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Revista Aproximação — Segundo semestre de 2014 — Nº 8

http://ifcs.ufrj.br/~aproximacao

1

Revista Aproximação

(Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)

Volume 8 – Edição 2014/02

http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao

A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em

Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da

UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o

da pesquisa filosófica.

© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Expediente – Comissão Editorial

Alline Schalcher, Elis Bondim, Fabiana Lessa, Guilherme Santos, Henrique Luz, Irene

Danowski, Jorge Américo Vargas, Manoela Caldas

Conselho Editorial

Alexandre Costa, Alice Haddad, Andrea Cachel, Antonio Rufino, Antonio Saturnino

Braga, Carolina de Melo Bomfim Araújo, Carlos Eduardo Oliveira, Celso Martins Azar

Filho, Cesar Battisti, Cláudia Drucker, Clovis Brondani, Eduardo Brandão, Elizabeth

Dias, Ethel Menezes Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Flavio Williges,

Franklin Trein, Gilvan Fogel, Guilherme Castelo Branco, Helio Alexandre, José

Claudio Matos, Léo Peruzzo, Lethicia Ouro, Luiz Maurício Menezes, Marco Antonio

Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Dias, Mariluze Ferreira, Mário

Antônio de Lacerda Guerreiro, Mário Carvalho, Marisa Muguruza, Miguel Attie,

Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Pedro

Pricladnitzky, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Raquel Krempel, Raul

Landim Filho, Ricardo Jardim Andrade, Rodrigo Guerizoli, Rosalie Pereira, Ulysses

Pinheiro, Valdetonio Pereira de Alencar, Vera Cristina Bueno, Vilmar Debona, Wilson

John Pessoa Mendonça.

Contato:[email protected]

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Índice:

Editorial ............................................................................................................................ 3

A intencionalidade das sensações em Descartes .............................................................. 5

Estética e ideologia no marxismo ................................................................................... 12

Do princípio heraclítico: o início dialético ..................................................................... 24

O Estado enquanto violador de direitos .......................................................................... 32

Status moral embrionário e aborto: uma perspectiva da nova teoria do direito natural . 42

Bertrand Russell: o elogio ao ócio .................................................................................. 55

A ilustração literária do Eros aristofânico no Banquete de Platão: a eterna busca pela

cara metade ..................................................................................................................... 68

Introdução à virtude na Ética a Nicômaco de Aristóteles .............................................. 83

O conceito de justiça no Leviatã de Thomas Hobbes ..................................................... 96

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EDITORIAL

Encerrando mais um semestre de atividades, a Revista Aproximação lança sua

oitava edição, que acreditamos ter sido uma produção especial. Realizada em um

período de renovação da comissão editorial, a revista de 2014.2 foi, na verdade, uma co-

produção entre comissões: a agora já antiga e a nova comissão, que a partir de agora

assume definitivamente a revista. Gostaríamos de agradecer, primeiramente, ao corpo

editorial que agora se despede pela iniciativa e esforço de resgatarem e reativarem a

Revista Aproximação, após longos períodos abandonada. Agradecemos também pelo

cuidado e suporte oferecido durante o período de transição, que garante a continuidade

das atividades da revista. O novo corpo editorial gostaria de reforçar a importância deste

espaço de publicações para graduandos e afirmar seu compromisso com a missão desta

revista: a de ser o “princípio daqueles que principiam”.

Agradecemos a todos os professores e doutorandos que gentilmente aceitaram o

nosso convite e colaboraram com a seleção dos artigos.

Nesta edição, conseguimos contemplar uma grande variedade de temas e

filósofos. Andréa Alves de Abreu traz uma leitura da caracterização cartesiana das

paixões, tentando demonstrar como podemos atribuir intencionalidade à sua função

cognitiva. O graduando Guilherme Celestino resgata a análise marxista sobre produção

cultural e sua dimensão ideológica através de sua recepção pelos pensadores da Escola

de Frankfurt, indicando a necessidade de atualização de alguns conceitos para que se

tornem adequados ao contexto atual. Em seguida, Camila Gonçalves Curado traça uma

relação entre a concepção de natureza de Heráclito e a dialética de Hegel, afirmando a

última como um novo método para se pensar a realidade. Em seu artigo sobre o aborto,

Camila Pilotto Figueiredo apresenta suas reflexões acerca das perspectivas de John

Finnis e Robert George sobre o status moral de embrião. Para os estudiosos de Russell,

apresentamos o artigo de Vinicius de Miranda Leite, sobre o elogio ao ócio. A

articulista Marina Trigo Matos discute a concepção de amor como busca pela “cara

metade”, através da leitura do Banquete de Platão, com foco no discurso de Aristófanes.

Elis Bondim nos presenteia com uma introdução à Ética a Nicômaco de Aristóteles. Por

fim, o graduando Julio Tomé enriquece a edição com seu artigo sobre o conceito de

justiça no Leviatã de Hobbes, discutindo termos como Estado, Lei, Soberano, e seus

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significados. E ainda contamos com o artigo de Gustavo Bertolino Ferreira, ainda de

nossa parceria com o X Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ, que tendo

como referência autores como Kant e Rawls, sustenta a tese de que se o estado viola

direitos do indivíduo não há legitimidade no contrato entre ambos. Boa leitura!

Comissão Editorial – Revista Aproximação.

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A INTENCIONALIDADE DAS SENSAÇÕES EM

DESCARTES

Andréa Alves de Abreu

Graduanda em Filosofia na UFRJ

Resumo: À afirmação de Alanen (2003) de que as sensações possuem uma função cognitiva quanto aos objetos do mundo externo, sua condição de intencionalidade, acrescenta-se outra que é a preservação do composto corpo-alma. Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é descrever como, em Descartes, as paixões se caracterizam a fim de demonstrar a sua função cognitiva de tal sorte que permita à Alanen (2003) lhes atribuir uma intencionalidade.

Palavras-chave: Composto corpo-alma; Descartes; sensações; intencionalidade.

Abstract: Besides Alanen statement (2003) that sensations have a cognitive function toward the objects of the external world, there´s another one related that states the preserving of the composite body-soul. Thus, the aim of this paper is to describe how Descartes passions are characterized in order to demonstrate their cognitive function, that allows Alanen´s intentionality statement (2003). Keywords: Composite body-soul; Descartes; sensations; intentionality.

O objetivo deste trabalho é descrever como, em Descartes, as paixões se

caracterizam a fim de demonstrar a sua função cognitiva de tal sorte que permita à

Alanen (2003) lhes atribuir a função de preservar o composto corpo-alma. Para isso, é

preciso admitir as teses cartesianas da existência das coisas materiais, de que o

composto corpo-alma se dá através de uma íntima mistura de duas substâncias distintas

e que, sobretudo, são as sensações que apontam para a existência desse composto.

No parágrafo 24 da Sexta Meditação encontra-se a seguinte consideração que

permite discutir a afirmação anterior de que são as sensações que apontam para a união

corpo-alma. Eis a sua transcrição na íntegra:

“A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo. Pois, se assim não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor

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alguma, eu que não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se algo se rompe em seu navio; e quando meu corpo tem necessidade de beber ou de comer, simplesmente perceberia isso mesmo, sem disso ser advertido por sentimentos confusos de fome, de sede, de dor, etc., nada são exceto maneiras confusas de pensar que provém e dependem da união e como que da mistura entre o espírito e o corpo” (DESCARTES, 1973, p. 144).

A transcrição acima se remete ao fato de que as sensações (exemplificadas como

dor, fome e sede) possibilitam a compreensão não só do fato de que meu corpo está

unido com minha alma, mas, sobretudo, que essa união é uma união peculiar: não se

trata de uma justaposição do corpo e da alma, mas sim de uma união íntima, uma

mistura que forma o corpo-alma. Da mesma forma que o piloto não sente dor quando o

seu navio é avariado e o percebe unicamente pelo entendimento, sem nenhum apelo à

sensação, minha alma, se fosse apenas alojada em meu corpo, não sentiria dor quando

esse fosse ferido, mas apenas compreenderia a ferida. Isso porque o piloto e o navio são

distintos e não se misturam, diferente do corpo e da alma que, apesar de distintos,

compõem uma união que se registra através da sensação.

A união de duas substâncias distintas e o fato de que algo externo ao corpo ao

afetá-lo se faça sentir na alma causa uma estranheza que aparece em Alanen (2003, p.

108) na seguinte interrogação: “como que uma ação no corpo e uma paixão na alma

podem ser consideradas a mesma coisa se elas são modos de duas substâncias

diferentes?”. Isto é, dado que, segundo Descartes, apesar da tese da união substancial

corpo-alma, corpo e alma são realmente distintos e, portanto, substâncias distintas de tal

modo que os modos de uma não são modos da outra, como explicar que o corpo e a

alma sejam afetados ao mesmo tempo pelo mesmo agente?

Essa interrogação é respondida através da afirmação de que a alma não pode ser

afetada por corpos externos a ela (isso porque somente corpos podem afetar corpos),

mas que pode ser afetada por um corpo que esteja intimamente ligado a ela. Ou seja, a

partir da união corpo-alma o que afeta o corpo afeta, simultaneamente, a alma. No

entanto, a sensação experimentada pelo composto corpo-alma se dá de forma obscura e

confusa. Se dessa união fosse possível uma idéia clara e distinta, poderia ser possível

uma idéia clara e distinta da sobreposição de duas substâncias distintas (como podem

ser concebidos o piloto, o navio e o piloto em seu navio).

Como o que se tem dessa união é uma idéia obscura e confusa isso pode indicar

que se trata da união de duas substâncias heterogêneas e não de uma mera sobreposição

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das mesmas (ROCHA, 2008). Assim, segundo Descartes, as sensações que evidenciam

a união corpo-alma são atos mentais, porém de uma natureza diferente dos atos mentais

puros, ou seja, daqueles que dependem unicamente da alma (ROCHA, 2008). Sensações

são atos mentais oriundo de afecções no corpo e têm um conteúdo obscuro e confuso.

Entre os Artigos 16 e 28 em As Paixões da Alma, Descartes encadeia uma série

de argumentos que delimitam as características e funções ora do corpo, ora da alma e,

também, aquelas que são comuns ao composto. Essas definições serão expostas aqui

com o fim de sustentar o argumento de que a sensação, sendo um modo da alma, tem

sua origem nos corpos externos a ela que afetam o corpo unido a ela e, também, com o

fim de sustentar a afirmação de que as sensações são intencionais e, nesse sentido, têm

valor cognitivo já que são capazes de informar como as coisas nos afetam, se de forma

boa ou má.

Descartes argumenta que os movimentos do corpo que independem da vontade

(como por exemplo, respirar, comer, andar) estão em função dos membros e da ação em

curso dos espíritos animais no cérebro, nos nervos e nos músculos, tal qual como a mola

e as rodas fazem funcionar um relógio.

A seguir atribui à alma os pensamentos que podem ser ou as suas ações ou as

suas paixões. Às ações da alma atribui tudo o que vem diretamente e que parece

depender apenas dela (da própria alma); às paixões atribui as percepções ou

conhecimentos que não possuem na alma a sua única origem.

Por sua vez, a vontade é dividida em duas espécies, a saber, as vontades que são

ações da alma e que terminam nela própria (como amar a Deus e pensar acerca daquilo

que não é material) e as que terminam no próprio corpo, como da vontade de passear

resulta que as pernas se mexam e que o homem caminhe.

As percepções se dividem em duas espécies: as que têm a alma como causa são

as percepções de nossas vontades e de todos os pensamentos que são dependentes

apenas da alma – aqui Descartes ressalta que quando a alma deseja alguma coisa, trata-

se de uma ação, mas o perceber que ela deseja é uma paixão, visto ser uma ideia de uma

ação. A outra espécie de percepção é causada pelo corpo e é dependente dos nervos,

exceto as ilusões presentes no sonho as quais não estando sob o domínio da vontade do

sonhador, dependem do corpo adormecido, e não dos nervos.

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As percepções que vêm à alma através dos nervos podem ser relacionadas aos

objetos que existem fora de nós (aos corpos externos), ao próprio corpo - ou a algumas

de suas partes - e à própria alma.

As percepções que se relacionam aos objetos que existem fora de nós provocam

alguns movimentos nos órgãos dos sentidos que, por sua vez, provocam o cérebro por

intermédio dos nervos os quais levam a alma a senti-los. Um exemplo disso é quando

alguém vê o facho de luz ou ouve o sino: o que ocorre é que a alma pensa ver o facho de

luz e pensa ouvir o sino, isto é, a alma percebe os movimentos que provém desses

corpos e que afetam o corpo unido a ela

As percepções relacionadas ao corpo, tais como fome, sede e demais apetites

naturais, são aquelas referidas ao próprio corpo e não a objetos existentes fora dele.

Assim, os mesmos nervos que fazem com que se sinta a mão fria podem provocar a

sensação de calor quando a mão se aproxima de uma chama (como corpo externo).

As percepções referentes à alma demonstram seus efeitos na própria alma e nem

sempre se conhece a causa próxima a qual se possa relacioná-las. Para exemplificar,

Descartes cita os sentimentos de cólera e alegria os quais tanto podem ser excitados

pelos objetos que movem os nervos quanto por outras causas. Ressalte-se que Descartes

acentua que, embora tanto as percepções que se referem a objetos externos ao corpo

quanto às percepções que se referem às afecções internas ao corpo sejam consideradas

paixões, somente as paixões que se relacionam com a própria alma devem ser chamadas

de paixões da alma. A definição das paixões da alma em sentido estrito aparecerá na

transcrição do Artigo 27. Seja:

“Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de todos os seus outros pensamentos, parece-me que podemos em geral defini-las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos” (DESCARTES, 1973, p. 237).

Após diferenciar as paixões dos outros pensamentos próprios à alma, Descartes

lhes atribui três definições: percepções, sentimentos e emoções da alma. As percepções

referem-se a todos os pensamentos que não constituem ações ou vontades da alma; os

sentimentos dão conta da forma passiva como são recebidos na alma (e não provocadas

por ela como o são os pensamentos próprios à vontade). Por fim, as emoções da alma

pretendem considerar o estado de agitação ao qual a alma é lançada ao ser afetada

passivamente.

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Dada a exposição até aqui realizada das argumentações presentes entre os

Artigos 16 e 28 em As Paixões da Alma que apontam para a íntima relação presente no

composto corpo-alma, é possível considerar que as sensações são atos da alma, mas que

possuem origem fora dela, nos corpos externos a ela que afetam o corpo a ela unido que,

por sua vez, através dos nervos e dos espíritos animais provocam sensações nela.

Uma vez reconhecido que as sensações são próprias ao composto corpo-alma,

como pode ser sustentada a afirmação de Alanen (2003) de que as paixões são

intencionais, isto é, visam informar algo sobre o que não é ela própria? Como as

argumentações presentes em As Paixões da Alma até aqui expostas contribuem para

fundamentar a tese da intencionalidade das paixões? A resposta a essas interrogações

pode ser ensaiada a partir da compreensão dos mecanismos pelos quais as emoções se

formam. Essa afirmação encontra respaldo em Greenberg (2007) ao afirmar que em As

Paixões da Alma Descartes explica como funcionam as paixões – enquanto que na

Sexta Meditação dedicou-se a explicar como o funcionamento das sensações fornece

explicações sobre o mundo, aponta para o composto corpo-alma e promove a

preservação desse mesmo composto.

Greenberg (2007) é concordante com Alanen (2003) no que se refere à

intencionalidade cognitiva das sensações na medida em que representam o que é bom

ou mau para o corpo, contribuindo para a preservação do composto corpo-alma. Assim,

de acordo com Greenberg (2007), as sensações levam à alma informações sobre o

estado do próprio corpo e da relação do corpo com os demais corpos externos a ele –

ressalte-se aqui a importância da sensação quanto a esses estados e relações, se bons ou

maus, para a preservação do composto.

Quanto ao funcionamento das sensações, é possível afirmar que a ação dos

espíritos animais no cérebro predispõe o corpo a uma ação e, concomitantemente,

predispõe a alma a desejar aquilo que o corpo se dispõe a fazer. O comportamento aqui

incorporado é associado, simultaneamente, a determinados estados da alma e essa

associação se dá por natureza ou por hábito. Descartes não explica como se dá essa

concomitância entre estado do corpo e predisposição da alma, essa coincidência é

tomada como um fato bruto da experiência vivida (ALANEN, 2003).

Dessa forma é possível retomar uma das funções das paixões que é a de mover a

alma para desejar o que o corpo se dispôs. Isso indica que há um estado de consciência

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da alma em relação ao corpo tendo em vista que para situações semelhantes os homens

podem reagir de maneiras distintas e assim o fazem em função dessa tríade espíritos

animais/instituição natural ou por hábito/reação do composto corpo-alma. Segundo

Alanen (2003), Descartes nomeia os movimentos dos espíritos animais de causas

últimas e próximas das paixões, porque ao mesmo tempo em que são próximos ao

objeto que desencadeia a paixão são últimos em relação à alma, pois são os espíritos

animais que imediata e diretamente afetam a alma que comporta os pensamentos e

emoções associados aos objetos 1.

Considerando a importância da instituição natural ou por hábito na reação dos

homens é preciso destacar que tal instituição não é formada por julgamentos reflexivos.

Antes, elas são ocasionadas pelas mudanças neurológicas as quais estão associadas e,

nesse sentido, elas são crenças não justificadas (ALANEN, 2003).

Em função desse complexo objeto/espíritos animais/instituição natural/corpo-

alma, Alanen (2003) destaca a importante função cognitiva que as paixões possuem,

pois são elas que informam ao composto corpo-alma se aquilo que lhe aparece é bom ou

mau (relembrando que essa informação não é reflexiva como aquela que possui apenas

na vontade da alma a sua origem). Nesse sentido, é que se torna possível afirmar que as

paixões, por serem cognitivas (uma vez que têm a função de informar ao homem como

as coisas externas afetam seu corpo), preservam o composto corpo-alma na medida em

que por instituição natural ou hábito, representam as coisas como boas ou más em

relação ao corpo, promovendo assim a reação necessária para a preservação do

composto. Nas palavras de Alanen (2003):

“As paixões têm a importante função cognitiva de nos informar sobre como as coisas nos afetam. A primeira e principal função delas é sempre um ato cognitivo, a saber, a percepção de algum objeto, coisa ou pessoa que nos aparecem de um modo ou outro os quais as paixões nos representam como incomuns, bons ou maus. A definição e a classificação das paixões particulares são baseadas em como os objetos são primeiro percebidos e como, por causa disso, eles afetam nossos corpos e como essas afecções são refletidas na alma. Insisto que nada disso é formado por um julgamento explícito, mas, sim, sobre como essas percepções nos afetam e como, por causa dessas afecções, elas são espontaneamente representadas como boas ou

                                                                                                                         1 Esse mecanismo de funcionamento das paixões causa uma grande estranheza na Princesa Elisabeth de Bohemia que em 06 de maio de 1643 escreve a Descartes pedindo que lhe explique como se dá a interação entre corpo e alma e como cada um é capaz de produzir efeitos no outro. Sua preocupação é a de que a alma deve possuir o controle de todas as ações do corpo, pois, caso não seja assim, como o homem poderia se responsabilizar por seus atos se eles não estão inteiramente sob o seu controle?

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más antes de qualquer deliberação ou reflexão consciente acerca dos que lhe apareceu” (p.p. 118-119) 2.

A partir das sensações abre-se a possibilidade da alma representar para si o

objeto de sua sensação e deliberar a partir disso. Mas, ressalte-se que isso pode

acontecer como uma vontade da alma e não ocorre nesse momento aqui referido da

sensação como um ato intencional de preservação do composto corpo-alma. Emoções e

sensações que, segundo Alanen, não envolvem “aceitação ou negação deliberadas.

Sensações e emoções que se apresentam como crenças espontâneas a respeito das coisas”

(ALANEN, 2003, p.122)3.

Referências:

ALANEN, Lilli. The Intentionality of Cartesian Emotions. In: WILLISTON, Byron;

GOMBAY, André. Passion and Virtue in Descartes. New York: Humanity Books, 2003.

DESCARTES, René. As Paixões da Alma. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.

Elisabeth to Descartes 6 may 1643. In: SHAPIRO, Lisa. Princess Elisabeth of

Bohemia and René Descartes: the correspondence between Princess Elisabeth de

Bohemia e René Descartes. Chicago: The University of Chicago Press, 2007.

GREENBERG, San. Descartes on the Passions: Function, Representation, and

Motivation. Noûs, v. 41, n.4, p. 714-734, dez. 2007.

ROCHA, Ethel Menezes. O Argumento em Favor da União Corpo e Alma em Descartes.

Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas, v. 18, n.1, p. 211-226, jan./jul.

2008.

                                                                                                                         2 Tradução livre. 3 Tradução livre.

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ESTÉTICA E IDEOLOGIA NO MARXISMO

Guilherme Celestino

Graduando em Filosofia na UFRJ

Resumo: O contexto de uma sociedade de consumo determina decisivamente o modo como se dá a produção e a recepção das obras de arte. A tradição da crítica cultural marxista nos abre uma perspectiva de investigação estética que situa a produção cultural na sua dimensão social e nos compromissos ideológicos que por ela são estabelecidos. A base dessa tradição crítica é a análise de Marx da mercadoria vinculada ao fenômeno do fetichismo, e a crítica ideológica que visa a apreender os elementos culturais responsáveis pela dominação política. Neste breve ensaio, busca-se apreender tal dinâmica segundo a conceituação dos pensadores da Escola de Frankfurt, empreendida sobretudo na primeira metade do século XX. Buscaremos também constatar como em alguns pontos seus conceitos precisam ser atualizados e/ou reformulados para dar conta da dinâmica da produção cultural no contexto atual de capitalismo global.

Palavra-chave: Estética. Cultura de massa. Fetichismo da mercadoria. Ideologia.

Abstract: The context of a consumer society decisively determines how the production and reception of works of art. The tradition of Marxist cultural critique opens up a research perspective that places aesthetic cultural production in its social and ideological commitments. The basis of this critical tradition is Marx's analysis of the commodity that binds to the phenomenon of fetishism, and ideological critique that aims to learn the cultural elements responsible for political domination.

Keywords: Aesthetics. Mass culture. Commodity fetishism. Ideology.

Introdução

Vivemos hoje em uma sociedade de consumo, onde o hábito de consumir faz

parte de nosso cotidiano; a maneira como realizamos nossas necessidades dependem

diretamente do consumo, mas também a maneira como nos relacionamos com aqueles

objetos que não têm serventia prática, as obras de arte, também passam a fazer parte

dessa dinâmica do consumo. A arte no mundo de hoje passa a ser, em grande parte,

"mercadoria cultural". Um tipo privilegiado de mercadoria, mas ainda assim uma

mercadoria. Contudo, o que nos permite pensar que a cultura, em especial a arte, possa

se tornar um produto mercadológico de consumo? O que se “perde” de experiência

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estética genuína e da capacidade criativa da arte quando a ordem do mercado se torna

determinante para ela? E, por outro lado, nesse mundo do consumo, como seria possível

uma arte que não esteja submetida e possa lhe fazer resistir e fazer crítica?

Bem, essas questões nos levam a dois domínios teóricos que se cruzam: um

primeiro que tenta responder como funciona o sistema capitalista, que reduz todo tipo

de relação social e humana à forma da mercadoria que pode ser denominado por

economia política; e um segundo que busca dar conta dos aspectos históricos e sociais

determinantes dos modos de vida e uma sociedade, ou seja, o que faz uma determinada

cultura ser de determinado jeito, o que define uma crítica social que no caso marxista é

sempre uma crítica ideológica. O primeiro campo se confunde com a investigação que

Marx faz em O Capital sobre as bases econômicas da sociedade e se prolonga na

tradição que hoje chamam de marxismo, entendido como crítica á economia política. O

segundo seria um campo mais amplo, que estuda o que Marx e Engels chamam, de

Ideologia, e envolve a dimensão cultural relacionada intimamente com a base

econômica, e por isso tende a envolver outros campos epistemológicos como o do

inconsciente psicanalítico, a forma estética segundo uma teoria literária, e outras

tendências que divergem entre os teóricos da sociedade. Da intercessão dos dois temos

uma linhagem de crítica cultural de inflexão marxista.

A crítica cultural de maneira geral diz respeito à apreciação e à análise de obras

culturais que buscam apreender seus significados mais relevantes segundo determinados

pontos de vista. No caso, com a tradição marxista, a crítica cultural assume, através da

leitura de obras culturais e artísticas, uma função de leitura do próprio tempo presente

no qual se insere a obra. A função crítica nesse sentido não se restringe à análise e

percepção das qualidades estéticas de uma obra, sua pertinência e valor artístico etc.

Deste modo, a interpretação de um filme, peça de teatro ou romance, assume um papel

de diagnóstico do mundo onde aquela obra é feita e recebida por determinado público.

Escola de Frankfurt, uma retomada crítica

Para a teoria crítica social desenvolvida pela Escola de Frankfurt, a arte pode ser

analisada a partir da sua inserção na sociedade de consumo. Assim, antes de pensar a

significação estética e artística de uma obra, deve-se enfocar a ideologia que a produziu

e que, querendo ou não, ela tende a reproduzir. Os frankufurtianos são bem coerentes à

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ideia marxista de que um produto qualquer sempre leva consigo as marcas do sistema

que o engendrou. O grande mérito de Adorno, Horkheimer, Benjamim e Marcuse está

no que eles conseguiram diagnosticar na atualidade histórica (deles), a saber, a íntima

correlação entre a ascensão do totalitarismo na Europa e o rápido desenvolvimento dos

estúdios de Hollywood. Em ambos os casos há a emergência de um tipo de sociedade

onde os meios de comunicação de massa ganham um papel decisivo, constituindo um

lugar em que tanto se forja esteticamente um gosto, como se favorece a dominação

política seja em regimes de exceção ou democráticos.

A arte, nesse contexto, aparece segundo os ditames da cultura de massa que

acaba favorecendo a consolidação do totalitarismo, assim como da sociedade de

consumo (o que para muitos autores são duas faces do mesmo sistema, o capitalismo).

Totalitarismo entende-se aqui qualquer forma de regime que suprime as liberdades

individuais em nome de um projeto nacional, ou de uma máquina burocráticas, como foi

o caso da Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, e a União Soviética de Stalin.

O enfoque da Escola de Frankfurt dado às formas artísticas ressalta nelas a

função ideológica que introjeta no indivíduo a organização social. Contudo, se a Escola

converge na orientação geral da crítica cultural das obras de arte, não podemos dizer o

mesmo quanto às teorias desses autores, que situam suas análises em perspectivas

divergentes, embora essas não cheguem a formar grandes contradições.

Para ficar num exemplo dessa divergência, tomemos Adorno e Benjamim.

Ambos, estando muito bem situados no seu tempo histórico, discutiam o significado

cultural das vanguardas, discordando explicitamente em alguns pontos: Adorno

querendo defender a autonomia da obra de arte, o que se conquista a seu ver na maior

parte das vezes por propostas que expressamente se afastam da "comunicabilidade"4,

forma que os meios de comunicação de massa praticam formatando seus conteúdos; já

Benjamim tende a ver a vanguarda no engajamento popular da arte5. Ambas as posições

não fazem sentido no contexto atual nosso, quando a chamada alta cultura não faz mais

fronteira com a cultura de massa, e não tem nada que seja "popular" ou "folclórico" que

não esteja vinculado ao circuito econômico global. A questão atual da orientação da                                                                                                                          4 Cf. “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição”. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987b. 5 Cf. "O autor como produtor. Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934". In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 120-136. [Obras Escolhidas, v. 1]

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produção está mais em como constituir políticas públicas que favoreçam certos níveis

das indústrias (gravadora VS casa de shows), certos tipos de produção (majors VS

independentes), formas de circulação (distribuidoras VS internet) e por aí vai. A própria

formação estética do artista, no contexto pós-modernista, evita que um circuito erudito

não esteja permeado pelo popular etc.

O filósofo contemporâneo Zizek retoma os princípios desse pensamento através

de uma crítica contundente, atacando algumas premissas comuns a esses pensadores,

não por mostrá-las infundadas, mas por mostrar como são insuficientes do ponto de

vista filosófico para dar conta de uma crítica da ideologia6. Se ele estiver certo,

Frankfurt foi capaz de perceber apenas as condições negativas do domínio ideológico do

capitalismo, como no caso que nos interessa: a função narcotizante da indústria cultural

que produza conformismo; distração das massas pelo cinema (e mídia em geral),

fortalecida pelo culto aos ídolos pop e da política; a erotização da repressão etc. Todavia

eles não conseguem deixar claro, no caso específico do nazifascismo, o que faz adesão

efetiva, algo da própria estrutura ideológica que faz com que tais sujeitos não apenas

temam, se equivoquem, sejam manipulados etc., mas antes o que faz com que desejem

ativamente, como sujeitos efetivos. o domínio do nazifascismo. A crítica de Zizek é que

os pensadores da Escola de Frankfurt não concebem um sujeito (inconsciente) da

ideologia.

Ao enfocar o aspecto "narcotizante" que produz o "conformismo social", Adorno

ressalta um aspecto cognitivo, diferente de Benjamim que traz a própria questão da

recepção estética do cinema que facilita a dominação, e que também não é exatamente

congruente com Marcuse ao enfocar um aspecto propriamente libidinal da conformação

social. Em todo caso, a arte está na cultura industrial com a função de nos educar para

aceitar líderes e modos de vida. Educação cognitiva, educação estética e educação

erótica. Zizek está em consonância com esses autores ao dizer que o cinema é arte

definitiva, porque é capaz de nos ensinar como desejar. A questão é diferenciar qual

educação estimula a dominação e qual estimula nossa liberdade, pois para Zizek, o

                                                                                                                         6 Cf. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. Nesse seu livro de estreia, que reproduz basicamente sua pesquisa no doutorado, Zizek tem como um dos objetivos principais retomar o pensamento da Escola de Frankfurt, especialmente a partir de duas noções "dessublimação repressiva" e "mundo administrado", buscando superar os impasses que limitaram tais teorizações quanto a uma teoria da ideologia, partindo da hípótese Lacan-Hegel que articula a dialética da ideologia segundo o modelo da "significação retroativa" da clínica psicanalítica.

