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REVISITANDO OMESSIANISMO NO BRASILE PROFETIZANDOSEU FUTURO

Lísias Nogueira Negrão

RBCS Vol. 16 no 46 junho/2001

Messianismo, movimento messiânicoe milenarismo

Como conceitos abrangentes e genéricos,messianismo e movimento messiânico são neces-sariamente típico-ideais, no sentido de se referi-rem à realidade observável mas não a reproduzi-rem ou esgotarem, e isto mesmo no caso em queos autores entendam seus conceitos como tiposempíricos. Desta forma, o primeiro deles diz res-peito à crença em um salvador, o próprio Deusou seu emissário, e à expectativa de sua chegada,que porá fim à ordem presente, tida como iníquaou opressiva, e instaurará uma nova era de virtu-de e justiça; o segundo refere-se à atuação coleti-va (por parte de um povo em sua totalidade oude um segmento de porte variável de uma socie-dade qualquer) no sentido de concretizar a novaordem ansiada, sob a condução de um líder devirtudes carismáticas.1 A concepção acima asso-cia os movimentos messiânicos à escatologia,embora possam existir movimentos milenaristasnão messiânicos, conduzidos por uma sucessãoou pluralidade de líderes guerreiros, assembléiasde anciãos, virgens ou crianças inspiradoras etc.Por outro lado, podem faltar a movimentos carac-

teristicamente messiânicos concepções de um es-cathon final.

Constituem-se como movimentos messiâni-cos, milenaristas, ou messiânico-milenaristas des-de simples contestações pacíficas quanto a aspec-tos selecionados da vida social, até rebeldias arma-das, ambos os tipos informados pelo universoideológico religioso, capazes de, ao mesmo tempo,diagnosticar as causas das atribulações e sofrimen-tos e indicar caminhos para sua superação, desdeos mais racionais até os mais utópicos. O imaginá-rio religioso pregresso, sua exacerbação ou supe-ração por uma nova revelação profética, está sem-pre presente, interpretando a realidade, postulan-do objetivos e indicando os meios pelos quais estesserão alcançados.

Orientando-se sobretudo por valores e senti-mentos tradicionais, em descompasso com os ide-ais de modernidade do momento, tais movimentostendem a ser vistos pelas vigências política eintelectual como irracionalidades e arcaísmos, fru-tos da ignorância e do fanatismo. Sendo seusadeptos historicamente recrutados entre indígenasdestribalizados, populações camponesas, povoscolonizados e setores populacionais marginaliza-dos ou excluídos da moderna civilização ocidental

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(os “primitivos da modernidade”, segundo Hobs-bawm), tendem a ser interpretados, na ótica oficial,como arcaísmos deletérios e antiprogressistas,quando não como episódios de loucura coletiva, aque se chega a partir de efeitos desencadeadoresda loucura do líder.

Os movimentos messiânicos-milenaristas brasileiros

O Brasil tem sido especialmente pródigo nageração de movimentos messiânicos. Desde oprimeiro século colonial, índios guarani puseram-se em busca da “terra sem males” e indígenasdestribalizados constituíram os chamados “movi-mentos de santidade”. Mas a maioria deles, oupelo menos aqueles sobre os quais se tem maiordocumentação, transcorreu entre populações ser-tanejas, do nordeste ao sul do país, no períodode pouco mais de um século, a partir de cerca de1820. Maria Isaura Pereira de Queiroz levantou aexistência de nove movimentos documentadosno período.

