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1 REVISITANDO O TEOREMA DE PITÁGORAS Marli Duffles Donato Moreira Que lei matemática tão simples a regular a estrutura duma figura geométrica! Por isso, este teorema foi sempre considerado como a mais brilhante aquisição da escola pitagórica. (Bento de Jesus Caraça, 1970, p.71) RESUMO Este artigo apresenta uma releitura do Teorema de Pitágoras, destacando algumas notas históricas e conexões com outros resultados matemáticos relevantes. Visitar a história é sempre uma viagem com muitos frutos. O número de provas conhecidas do teorema de Pitágoras pertence à casa das centenas. Destaco, neste trabalho, dez provas do famoso teorema selecionadas por critérios estéticos e/ou culturais. Muitos nomes notáveis da matemática podem ser conectados através do teorema do triângulo retângulo: Pitágoras, Euclides, Diofanto, Fermat, Wiles. Pretendo destacar, neste trabalho, as conexões matemáticas. Palavras-chave: Teorema de Pitágoras. Provas. História. 1. INTRODUÇÃO Há temas da cultura, das artes e das ciências que são fontes inesgotáveis de novas ideias e perspectivas. Assim é o Teorema de Pitágoras (Figura 1): em qualquer triângulo retângulo (triângulo que possui um ângulo reto), a área do quadrado construído sobre a hipotenusa (o maior lado) é igual à soma das áreas dos quadrados construídos sobre os catetos (os outros dois lados do triângulo). Esta é, provavelmente, a proposição matemática mais conhecida em todo o mundo. Mesmo muitas pessoas que não são da Doutora em Ensino e Divulgação das Ciências pela da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto Bolsista CAPES/Brasil Mestre em Ensino de Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro E-mail: [email protected]

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REVISITANDO O TEOREMA DE PITÁGORAS

Marli Duffles Donato Moreira

Que lei matemática tão simples a regular a estrutura duma figura geométrica!

Por isso, este teorema foi sempre considerado como

a mais brilhante aquisição da escola pitagórica.

(Bento de Jesus Caraça, 1970, p.71)

RESUMO

Este artigo apresenta uma releitura do Teorema de Pitágoras, destacando algumas

notas históricas e conexões com outros resultados matemáticos relevantes. Visitar a

história é sempre uma viagem com muitos frutos. O número de provas conhecidas do

teorema de Pitágoras pertence à casa das centenas. Destaco, neste trabalho, dez provas

do famoso teorema selecionadas por critérios estéticos e/ou culturais. Muitos nomes

notáveis da matemática podem ser conectados através do teorema do triângulo

retângulo: Pitágoras, Euclides, Diofanto, Fermat, Wiles. Pretendo destacar, neste

trabalho, as conexões matemáticas.

Palavras-chave: Teorema de Pitágoras. Provas. História.

1. INTRODUÇÃO

Há temas da cultura, das artes e das ciências que são fontes inesgotáveis de novas

ideias e perspectivas. Assim é o Teorema de Pitágoras (Figura 1): em qualquer triângulo

retângulo (triângulo que possui um ângulo reto), a área do quadrado construído sobre a

hipotenusa (o maior lado) é igual à soma das áreas dos quadrados construídos sobre os

catetos (os outros dois lados do triângulo). Esta é, provavelmente, a proposição

matemática mais conhecida em todo o mundo. Mesmo muitas pessoas que não são da

Doutora em Ensino e Divulgação das Ciências pela da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

– Bolsista CAPES/Brasil

Mestre em Ensino de Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

E-mail: [email protected]

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área das ciências exatas já ouviram falar sobre ele ou têm alguma memória escolar do

assunto.

Figura 1. Representação geométrica do Teorema de Pitágoras, c2 = a2 + b2; o

triângulo ABC é retângulo, de hipotenusa c e catetos, a e b.

É uma tarefa desafiante propor um novo olhar sobre este famoso teorema tendo

em vista tudo o que já foi publicado sobre ele. Minha intenção, neste artigo, é destacar

algumas conexões relevantes do Teorema de Pitágoras com outros resultados

matemáticos. Pretendo, igualmente, apresentar dez provas do referido teorema

selecionadas a partir de critérios estéticos e/ou culturais.

Há centenas de provas publicadas do Teorema de Pitágoras. Em 1907, Elisha

Scott Loomis, professor de Matemática em Cleveland (EUA), escreveu o manuscrito

The Pythagorean Proposition com uma coletânia de demonstrações do teorema. A

primeira publicação deste trabalho foi em 1927. Sua segunda edição, publicada em

1940, continha 370 demonstrações que remontam ao período entre 900 a.C. e 1940 d.C..

Esta segunda edição foi reimpressa, em 1968 e 1972, pelo National Council of Teachers

of Mathematics (NCTM), quando Loomis já havia falecido.

Neste trabalho evidencio a fertilidade da matemática e a riqueza de suas conexões.

Vamos nos deter ao teorema de Pitágoras. Uma proposição de origens tão remotas, algo

em torno de quatro milênios, ensejou o desenvolvimento de muitos outros resultados

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matemáticos importantíssimos. Um exemplo indubitável desta fertilidade é a história do

Último Teorema de Fermat que conecta renomados homens das ciências, de épocas e

lugares distintos: Pitágoras de Samos, século VI a.C., da Grécia; Diofanto de

Alexandria, c. século III, da Grécia; Pierre de Fermat, século XVII, da França; Andrew

Wiles, século XX/XXI, da Inglaterra. Falarei sobre esta história mais adiante neste

artigo.

A primeira questão que podemos levantar, quando estudamos a relação entre os

lados do triângulo retângulo, refere-se ao porquê de Pitágoras dar nome a este teorema.

Há fortes indicações históricas que nos habilitam a afirmar que esta proposição já era

conhecida por alguns povos há pelo menos 1000 anos antes de Pitágoras (Katz, 2010).