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cinema pode trabalhar nesses dois sentidos antagônicos dependendo da capacidade

poética de seus realizadores.

Crítica da ideologia e do fetichismo da mercadoria

Os esforços no sentido de apreender a dimensão ideológica na produção artística

e cultural tem sua origem no tipo de análise que o próprio Marx inaugura ao criticar a

ideologia liberal presente na filosofia de seu tempo7. Assim como o pensamento

marxista, o pensamento liberal é de certo modo revolucionário, ele produz uma teoria

vinculada ao mundo e nos diz como deve ser o funcionamento do Estado legítimo numa

sociedade juridicamente estruturada. A teoria liberal quer ao mesmo tempo explicar o

funcionamento da sociedade e influenciar a produção de um Estado de Direito;

concretamente, os liberais apoiam as revoluções burguesas que destituíram do poder a

monarquia absolutista.

Porém, como diz no Manifesto Comunista, a burguesia se constituiu como classe

de maneira revolucionária, mas interrompe sua revolução num ponto: se ela foi capaz de

tornar mais igualitário os processos de tomada do poder político nos governos,

conduzindo para construção dos estados nacionais, não o foi tão radical quanto aos

meios de produção. A crítica ideológica se torna uma ferramenta teórica fundamental;

por ela é preciso mostrar as contradições dos liberais em ato. Basicamente, a

argumentação liberal se apoia numa compreensão da "natureza humana", e a crítica

marxista se empenha em mostrar como os atributos atribuídos ao homem são de fato

pertencentes a uma classe, a dos que dominam e exploram a classe trabalhadora.

Não basta a análise marxista dizer que há a exploração baseada na expropriação

do trabalhador, mas que se tal fenômeno é tão difícil de perceber, grande parte disso é

porque ele está sendo constantemente sendo ocultado (freudianamente dizendo,

recalcado) especialmente pelo discurso ideológico da filosofia liberal que, por cinismo

ou ingenuidade, faz da propriedade privada um dado da natureza humana. Mas Marx

pensa que a forma de transformar as coisas depende primeiramente em desmistificar a

compreensão de propriedade, mostrar como ela foi construída historicamente, e que,

portanto está em constante transformação e assim, não precisa se manter inabalável e

pode ser modificada.                                                                                                                          7 Cf. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1989.

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A crítica assim evidencia que ninguém é capaz de formular uma teoria

metafísica sem apoio na realidade concreta. Um filósofo em seu pensamento abstrato

sobre como funciona mecanismos da realidade suprassensível acaba por reproduzir, por

exemplo, a maneiro como o trabalho funciona e é concebido socialmente. Há um

processo "oculto" que opera pelos indivíduos, nas suas escolhas individuais, que,

todavia não refletem o seu discurso consciente. Esse processo é propriamente

inconsciente. A teoria crítica da cultura busca apreender esse inconsciente político que

opera na vida dos sujeitos, e se manifesta sobejamente pelos mais variados tipos de arte

e por tudo que é vinculado aos meios de comunicação de massa.

A crítica cultural que podemos ver na Escola de Frankfurt, nos Estudos Culturais,

no Pós-modernismo e na Escola Eslovena está afinada com a tarefa de Marx na sua

crítica ideológica da filosofia liberal, associando ao discurso que está sendo analisado as

condições econômicas e sociais que sustentam esse mesmo discurso e como esse

mesmo discurso, num nível formal abstrato, tende pelo menos a reproduzir as dinâmicas

das relações sociais que servem de base. Ir ao cinema nunca é um ato sem significação

política, um filme tende a nos levar a dar assentimento ao modo de vida da classe

dominante quando tem um discurso reacionário, ou nos leva a questionar esse modo de

vida, quando progressista.

Adorno, por exemplo, está interessado em sua crítica da música em entender o

que significa dizer nos dias de hoje que se “gosta” de uma música. Ele percebe que

quando você pergunta a alguma pessoa se ela gosta de alguma música, ela responde:

"sim, é claro, ela é bem famosa". Há certo esquema no chamado "gosto médio" do

público onde ser bom se torna sinônimo de ser célebre. No fundo, o sujeito do gosto

médio reflete sem mediações simbólicas aquilo que lhe é imposto pelo mercado. A

crítica de Adorno é mostrar como a própria estética das produções culturais é pré-

moldada pela Indústria Cultural que está interessada não só em vender ominosamente

seus produtos, mas em manter o estado de coisas, educando o gosto das massas.

Não só Adorno, mas também a escola de Frankfurt em geral, constrói um sólido

campo de análise e crítica da sociedade a partir de certos princípios teóricos marxistas.

Vimos em linhas gerais como se estrutura sua crítica á ideologia, vamos acrescentar a

isso a sua análise da mercadoria – como um determinado produto do trabalho humano é

capaz de se equivaler a todos os outros de modo que possamos lhe atribuir um “preço”?

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Marx observou que o principal fator que dinamiza e estrutura a economia é a

"mercadoria" na medida em que esta em sua "forma" estabelece padrões que

determinam as formas sociais concretas, isto é a maneira como os indivíduos vão se

relacionar em sociedade, e também a maneira como esses próprios indivíduos vão

enxergar o mundo desde o ângulo predeterminado por essa "forma social". O problema

que se forma também nessa dinâmica entre estrutura econômica (questão econômico-

política), relações sociais (questão sociológica), e visões de mundo (questão cultural) o

processo de reificação e alienação.

Temos a reificação quando se trata do que é abstrato ou subjetivo por natureza,

"como se fosse" algo concreto e objetivo, e alienação quando o tratamento que a "coisa"

nos obriga a assumir é uma perspectiva descolada da realidade da própria coisa. Por

exemplo, o "fetiche" provocado pela "forma mercadoria": espontaneamente sabemos

que o valor de troca de uma mercadoria deriva das flutuações de mercado que conferem

um preço que representa certa quantidade de trabalho que a originou, ou seja, que o

"preço" é uma resultante de um complexo sistema social; porém, quando consumimos

um produto "não queremos nem saber" do que se trata, podemos verbalmente expressar

que o valor de uma mercadoria é o trabalho social reificado, mas não dá para pensar isso

enquanto tomamos uma coca-cola e a desejamos por aquilo que ela é e vale em si,

naquela lata, seus três reais.

Lidamos como se o custo de uma lata de coca estivesse todo materializado

naquele ato de comprá-la, a consumimos porque de algum modo acreditamos que seu

valor transcende aos R$3,00 investidos. Por outro lado, o gozo que obtemos não deixa

nunca desaparecer sob si o dinheiro investido, sem, todavia revelar o trabalho que a

originou. Da mercadoria emerge um fetiche, resultando da reificação social, e por sua

vez o ato de consumo da mercadoria instaura um campo de miragem, da onde se passa a

enxergar o mundo desde os valores invertidos que a complexa dialética capitalista

impõe entre valor de uso e valor de troca. Essa miragem chama-se ideologia, e a crítica

cultura pretende atravessá-la num sentido não apenas teórico, mas também prático e

político.

A grande contribuição da Escola de Frankfurt está em perceber a reificação da

sensibilidade no sujeito moderno. (Um resultado catastrófico do projeto de emancipação

do homem chamado "iluminista"). Não se trata apenas do trabalho produtivo que é

expropriado pela ordem do capital, mas a própria produção subjetiva, nossas formas de

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ver, sentir, compreender o mundo são apropriadas pela lógica mercantil. Benjamim:

perda da aura, estetização da política.

O principal efeito estético que é buscado pela cultura de massa e indústria

cultural é o do divertimento, do prazer pela dispersão. Podemos traçar um parelho da

situação da vida contemporânea com a antiguidade clássica. Toda educação grega

clássica está voltada para uma orientação da vida emocional e dos prazeres estéticos no

sentido de desenvolver uma atitude contemplativa e reflexiva, apoiando-se muitas vezes

nas tecnologias subjetivas (como escrita sistemática de cartas, exercícios espirituais etc.)

que desenvolvem maneiras de evitar a dispersão do pensamento. Com o advento da

Indústria cultural, observa-se a fixação de prazeres exclusivos do entretenimento que

estruturalmente se afastam daqueles prazeres e emoções ligados às virtudes e

contemplação. A cultura de massa para um senso clássico é aquela que deseduca.

Atualização da crítica no contexto da Globalização

A grande questão comum nos autores da Escola de Frankfurt é "como é possível

haver o estético numa sociedade comandada pelo capital?"; questão que se desdobra em

duas: "onde encontramos a genuína produção artística?" e "o que faz tão difícil

encontrá-la na era do capitalismo?". O comum é esse projeto de uma teoria estética

colocar-se como fonte da crítica desfetichizante, da crítica da cultura de massa. Mas,

hoje, após o fim da arte parece que esses temas se tornaram obsoletos em alguns

aspectos. Não que esses pensadores tenham deixado de ser fundamentais para as

discussões da arte, hoje. Mas a visão completamente negativa, alienante da cultura de

massa como indústria cultural, reprodutibilidade técnica, ou cultura dessublimadora,

mostra como a tecnologia e a dominação política produzem formas reificantes de

cultura.

Hoje, na era da globalização, muitas vezes a posição frankfurtiana acaba se

revelando por demais unilateral e pouco sensível às nuances da produção de

comunicação e arte que são possíveis pelos diversos tipos de mídias de massa. Convém,

portanto, entender que os meios de comunicação e a cultura de massa assumem um

papel mais amplo no mundo de hoje, o que circunscreve as propostas estético-políticas

da Escola de Frankfurt no seu contexto histórico. Por outro lado, as análises

frankfurtianas apresentam incongruências conceituais situadas nos limites de suas

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abrangências: a análise do fetichismo, restando à crítica cultural atual superar alguns

impasses dessa tendência teórica. Jameson, ao trazer a conceituação de Adorno8, revela

como o aspecto "negativo" dessa é ainda bastante atual, porém sua caracterização

positiva é problemática. Ao mostrar como a cultura de massa trabalha no sentido da

conservação do status quo, a chamada arte séria não pode ser considerada algo tão

separado e autônomo como gostaria Adorno.

Adorno recorre basicamente à análise do fetichismo da mercadoria estética,

destacando o uso manipulatório com que a indústria cultural opera a lógica da

apreciação da obra de arte na cultura de massa. A arte no contexto da cultura de massa

se vincula estruturalmente ao entretenimento, que não passa de um dispositivo onde

levas de trabalhadores “repõem suas energias” sem se dar conta que estão sendo

restringidos a gostar de coisas preparadas não só para lhes agradar, mas para lhes educar

as formas de se sentir agradecido. O rádio é um exemplo do autoritarismo disfarçado de

liberalidade, pois quando ligamos um rádio temos a “liberdade” de escolher a estação no

dial, não nos damos conta que a programação, todavia, é decidida de maneira impositiva

e violenta.

Algo que também avança à exploração imagética de simbolismos inconscientes,

reforçando os recalques que sustentam o status quo. Benjamin fala da estetização da

política, de como a obra de arte no contexto massivamente tecnológico da produção e

reprodução de imagens pelos meios técnicos, onde ela perde sua raiz na tradição e

desloca seu valor de culto para "seu redor", o ídolo, a vedete, o ditador. E, em Marcuse,

há a percepção da perda do caráter afirmativo da cultura, desenvolvida no mecanismo

da dessublimação repressiva da libido. Em cada uma das análises estamos às voltas com

uma dimensão onde a reificação avança: o prazer estético, o olhar contemplativo, o

desejo sexual.

Jameson aponta como a Escola de Frankfurt não consegue fugir às suas

determinações históricas no debate acerca da relação entre meios de comunicação de

massa e produção estética. Hoje, na era da globalização não se trata de opor à reificação

estética uma estética autêntica que pouco a pouco desaparece sob o avanço do capital.

Para Jameson, tais autores são competentes ao descrever os aspectos negativos do

processo de reificação estética: alienação do prazer estético, do olhar na imagem                                                                                                                          8 “Reificação e Utopia na Cultura de Massa”, In: Revista Crítica Marxista, vol. 1, no 1, São Paulo: Brasiliense, 1994.

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reproduzida mecanicamente, do conteúdo utópico na repressão dessublimadora da libido

sexual – mas não o positivo, que seria a produção estética afinada com as

transformações sociais e que são capazes de estimular a crítica e o florescimento de

ideologia.

Adorno quando fala do que foge à reificação, acaba produzindo uma estética

bastante conservadora em certos pontos. Para Jameson, a globalização econômica

trouxe o paradigma da pós-modernidade na cultura, a produção estética nunca é algo

completamente alienante, tampouco ela poderia ser completamente "afirmativa"

somente através da alta cultura (Adorno, Horkheimer, Marcuse) ou do engajamento

político da arte (Benjamin). Jameson, buscando-se afinar com a dominante cultural da

pós-modernidade, defende uma teoria estética não mais vinculada a qualquer forma de

“realismo” que ainda seria valorizado no “modernismo”, apostando assim nas propostas

híbridas que caracterizam parte da produção significativa em arte contemporânea.

Jameson valoriza as experiências da videoarte, justamente por serem capazes de

explorar as fronteiras da especificidade do meio – questão que seria intransponível para

a teoria estética de Adorno que insistia que um meio “musical” que jamais poderia ser

traduzido em um “pictórico”, por exemplo.

***

“Indústria Cultural” aparece como uma noção crítica que tende a dar conta da

cultura nas sociedades de consumo ou capitalistas. Fala, por um lado, como essa

indústria a formatar os bens culturais de modo a educar/doutrinar a sensibilidade de seus

consumidores segundo determinada lógica cultural, por outro, como tende veicular a

essa forma um conteúdo ideológico que propicie a dominação política e reproduza

socialmente as condições dessa dominação. Algo que se dá a céu aberto nos regimes

totalitários, quando por meio da comunicação de massa desenvolvem a adoração ao

líder político, configurando o que se convencionou chamar de “dogmatismo amoroso”,

como o que ocorre nos regimes democráticos, onde o comportamento consumista é

ensinado não por meio de propaganda explícita, mas da comunicação midiática em geral.

A questão para esses autores é de como filmes, canções, programas de rádio e tv,

aparentemente inocentes são capazes de educar para o consumismo e fortalecer certas

ideologias políticas. Diferentes respostas diriam Adorno, Jameson e Zizek, mas todos

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concordam em que “sim, a arte educa e deseduca”, mas discordam no “como” isso se dá.

O foco de Adorno é a modificação doutrinária da sensibilidade – a formação do gosto

pela indústria do entretenimento que “amortece os sentidos e o pensamento crítico” e a

trincheira que a arte de vanguarda faz em resistência a esse processo. Jameson aponta

para a questão da “dominante cultural”, enquanto Zizek se centra na “interpelação

ideológica”.

Na era da globalização, vive-se sob o domínio de uma lógica cultural outra que a

do modernismo, onde a maneira de Adorno fundar sua crítica entre vanguarda e cultura

de massa deixa de fazer sentido, na medida em que esses polos deixam de existir, ao

menos em estado “puro”.

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DO PRINCÍPIO HERACLÍTICO: O INÍCIO DIALÉTICO

Camila Gonçalves Curado

Graduanda de Filosofia da UFRJ

“Para as almas, morrer é transformar-se em água; para a água, morrer é transformar-se em terra. Da terra, contudo, formar-se a água, e da água a alma.”9

“Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e de todas as coisas, um, e de um, todas as coisas.”10

Resumo: O respectivo trabalho propõe-se a relacionar a concepção de natureza do pré-socrático Heráclito – constituído em seu logos heraclítico – com o conceito de dialética de Hegel, que traz à dialética uma nova leitura. Traçaremos um pequeno histórico da palavra dialética a fim de compreendermos a sua origem, assim como as adaptações realizadas ao longo da história da filosofia. Por final, apresentaremos a lógica dialética inaugurada por Hegel como um novo método para se pensar a realidade.

Palavras-Chave: Heráclito. Hegel. Lógica Dialética.

Abstract: The respective work proposes to relate conception in nature from pre-Socratic Heraclitus - made in his Heraclitean logos – with Hegel’s dialectic concept that brings a new reading. We will trace a small historical of the dialectic word to understante your origin as the adaptations achieved along by philosophy history. Finally introduce the dialectc logic inaugurate by Hegel as a new method to think the reality. Keywords: Heraclitus. Hegel. Dialectic logic.

Origens da Dialética Antes de analisarmos os diversos significados do conceito de dialética devemos buscar entender o que originalmente significa a palavra dialética. A palavra dialética tem o seu surgimento na sociedade grega e desde então chama atenção pelo seu caráter ambíguo. O filósofo brasileiro Leandro Konder analisa muito bem como a palavra se constitui: “dialética é um vocábulo formado pelo prefixo dia (que indica reciprocidade

                                                                                                                         9 BORHNHEIM. Os filósofos pré-socráticos, p. 38 10 BORHNHEIM. Os filósofos pré-socráticos, p. 36

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ou intercambio) e pelo verbo legein ou pelo substantivo logos (o que significa que a palavra dialética tem a mesma origem que a palavra diálogo).”11

O substantivo logos pode significar tanto palavra quanto discurso ou razão. No entanto, a própria palavra logos opera significadas influências na palavra dialética, isso pela sua própria evolução, acompanhada das modificações ocorridas no seio da sociedade ocidental, o que ficara marcada ao ser ligada em alguns momentos como a “razão”, no aspecto objetivo, e em outros como “as razões” das questões subjetivas. Assim, podemos constatar a existência de variados conceitos de dialética, como os referidos por Platão, Aristóteles, Kant e Hegel.

Em Platão, podemos dizer que a dialética é a arte do diálogo, baseado no método da divisão onde a lógica dialética encontra-se no questionamento da pergunta e resposta praticada num determinado diálogo. “Uma dialética como atividade exterior e negativa que não é inerente ao fundamento da coisa, como uma busca subjetiva que tende, por vaidade a erodir e a dissolver o que é sólido e verdadeiro e que só conduz à vaidade do objetivo tratado dialeticamente”12. Já em Aristóteles, o conceito apresenta-se como uma lógica provável ou como o próprio Hegel diz, ‘a aparência do arbitrário’, do processo racional que não pode de forma alguma ser demonstrado. Importante lembrar que para Hegel a história da lógica se resume às supressões da lógica já iniciada por Aristóteles: “(...) então tem de se concluir antes que ela necessita de uma total reelaboração; pois um avanço de dois mil anos do espírito deve ter-lhe proporcionado uma consciência mais elevada sobre seu pensamento e sobre a sua pura essencialidade em si mesma.”13 Kant retoma o conceito aristotélico de dialética. No entanto, reconhece na dialética a objetividade da aparência e a necessidade da contradição, o que até o momento representa um verdadeiro avanço.

Mas a ideia geral que ele [Kant] colocou como base e fez valer é a objetividade da aparência e a necessidade da contradição, a qual pertence à natureza das determinações de pensamento. Inicialmente, na verdade, ele o fez de modo que essas determinações são aplicadas pela razão sobre as coisas em si; mas justamente o que elas são na razão e em vista do que é em si, essa é a sua natureza. (...) Mas, assim como se fica preso somente ao lado abstrato-negativo do dialético, o resultado é apenas o fato conhecido: que a razão é incapaz de conhecer o infinito; - um resultado estranho, uma vez que o infinito é o racional, dizer, que a razão é incapaz de conhecer o racional. (HEGEL, 2011, P 36)

Embora tivesse a compreensão de que o conteúdo real e a verdade absoluta são acessíveis à fé, não podendo ser conhecidas pela razão. Já o moderno filósofo Hegel, modifica a dialética apresentando ao campo da filosofia um novo conceito de dialética, até então apresentado pelos demais pensadores que o antecederam. Isso pelo fato de que os outros pensadores estavam mais ligados à forma que ao conteúdo da dialética.

A lógica de Hegel reconhece as formas ligadas ao conteúdo, enquanto ‘formas’ plenas de ‘conteúdo’, um conteúdo real e vivo, ou melhor, a própria história da

                                                                                                                         11 Konder, Leandro. A Derrota da Dialética, p. 4 12 Konder. A Derrota da dialética, p. 4 13 Hegel. Ciência da Lógica, p. 43

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humanidade. O que difere das demais compreensões (lógica formal) até a lógica apresentada por Hegel, onde as formas do pensamento são tomadas como formas distintas do conteúdo, o que a torna insuficiente para apreender a verdade. Para Hegel, a dialética não representa as discussões ou as teorias do conhecimento, mas sim uma teoria do ser. A realidade se apresenta num movimento permanente de transformações e contradições. Dessa forma, para compreendermos a realidade devemos dinamizar o nosso pensamento, a fim de acompanharmos e intervirmos sempre que possível essa realidade instável e superficial.

Ao apresentar um novo conceito de dialética, Hegel buscará nos escritos de Heráclito a base fundamental para a sua sustentação teórica. Segundo o próprio Hegel:

Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma. A dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito; objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio. É o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. (PESSANHA. Os pensadores, pré-socráticos, p.57)

Heráclito de Éfeso

Heráclito nasceu aproximadamente em 540 a.C. – 470 a.C. em Éfeso, cidade da Jônia. Dessedente de família real, e possivelmente a fundadora da cidade. Conhecido como o Obscuro, de temperamento melancólico e soberbo, preferia a solidão das colinas ao discurso ignorante em praça pública, chegando até mesmo a renunciar ao cargo de governante em sua cidade. Ignorava não só o povo iletrado como também aqueles que se diziam sábios, como os filósofos e religiosos.

Entretanto, é inegável a importância do pensamento de Heráclito em toda a história da filosofia, mesmo tendo o seu discurso muitas vezes mal interpretado, principalmente pelos gregos que viam em seu pensamento muita abstração e subjetividade (como pode um homem ser um e dois ao mesmo tempo, mudar a toda hora), embora assim, tenha sido capaz de influenciar a filosofia de sua época e a que seguiu, traçando um combate com o pensamento de Parmênides, onde a realidade e a essência do ser eram imutáveis.

Para Parmênides e seus aliados teóricos, a mudança era falsa e se constituía na superfície do mundo real. Mesmo com a força hegemônica do pensamento de Parmênides (principalmente no período medieval), a ‘dialética’ de Heráclito não perdeu sua importância e mesmo com muita dificuldade de acompanhar a realidade, foi absorvida, recuperada e trabalhada por Hegel durante a história da filosofia moderna, seguindo até os dias de hoje.

Heráclito dedicou-se aos problemas eminentes de sua época, em sua obra “Sobre a Natureza” (restando nos dias atuais apenas os fragmentos conservados por estudiosos). Podemos encontrar seus fragmentos em citações de pensadores como Diógenes Laércio, Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger, Nietzsche e Engels dentre outros (no entanto, nos atentaremos as análises e interpretações de Hegel). A partir desses fragmentos podemos

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observar a formulação da unidade imutável do ser que se apresenta diante a pluralidade mutável das coisas provisórias. Heráclito procura compreender não só a natureza existente na realidade, como também o seu processo de movimento que necessariamente conduz a transformação constante.

O Princípio Heraclítico

Os fragmentos encontrados de Heráclito retratam uma época em que os Deuses tinham o poder de influenciar a vida das pessoas. Sendo assim, devemos remeter a forma de linguagem de Heráclito aos escritos sagrados de sua época, sobre a sua obscuridade, complexidade e seriedade, numa escrita única e muito particular, onde a leitor muitas vezes se engana e se perde. Para uma melhor compreensão, podemos fazer ligação entre a escrita heraclítica e o seu logos, em seguida do logos ao entendimento humano.

O conflito é a origem de todas as coisas e a busca por um melhor esclarecimento apresenta-se através do elemento físico, o fogo. Tal analogia permitia uma maior aproximação com a realidade material em que estavam inseridos os pensadores antigos e assim a sua compreensão. Como no fragmento a seguir: “O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim como se trocam as mercadorias por ouro e o ouro por mercadorias.”14 Podemos dizer que o fogo é a ‘síntese do tempo corrido’, ou seja, do tempo que existe em permanente mudança e inquietude, a presente construção e desconstrução do que existe, e até de si mesmo. A partir desse fogo, encontramos a condição de movimento, contradição e unidade. Assim, remontamos todo o seu pensamento, atribuindo-o, segundo a análise de Hegel, a origem da dialética. O pensador estabelece uma análise onde o movimento é capaz de se reger existindo na coisa em si, tais processos universais operam por si próprios, sem intervenção de qualquer potência exterior, no entanto, devem respeitar ao logos.

Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parece não terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono. (BORNHEIM. Os filósofos pré-socráticos, p. 36)

É a partir desse ponto que observamos sua lucidez, pois esse logos impede que exista e se estabeleça o caos. Em alguns fragmentos encontramos passagens onde Heráclito alerta para que respeitem e ouçam não ao que ele disser, mas ao seu logos. Assim, a única “regra” é que existe o movimento constante, o princípio da unidade dos contrários e a ideia de medida, proporção e equilíbrio. A partir desse logos Heráclito estabelece uma ordenação que regerá os demais conceitos que se apresentam em seus fragmentos, estabelecendo uma ligação direta com esse logos. Não podemos pensar que tal ‘regra’ estabelece algum tipo de petrificação da ideia de movimento constante, pois, não encontramos tal concepção em nenhum de seus fragmentos.

                                                                                                                         14 BORNHEIM. Os filósofos pré-socráticos, p. 41

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Transformação e Equilíbrio

Observamos neste fragmento as transformações do fogo:

Este mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida. A transformações do fogo: primeiro o mar; e a metade do mar é terra, a outra metade um vento quente. A terra diluísse em mar, e esta recebe a sua medida segundo a mesma lei, tal como era antes de se tornar terra. (BORNHEIM, Os filósofos pré-socráticos, p. 38)

Vemos aí o elemento fogo enquanto uma unidade transformadora. Vemos a mudança permanente, Tudo Flui (panta rhei), é o cosmo como processo. A vida cósmica apresenta-se, aos olhos, um processo perpétuo de inflamação e extinção do fogo sempre vivo. Dele, nada persiste e nem permanece o mesmo, simplesmente coexiste num mesmo e outro ao mesmo tempo, na medida em que é transformação. No conceito de transformação, vemos necessariamente a negação de uma realidade existente, fazendo-se fundamental para compreendermos o sentido de transformação. Não é que, ao negar a coisa (que é convergente e divergente) ela deixa de existir, mas sim legitimar o poder de transformação dessa coisa obviamente no seu interagir com a realidade na qual está inserida. Em tal concepção, onde ambos existem e ligam-se permanentemente, afirmamos que para isso é preciso existir dado uma contradição, um equilíbrio. Assim, como no fragmento: “tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”15

O trabalho em que Heráclito submete a contradição ‘solidifica’ a transformação que rege a natureza e dinamiza a realidade existente. Como no fragmento exposto acima, dos convergentes e divergentes nasce a harmonia, ou seja, nas contradições se faz necessário o aparecimento de um novo que ao surgir faz desaparecer o que outrora foi. Podemos até mesmo pensar que Heráclito brinca com as palavras no jogo da contradição. Assim, encontramos a unidade em Heráclito e a partir dela podemos concluir que nada existe isoladamente – todas as coisas, até mesmo as contraditórias estão necessariamente interligadas, ou seja, relacionam-se umas com as outras. Logo, as mudanças ou transformações de uma determinada coisa devem acontecer e acontece a partir de demais transformações, o que necessariamente resulta numa outra coisa.

Sendo assim, podemos dizer que Heráclito utiliza um pensamento que trabalha sobre as contradições e mudanças da realidade, e não apenas no discurso contraditório, como acusado em muitos momentos, o que limitaria o seu pensamento e até mesmo o discurso heraclítico. Daí surge o início dialético, sua contextualização da realidade e da objetividade e também da subjetividade através da unidade dos processos de contradição e transformação.

Contextualizando Hegel

                                                                                                                         15 BORNHEIM. Os filósofos pré-socráticos, p. 36.

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Como todos os homens e também filósofos, cada ser encontra-se limitado a realidade de seu tempo, e para Hegel não foi diferente.

Nascido em Berlim na Alemanha (na época em que a Alemanha apresentava um grande atraso político, tendo seus governos regionais divididos sem existir uma nação centralizada num único governo), Friedrich Hegel esteve atento às manifestações ocorridas na Europa de seu tempo (séc. XIX), como a tão inspiradora Revolução Francesa, da qual Hegel foi um grande entusiasmado, mas sofrera de autocríticas com o desenvolver fracassado da mesma e também da Revolução Industrial. Foi daí, que Hegel pôde chegar à conclusão de que a realidade objetiva que o homem estava inserido era a peça fundamental para a condição transformadora do sujeito, mesmo que este pudesse transformar ativamente a realidade, a objetividade da realidade, em última análise, era quem tinha o poder de transformação.

Debruçando-se sobre a realidade objetiva e subjetiva do sujeito humano, Hegel (muito inspirado pela Revolução Industrial – procurou estudar as atividades políticas e econômicas no plano objetivo do sujeito humano) percebe a importância do trabalho humano como instrumento impulsionador do desenvolvimento humano, sendo o trabalho o lugar onde o ser produz a si mesmo. É no trabalho que podemos encontrar a realidade objetiva, como o objeto apresentado, assim como a capacidade de transformação de tal objeto pelo sujeito em questão, é criado assim a relação de sujeito-objeto. O trabalho é fundamental para entendermos a dialética de Hegel, que estabelece três sentidos diferentes para a palavra alemã aufheben que significa suspender, para expressar a sua concepção da superação da dialética. O primeiro sentido é o da negação, negar ou anular, o segundo é o de erguer, o terceiro é o de elevar a qualidade. Assim, a dialética é a negação de uma determinada realidade, ao mesmo tempo em que conserva alguma coisa que seja essencial a realidade negada, que é consequentemente elevada a um nível superior.

Devemos compreender que Hegel é um filósofo idealista e por isso, subordinava os movimentos da realidade material à lógica de um princípio absoluto, o qual ele chamava de Ideia Absoluta.

