[revista ciclos] o espaço da moda

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2. Processos Artísticos. O espaço da moda: primeira casa ou segunda pele? Resumo. A moda tem assumido a responsabilidade de se tornar um refúgio, um abrigo, uma proteção – funções antes atribuídas à arquitetura. Desta forma, este artigo visa abordar a produção de espaços a partir da moda e as relações entre corpo, roupa e edifício. Palavras-chave. Arquitetura, Abrigo, Moda, Vestuário. Fashion space: first shelter or second skin? Abstract. Fashion has taken the responsability of becoming a shelter, a mean of protection; functions previously assigned to architecture. Thus this article aims to address the production of spaces by fashion and the connections between body, clothing and building. Keywords. Architecture, Shelter, Fashion, Clothing. Tanto a moda quanto a arquitetura geram espaços que serão preenchidos pelo corpo humano, mas apesar do que o título possa sugerir este artigo não trata da produção de espaços pela arquitetura para a moda como: lojas, pavilhões e passarelas. Decidimos percorrer o caminho inverso: o da produção de espaços através da moda e as relações entre corpo, roupa e meio urbano. Peter Stallybras, em seu livro “O casaco de Marx”, reconhece a relação de proximidade estabelecida entre a roupa e o corpo; relação esta que não está presente de forma tão intensa na arquitetura. Para o autor “a mágica da roupa está no fato de

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A moda tem assumido a responsabilidade de se tornar um refúgio, um abrigo, uma proteção – funções antes atribuídas à arquitetura. Desta forma, este artigo visa abordar a produção de espaços a partir da moda e as relações entre corpo, roupa e edifício. Pricipal autor João Araújo

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Informar a linha para a qual o trabalho est sendo submetido:

2. Processos Artsticos.

O espao da moda: primeira casa ou segunda pele?Resumo. A moda tem assumido a responsabilidade de se tornar um refgio, um abrigo, uma proteo funes antes atribudas arquitetura. Desta forma, este artigo visa abordar a produo de espaos a partir da moda e as relaes entre corpo, roupa e edifcio. Palavras-chave. Arquitetura, Abrigo, Moda, Vesturio.Fashion space: first shelter or second skin?Abstract. Fashion has taken the responsability of becoming a shelter, a mean of protection; functions previously assigned to architecture. Thus this article aims to address the production of spaces by fashion and the connections between body, clothing and building.Keywords. Architecture, Shelter, Fashion, Clothing.

Tanto a moda quanto a arquitetura geram espaos que sero preenchidos pelo corpo humano, mas apesar do que o ttulo possa sugerir este artigo no trata da produo de espaos pela arquitetura para a moda como: lojas, pavilhes e passarelas. Decidimos percorrer o caminho inverso: o da produo de espaos atravs da moda e as relaes entre corpo, roupa e meio urbano. Peter Stallybras, em seu livro O casaco de Marx, reconhece a relao de proximidade estabelecida entre a roupa e o corpo; relao esta que no est presente de forma to intensa na arquitetura. Para o autor a mgica da roupa est no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe at mesmo nossa forma (STALLYBRASS, 2008, p.10), ele estabelece uma relao entre a roupa e a memria, por representarem a pele mais prxima que restou dos entes queridos mortos, as roupas [so] pontos sobre os quais [ns] nos apoiamos para nos distanciar de um presente insuportvel (STALLYBRASS, 2008, p.33). Essa relao qual o autor se refere est presente no filme Cerejeiras em Flor (2008) da cineasta alem Doris Drrie. No longa-metragem, as roupas funcionam como uma conexo entre Rudi e a sua esposa morta. Aps a perda de sua companheira ele viaja para o Japo levando consigo algumas peas do guarda-roupa de Trudi, sua esposa, e vestindo-as ele se sentia novamente em contato com ela.As relaes entre o espao criado pelas roupas e o corpo reconhecida por vrios autores, segundo Mrio Gioia (2005, apud SOUZA, 2006, p.64) a moda e a arquitetura vivem do espao que funciona como o negativo do volume. E so esses espaos gerados por ambas que sero preenchidos pelo corpo humano ou mesmo incorporados por ele, como sugerem Cristian Mossi e Marilda Oliveira (2009). A partir dessas interpretaes podemos enxergar o corpo como estrutura da roupa, como encontrado em Caroline Santos e Joyce Santos (2010) ou em Patrcia Souza (2006), para esta ltima o corpo habita e ocupa o interior das vestimentas sendo assim o seu suporte. Se estabelecermos que o corpo possa habitar o espao compreendido pelo tecido, este espao criado pelas roupas extrapola seus limites, transformando-se num territrio, como visto em Kathia Castilho e Marcelo Martins (2005, p.31, apud SANTOS; SANTOS, 2010, p.210) e Patrcia Souza (2006).A ideia de corpo/suporte pode nos levar a uma concluso precipitada. No podemos tratar o corpo como sendo um suporte inerte e passivo, como uma espcie de cabide humano para as roupas. Ele mais. Trata-se de um suporte ativo e repleto de significao. Se a vestimenta modifica o corpo (RONCOLETTA, 2004), o corpo tambm modifica a vestimenta, atravs do seu cheiro, forma, movimento e etc.