O trabalho de arqueólogos na região da Mesopotâmia, atual Iraque, trouxe a

público mais de 500 000 placas de argila, sendo que deste total, quase 400 são de

conteúdo matemático e testemunham o conhecimento desta antiga civilização (Eves,

2008). Duas delas, em particular, apresentam dados ligados ao Teorema de Pitágoras: a

YBC 7289 (Figura 2), do período de 1800 a 1600 a.C., que pertence à Yale Babylonian

Collection, da Universidade de Yale, Connecticut, Estados Unidos, e a Plimpton 322

(Figura 3), de aproximadamente 1700 a.C., da Universidade de Columbia, Nova Iorque,

Estados Unidos.

A YBC 7289 expõe um quadrado, suas diagonais e suas respectivas medidas. Os

números são representados em escrita cuneiforme e em base sexagesimal. É

surpreendente a precisão de cálculo para o comprimento da diagonal, 30√2, o que

denota conhecimento da relação pitagórica.

Figura 2. Placa babilônica YBC 7289.

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0b/Ybc7289-bw.jpg

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Na Plimpton 322, há números dispostos em quatro colunas e quinze linhas,

também em escrita cuneiforme e notação sexagesimal, o que era típico do sistema de

numeração babilônico. Este é um importante documento histórico da Antiga Babilônia

em que aparece a relação entre os lados de alguns triângulos retângulos denotando

conhecimento de uma forma de calcular ternos pitagóricos1. Não há uma generalização

da relação matemática dos triângulos retângulos, contudo muitos historiadores veem aí

uma prova de que o conhecimento do teorema é anterior a Pitágoras.

Se este era ou não o método usado pelo escriba babilônico para redigir o Plimpton 322, o

facto é que o escriba conhecia a relação pitagórica. E, apesar de esta tabela particular não

ter a indicação de uma relação geométrica, excepto para as designações das colunas,

existem problemas nas antigas placas babilônicas que tornam explícito o uso geométrico do

teorema de Pitágoras. (Katz, 2010, p.43)

Figura 3. Placa babilônica Plimpton 322.

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c2/Plimpton_322.jpg

Em vista destes indícios, é bastante razoável sustentarmos que a propriedade do

triângulo retângulo era, de fato, conhecida pelos povos antigos, anteriores à época de

Pitágoras. De fato, Pitágoras dá nome ao teorema por conta da generalização que

estabeleceu a este resultado. É a ele creditada a primeira prova formal do teorema.

1 Ternos pitagóricos são soluções inteiras (a, b, c) da equação a2 + b2 = c2. Isto é, são comprimentos

inteiros dos lados de um triângulo retângulo.

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Conta a lenda que Pitágoras teria oferecido uma hecatombe2 aos deuses em sinal de

agradecimento e alegria pela demonstração do teorema (Struik, 1997).

Enquanto as civilizações anteriores fizeram uso da propriedade dos triângulos

retângulos em alguns casos particulares e experimentais, a grande contribuição de

Pitágoras foi a de demonstrar a validade desta relação para todo e qualquer triângulo

retângulo plano. Segundo Singh (2008, p.45), “A descoberta foi um marco na história

da matemática e um dos saltos mais importantes da história da civilização”.

2. UMA SELEÇÃO ESPECIAL: DEZ PROVAS

Apresentarei, nesta secção, as dez provas do Teorema de Pitágoras que selecionei

entre as inúmeras possíveis. São provas que cobrem um período de aproximadamente

2500 anos de história. Este é um ponto a ser destacado: o poder de mobilização da

criatividade e do pensamento humanos que a matemática exibe. Pitágoras, Euclides,

Papus de Alexandria, Bhāskara, Leonardo da Vinci, John Wallis, James Abram Garfield

são alguns dos nomes (foram muitos outros) que se deixaram fascinar pelo encanto da

matemática do triângulo retângulo.

A seguir, as contribuições destes homens além de duas outras demonstrações, uma

da China Antiga e outra de caráter dinâmico.

2.1. A demonstração de Pitágoras

Pitágoras (571-496 a.C.) foi um matemático e filósofo grego. Nasceu em Samos,

ilha grega do mar Egeu, e fundou uma comunidade, a escola pitagórica, em Crotona, sul

da Itália. Acreditava que os números eram o princípio de todas as coisas. Os pitagóricos

tinham entre si um pacto de silêncio.

“Qual foi a demonstração dada por Pitágoras? Não se sabe ao certo, pois ele não

deixou trabalhos escritos. A maioria dos historiadores acredita que foi uma

demonstração do tipo “geométrico”, isto é, baseada na comparação de áreas.” (Lima,

2006, p.53)

Embora não se tenha certeza desse fato, a prova atribuída a Pitágoras é uma

demonstração simples por decomposição de figuras (Eves, 2008), como mostrada a

seguir (Figura 4).

2 Hecatombe é o sacrifício de 100 bois aos deuses.

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Figura 4. Demonstração de Pitágoras; a, b representam as medidas dos catetos e

c, a medida da hipotenusa do triângulo retângulo.

A figura à esquerda apresenta um quadrado de lado a + b decomposto em seis

partes: um quadrado de lado a, um quadrado de lado b e quatro triângulos retângulos de

catetos a e b e hipotenusa c. A figura à direita apresenta um quadrado, congruente ao

primeiro, porém decomposto de outra forma, em cinco partes: um quadrado de lado c e

quatro triângulos retângulos congruentes aos da primeira figura. Como a área da figura à

direita é igual à área da figura à esquerda, retirando-se os quatro triângulos retângulos

de ambas as figuras, o que resta tem que ser igual: a2 + b2 = c2, onde a e b representam

as medidas dos catetos e c a medida da hipotenusa de um triângulo retângulo qualquer.