Hegel e a sua lógica dialética

Hegel toma consciência, simultaneamente, da contradição e da unidade – do movimento e do inteligível. Em vez de opor-se à contradição (o que deixava fora da unidade todos os fatos reveladores de antagonismos e oposições), a unidade racional torna-se unidade contraditória. A dialética se funda como ciência. (...) Ele toma o resultado como princípio, e a unidade dos contrários torna-se a causa de todo o movimento que conduziu a consciência a si mesma, a razão ideal das coisas nas quais se pode encontrar a unidade, a contradição, o movimento. (Lenin. Cadernos sobre a dialética de Hegel. p.17)

No decorrer da história da filosofia ocidental, a dialética assumiu diversos significados, e em poucas vezes ela se pressupunha a uma teoria do ser, como apresentou Hegel. Segundo o autor o julgamento acerca do que vem a ser conhecimento,

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já deve levar em consideração a concepção do ser, ou seja, o conhecimento só pode ser concretamente discutido a partir do ser.

Em sua obra A Fenomenologia do Espírito, Hegel descreve uma dialética própria do espírito que transporta até o começo do ato de filosofar. Assim, ele constrói o caminho que a consciência humana percorre para chegar até o espírito absoluto, o retorno que a consciência humana percorre para chegar até o espírito absoluto, o retorno a si mesmo. Nesse processo dialético do conhecimento, uma parte da certeza sensível da consciência progride através da autoconsciência da razão, indo até o espírito, é assim, o movimento próprio da consciência finita em busca da finitude. A fenomenologia apresenta um movimento dialético do espírito que tem como ponto de partida a certeza sensível e da percepção que progride até o saber absoluto, de imediato é experimentada pelos sentidos, dando a sensação de que a verdade fora atingida. O conceito de dialética apresentado por Hegel é todo um sistema baseado numa verdadeira concepção do absoluto, o qual precisa incorporar todos os movimentos significativos do movimento pelo qual se realiza.

Surgiu porém agora o que não emergia nas relações anteriores, a saber: uma certeza igual à sua verdade, já que a certeza é para si mesma seu objeto, e a consciência é também nisso um ser-outro, isto é: a consciência distingue, mas distingue algo tal que para ela é ao mesmo tempo um não-diferente. (Hegel. Fenomenologia do Espírito, p.119)

A compreensão do movimento realizado só pode ser atingida com o resultado finalizado, obtido. Daí a consciência descobre que essa manifestação do objeto é insuficiente, partindo para a relação com o mundo da percepção. Nessa percepção tal consciência descobre que o objeto apreendido pela multiplicidade de suas qualidades, supõe a intervenção do eu. Dessa forma, a dialética da certeza sensível supera as percepções dos sentidos particulares, ao conhecimento o universal, e o objeto se apresenta como manifestação (conceito) dessa nova figura, segundo as leis determinadas. E o pensamento sensível do mundo, que se manifesta a consciência, torna-se a essência do mundo em um sistema de leis, que se situam além dos fenômenos e constituem a própria sustentação. A consciência, através do processo dialético, caminha em direção à certeza de si, a autoconsciência.

Atribuímos a relação do pensamento de Heráclito com o pensamento de Hegel. No pré-socrático, o movimento que se distingue no processo é justamente o puro movimento negativo, quando reconhece a mudança; nos momentos da oposição subsistente, encontra-se a água e o ar; a totalidade em repouso, a terra, a vida da natureza. Demonstra a sua analogia do fogo. Seu pensamento também caminha em direção a certeza da coisa em si, a partir de um raciocinar dialético, onde trabalha com as contradições exteriores a partir de uma contemplação do próprio sujeito. E assim, Hegel estabelece a premissa de toda a sua lógica, como bem podemos observar acima.

Sendo assim, encontramos em Heráclito o processo dialético como bem Hegel estabelece e trata de expandir, levando-a e deixando contribuições significativas à filosofia. Ambos concebiam leis gerais na essência da existência humana, possibilitando tudo que se passava no universo como inevitável, historicamente necessário.

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Referências:

BORNHEIM (org.), Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos – São Paulo: Cultrix.

COSTA, Alexandre. Heráclito: Fragmentos Contextualizados. Tradução, apresentação e comentários por Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Diefel, 2002.

PESSANHA, José Américo Motta. Os Pensadores – Pré-Socráticos ( Vida e Obra). Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultura, 2000.

JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HEGEL, G.W.F: Fenomenologia do Espírito. Tradução Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992.

HEGEL, G.W.F: Ciência da Lógica. Excertos. Tradução Marco Aurélio Werle. São Paulo: Barcarolla, 2011.

KONDER, Leandro: A Derrota da Dialética. A Recepção das Ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

BLANCHOT, Maurice: A Conversa Infinita – 2. A Experiência Limite. Tradução João Moura Jr. Editora: Escuta.

LENIN, V.I.: Cadernos sobre a dialética de Hegel. Tradução: José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

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O ESTADO ENQUANTO VIOLADOR DE DIREITOS16

Gustavo Bertolino Ferreira

Graduando em Filosofia na UNICAMP

Resumo: O propósito deste artigo é mostrar em que medida o estado viola direitos quando se arroga como a instituição que tem deveres para com indivíduos quando alega que é seu dever provê-los no que diz respeito a bens que visam o bem-estar dos mesmos. A violação ocorre quando o estado os obriga a perseguirem fins cujo consentimento não foi dado. Porém, é sabido que somente há um contrato quando ambas as partes aderem a ele voluntariamente. Logo, o contrato que se alega haver entre estado e indivíduo não cumpre o requisito acima, o que significa que a relação entre as partes não se configura um contrato e, portanto, não é legítima.

Palavras-chave: Celebração de contrato.Consentimento. Enforcement.

Abstract: My aim in this article is to argue the idea that the state violates rights claiming that it has a duty to provide individuals in order to supply their well-being. The violence occurs when the state obligates them to pursue purposes whose consent might not have been given by them. However, we know that there is a contract just when both parts of that join it voluntarily. So the relation established between state and individuals does not accomplish the condition above, which means that this relation does notconfigure as a contract and, thus, is not fair from moral point of view.

Key-words: Contract. Consent. Enforcement.

A luta por direitos é algo essencial do ponto de vista político, e Junho mostrou

que fenômenos desse tipo mostram como pessoas são atores políticos condutores da

própria configuração social na qual estão inseridos. Porém, há situações em que por

mais louvável que seja uma ação, se não nos atentamos ao que subjaz do que se

defende, acabamos por incorrer em consequências que nós mesmos não assumiríamos.

As falas abaixo sintetizam as pautas levantadas em Junho e têm por intenção apontar                                                                                                                          16 Desde já expresso meu agradecimento ao colega Ângelo Antônio Pires, amigo e colega de graduação, pela razão de os argumentos desenvolvidos aqui terem sido em parte resultado do que discutimos ao longo de nossos encontros diários. Também registro meu agradecimento à professora Andrea Faggion (UEL), pela oportunidade de diálogo e troca de ideias, ainda que em momentos esporádicos, porém importantes ao desenvolvimento dos argumentos aqui presentes.

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respectivamente o quão frágil se apresentam determinados bens quando o estado não

atua adequadamente e como isso repercute de modo desfavorável para a manutenção de

uma configuração que emule o que se espera de uma configuração democrática de

sociedade:

Além do pedido de mais qualidade e tarifas mais baixas no transporte público, tema que originou a onda de protestos, as "bandeiras" dos manifestantes agora reúnem uma série de outros motes: o uso de dinheiro público em obras da Copa do Mundo, melhorias nas áreas de saúde, educação e segurança, combate à corrupção, a PEC 37 (mudança de lei que pode tirar o poder de investigação do Ministério Público), além de outras questões e insatisfação generalizada contra governantes.17

Revogar o aumento das passagens não é só uma medida de reparação do aumento da exclusão urbana pelo poder público, como também é uma demonstração de respeito à vontade popular própria de um Estado democrático, em que o poder emana do povo.18

Há nos trechos a pressuposição de que bens e serviços essenciais devem ser

providos por uma entidade que possui o dever de provê-los. Ou seja, ter direitos implica

que alguém responda por eles e que, portanto, tê-los já significa transferi-los a uma

entidade que responda a eles, mediante a produção de deveres ocasionada por essa

transferência. Porém, as falas ecoam uma concepção política que não vislumbra a

violência, à qual se submetem aqueles que as enunciam no momento em que esses

mesmos reivindicam serem atendidos pelo estado. Pressupõem a existência de uma

entidade que delibere fins a despeito de quais são as escolhas individuais, porém não

tomam em conta que protestarem contra medidas e atuações levadas a cabo por essa

entidade, porém reivindicando por mais medidas e atuações dela, implica assumir que o

valor dos fins se sobrepõe a direitos, assume-se que é legítimo gerar danos em vista de

resultados, logo, o bom se sobrepõe ao justo. Porém, busca-se justificar esse cenário,

com o propósito de mostrar que esse dano, na verdade, pressupôs o consentimento e,

portanto, não caracteriza dano.

A ideia com a qual nos deparamos a partir desse quadro é a questão da

legitimidade do estado. No caso, entende-se que não é suficiente ao estado que ele tenha

poder sobre pessoas, é preciso que ele tenha o direito de fazer uso desse poder. Isso

                                                                                                                         17Reportagem de Uol Notícias de 20/06/2013: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm [acessada em 30/07/2014] 18Reportagem de Folha do Estado de São Paulode 17/06/2013:http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/17/foi-a-populacao-de-sp-que-se-levantou-defende-o-movimento-passe-livre.htm [acessada em 30/07/2014]

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ocorre porque o fato de uma entidade possuir força, por si só, não é o que confere a ela

ter a posse de um direito, mas somente quando este lhe é transferido com consentimento

dos concernidos. Esse é o único meio pelo qual uma entidade é reconhecida como

legítima. Porém, é preciso um meio pelo qual essa transferência ocorra sem que seja

preciso a consulta a todos sobre quem o estado alega possuir deveres, seja de sujeitos

que já existem, seja daqueles que virão a existir, pois é preciso do consentimento de

toda e qualquer pessoa considerada sob tutela para que o estado seja considerado

legítimo. Então é preciso de uma situação em que todos os sujeitos sejam contemplados,

para que o consentimento seja garantido. Como solução é apresentada uma situação

hipotética, já que ela tem por característica dar conta de qualquer configuração possível

e que, portanto, não permita que nenhum concernido deixe de ser contemplado. Como

se trata de uma justificativa para a existência do estado, ela é apresentada ao modo de

um raciocínio, que segue: sendo irracional não buscarmos nossa autopreservação, é

necessário alguém prover serviços que busquem resguardar nossa integridade e que a

garanta. Esse alguém não pode prover em causa própria, mas unicamente em vista dos

que cederam seus direitos. Logo, não pode ser ninguém que tenha cedido direitos, i.e.,

deve ser alguém intencionado o suficiente para que sua intenção seja unicamente prover

bens em vista dos direitos cedidos. Então, por supormos que seja necessário alguém nos

prover, infere-se que damos nosso assentimento aos serviços providos à entidade que é

entendida como a única em condições de provê-los, aquela que não cede direitos: ou

seja, o estado. A ideia é a de que, se usufruímos de serviços que nos são prestados, isso

significa que consentimos com o que nos é dado. Portanto, se eu os uso, é porque eu os

considero necessários. E se eu os considero necessários, dôo meu assentimento a quem

os provê, fechando o raciocínio que garante o assentimento tácito necessário para a

legitimidade do estado.19

Mas tal situação não se configura exatamente como a que é pressuposta numa

celebração de contrato. Num contrato é preciso que o consentimento seja externado

pelas partes: as partes voluntariamente decidem celebrar um pacto, em que uma das

partes, ao ceder direitos, gera na outra deveres decorrentes dessa concessão. Qualquer

ação que tenha em vista forçar uma das partes a celebrar um pacto, tem por

consequência torná-lo nulo, pois pressupor que a parte tem a oportunidade de dar seu

assentimento voluntariamente é pressupor que ela tem o poder de recusa contemplado.

                                                                                                                         19 Para uma leitura mais detida do raciocínio a que me refiro, vide Rawls (1971).

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Não posso pressupor que um contrato foi firmado pelo fato do bem a ser provido ser

alegado como irrecusável, ou que a pessoa iria querê-lo, mesmo não dando seu

assentimento explícito. O problema do assentimento tácito é justamente pressupor que a

pessoa doa assentimento ao que é provido pelo estado conjecturando-se que ela não o

recusaria e que, portanto, iria querê-lo de qualquer forma, i.e., antes mesmo de lhe ser

dada a opção de recusá-lo. Ora, não posso alegar que um contrato foi celebrado

alegando que uma pessoa não iria querer recusá-lo. Tampouco dar um benefício antes

de consultar o suposto beneficiado também não configura uma celebração de contrato

da parte deste. O fato de eu me beneficiar de algo que me foi colocado à força não

produz de minha parte a obrigação de arcar com o ônus desse benefício. Alguém que

conserte algum pertence meu sem, no entanto, ter me consultado, não dá a ele o direito

de me forçar a arcar com possíveis ônus advindos desse benefício, por mais benéfico

que ele tenha sido a mim. Se eu entendo que não estou passível de ser forçado a dar

qualquer retribuição de minha parte que vise compensar o ônus do benefício, então por

que não se extrai a mesma conclusão quando aplicamos este raciocínio à relação entre

estado e indivíduo? O que há nele que nos impede de concluirmos que ele faz o mesmo

que o sujeito acima fez ao dono do pertence? O problema não parece ser diferente em

nenhum aspecto.

Se eu não ofereço o poder de recusa à parte a quem proponho algo, qualquer

coisa que conjecture ser um assentimento não pode ser chamada de “assentimento”.

Logo, forçar alguém a submeter-se a algo, alegando estar buscando um fim benéfico a

esse alguém, não faz disso um pacto. Enquanto não lhe for dado o poder de recusa de

fato, seja quão benéfico for o fim almejado ou proposto, não se celebra um pacto. Na

verdade, extorque-se. Uma pessoa, portanto, somente está comprometida moralmente

com um pacto quando o firmou voluntariamente, i.e., quando lhe foi dada a opção de

assentir ou recusar com o que lhe foi proposto, do contrário, não há razão para afirmar

que houve uma celebração de contrato.

No entanto, quando se protesta contra o estado, porém o reivindicando, damos o

assentimento a este para forçar pessoas a darem assentimento a pactos em vista de fins,

ou seja, eu protesto contra a violência efetuada pelo estado requerendo que ele produza

violência, anulando aquilo que eu mesmo reivindiquei.

Há dois pontos que norteiam a relação entre estado e indivíduos e vista dos quais

conduzirei argumentos: (a) Boas intenções não podem justificar a violação da

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integridade e o arbítrio de pessoas, pois do contrário não faz sentido falarmos em

celebração de contrato. (b) Se um direito ético não é um direito jurídico, a

necessidade ou carência de algo da parte de alguém não gera neste o direito de

requisitar enforcement paraque se contribua com o fim que ele visa perseguir.

Carecer de algo não significa que se sofreu injustiça.20

Em (a), alguém argumentaria que o indivíduo não é tirado de seu poder de

escolha quando pode escolher os serviços que lhe serão oferecidos, inclusive optando

em não usá-los, já que pode optar por pagar a alguma outra iniciativa para provê-lo. O

indivíduo não tem razões para alegar sofrer alguma restrição quando lhe é dada opção

de ser provido pelo estado ou por alguma outra iniciativa que lhe for cabível. Logo, o

indivíduo não pode alegar que foi forçado a celebrar contrato porque ele tem a opção de

celebrar pacto com qualquer outro que ofereça os bens providos pelo estado que ele

recusou usar.

Porém, nesse raciocínio esconde-se justamente o fato de que, apesar do

indivíduo poder escolher não usar dos serviços providos pelo estado, não lhe é dada a

opção de recusar contribuir, ou seja, não é opção não pagar pelos bens que o estado

provê. Ora, não há respeito ao poder de escolha quando alguém já sofreu o ônus de não

poder recusar contribuir com algo com o qual não consentiu. Se me é vedada a opção de

recusar tanto x como y, mas me é dado o poder de escolher x ou y, escolher x ou y não se

configura como uma escolha de fato. Sou livre não quando posso escolher entre x e y,

mas quando posso recusar ambos. Pensemos na seguinte analogia: alguém entra em

minha casa e tem a possibilidade de roubar um pertence P ou uma cartela com 1500

reais em dinheiro. Alguém então me diria que ter roubado o pertence P foi menos

prejudicial que a cartela com dinheiro, pois com a cartela eu ainda posso escolher

comprar outra coisa, inclusive recompensar minha perda comprando um pertence

similar a P, e que, com isso, ainda posso me valer de minha capacidade de escolha. Ora,

eu já tive minha capacidade de escolha prejudicada quando me foi retirado algo sem

                                                                                                                         20Há dois textos sobre os quais me amparo para desenvolver a argumentação apresentada a partir desses dois pontos norteadores colocados acima: Nozick (1974) e Kant (1797: 2013). O primeiro constrói, no texto citado, uma teoria da justiça que visa responder a que fora elaborada por Rawls, com o intuito de mostrar em que medida sua teoria pressupõe que indivíduos tenham direitos violados. O segundo mostra como a ideia de dever jurídico não passa pela de ideia de benevolência, sendo esta abarcada pelo conceito de dever ético. Para uma apreciação mais introdutória das teses que esses autores desenvolvem, vide Sandel (2010).

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meu consentimento. Portanto, poder fazer escolhas com o dinheiro contido na cartela

não significa que eu não tive meu poder de escolha prejudicado. E está no poder de um

indivíduo ter esse direito porque se concedo que não tenho direito ao poder de recusa,

estou a dizer que há escolhas das quais não sou dono, i.e., há escolhas sobre as quais eu

não arbitro. Mas o que me faz ser uma pessoa é ser soberano sobre minhas escolhas,

meu corpo. Por isso pertencer a mim implica pertencer a mim por direito, pois não faz

sentido falar que há algo sobre o qual eu tenho direito se não me é resguardada a posse

desse algo. Logo, não faria sentido dizer em direito a “meu corpo” sem me ser garantido

o direito a tê-lo. Isso significa que há direitos que, se violados, levam uma pessoa a

deixar de ser uma pessoa, pois ela o é na medida em que tem assegurados esses direitos.

Direitos como ao meu corpo e às minhas escolhas, se deixarem de pertencer à pessoa

sobre quem eles recaem, fazem com esta deixe de ser uma pessoa, pois são eles que

tornam a pessoa “pessoa”. Então, se eu sou alienado do direito ao meu corpo e às

minhas escolhas, e qualquer outro direito que seja dito extensão destes, estaria a dizer

que eu não pertenço a mim mesmo, pois aquilo que me faz ser eu enquanto pessoa na

verdade não é meu.

Entendendo que somente perco o direito ao meu arbítrio quando eu violo o

direito de outros de também fazerem uso desse direito, então qualquer ação que eu

venha a efetuar que não cause essa violação me assegura o direito a ação que vislumbro

efetuar. Nessa medida, seja qual for o valor de um fim almejado, ele não pode

constranger aqueles que se valeram do direito de não escolherem persegui-lo, pois a

simples recusa de não perseguir o mesmo fim almejado por outros não viola o direito

destes de também fazerem escolhas. Ou seja, se não viola o direito de outros de fazerem

escolhas, não viola o direito de serem senhores de seus arbítrios, logo, nada justifica

restringi-lo de fazer essa escolha. A condição que justifica sofrer restrições de caráter

jurídico é se eu, fazendo uso do poder de escolha, violo o direito de outros de também

usarem do mesmo poder.

Esse princípio norteia o que se denomina por princípio de não-agressão ou

princípio de não-violência: sou livre na medida em que faço escolhas compatíveis com

o poder de meus pares de também fazerem escolhas.

Porém, o fato de alguém escolher não contribuir com um fim leva a entender que

a pessoa que faz tal escolha agride aqueles que buscam persegui-lo. Entraríamos no que

foi apresentado em (b). Alguém com o intuito de objetá-lo diria que recusar é atrapalhar

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aqueles que se submeteram a um pacto visando determinado fim, pois recusá-lo seria

pôr em risco o êxito dos outros, pois o fim visado será atingido somente com

colaboração unânime. Além disso, beneficiar-se de algo que é fruto da submissão de

outros não é algo justo. Se todos se beneficiam, todos devem arcar com o ônus de

usufruir dos benefícios. Logo, aquele que se recusa a celebrar o pacto comete injustiça e

deve receber enforcement que impeça essa ação. Mas o problema é ser obrigado a arcar

com o ônus de um benefício que me foi imposto. Eu não posso arcar com algo com o

qual não consenti, mesmo que ele resulte em benefícios a mim. O valor dos resultados,

como vimos, não pode ser usado para subjugar o arbítrio dos indivíduos, seja quão

benéfico forem esses resultados. Não é porque algo me foi benéfico, porém colocado a

mim compulsoriamente, que eu tenho obrigações quanto a arcar com possíveis ônus

desse algo.

O que está por detrás desse raciocínio é a ideia de que recusar um pacto não

caracteriza ser obstáculo aos que buscam celebrá-lo. Não contribuir não é atrapalhar

alguém. Posso não contribuir para alguém obter êxito no fim que persegue, mas não o

atrapalho nem o impeço por não ajudá-lo. Não me é colocado que eu contribua com o

fim que indivíduos perseguem para que minha ação seja caracterizada como não-

agressora; tudo que me é colocado é que eu apenas não os atrapalhe quando

perseguirem algo. Logo, se não sou obstáculo a alguém, não se justifica qualquer

obstáculo à escolha que fiz. Não cometo injustiça, nessa medida, quando não atrapalho

outros de perseguirem seus fins, pois só há persecução de injustiça em casos que agrido,

não naqueles em que não contribuo. Posso não ser bom ou nobre ao escolher não ajudar,

de fato, mas nunca estarei sendo injusto enquanto levar a cabo escolhas que não violam

o direito de outros de também perseguirem fins segundo suas escolhas.

A distinção entre bondade e justiça é importante para que não qualifiquemos

como injustos e passíveis de enforcement casos em que se infringe apenas o conceito de

bondade, e não o de justiça. Isso significa que um dever ético não pode ser confundido

com um dever jurídico. Ao infringir o princípio de não-agressão, estou ferindo um dever

jurídico, pois estou me valendo da minha liberdade violando a liberdade de outros,

portanto, sou antiético ao efetuar tal ação. Porém, ao infringir o dever ético de ser

bondoso, por mais que eu não me compadeça com o outro em situação desavantajada, se

não o ajudo, não contribuo para seu fim, é verdade, mas não o impeço de nada e,

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portanto, não estou infringindo o princípio de não-agressão, logo, não posso ser

qualificado como injusto.

Imaginemos o caso de uma pessoa que carece de um rim e de outra que possui

seus rins em perfeitas condições. Por mais que seja ruim estar sob tal situação, isso não

gera naquele que possui o rim saudável o dever de dá-lo ao que carece, sob risco de

sofrer enforcement caso não o doe. Podemos ir além, o de rim saudável pode resolver

vender um de seus rins a alguém ao invés de doá-lo a quem precisa. Mais ainda, esse

alguém a quem ele irá vender seu rim não é necessariamente alguém que necessite dele.

Diante desse cenário, é injusto o que o indivíduo saudável fez? A rigor não. Ainda que

sofra sanções de caráter ético de seus pares e a até de si mesmo, ele não gerou agressão

por não tê-lo ajudado, já que o sujeito saudável, ainda que não contribua para que o

outro persiga seu fim, não o impede de perseguir o que ele almeja. Logo, se não o

impede, não se iniciou violência. Se não se fez isso, não foi violado o princípio de não-

agressão, portanto, não se cometeu nenhuma injustiça. Nesse caso, o indivíduo deixou

de ser bom ou benevolente, mas não se tornou injusto. Fosse assim, o simples fato de eu

ter um rim saudável já se configuraria como algo injusto, já que tê-lo ou decidir o que

fazer com ele se reduz a um mesmo fato: o arbítrio que tenho sobre ele. Se não se

reconhece o direito que tenho de decidir o que farei com o que é entendido como meu,

então não se reconhece o direito de tê-lo, pois não faz sentido não reconhecer meu

arbítrio sobre algo e ao mesmo tempo dizer que o tenho.

Alguém ainda poderia objetar dizendo que no caso da distribuição de riquezas,

há riquezas o suficiente para serem distribuídas de modo a sanar desigualdades. Ao

contrário de órgãos, riquezas podem ser reorganizadas de modo a contemplar aqueles

que necessitam. Logo, há uma configuração justa quando as riquezas se encontram

redistribuídas tendo em vista atender disparates no que se refere a bem-estar, i.e.,

maximiza-se sua utilidade gerando o menor dano possível de quem se retira e o maior

benefício a quem o recebe. Porém, podemos ir além e pensar numa situação em que

todos gozam do mesmo acesso a bens e riquezas e, portanto, não se encontram em

disparate social algum. Suponhamos então que alguém queira abrir mão de parte de suas

riquezas e aplicá-las em aulas de música de um professor que ele julga oferecer um

serviço cuja qualidade vale a quantia aplicada, a ponto de se abdicar de outras coisas

para poder usufruir de algo que ele julga valer a pena. O resultado é a transferência de

riquezas de um para outro, de modo que estas se reorganizarão a ponto de nos

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apresentar um cenário em que haverá a posse desigual de riquezas. Porém, eu posso

inferir a partir desse cenário que há um disparate de bens e, portanto, um cenário no

qual haveria injustiça? Parece que não, ambos obtiveram o bem que perseguiam, logo,

do ponto de vista do bem-estar, ambos gozam do mesmo estatuto. Logo, um disparate

de riquezas não implica um disparate de bem-estar. A mera constatação de disparate de

riquezas não nos permite inferir que haja um cenário no qual tenha ocorrido injustiça.

Ademais, o que justifica impedir uma pessoa de querer voluntariamente ceder parte do

que lhe pertence a um serviço oferecido por outro, mesmo que isso venha gerar

disparates de riquezas entre ela e aquele que lhe ofertará o serviço? Não faz sentido

proibi-la de abrir mão de suas riquezas se é do próprio interesse dela abrir mãos de suas

riquezas.

Podemos ir além. Pensemos em casos em que me disponho a aplicar parte do

que tenho em algo que seja além do que me é necessário, pelo simples fato de ser algo

que me satisfaça. Eu me disponho a abrir mão de parte do que é meu para transferi-lo a

outro em troca do bem oferecido. Novamente a pergunta se coloca: o que justifica

impedir alguém de se abdicar de algo em troca do que ele persegue quando ele próprio

está disposto a fazer isso? Alguém responderia que há casos em que ela não pode querer

isso para ela mesma, pois mesmo que haja disparate de riquezas, o fato dela pôr em

risco algum bem que lhe diz respeito a sua própria manutenção, toda e qualquer pessoa

que vise isso deve ser impedida. Mas alguém que respondesse isso teria o ônus de

aplicar o raciocínio a ele mesmo, i.e., de poder sofrer enforcement por querer algo cujas

conseqüências ele consentiu em arcar. P. ex., se entendo que, ainda que fumar me traga

malefícios à saúde, é de minha escolha fazer isso e por isso entendo que ninguém está

apto a me impedir de levar a cabo uma ação que me voluntariei em fazer e cujos

prejuízos incidirão tão somente em mim. Portanto, se entendo que nem indivíduos, nem

o estado, podem me proibir de perseguir esse fim, por que eu concordaria que pessoas

dispostas a abrir de bens que lhe são ditos essenciais não podem efetuar tal ação? O que

há de moralmente nobre em mim que não há nos outros que também querem se valer do

mesmo princípio? É preciso mostrar em que medida há injustiça quando alguém

voluntariamente se dispõe a arcar com possíveis prejuízos, além de ter que mostrar em

que medida uma configuração de disparate de riquezas me autoriza a dizer que há

disparate de bem-estar quando esse disparate é resultado de relações que se deram de

modo voluntário e, portanto, de modo que nenhuma das partes tenha iniciado agressão.

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Se entendo que não há injustiça quando relações são pactuadas voluntariamente,

então por que qualificar como agressora uma ação na qual não houve violação do

princípio de não-agressão? Logo, alguém não pode ser considerado agressor por recusar

a celebração de um contrato, já que, como vimos, recusar, ainda que não ajude, não

atrapalha a persecução de um fim, logo, não há agressão nessa escolha.

Porém, o estado, além de fazer uso da força tendo em vista obrigar pessoas a

darem assentimento a ele, chama de agressor o agredido quando este clama pelo direito

de recusar algo. Não parece então razoável reivindicar pela eficácia de uma entidade,

mas não reivindicar pelo direito de recusá-la. Disso concluo que as reivindicações de

Junho se mostraram dispostas a protestarem apenas pela eficácia, mas não contra a

violência originária do estado. Se protesto contra a arbitrariedade de ações, eu não posso

me valer disso e permitir que haja algo tão arbitrário quanto as ações contra as quais eu

protesto. Por essa razão, o apelo à atuação das instituições do estado para sanar os

problemas em razão dos quais protestam se mostra um tiro no pé.

Referências:

KANT, I. Metafísica dos costumes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1797: 2013.

NOZICK, R. Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974.

RAWLS, J. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.

SANDEL, M. Justice: What's the right thing to do? London: Macmillan, 2010.

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STATUS MORAL EMBRIONÁRIO E ABORTO: UMA

PERSPECTIVA DA NOVA TEORIA DO DIREITO NATURAL

Camila Pilotto Figueiredo

Graduanda em Filosofia na UFPel

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar a perspectiva dos filósofos John Finnis e Robert George no que diz respeito ao status moral do embrião e suas consequências para a questão do aborto. Inicio o artigo apresentando de modo geral a Nova Teoria do Direito Natural, já que os argumentos dos autores com respeito ao status moral do embrião possuem como pano de fundo tal teoria. Em um segundo momento, exponho o núcleo argumentativo dos autores e suas consequências para a questão do aborto. Finalmente, apresento objeções feitas aos filósofos e as réplicas fornecidas pelos mesmos, refletindo nas considerações finais a respeito do trabalho apresentado. Palavras-Chave: Aborto, Direito Natural, Embrião, Status Moral.