Figura 1- Do-Ho Suh, Seoul Home, 1999. Foto: Site oficial do artista.

Para o artista coreano Do-Ho Suh [...] quando voc expande a ideia do vesturio como espao, ele se torna uma estrutura habitvel, um edifcio, uma casa feita de tecido (QUINN, 2003, p.143, traduo nossa).

Trabalhando neste sentido est o artista coreano Do-Ho Suh. Em seus trabalhos ele reproduz, utilizando tecidos, casas e apartamentos onde viveu. Aproximando assim a arquitetura da produo de vesturios.Alm da relao mais interna entre o espao criado pelas roupas e o corpo existe a relao entre a roupa e o meio. Segundo a professora da Universidade de Buenos Aires Andrea Saltzman:

No exterior, tem-se a superfcie do tecido e caractersticas como cor, brilho, transparncia, texturas de relevo e estampas, aspectos visuais por meio dos quais se processa a comunicao do indivduo com o seu entorno. No interior, configura-se uma espacialidade, um habitat, cujo volume em torno do corpo seja de distanciamento e de proximidade, deve ser concebido conforme as necessidades do usurio e as caractersticas do material peso, elasticidade, maleabilidade, aderncia, texturas diversas, entre outras que em contato com a pele, provoca sensaes tteis (SALTZMAN, 2007, apud SANTOS; SANTOS, 2010, p.209).

Esse contato entre o tecido e o corpo configura silhuetas que determinadas pela estrutura anatmica e mobilidade corporal definem linhas e volumes, e mantem com o corpo/suporte uma relao de proximidade, de distanciamento ou ainda se projetando alm dos seus limites como visto em Caroline Santos e Joyce Santos (2010) e Patrcia Souza (2006).Andrea Saltzman em seu livro El Cuerpo Diseado faz duas pontuaes importantes sobre a vestimenta: a primeira coloca-la como uma segunda pele ou primeira casa e a seguinte caracterizando-a como significante da pessoa que a veste no espao pblico.

O corpo o interior da vestimenta, seu contedo e suporte. A vestimenta, que o cobre como uma segunda pele ou primeira casa, se transforma em seu primeiro espao de conteno e tambm de significao no mbito pblico (SALTZMAN, 2004, p.40, apud, CRILLANOVICK, 2007, p.1).

Enquanto a posio de Martha Boga, Ricardo Oliveiros e Yopanan Rebello est mais prxima da ideia das roupas como sendo uma primeira casa uma abrigo imediato mais prximo da pele humana do que qualquer outro elemento que a arquitetura possa conceber (BOGA; OLIVEIROS; REBELLO, 2005, p.76). O artista vienense Hundertwasser considera a roupa como sendo a segunda das cinco peles que o homem possui, sendo a primeira a epiderme, a terceira a sua casa, a quarta o meio social (da famlia e amigos) e a quinta o meio planetrio ou global (RESTANY, 2003). O pintor naturalista estabelece uma relao direta entre as trs primeiras peles quando diz que a casa que o homem talha segundo o seu gosto, a extenso do vesturio que cobre a sua pele biolgica (RESTANY, 2003, p.23). Assim como Andrea Saltzman, Hundertwasser v a segunda pele como elemento de significao no mbito pblico ou como um passaporte social, mas destaca trs problemas presentes nas roupas: a uniformidade, a simetria e a tirania da moda. A relao das roupas, corpo e meio, juntamente com o papel desta como segunda pele e/ou primeiro abrigo, ir influenciar o trabalho de designers, ou grupos, revelando quais sero as respostas oferecidas pela moda combinando mobilidade e liberdade com conceitos de espao e lugar.

