigências que ele impõe à argumentação implicam um maiorgrau de proteção aos direitos fundamentais (SiLVA, 2010, p. 111). issoporque se amplia o âmbito de proteção e, com isso, transforma emrestrição (externa) o que antes era uma mera delimitação (interna).

no julgamento da ADi n. 2.566, o STF apreciou a cons-titucionalidade de lei que vedava o proselitismo de qualquer na-tureza na programação das emissoras de radiodifusãocomunitária5. Segundo os pressupostos do modelo de suportefático amplo, se chega à conclusão de que a liberdade de ex-pressão protege a conduta de fazer proselitismo. Com o mesmoraciocínio, a liberdade de expressão protege, prima facie,

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5 ADi 2566 MC/DF, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 27-02-2004.

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inclusive, a manifestação de pensamentos caluniosos.A adoção de um modelo de suporte fático amplo não in-

viabiliza as restrições aos direitos fundamentais, mas apenasimpõe um maior ônus argumentativo para as intervenções esta-tais. Dessa forma, o que se tem é um reforço dos direitos de li-berdade através da realização de uma garantia mais eficaz.Assim, a relação entre os direitos e seus limites ou restrições ficasubordinada à regra da proporcionalidade, tema que refoge aoslimites impostos a esta apresentação. Cumpre assentar apenasque a norma da proporcionalidade constitui um método de inter-pretação e aplicação do direito compatível e coerente com a te-oria dos direitos fundamentais enquanto princípios.

Em suma, um modelo que se baseia na redução a priori

do âmbito de proteção de direitos fundamentais tende a significartambém uma garantia menos eficaz desses direitos na atividadelegislativa e na atividade juridicional, pois exclui da exigência defundamentação uma série de atos que inegavelmente restringemdireitos, ainda que de forma legítima.

repercussÕes práticAs e metodoLÓGicAs dA AdoÇÃode um modeLo de suporte fático AmpLo

A principal repercussão metodológica produzida pelaadoção de um modelo de suporte fático amplo das normas de di-reitos fundamentais de liberdade é a adoção da ponderaçãocomo forma de solução das colisões entre direitos fundamentaisou entre um dado direito fundamental e outro interesse qualquerigualmente protegido por normas constitucionais.

isso porque, partindo do pressuposto de que o direitofundamental tem estrutura de princípio, admite-se que ele deve

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proteger um rol extensivo de condutas. na solução da colisão,então, o aplicador deverá decidir se o grau de restrição a umdado direito fundamental de liberdade (direito de propriedade eà livre iniciativa no caso da vedação de cobrança pelo estacio-namento ou no caso de limitações ao direito de construir) é jus-tificado pelo grau de satisfação de outro direito ou interesse(direito de locomoção dos demais indivíduos, planejamento ur-bano, segurança no trânsito, etc.).

Por isso, considera-se a adoção do modelo de suportefático amplo mais coerente com a teoria dos direitos fundamen-tais como princípios que, dada a sua morfologia, devem ser rea-lizados na maior medida possível, de acordo com as condiçõesfáticas e jurídicas no caso concreto.

Ao contrário das teorias que se baseiam em um suportefático restrito para os direitos fundamentais, um modelo baseadono suporte fático amplo não se preocupa com o que deve ou nãoser incluído no âmbito de proteção de uma dada norma de direi-tos fundamentais e com a extensão do conceito de intervençãoestatal, mas com a argumentação possível no âmbito da funda-mentação constitucional das intervenções (SiLVA, 2010, p. 94).nesse caso, o que ocorre é um deslocamento do foco da argu-mentação: em vez de se focar no momento da definição daquiloque é protegido e daquilo que caracteriza uma intervenção esta-tal, há uma concentração da argumentação no momento da fun-damentação da intervenção.

concLusÃo

A adoção de um modelo que assimile um suporte fáticoamplo das normas de direitos fundamentais de liberdade exige

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do Estado um maior esforço argumentativo para a restrição de di-reitos fundamentais, seja qual for o âmbito de atuação, se jurisdi-cional, administrativo ou legislativo. Daí se falar, na linha do quedefende o professor Juarez Freitas, no direito a uma boa admi-nistração através do reforço da motivação dos atos estatais, no-meadamente as intervenções tidas como restritivas.