Abstract: This essay aims to present John Finnis’s and Robert George’s perspective on the moral status of the embryo and it’s consequences for abortion. I start the article presenting the New Natural Law Theory, since the author’s arguments are based in such theory. In a second moment, I expose the argumentative core from the philosophers and it’s consequences for abortion issues. Finally, I show some objections made to Finnis and George, reflecting about the issues treated on the final considerations. Keywords: Abortion. Embryo. Moral Status. Natural Right.

1. Noções Preliminares acerca da Nova Teoria do Direito Natural

Durante o século XX, o teólogo Germain Grisez, ao propor uma nova leitura do Direito

Natural em Santo Tomás de Aquino, deu início a uma corrente denominada “Nova

Teoria do Direito Natural”21. Tal corrente possui entre seus principais expoentes o

filósofo australiano John Finnis e o professor de jurisprudência Robert P. George. O

                                                                                                                         21 Apesar da reconhecida influência de Tomás no pensamento dos ‘novos filósofos do direito natural’, não faz parte do objetivo desse artigo discutir a polêmica gerada pela interpretação de Grisez entre os estudiosos de Santo Tomás de Aquino.

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pensamento dos autores mencionados se harmoniza compartilhando de princípios

fundamentais que serão expostos ao longo do artigo.

A teoria jusnaturalista de Finnis visa compreender e ampliar o entendimento

sobre como a lei natural de Tomás de Aquino dá fundamento ao raciocínio e às ações

práticas. Segundo Tomás, a razão deve mover-se dos princípios gerais que são dados

pela lei natural aos mandamentos particulares, ou seja, às leis humanas. Com inspiração

nesse pensamento, os novos filósofos do direito natural entendem que a lei natural, ou

seja, a razão prática, é basilar na justificação moral da conduta humana, bem como das

instituições políticas e sociais, o que significa que a descoberta do fundamento das

nossas ações ocorre através da análise do processo do pensamento prático, de modo que

através dessa análise, descobrimos o que é bom ou razoável para nós. Tanto em Tomás

quanto em Finnis, portanto, a razão prática expressa a tendência básica da razão com

relação ao bem permitindo o reconhecimento fundamental de bens humanos básicos

objetivos. Independentes da razão do sujeito, embora descobertos por ela. Para clarificar

esse ponto, vejamos a afirmação de Finnis:

A minha tese, então, é a seguinte: o entendimento primário de alguém sobre o bem humano e sobre o que é valoroso para seres humanos almejarem, fazerem, terem ou serem é alcançado quando se considera o que seria bom e valoroso fazer, pegar, ter e ser – isto é, por definição quando alguém está pensando praticamente22.

Ou seja, é a partir da razão prática que chegamos ao conhecimento dos bens

humanos básicos, o que significa que não partimos de descrições de como o mundo ou o

comportamento humano é para a partir disso derivarmos regras e deveres morais23. Com

base na razão prática, então, Finnis explica que os valores não podem ser calcados na

subjetividade individual, pois são passíveis de discussão racional, podendo ser

explicados objetivamente, já que são autoevidentes24, alcançados por meio da avaliação

das ações humanas e das instituições criadas pelos mesmos.

Em suma, a razoabilidade prática é descrita como a razão orientada para o agir,

“a razoabilidade ao decidir, ao assumir compromissos, ao eleger e executar

projetos, e, em geral, de atuar”25. Esses princípios práticos quando realizados nos

                                                                                                                         22 FINNIS (2007,p.12). 23 Essa é a estratégia de Tomás de Aquino utilizada por Finnis para evitar incorrer na falácia naturalista. 24 Dizer que os bens humanos básicos são autoevidentes significa dizer que podemos alcançá-los usando a razão para alcançá-los através do intelecto, de modo que não necessitariam sequer de demonstração posterior. 25 FINNIS (1980, p.12)

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tornam pessoas melhores e são conhecíveis de modo prático, por meio da percepção de

quais são ações que selecionamos como boas para as praticarmos. Desse modo, como

Sgarbi (2007, p.665) deixa claro, “este modo de operar de nossa inteligência como

princípios para a ação é que se denomina “razão prática”, e que estas razões últimas,

que oferecidas pelo intelecto são possibilidades de nossa própria natureza são, enfim,

aspectos de nosso bem-estar como pessoas”.

Com o que foi dito se percebe que essa teoria possui o propósito de identificar os

princípios mais gerais da moralidade, aqueles que as pessoas sempre escolheriam e que

possibilitariam a ação direcionada à realização moral integral dos seres humanos. De

fato, o primeiro princípio da moralidade, elencado por John Finnis em 1984 é “deve-se

eleger e querer aquelas e apenas aquelas possibilidades cujo desejo seja compatível com

o desenvolvimento humano integral” (FINNIS, 1987, p. 283). E o desenvolvimento

humano integral será dado através das formas de florescimento humano, os bens básicos

que, por serem objetivos, são invioláveis.

É a razoabilidade prática que permite com que reconheçamos a evidência dos bens

humanos básicos. De fato, Finnis percebe que nos mais diversos períodos da

humanidade e nas mais variadas culturas há o reconhecimento dos bens humanos

básicos por parte dos povos, como a valorização da vida humana, por exemplo. Esses

bens humanos básicos, segundo John Finnis, são necessários para o florescimento

humano26 – que se assemelha à concepção de eudaimonia aristotélica, ou beatitude, de

Tomás – devendo por isso ser fomentados. Segundo George, esses bens são as

dimensões mais fundamentais do nosso bem-estar, nos preenchendo nas várias

dimensões de nosso ser. São bens básicos porque nos dão razões para agir que não

precisam se sustentar em outra razão para reconhecermos sua inteligibilidade e

atratividade. Ou seja, não são bens instrumentais, possuídos para nos ajudar a alcançar

outra coisa, mas sim bens racionalmente possuídos por eles mesmos e que, tais como

são, realizam-nos em certos respeitos como pessoas humanas.

Entre os bens humanos básicos27 reconhecidos por Finnis interessa para a temática

do artigo o bem humano básico vida. Tal bem humano básico diz respeito ao impulso de

                                                                                                                          27 No capítulo IV do livro Lei Natural e Direitos Naturais John Finnis enumera sete bens humanos básicos, que caracterizam-se como pré-morais, não hierárquicos, autoevidentes, universais, fundamentais e incomensuráveis. Além disso, explica que os bens básicos não se esgotam nestes, podendo ser

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preservação da mesma, abrangendo também, além da saúde física, a saúde mental, e o

impulso da reprodução como forma de gerar vida. Se o bem humano básico vida é um

bem que deve ser fomentado entre as pessoas humanas, sendo objetivo e inviolável,

deve-se questionar quais seres possuem status moral. Assim saberemos se o embrião

está excluído do conjunto de pessoas e não precisa ter sua vida resguardada ou se o

embrião deve ter sua vida protegida.

1.1.O Status Moral Embrionário

Robert George, a partir de argumentos fundados na teoria do direito natural, procura

demonstrar que podemos argumentar contrariamente ao aborto, apontando para sua

ilegitimidade moral. O autor parte do reconhecimento da inteligibilidade de certos bens

que são descobertos pela razão prática, dentre os quais está a vida humana, e o faz sem

apelar a elementos metafísicos/religiosos. Seu fundamento está no que John Rawls

chamava decommon humanreason, que se caracteriza por ser um poder que os seres

humanos adultos exercitam em virtude do desenvolvimento de uma capacidade natural e

inerente que é possuída pelos seres humanos de forma radical desde o início de suas

vidas – capacidade existente pelo fato de serem seres humanos28.

O ponto fundamental da argumentação de Robert P. George vem da embriologia

e tanto ele quanto John Finnis compartilha do pensamento de que o embrião é uma

instância do indivíduo humano adulto, o que significa dizer que uma há identidade

física entre eles, uma linha de continuidade que se desenvolve iniciando com o período

embriológico, passando pelos estágios fetal, infantil, adolescente, adulto, idoso e

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     adicionados outros bens básicos a lista. De fato, em 2008 inclui entre os bens humanos básicos o casamento – publicando um artigo com tal inclusão em 2011. Os oito bens humanos básicos são 1.Vida- concerne ao impulso elementar de autopreservação, envolvendo não só a saúde física, mas também mental. O 2.Conhecimento - é buscado pela mera curiosidade, sendo um bem buscado de modo não-instrumental. O 3.Jogo - Segundo Finnis, o jogo diz respeito ao engajamento através de atividades que não possuem outro propósito senão seu próprio desempenho, sendo desfrutadas por si mesmas. 4.Experiência estética- Envolve o impulso para criar algo belo. 5.Sociabilidade - Envolve o estabelecimento de relações pacíficas entre os indivíduos, alcançando sua forma máximana “amizade”. 6. Razoabilidade prática - é a capacidade de utilizar-se com eficiência a inteligência nos problemas de escolher as ações, o estilo de vida e de dar forma ao caráter. Implica na busca por uma ordem nas ações, dando a elas um aspecto razoável. 7.Religião - envolve o reconhecimento de uma ordem de coisas que está além do humano, se tratando de algo razoável, mesmo que cheguemos ao agnosticismo ou ao ateísmo. 28GEORGE; TOLLEFSEN (2011, locais do Kindle2133-2135).

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terminando com a morte. Essa identidade física mostra que todas são etapas de uma

mesma entidade e busca-se evidenciar através disso que, do mesmo modo que a etapas

maduras de desenvolvimento são atribuídas pessoalidade, o mesmo ocorre com o

embrião, pois essencialmente o ser é o mesmo, sendo características acidentais que

diferenciam as etapas de desenvolvimento.

Ambos os autores se utilizam de estudos da embriologia para provar que o

embrião é um ser humano e também uma pessoa. De acordo com George, a embriologia

moderna29 mostra que:

1) O embrião é um organismo vivo, pois ele preenche os requisitos fundamentais

para estar vivo: 1. metabolismo30, 2. crescimento, 3. reação a estímulos e 4.

reprodução (gera entidades semelhantes a si próprio). Nesse sentido, o embrião

não é um mero agregado de células, dado que um mero agregado de células não

possui a capacidade de atuar teleologicamente em direção a uma forma cada vez

mais complexa.

2) O embrião é desde o início distinto de qualquer célula da mãe ou do pai, pois o

embrião se desenvolve em sua “direção própria” e seu crescimento é

internamente direcionado para sua própria sobrevivência e maturação. Isso

significa que ele não é parte nem da mãe nem do pai, não se identificando nem

com o espermatozoide nem com o óvulo31.

3) O embrião é um organismo completo, embora imaturo. A partir da concepção, o

embrião humano é completamente programado e possui a disposição ativa para

se desenvolver no próximo estágio maduro de um ser humano. Assim,

imediatamente após a união do espermatozoide com o óvulo passa a existir um

                                                                                                                         29GEORGE; TOLLEFSEN (2011, locais do Kindle 800-811). 30Metabolismo é a soma de processos químicos e físicos que ocorrem dentro de um organismo vivo, sendo dividido em catabolismo - quebra de uma substância para obter energia – e anabolismo - capacidade que o organismo possui de transformar uma substância em outra que sirva para seu desenvolvimento e reparação. Disponível em< http://www.todabiologia.com/dicionario/metabolismo.htm> . Acesso em: 18 jul, 2014. 16:40. 31 De fato, esperma e óvulo são partes do organismo humano, o esperma é parte do homem e o óvulo da mulher. Nós não devemos nos enganar pelo fato de que o esperma, por exemplo, possui cauda, pode nadar e pode sobreviver por certo tempo dentro da fêmea. Local fixo dentro de um organismo não é necessário nem suficiente para algo ser parte de um organismo. Ao invés, uma parte de um organismo biológico é um subconjunto vivo das células que compõem a totalidade do organismo, a vida do qual o subconjunto é integrado na vida do todo e que realiza um papel funcional unificado dentro do organismo. Ver. GEORGE; TOLLEFSEN (2011, locais do Kindle 566-576).

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sistema biológico individual, com um “programa” de desenvolvimento que o

levará, em princípio, à maturidade. Trata-se de um organismo dotado da

capacidade para desenvolver suas capacidades durante a vida. Tal capacidade

está presente desde a concepção. E de fato, o embrião se desenvolve, desde o

início, teleologicamente (a partir de uma finalidade imanente), com o propósito

(imanente) se desenvolver e sobreviver, possuindo um desenvolvimento

organizado, já que ele possui recursos internos que lhe permitem se desenvolver

ativamente rumo aos estágios seguintes.

4) O embrião é humano, já que ele possui a constituição genética32 e primórdio

epigenético 33 característico de seres humanos [membros da espécie homo

sapiens]. A respeito disso, Robert George afirma:

O embrião humano possui todo o material genético necessário para informar e organizar seu crescimento. A direção do seu crescimento não é extrinsecamente determinada, mas está de acordo com a informação genética dentro dele. Além disso, a não ser que seja privado de um ambiente adequado ou impedido por algum acidente ou doença, o embrião se desenvolve ativamente em direção à maturidade. Assim, ele não só possui toda a informação organizacional necessária para a maturação, mas ele possui uma disposição ativa para se desenvolver usando essa informação. O embrião humano é, então, um organismo humano completo e distinto (embora imaturo), ou seja, é um ser humano34.

Então, segue-se que um embrião é um ser humano porque é um organismo completo

e unitário [indivíduo] da espécie Homo Sapiens.

Ao mostrar que o embrião é um ser humano, seu próximo passo é identificar o

conceito de ser humano ao conceito de pessoa. George explica que uma pessoa humana

é um membro da espécie humana, pois ser uma pessoa é ser um indivíduo – organismo

unitário completo – que possui uma natureza racional (característica da espécie Homo

Sapiens), e os seres humanos são indivíduos possuidores de uma natureza racional em

qualquer estágio de sua existência – inclusive no estágio embrionário. Percebe-se, então,

que para George, todo o ser humano é uma pessoa, de forma que tais conceitos se

                                                                                                                         32 O genoma é o código genético do ser humano, ou seja, o conjunto dos genes humanos. No material genético podemos obter todas as informações para o desenvolvimento e funcionamento do organismo do ser humano. Este código genético está presente em cada uma das células humanas. Disponível em <http://www.todabiologia.com/genetica/genoma.htm>. Acesso em 20 jul, 2014. 18:20. 33No seu sentido literal, a palavra epigenética significa “fora da genética convencional”, sendo o termo utilizado para descrever o estudo de alterações herdáveis e estáveis no potencial de expressão de genes que possam surgir durante o desenvolvimento embrionário ou proliferação celular (JAENISCH; BIRD, 2003). 34 GEORGE; TOLLEFSEN (2011, locais do Kindle 846-850).

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identificam, já que a natureza racional que atribui pessoalidade ao ser humano é uma

característica dos seres humanos da espécie homo sapiens.

1.2. Consequências do status moral do embrião no caso do aborto

Finnis afirma que, se consideramos os não nascidos pessoas, como é

considerado por ele e por George, então os princípios de justiça e não maleficência35

proíbem qualquer tipo de aborto, a saber, qualquer procedimento realizado com a

intenção de matar ou interromper o desenvolvimento de uma criança não nascida.

Por conseguinte, o filósofo jusnaturalista faz uma distinção entre abortos diretos

e abortos indiretos, afirmando que a palavra ‘direto’ se refere às razões do procedimento.

Afirma que qualquer coisa que seja escolhida como um fim ou, mesmo que de forma

relutante, como um meio, é diretamente desejado. Já aquilo que pode ser classificado

como apenas um efeito colateral não intencional é indiretamente desejado36. Finnis

deixa claro que o aborto direto é incorreto em qualquer circunstância, enquanto o aborto

indireto nem sempre é errado. Finnis corrobora alguns princípios éticos que regem os

procedimentos terapêuticos que impactam fatalmente na criança37:

1) A morte direta de um inocente é sempre errada. Essa regra não dá espaço

para a escolha de matar um inocente para salvar ou para prevenir a morte de

outros.

2) No que diz respeito ao direito à vida, todo o indivíduo humano vivo é igual a

qualquer outra pessoa humana. Portanto, todo indivíduo humano vivo deve

ser cuidado e tratado como uma pessoa e toda a pessoa humana inocente

possui o direito de nunca ser diretamente morta.

                                                                                                                         35 De acordo com os bioeticistasBeachamp e Childress, o princípio da não-maleficência é sintetizado na máxima hipocrática primum non nocere (em primeiro lugar, não causar dano), tendo, entre suas regras ‘não matar’ e ‘não privar os outros dos bens necessários à vida’. Já o princípio da justiça é sintetizado na máxima ‘Trate equitativamente as pessoas’. Os autores definem o justo como um tipo de tratamento que leva em consideração o que é devido a cada um. Ver. DALL’AGNOL (2004, p.38, 48). 36 Penso que o melhor termo para exprimir o pensamento de Finnis quanto a ‘efeitos colaterais não intencionais’ não seria ‘indiretamente desejado’, mas ‘indesejado’. Entretanto, Finnis não fornece uma explicação do termo, apenas o denomina desse modo. Ver. Finnis (1994 p.551). 37 FINNIS (1994 p.551-552).

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3) O não nascido jamais pode ser considerado um agressor, pois agressão

implica ação e é apenas a existência e o funcionamento vegetativo do não

nascido que pode dar origem a problemas para a vida ou a saúde da mãe.

4) Desde que uma ação que causa morte ou injúria não seja escolhida como um

meio de preservar a vida, uma ação necessária para preservar a vida de

alguém pode ser permitida mesmo se trouxer a morte ou injúria de outros38.

5) Nem toda a morte indireta é permissível; às vezes, apesar de ser indireta, é

injusta, pois pode haver uma alternativa não mortal ao procedimento que

acarretou na morte que poderia ser usada para preservar a vida.

Finnis argumenta que uma lei justa, que proíbe a possibilidade de matar o não-

nascido, não pode preferencialmente permitir a morte dele para salvar a mãe, pois essa

visão contraria o princípio de tratar os seres humanos como fins em si mesmos,

estabelecendo a prioridade de sempre salvar a vida da mãe em detrimento da vida do

não nascido. Os requerimentos de uma ética médica devem primar pela salvação da vida

tanto da mãe quanto da criança, sendo admitido um procedimento que pode

adversamente afetar a vida do outro desde que tal procedimento seja o mais efetivo para

aumentar a probabilidade de que um ou outro, ou ambos, sobrevivam.

Ainda quanto ao aborto indireto, não contraria o princípio de justiça quando

quatro condições são satisfeitas na mesma situação: (1) quando uma patologia ameaça a

vida tanto da mãe quanto da criança, de modo que (2) não é seguro esperar, ou esperar

pode resultar na morte de ambos e, além disso, (4) não há como salvar a criança; e (5) a

operação que salvará a mãe resultará na morte do filho39. Ou seja, nesse caso é

permitido o aborto indireto porque de qualquer modo o bebe morrerá, sendo que se o

aborto não for realizado, a vida da mãe também estará em risco; por isso considera-se

aqui que não está havendo uma primazia da vida da mãe sobre a vida do filho.

                                                                                                                         38 Isso significa que jamais se pode agir escolhendo matar um com vistas a garantir a vida de outro. Esse princípio é utilizado por Finnis para esclarecer que, nos casos de aborto, a morte de outro não é imoral se esta for um efeito colateral indesejado da tentativa de salvar um ser, pois, nesse caso, não se terá agido com intenção de o matar. Outro exemplo que se aplica a esse item é o descrito no primeiro parágrafo da página seguinte, pois, no caso em questão, a ação se dará com vistas a salvar a maior quantidade de vidas possível. 39Finnis cita como exemplo de caso moderno em que encontramos essas condições o de gravidez ectópica (no qual o embrião não pode ser transplantado do tubo ao útero com sucesso).Ver. FINNIS (1994, p. 547-557).

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Em relação ao estupro, os argumentos de Finnis e Robert P. George também o

levam a considerar que os procedimentos realizados para aliviar uma mulher dos efeitos

corporais de um estupro são injustos com a criança não nascida, que é inocente dos

erros do pai. Entretanto, caso seja adotado um procedimento como a ‘pílula do dia

seguinte’ com o intuito de prevenir a concepção após o estupro, mesmo que tal

procedimento envolva algum risco de causar aborto como efeito colateral, não deve

haver algum julgamento que considere o procedimento injusto com não-nascido, já que

o aborto seria nesse caso indireto.

1.3.Objeções aos autores e respectivas réplicas

Nesse momento, apresentarei três das objeções mais importantes que

costumeiramente são feitas aos filósofos da nova teoria do direito natural, apresentando

suas respostas aos questionamentos levantados.

1. É comum objetar-se que o embrião não possui capacidade imediatamente

exercitável de sua racionalidade e por isso não merece respeito moral.

George realiza uma distinção entre dois sentidos do termo capacidade para funções

racionais: uma imediatamente exercitável e uma capacidade natural básica, que se

desenvolve durante o tempo. O autor considera que há boas razões para sustentar que o

segundo tipo de capacidade é o fundamento para o respeito moral completo. Segundo

George, se alguém que sustenta a visão de que um ser só merece respeito moral

completo se possuir capacidades imediatamente exercitáveis deveria ter em mente que o

ser humano em desenvolvimento não alcança um nível de maturidade no qual possa

realizar um tipo de ação mental que outros animais não realizam – mesmo animais

como cachorros e gatos – até pelo menos vários meses após o nascimento. Um bebê de

seis semanas de vida não possui a capacidade imediatamente exercitável para realizar

funções mentais caracteristicamente humanas. Assim, se o respeito moral completo

fosse devido apenas àqueles que possuem capacidades imediatamente exercitáveis, se

seguiria que crianças de seis semanas não mereceriam respeito moral completo.

George defende, então, que as pessoas não precisam estar atualmente

conscientes, raciocinando, deliberando, fazendo escolhas, para merecerem respeito

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moral, pois claramente pessoas que estão dormindo ou em um estado de coma

reversível merecem tal respeito. Com certeza, seres humanos nos estágios embrionário,

fetal e infantil não possuem capacidades imediatamente exercitáveis para funções

mentais executadas pela maior parte dos seres humanos em estágios mais tardios de

maturidade. Mesmo assim, eles possuem de forma radical essas capacidades.

Precisamente em virtude do tipo de entidade que são, eles estão desde o início

ativamente desenvolvendo a si mesmos em estágios nos quais essas capacidades irão ser

imediatamente exercitáveis.

2. Peter Singer, na obra Ética Prática, realiza uma crítica que se aplica à defesa dos

pensadores da nova teoria do Direito Natural, afirmando que o embrião não possui

nenhuma característica de individuação, e que seres humanos são indivíduos. Dessa

forma, enquanto houver possibilidade de o embrião se dividir e formar gêmeos

haverá não um indivíduo, mas um aglomerado de células. Para ilustrar o problema,

Singer coloca a seguinte hipótese: Suponhamos que temos um embrião dentro de um recipiente, numa mesa de laboratório. Se pensarmos nesse embrião como o primeiro estágio de um ser humano individual, poderíamos chamá-lo de Mary. Mas suponhamos, agora, que o embrião se divide em dois embriões idênticos. Um deles ainda é Mary, e o outro Jane? Se assim for, qual dos dois é Mary? Não existe nada que os diferencie, nenhum modo de dizer que o que chamamos de Jane tenha se separado do que chamamos de Mary, e não vice-versa. Portanto, deveríamos dizer que Mary já não está entre nós, mas que, em vez disso, estamos diante de Jane e Helen? Mas o que foi que aconteceu com Mary? Morreu? Devemos lamentar a sua morte?40

Robert P. George está ciente dessa crítica e, de fato, afirma que ‘a maioria de nós’

passou a existir a partir da fertilização porque há exceções sobre a afirmação do início

dos seres humanos, já que gêmeos idênticos não vêm a existir separadamente no

momento da fertilização. Pelo menos um embrião vem a existir mais tarde, caso se

divida em dois seres humanos geneticamente idênticos. Todavia, disso não se decorre

que o embrião não deva ser considerado um organismo unitário completo, ou seja, um

indivíduo. O filósofo explica que

se as células individuais dentro do embrião antes da geminação fossem independentes das outras, não haveria razão para que cada uma não se desenvolvesse regularmente por si mesma [independentemente]. Em vez disso, essas células que alegam independência e incomunicabilidade regularmente funcionam juntas para se desenvolverem em um membro único e mais maduro da espécie humana. Esse fato mostra que a interação está

                                                                                                                         40SINGER (2006, p.166).

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ocorrendo entre as células desde o início (...). Assim, antes de uma divisão extrínseca das células do embrião, essas células juntas constituem um organismo único. Então, o fato da geminação não mostra que o embrião seja uma mera massa incidental de células. E a evidência contra essa afirmação da mesma forma serve para refutar o primeiro argumento, que o embrião não possui a unidade de um ser vivo único. Em vez disso, a evidência claramente indica que o embrião humano, do estágio embrionário em diante, é um organismo humano unitário41.

Da afirmação do autor parece ser possível extrair, então, que antes do período em

que é possível a geminação, os gêmeos posteriores eram apenas indivíduo, vindo a

existir separadamente após a divisão do indivíduo em dois.

3. Por fim, o Dr. Michael Gazzaniga sugere que a pessoa humana vem a existir apenas

com o desenvolvimento cerebral e que antes desse ponto nós realmente temos um

organismo humano, mas que não possui dignidade nem direitos de uma pessoa. Ao

desenvolver sua argumentação, Dr. Gazzaniga observa que a medicina moderna

trata a morte cerebral como a morte da pessoa, mesmo no caso em que alguns

sistemas físicos estão funcionando. Portanto, se um ser humano não é mais uma

pessoa com direitos uma vez que o cérebro tenha morrido, então certamente um ser

humano não é ainda uma pessoa antes do desenvolvimento cerebral.

Quanto a essa objeção, Robert George afirma que a base lógica da morte

cerebral não é que um corpo com morte cerebral não seja mais uma pessoa. Antes, a

morte cerebral é aceita porque o colapso irreversível do cérebro destroi a capacidade

para funcionamento orgânico integral auto-direcionado dos seres humanos que

amadureceram até o estágio em que o cérebro realiza o papel chave na integração do

organismo. Isso significa que o que interessa para a atribuição de vida humana é essa

capacidade para funcionamento orgânico auto-direcionado, que já ocorre desde a

formação do embrião, sendo independente da existência do cérebro até que tal seja

desenvolvido. Assim, quando ocorre a morte cerebral, a vida humana acaba porque essa

capacidade cessa, capacidade que, se contarmos desde a formação do embrião, não foi

exclusivamente dependente do cérebro.

Além disso, o doutor não deixa claro o que compreende por desenvolvimento

cerebral ou que estágio do desenvolvimento cerebral deveria ser considerado para

atribuir pessoalidade a um ser humano, já que mesmo depois do nascimento o cérebro

                                                                                                                         41 GEORGE; TOLLEFSEN (2011, Locais do Kindle 2327-2330).

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continua se desenvolvendo, tanto no sentido de aprimoramento das faculdades

cognitivas quanto no sentido de aumento de tamanho.

2. Considerações Finais

Pretendi, nesse artigo, apresentar os argumentos de Robert P. George e John Finnis

quanto ao status moral do embrião, trazendo as consequências desse status para a

questão do aborto, de modo a evidenciar sua imoralidade. Gostaria de salientar que não

considero que tais argumentos dêem por finalizado o debate, mas avalio que em tais

argumentos encontramos instrumentos valiosos para pensar sobre a temática do aborto

através da perspectiva moral. Percebe-se que dele decorrem certas conseqüências –

como o fato de que gêmeos foram, em certa etapa, um só indivíduo – que não são

facilmente aceitas por nós devido ao nosso entendimento ordinário de certos termos –

nesse caso de indivíduo –, todavia, não se segue que do fato de termos dificuldade em

aceitar determinadas consequências que o argumento não seja razoável ou de que o

termo seja inadequado.

Ainda, é necessário deixar claro que a perspectiva aqui apresentada não é contra

a autonomia da mulher perante o seu corpo, pois a partir do que foi dito, pode-se

afirmar que a mulher tem direito a fazer o que quer com seu corpo, mas não pode fazer

o que bem entende com o embrião ou o feto, pois estes não são parte ou órgãos da

mulher, mas organismos diferentes.

De fato, considero que o debate do aborto traz a tona questões fundamentais para

o entendimento de nós mesmos, questões que dizem respeito ao início da vida humana e

de nosso entendimento como pessoas, sendo necessário que vejamos com seriedade tal

debate, já que estamos pensando sobre a moralidade de interromper a vida humana

intencionalmente.

Referências:

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DALL’AGNOL, Darlei. Bioética: princípios morais e aplicações.Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

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BERTRAND RUSSELL: O ELOGIO AO ÓCIO

Vinicius de Miranda Leite

Graduando de Filosofia na UFRJ

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a relação do homem com o trabalho e o ócio, ressaltando a importância de uma revalorização do ócio e da diminuição da jornada de trabalho. Recorro as ideias levantadas em “O Elogio ao Ócio” por Russell, destacadas em “A Economia do Ócio” por Domenico De Masi.

Palavras-chave: Ócio. Russell. Trabalho.

Abstract: This work’s goal is to analyse the relationship between man, labour and idleness, highlighting the importance of a revaluing of idleness and the decrease of work hours. I resort to ideas mentioned by Russell in “In praise of idleness”, and highlighted by Domenico De Masi in “Economia dell’ozio”.

Keywords: Idleness. Russell. Labour.

O ELOGIO AO ÓCIO

Como todos de sua época, Russell foi criado com a mentalidade do trabalho,

onde o ócio seria algo negativo.

Como muitos homens da minha geração, fui educado segundo os preceitos do

provérbio que diz que o ócio é o pai de todos os vícios. E, como sempre fui

um jovem virtuoso, acreditava em tudo que me diziam, e foi assim que a

minha consciência adquiriu o hábito de me obrigar a trabalhar duro até hoje.

(RUSSELL, 2002:23)

Contudo, suas opiniões se transformaram: as pessoas trabalhavam demais,

sobretudo nos países industrializados. Lutar por algo diferente do que se apregoa é

necessário.