Trágicos como o de “O Reino Encantado”,transcorrido entre os anos de 1836-1838 em Per-nambuco, com sacrifícios humanos e morte violen-ta dos adeptos, ou bem-sucedidos e acomodadoscomo o “Povo do Velho Pedro”, iniciado na décadade 1940 no interior da Bahia e ainda, de certaforma, existente; pacíficos como este último ouenvolvidos em conflitos como a “Guerra Santa” doContestado, durante o período 1912-1916, na zonaserrana de Santa Catarina; envolvendo milhares depessoas e tornando-se fenômenos de repercussãonacional, como este último ou o movimento deCanudos (1893-1897) na Bahia, ou de pequenoporte e de repercussão apenas local como o do“Beato do Caldeirão”, que sucedeu no Ceará aofamoso movimento do Padre Cícero, seriam todoseles “movimentos rústicos”, segundo a citada auto-ra, movimentos típicos de sociedades tradicionais,de base patrimonialista e estruturalmente assenta-dos em parentelas, motivados pelas crenças docatolicismo popular.2 Vejamos, a seguir, com basenos principais autores que os estudaram, e sem apretensão de os exaurirmos e às questões discuti-das, quais os principais resultados alcançados.

Juazeiro, Canudos e Contestado

Entre os inúmeros autores que estudaram osmaiores movimentos messiânicos ocorridos nopaís distingue-se uma espécie de “vertente ficcio-nista”, cujo maior expoente foi sem dúvida Edmun-do Moniz (1978).3 Segundo essa vertente, os líde-res messiânicos teriam sido líderes revolucionáriosdas massas camponesas e suas “cidades santas”,comunidades socialistas precursoras do futuro dassociedades modernas. Peças antes políticas quefruto de pesquisa histórica, essas interpretaçõesconsistiram em um contraponto à ideologia oficialque postulava serem aqueles movimentos retróga-dos, antiprogressistas. Talvez tenham exercido umpapel salutar, no sentido de formular uma imagemmais positiva dos movimentos, mas passaram lon-ge das motivações e intenções reais dos líderes eliderados das sublevações enfocadas.

Nesta ligeira reflexão sobre o messianismono Brasil, concentrar-me-ei na análise dos trêsmovimentos mais instigantes e, por isso mesmo,mais estudados: pela ordem cronológica, Juazeirodo Padre Cícero (1872-1934), Canudos de AntonioConselheiro (1893-1897) e o Contestado dos mon-ges João e José Maria (1912-1916). Meu interessenão é exatamente o de comparar os três movimen-tos entre si; embora circunstancialmente possa oestar fazendo sob alguns aspectos, este não é omeu intuito. Tal tarefa já foi cumprida, a meu ver demaneira exemplar, por Duglas Teixeira Monteiro(1977). Meu interesse é inventariar e avaliar oestado atual da bibliografia sobre tais movimentos,mesmo que com algumas possíveis omissões. Nãose trata de um enfoque nos movimentos propria-mente ditos, mas no que se disse sobre eles de maisrelevante para sua compreensão socioantropológi-ca. Não que inexistam estudos históricos, socioló-gicos e antropológicos relativos a outros movimen-tos que não valham, seja pelo seu caráter docu-mental, seja pelo seu valor analítico, menção eexame. Os há e muitos. Mas é nos estudos sobre ostrês movimentos considerados que aparecem maisclaramente as questões teóricas e metodológicasque me proponho a retomar.

Uma primeira controvérsia, de caráter con-ceitual, já se pode assinalar. Trata-se de seu enqua-

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dramento numa mesma categoria, a de movimentomessiânico. A marcada liderança carismática apa-rece claramente em dois deles, na Juazeiro dePadre Cícero e em Canudos de Antônio Conselhei-ro. Não há dúvidas de que os eventos transcorridosem um e outro caso não teriam lugar sem suaslideranças; os movimentos surgem sob sua condu-ção, encontram seus rumos na orientação que elaslhes imprimiram e terminam com suas mortes(mesmo que Juazeiro tenha continuado a existir,sob forma rotinizada, após a morte do Padre). Jáeste não é o caso do Contestado. Os monges quese sucederam atuaram no sentido da gestação domito messiânico, mas não conduziram o movimen-to, tendo desaparecido o primeiro e morto emcombate o segundo antes do desencadeamento dosurto milenarista que se seguiu.