A adoção de um modelo de suporte fático amplo, que semostra coerente com a utilização da ponderação como método deinterpretação e aplicação do direito, a um só tempo impõe ummaior ônus argumentativo nas atividades interventivas do Estadoe, por consequência, permite uma maior controlabidade da ativi-dade estatal. Ao fim e ao cabo, o que se pretende é fazer com queas restrições aos direitos fundamentais sejam devida e suficiente-mente fundamentadas, sendo certo que a melhor prova da ausên-cia de motivação válida de uma intervenção estatal é que ela sirvaa qualquer decisão, o que vale por dizer que não serve a nenhuma.

referÊnciAs

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Carlos Vinícius Alves Ribeiro*

The fundamenTal righT To aesTheTic harmony:

sTaTe's obligaTion and righT of The ciTizen1

O DIREItO fUnDAMEntAl à hARMOnIA EStétICA: OBRIGAçãO DO

EStADO E DIREItO DO CIDADãO

El DEREChO fUnDAMEntAl A lA ARMOníA EStétICA:

OBlIGACIón DEl EStADO y DEREChO DEl CIUDADAnO

Abstract:

Life is a leading Human Rights guaranteed by several legal instru-

ments, among them the Federal Constitution of Brazil, the Univer-

sal Declaration of Human Rights and International Covenant on

Economic, Social and Cultural Rights. However, to ensure a digni-

fied life with quality, the State must guarantee other rights that sup-

port this dignified life with quality, as is the case of the fundamental

right of aesthetic harmony, which if not fulfilled, can cause serious

damage to the citizens’ quality of life, and these damages ranging

from the physical to the mental sphere. Thus, arise, concomitantly,

a right and a duty: the right to aesthetic harmony for the citizen and

the duty to the State to give him/her the fulfillment of this right.

Resumo:

A vida é um dos principais direitos do homem assegurado por vários

instrumentos legais, dentre eles a Constituição Federal do Brasil, a

* Mestre e doutorando em Direito do Estado pela USP. Diretor Institucional doIDAG, membro do Centro de Estudos de Direito Administrativo, Ambiental e Ur-banístico da USP, membro fundador do Instituto Brasil-Argentina de Direito Ad-ministrativo. Promotor de justiça do Estado de Goiás.1 Artigo oriundo de palestra proferida no Congresso da International Confede-ration for Plastic, Reconstructive and Aesthetic Surgery (IPRAS), em outubrode 2010, na cidade de Beijing (China).

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Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Pacto Interna-

cional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. No entanto,

para assegurar uma vida digna e de qualidade, o Estado precisa

garantir outros direitos que subsidiam essa mesma vida digna e

de qualidade, como é o caso do direito fundamental à harmonia

estética, que se não cumprido, pode causar danos de grave monta

à qualidade de vida do cidadão, danos esses que vão desde a es-

fera física à mental. Dessa forma, surge, concomitantemente, um

direito e um dever: o direito à harmonia estética para o cidadão e

o dever de o Estado proporcionar-lhe o cumprimento de tal direito.

Resumen:

La vida es uno de los principales derechos humanos garantizados

por diversos instrumentos jurídicos, entre ellos la Constitución Fede-

ral de Brasil, la Declaración Universal de los Derechos Humanos y

el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Cultura-

les. Sin embargo, para garantizar una vida digna y de calidad, el Es-

tado debe garantizar otros derechos que apoyan esta misma vida

digna y de calidad, como es el caso del derecho fundamental a la ar-

monía estética, que, si no cumplido, puede causar graves daños a

la calidad de vida de los ciudadanos, daños estos que van desde la

física a la esfera mental. Por lo tanto, existe, al mismo tiempo, un de-

recho y un deber: el derecho a la armonía estética para el ciudadano

y el deber del Estado de darle el cumplimiento a este derecho.

Keywords:

Life, fundamental right, aesthetic.

Palavras-chaves:

Vida, direito fundamental, estética.

Palabras clave:

Vida, derecho fundamental,estética.

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life and health are concepts doomed to eternal marriage.One can not exist without the other. One is not possible withoutthe other.

It is not possible to admit a full life if citizens don't knowthe meaning of health.

therefore, health is not the only vehicle of life, but a rightwithout life becomes, if not impossible, life feeble, half-life.

It is not for another reason that the United nations in1948, in the Universal Declaration of the Rights of Men, in whichthe overwhelming majority of democratic countries are signato-ries, stated in its article 3 that every person has the right of life.

And to have life, life that guarantees to the citizens the de-velopment of all their potentials, again the United nations, now onthe International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights(ICERSCR) of 1966, set in the article 12 that the States parties ofthat covenant recognize the right of everyone to the enjoyment ofthe highest attainable standard of physical and mental health.