Do início da civilização até a Revolução Industrial, um trabalhador era capaz de

produzir o suficiente para si e sua família com um pequeno excedente, que não ficavam

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para eles, era destinado aos guerreiros e sacerdotes. Evidente que o instinto natural dos

camponeses seria gerar menos ou consumir mais e que, portanto, no início eles foram

forçados a produzir mais e entregar o excedente. Este regime perdurou por tanto tempo

que daí derivaram as ideias do caráter virtuoso do trabalho, inadequadas devido a sua

origem pré-industrial.

[...] A moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro

de certos limites, deixe de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se

torne um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a

coletividade. A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo

moderno não precisa da escravidão. (RUSSELL, 2002:27)

Antes, o lazer de uns poucos era sustentado pelo trabalho da maioria. Sendo algo

benéfico, todos deveriam ter direito, e a técnica moderna tornou possível sua

distribuição sem nenhum prejuízo à civilização.

A técnica moderna tornou possível a drástica redução da quantidade de

trabalho necessária para garantir a todos satisfação de suas necessidades

básicas. Isto ficou claro durante a Primeira Guerra Mundial. Todos os

membros das forças armadas, todos os homens e mulheres engajados na

produção de munições, na espionagem, na propaganda de guerra e nas

funções de governo ligadas à guerra foram sacados das ocupações produtivas.

Apesar disso, o nível geral de bem-estar físico entre os assalariados não

qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes ou até depois da

guerra. A guerra demonstrou claramente que, por meio da organização

cientifica da produção, uma pequena parte da capacidade de trabalho do

mundo moderno é suficiente para que a população desfrute um nível de

conforto satisfatório. E se, ao final da guerra, tivesse sido preservada a

organização científica criada para liberar os homens para a tarefa de lutar e

municiar, e se a jornada de trabalho tivesse sido reduzida a quatro horas,

estaria tudo certo. Em vez disso, foi restaurado o antigo caos – aqueles cujo

trabalho era necessário voltaram às duas longas horas de trabalho, os demais

foram deixados à míngua como desempregados. Por quê? Porque o trabalho é

um dever, as pessoas devem receber salários proporcionais à sua produção,

mas à virtude demonstrada em seu esforço. (RUSSELL, 2002:28)

O fato de algumas poucas pessoas desfrutarem de uma vida ociosa, seja por

viverem de herança ou terem casado por dinheiro, é muito menos nocivo do que a

imposição feita aos assalariados: escolham entre o sobre trabalho e a privação.

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Com bom senso organizacional, se o assalariado trabalhasse quatro horas por dia,

haveria bastante para todos e não haveria desemprego. Há os que dizem que os pobres

não saberiam o que fazer com tantas horas livres. O uso “adequado” do ócio é fruto da

civilização e da educação. Alguém habituado a uma vida dedicada a longas horas de

trabalho se entediaria se de súbito ficasse ocioso.

Não há empenho para uma justiça econômica. A ausência de controle central faz

com que se produza em excesso, uma quantidade absurda de coisas das quais não

precisamos. Uma parcela grande da população é submetida ao desemprego, porque se

impõe o sobre trabalho a outra parte. Quando o sistema entra em colapso criam-se

guerras, inúmeros são postos para fabricar explosivos e outros, para explodi-los. Assim,

mostram que uma grande quantidade de trabalho manual é indispensável ao homem

comum.

[...] A antiga propensão para a despreocupação e o divertimento foi de certo

modo inibida pelo culto da eficiência. O homem moderno acha que qualquer

atividade deve ser exercida em prol de outras coisas, nunca da coisa mesma.

Há, por exemplo, pessoas sisudas que condenam o hábito de ir ao cinema,

dizendo que ele induz a juventude ao crime. Mas o trabalho necessário à

produção dos filmes é tido como respeitável, porque é trabalho e porque gera

lucro. [...] (RUSSELL, 2002:32)

Há uma incongruência quando se pensa demais em produção e pouco no

consumo. Atividade boa é a que gera lucro. Ganhar dinheiro é bom, mas gastá-lo é ruim.

Ignoram que produção e consumo estão atrelados, dando pouca importância à satisfação

que a produção dá ao consumidor.

Ao sugerir a redução da jornada de trabalho, Russell não pretende que o tempo

seja gasto em causas frívolas. Quatro horas seriam suficientes para garantir conforto à

vida e as demais horas seriam aproveitadas de maneira inteligente. E como não estariam

cansadas, as pessoas poderiam buscar diversões que fossem exclusivamente monótonas.

[...] Os prazeres das populações urbanas se tornaram fundamentalmente

passivos: ver filmes, assistir a partidas de futebol, ouvir rádio e assim por

diante. Isto ocorre porque as energias ativas da população estão totalmente

absorvidas pelo trabalho. Se as pessoas tivessem mais lazer, voltariam a

desfrutar prazeres em participassem ativamente. (RUSSELL, 2002: 33)

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A CULTURA DO ÓCIO

A Revolução Francesa e o maquinismo aceleraram a mudança que já ocorria no

durante o século XVIII, de uma concepção mais ampla e prática do conhecimento.

[...] A Revolução deu um golpe na cultura fidalga e o maquinismo criou um

novo e extraordinário campo de ação para o exercício de habilidades

destituídas de toda fidalguia. Ao longo dos últimos cento e cinqüenta anos, as

pessoas passaram a questionar o valor do chamado conhecimento “inútil”

com um vigor crescente, passando a acreditar mais e mais que o único

conhecimento digno de mérito é aquele que se pode aplicar a algum setor da

vida econômica da coletividade. (RUSSELL,2002:38)

Em toda parte, com raríssimas exceções, o conhecimento vinha perdendo o seu

valor em si mesmo, passando a ser mero ingrediente de aptidão técnica. Os

estabelecimentos de ensino, antes de tudo, deviam provar ao Estado sua capacidade de

disseminar a qualificação técnica e a lealdade.

O conhecimento “útil” de fato foi e é importante, pois construiu o mundo

moderno e tudo o que nele desfrutamos como os carros, os trens e a aviação. Entretanto,

trouxe consigo também os problemas como os gases poluentes nas cidades. E uma parte

da educação tradicional era descabida, como o ensino de grego e latim a meninos que

não possuíam capacidade e nem vontade (com raras exceções) de ler os originais das

línguas. Contudo, isto não justifica o caráter apenas utilitário da educação. Adultos e

crianças tem direito a lazer e para que seja mais proveitoso é necessário que se tenha

interesse e prazer nos assuntos não relacionados ao trabalho.

[...] Uma organização econômica mais adequada, que permitisse à

humanidade beneficiar-se da produtividade das máquinas, levaria com

certeza a um grande aumento do lazer, e lazer de sobra só é tedioso para

quem não dispõe de uma boa quantidade de interesses e atividades

inteligentes. Para que uma população ociosa seja feliz, ela deve ser uma

população educada, e educada com uma visão de um deleite mental

equivalente à da utilidade imediata do conhecimento técnico. (RUSSELL,

2002: 42)

A atividade contemplativa é valorizada pelo conhecimento inútil. Torna mais

prazerosa as coisas que a princípio seriam banais.

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O aprendizado de curiosidades não apenas torna menos desagradáveis as

coisas desagradáveis, como torna ainda mais agradáveis as coisas agradáveis.

Eu passei a gostar mais de pêssegos e abricós desde que soube que seu

cultivo provém da China dos primórdios da dinastia Han, que foram

introduzidos na Índia pelos chineses do grande rei Kaniska, de onde se

espalharam para a Pérsia, alcançando o Império Romano no primeiro século

de nossa era. Ao aprender que a palavra “abricó” deriva da mesma raiz latina

de “precoce”, porque o abricó amadurece cedo, e que o a do início da palavra

foi acrescentado por engano, devido a um erro etimológico. Tudo isso torna

mais doces estas frutas. (RUSSELL, 2002:44-45)

Indo além, a atitude contemplativa garante a serenidade e a prudência

indispensáveis às atitudes a serem tomadas na vida. Além de aliviar aborrecimentos,

tantos os triviais, como também os grandes males da vida como a dor, a morte e a

crueldade.

A ARQUITETURA DO ÓCIO

A arquitetura tem duas funções: a primeira – proporcionar abrigo e calor; a

segunda – marcar a humanidade com uma ideia. No período medieval, por exemplo, as

construções eram belas acidentalmente. O principal objetivo era garantir segurança,

implicando na utilização de critérios militares nas obras.

No século XIX as construções, fábricas e os conjuntos de habitacionais não

incentivavam a interação social de seus moradores.

São duas as formas típicas da arquitetura do século XIX e elas se devem

respectivamente à produção mecânica e ao individualismo democrático: a

fábrica, com suas chaminés, e as fileiras de casas das famílias trabalhadoras.

Enquanto a fábrica representa a organização econômica gerada pela produção

industrial, as casas representam o ideal de segregação social de uma

população essencialmente individualista. Os grandes edifícios das áreas onde

o valor do solo é elevado apresentam uma unidade meramente arquitetural,

não social, são blocos de escritórios, edifícios de apartamentos e hotéis cujos

ocupantes, em vez de formar comunidades, como nos monastérios, se

esforçam o mais possível para não tomar conhecimento da existência de seus

vizinhos. E em todo lugar onde o valor da terra é relativamente baixo

reafirma-se o princípio da casa unifamilar. À medida que nos aproximamos

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de Londres ou de qualquer grande cidade do norte da Inglaterra, por trem,

passamos por uma infinidade de ruas com esse modelo de habitação, no qual

cada casa é o centro da vida individual, cabendo ao escritório, à fábrica e à

mina, dependendo da localidade, representar a vida comunitária. A vida

social exterior à família, até onde a arquitetura possa assegurar, é

exclusivamente econômica: toda necessidade não-econômica deve ser

satisfeita no âmbito da família ou permanecer latente. Se julgarmos os ideais

sociais de cada época pela qualidade estética de sua arquitetura, os últimos

cem anos constituem certamente o nível mais baixo já atingido pela

humanidade. (RUSSELL, 2002:49)

A solução para o individualismo crescente seria a mudança arquitetônica. A

criação de áreas comuns tornaria possível a diminuição da rotina desgastante das donas

de casa, assim como tornaria melhor a interação entre as pessoas.

O trabalho da esposa do trabalhador nunca se modernizou porque não é

remunerado. Na verdade, é um trabalho em parte desnecessário e em parte

passível de ser repartido entre especialistas diversos. Para que isto se realize,

a primeira reforma seria de natureza arquitetônica. Trata-se de garantir as

mesmas vantagens comunitárias que existiam nos monastérios medievais,

sem o celibato, suprindo as necessidades dos filhos. (RUSSELL, 2002: 51-52)

Uma das barreiras a essa mudança nas construções eram os próprios assalariados,

que gostavam da privacidade do lar. Contra tal argumento, Russell aponta que áreas de

convívio como cozinhas comunitárias e de escolas maternais para as crianças não

diminuiriam a privacidade e o conforto do resto de uma moradia bem mobiliada.

Os homens eram os que menos sofriam nesta estrutura vigente. Passavam pouco

tempo com suas famílias, se irritando apenas com as lamúrias e irritações de suas

companheiras. Em contrapartida, as crianças sofriam pelo pouco contato com o ar e a

luz antes da experiência escolar. As mulheres, por sua vez, eram as piores vítimas. Mães

e esposas em tempo integral, sem direito a férias ou descanso acabavam tendo nos filhos

motivo de aborrecimento ao invés de felicidade. O sistema vigente exigia da mulher

excepcional autodisciplina, bom senso e vigor. A ascensão profissional feminina, cada

vez maior desde o século XIX, minimiza esta situação, tornando-a cada vez mais

próxima do ideal.

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É possível a construção de espaços comunitários (cozinhas e escolas maternais),

espaços que sirvam não só as tradicionais donas de casa, como mais ainda a crescente

classe trabalhadora feminina, que sejam belos e que não prezem apenas pela eficiência,

que sirvam tanto para unir como para tornar melhor a vida dos assalariados.

[...] Se os subúrbios fossem construídos pelas municipalidades e não pelas empresas privadas, com ruas planejadas e casas parecidas com os alojamentos universitários, não haveria razão para não serem um colírio para os nossos olhos. A sordidez, tanto quanto a aflição e a pobreza, é a parte do preço que pagamos por continuarmos escravos da motivação do lucro privado. (RUSSELL, 2002:56)

AS FINANÇAS DO ÓCIO

As finanças eram conduzidas de forma descabida e de difícil compreensão.

Russell cita a reserva de ouro adquirida pela Espanha no século XVI como exemplo: A

todo custo o país tomou medidas para evitar sua exportação. Isto, no entanto, não

melhorou nem um pouco a realidade da população. E demonstra como até hoje a

mineração é um exemplo da incongruência do pensamento moderno a despeito do

dinheiro.

De todas as ocupações consideradas úteis, uma das mais absurdas é a mineração do ouro. O ouro é extraído no solo da África do Sul e transportado, com infindáveis cuidados contra roubo e acidentes, para Londres, Paris e Nova York, onde é novamente colocado debaixo da terra, nas caixas fortes dos bancos. Ele bem poderia permanecer debaixo da terra na própria África do Sul. É possível que as reservas bancárias já tenham tido a sua utilidade na época em que supunha que elas poderiam ser usadas quando surgisse a ocasião, mas, depois que se adotou a política de não permitir que elas baixassem além de um mínimo, esse valor tornou-se irrelevante. Se decido poupar 100 libras para uma emergência, estou sendo prudente. Mas se decido que por mais pobre que fique, nunca vou gastar as 100 libras, elas deixam de fazer parte da minha fortuna e não fará a menor diferença se eu me livrar delas. É exatamente esta a situação das reservas bancárias se elas não forem gastas em absolutamente nenhuma circunstância.[...] (RUSSELL,2002: 62-63)

As nações por sua vez possuem a mentalidade de que devem produzir tudo, a

não ser que exista algum obstáculo natural que a impeça. Insistem na proteção de seus

mercados, ignorando o fato de por isso perderem eventuais clientes, simplesmente por

ver os demais países como concorrentes.

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[...] As nações estrangeiras são vistas mais como produtores concorrentes do que como clientes potenciais, de modo que as pessoas se predispõem a perder os mercados externos para evitar a concorrência estrangeira. Havia, certa vez, numa pequena cidade, um açougueiro que ficou furioso com os outros açougueiros, porque eles roubaram sua clientela. Para arruiná-los, ele converteu a cidade inteira ao vegetarianismo, e viu depois, com espanto, que se arruinara também. A insensatez deste homem parece inacreditável e, no entanto, ela não é maior do que a das grandes potências. Ao perceberem que o comércio exterior enriquece as outras nações, todas ergueram barreiras tarifárias para destruí-lo. Para seu espanto, descobriram que haviam sido tão prejudicadas quanto suas concorrentes. Nenhuma foi capaz de lembrar que o comércio é recíproco e que a nação estrangeira que lhe vende é a mesma que lhe compra, direta ou indiretamente. Não se lembraram deste fato porque o ódio às nações estrangeiras tornou-as incapazes de pensar com clareza a respeito do comércio exterior. (RUSSELL, 2002: 67-68)

Os financistas dominam o sistema vigente, possuem interesses que de maneira

geral não beneficiam a população. Com poder e dinheiro sustentam instituições de

ensino para que formulem teses que sustentem suas decisões, controlam os meios de

comunicação. Talvez isto seja a dificuldade da democracia no tempo moderno, que seria

plenamente possível com os Estados tornando possível a consciência de suas finanças a

população. Garantindo a educação e a maneira mais simples e explicar a estrutura da

sociedade.

A POLÍTICA DO ÓCIO

Em seu artigo “Em Defesa do Socialismo” Russell apontou que o sistema

socialista depois de estabelecido mundialmente seria a chave para a solução de

muitos problemas decorrentes do sistema econômico vigente. No entanto, ele

ressalvou que sua opinião diferia da concepção marxista da maioria dos

socialistas, de que uma revolta proletária contra os que controlavam os meios de

produção era necessária. Esta mentalidade de vingança fez com que os não

pertencentes à classe operária se rebelassem contra o socialismo de forma

violenta, sendo o Fascismo um exemplo – uma retaliação “formidável”, segundo

o filósofo. Enquanto os parâmetros marxistas fossem usados, um forte

antagonismo faria do socialismo uma realidade impossível.

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De minha parte, embora eu seja um socialista tão convicto quanto o mais ardente dos marxistas, não vejo o socialismo como o evangelho da vingança proletária e nem mesmo, primordialmente, como um meio de garantir a justiça econômica. Eu o vejo mais que tudo como um ajustamento à produção mecânica, demandando por considerações de senso comum e calculado para aumentar a felicidade não apenas dos proletários, mas da totalidade da raça humana, com exceção de uma ínfima minoria. E se ele não pode ser hoje conquistado sem uma sublevação violenta, isso se deve em boa medida à violência de seus defensores. Mas ainda tenho esperança de que uma defesa mais razoável possa abrandar a oposição e provocar a transição menos catastrófica possível. (RUSSELL, 2002:101-102)

Russell aponta três razões para a transição para o socialismo não ser feita de

forma não violenta: (a) provavelmente ela não terá sucesso; (b) a luta será

desastrosamente destrutiva; e (c) depois de uma guerra obstinada, os vitoriosos

esquecerão seus objetivos originais e instituirão algo totalmente diferente,

provavelmente uma tirania militar. Portanto, para que o regime seja bem sucedido é

necessária a capacidade de convencer a maioria a aceitar suas doutrinas. (RUSSELL,

2002:104)

Os que defendem o sistema econômico vigente defendem que a expectativa do

lucro faria com que houvesse mercadorias certas nas quantidades certas. Talvez no

passado isso tenha sido verdade, no entanto, com a complexidade da produção moderna

isto não pode ser afirmado.

Isto é conseqüência do caráter complexo da produção moderna. Se sou um remendão de aldeia à moda antiga e as pessoas me trazem seus sapatos para consertar, eu sei que haverá demanda para o produto do meu trabalho. Mas se sou um grande fabricante de sapatos, empregando maquinaria cara, preciso estimar a quantidade de pares de sapatos que serei capaz de vender e não é improvável que erre na minha estimativa. Outro fabricante pode ter uma maquinaria melhor e ser capaz de vender sapatos mais baratos, ou meus antigos clientes podem ficar mais pobres e aprender a fazer seus sapatos durarem mais, ou ainda a moda pode mudar e meus clientes passarem a demandar um tipo de sapato que não sou capaz de produzir com minhas máquinas. Se acontece uma dessas coisas, não apenas eu deixo de obter lucros, como minhas máquinas ficam ociosas e meus empregados, sem trabalho. O trabalho utilizado na fabricação de minhas, que acabou não resultando na produção de mercadorias úteis, terá sido tão inútil quanto areia jogada no mar. Os homens demitidos do emprego não estarão mais produzindo bens para servir às necessidades humanas, e a comunidade terá empobrecido na proporção do gasto que terá de fazer para livrá-los da miséria. Vivendo seguro-desemprego e não do salário, as pessoas passam a gastar muito menos, causando, por conseguinte, desemprego entre os que produzem as mercadorias que elas consumiam. E, assim, o erro de cálculo inicial quanto ao número de sapatos que eu posso vender com uma certa margem de lucro produz, pouco a pouco,círculos cada vez mais amplos de desemprego, acompanhado da redução da demanda. Quanto a mim, sigo atado à minha

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dispendiosa maquinaria, que provavelmente absorveu todo o meu capital e meu crédito, o que me impossibilita mudar repentinamente do ramo dos sapatos para outra indústria mais próspera. (RUSSELL, 2002:106)

A ausência de escassez é outro motivo para o colapso do capitalismo. Algumas

mercadorias se tornam mais baratas quando produzidas em excesso. Na prática, deveria

haver uma fábrica só no mundo. No entanto, a situação atual exige diversas

concorrentes, que não produzem plenamente e que, portanto, não possuem garantia de

lucro.

Em um sistema justo as decisões seriam tomadas em cima do que é socialmente

vantajoso, pesando os custos para a coletividade, mas é o custo para o fabricante

individual que determina o que acontecerá.

No regime capitalista, o custo que determina se um certo produto será fabricado por uma determinada firma é o custo para aquela firma, não para a comunidade. Vamos ilustrar esta diferença com um caso imaginário. Suponhamos que alguém – o Sr. Henry Ford, por exemplo – invente uma forma de fabricar automóveis tão baratos que ninguém poderá competir com ele, resultando daí a falência de todos os outros fabricantes de automóveis. Para se estimar o custo desses novos carros para a coletividade, deve-se acrescentar, aos custos do Sr.Ford, a exata proporção de todas as fábricas que pertenciam as firmas falidas, bem como o custo de recuperação e treinamento dos operários e administradores que elas empregavam e que agora estão sem trabalho.(Alguns poderão arranjar emprego com o Sr.Ford, mas não todos, uma vez que o novo processo é mais barato e requer menos trabalho). Talvez haja também outras despesas para a comunidade – disputas trabalhistas, greves, distúrbios, policiamento extra, processos e prisões. Quando todos esses itens forem contabilizados, talvez se descubra que o custo dos novos carros para a coletividade é, de início, consideravelmente mais alto que o dos velhos.[...] (RUSSELL,2002:108)

Há os que dizem que devido à tecnologia existente, uma jornada de uma hora de

trabalho seria suficiente para se cumprir as metas. Russell sugere uma redução pela

metade da média existente de oito horas. Uma jornada de quatro horas permitiria o

direito ao lazer, bem como o emprego a todos. Entretanto,o assalariado é medido pelo o

que produz, preferindo longas horas de trabalho com um salário longo, a mais horas

livres e um salário menor.

A situação poderia ser pior. Se não fosse por algumas ineficiências e produções

desnecessárias, mais da metade dos trabalhadores estariam desempregados. Enquanto

permanecer este sistema, qualquer medida para eliminar o desperdício só tornará pior a

vida dos assalariados.

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No mundo existem muitos na miséria e a outra grande parte da população vive

com medo da mesma. O desemprego assombra a vida dos assalariados. Ninguém está

livre desse sentimento, os chefes de negócios, por exemplo, convivem com o receio de

suas empresas falirem e perderem tudo o que possuem. Os trabalhadores autônomos

vêem todos os seus esforços na educação de seus filhos serem em vão, pois a

qualificação deles não se demonstra mais suficiente para garantir seus empregos.

[...] Acham-se homens e mulheres com formação universitária trabalhando atrás de balcões, que os livram da miséria às custas dos que antes lá estavam empregados. Em todas as classes, desde a mais baixa até quase a mais alta, o medo econômico governa os pensamentos dos homens durante o dia e seus sonhos durante a noite, tornando o trabalho exasperante e o lazer não reparador. Este terror permanente é, creio eu, a principal causa do estado de loucura que vem varrendo uma parte considerável do mundo civilizado. (RUSSELL, 2002: 111)

A aspiração a riqueza rege as vidas das pessoas, mas só ela não garante a

qualidade do trabalho, já que as maiorias das pessoas trabalham apenas para não

empobrecer. Um sistema social que abolisse esta aspiração não seria errado, e por

conseqüência acabaria com a insegurança que é o motivo de história no mundo moderno.

Os ricos desempregados influenciam a arte de forma nefasta e sustentam um

comércio fútil.

[...] E há o mal adicional de que o sustento de muita gente depende desse tipo de futilidade. O poder de compra dos muitos ricos gera ao seu redor um grande número de parasitas que temem ficar arruinados se não houver mais gente rica e desocupada para comprar seus artigos. São pessoas que sofrem moral, intelectual e artisticamente de uma insolúvel dependência do poder desses tolos. (RUSSELL, 2002: 114)

No que concerne a educação, por mais que existam bolsas, a educação superior

é praticamente para os ricos. A grande maioria da população humilde tem de trabalhar

tanto que chegam sem energias aos locais de estudo. Como resultado, mais desperdício

de talentos dos filhos dos trabalhadores nas mais diversas áreas.

Além disso, é necessária uma escola que incite pensamentos críticos nos alunos.

O modelo atual apenas serve ao estado, evitando tais pensamentos que poderiam trazer

problemas ao sistema capitalista vigente. Russell ainda aponta que com o tempo o

socialismo poderia se tornar maduro a ponto de permitir pensamentos de tal magnitude

e que enquanto permanecer nosso sistema econômico não se podem esperar melhoras no

sistema educacional.

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Pior que a situação dos homens é a situação das mulheres. No papel de mães e

donas-de-casa, não possuem o direito sequer de se demitir. É necessária a implantação

de mais escolas maternais. Esta mudança na vida das mulheres vem ocorrendo deforma

gradativa, mas não será feita plenamente sem uma transformação econômica geral da

sociedade.

Os danos impetrados pelo sistema capitalista a arte são visíveis, a motivação

comercial acabou com a beleza das pinturas que adornavam as arquiteturas, impedindo

a exploração de várias possibilidades no cinema e na literatura.

O filósofo aponta que depois que o socialismo estiver instaurado e a oposição ao

regime não for mais tão pesada, o Estado poderá custear a publicação dos livros e os

que não considerarem com mérito, podem ser custodiados por trabalho extra.

Em alguns setores da sociedade ficou provado que o controle público é

necessário. A saúde pública, as escolas, o setor energético, tais setores quando não

diretamente controlado pelo Estado, devem ser regulamentados e supervisionados.

Dentre estes serviços que devem permanecer na mão do pode público está a Guerra.

Ninguém acredita que a defesa do Estado deva permanecer em empreiteiras privadas,

por mais que haja incompetência estatal.

No que se referem à guerra, Russell levanta dois questionamentos (1) Até que

ponto o perigo da guerra está hoje ligado ao capitalismo? ; (2) Até que ponto o

estabelecimento do socialismo eliminaria este perigo? (RUSSELL, 2002:119)

Uma paz duradoura só pode nascer da eliminação das causas de inimizade entre as nações. Atualmente, essas causas residem antes de tudo nos interesses econômicos de alguns setores e só podem, portanto, ser abolidas por uma reconstrução econômica de base. (RUSSELL, 2002:120-121)

Ainda cita a Indústria siderúrgica, a para que as nações sirvam aos seus

interesses, incentivam nas pessoas impulsos como o medo, o ressentimento contra a

injustiça e o patriotismo e a honra nacional.

[...] O mundo está na condição do bêbado que quer se recuperar, mas, cercado de amigos que a toda hora lhe oferecem bebida, acaba recaindo no vício. Neste caso, os amigos são pessoas que ganham dinheiro com a sua propensão infeliz, de modo que o primeiro passo para a sua recuperação deve consistir em eliminá-los. É somente neste sentido que o capitalismo moderno pode ser considerado causa da guerra e a se empenharem na construção de acordos equânimes que tornassem improvável a sua ocorrência futura. (RUSSELL, 2002:122)

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O filósofo ainda ponta que a nacionalização das indústrias melhoraria a situação,

já que os lucros da siderúrgica serviriam para amenizar o prejuízo de outras áreas e

garantir o emprego da população. No entanto, a solução definitiva estaria no socialismo

internacional.

Com uma unidade central os erros poderiam ser evitados. Ao invés dos lucros,

as indústrias teriam como motivação o planejamento governamental. Com o socialismo

pode se encontrar o equilíbrio impossível no sistema capitalista. Acabará a insegurança

econômica, que faz com que surjam as guerras. E as pessoas democraticamente eleitas

seriam responsáveis por garantir o equilíbrio entre o lazer e o conforto.

Enquanto o socialismo existir somente em alguns países civilizados, a possibilidade da guerra permanecerá e a totalidade dos benefícios do sistema não será capaz de concretizar-se. Mas podemos assumir com segurança que todo país que adotar o socialismo deixará de ser agressivamente militarista e só estará preocupado em evitar a agressão por parte dos demais. Quando o socialismo tiver se generalizado em todo o mundo civilizado, os motivos para guerras em grande escala não deverão ter força suficiente para superar as razões, muito mais óbvias, de se preferir a paz. (RUSSELL, 2002: 124)

Referências:

DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo. 2ª Ed, Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

________. A Economia do Ócio. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Sextante, 2001.

________. A Sociedade Pós-Industrial. São Paulo: Senac, 1999.

________.Desenvolvimento sem trabalho. 4ª Ed São Paulo: Esfera,1999.

RUSSELL, Bertrand. O elogio ao ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

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A ILUSTRAÇÃO LITERÁRIA DO EROS ARISTOFÂNICO NO

BANQUETE DE PLATÃO: A ETERNA BUSCA PELA CARA

METADE.

Marina Trigo Matos

Graduanda em Filosofia pela UNIRIO

Resumo

Trato neste artigo do diálogo Banquete de Platão, mais especificamente do discurso de Aristófanes. Por ser uma visão idealizada do amor, afinal, o ser amado é capaz de cumprir todas as nossas carências, algum desavisado poderia pensar que a posição defendida por Aristófanes seria a mesma defendida por Platão. Penso que esse discurso está longe da visão platônica de amor. Neste trabalho trato (1) da relação entre o mito apresentado no discurso aristofânico, no qual há a apresentação da natureza do amor, sendo esse reconhecido como um sentimento de carência na qual os amantes sempre estão buscando sua “cara metade”, e a idealização do amor como busca pela “cara metade” tão presente na literatura; (2) dos pontos em comum entre o discurso de Aristófanes e Sócrates/Diotima, que me parecem nesse caso expressar a opinião de Platão; e (3) das divergências entre o discurso de Aristófanes e Sócrates/Diotima. Pretendi mostrar com isso como esse discurso já era criticado pelo próprio Platão.

Palavras-chave Aristófanes. Banquete. Platão

Abstract In this article, I address Plato's dialogue Symposium, more specifically Aristophanes' speech. Although often considered the platonic expression of love, because of its ideal flair, this discourse seems to me to be far from it. In this work I deal with (1) the relationship between the myth presented in Aristophanes' speech in which there is the presentation of the nature of love, this being recognized as a feeling of seek in which the lovers are always looking for their "soul mate" and these expressionin the literature. (2) The similarities between Aristophanes' speech and Socrates' / Diotima's, which appear to me in this case to express Plato's opinions. (3) The differences between the Aristophanes' speech and Socrates' / Diotima's. I intended to show how Plato himself already criticized this discourse. Keywords Aristophanes. Symposium. Plato

Quando se pensa em Platão, observa-se um maior conhecimento de certa

obra em detrimento das demais, isso não somente no ramo da filosofia, mas também na

cultura acadêmica e popular. O diálogo no qual pretendo me deter neste artigo, o

Banquete, é não só um dos diálogos mais conhecidos de Platão, talvez por se tratar de

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uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, como também um dos

que mais alimenta as controvérsias sobre a compreensão platônica do amor.