Outra maneira de abordar esta prova é a de considerar o fato de que a área de uma

figura plana é igual à soma das áreas das partes que compõem a figura original (sem

superposição). Assim, podemos considerar o quadrado de lado a + b. Sua área será dada

pela expressão (a + b)2. De outra forma, podemos considerar a soma das áreas de suas

cinco partes (figura à direita): c2 (quadrado de lado c) + 4 . 1

2 . a . b (quatro triângulos

de catetos a e b). Igualamos, então, as duas expressões referentes à área do quadrado de

lado a + b e simplificamos o resultado, conforme mostrado a seguir.

(a + b)2 = c2 + 4 . 1

2 . a . b

a2 + 2.a.b + b2 = c2 + 2.a.b

Então, a2 + b2 = c2, como queríamos demonstrar.

2.2. O teorema de Pitágoras por Euclides

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Euclides, professor de matemática em Alexandria, escreveu, por volta de 300 a.C.,

a obra matemática mais antiga que se conservou no tempo: os Elementos. Composta por

treze livros, com 465 proposições, é um notável compêndio da matemática conhecida à

época. É a segunda obra mais publicada em todo o mundo, só perdendo para a Bíblia. A

matemática presente nos Elementos é tratada por Euclides de forma axiomática. As

proposições encadeiam-se em um discurso lógico dedutivo primoroso (Eves, 2008).

A seguir, apresentarei três proposições, I.47, I.48 e VI.31, que tratam do triângulo

retângulo. No Livro I, a proposição I.47 trata do teorema de Pitágoras e sua

demonstração, apesar de Euclides não nomeá-lo assim, e a proposição I.48 trata da

recíproca do Teorema de Pitágoras. No Livro VI, a proposição VI.31 trata de um

resultado surpreendente a respeito das áreas das figuras que se desenham sobre os lados

de um triângulo retângulo. A propriedade que se verifica em relação aos quadrados

desenhados sobre os catetos e a hipotenusa de um triângulo retângulo é igualmente

válida para quaisquer figuras semelhantes desenhadas sobre os lados de um triângulo

retângulo.

2.2.1. Proposição I.47

“Nos triângulos retângulos, o quadrado sobre o lado que se estende sob o ângulo

reto é igual aos quadrados sobre os lados que contêm o ângulo reto.” (Euclides, 2009,

p.132)

A demonstração de Euclides para o Teorema de Pitágoras (importa notar que

Euclides não nomeia o teorema nem usa a denominação hipotenusa e catetos para os

lados do triângulo retângulo) assenta-se em equivalência de área das figuras planas.

Inicialmente, desenhamos um triângulo retângulo qualquer e os quadrados sobre a

hipotenusa e os catetos. Em seguida, traçamos a altura relativa à hipotenusa,

estendendo-a de forma a dividir o quadrado desenhado sobre a hipotenusa em duas

partes, dois retângulos, AHJK e BHJI (Figura 5). Traçamos, então, o segmento de reta

que une o vértice C ao vértice K. O mesmo se faz em relação aos vértices C e I. Desta

forma, construímos os triângulos ACK e BCI. Reparemos que estes triângulos têm a

metade da área dos retângulos AHJK e BHJI, respectivamente. Por outro lado, o

triângulo ACK é congruente ao triângulo ADB que tem a metade da área do quadrado

ACED. O mesmo ocorre entre os triângulos BCI e BAG e o quadrado BCFG. Como diz

Euclides, “...os dobros das coisas iguais são iguais entre si” (Euclides, 2009, p.133).

Assim, o retângulo AHJK tem o dobro da área do triângulo ACK que, por sua vez, é

congruente ao triângulo ADB. O quadrado ACED tem o dobro da área do triângulo

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ADB. Logo, o quadrado ADEC tem a mesma área do retângulo AHJK. Raciocínio

análogo empregamos para o quadrado BCFG e o retângulo BHJI.

Figura 5. Demonstração de Euclides.

Como o quadrado ABIK, construído sobre a hipotenusa, é composto pelos

retângulos AHJK e BHJI que têm áreas respectivamente iguais aos quadrados ACED e

BCFG, construídos sobre os catetos, fica demonstrado que o quadrado sobre a

hipotenusa é igual à soma dos quadrados sobre os catetos.

É interessante notar que esta demonstração é uma interpretação geométrica das

relações métricas que relacionam os catetos (c e b) com suas projeções ortogonais (m e

n) sobre a hipotenusa (a): c2 = a . m e b2 = a . n (Figura 6).

Figura 6. Relações métricas no triângulo retângulo; m e n são as projeções

ortogonais dos catetos c e b, respectivamente, sobre a hipotenusa a.

2.2.2. Proposição I.48

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“Caso o quadrado sobre um dos lados de um triângulo seja igual aos quadrados

sobre os dois lados restantes do triângulo, o ângulo contido pelos dois lados restantes do

triângulo é reto.” (Euclides, 2009, p.134)

Já demonstramos o teorema de Pitágoras. Será que a sua proposição recíproca é

igualmente verdadeira? Esta pergunta faz sentido embora passe despercebida para

muitos. O fato de uma proposição ser verdadeira não garante que a sua proposição

recíproca também o será. Logo, teremos que provar a recíproca do teorema de Pitágoras,

ou seja, se (o quadrado sobre um dos lados é igual à soma dos quadrados sobre os

outros dois lados) então (o triângulo é retângulo).

Começaremos por desenhar um triângulo ABC qualquer.

A

c b

C

B a

Nossa hipótese é que a2 = b2 + c2 onde a, b e c são os lados do triângulo

qualquer que desenhamos. Desenhemos, agora, duas semirretas perpendiculares que se

interceptam no ponto D. Marquemos, em seguida, os ponto E e F em cada semirreta de

tal forma que DE = b e DF = c.

F_

c

D

b E

Pelo teorema de Pitágoras temos EF2 = b2 + c2 (por construção).