Nmades Urbanos

Ao redor do mundo as cidades esto passando por transformaes, sendo remodeladas e reinventadas, refletindo as mudanas na sociedade. Para o filsofo francs Michel Serres (1994) nossas moradias, encontros e deslocamentos esto cada vez mais virtuais do que reais. Para Bradley Quinn (2003) os habitantes das cidades ocupam diversos habitats temporrios durante o dia por perodos maiores do que o que passam em casa, o nomadismo se tornou uma nova condio moderna. Entram em cena ento, arquitetos, urbanistas e designers que tentam fazer desta relao entre a cidade e seus habitantes a mais livre de atrito possvel. Neste contexto, a moda se une a arquitetura buscando solues para esse novo cidado: o nmade urbano, cidado cuja habitao representada pelo corpo coberto pelas suas roupas e assistido por equipamentos tecnolgicos.Michel Serres tambm fala desse novo habitante da cidade, e para descrev-lo utiliza a imagem de Hermes em contraponto com a de Hestia. Enquanto Hestia, a deusa grega dos laos familiares, representa na imagem feminina a moradia estvel; Hermes o seu oposto, visto como o errante, o viajante, mas que nunca consegue deixar o seu saco de couro, de penas, de quitina ou de escamas... envolvido nas suas pregas (SERRES, 1994, p.41). O filsofo interpreta a imagem do saco de Hermes como sendo uma membrana visto que segundo o prprio: sem membrana no h vida (SERRES, 1994, p.41). Expandindo a ideia do saco, como invlucro do corpo ou como membrana que permite a sua existncia, Michel Serres chega at Digenes, filsofo da Grcia antiga, que habitava as ruas de Atenas e teria feito de um grande barril a sua casa. O tonel de Digenes era o seu saco, sua membrana, aquilo que permitia sua existncia com dignidade.O que permitia a existncia com dignidade do personagem Chaves, da srie humorstica de tv mexicana, tambm era um barril. Para Chaves, seu invlucro representava o seu espao privado em meio vida pblica do ptio da Vila onde moravam as demais personagens: Dona Florinda, Seu Madruga e Dona Clotilde.A utilizao de membranas para sua proteo no nada nova para o homem. As tendas so certamente o tipo de moradia mais antigo, excetuando-se as cavernas. O homem h mais de 40000 anos, usava ossos e presas de mamute para sustentar peles de animais. Estas foram usadas ao longo da histria e tm sido utilizadas pelo mundo inteiro, particularmente em sociedades nmades que necessitam de coberturas portteis. Com o passar dos tempos as peles de animais passaram a ser substitudas por tecidos. Nos trabalhos de alguns designers e grupos encontramos alm da busca por novas formas e materiais, a redefinio dos limites entre roupa, abrigo, espao pblico e urbano atravs de estruturas que podemos vestir e que dialogam tanto com novos princpios da arquitetura e mudanas no meio urbano, como o aumento da mobilidade, da conectividade, da flexibilidade e velocidade quanto com a emergncia do nmade urbano.

Archigram

Archigram um grupo de arquitetos ingleses formado na dcada de 1960 que desde os primeiros projetos, enfatizava os conceitos de mobilidade e comunicao como fica claro pela origem do nome, uma unio entre architectural e telegram. Os conceitos do grupo tomaram forma nos projetos: Walking Cities, Instant Cities, Plug-in Cities e Computer Cities, todos eles so cones da arquitetura fluida, nas vises de uma sociedade mvel, onde a moradia funcionava tanto como um recipiente e um veculo. Reconhecendo que as roupas poderiam se adaptar s necessidades da urbanidade moderna mais rapidamente do que a arquitetura uma vez que a moda caracterizada pela constante mudana e renovao, enquanto na arquitetura a efetivao de novos paradigmas pode demorar. O grupo foi pioneiro na idealizao de estruturas que poderiam ser vestidas e na identificao de mudanas pelas quais a moda deveria passar para a chegada do que chamamos hoje de techno fashion.O grupo interpretava a arquitetura como sendo uma interface eletrnica que poderia se comunicar com as roupas, num sistema mtuo (QUINN, 2003, p.98, traduo nossa), o que ficava claro em Suitaloon e Cushicle, ambos idealizados para se adaptar e interagir com o entorno, forneciam ao usurio uma noo de refgio, abrigo e segurana. Tanto o Suitaloon quanto o Cushicle podem ser pensados como vesturios que diluem conceitos do interior e exterior.