But what is health?According to the World health Organization, it's the state

of perfect physical, mental and social well-being. If health is a right of citizens and a State's duty, precisely

because it is the vehicle enabler of life, and therefore, other rightsof men, a fundamental question is how the aesthetic disharmonyimpacts on citizen's health.

In other terms, when the citizen becomes entitled to seehis/her aesthetic treatment funded by the State?

the answer can not be objective nor abstractly given. One who pleads the state aesthetic repair should un-

dergo medical evaluations, including the psychiatric and psycho-logical, in order to assess the extent to which the aestheticdisharmony disturbs his/her health, and finally, his/her life.

Obviously the State must not pay, using public funds, for

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the ones who are looking for aesthetic perfection. On the other hand, it is not only a State duty – because

it is a right in several countries including Brazil – but more thanthat, it is prudent that States should bear the cost of repairingtreatments when disharmony reflects so greatly in citizens livestill the point of compromising health, especially mental.

this State's duty of bear repairer aesthetic treatments, isa caution, even financial.

that's why aesthetic harmony – post-trauma, whethercongenital – may trigger mental illnesses that routinely put awaycitizens from social life and even activities.

In countries, such as occurs in Brazil, signatories of variousUnion nation international conventions on social and health, andtherefore responsible for finance, where a citizen can not do itunder his/her own power, not just medical care – including all ofthe psychics – but even bear expesnses for citizens to live with dig-nity when they do not have work or are unable to work, it appearsadvisable to discuss the possibility that the State bears all sorts oftreatment for citizens to remain useful and active in the broad senseof the word.

therefore, allowing the citizen-suffer with aesthetic dishar-mony, State not paying for repair treatments, can result not onlyin mental diseases and the unquestionably obligation of the statefund for that, but in inability to work, that the country will suffer notonly with the lack of the manpower, but, perhaps worse, spendinga long period with welfare benefits and care that this citizen isforced to leave his/her daily routine, included his work.

to have an idea, in Brazil, according to a recent surveyof the UnIfESP (federal University of Sao Paulo), psychologicaltroubles are responsible for 5 to 10 leaves of the functions ofworking citizens.

Psychological disorders are the third main cause of ab-senteeism of work.

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this represents, nowadays in Brazil, a welfare spendingof 2.2 billion reais a year. In dollars, this represents 1.27 billion.

It is noteworthy that I am only reporting the expense thatthe state will spend for citizens while impaired by reason of theirmental work activities; here are not measuring the costs of medicaltreatments, which also, as I said, the obligation of the State.

Although it is not possible to say - we have no specificresearch in this area in Brazil - how many of these psychologicaltroubles were triggered by aesthetic disharmony, we can con-clude, with no fear, that any measure the state takes to preventthe citizen from suffering of mental disorder is better than thehuge financial spending.

Moreover, it is particularly preferable in a human point ofview, as if the aesthetic disharmony caused profound damageson the citizen as vanishing him/her from everyday life, we willhave unhappy citizens. And, ultimately, what is the primary func-tion of the state but enable us to be happy?

Returning, in Brazil we have several cases where thestate recognizes the citizen’s right to be aesthetically assisted bydoctors.

these cases are made possible through the Unifiedhealth System, which includes public and private networks con-vening.

for instance, we can talk about the lip repair, post-mas-tectomy breast reconstruction, burn survivor sequel reconstruc-tion, post-trauma reconstruction, cleft palate repair, post-bariatricsurgery abdominoplasty, etc.

In many cases, of course, the State does not recognizethe need of reconstructive surgery, denying the citizens claims onthe grounds that are simply cosmetic treatments.

In these cases, it is common that the issue emptying intothe court, whether by private lawyers or by acting prosecutors of-fice, which in Brazil there is, in addition to criminal responsibilities,

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the function of protecting individual rights and interests most im-portant among them, obviously the right of health and life.

the judiciary, almost unanimously, concluding the needof treatment asked by the citizen, determines that the State pro-motes treatment through the public network or pay the cost oftreatment in private, in a movement called by critics of "judicialactivism".

In Brazil, however, the activity of the justice system isbeing fundamental for the recognition and realization of the fun-damental right to health.

If one conclusion is possible in this brief, it is, on onehand, that aesthetic disharmony creates for citizens the right andon the other hand, for the State the duty to afford treatments.

If the extent, that the lack of harmony, impacts on the citizens'lives to the point of compromising their health.

to conclude, the aesthetic harmony is a citizen's right

and a duty for the states when disharmony provokes detrimentto citizen's health.

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