Por hipótese, a2 = b2 + c2 logo EF2 = a2 donde EF = a.

Concluímos que o triângulo ABC é congruente ao triângulo DEF (os três lados

são congruentes). Como construímos o triângulo DEF a partir de semirretas

perpendiculares, o ângulo EDF é reto. Desta forma, o ângulo BAC também é reto.

Logo, o triângulo ABC é retângulo, como queríamos demonstrar.

2.2.3. Proposição VI.31

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“Nos triângulos retângulos, a figura sobre o lado subtendendo o ângulo reto é

igual às figuras semelhantes e também semelhantemente descritas sobre os lados

contendo o ângulo reto.” (Euclides, 2009, p.264)

Esta proposição é uma generalização do teorema de Pitágoras. Se, em vez de

quadrados desenharmos quaisquer outras figuras semelhantes sobre os lados do

triângulo retângulo, a relação entre as áreas permanece válida (Figura 7).

Figura 7. Generalização do teorema de Pitágoras.

Queremos provar que, considerando-se que c, a e b são, respectivamente, a

hipotenusa e os catetos de um triângulo retângulo qualquer e que sobre estes lados

foram desenhados figuras semelhantes, a área C da figura desenhada sobre a hipotenusa

é igual à soma das áreas A e B das figuras desenhadas sobre os catetos. Lembremos que

a razão entre as áreas de figuras semelhantes é igual ao quadrado da razão de

semelhança. Logo temos,

C

A = (

𝑐

𝑎)

2 ou

C

A =

𝑐2

𝑎2 ou C

𝑐2 = A

𝑎2

e da mesma forma,

C

B = (

𝑐

𝑏)

2 ou

C

B =

𝑐2

𝑏2 ou C

𝑐2 = B

𝑏2

Logo,

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C

𝑐2 = A

𝑎2 = B

𝑏2

Como c2 = a2 + b2 pela propriedade das proporções3 temos C = A + B, como

queríamos demonstrar.

Vamos ver um exemplo desta proposição. Consideremos um triângulo retângulo

ABC, de hipotenusa a e catetos b e c. Desenhemos semicírculos sobre os lados deste

triângulo (Figura 8). Desta forma teremos:

(i) área do semicírculo (raio = 𝑎

2 ) sobre a hipotenusa a:

𝜋.(𝑎

2)

2

2 = 𝜋.

𝑎2

8

(ii) área do semicírculo (raio = 𝑏

2 ) sobre o cateto b :

𝜋.(𝑏

2)

2

2 = 𝜋.

𝑏2

8

(iii) área do semicírculo (raio = 𝑐

2 ) sobre o cateto c :

𝜋.(𝑐

2)

2

2 = 𝜋.

𝑐2

8

Figura 8. Exemplo da generalização do teorema de Pitágoras.

Somando-se as áreas dos semicírculos sobre os catetos (ii) + (iii) teremos:

𝜋.𝑏2

8 + 𝜋.

𝑐2

8 =

𝜋

8 (b2+ c2) .

3 Numa proporção, a soma dos antecedentes está para a soma dos consequentes, assim como cada

antecedente está para o seu consequente: 𝑎+𝑐

𝑏+𝑑 =

𝑎

𝑏 =

𝑐

𝑑 .

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Como o triângulo ABC é retângulo, vale o teorema de Pitágoras, b2+ c2 = a2.

Então, a soma das áreas dos semicírculos sobre os catetos é igual a 𝜋

8 (a2) que é

precisamente a área do semicírculo desenhado sobre a hipotenusa (i).

𝜋

8 (b2+ c2) =

𝜋

8 . a2

2.3. Uma antiga demonstração chinesa

O livro de matemática chinesa antiga mais importante é o K’ui-ch’ang Suan-shu

(Nove Capítulos sobre a Arte da Matemática) do período de 206 a.C. a 221 d.C., época

de um poderoso império sob a Dinastia Han. Trata-se de um compêndio da matemática

chinesa com 246 problemas, sobre temas diversos, incluindo questões envolvendo

triângulos retângulos (Eves, 2008). “Entre eles, treze utilizam a denominada regra

Gougu, uma versão para o teorema de Pitágoras, onde gou corresponde ao cateto menor

e gu o maior.” (Dassie, Pitombeira e Lima, 2009, p. 24)

Num outro texto chinês famoso, o Chóu-peï, provavelmente mais antigo que o

Nove Capítulos sobre a Arte da Matemática, há uma figura (Figura 9) que representa a

propriedade do triângulo retângulo pitagórico 3, 4, 5. Não há nenhuma demonstração

formal.

Figura 9. Ilustração do livro Chóu-peï; figura do triângulo retângulo 3, 4, 5.

Fonte:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c3/Chinese_pythagoras.jpg

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2.4. A generalização de Papus

Papus de Alexandria, nascido no final do século III d.C., foi um grande geômetra

grego. Escreveu uma obra notável, Coleção Matemática, composta por oito livros, dos

quais se perderam o primeiro livro e parte do segundo.

No Livro IV desta coleção, Papus escreveu uma extensão do teorema de Pitágoras

(Eves, 2008, p.227): Sejam ABC um triângulo genérico e ABDE e ACFG dois

paralelogramos quaisquer descritos sobre AB e AC, externamente ao triângulo. Seja H

a intersecção de DE e FG e trace BL e CM iguais e paralelos a HA.

Então, BCML = ABDE + ACFG (Figura 10).

Figura 10. Generalização de Papus para o teorema de Pitágoras.