Figura 2- Archigram, Suitaloon. Fonte: http://www.arquitecturasdeemergencia.blogspot.com/2010/10/suitaloon-archigram.html.

C P Company / Vexed Generation

C P Company, companhia italiana de design e produo de vesturio, se dedica a criao de roupas que so projetadas para assumir a forma de mobilirios ou tendas a depender das necessidades dos usurios. Dessa forma, permitem s roupas transcender sua funo inicial.

Assim como carros so uma extenso da nossa mobilidade e o telefone uma extenso da nossa voz, transformable fashion reflete a habilidade das roupas de prover abrigo, amplificando suas propriedades arquitetnicas (QUINN, 2003, p.105, traduo nossa).

Algumas das criaes da marca fornecem ao usurio um espao para dormir, podendo ser usados em situaes de atrasos de voos ou quando se deseja ter um mnimo de privacidade em reas pblicas. Para Quinn (2003), se possvel que o vesturio se transforme em mveis e tendas, lgico assumir que existe um potencial para que esses se transformem tambm em estruturas maiores, at mesmo habitaes, respondendo as necessidades de uma sociedade mvel, onde os deslocamentos se tornaram uma importante e grande parte do nosso cotidiano. J a Vexed Generation funciona como uma espcie de loja de roupas/galeria pblica, onde designers, artistas e msicos criam um ambiente nico para expor suas ideias e preocupaes atravs da produo e venda de roupas. A inspirao para as peas veio dos crescentes nveis de poluio atmosfrica da cidade de Londres e de pesquisas sobre a liberdade civil que levaram a descoberta de que 200 milhes de libras haviam sido gastas com cmeras de vigilncia para monitorar bairros perifricos da cidade.A Vexed Parka, por exemplo, uma jaqueta fruto de investigaes sobre mobilidade urbana, desenhada especialmente para o ciclista, favorecendo o uso da bicicleta. Oferece proteo contra a poluio do ar atravs de uma mscara respiratria incorporada ao capuz. Alm disso, o prprio capuz faz com que o usurio no seja identificado por sistemas de vigilncia.

Figura 3- Vexed Generation, Vexed Parka, 1994. Fonte: www. http://2.bp.blogspot.com/_hfiywj1QhQk/TT8pUhF1LUI/AAAAAAAAAIU/Me9CIF8kvJg/s1600/di-1212925043205.jpg.

C P Company e Vexed Genaration, ambas esto envolvidas no desenvolvimento de novos tecidos, unindo a produo com a pesquisa de materiais. Como visto em Bradley Quinn (2003, p. 109, traduo nossa), essas iniciativas demonstram a grande preocupao com a inovao, que permite aos designers desafiar os limites da moda moderna. Tecidos altamente resistentes, impermeveis, a prova de desgastes, rasgos, leo e vento como o Dynafil, produzido a partir do polister e o Carbguard que filtra as ondas radioativas e eletromagnticas do ambiente so os resultados dessas pesquisas. Com a utilizao de tecidos como estes, o trabalho desses grupos invertem a relao que normalmente fazemos entre moda arquitetura e durabilidade. So roupas feitas para durar.

Yeohlee

YeohleeTeng uma designer malaia de origens chinesas, que se estabelece em Nova York na dcada de 1960 para estudar e trabalhar. Ela se apresenta como uma designer anti-fashion, uma arquiteta das roupas que est mais preocupada com conforto e manuteno do que com glamour e ostentao; descrevendo suas roupas como abrigos (SEABROOK, 2002, p.122, traduo nossa).

A partir da experimentao de novas modelagens e materiais, seu trabalho consiste numa anlise das formas do corpo humano para uma posterior relao dessas formas com os tecidos; fazendo consideraes muito semelhantes de um arquiteto. Para a designer:

moda e arquitetura operam segundo os mesmos princpios [...] assim como um arquiteto, eu devo me preocupar em como o corpo ir entrar, sair e interagir [...] tanto arquitetura e moda esto preocupadas com a apreciao do material, a habilidade de organizar informaes e como as pessoas iro reagir em seus espaos (QUINN, 2003, p.110-115, traduo nossa).