O diálogo se passa na casa de Agatão, e todos que nela se encontram como

convidados, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Sócrates, além do próprio

Agatão, são impelidos a apresentar um elogio a eros (176a). Fedro (178a-180b)

identifica eros como propiciador de virtude; Pausânias (180c-185c) atribui a eros o

caráter de conhecimento; Erixímaco (186a-188c) especifica esse conhecimento como

um conhecimento técnico. Quando chega a vez do comediante Aristófanes (189c-193d)

elogiar eros, esse coloca o problema sob uma nova perspectiva. Pretendo neste artigo

tratar especificamente do discurso de Aristófanes, (1) mostrando seus reflexos no nosso

modo de pensar o amor, (2) apresentando os pontos comuns entre o discurso de

Sócrates/Diotima e o discurso de Aristófanes e (3) indicando porque, na minha opinião,

o amor tal como descrito por Aristófanes não pode espelhar a concepção platônica.

Segundo Aristófanes, antes de se elogiar o amor e mostrar suas qualidades,

deve haver um reconhecimento da natureza humana e de suas necessidades, a fim de

perceber se o amor é capaz de suprir essas necessidades (189c-189d). Ou seja, só

podemos falar das qualidades do amor para o homem se conhecemos a natureza do

amor. A pergunta pela natureza de algo (τί ἔστι;) vem antes da questão pelas qualidades

desse mesmo algo (ποῖον τί;): só se conhecemos a natureza do amor podemos dizer se

este é capaz de suprir as necessidades dos homens42. Para responder a essa questão,

eminentemente platônica, Aristófanes propõe um mito que explicaria a natureza humana

e, a partir dessa, a natureza do amor e o papel de eros na vida do homem (189d-193b).

Segundo esse mito, a raça humana possuía não dois, mas três sexos (189e-

190b): masculino (que era originário do sol), feminino (originário da terra) e uma

mistura física dos dois, chamado andrógeno (originário da lua, que compartilhava a

natureza de ambos, sol e terra). Eles possuíam grande força e vigor, além de enorme

ambição. Por conta dessa ambição eles se voltaram contra os deuses. Zeus e os outros

deuses decidiram puni-los por sua arrogância, mas ao invés de matá-los, resolveram

enfraquecê-los, dividindo-os em duas metades. Assim surgiu a raça humana tal como a

conhecemos (190b-191a). Aristófanes argumenta que, por ser fruto dessa cisão, o (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((42 É claro que isso implica também, em última instância, um reconhecimento da natureza do homem, pois só saberemos se algo é bom para o homem, se sabemos antes o que é o homem, ou seja, qual a sua natureza.

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humano anseia por natureza pela sua metade perdida, buscando-a em outros seres

humanos (191a-191c). O amor seria no ser humano a expressão do desejo de restaurar a

sua antiga natureza (191d). Ainda segundo o mito contado por Aristófanes, sempre que

encontram sua metade, as partes sentem tanta afeição, intimidade e amor, que se

recusam a se afastar um do outro e passam toda sua vida juntos, apesar de não saberem

o que querem um do outro. Essa união não seria uma união meramente sexual, mas sim

uma união de almas, que não sabem dizer o que querem, mas querem intensamente

(192b-193e).

Percebo uma relação entre o mito contado por Aristófanes e a compreensão

do amor como o encontro de duas metades presente em diversas sociedades ocidentais

até os dias atuais. Chamo esse tipo de visão idealizada do amor, de “amor romântico” e

entendo por isso simplesmente essa ideia de que o amante se completa no amado.

Confluente ao cotidiano, a literatura, ao tratar da dimensão amorosa, o faz de forma

incrivelmente próxima a essa compreensão vulgar do amor, a despeito de sua possível

complexidade. De acordo com essa ideia de amor romântico, os humanos precisariam

encontrar sua metade para se sentir completos e felizes, para voltarem a ser um. Embora

não possa nesse breve artigo fazer um estudo das possíveis influências do mito

aristofânico nessa visão idealizada do amor na literatura, me parece clara a semelhança

entre essas duas visões. Só para dar um exemplo conhecido por todos, quem nunca

ouviu a máxima do amor romântico, descrita por Tom Jobim em Wave, “é impossível

ser feliz sozinho”? O mito de Aristófanes me parece ter uma força tão grande, que as

ideias presentes nele podem ser vistas refletidas em vários momentos da literatura

ocidental. Não estou dizendo com isso que a literatura fez um uso consciente do mito,

como já disse, faltam-me elementos para fundamentar tal afirmação. Ainda assim não

posso deixar de ver paralelos entre o mito apresentado no banquete por Aristófanes e a

perpetuação desta visão do amor como uma complementação, uma fusão, de dois seres

que formam uma unidade, na literatura.

Muitas vezes entendida, equivocadamente, a meu ver, como expressão do

amor platônico, simplesmente por se encontrar no diálogo de Platão43, essa visão do

(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((43 Tendo a concordar com Shieffield (2006) que vê os discursos apresentados no Banquete como uma

preparação para o discurso de Diotima, que ao mesmo tempo que traz elementos para esse discurso, são refutados por ele. Todavia, reconheço que outros estudiosos analisam os discursos separadamente e neles encontram por si só elementos platônicos. Sendo assim, nada impede que alguém entenda o discurso aristofânico como expressão de uma faceta do pensamento platônico.

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amor presente no discurso de Aristófanes contribui com toda uma tradição de

compreensão do amor como uma necessidade e carência de outro indivíduo para a

realização plena da felicidade. Esse tipo de compreensão do amor tem influência sobre a

mente e as ações das pessoas até os dias de hoje: algumas passam a vida toda infelizes

buscando a felicidade somente em outro indivíduo.

Defendo neste trabalho que a teoria platônica, representada no Banquete

pelos discursos de Sócrates e Diotima, vai se contrapor justamente a essa compreensão,

ou seja, a essa relação feita pelo mito entre felicidade, realização da natureza humana, e

encontro da “cara metade”.

Uma vez que me impressiona a força desse mito no nosso imaginário

literário, pretendo aqui, antes de passar para a análise do discurso platônico, explorar

um pouco alguns exemplos da literatura dessa compreensão da natureza humana como

permeada pela solidão e infelicidade na ausência da “cara metade”. Penso que é

relevante estudar como essa tradição de solidão e infelicidade reflete no nosso

imaginário literário para poder desconstruí-la gradativamente, visto que muitas vezes

ela é maléfica, pois retira a autonomia dos sujeitos. Principalmente em um mundo como

o atual, que é infestado de rapidez, instabilidade, fragilidade e liquidez nos sentimentos

e relações, penso que a visão romântica do amor contribui para a infelicidade das

pessoas.

Em uma breve passagem pela literatura é possível perceber a influência da visão

aristofânica na compreensão do amor. No período medieval, principalmente nos atuais

territórios de Portugal e Espanha, havia a representação das relações feudais nas

cantigas de amor, a partir da descrição de um estado emocional de constante sofrimento

do eu-lírico, visto que este não pode consumar seu sentimento pelo distanciamento do

bem amado, seja por razões sociais (cada um sendo pertencente a uma classe) ou por

relações geográficas (o cavaleiro está nas guerras enquanto a donzela o espera), sendo

esta uma característica do chamado “amor cortês”. Essa relação de sofrimento por estar

afastado do bem amado é característica desse tipo de compreensão do amor, visto que

somente quando unidos os parceiros se sentem bem, prejudicando assim a criação de

uma concepção de liberdade e individualidade. Tristão e Isolda representa bem esse

período, visto que seria uma interpretação de uma lenda celta do período medieval.

Tristão, um jovem cavaleiro, é ferido em uma série de batalhas e curado pela princesa

Isolda. Ao longo da história, eles se apaixonam, mas não podem consumar este

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sentimento devido ao fato de Isolda ser prometida ao seu senhor, que também era tio de

Tristão. De certa forma, eles se tornam amantes, mas o infeliz desfecho os separa com a

morte. Esse tipo de amor, no qual o casal prefere morrer ao invés de viver separado,

demonstra a presença do mito da “cara-metade”, visto que os amantes acreditam que só

há uma possibilidade de ser feliz: ao lado de sua cara metade.

Essa relação de completude na presença do bem amado, essa impossibilidade

de se conceber separado de seu amor, também é descrita por Aristófanes no Banquete

(192b-192c):

Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade,

tanto o amante do jovem como qualquer outro, então, extraordinárias são as

emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não

quererem, por assim dizer, separar-se um do outro nem por um pequeno

momento.

Nos séculos do Humanismo e início do Iluminismo, isto é, entre os séculos

XIV e XVI, a compreensão vulgar do amor cede lugar à ideia de amor platônico

defendida pelo neoplatonismo, na qual o verdadeiro amor é um sentimento purificador

de contemplação. Essa ideia neoplatônica, se afasta, a meu ver, do verdadeiro sentido

platônico de amor, sendo uma mistura desse mito aristofânico com a compreensão

platônica: por um lado enfatiza o papel da contemplação do ideal, por outro lado coloca

o ideal no outro, sendo a realização amorosa ainda algo dependente do encontro com a

“cara metade”.Grandes representantes dessa geração são Luis Vaz de Camões com seus

sonetos perfeitos e sua visão sobre o amor, além da grande obra Romeu e Julieta (1597)

de Shakespeare. Nessa obra, mundialmente conhecida principalmente pelo seu final,

encontramos também o sentimento de impossibilidade de viver sem o bem amado, a

“cara metade”, assim como ocorre na lenda de Tristão e Isolda.

Com o avanço da inicial ideologia burguesa, no século XIX , há a idealização

não somente do modo de vida simplório em locais afastados de grandes centros urbanos

e de produção, bem como da pessoa amada, como lugar de realização do indivíduo.

Tomás Antônio Gonzaga com Marília de Dirceu é um grande exemplo desse tipo de

ideologia, visto que nesta obra Gonzaga julga o amor como a principal das riquezas,

aproximando sua descrição do papel do amor na realização da natureza humanaao

discurso sobre o amor de Aristófanes (189c-189d).

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Nem mesmo durante os períodos revolucionários do início do século XIX, há

uma mudança real na visão do amor. Embora a literatura dessa época possa ser

caracterizada como uma crítica à aristocracia e uma busca pela afirmação do homem em

si, as obras mais conhecidas dessa época não deixam de ser uma expressão do que

chamo aqui de amor romântico. Se observamos, por exemplo, os romances das irmãs

Brontë ou de Jane Austen, a crítica social caminha lado a lado com uma idealização do

amor. É uma mistura de independência, pois as personagens são fortes e proativas, e

dependência, pois a felicidade está na realização do amor romântico. Clássicos literários

como O morro dos ventos uivantes (1847) de Emily Brontë, e Orgulho e Preconceito

(1813) de Jane Austen são ao mesmo tempo expressões (1) da crítica aos empecilhos

sociais na unificação dos amantes e (2) do desejo pelo amor romântico, pela completude

na “cara metade”. Apesar dos pesares e diferenças sociais e ideológicas entre as

personagens Lizzie e Mr. Darcy em Orgulho e Preconceito de Jane Austen, a força do

encontro de sua metade é maior do que todos os obstáculos.

Somente mais tarde, um grupo de escritores, como por exemplo Eça de

Queiroz em suas Conferências do Cassino (1871), passa a considerar os problemas

sociais do período mais relevantes do que os dramas sentimentais e individualistas

descritos anteriormente. A necessidade de compreender o caráter e toda a construção

psicológica do ser humano instaurou a adoção de práticas que levassem ao

entendimento dos comportamentos sociais. O amor do realismo, utilizando as palavras

de Eça de Queirós, faz o primeiro distanciamento forte dessa concepção vulgar do amor,

pois ele é aquele que cresce na personagem durante a narrativa, não é algo imediato,

logo após encontrar sua “cara metade”.

O ciúme de Bentinho, no romance Dom Casmurro (1899) de Machado de

Assis, não resulta simplesmente do encontro com a “cara metade”, Capitu, mas é algo

que vai crescendo no interior do personagem, de certo modo de forma independente dos

ditos e feitos de sua “cara metade”. O amor é resultado do humano nele mesmo e não a

realização no outro. Em outra obra do autor, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880),

também é possível perceber que a narrativa não se constrói voltada para a busca pela

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“cara metade”.44 Podemos dizer assim que há nessas obras uma tentativa de se libertar

da visão romântica e idealizada do amor.

Uma outra desvinculação dessa visão do amor como busca pela cara metade

é encontrada no período modernista, nele é possível ver uma crítica ao “e foram felizes

para sempre” das histórias infantis. Há a lealdade ao amante quanto aos sentimentos,

bem como a vivência da sensação, mas não há a construção da “cara metade”

permitindo o encontro de diversos amores durante uma só vida, desconstruindo assim a

concepção que acredita na busca pela “cara metade”. Quando Vinícius de Moraes no

Soneto da Fidelidade (1960) aceita o fim do amor em algum momento da vida, “que

seja infinito enquanto dure”45há a total desconstrução desse amor vulgar. O mesmo

ocorre quando Carlos Drummond de Andrade modifica a visão da solidão e da ausência

no seu poema Ausência (1984):

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos

meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((44Em outras obras do autor é possível ainda perceber uma tradição ou um sonho de encontrar a “cara metade”, como no caso de Helena (1876) ou A mão e a luva (1874) do mesmo Machado de Assis.

45O eu lírico inicia o soneto afirmando que permanecerá atento ao seu amor em todos os sentidos, e por todo o tempo. No terceiro e no quarto versos, ele confessa que mesmo quando estiver frente a outro encanto (outro indivíduo, provavelmente), irá encantar-se ainda mais com o seu pensamento (o seu amor original). Na segunda estrofe, afirma que deseja viver este amor em todos os momentos, mesmo que esses sejam comuns, singelos ou vãos. Em seguida, o eu lírico apresenta que acompanhará seu amor em todos os seus estados, ou no louvor, ou no pesar, ou no contentamento. Na terceira estrofe, ele ressalta que quando ou a morte - fim da vida - ou a solidão - fim do amante - o procurarem, ele finalmente poderá expor seu amor. Sendo que não foi eterno, pois o amor é apenas a chama de uma vela, mas foi infinito enquanto durou, pois brilhou maravilhosamente enquanto existiu. E esse é o significado de fidelidade, a seu ver, obviamente.

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O eu-lírico, ao admitir que a ausência não é a falta de sua metade, afirma que

não há mais a procura pela “cara metade” para alcançar a plenitude, ou seja, a felicidade.

Drummond, assim como outros autores da época, rompe com a compreensão tradicional

do amor como supressão da carência e da solidão na presença do outro.

A ideia de alma gêmea, que sustenta o amor como o centro da felicidade

humana, torna-se incompatível com outros valores e características da vida

contemporânea. A contemporaneidade admite o culto ao prazer, ao sexo, ao amor carnal,

ao efêmero e superficial, e reforça, assim, a crítica do chamado realismo e

principalmente do modernismo ao amor romântico.

Cacaso , representante da Poesia Marginal (CEREJA; MAGALHÃES, 2005,

p. 547-549) nos anos de ditadura militar, parece ironizar o mito de Aristófanes em seu

poema Happy end (2000):

“O meu amor e eu

nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente”.

Roberto Freire, médico e psiquiatra brasileiro, que por alguns anos escreveu

livros baseados na teoria anarquista, também faz uma descrição sobre o que seria o

amor contemporâneo em seu livro Ame e dê vexame (1990, p. 157):“Declaração do

amante anarquista: Porque te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não

preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos de completar. Somos, um para o outro,

deliciosamente desnecessários.”. É possível observar nesse fragmento o completo

rompimento com a ideia vulgar de amor romântico, visto que no amor anarquista não há

a necessidade do outro, ou seja, da “cara metade”.

A partir desse breve apanhado literário, espero ter deixado clara a presença

do mito de Aristófanes nas representações do amor na literatura. Dada tanto a fácil

identificação desse mito na obra platônica quanto do seu reflexo na literatura, fica fácil

de entender porque esse mito parece para muita gente como a expressão clássica do

amor desde Platão. Todavia, como pretendo demonstrar a partir daqui, essa visão é

rechaçada por Platão, dentro do próprio Banquete.

Há uma tendência de se entender os discursos sobre o amor no Banquete

como complementares (SHIEFFIELD, 2006, p. 27): o discurso de Agatão complementa

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o de Aristófanes, que complementa o de Erixímaco, que por sua vez complementa o de

Pausânias que, por fim, complementa o de Fedro. Quando chega a vez de Sócrates, esse

também parece retirar um pouco de cada um dos discursos (SHIEFFIELD, 2006, p. 29).

Sendo assim, há elementos da fala de Aristófanes que parecem ser caros a Platão e não

podemos dizer que Sócrates se opõe completamente a Aristófanes.46 Todo o discurso de

Sócrates no Banquete retoma temas propostos pelos discursos anteriores, ao mesmo

tempo que demonstra que algo em cada discurso está errado. No caso do discurso de

Aristófanes, Sócrates parece concordar (1) com a necessidade de tratar da coisa (τί ἔστι;)

antes das suas características (ποῖον τί;), assim como (2) com a ideia de eros relacionado

à carência.

O primeiro ponto é introduzido por Aristófanes logo ao iniciar seu discurso

(189c-189e). Aristófanes começa seu elogio de eros por um lado não explorado até

então: à natureza de eros. Somente reconhecendo a natureza de eros podemos ver sua

relação com a natureza humana e suas necessidades. Não se pode falar sobre o amor,

sobre sua importância e seus efeitos benéficos, sem conhecer sua natureza. Esse ponto é

fundamental para Platão, que insiste nos diálogos iniciais, que não se pode falar das

qualidades de algo sem saber o que algo é.

Já o segundo ponto, o estado de carência do homem, é introduzido por

Aristófanes quando ele faz uma descrição dessa natureza: no mito de Aristófanes há a

caracterização dos seres humanos como criaturas carentes que sempre estão em busca

do que lhes falta para, assim, alcançar a felicidade. Platão também parece concordar

com isso. Os homens estão sempre buscando o que consideram ser o bem (Men. 77b-c).

A dissensão central entre Sócrates/Diotima 47 e Aristófanes nesse ponto é que

Aristófanes afirma que essa carência da natureza humana se completa no outro e que é

no encontro com a “cara metade” que os indivíduos realizam a eudaimonia (193d),

enquanto Sócrates/Diotima parecem ver a questão de uma outra maneira (200a-212d).

Sócrates inicia seu discurso reafirmando o estado de carência de eros (200a-

201d) e observando a natureza do amor (201d-204c), que ele caracteriza como um (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((46 Quando disse que a visão de Aristófanes é rechaçada por Platão, não quis dizer com isso que não há

elementos da fala de Aristófanes que são aproveitados por Platão. Mesmo assim, a visão do amor apontada por Aristófanes, como mostrarei a seguir, não condiz com a posição de Platão.

47 Tomo o discurso de Sócrates e Diotima nesse trecho do Banquete (200a-212d) como expressão da posição platônica.

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estado psicológico intermediário. Porém, Sócrates argumenta que o homem tomado por

eros não pode estar em um estado permanente de carência, como proposto por

Aristófanes, porque um total estado de falta não levaria à produção de efeitos positivos.

Se eros é um estado benéfico, logo, deve produzir também. Sendo assim, Sócrates

argumenta que eros é um estado intermediário e dinâmico entre a carência e a produção

(SHIEFFIELD, 2006, p. 40-41).

No discurso socrático, o estado intermediário de flutuação entre esses dois

opostos é exposto a partir do mito sobre o nascimento do amor (203b-204c). Segundo

esse mito, a mãe de eros, Penia/Pobreza, representa a falta, enquanto seu pai

Poros/Recurso, representa a abundância. Shieffield (2006, p. 42-3) argumenta que,

sendo fruto da relação entre a falta e a abundância, eros tem o desejo pelo que não tem

(advindo de Penia) e a coragem produtiva (advinda de Poros). Dessa maneira, a

natureza do amor o obriga a perseguir o bom e o belo que reconhece estar em falta. Sua

natureza explicaria o seu ser intermediário: é um estado deficiente, porém produtivo

(SHIEFFIELD 2006, p. 46). A característica produtiva e criativa do eros não está na

falta, mas sim em seu desejo pelo que não tem. Se eros fosse simplesmente um

reconhecimento da falta, sem contudo ser uma força produtiva, ou seja, se esse fosse

meramente passivo, não haveriam coisas boas provindas desse. Seu parentesco dual

justifica suas características intermediárias entre o divino e o mortal.

Também a partir desse mito, Sócrates explica que eros não seria um Deus,

pois enquanto eros se encontra em estado de necessidade e desejo, os Deuses sempre

estão em estado de abundância (202c-203a). Se não há necessidade, não há desejo; a

falta ou necessidade é a origem do desejo e o desejo a origem do conhecimento. Se eros

fosse um Deus, eles seria pleno em si mesmo e não poderia ser uma força

impulsionadora, como quiseram fazer crer não só Sócrates/Diotima, mas também os

discursos anteriores.

É importante ressaltar que para a filosofia platônica, o problema não está

inserido no desejo, mas sim no desejo pelas coisas erradas. Como é dito no Menon (77b-

c), as pessoas sempre desejam o bem, mas nem sempre sabem o que é o bem. Desta

maneira, deve haver uma educação do desejo para que esse deseje coisas de fato boas. É

nessa educação do desejo que se desenvolve a relação de eros com a filosofia

(SHIEFFIELD, 2006, p. 52-53). A prática filosófica irá direcionar e informar como

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desejar certos objetos ao invés de outros, como encontrar o bem e o belo verdadeiros.

Sendo assim, o eros filosófico pode ser verdadeiramente produtivo.48

Dessa maneira, há uma relação entre o filósofo que deseja a sabedoria e o

eros que deseja o belo. A primeira característica semelhante entre os dois, para a qual

Shieffeld (2006, p. 56) chama a atenção, é a flutuação entre os opostos (falta/posse,

mortal/divino, ignorância/sabedoria): tanto o filósofo quanto o eros se encontram num

estado intermediário. Em segundo lugar admite-se na fala de Diotima, que a sabedoria é

uma das coisas mais belas, e uma vez que eros busca o belo, logo uma das coisas que

eros deve buscar é a sabedoria (204b): “Com efeito, uma das coisas mais belas é a

sabedoria, e o Amor é o amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e,

sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante”. O amor é interessado no belo: quanto

mais belo mais o amor deseja; a sabedoria é uma das coisas mais belas, logo o amor é

um amante da sabedoria (204b). Como aponta Shieffield (2006, p. 55), uma vez

reconhecida essa busca, a filosofia se torna uma atividade importante para o amor, a

atividade em que ele melhor se expressa (210e-211d).

É importante notar que a filosofia tem que ser um estado intermediário para

ser amor à sabedoria: ela não pode ser a posse da sabedoria, porque quem possui a

sabedoria não a deseja, visto que não se deseja o que se tem; da mesma forma, ela não

pode ser ignorância, pois os ignorantes não desejam a sabedoria, porque não sabem que

não a possuem, não percebendo assim a falta da mesma. Sendo assim, ao contrário do

ignorante que não reconhece sua ignorância, logo não procura o que lhe falta, o filósofo

que é possuidor do eros, sabe que o que lhe falta é a sabedoria, e a persegue como uma

das coisas mais belas, possuindo sempre motivação para continuar a persegui-la

(SHIEFFIELD, 2006, p. 57-8).

Shieffield propõe em relação a esse passo uma espécie de brincadeira com as

palavras, que me parece interessante mencionar (2006, p. 58-66). Levando em conta o

estado de aporia resultante da prática socrática, o nome do pai de eros, Póros, e a

carência da mãe de eros, Pênia, ela sugere que o diálogo caminha assim para o estado de

flutuação entre euporia e aporia proposto pela filosofia platônica: enquanto a euporia

seria um estado no qual se há uma noção de progresso, um sentimento de conhecimento,

(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((48 Esse eros filosófico retoma a ideia de Pausânias de que há um bom eros e um eros mau-direcionado.

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a aporia seria um reconhecimento de não estar na posse desse saber, representada pela

famosa frase socrática “só sei que nada sei”. A partir da aporia (reconhecimento da

ignorância) chegaríamos à euporia (que ao mesmo tempo que é um conhecimento é um

desejo pelo conhecimento que ainda não se tem), sendo esse ciclo característico da

prática filosófica. Sendo assim, o filósofo não é um conhecedor e sim aquele que busca

o conhecimento. O filósofo é aquele que possui a falta, reconhece essa falta, tem um

desejo consciente de superação dessa falta. Haveria assim uma ligação entre os termos

usados para descrever o estado entre ignorância e sabedoria e os termos usados para

descrever o estado intermediário de eros.

Voltando para o texto do Banquete,ao observar as características da natureza

do amor apresentadas no discurso de Sócrates podemos perceber algumas diferenças

entre esse e o discurso de Aristófanes. Uma delas é a descrição do estado de carência:

enquanto Aristófanes caracteriza o estado de carência como uma carência pelo outro,

Sócrates afirma essa carência como algo interno. Ou seja, para Platão o homem é um ser

carente, mas não porque já teve sua metade, mas porque reconhece sua mortalidade.

Logo não há uma carência completa e sim uma carência produtiva, pois ao perceber

essa carência, o homem se volta para a busca do que lhe falta, diferentemente do que é

apresentado por Aristófanes, que só considera o homem perfeitamente produtivo

quando está inteiro, ou seja, após o encontro com sua “cara-metade”.

Só depois que uma definição viável sobre a natureza de eros é alcançada,

Sócrates prossegue a discussão tratando dos objetivos e atividades de eros que

beneficiariam o homem (204c). Ou seja, uma vez exposto que eros é um estado

intermediário, sendo caracterizado pela flutuação entre posse e falta e não sendo,

portanto, um estado de carência permanente, eros tem de ser um produtor de coisas boas,

logo, um estado produtivo. Se em um primeiro momento, o discurso socrático se voltou

para o que seria essa falta, determinando o que o eros busca e porque ele busca isso,

agora é necessário fazer uma exposição dos benefícios adquiridos pela presença do eros,

bem como a forma que esses são adquiridos (204c-207a), ou seja, o que seria

especificamente essa produção e como ela traz efeitos positivos.

Há a especificação de três objetivos do amor: o belo (204d), o bom (204e) e a

imortalidade (207a), porém há um objetivo unificado, sendo esse a eudaimonia

(SHIEFFIELD, 2006, p. 75).

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Assim há uma suposição de que o objetivo máximo de todos os desejos,

buscas e ações racionais é a felicidade (205d). A felicidade buscada é uma plenitude de

se sentir realizado enquanto ser humano, não sendo algo efêmero. Essa seria uma das

razões para afirmação platônica de que a vida contemplativa é a mais valiosa (211d),

pois essa seria a forma mortal na qual há a maior aproximação do imortal, visto que

para ter uma vida contemplativa o ser humano necessita já haver produzido. Descoberto

assim o que seria a falta, ainda precisa-se saber como essa busca pelas coisas belas,

boas e imortais pode ser útil aos homens.49

O discurso socrático permanece semelhante ao aristofânico no que se refere à

importância atribuída à busca pela felicidade, ou seja, Sócrates acredita que a

importância de eros está na sua contribuição para a felicidade, para a boa realização do

ser humano (204e). Todavia, enquanto o discurso socrático liga a felicidade ao bem, o

discurso aristofânico liga a felicidade ao semelhante. Para Sócrates ao desejar e buscar

coisas boas há o encaminhamento para a felicidade, sendo assim, os homens buscam

coisas boas. Já Aristófanes argumenta que os homens buscam aquilo que lhes é

semelhante para assim voltar a ser uno, devendo buscar sua metade perdida para

encontrar a felicidade (193c). Segundo Schieffield (2006, p. 78), parece que para

Sócrates, Aristófanes estava correto ao afirmar que eros persegue aquilo que lhe falta,

mas enganado ao dizer qual seria o objeto de busca dessa carência, ou seja, a metade

semelhante.

Como dito anteriormente, o discurso de Sócrates complementa os anteriores.

Seu discurso me parece apontar que seus interlocutores possuíam diferentes concepções

sobre o que seria a felicidade e/ou a sabedoria. O erro assinalado pelo discurso socrático

seria como os demais entendem o que é virtude e conhecimento.Há nos discursos

anteriores, me parece, a falta de uma perspectiva filosófica. A retomada dos discursos

anteriores por Sócrates mostra, a meu ver, não só a importância desses para o

desenvolvimento da compreensão filosófica proposta pelo último discurso, mas

tambéma importância da prática da educação filosófica, a discussão dialética, para

assim haver, posteriormente, o alcance da vida contemplativa. (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((49 Essa parte do discurso de Sócrates/Diotima, embora fundamental para entender o papel de eros na filosofia platônica, foge ao escopo desse trabalho, que pretende apenas mostrar (1) como a visão aristofânica parece ter sido reproduzida no nosso imaginário literário e (2) como Platão se opõe a descrição da natureza de eros proposta por Aristófanes. Sendo assim, me absterei de tratar dessa parte do discurso de Sócrates/Diotima.

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Culturalmente parecemos ter construído o pensamento que, de alguma forma,

os amantes irão desempenhar um papel fundamental na realização da felicidade.

Sócrates parece argumentar que a união com outro indivíduo não pode por si só levar à

completude do desejo de felicidade. Porém, obviamente, isso não é um discurso contra

os amantes. É claro que os amantes também devem ser vistos como partes de uma vida

feliz. No discurso socrático, os amantes que Aristófanes considera como sendo fruto da

felicidade são na verdade guias e musas que auxiliam na busca do verdadeiro, não sendo

o encontro por si só realizador da felicidade. O amante conduz o amado à felicidade,

que, ainda que motivada por esse encontro, depende do desejo do amado pelo

conhecimento verdadeiro. Dessa forma, os amantes são favoráveis no momento em que

despertam o potencial produtivo do eros em seus amados (SHIEFFIELD, 2006, p. 226),

como quando o jovem Sócrates é guiado por Diotima, afirmando que precisava de um

mestre (207c). Penso que o uso da figura de um Sócrates jovem pode apontar para o fato

de que somente após esse encontro com Diotima Sócrates pode também guiar, ou seja,

Diotima desperta o potencial produtivo de Sócrates.