O teorema de Pitágoras é um caso particular do teorema de Papus. No lugar do

triângulo retângulo, Papus considera um triângulo qualquer e no lugar de três quadrados

construídos sobre os lados do triângulo, Papus desenha três paralelogramos. O teorema

de Papus baseia-se na propriedade de que paralelogramos com bases e alturas iguais têm

áreas iguais. Então, vejamos: o paralelogramo ABDE tem a mesma área do

paralelogramo ABUH que, por sua vez, tem a mesma área do paralelogramo BLSR. Da

mesma forma, o paralelogramo ACFG tem a mesma área do paralelogramo ACVH que

tem a mesma área do paralelogramo RSMC. Assim, o paralelogramo BCML é

composto de duas partes (os paralelogramos BLSR e RSMC) que têm áreas iguais,

respectivamente, aos paralelogramos ABDE e ACFG.

Logo, BCML = ABDE + ACFG, como queríamos demonstrar.

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2.5. A demonstração de Bhāskara

Bhāskara foi um notável matemático hindu do século XII. Em 1150, escreveu

Siddhānta S’iromani (diadema de um sistema astronômico). Lilāvati (bela) e Vijaganita

(extração de raízes) são as partes de seu trabalho mais importantes. A demonstração do

teorema de Pitágoras que Bhāskara apresentou é visual. Ele fez o desenho (Figura 11) e

escreveu “Veja!”.

Figura 11. Ilustração da prova de Bhāskara para o teorema de Pitágoras.

Usando a álgebra, a demonstração de Bhāskara ficaria assim: sejam a, b, e c a

hipotenusa e os catetos do triângulo retângulo. O quadrado maior (figura à direita) tem

área a2. Por outro lado, este quadrado é formado por 5 partes: 4 triângulos retângulos

congruentes e um quadrado menor de lado b-c. Igualando-se as duas expressões para a

área da figura temos a2 = 4 . 𝑏.𝑐

2 + (b-c)2 = b2 + c2 .

2.6. Outra demonstração de Bhāskara

Bhāskara apresentou uma outra demonstração do teorema de Pitágoras fazendo

uso da semelhança de triângulos. No triângulo retângulo ABC (Figura 12), h é a altura

relativa à hipotenusa a e b, c são os catetos.

Figura 12. Prova de Bhāskara para o teorema de Pitágoras.

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Os triângulos ABC, DBA e DCA são semelhantes (seus ângulos têm a mesma

medida). Logo, seus lados são proporcionais 𝑎

𝑐=

𝑐

𝑚 ,

𝑎

𝑏=

𝑏

𝑛 .

Assim temos c2 = a . m bem como b2 = a . n

Somando-se membro a membro chegamos à expressão

c2 + b2 = a . m + a . n = a (m + n).

Logo, c2 + b2 = a2, como queríamos demonstrar.

2.7. A demonstração de Leonardo da Vinci

Leonardo, artista renascentista de Vinci, Itália, é mais conhecido por sua pintura a

óleo Mona Lisa (Figura 13), também chamada La Gioconda, exposta atualmente no

Museu do Louvre, em Paris. Leonardo da Vinci também emprestou seu talento para a

matemática.

Figura 13. Mona Lisa. (1503-1507)

Fonte:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/c

ommons/e/ec/Mona_Lisa%2C_by_Leon

ardo_da_Vinci%2C_from_C2RMF_reto

uched.jpg

A prova de Leonardo da Vinci para o teorema de Pitágoras baseia-se na

congruência por subtração de figuras planas (Figura 14).

Os quadriláteros DEFG, DABG, CAJI e IHBC são congruentes. Por subtração de

áreas concluímos que a área do quadrado ABHJ é igual à soma das áreas dos quadrados

ADEC e CFGB. Note que a figura construída por da Vinci é constituída de seis partes,

três triângulos retângulos congruentes (CAB, CEF, IHJ) e três quadrados distintos

(ABHJ, ACED, CFGB) cujos lados são iguais, respectivamente, aos lados do triângulo

retângulo CAB. Se de áreas iguais retirarmos áreas iguais, as figuras restantes terão,

igualmente, áreas iguais.

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Figura 14. Prova de Leonardo da Vinci para o teorema de Pitágoras.

2.8. A demonstração de Wallis

John Wallis foi um matemático inglês considerado um dos “mais capazes e

originais de seu tempo (...) contribuindo muito nesse campo para abrir caminho para seu

grande contemporâneo Isaac Newton.” (Eves, 2008, p.431)

Wallis redescobriu, no século XVII, a demonstração do teorema de Pitágoras por

semelhança de triângulos apresentada por Bhāskara cinco séculos antes (ver secção 2.6.

p.14).

2.9. A demonstração do Presidente J. A. Garfield (em 1876)

A matemática foi um tema de interesse de alguns presidentes dos Estados Unidos.

George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e James Abram Garfield são

conhecidos por alguma incursão nos domínios desta ciência. Garfield, vigésimo

presidente americano, ainda antes de assumir a presidência, apresentou sua

demonstração para o teorema de Pitágoras. Sua demonstração foi publicada no New

England Journal of Education Mathematics (Eves, 2008).

Garfield construiu sua demonstração a partir do cálculo da área do trapézio

(Figura 15). O trapézio em questão é formado por três triângulos: dois triângulos

retângulos congruentes de hipotenusa c e catetos a e b, e outro triângulo retângulo

isósceles de catetos c. Por igualdade de áreas, considerando-se de um lado o trapézio

todo e, por outro lado, suas partes, temos:

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Figura 15. Prova de Garfield para o teorema de Pitágoras.

(a + b) . (𝑎+𝑏)

2 = 2.

𝑎 . 𝑏

2 +

𝑐2

2

Simplificando-se a expressão:

a2 + b2 = c2, como queríamos demonstrar.

2.10. Uma demonstração dinâmica

A figura 16 sugere uma demonstração dinâmica para o teorema de Pitágoras em

quatro movimentos. Fundamenta-se na propriedade da igualdade de áreas entre

paralelogramos que estão sobre retas paralelas e possuem bases de mesma medida.