O termo Nmade Urbano apareceu na sua coleo outono/inverno de 1997. Na coleo Yeohlee maximiza a ideia das roupas como uma espcie de arquitetura porttil, segundo ela dependendo do quo extremo voc quer ser, poderamos dizer que as roupas [tambm] so nossas casas (QUINN, 2003, p.111, traduo nossa), e assim como na arquitetura o trabalho vai permanecer inacabado e s completado com a presena do corpo/usurio/suporte. Muitas das suas peas podem ser usadas de diferentes formas maximizando sua funcionalidade e a mudana de estilos. O princpio de modularidade central em seu pensamento. Mas sua expresso de funcionalidade muito distante da forma unissex de vesturio que so comumente tidos como funcionais.Suas roupas so feitas para atingir um mximo de utilidade pelo usurio atravs de todo o dia ao invs de estarem confinadas a determinadas ocasies como roupas casuais ou formais. Ocasionalmente suas colees incluem um tamanho nico de determinada pea, Bradley Quinn (2003) compara esse princpio de estandardizao com o utilizando pela arquitetura na dimenso de portas e altura de p direitos, por exemplo, projetados para facilitar tanto a pessoa de menor e maior estatura numa proporo uniforme. Crticos alegam que essa abordagem purista retira a fantasia da moda. No entanto, para Bradley Quinn (2003), o trabalho de Yeohlee dialoga com a geometria futurista de Paco Rabanne e Andr Courrges, trazendo mente a imagem de filmes de fico cientfica; logo apesar de no ter inspirao na fantasia, suas roupas antecipam um estilo de vida do futuro que j parte da cultura visual atual.

Hussein Chalayan

Designer de origem turca, cujo trabalho mistura moda, arquitetura, design e tecnologia. Segundo Bradley Quinn (2003) a moda, para Hussein Chalayan, nada mais do que um veculo para os conceitos que ele explora e para as estruturas que ele prev. O trabalho de Hussein explora a ideia de roupas como armaduras para o meio urbano. Ao mesmo tempo quem mantm a mobilidade, flexibilidade e individualidade dos usurios, Hussein Chalayan trata dos princpios arquitetnicos de abrigo e proteo. Para o designer:

Quando as roupas tem uma aparncia modular e estruturada, as pessoas normalmente se referem a elas como arquitetnicas, quando muitas vezes elas no so. Arquitetura pode ser projetada de maneira fluida e desestruturada de modo que no parea arquitetnica, mas ainda assim seja arquitetura (QUINN, 2003, p.122, traduo nossa).

Segundo ele tudo ao nosso redor ou se relaciona com o corpo ou com o meio. A partir da ele enxerga um sistema onde as roupas fazem parte dos interiores onde vivemos, e os interiores so partes da arquitetura e a arquitetura por sua vez em si uma parte do meio urbano. Seguindo essa viso, as roupas definem uma zona ntima ao redor do corpo e a arquitetura define uma zona mais larga. Exatamente como visto com a segunda e terceira pela de Hundertwasser respectivamente.Um de seus trabalhos mais conhecidos, Afterwords (outono/inverno 2000) tratava de questes como identidade e individualidade. A inspirao para o trabalho partia das experincias do prprio designer explorando a ideia de ter que deixar o lar em situaes de conflitos ou guerras ilustrando a potencial fragilidade e precariedade do abrigo e da identidade (EXIBITION GUIDEBOOK, 2008, p.28, traduo nossa).

Figura 4- Hussein Chalayan, Afterwords, 2000. Fonte: www.t0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQPhOUS93E6ZDUy9hQcrCI-K2JURhJRirOCQS7mhsWzSO5lyT2i.

Em Afterwords, objetos eram disfarados na forma de roupas ou vice e versa. Capas de mveis e peas de mobilirio se transformavam em peas do vesturio ou em outros objetos como cadeiras que se transformavam em malas.Hussein Chalayan tambm comeou a explorar os novos materiais e as inovaes tecnolgicas que davam a arquitetura certa inteligncia e lhe permitiam certa interao. So os chamados edifcios inteligentes, aqueles que respondem a determinadas condies ambientais ou climticas.Como resposta ao novo ambiente construdo, cada vez menos inerte e mais interativo, surge o Remote Control Dress. A primeira pea de vesturio a ser apresentada com a utilizao de tecnologia wireless capaz de se comunicar com sensores localizados em estruturas arquitetnicas ao seu redor. O vestido demonstrava a relao do corpo com uma srie de elementos invisveis, para Bradley Quinn (2003), Chalayan estabeleceu uma nova relao entre o corpo humano e o seu entorno, atravs das roupas projetadas para transmitir informaes entre o usurio e o ambiente construdo a sua volta que por sua vez pode ser programado para responder, antecipadamente, s necessidades do usurio.