Como exposto, a concepção de amor platônico foi e é até hoje ligada ao

discurso de Aristófanes no Banquete, havendo em alguns momentos da literatura a

tentativa de desconstrução dessa visão. O Modernismo, bem como a

Contemporaneidade conseguem, de certa forma, realizar esse afastamento ao falar de

sentimentos e realidades mais próximas dos indivíduos de suas épocas, poetizando e

concretizando a liquidez, rapidez, instabilidade e fragilidade presente nas relações. Estas

características dificultam a perpetuação da concepção de que haverá em algum

momento o encontro com a “cara metade”.

Já o discurso de Sócrates ataca essa visão por outra frente. Sócrates se volta

para o desejo pela sabedoria, o amor pela filosofia, que seria a principal forma de

adquirir a felicidade, mostrando que o ser humano não é somente uma criatura carente,

que se completa no outro, mas sim alguém que possui um estado de falta produtiva, que

leva à produção, ao pensamento.

É claro que ambos tentam desconstruir a visão aristofânica, porém, a meu ver,

as correntes literárias atuais expressam melhor o espírito de nossa época. Isso porque

Sócrates apresenta uma ascensão na qual primeiramente há a descoberta dos desejos

vulgares e sexuais, posteriormente a educação filosófica, na qual a tarefa é garantir que

haja julgamentos corretos sobre os tipos de bem que são adequados, e finalmente a vida

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contemplativa. Enquanto Platão parece ver o eros sexual como um estágio anterior à

descoberta das coisas boas necessárias para o alcance da felicidade, sendo, portanto,

incapaz de satisfazer o desejo pela eudaimonia, o amor contemporâneo parece se

distanciar do ideal de eudaimonia platônica.

Referências:

PLATÃO. O Banquete. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

SHEFFIELD, Frisbee. Plato's Symposium – The Ethics of Desire. New York: Oxford University Press, 2006.

JOBIM, Tom. Wave. New York: A&M Records, 1967.

MORAES, Vinícius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice) Edição Bilíngue. São Paulo: Landmark, 2008.

QUEIRÓS, Eça de. “A literatura nova” ou “O Realismo como nova expressão de arte”. CONFERÊNCIAS DO CASINO, 1871, Lisboa.

CACASO. Beijo na boca. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora 7 letras, 2000.

FREIRE, Roberto. Ame e dê vexame. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.

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INTRODUÇÃO À VIRTUDE NA ÉTICA A NICÔMACO DE

ARISTÓTELES

Elis de Aguiar Bondim Ribeiro de Oliveira

Graduança em Filosofia da UFRJ

Resumo: Este artigo visa abordar, introdutoriamente, a virtude na Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Para tanto, julga-se importante, na introdução, o esclarecimento de alguns conceitos gregos antigos cujas conotações se modificaram ao longo do tempo. No restante do trabalho são abordados aspectos da virtude e do bem da Ética a Nicômaco, com o foco não no simples conhecimento do que é o bem, mas sim da compreensão deste objetivando a sua prática, a ação; a necessidade de se desejar o bem para que se seja virtuoso, não bastando conhecê-lo; e seu pensamento de que ser virtuoso é necessário para a felicidade, mas não suficiente. Considera-se necessário deixar claro que o objetivo desse trabalho é introdutório e expositivo. Palavras-chave: Filosofia Antiga, Aristóteles, Ética a Nicômaco, Virtude, Bem, Eudaimonia.

Abstract: The aim in this article is to approach the virtue of the Nicomachean Ethics of Aristotle. For this purpose, that is necessesary, in the introduction, the explanation of some greek ancient concepts which had their meanings changed with time. At the rest of the work, there will be approach aspects of the virtue and good from Nicomachean Ethics. I don't simply focus in the meaning of what is good, but also its knowledge objectifying its practice, its action; the necessity of desire good to be virtuous, not only knowing it; and the though that being virtuous is important to be happy, but not enough. It is importante to say that the objective of this work is intorductory and expositive.

Keywords: Antique Philosophy, Aristotle, Nicomachean Ethics, Virtue, Well, Eudaimonia.

Introdução

Aristóteles conduz a Ética a Nicômaco50 não para o simples conhecimento do

bem ou da virtude (areté), mas sim para, a partir de tal conhecimento, a prática do bem

                                                                                                                         50 É relevante dizer que a Ética a Nicômaco não é a única obra aristotélica de caráter ético, havendo também a Ética a Eudemo e a Magna Moralia e, em certa medida, a Política. Para esse presente artigo, como o objetivo era uma introdução a temas da Ética a Nicômaco especificamente, não se abordou as demais.

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(agathon) e da virtude, distinguindo sabedoria prática (phronesis) de sabedoria teórica

(sophia). Em relação a esse tema, são colocadas questões, sobre as quais Aristóteles

reflete, como as sobre o que é o bem, o que é ser virtuoso e o que é necessário à

felicidade (eudaimonia). Mas será que a virtude é garantia de felicidade na ética

nicomaquéia aristotélica? Esta parece ser a questão principal que permeia o presente

artigo. O objetivo do presente artigo, assim, é o de uma introdução expositiva ao tema

da virtude na Ética a Nicômaco de Aristóteles, o qual se relaciona com os temas do bem,

do desejo e da felicidade, esta constituindo a questão principal do artigo.

Apresentando os temas dos artigos, acima introduzidos, o artigo se divide em

três partes. Na primeira, são apresentados alguns princípios aristotélicos considerados

fundamentais à compreensão de sua obra. A segunda introduz importantes conceitos na

ética aristotélica, que são o de bem, de desejo e de virtude, e como estes se relacionam.

A terceira e última parte, por fim, apresenta a tese aristotélica de que, apesar da virtude

ser fundamental à felicidade, ela pode não ser suficiente. Para finalizar o trabalho,

breves considerações finais. Abaixo o restante da introdução apresenta melhor as partes

do trabalho.

As reflexões de Aristóteles parecem objetivar não apenas que o seu leitor

também reflita sobre tais temas (a virtude, o bem, a felicidade, o desejo), como se disse

acima, mas também conduzir cada indivíduo para a ação51, para a prática do bem. A

prática do bem diz respeito a cada um e, ao mesmo tempo, a todos. E o estudo da ética

pode ser assim definido: é o estudo do ‘estar com os outros’, mas sem perder de vista o

‘cada um’. É pensar o indivíduo em sua relação com os demais.

Nesse contexto é que se insere a importância da política – a qual, para os gregos,

está intrinsecamente relacionada com a ética. A política como ação é toda atividade

humana relacional. O ser humano é um ser político justamente porque é um ser que vive

em relações com os demais. A política como ciência é a estruturação do bem. Assim, a

prática política é a atividade humana capaz de resumir todas as outras, pois apesar de

não ser o bem supremo52, a política é a atividade que visa a esse bem supremo – o que

                                                                                                                         51 É interessante considerar o que Hardie diz acerca do conceito de ação em Aristóteles: “A palavra “ação” pode ser utilizada de modo amplo, como o é em Política, de modo a incluir a reflexão contemplativa. Mas o que a passagem assinala como função própria do ser humano é claramente mais abrangente que a atividade teórica e inclui atividades que exibem inteligência prática e virtude moral.” (Hardie, 2010:45). 52 O conceito de bem supremo será tratado mais adiante.

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as outras atividades, separadamente, não necessariamente visam. Partindo da

consideração de que a ética é o estudo do bem considerando tanto cada indivíduo como

todos também e a prática política é toda atividade humana relacional, Aristóteles

considera que o bem político é o bem humano. “A finalidade da ciência política é a

finalidade suprema, e o principal empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos

cidadãos – por exemplo, torná-los bons e capazes de praticar boas ações” (E.N., I,

1099b, 26-29).

Na busca pela definição do bem e da virtude, Aristóteles apresenta alguns

princípios, não no sentido de normas de ação e sim no sentido de noções fundamentais,

os quais serão apresentados na primeira parte. Lembrando que Aristóteles é um filósofo

que parte tanto dos princípios amplamente aceitos – a doxa, que é a opinião comum, do

vulgo – quanto do que pensam os sábios, os pensadores que já refletiram sobre o

assunto tratado – chamado por Aristóteles de endoxa –, é preciso ter em mente também

que bem, para os gregos antigos, não é carregado de contexto moralizante53; para eles,

bem é excelência, ou seja, é a melhor realização possível seja do que for54, o que será

abordado melhor na segunda parte, juntamente com a conceitualização de virtude e da

abordagem acerca da necessidade do desejo da qual Aristóteles fala.

Aristóteles, diferentemente de outros filósofos gregos, considera que ser virtuoso

não é suficiente para que se seja feliz, sendo preciso também que aspectos externos ao

indivíduo, e independentes dele, permaneçam bem – tal aspecto do pensamento

aristotélico será abordado na terceira e última parte. A felicidade, nesse contexto grego

antigo, é considerada o bem supremo ou fim último da vida humana, e Aristóteles

questiona o que de fato é a felicidade, o que a constitui. É importante lembrar, ainda,

que felicidade – eudaimonia -, para os gregos, não é uma emoção fugaz como

geralmente se pensa hoje, mas sim um estado de espírito, uma prática de toda a vida.

I – PRINCÍPIOS ARISTOTÉLICOS

Um dos princípios aristotélicos é o da razão, a qual tem aqui o sentido muito claro de                                                                                                                          53 Para fins de esclarecimento, ressalta-se aqui que o termo moralizante foi inserido com fins de melhor explicação, porém é importante lembrar que o termo moral não existia ainda em grego, só tendo aparecido mais tarde em latim (em Cícero, De Fato I, 1) como mores. 54 Hoje é costume apresentar-se um conceito cristão de bem, mas é preciso lembrar que a Grécia Antiga é pré-cristã.

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aplicação às práticas e atividades humanas e não o de pensamentos ordenados como

deduções ou silogismos. Para Aristóteles não há apenas um raciocínio lógico universal,

aplicável a tudo, mas também um raciocínio específico para cada atividade humana, o

que se reflete em sua teoria acerca do bem, visto que, segundo ele, não há também um

bem universal e fundamental, mas sim o que é o bem em cada situação, o que é o

melhor a ser feito de acordo com as circunstâncias. A razão, em Aristóteles, é o modo

de pensamento próprio a cada atividade.

Outro princípio é o desejo. Aristóteles diz que há coisas às quais se visa por elas

mesmas, como a saúde e bons amigos, por exemplo. E há coisas às quais se visa através

de atividades, como sendo as suas finalidades. Para se direcionar a algo, em todo caso, é

preciso desejar este algo.

Arte (techné) não tinha para os gregos o sentido que recebe hoje, se

aproximando mais da ideia do artesão, o que inclui tanto trabalhos como o de um

escultor quanto de um marceneiro, por exemplo; por isso o termo techné é traduzido

tanto pelo termo arte quanto pelo termo técnica, podendo ser considerados arte, por

exemplo, uma espada ou um sapato, de acordo com a técnica especializada do ferreiro

que fizer a espada e do sapateiro que fizer o sapato. Nesse contexto, Aristóteles

distingue atividades que visam a uma obra de atividades que visam a si mesmas.

Quando Aristóteles fala do primeiro caso ele se refere às atividades que desde o seu

ínício visam a um fim específico. 'Obra' refere-se a cada etapa da atividade a ser

realizada, sendo "completas" as atividades que visam a uma obra, com todas as suas

partes concluídas. Já o segundo caso, das atividades que visam a si mesmas, representa

as atividades que não têm um fim específico nem visam produzir algo, como por

exemplo tocar uma flauta; era algo que os gregos faziam apenas pelo bem de tocar e

ouvir música55. Para as atividades que visam a uma obra, a obra é mais importante do

que a atividade. O objetivo não é apenas a atividade, mas sim a realização da obra que a

atividade produz.

É importante lembrar deste conceito grego de arte porque compreender o

princípio de hierarquia entre as artes que é apresentado por Aristóteles é crucial para a

compreensão do bem na Ética a Nicômaco – lembrando mais uma vez que bem para os

gregos é excelência. Tal hierarquia não se dá no sentido de umas serem melhores que as                                                                                                                          55 Lembrando que a música não era um produto comercial como é hoje.

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outras, mas sim no sentido de haver uma coordenação entre elas. Por exemplo, se

alguém quer aprender a caçar com arco-flecha a cavalo: para este alguém realizar o bem

– entenda-se, a excelência - de caçar com arco-flecha a cavalo é preciso que antes um

outro alguém faça o bem de adestrar o cavalo e ainda que um outro fabrique o arco-

flecha para, então, mais alguém ensine este a caçar com arco-flecha a cavalo.

Tal princípio de hierarquia entre as artes apresenta o pensamento de que o bem,

como excelência, está presente em todo e qualquer tipo de ação: um ferreiro fazer o bem

é construir com excelência, ou seja, o melhor possível, os instrumentos que produz; um

sapateiro fazer o bem é construir com excelência os sapatos que produz; um tocador de

flauta fazer o bem é tocar a sua flauta da melhor forma possível. Tal princípio define

que toda atividade deve se conduzir ao bem, ou seja, à excelência; e de que, assim,

algumas atividades dependem de outras para que possam, de mesmo modo, se conduzir

ao bem. Para que alguém possa caçar bem a cavalo utilizando-se de arco e flecha, como

já se disse antes, é preciso que uma série de outros indivíduos tenham feito o bem (a

excelência) de construir o arco e flecha, adestrar o cavalo e ensinar tal indivíduo a caçar

a cavalo utilizando-se de arco e flecha. Este princípio, como é possível perceber,

apresenta cada atividade ao mesmo tempo em que apresenta todas também, do mesmo

modo como se definiu a ética. A partir do entendimento disso é possível compreender

melhor o bem aristotélico, sobre o que se falará agora, na parte seguinte.

II – O BEM, O DESEJO E A VIRTUDE EM ARISTÓTELES

Aristóteles distingue filosofia teórica de filosofia prática, sendo a primeira a que deve

resultar em conhecimento e a segunda a que deve resultar em ação:

“[...] há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito. [...] quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tornando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos [...]” (E.N., II, 1103ª, 1-27).

Segundo Aristóteles, estuda-se o que é a ética não para se conhecer o que é bom

ou o que é o bem, mas para se tornar bom. É preciso entender, aprender, refletir sobre o

que é a virtude (o bem), mas o fim da ética vai além: é a ação, é o tornar-se virtuoso

(bondoso). Assim, é preciso tanto a excelência intelectual quanto a excelência moral,

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sendo que esta só se obtém na ação, no hábito. Além disso, é preciso compreender e

desejar o bem; nem só um, nem só o outro.

“[...] o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. [...] tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida” (E.N, I, 1098 a, 82-86).

A Ética de Aristóteles não se baseia em um princípio fundamental. Como já se

disse, para ele, não há um bem único, mas sim o bem em cada situação, “as próprias

pessoas engajadas na ação devem considerar em cada caso o que é adequado à ocasião”

(E.N., II, 1104a, 19-20). Assim, o melhor a ser feito – o bem – varia de acordo com a

situação em que se estiver. Às vezes uma atitude pode não ser boa em uma determinada

situação, porém em outra pode ser a melhor atitude a ser tomada.

“É necessária uma [sic] percepção educada, uma capacidade que vá além a aplicação de regras gerais, para dizer o que requer a prática das virtudes em circunstâncias específicas. [...] A ênfase deve estar em saber, a respeito de ações específicas, que são nobres e justas em circunstâncias específicas” (BUMNYEAT, 2010: 159).

Outro ponto essencial à compreensão do bem aristotélico é o de que Artistóteles

pensa toda ação como um encaminhamento para o bem. “Toda arte e toda indagação,

assim como toda ação e todo propósito, visam a algum bem; por isto foi dito

acertadamente que bem é aquilo a que todas as coisas visam” (E.N., I, 1094a, 1-5). O

homem fabrica, cria, investiga, decide, julga, deseja e age tendo em vista o bem. A

partir de tal pensamento, tem-se a questão: o homem realmente deseja sempre o bem, de

modo a se direcionar a ele? Segundo Aristóteles, é possível enganar-se a respeito do que

é o bem, de modo a se pensar ser o bem algo que não o é, de modo que é possível

desejar algo que não é o bem por ignorância, por se estar enganado a respeito do que se

é o bem. Justamente para que isso não ocorra é necessário que se compreenda

corretamente o que é o bem e, para tanto, é preciso uma boa educação, que ensine não

só a boa compreensão acerca do bem como também acerca do que se deve desejar ou

não.

“Com efeito, a excelência moral se relaciona com o prazer e o sofrimento; é por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobilitantes. Daí a importância, assinalada por Platão, de termos sido habituados adequadamente, desde a infância, a gostar e desgostar das coisas certas; esta é a verdadeira educação” (E.N., II, 1104b, 8-13).

Só ao se compreender corretamente o bem, ao se desejá-lo verdadeiramente e

colocá-lo em prática é que se será virtuoso: “a pessoa investida de sabedoria prática

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possui uma concepção verdadeira do fim que lhe é melhor, bem como possui a

capacidade de planejar a realização desse fim de maneira eficaz” (Hardie, 2010: 43).

Desse modo, percebe-se que o bem, o desejo e a virtude – ser virtuoso – estão

intrinsecamente ligados na concepção de Aristóteles.

[...] se os atos condizentes com as várias formas de excelência moral têm uma certa qualidade em si, isto não quer dizer que eles foram praticados justamente ou moderadamente; o agente também deve estar em certas condições quando os pratica; em primeiro lugar ele deve agir conscientemente; em segundo lugar ele deve agir declaradamente, e ele deve deliberar em função dos próprios atos; em terceiro lugar sua ação deve provir de uma disposição moral firme e imutável. (E.N, 1105a, 16-23)

O conhecimento do bem visa ao melhoramento das ações, hábitos e conduta.

Aristóteles, contudo, põe em questão se o conhecimento é o bastante para que o bem

seja de fato praticado. Para ele, é necessário também que se deseje o bem. Aristóteles,

assim, direciona a sua ética a uma compreensão dos princípios – o que constitui o bem,

a virtude – e, paralelamente, a uma educação adequada dos desejos. Para que se seja

virtuoso é preciso compreender corretamente e desejar aquilo que se compreende

corretamente. A educação dos desejos é um hábito, é uma prática.

“Aristóteles descreve a deliberação, o raciocínio do ser humano sábio, como um

processo que começa pela concepção de um fim e retrocede, numa direção que inverte a

ordem causal, até a identificação dos meios” (Hardie, 2010: 49). Assim, é preciso saber

fazer uma apreensão geral e saber apreender também cada caso particular, sendo a

primeira necessária para a segunda e sendo necessária também uma faculdade que

realize essa passagem. Esses são os dois tipos de conhecimento que ele apresenta: a

apreensão geral e a capacidade de conversão do geral para o particular, através do

discernimento. É preciso discernir o bem em cada situação e ser moderado. “A

excelência moral, portanto, é algo como a equidistância, pois (...) seu alvo é o meio-

termo. (...) É por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o

meio-termo é uma característica da excelência moral” (E.N., II, 1107a, 56-63).

A doutrina do meio-termo é muito importante, pois se relaciona intimamente

com a necessidade de deliberação acerca dos meios disponíveis para se chegar ao fim

desejado, visto que não é porque se deseja algo que se pode tomar qualquer atitude para

se chegar a este fim. O fim tem de ser bom e os meios também: “o agente talvez tenha

que considerar a bondade, ou a maldade, inerente aos meios propostos, bem como sua

eficiência na promoção de um fim bom” (Hardie, 2010: 50).

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Há figuras contrárias, segundo Aristóteles, ao compreender bem e desejar bem:

aquele que compreende mal e, por isso, deseja mal; como, por exemplo, quando alguém

compreende que ser feliz é ser rico e, para tanto, faz qualquer coisa para ganhar dinheiro

- aquele que compreende bem, mas ainda assim deseja mal, como quando alguém

compreende que não é saudável comer em demasia, mas ainda assim o faz; e aquele que

compreende bem, mas deseja o mal e o faz. O primeiro caso é o do intemperante56; o

segundo caso é o do akrático (akratés), que é aquele que sabe como deveria agir em

direção ao bem, mas apesar de sabê-lo age de outra maneira, como, por exemplo,

quando se sabe que não se deve comer algo, mas ainda assim come-o, sendo o akrático

o moralmente fraco; e o terceiro caso é o do kakós, que é o perverso, que realmente

deseja o mal e tem prazer com ações nesta direção.

O que acontece no segundo caso, segundo Aristóteles, é que o indivíduo não foi

bem educado - lembrando que uma boa educação, aqui, significa aprender a ter prazer

com o que se deve ter prazer e desgosto com o que se deve ter desgosto. Nesse contexto,

“precisamos abandonar o sentido fraco de aprender segundo o qual ter aprendido que

esquiar é prazeroso é simplesmente ter adquirido a informação, independentemente da

experiência pessoal” (Burnyeat, 2010: 165). Quando o indivíduo não é educado de

acordo com isso pode ocorrer de sentir prazer com o que deveria ter desgosto, mesmo

que compreenda isso e, assim, desejar algo que não é o bem.

Compreender o que é bom, o que é virtuoso, não significa desejar. Pode-se

conhecer o que é o melhor, o correto, e desejar o oposto. Por isso a importância da

educação, visto que “aquilo em que tem prazer o homem virtuoso (...) é a prática das

virtudes, empreendidas em razão delas mesmas” (Burnyeat, 2010: 166). Nesse contexto,

um elemento complicador são as paixões: fazer o que se quer, mesmo que se saiba não

se estar querendo o melhor. Assim, os jovens não são bons juízes57, segundo Aristóteles,

pois não tiveram ainda tempo de adquirir o conhecimento de critérios de julgamento que

dependem de experiência, sendo escravos de suas paixões, aproximando-se dos

                                                                                                                         56 A temperança, em Aristóteles, é a virtude moral da capacidade de discernimento. O intemperante é aquele que conhece mal e, por isso, age mal achando que está agindo bem. Este ainda pode reconhecer o seu erro e mudar o seu modo de agir, passando a agir bem, diferentemente do vicioso. 57 O conceito dos termos julgar e juízo não são bem definidos na Filosofia Antiga, apresentando, assim, sentido amplo: o de dar significado à realidade, de cernir, discernir; cerne, discernimento.

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akráticos58.

A virtude é o modo adequado de se realizar uma ação em sua ambiência. Por

exemplo, pode-se ter uma ação justa por um motivo injusto. A virtude é ter uma ação

justa e realizá-la de modo justo, por motivo justo. É preciso compreender a situação, o

que é justo e injusto de acordo com a situação e realizar a ação que for justa. E o mais

importante: realizar a ação justa apenas pela promoção da justiça e não por qualquer

outro motivo que não seja esse. Uma ação justa que tenha algum interesse como

motivação não é uma ação virtuosa.

“Aristóteles não está simplesmente a fazer a observação ociosa de que a virtude exige prática. Antes, a prática possui poderes cognitivos, já que é a maneira pela qual aprendemos o que é nobre e justo. [...] O objetivo último a que visa a prática do iniciante é que ele se torne o tipo de pessoa que faz coisas virtuosas com pleno conhecimento daquilo que faz, escolhendo fazê-las em razão delas mesmas, agindo com base em um estado assentado de caráter” (BURNYEAT, 2010: 161).

Segundo Marco Zingano, “não há somente virtudes morais; há também, por

exemplo, virtudes das funções reprodutivas da alma, que não são levadas em

consideração pela análise moral” (Zingano, 2008: 80). Segundo a interpretação do autor,

as virtudes podem ser ou naturais, ou adquiridas pelo hábito ou obtidas através do uso

da razão. A virtude moral é sempre adquirida pelo hábito59, dividindo-se entre aquelas

que apenas foram adquiridas pelo hábito e entre as que, além disso, são acompanhadas

pela razão. Toda virtude moral tem de poder ser acompanhada de razão. E, assim...

“Mediante tal virtude [a virtude moral acompanhada de razão], o homem faz o que deve ser feito. Mas o homem não faz somente o que deve ser feito; ele o faz também de um certo outro modo, isto é, sabendo e escolhendo por deliberação o que está fazendo. A diferença reside não no resultado da ação, mas no modo de agir. [...] Nossas qualidades morais são adquiridas de um certo modo naturalmente, isto é, pelo hábito, a partir de uma capacidade naturalmente presente, mas [...] há também um outro modo de ser destas qualidades. Quando se apreende a razão do porquê isto deve ser feito, uma diferença ocorre no agir: no seio da mesma disposição, a virtude que antes era natural60 é agora virtude própria” (ZINGANO, 2008: 81, 82).

                                                                                                                         58 O akrático é aquele que é incapaz de ter critérios, sem critérios. É aquele que se formou assim e, por isso, não se pode afirmar que os jovens sejam akráticos, pois eles ainda estão em formação. 59 Vide a primeira citação dessa parte do trabalho. 60 Quando Aristóteles diz virtude natural ele não está querendo dizer algo como uma virtude com a qual o homem já nasce, que o homem têm naturalmente. A virtude moral, lembrando mais uma vez, é sempre adquirida pelo hábito. Ao dizer natural, Aristóteles refere-se ao fato do ser humano ter por natureza a capacidade de receber as virtudes, e essa capacidade é aperfeiçoada justamente pelo hábito. Assim, Aristóteles distingue a virtude moral natural da virtude moral própria, sendo a primeira a não acompanhada de razão e a segunda a que é acompanhada de razão, ou seja, a virtude moral própria é a do indivíduo que conhece as razões que fazem de uma ação a melhor, que compreende por que tal ação deve ser realizada (nota do autor).

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A virtude total é aquela “na qual a virtude intelectual age no interior da virtude

moral (a virtude própria), enquanto a virtude imperfeita é a virtude moral natural que,

sempre podendo aceitar razões, não sabe, contudo, dar ou estabelecer razões” (Zingano,

2008: 96). Por fim, as virtudes morais aperfeiçoam o modo do indivíduo agir,

conduzindo suas decisões: “o que eu posso fazer, eu posso deixar de fazer. Pelo hábito

de agir assim e não de modo contrário eu aperfeiçoo (se agir assim for virtuoso) ou

deturpo (se agir assim for um vício) minha capacidade de agir. Assim, a virtude moral é

um aperfeiçoamento da minha capacidade natural de agir” (Zingano, 2008: 83).

Resumindo, tudo se encaminha para o bem, porém ter uma atitude boa não

significa ter uma atitude virtuosa. O bem varia de acordo com a situação e só o hábito, o

qual constitui uma boa educação, proporciona as experiências necessárias à excelência

intelectual de discernimento e escolha do que é o bem em cada caso (escolha refletida:

proairesis), de modo a se atingir a excelência moral. A excelência moral é a virtude

total: a de desejar o bem, fazer o bem e saber por que cada ação é o bem, variando com

a situação.

III – SER VIRTUOSO NÃO É SINÔNIMO DE SER FELIZ

Aristóteles persegue em sua Ética qual é o bem supremo ou fim último da vida humana

e o define como sendo a felicidade (eudaimonia)61. A definição de tais conceitos, porém,

diferem-se:

“A eudaimonia é definida como uma certa atividade em oposição a um estado psicológico ou a uma simples disposição do sujeito; o bem supremo é definido como o fim último desta atividade. [...] O fim último é aquele em vista do qual todos os outros são perseguidos, ele mesmo contudo não podendo estar em vista de outro fim. Como bem supremo, ele tem de poder englobar todos os outros bens” (Zingano, 2008: 89).

Geralmente não se tem problemas quanto ao nome ‘felicidade’ como bem

supremo ou fim último da vida humana, mas tem-se muitos problemas quanto a

definição do que é a felicidade. Eudaimonia é o termo grego do qual o termo atual

felicidade mais se aproxima. Aquele, porém, tem o sentido de completude, de plena

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      61 Aristóteles fala de três candidatos ao bem supremo ou fim último: o prazer, a honra e a contemplação. Isto, porém, não será abordado aqui por não ser necessário ao objetivo do trabalho, sendo inserido nessa nota apenas para, talvez, motivar o leitor a pesquisar sobre.

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realização na/da vida, diferentemente do sentido que se tem hoje de felicidade. Para os

gregos, a felicidade era um estado de espírito, uma prática, não sendo, assim, algo fugaz,

como geralmente se pensa hoje. “A vida perfeita parece o ser no sentido de completa –

não se tem eudaimonia por um pequeno lapso de tempo, mas sua temporalidade

estende-se ao longo da vida” (Zingano, 2008: 94). Talvez seja melhor compreender

eudaimonia não como felicidade, mas sim como vida feliz, no sentido de se tornar pleno

e de se direcionar da melhor forma possível à vida.

“[A felicidade] [...] é uma certa atividade da alma conforme à excelência. Dos bens restantes, alguns devem ser preexistentes como pré-requisitos da felicidade, e outros são naturalmente coadjuvantes e instrumentais” (E.N., I, 1099b, 22-25).

Independentemente das possíveis conclusões acerca do que é a felicidade, pode-

se aferir que ela, certamente, não é apenas a virtude. Para Aristóteles, ser virtuoso é

necessário à felicidade, porém, não é suficiente. Estar bem com a própria alma é

fundamental, mas o que cerca o indivíduo também tem de estar bem. Não adianta, por

exemplo, ser honesto, justo e bom e ficar órfão precocemente ou assistir à morte de

todos os filhos que se tiver.

“[...] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade – boa estirpe, bons filhos, beleza – pois o homem de má aparência, ou malnascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-las-á ainda menores se seus filhos ou amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bons filhos e amigos, estes tiverem morrido” (E.N., I, 1099a-1099b, 70-78).