Aliás, apenas o movimento do Contestadoteria sido caracteristicamente milenarista; faltamevidências da presença de um escathon final nouniverso de crenças dos movimentos de Juazeiro eCanudos. Do ponto de vista religioso, estes pare-cem ter sido antes afirmações de um catolicismopopular que se queria relativamente autônomo emrelação à Igreja, com base em um misticismotemido por ela mas conhecido e controlável, doque propriamente heresias cismáticas capazes deinstituir crenças e igrejas outras, diversas das doquadro católico de origem. Vinhas de Queiroz, umdos maiores estudiosos do movimento, realmentelevanta a hipótese da gênese de uma nova religião,seguindo a seqüência da história sagrada cristã.4

Mesmo Duglas Teixeira Monteiro (1974), que põeem dúvida esta idéia, afirma que apenas no caso doContestado chegou-se a um “reencantamento domundo” radical, propiciador de um novo sagrado,tendo-se rompido totalmente com o “velho século”e com a Igreja com ele identificada, mesmo assimcriando-se, no caso de seu agente, o padre, umaambigüidade derivada da manutenção da santida-de, não de todo perdida, de sua palavra.

Vinhas de Queiroz foi o primeiro a realizaruma pesquisa realmente histórica sobre o Contes-tado, levantando documentos escritos e produzin-do documentos primários a partir da tomada dedepoimentos de remanescentes do movimento eseus descendentes. Seu trabalho foi seminal, pro-

duzindo uma rica e aprofundada base para inter-pretações posteriores. No entanto, suas interpreta-ções, calcadas em referenciais marxistas, tambémsão marcadamente ideológicas. O movimento, porsua fundamentação religiosa, expressaria uma “fal-sa consciência da realidade, alienada, autista emórbida”.5 A esquerda dá a mão à direita nacondenação, pelos mesmos motivos, dos movi-mentos messiânicos.

Na senda aberta pelo autor aparecem osestudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, oprimeiro dos quais tratando exatamente do caso doContestado (Pereira de Queiroz, 1957). Além destetrabalho e do livro acima citado, este com ediçõesfrancesa e espanhola, a autora publicou mais deuma dezena de artigos em revistas nacionais einternacionais. Sua obra sobre o messianismo éseguramente a mais volumosa e ela tem sidoreconhecida internacionalmente como a maior es-pecialista no assunto. O estudo inicial sobre oContestado, a partir da documentação levantadapor Vinhas de Queiroz e generosamente colocadaà sua disposição, balizou suas interpretações sobreo messianismo. Além do Contestado, Pereira deQueiroz pesquisou diretamente apenas o “Povo doVelho Pedro”, em Santa Brígida, interior da Bahia.Este teria sido seu modelo de “movimento refor-mista”, na medida em que a comunidade instituídapor Pedro Batista, embora exigindo comportamen-to exemplar de seus membros, recuperando efazendo vigir os valores da moralidade católicacamponesa, estabelece relações de cooperaçãocom as populações circunvizinhas e mesmo comos governos municipal, estadual e federal.

Mas mesmo o Contestado, apesar da guerracivil em que se envolveu, não pode, segundo aautora, ser considerado revolucionário, assimcomo Canudos. Os messias sertanejos brasileirosteriam sido todos líderes reformistas, sem qualquerveleidade de derrubada da ordem vigente. Envol-veram-se em lutas políticas sim, mas sempre comoaliados de mandatários regionais ou locais, emsuas disputas contra outros “mandões”. O rompi-mento com as oligarquias locais, temerosas de seuvulto e de sua independência em relação à domi-nação rotineira, conduziu à sua posterior destrui-ção pelo inseguro Estado Republicano emergente,

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alarmado pela ameaça de restauracionismo monár-quico.