No primeiro movimento, transformamos os quadrados sobre os catetos em

paralelogramos de mesma área. No segundo movimento, os paralelogramos continuam

a deslizar sobre as paralelas e passam a ter um lado comum. Devemos notar que a

medida deste lado comum é igual à hipotenusa do triângulo retângulo (os triângulos

assinalados em vermelho são congruentes). O próximo movimento é de descida do

polígono formado (hexágono) para tornar coincidentes os vértices referentes ao ângulo

reto do hexágono e do triângulo retângulo. No movimento final, o hexágono

transforma-se no quadrado. Assim, os dois quadrados iniciais, construídos sobre os

catetos, transformam-se no quadrado desenhado sobre a hipotenusa.

Logo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, como

queríamos demonstrar.

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Figura 16. Sugestão de uma demonstração dinâmica para o teorema de Pitágoras.

3. CONEXÕES MATEMÁTICAS

A matemática é uma criação humana extraordinária. Auxilia na compreensão dos

fenômenos de diferentes naturezas. O movimento dos corpos celestes, a distância entre a

Terra e a Lua, o aquecimento global, o prêmio da loteria... A matemática conecta-se

com a vida dos povos.

Mathematics is one of the great cultural achievements of humankind. Every schooled

person understands the rudiments of number and measures and sees the world through this

quantifying conceptual framework. (…) So mathematics might be said to have, in addition

to a mundane utilitarian role, an epistemological role, an ideological role, and even a

mystical role in human culture4. (Ernest, 1998, p.xi)

Nesta secção, tratarei de algumas conexões matemáticas estabelecidas pelo

teorema do triângulo retângulo: com a trigonometria, com a geometria analítica e com

as paixões humanas.

3.1.A lei dos cossenos

O teorema de Pitágoras é um caso particular da lei dos cossenos: em todo

triângulo, o quadrado de qualquer um dos lados é igual à soma dos quadrados dos

4 A matemática é uma das grandes realizações culturais da humanidade. Cada pessoa escolarizada entende

os princípios básicos do número e da medida e vê o mundo através deste modelo conceitual quantificador.

(...) Então a matemática pode-se dizer que desempenha, para além de um papel prático, um papel

epistemológico, um papel ideológico, e até mesmo um papel místico na cultura humana. (tradução da

autora)

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outros dois lados, subtraída do dobro do produto desses lados pelo cosseno do ângulo

formado por eles. Em verdade, a lei dos cossenos já se encontrava enunciada e

demonstrada no Livro II dos Elementos de Euclides, nas proposições II.12 e II.13,

embora, não falasse de cossenos, mas de projeções ortogonais de um lado sobre o outro.

Figura 17. Ilustração para a demonstração da lei dos cossenos.

Considere o triângulo qualquer ABC (Figura 17) e os triângulos retângulos BCD e

BAD construídos a partir da altura BD. Nesses triângulos, verificam-se as seguintes

relações :

(i) m = c . cos Â

(ii) b = m + n ; n = b - m

(iii) c2 = m2 + h2 ; h2 = c2 – m2

(iv) a2 = n2 + h2

Substituindo (ii) e (iii) em (iv) temos:

a2 = (b-m)2 + c2 – m2

a2 = b2 – 2.b.m + m2 + c2 – m2

a2 = b2 – 2.b.m + c2

(v) a2 = b2 + c2 – 2.b.m

Substituindo (i) na equação (v) temos:

a2 = b2 + c2 – 2 . b . c . cos Â

De forma similar, podemos demonstrar as relações relativas aos outros dois

ângulos:

b2 = a2 + c2 – 2 . a . c . cos B

c2 = a2 + b2 – 2 . a . b . cos C

h

^

^

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Quando um ângulo formado por dois lados do triângulo for reto (90o), a fórmula

da lei dos cossenos expressar-se-á (supondo-se que o ângulo reto seja o A) como segue:

a2 = b2 + c2 – 2 . b . c . cos 90o

e, assim

a2 = b2 + c2 – 2 . b . c . 0 .

Temos, então, a2 = b2 + c2, que é a expressão do teorema de Pitágoras, já que o

triângulo em questão é um triângulo retângulo.

3.2. A distância euclidiana entre dois pontos

O teorema de Pitágoras aplica-se a muitas circunstâncias, como calcular distâncias

entre objetos. Ao calcularmos a distância euclidiana d entre dois pontos quaisquer

A(Xa,Ya) e B(Xb,Yb) do plano Ɍ2 construímos o triângulo retângulo ACB, retângulo em

C. A distância d é a hipotenusa do triângulo formado (Figura 18). Podemos, desta

forma, aplicar o teorema de Pitágoras ao triângulo ACB. Raciocínio5 análogo se aplica

para o cálculo de distâncias no espaço Ɍ3.

Figura 18. Distância euclidiana d entre dois pontos A e B no plano Ɍ2.

5 No espaço Ɍ3, a distância d entre dois pontos A(Xa,Ya,Za) e B(Xb,Yb,Zb) é expressa por

d =√(Xb − Xa)2+(Yb − Ya)2+(Zb − Za)2

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Assim sendo, temos d2 = (Xb - Xa)2 + (Yb - Ya )

2 e a distância euclidiana d será a

raiz quadrada desta expressão:

d = √(Xb − Xa )2 + (Yb − Ya)2 .

3.3. A equação cartesiana da circunferência

A circunferência é uma figura geométrica plana cujos pontos têm a propriedade de

distar de um ponto fixo, o centro da circunferência, um valor fixo, o raio da

circunferência. Desta forma, o teorema de Pitágoras nos auxiliará a escrever a equação

cartesiana da circunferência (analogamente, podemos escrever a equação cartesiana da

esfera6).

Figura 19. Circunferência de centro C e raio r.