O Remote ControlDress inovador em vrios nveis [...] porque revela o papel que a tecnologia desempenha na congruncia entre moda e arquitetura. Alm disso, [...] o vestido usa a tecnologia para fortalecer a relao do indivduo com o mundo material [...] O Remote Control Dress no foi projetado especificamente para explorar as relaes entre tecnologia e o corpo, mas para analisar como a forma do vesturio pode envolver o corpo e ao mesmo tempo possibilitar o relacionamento do mesmo com o meio ao seu redor. Se voc altera o modo como o corpo transita no espao ao seu redor, o corpo altera tudo no espao que o afeta explica Chalayan [...] (QUINN, 2003, p.129, traduo nossa).

O vestido, feito a partir de uma combinao de fibra de vidro e resina, forma um verdadeiro exoesqueleto ao redor do corpo sem deixar de possuir uma sensualidade sutil ao mesmo tempo futurista nas suas linhas simples e limpas na opinio de Bradley Quinn (2003).O potencial que o corpo tem de interagir e de se comunicar com outros sistemas amplificado atravs da moda com o Remote Control Dress. Para Bradley Quinn (2003) o vestido deixa claro que a mecanizao do corpo elimina inmeras fronteiras que separam a moda da arquitetura ao seu redor. Pode-se dizer ento que Remote Control Dress amplifica o potencial que o corpo tem de interagir e de se comunicar com outros sistemas atravs da moda. Mas as interaes entre carne e tecnologia ao mesmo tempo em que so emocionantes so tambm aterrorizantes. Segundo Quinn (2003, p.130, traduo nossa) confinar o corpo dessa maneira o mesmo que coloc-lo dentro das paredes do panptico.

Lucy Orta

Imaginem retirar do homem a sua estrutura arquitetnica e as suas roupas, como ele viveria? Michel Serres (1994) e Bradley Quinn (2003) concordam que alienar o indivduo de estruturas arquitetnicas torna-los sem abrigo (QUINN, 2003, p.159, traduo nossa) e o homem no consegue viver sem abrigo, isto , no consegue viver publicamente sem vida privada (SERRES, 1994, p.51). Quanto ao vesturio, o filsofo francs afirma que no h miservel nenhum em todo o planeta que ande, como os animais, completamente nu (SERRES, 1994, p.51) e Bradley Quinn (2003) acrescenta dizendo que o fato da roupa se desintegrar em trapos significa a invisibilidade social.O trabalho da designer britnica refuta a ideia de que roupas e abrigos devam permanecer como entidades separadas. Segundo Bradley Quinn (2003), ela forja uma aliana inesperada entre moda, arquitetura e arte, traando um eixo entre edifcios e roupas ao tratar ambos como expresses esculturais, tteis e espaciais da sociedade. Seu ponto de partida o uso das roupas para produzir e definir espaos, conceitual e materialmente; reconhecendo o potencial da moda de delinear degraus de separao.

Desde que habitar espaos signifique consider-los como parte do seu corpo, roupas tm pleno direito de se tornarem moradias arquitetnicas, abrigos temporrios oferecendo proteo contra o frio e tempestades nos pontos de parada da jornada da existncia humana (QUINN, 2003, p.160, traduo nossa).