Aristóteles busca uma felicidade que dependa o máximo possível de cada

indivíduo. Mas nem por isso dispensa os fatores externos ao indivíduo, e também não os

coloca como fundamentais a eudaimonia: dá a eles o papel de acessórios. Ao buscar

uma felicidade que dependa o mínimo possível de outros fatores que não o próprio

indivíduo, Aristóteles não diz que é possível à felicidade depender apenas do próprio

indivíduo, mas sim que é possível que ela dependa principalmente e majoritariamente

do próprio indivíduo. Voltando à citação primeira dessa parte do artigo, de Marco

Zingano, o bem supremo é aquele que “tem de poder englobar todos os outros bens”

(Zingano, 2008: 89). Ou seja, a felicidade não depende da posse de todos os bens

existentes, mas apenas de poder englobá-los: “para cada caso em consideração, a

quantidade necessária de bens é aquela que dá ao sujeito a auto-suficiência. Obviamente

não só não implica que uma vida feliz exija a totalidade de bens ou tudo aquilo que vale

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a pena conseguir, como varia numericamente a cada caso” (Zingano, 2008: 91). Ainda

segundo Zingano, Aristóteles distingue três tipos de bens que são necessários à

felicidade em maior ou menor grau: ”os bens da alma (as virtudes), causas próprias da

felicidade, os bens do corpo e os bens exteriores, causas coadjuvantes” (Zingano, 2008:

90), sendo estes – os bens do corpo e os bens exteriores – necessários apenas até o

ponto em que o indivíduo atinja a autossuficiência.

“Por exemplo, em EN 1 10, ele [Aristóteles] admite que a conquista efetiva da felicidade, a atividade virtuosa, está, em grande parte, fora do controle humano. “Um grande número de grandes eventos, se resultarem em realizações positivas, farão a vida mais feliz; caso contrário, esmagarão e lesarão a felicidade, pois tanto causam dor como impedem muitas atividades” (1100b25-30). Ele acrescenta que, mesmo quando acometido pelo desastre, “a nobreza resplandece quando o homem é capaz de suportar resignadamente tremendos e numerosos infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por ter uma alma grande e nobre” (1100b30-33). [...] A doutrina de Aristóteles do bem final é uma doutrina a respeito daquilo que é “próprio” do ser humano, isto é, a capacidade de refletir a respeito de seus desejos e habilidades, conceber e escolher para si uma forma de vida satisfatória” (HARDIE, 2010: 63).

A autossuficiência talvez não seja simplesmente não precisar de nada ou não se

desejar e lutar por mais nada, tendo-se já tudo que se quiser. Mas sim, talvez,

autossuficiência seja a capacidade de se deliberar acerca das decisões a se tomar em

cada situação, de se discernir as circunstâncias de modo a sempre se ter a melhor ação

possível, tendo pensamento próprio. E, assim, não depender de nada mais para se ser

feliz, pois ao se conseguir lidar com os infortúnios e ao se tomar sempre a melhor

decisão acerca deles e do que se fazer com eles, pode-se desenvolver a prática da

felicidade: ser feliz sabendo lidar com o que acontecer e se encaminhando sempre para

o bem. Mas se a pessoa sofre infortúnios e não consegue superá-los, apesar de agir

virtuosamente, então é porque os bens que têm em sua vida não lhe conferem a

autossuficiência. E, por isso, pode-se ser uma ótima pessoa, que aja corretamente, mas

que seja azarada, ou muito feia, ou que essa pessoa sofra alguma tragédia pessoal ou

que viva na miséria. Essa pessoa é virtuosa, mas não é feliz. Assim, para se ser

verdadeiramente feliz é preciso que se seja virtuoso, porém, é preciso também ter certos

bens – os quais variam de acordo com o indivíduo tanto em qualidade quanto em

quantidade –, de modo a se atingir a autossuficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O bem varia de acordo com a ocasião. A capacidade de discernir o que é o bem em cada

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ocasião é fundamental à virtude. Aquele que pratica uma boa ação sem compreender o

que faz dessa ação boa e por que ela é a melhor ação a ser realizada de fato pratica uma

boa ação, porém não uma ação virtuosa. A virtude se caracteriza pela comunhão entre a

prática, a compreensão e o desejo do bem.

É condição à felicidade a virtude, porém são precisos também bens – como a

riqueza, a família, a saúde, os amigos, variando de acordo com a situação e o indivíduo

– até o ponto em que se seja autossuficiente. Não se adquire a virtude apenas praticando

boas ações, é necessário também que se compreenda por que tais ações são boas e que

de fato se deseje tais ações. Ao se fazer isso tem-se a excelência moral.

Quando um indivíduo não atinge a autossuficência com os bens que têm em sua

vida, então, por mais que seja virtuoso, pode não conseguir ser feliz: pode ser solitário,

viver na miséria ou sofrer de alguma doença terrível. A felicidade é o conjunto de tudo

que constitui a vida do indivíduo, dependendo majoritariamente do próprio modo do

indivíduo de lidar com o que lhe acontece, ou seja, da sua capacidade de superar e

aceitar, mas não apenas disso; depende também de fatores externos, que são acessórios,

como riqueza, família, saúde e amizade.

Referências:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco in Coleção Os Pensadores. Tradução publicada sob a licença da Edunb – Editora Universidade de Brasília. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996. BURNYEAT, M. F. Aprender a ser bom segundo Aristóteles. Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles: Textos Selecionados. Coordenação de Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2010.

HARDIE, W. F. R. O Bem final na Ética de Aristóteles. Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles: Textos Selecionados. Coordenação de Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2010. ZINGANO, Marco. Eudaimonia e Bem Supremo em Aristóteles. Estudos de Ética Antiga. Coleção Philosophia/Analytica. Direção de Guido Antônio de Almeida e Fátima Regina Rodrigues Évora. Porto Alegre (RS): Unisinos, 2008.

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O CONCEITO DE JUSTIÇA NO LEVIATÃ

DE THOMAS HOBBES

Julio Tomé

Granduando em Filosofia pela UFSC

Resumo: Este trabalho tem como objetivo trazer à tona algumas das considerações que Thomas Hobbes fez sobre o conceito de Justiça na obra Leviatã, sua principal obra de Filosofia Política, por meio de uma discussão filosófica sobre o que seria o Justo e o Injusto; o Bom e o Mau etc. Essa discussão se norteará baseada em análises Jusfilosóficas dos conceitos elaborados e utilizados por Hobbes e que estão em constante discussão (até hoje) nas obras de Filosofia Política e Filosofia do Direito. Trata-se então de um trabalho cujo foco é o conceito de Justiça, trazendo consigo as implicações dos termos hobbesianos como, por exemplo, Estado; Soberano; Leis; Verdadeiro e Falso; Bom e Mau; Justo e Injusto etc., e seus significados.

Palavras-chave: Conceito de Justiça. Filosofia Política. Filosofia do Direito. Leviatã.

Abstract: This paper aims to discuss some of the considerations that Thomas Hobbes did about the concept of Justice in the book Leviathan, his main work of Political Philosophy, through a philosophical discussion about what is the Just and Unjust; the Good and Evil etc. This discussion will be guide based on analyzes of ‘Jusphilosophical’ concepts elaborated and used by Hobbes and are in constant discussion (nowadays) in the writings of Political Philosophy and the Philosophy of Law. In order to that, it is a work its focus is the concept of Justice, bringing itself the implications of hobbesian terms, as, for instance, State; Sovereign; Laws; True and False; Good and Evil; Just and Unjust, and their meanings. Keywords: Concept of Justice. Political Philosophy. Philosophy of Law. Leviathan.

Introdução

O pensamento hobbesiano sobre a Justiça parte da premissa que esta só é

possível em um Estado Civil, constituído por meio de um contrato62 entre todos os

cidadãos e o soberano, percebe-se isso logo no início do quarto capítulo do Leviatã,

quando Hobbes está tratando sobre a linguagem e afirma que: “[...] o verdadeiro e o

                                                                                                                         62 Nesse trabalho não se fará a diferenciação entre pacto e contrato para Thomas Hobbes. A quem o assunto interessar, recomenda-se a leitura da obra Hobbesiana Do cidadão.

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falso são atributos da linguagem, e não das coisas [...].”63. A partir dessa frase pode-se

chegar à conclusão de que são os homens, por meio da linguagem, que atribuem o valor

verdadeiro ou falso às coisas, ou seja, as coisas não são verdadeiras ou falsas por

natureza, mas sim porque são atribuídos a elas certos valores, e o mesmo valerá para

justo ou injusto; certo ou errado etc., no pensamento de Hobbes, sendo que para haver

essa valoração, sobre o que seria justo, é necessário que haja um poder comum a todos

os cidadãos, como se verá mais detalhadamente no decorrer deste trabalho, pois,

segundo o pensamento de Hobbes, “[...] sem linguagem não haveria Estado, nem

sociedade, nem contrato, nem paz, tal como não existem entre os animais.”64.

Para Hobbes, a valoração de justo ou injusto, bom ou mau etc., deve vir após a

instituição de um poder comum a todos, pois, segundo o pensamento hobbesiano, cada

pessoa terá sua própria concepção dessas palavras, ou numa linguagem mais próxima do

autor, o objeto de desejo ou apetite – vontade – de um homem, será chamado por ele de

bom; já ao objeto de ódio ou aversão, chamará de mau, quando então essas palavras

terão valores diferentes dependendo da pessoa que as usar. Disso se pode concluir,

adiantando um pouco o que será dito mais à frente, que é o soberano que determinará o

que é bom ou mau, justo ou injusto, para os cidadãos de um Estado Civil, e isso, na

verdade, será fruto do desejo dos próprios homens pertencentes ao Estado. Sendo que

em um Estado de Natureza, não haverá injustiça, pois além de não haver poder comum,

para determinar o que é justo ou injusto, todos os homens têm o direito de se defender

uns dos outros.

Este trabalho, então, se propõe a analisar o conceito de justiça do Leviatã

hobbesiano. A primeira seção é a análise de como Hobbes entende que algo pode ser

considerado justo ou injusto; bom ou mau etc. e, por meio dessa análise, chega-se a

interpretação que se pode ligar o pensamento hobbesiano à teoria juspositivista, pois,

como se verá, algo só poderá ser valorado como certo (em sentido de justo) em um

Estado Civil, na figura do soberano, onde uma lei será justa por ser uma lei,

independente de seu conteúdo, pois a justiça está naquilo que determina o soberano.

                                                                                                                         63 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 18. 64 MELLO, Elson Rezende. Considerações sobre o Estado em Hobbes. In: Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 217-234, jan./jun. 2012. p. 223.

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O que então leva esse trabalho a sua segunda seção, onde se fará a ligação da

justiça ao poder, pois, para Hobbes, os homens têm como uma tendência geral, um

perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que só acaba com a morte. O poder,

para Hobbes, ou melhor, a busca deste, será o que determinará as diferenças dos

‘talentos’ nos homens. Sendo que: “[...] O maior dos poderes humanos é aquele que é

composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa,

natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade:

é o caso do poder de um Estado. [...]”65. E disso chega-se a questionamentos como:

Quem está mais apto a ter em suas mãos o poder de dizer o que é justo em um Estado

Civil, i.e., de ser o soberano do Leviatã? A justiça então ficaria a cargo do soberano, e

tudo que for determinado por meio da espada do Estado como justo, será justo?

Já na terceira e última seção, será abordada a relação entre soberania e coerção,

i.e., como as ações do soberano no Estado Civil podem, por meio do medo de sanções e

punições, ou seja, do poder coercitivo, do poder de coerção, fazer com que os súditos

cumpram as leis do Estado Civil e com isso garantir que suas vidas sigam em um

‘Estado de paz’.

SEÇÃO I – JUSTO E INJUSTO: A ESPADA E O PODER

Hobbes afirma que há a tendência nos homens de considerar algo como justo ou

injusto por meio do costume, sendo que essas palavras não têm qualquer valor moral,

por si próprias, sendo que os homens: “[...] considerarem injusto aquilo que é costume

castigar, e justo aquilo de cuja impunidade e aprovação pode apresentar um exemplo

[...]”66. Hobbes explica esse ponto por meio do exemplo de uma criança pequena que

tem como regra de bom ou mau os castigos e correções impostas, ou não, por seus pais

sobre suas ações. Porém, segundo o pensamento de Hobbes, os homens (já adultos)

afastam-se dessa regra, quando seus interesses são contrários àquilo que é imposto pela

regra, colocando-se assim contra a razão, todas as vezes que a razão fica no lado

contrário aos seus desejos. É por meio dessa ‘traição’ da razão que: “[...] a doutrina do

bem e do mal é objeto de permanente disputa, tanto pela pena como pela espada [...]”67.

                                                                                                                         65 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p.13. 66 Idem. Ibidem. p. 39. 67 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 39.

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Por meio dessa afirmação de Hobbes, de que o bem e o mal são objetos de disputa,

pode-se chegar à conclusão de que não haveria uma moral pré-determinada que fosse

correta, pois sempre haveria uma disputa sobre quais ações seriam certas ou justas e

quais seriam incorretas e injustas, sendo necessário, para dar fim a essa disputa pelo que

seria bom ou ruim, um poder comum a todos, pois se pode afirmar que os costumes não

são suficientes para determinar o que é bom ou mau.

É então, por meio da espada do Estado que se ‘universaliza’ o que é justo e

injusto para os cidadãos de um Estado Civil, pois para Hobbes: “[...] durante o tempo

em que os homens vivem sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito,

eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos

os homens contra todos os homens.[...]”68, onde nesse ‘Estado de guerra’, no Estado de

Natureza, não haverá ações que possam ser consideradas injustas.

O que foi dito anteriormente, está assim escrito, de acordo com Thomas Hobbes,

no capítulo XIII do Leviatã:

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. [...] A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. [...] São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo.69

No entanto, nesse momento pergunta-se: já que não há injustiça em um Estado

de Natureza e todos os homens podem fazer aquilo que acharem necessário para a

preservação de suas vidas, por que então entrar em um Estado Civil onde esse poder se

torna ‘limitado’ e há noções e valorações de justo e injusto, assim como ações que

podem ser punidas pela espada do poder?

O Leviatã de Hobbes ‘responde’ a essa pergunta, afirmando que em um Estado

de Natureza os homens estariam em um estado de liberdade total, porém estariam em

completa insegurança. Sendo que a insegurança os levaria a pensar em sua

autopreservação e, com isso, a abdicarem de sua ‘liberdade completa’ (sendo que

liberdade para Hobbes é entendida apenas como ausência de impedimentos externos),

para então viverem em um estado que lhes garantisse a segurança, i.e., o Estado Civil.

                                                                                                                         68 Idem. Ibidem. p. 46. 69 Idem. Ibidem. p. 47.

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Como complemento à abdicação da completa liberdade por parte dos súditos,

todos os homens, em comum acordo, acabariam por decidir que é preferível a

‘submissão’ a um poder que garanta a segurança deles por meio de um contrato. E, a

partir desse momento, por meio do contrato entre todos os homens com aquele – sendo

um homem, ou uma associação de determinados homens, ou de todos os homens – que

será o soberano, constitui-se o Estado Civil. Lembra-se aqui que são apenas os homens

que fazem o contrato uns com os outros, entrando assim no Estado Civil, por meio da

figura do soberano, para garantirem sua autopreservação, segurança, mas que o

soberano não fará contrato com ninguém, pois este é absoluto e o responsável por

garantir a segurança no Estado Civil.

Para Hobbes, é uma lei de natureza (a terceira) que ‘os homens cumpram com os

pactos que celebrarem’ e, se assim não fizerem, pode-se se ter como resultado a volta da

vida em um Estado de Natureza. Sendo que a espada do Estado trabalha por meio do

medo, das possíveis sanções, sendo a responsável por tentar fazer que com que essa ‘lei

de natureza’ seja cumprida, tornando-a uma ‘lei civil’, pois, como pode ser lido no

Leviatã, uma lei de natureza só se torna uma lei civil, se assim for do interesse do

soberano (ou esse se calar frente à prática comum dessa lei, por parte dos súditos). E é

por meio dessa lei que reside, segundo o pensamento hobbesiano, a ‘fonte e a origem da

justiça’, pois para Hobbes “[...] definição da injustiça não é outra senão o não

cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.”70.

Portanto, para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao beneficio que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado.71

Sendo que, por meio do poder coercitivo, ou das leis de coerção que ordenam

‘faças isso’ ou ‘faças aquilo’ é que podem ser definidas ações como justas ou injustas, e

elas só passam a ter determinada valoração após serem impostas como tais, o que ocorre

por meio da imposição do Estado Civil, na figura do soberano.                                                                                                                          70 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 52. 71 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 53.

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O que foi dito até o momento, nas palavras de Hobbes está posto assim:

[...] Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade.72

Segundo o pensamento de Hobbes, há duas formas de interpretar as palavras

‘justo’ e ‘injusto’: uma quando se refere aos homens, outra quando se refere às ações,

sendo que quando são atribuídas: a) aos homens, expressam a incompatibilidade

(injusto) ou conformidade (justo) com os costumes e com a razão; b) já quando essas

mesmas palavras são atribuídas a ações, indicam conformidade ou incompatibilidade

com a razão de ações determinadas. Nas palavras de Hobbes: “[...] Portanto um homem

justo é aquele que toma o maior cuidado possível para que todas as suas ações sejam

justas, e um homem injusto é o que despreza esse cuidado. [...]”73.

Hobbes afirma que a Justiça que é chamada de ‘distributiva’ deveria ser

chamada de ‘equitativa’, sendo que quando uma pessoa, a pedido do soberano

assumisse um cargo de juiz numa causa que envolvesse dois homens como as partes

conflitantes “[...] é um preceito da lei de natureza que trate a ambos equitativamente.

Pois sem isso as controvérsias entre os homens só podem ser decididas pela guerra.

[...]”74

SEÇÃO II – ESTADO CIVIL: O SOBERANO E O PODER

O objetivo da criação do Estado Civil, para Hobbes, é o cuidado com a

preservação da vida dos cidadãos, quando é feito pelos homens um cálculo racional, por

meio da razão e das paixões, para verificar que é melhor abdicar da liberdade total, para

que assim suas vidas sejam preservadas.

Mesmo existindo as leis de natureza, para Hobbes é necessário que seja

instituído um poder suficientemente grande para a segurança dos súditos. Pois, levando

em conta o pensamento de Hobbes “[...] no estado de natureza, cada um se representa

sua vida e seu direito à vida [...].”75. A instituição desse poder, que é representado pela

                                                                                                                         72 Idem. Ibidem. p. 52. 73 Idem. Ibidem. p. 53. 74 Idem. Ibidem. p. 55. 75 MALHERBE, Michel. Liberdade e necessidade na filosofia de Hobbes. Tradução de Maria Isabel Limongi. In: Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n.1-2, p. 45-64, jan.-dez. 2002. p. 58

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figura do soberano76, é necessária, pois segundo Hobbes os homens não conseguem

ficar em paz sem sujeição.

Segundo o pensamento de Hobbes, a partir da instituição do Estado Civil cada

indivíduo (súditos) será o verdadeiro autor de tudo aquilo que o soberano vier a fazer. A

conclusão desse pensamento de Hobbes é que o soberano não pode ser responsável por

atos injustos e o soberano tem como função de seu cargo ser o juiz e prescrever as

regras das quais os homens do Estado poderão gozar, pertencendo também ao poder

soberano a autoridade judicial.

Como já dito anteriormente, está na mão do soberano decidir aquilo que é bom

ou mau em um Estado, assim como justo e injusto, como pode ser visto nessa citação

retirada do Leviatã: “[...] Competia, portanto, ao soberano ser juiz, e prescrever as

regras para distinguir entre o bem e o mal, regras estas que são as leis; por

conseqüência, é nele que reside o poder legislativo[...]”77, onde:

[...] A soberania é a alma do Estado, e uma vez separada do corpo os membros deixam de receber dela seu movimento. O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um homem a veja, quer em sua própria espada quer na de um outro, a natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservá-la.78.

A soberania seria então, a única representação absoluta do povo, para Hobbes.

Há, no Estado Civil ‘criado’ por Hobbes, um poder judicial onde os ‘ministros

públicos’ são delegados pelo Poder Soberano, “[...] Porque em suas sedes de justiça

representam a pessoa do soberano, e sua sentença é a sentença dele. [...]”79. Sendo que

haverá dois tipos de controvérsia, as de fato e de direito, podendo haver assim também

dois juízes, os de fato e de direito.

Haverá, nos Estados Civis, aquilo que Hobbes chamará de Leis Civis, sendo que

essas são “[...] para todo súdito, constituídas por aquelas regras que o Estado lhe impõe,

oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como

critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não é contrário à

                                                                                                                         76 Lembra-se aqui que esse soberano pode ser apenas um homem – monarquia, ou por meio de assembleias, de todos os homens – democracia; ou de alguns homens – aristocracia. 77 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 72. 78 Idem. Ibidem. p. 76. 79 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 83.

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regra.”80. Explicando: o Estado diz o que é bom ou mau, assim como justo ou injusto,

por meio de regras, às quais os súditos deverão seguir e, a partir de então, o que for

colocado como bem serão regras a se seguir (ou seja, leis às quais se deve cumprir; e o

não cumprimento destas poderá ser penalizado), e o inverso também será verdadeiro, ou

seja, pode haver regras onde serão expostas coisas contrárias ao bom andamento do

convívio em sociedade, coloca-se assim, e as ações que entrarem nesse leque serão ditas

contrárias às regras e poderão ser penalizadas. Sendo “[...] as leis são as regras do justo

e do injusto, não havendo nada que seja considerado injusto e não seja contrário à

alguma lei. [...]”81.

O soberano é o único legislador, sendo ele o único autorizado a revogar uma lei,

onde: “[...] o súdito obedece de acordo com as regras, mas o soberano faz as regras e

age de acordo com o que considera ideal.”82. Sobre a questão das leis, Hobbes afirma

que o soberano é o responsável pela interpretação das Leis de Natureza.

[...] Porque no ato de judicatura o juiz não faz mais do que examinar se o pedido de cada uma das partes é compatível com a eqüidade e a razão natural, sendo, portanto, sua sentença uma interpretação da lei de natureza, interpretação essa que não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade do soberano, mediante a qual ela se torna uma sentença do soberano, que então se torna lei para as partes em litígio.

Sendo de responsabilidade de um bom juiz, ou bom intérprete das leis uma

correta compreensão da lei principal de natureza, chamada de lei de equidade. Essa boa

interpretação se dará por meio da sanidade da própria razão e mediação natural,

desprezando as riquezas desnecessárias, assim como as preferências. Sendo capaz de

despir-se de todas as paixões, assim como deve haver paciência para ouvir e dirigir e

aplicar o que se ouviu.

SEÇÃO III – A SOBERANIA E A COERÇÃO

Para Hobbes, o direito de punir as injustiças cometidas dentro do Estado Civil,

vai ao encontro da vontade do soberano. O direito de punir é pertencente ao Estado,

quem determinará o que é uma lei e, consequentemente, que tal ato sendo lei é bom para

o Estado e seus cidadãos será o soberano. E independente de seu conteúdo as leis

criadas têm de ser respeitada, pois foram os próprios súditos na figura do soberano os

                                                                                                                         80 Idem. Ibidem. p. 90 81 Idem. Ibidem. p. 90. 82 BUENO, Marcelo Martins. Medo e Liberdade no pensamento de Thomas Hobbes. In: Revista Primus Vitam, n.1, ano 1, 2 sem. 2010. p. 9.

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autores de qualquer que seja a lei. Isso fica exposto na seguinte passagem da obra

hobbesiana:

[...] Todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações. Isto é verdade na condição de simples natureza, quando não existem leis civis, e também sob o governo civil nos casos que não estão determinados pela Lei. Mas não sendo assim é evidente que a medida das boas e más ações é a lei civil, e o juiz o legislador, que sempre é representativo do Estado. [...].83.

Para Hobbes, a forma de garantir a segurança dos cidadãos do Estado Civil

(motivo pelo qual eles aceitaram o pacto) é por meio das ações coercitivas do soberano,

isto é, por meio das leis criadas para a proteção dos cidadãos e do Estado.

A obediência dos súditos às leis do Estado é, para Hobbes, o principal meio para

que o soberano consiga cumprir seu principal objetivo do pacto, ou seja, manter a

segurança dos cidadãos do Estado Civil, sendo que, para isso, fica implícito que os

cidadãos devem cumprir as leis do Estado, pois além de eles serem os autores destas,

elas servem para protegê-los, o que levaria a um pensamento compatível com o do

positivismo jurídico, pois como o próprio Hobbes comenta, as leis positivas são aquelas

criadas (e não naturais), que são justas, pois são leis, e por isso devem ser obedecidas. O

próprio Hobbes argumenta em favor a isso, na seguinte passagem do Leviatã:

[...] Pois a prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece.84

Para Hobbes, a justiça deve ser ensinada, assim como as consequências do não

cumprimento das leis, pois é fazendo uso do medo que se deve fazer com que os

cidadãos cumpram as leis, as quais não estariam dispostos a cumprir se não houvesse

um poder comum a todos, lembrando que o pensamento hobbesiano traz consigo a ideia

de que, se for necessário, o cumprimento das leis será por meio de ações de coerção,

sanções. Sendo que, segundo a visão hobbesiana, é função do soberano fazer boas leis,

entendidas por Hobbes como:

                                                                                                                         83 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 108. 84 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 113.

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[...] apenas uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta. A lei é feita pelo soberano poder e tudo o que é feito por tal poder é garantido e diz respeito a todo o povo, e aquilo que qualquer homem tiver ninguém pode dizer que ë injusto. [...] Uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e, além disso, evidente.85

Seguindo o pensamento de Hobbes, nenhuma lei pode ser injusta, e isso se deve

ao fato de que a lei é de autoria dos próprios cidadãos na figura personificada do

soberano, ou seja, independente do que for ali colocado como lei (isto é, de seu

conteúdo), como fora já colocado, ela não poderá ser considerada injusta, pois tem

como objetivo o bem dos cidadãos do Estado Civil. O objetivo das leis é dirigir e

manter os cidadãos num movimento para que assim não se firam com os seus próprios

desejos.

Para finalizar, traz-se uma ultima citação da obra de Hobbes:

[...] a ciência da justiça natural é a única ciência necessária para os soberanos e para seus principais ministros, e que eles não precisam ser sobrecarregados com as ciências matemáticas (como precisam nos textos de Platão), além de por boas leis serem os homens encorajados ao seu estudo, e que nem Platão nem qualquer outro filósofo até agora ordenou e provou com suficiência ou probabilidade todos os teoremas da doutrina moral, que os homens podem aprender a partir daí não só a governar como a obedecer, fico novamente com alguma esperança de que esta minha obra venha um dia a cair nas mãos de um soberano, que a examinará por si próprio (pois é curto e penso que claro), sem a ajuda de algum intérprete interessado ou invejoso, e que pelo exercício da plena soberania, protegendo o ensino público desta obra, transformará esta verdade especulativa na utilidade da prática.86

Traz-se esta citação, para encerrar esse trabalho, que teve como objetivo

apresentar aquilo que Hobbes entende por justiça em seu Leviatã, pois de acordo com o

raciocínio hobbesiano em sua obra, o soberano é aquele que tem como função dizer o

que é certo e o que é errado; o que é justo e o que é injusto etc., em um Estado Civil,

que, por meio das leis civis, tem como um dos principais objetivos, para um bom

governo, manter seus súditos seguros (um dos outros e de Estados vizinhos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se que, pelo contexto histórico no qual Hobbes estava inserido, a obra

Leviatã não trata propriamente de como se chegar ao poder, mas sim de como o

soberano pode manter-se no poder, e para tal, Hobbes afirma a necessidade de se

instituir um Estado Civil, com a figura do soberano ‘forte’, sendo ele o responsável por

                                                                                                                         85 Idem. Ibidem. p. 116. 86 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). p. 123.

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dizer aos súditos quais as leis civis (e naturais transformadas em civis) que eles devem

respeitar para assim garantirem sua segurança.

Com isso Hobbes descreve um Estado que pode ser lido pela visão jusfilosófica

contemporânea como um Estado com leis positivadas (positivismo jurídico), no qual

quem dirá o que é justo é o próprio soberano, representando com isso a vontade dos

súditos do Estado Civil. Afirma-se então que o conceito de justiça no Leviatã de Hobbes

é de uma justiça positivada na espada do soberano, podendo até mesmo ser chamada de

uma justiça legalista (também em termos mais contemporâneos), sem entrar aqui

naquilo que tange a discussão sobre a desobediência civil em Hobbes.

Referências:

AGUIAR, Renan. Direito Natural e Direito Positivo a partir da Teoria da Linguagem de Thomas Hobbes.Versão Digital. Disponível em: <http://www.cp2. g12.br/UAs/se/departamentos/sociologia/pespectiva_sociologica/Numero1/Renan%20Aguiar%20-%20Thomas%20Hobbes.pdf>. Acesso em: 19 maio 2014.

ARAUJO, Bernardo Goytacases de; LUNA, Sérgio. Duas concepções da Filosofia Política Moderna: Hobbes e Locke. Versão Digital. p. 3. Disponível em: <http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/DCFPMHL.pdf.>. Acesso em: 20 maio 2014. BUENO, Marcelo Martins. Medo e Liberdade no pensamento de Thomas Hobbes. In: Revista Primus Vitam, n.1., ano1, 2. sem. 2010. MALHERBE, Michel. Liberdade e necessidade na filosofia de Hobbes. Tradução de Maria Isabel Limongi. In: Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n.1-2, p. 45-64, jan.-dez. 2002.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). Versão Digital. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/ marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf>. Acesso em: 15 maio 2014. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas Hobbes, avatar do positivismo jurídico: uma leitura jusfilosófica do Leviatã. In: PHRONESIS Revista do Curso de Direito da FEAD-Minas, v. 1, n. 1, jan. 2006.

MELLO, Elson Rezende. Considerações sobre o Estado em Hobbes. In: Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 217-234, jan./jun. 2012.

MONTEIRO, João Paulo. A ideologia do Leviatã hobbesiano. Versão digital. Disponível em: <http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/monteiroleviatahobbesiano. pdf/at_download/file>. Acesso em: 7 maio 2014.