Notemos que o raio r da circunferência corresponde à hipotenusa do triângulo

retângulo assinalado na figura 19. Podemos, desta forma, usar o teorema de Pitágoras

para escrever a equação verificada por todos os pontos P (Xp, Yp) da circunferência de

centro C (Xc, Yc) e raio r:

(Xp – Xc)2 + (Yp – Yc)

2 = r2 .

3.4. O Último Teorema de Fermat

O teorema de Pitágoras é expresso pela equação (1) a2 + b2 = c2, onde a e b

representam os catetos e c a hipotenusa de um triângulo retângulo qualquer.

Encontrar as soluções inteiras para esta equação é um problema posto desde a

Antiguidade. Estes três números inteiros (a,b,c) que verificam a equação (1) são

6 A equação cartesiana da esfera: (Xp – Xc)2 + (Yp – Yc)2 + (Zp – Zc)2 = r2 , onde C(Xc,Yc,Zc) é o centro da

esfera e r, seu raio.

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chamados ternos pitagóricos. Há infinitos ternos pitagóricos, ou seja, há infinitas

soluções inteiras para a equação (1).

O terno pitagórico (3,4,5)7 já era muito utilizado pelos antigos egípcios para

marcarem um ângulo reto.

É importante salientar que o chamado teorema de Pitágoras já era conhecido sob forma

numérica e empírica, em casos particulares, pelos egípcios e outros povos. Por exemplo, os

egípcios sabiam que 32 + 42 = 52 e que 3, 4 e 5 podiam ser tomados como medidas dos

catetos e hipotenusa de um triângulo retângulo, utilizando uma unidade arbitrária. Este fato

era utilizado para medição de ângulos rectos e traçado de perpendiculares na construção de

casas e das pirâmides. Para esse efeito utilizavam uma corda com vários nós equidistantes,

de modo a ficar dividida em partes iguais. Este método é ainda utilizado. (Silva, 2000, p.11)

Há vários métodos para encontrar ternos pitagóricos. Os babilônios, há mais de

3000 anos, provavelmente, conheciam uma fórmula para calculá-los (Eves, 2008).

Os gregos antigos também sabiam calcular ternos pitagóricos (a,b,c),

parametricamente, como segue:

a = 2uv, b = u2- v2 e c = u2 + v2

onde u e v são números primos entre si8 e um é par e o outro ímpar, com u ˃ v.

Os pitagóricos, por sua vez, para todo m ímpar, calculavam os ternos pitagóricos

pela fórmula:

m2 + (𝑚2− 1

2)

2

= (𝑚2+ 1

2)

2

.

Credita-se a Platão (c.380 a.C.) uma fórmula análoga à dos pitagóricos:

(2m)2 + (m2- 1)2 = (m2 + 1)2. (Eves, 2008)

No Livro X dos Elementos está registrada uma maneira de calcular ternos

pitagóricos. Euclides também prova que há um número infinito de ternos pitagóricos.

A questão que se tornou célebre na história da matemática foi a seguinte:

Se somos capazes de calcular números inteiros que são soluções (e há infinitas

soluções) para a equação a2 + b2 = c2 que envolve a soma de quadrados resultando num

quadrado, será possível encontrar, de forma análoga, soluções inteiras para a equação

a3 + b3 = c3 envolvendo cubos ou, para a4 + b4 = c4 envolvendo quartas potências ou

ainda, de forma geral, para a equação an + bn = cn , com a, b e c inteiros positivos e

n ˃ 2 (n inteiro)?

7 O terno pitagórico (3,4,5) é o único formado por três números inteiros positivos consecutivos. 8 Números primos entre si são números inteiros que só têm como divisor comum o número 1.

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Pierre de Fermat (c.1601-1665), considerado o maior matemático francês do

século XVII, acendeu esta discussão que só teve sua resposta definitiva na última

década do século XX com Andrew Wiles, matemático britânico.

Em 1637, Fermat, estudando teoria dos números na tradução latina feita por

Claude Gaspar Bachet de Méziriac da obra Arithmetica de Diofanto, anotou algo que

desafiaria o mundo, em uma margem do Livro II, ao lado do Problema 8.

O Problema 8 tinha o seguinte enunciado: “Dado um número quadrado, dividi-lo

em dois quadrados.” (Eves, 2008, p.391)

Fermat assim escreveu (Figura 20):

Dividir um cubo em dois cubos, uma quarta potência ou, em geral uma potência qualquer

em duas potências da mesma denominação acima da segunda é impossível, e eu

seguramente encontrei uma prova admirável desse fato, mas a margem é demasiado estreita

para contê-la. (Eves, 2008, p.392)

Figura 20.

Página da edição da Arithmetica de

Diofanto, publicada em 1670, com a

observação intrigante de Fermat junto

ao problema II.8.

Fonte:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/c

ommons/thumb/4/47/Diophantus-II-8-

Fermat.jpg/640px-Diophantus-II-8-

Fermat.jpg

Em linguagem algébrica, a conjectura de Fermat é expressa por: não existem

inteiros positivos x, y, z, n, onde n ˃ 2, de modo que xn + yn= zn.

Não se sabe se Fermat tinha ou não encontrado a prova a que se referiu, mas, o

fato é que se instalou, a partir de então, uma corrida matemática a fim de encontrar uma

demonstração para o que se chamou o Último Teorema de Fermat. Foram três séculos

onde matemáticos de diferentes países, muitos de grande prestígio como o suíço

Leonhard Euler (1707-1783) e o alemão Peter Gustav Lejeune Dirichilet (1805-1859),

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tentaram resolver a questão da conjectura de Fermat embora apenas resultados parciais

fossem alcançados. Este enigma mobilizou muitas mentes e até prêmios foram

prometidos para quem resolvesse a questão. Nesta corrida, muita matemática foi

desenvolvida. Entretanto, somente em 1995, o mundo conheceu a resposta definitiva ao

desafio lançado por Fermat.