Suas criaes, que esto longe de serem meras roupas, se tornaram uma metfora para abrigo, vestimenta, mobilidade e espao social, sendo de certa maneira uma resposta para problemas prticos. Atravs de uma srie de instalaes, exibies e intervenes sociais que colocam suas peas em uso ela tem se preocupado com a condio social dos indivduos condenados a uma existncia marginalizada transformando nossa percepo dos invisveis prias urbanos dando a eles visibilidade na esfera pblica.A afinidade da designer com os moradores de rua que so para ela os nmades urbanos comeou com uma srie de workshops promovidos por ela no exrcito da salvao em Paris, onde trabalhava com eles no intuito de facilitar novas expresses de personalidade. Lucy Orta enfatiza o direito do indivduo de ocupar os espaos pblicos ao invs de reintegr-los na estrutura que pode ter sido a causadora da sua alienao. Para muitos moradores de rua, so os traumas sofridos em instituies ou no ambiente domstico que os levaram a sua existncia fora dos mesmos. Para esses indivduos, ela no est produzindo meramente um espao individual, est produzindo ambientes para viver, mesmo que transitrios, oferecendo um espao no qual possam se sentir seguros, um espao que podem considerar como um lar (QUINN, 2003). Fica perceptvel que a designer no pensa em lar como uma base estvel e fixa, como um ponto de origem. Para Lucy Orta o importante o ato de habitar o que nos leva de volta a imagem de Digenes. Os moradores de rua usando as peas de Lucy Orta se assemelham em muito a condio do filsofo grego. O barril para Digenes e as peas de Lucy Orta para os moradores de rua representam como visto em Michel Serres (1994) os invlucros de maior proximidade com o corpo, cujas dobras envolvem e definem. Lucy Orta no tem a inteno de encontrar uma soluo para os problemas dos moradores de rua, s que ainda assim o seu trabalho nos faz pensar em novas possibilidades ao mesmo tempo em que provoca uma resposta eficaz.A identificao do medo que vrios moradores de rua tm de viver em um abrigo ou lar provisrio levou Lucy Orta a pensar em como as ruas poderiam ser apropriadas como uma extenso da casa. Detectando esta necessidade individual de definir uma rea de espao pessoal na matriz urbana em situaes de crise, surgiu Refuge Wear.

Figura 5- Lucy Orta, Refuge Wear City Interventions, 1993 1996. Fonte: Site oficial da artista.

So estruturas de tecido, que se transformam de maneira instantnea de roupas para arquitetura corporal atravs de um sistema de zperes e fechos de Velcro. Como se as paredes fossem feitas de um tecido hi-tech que envolve o corpo numa membrana respirvel que funciona como uma segunda pele.

Cada pea de Refuge Wear foi projetada como um ambiente pessoal que pode variar de acordo com as condies climticas as necessidades sociais e a urgncia. O espao no seu interior uma expresso simblica da habitao. Como uma casa eles cercam uma famlia ou indivduos com paredes de defesa, estabelecendo pontos de contato com o mundo e fornecendo espao que os refugiados podem se apropriar como lar (QUINN, 2003, p.163, traduo nossa).

Bradley Quinn (2003) traa paralelos entre o trabalho de Lucy Orta e os de Hlio Oiticica e Lygia Clark. Segundo o ele, a designers e os artistas brasileiros abordam a mutabilidade do corpo atravs da sua relao com os significantes externos. Eles criaram estruturas arquitetnicas similares a capas para a habitao e para conectar indivduos atravs do toque (QUINN, 2003, p.162, traduo nossa). Com os trabalhos desses designers e grupos, percebemos que a moda pode se apresentar tanto como uma segunda pele quanto como um primeiro abrigo, sem que essas relaes sejam excludentes ou exclusivas. Mais prximos da ideia das roupas funcionando como uma segunda pele temos Yeohlee Teng e Hussein Chalayan. A produo da designer malaia apresentada em colees regulares, aliando seus princpios de: funcionalidade, modularidade, racionalidade e sustentabilidade produo e comercializao das peas; inserindo Yeohlee no mercado da moda. J no caso do designer turco, ele concilia trabalhos de extrapolam as questes mercadolgicas como o Remote Control Dress e Afterwords com a produo de peas que sero introduzidas no mercado e com o trabalho em grandes marcar como a Puma.Mais relacionados com a noo de primeiro abrigo esto os trabalhos da C P Company que alm da produo de transformable fashion tambm apresenta colees sazonais de Lucy Orta, Vexed Generation e Archigram. Estes trs ltimos apesar de no estarem inseridos no universo fashion dos desfiles, das semanas de moda e at mesmo do mercado usufruem dele para s vezes at mesmo se contrapor. Para Bradley Quinn (2003), por exemplo, Lucy Orta reconhece o potencial da moda de delinear nveis de separao e de individualidade, enquanto a moda tradicionalmente vista como uma declarao de estilo mais do que de contedo [...] o trabalho de Lucy Orta funciona como uma anttese visual (QUINN, 2003, p.157, traduo nossa).

Referncias

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