Em 1995, Andrew Wiles (n. 1953) da Universidade de Princeton forneceu a primeira prova

do Último Teorema de Fermat, uma prova baseada no trabalho de muitos outros

matemáticos no século vinte, e utilizando técnicas da geometria algébrica indisponíveis

para Fermat. Assim, a maioria dos historiadores acredita que Fermat errou na sua própria

alegação de uma prova (...) (Katz, 2010, p.581)

Andrew Wiles dedicou sua vida a este problema matemático. Foi em 1963,

quando tinha apenas dez anos de idade, ao retornar para sua casa após a escola, na

pequena biblioteca da Rua Milton, que se deparou pela primeira vez com o Último

Teorema de Fermat. Os livros de desafios, enigmas e problemas matemáticos o

atraíam. Nas páginas de O último problema, de Eric Temple Bell, Wiles sentiu-se

seduzido por aquele problema. Era tão simples. Desde então, “ele se tornou minha

grande paixão” (Singh, 2008, p.89). Andrew Wiles tinha quarenta anos quando

encontrou a resposta para a questão que orientou sua vida e instigou homens e mulheres

por três séculos:

“Eu tive o raro privilégio de conquistar, em minha vida adulta, o que fora o sonho da minha

infância. Sei que este é um privilégio raro, mas se você puder trabalhar, como adulto, com

algo que significa tanto para você, isto será mais compensador do que qualquer coisa

imaginável. Tendo resolvido este problema, existe um certo sentimento de perda, mas ao

mesmo tempo há uma tremenda sensação de liberdade. Eu fiquei tão obcecado por este

problema durante oito anos, pensava nele o tempo todo – quando acordava de manhã e

quando ia dormir de noite. Isto é um tempo muito longo pensando só em uma coisa. Esta

odisseia particular agora acabou. Minha mente pode repousar.” (Singh, 2008, pp.286-287)

De Pitágoras a Wiles foram mais de 2500 anos de história. A matemática do

triângulo retângulo mobilizou, neste tempo, inteligências e paixões, exibindo episódios

de triunfos e fracassos, certezas e traições, constâncias e desistências. A matemática,

uma janela para o mundo, entrelaçada às sociedades e à cultura dos homens.

Pitágoras e sua escola, nos primórdios da ciência, propuseram uma filosofia do

conhecimento por meio da matemática. Filolao, importante membro da escola

pitagórica, afirmou “todas as coisas têm um número e nada se pode compreender sem o

número” (Caraça, 1970, p.69).

No fundo duma afirmação destas palpita uma das ideias mais grandiosas e mais belas que

até hoje têm sido emitidas na história da Ciência – a de que a compreensão do Universo

consiste no estabelecimento de relações entre números, isto é, de leis matemáticas;

estamos, portanto, em face do aparecimento da ideia luminosa duma ordenação matemática

do Cosmos. (Caraça, 1970, p.69)

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4. UMA PALAVRA FINAL

A Matemática é uma notável realização do espírito humano. Sua origem é tão

remota quanto à própria civilização. O fato é que a Matemática é uma atividade humana

que responde às necessidades e aspirações práticas, científicas, artísticas e culturais das

sociedades de todos os tempos.

Percorremos, neste artigo, muitas veredas desta ciência tendo como guia o famoso

Teorema de Pitágoras. Em nosso percurso, revisitamos mais de três milênios de história.

Constatamos a presença da Matemática em épocas e lugares distintos e, ainda, como os

números, as figuras e as relações matemáticas fazem parte da cultura humana.

A Matemática e seus desafios têm mobilizado pessoas de diferentes vocações.

Com o Teorema de Pitágoras conduzindo-nos para além de Pitágoras, pudemos saborear

um pouco da riqueza das conexões matemáticas. A beleza presente nas paisagens

matemáticas visitadas nos instiga a prosseguir viagem, deleitando-nos desta fonte

inesgotável de estímulos ao pensamento e à criatividade humanos.

Conhecer a história da Matemática auxilia-nos a dar sentido ao que hoje

realizamos em seus domínios, alargando horizontes e fascinando-nos com suas

questões. É particularmente profícuo o emprego da história da Matemática no ensino e

na divulgação desta ciência.

REFERÊNCIAS

Caraça, B. J. (1970). Conceitos Fundamentais da Matemática. Fotogravura

Nacional: Lisboa.

Dassie, B. A., Pitombeira, J. B. e Lima, M. L. A. (2009). Revisitando teoremas e

problemas: ensaios sobre a diversidade na Matemática. InterMat: Rio de

Janeiro.

Ernest, P. (1998). Social Constructivism as a Philosophy of Mathematics. State

University of New York. Press, State University Plaza, Albany, N.Y.

Euclides. (2009). Os elementos. Tradução e introdução de Irineu Bicudo. Editora

UNESP: São Paulo.

Eves, H. (2008). Introdução à história da matemática. Tradução de Hygino H.

Domingues. Editora da Unicamp: Campinas, SP.

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Katz, V. J. (2010). História da Matemática. Fundação Calouste Gulbenkian:

Lisboa.

Lima, E. L. (2006). Meu Professor de Matemática e outras histórias. Coleção do

Professor de Matemática. SBM: Rio de Janeiro.

Loomis, E. S. (1968). The Pythagorean Proposition, Classics in Mathematics

Education Series. NCTM: Washington D.C.

Silva, J. S. (2000). A Matemática na Antiguidade. SPM: Lisboa.

Singh, S. (2008). O Último teorema de Fermat: a história do enigma que

confundiu as maiores mentes do mundo durante 358 anos. Tradução de

Jorge Luiz Calife. Editora Record: Rio de Janeiro.

Struik, D. J. (1997). Porquê estudar a História da Matemática. Tradução de Paulo

Oliveira. Cadernos do GTHEM. Relevância da História no Ensino da

Matemática. APM: Lisboa.