Pereira de Queiroz evolui do estudo de casopara um amplo estudo classificatório do “messia-nismo no Brasil e no mundo”. Além dos seusméritos intrínsecos, relativos aos exaustivos levan-tamentos bibliográficos sobre casos de movimen-tos messiânicos eclodidos em todo o globo e àstipologias dos mesmos em referência ao meiosocial de origem e suas funções em relação a estes,seus estudos realizam aquisições sobre os movi-mentos messiânicos que parecem ser definitivas:

1ª) A ocorrência desses movimentos de-monstra que as sociedades de base patrimonialistanão são estagnadas, mas, ao contrário, dotadas deuma dinâmica interna própria, capazes de reaçãocontra fatores exógenos ou endógenos (no caso daanálise da autora sobre os movimentos brasileiros,predominantemente endógenos) que comprome-tam sua existência tradicional;

2ª) Tais movimentos não são aberrantes, nemintegram um capítulo da patologia social, como atéentão se supunha. Ao contrário, seriam reaçõesnormais de sociedades tradicionais em momentosde crise, de anomia (o mais comum no casobrasileiro) ou de mudança de sua estrutura interna.O apelo a valores religiosos não seria uma atitudealienada, mas a expressão da revolta por meio doúnico canal possível no contexto cultural tradicio-nal;

3ª) Os líderes messiânicos não seriam psico-patas megalômanos, mas místicos ou ascetas fre-qüentes na tradição judaico-cristã, dotados de qua-lificações intelectuais acima da média de seusliderados; no mínimo, homens informados, comvivência em ambientes sociais diversificados eprofundos conhecedores da cultura religiosa tradi-cional;

4ª) O conflito eventualmente deflagrado en-tre os movimentos e a sociedade global não sedeveu à ignorância ou ao caráter retrógrado dasmassas ou de seus líderes, mas a interesses políti-cos e econômicos locais e regionais e à intolerânciadas autoridades civis e religiosas;

5ª) Muitos movimentos, quando não hostili-zados e tolerados em suas especificidades, consis-tiram em interessantes experiências de desenvolvi-

mento regional, como alternativas aos impactosdesestruturantes da modernidade política e econô-mica sobre populações rústicas. Tais seriam oscasos de Santa Brígida e de Juazeiro;

6ª) Contrariamente ao que supunha a “ver-tente ficcionista”, havia, no interior das “cidadessantas”, indivíduos das mais diferentes condiçõessociais, os quais, ao serem incorporados ao grupo,preservavam seus privilégios de condição econô-mica e de classe social. No Contestado, por exem-plo, muitos coronéis aderiram à luta, com todos osseus agregados.

Não obstante seus inúmeros méritos (outroshá além dos mencionados, certamente), MariaIsaura Pereira de Queiroz não pôde, contudo,deixar de sentir os efeitos das limitações do seupróprio método. Embora extremamente sensívelao drama social e humano em que se constituem osmovimentos que estudou, e apesar de ter sedeclarado “romeira de Pedro Batista”, os quadrosinterpretativos de que se valeu partiram de ques-tões exógenas ao universo dos agentes estudados,com base em um referencial teórico e em significa-dos que lhe foram atribuídos do exterior.6 Arecorrência a conceitos genéricos (messianismo,milenarismo, reforma, revolução, tradição, moder-nidade, anomia), não obstante sua valia no caso deestudos comparativos, não deixa de ser apriorísticae reducionista da religião vivida no concreto. Estaseria, para a autora, apenas um simples canal dereivindicações sociopolíticas, sem eficácia criativa.O mito milenarista nada mais seria do que o padrãocapaz de moldar a reação contra a crise, esta simdeterminante.

Duglas Teixeira Monteiro pôde servir-se dotrabalho pioneiro e esclarecedor de Pereira deQueiroz, de quem obteve ainda a documentaçãoelaborada por Vinhas de Queiroz. Também partiudo mesmo caso estudado por sua predecessora, oContestado, tendo evoluído, assim como ela, paraestudos comparativos (Monteiro, 1974 e 1977). Seuespectro de comparação, contudo, foi muito maislimitado que o dela, restringido-se ao “confrontoentre Juazeiro, Canudos e Contestado”. Monteiropreocupa-se, no entanto, com a captação do histó-rico e humano específico de cada caso, mesmo nocontexto comparativo.

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Inversamente ao procedimento metodológi-co usado pela pesquisadora, contudo, DuglasMonteiro opta por partir das concepções dos pró-prios agentes, das relações por eles definidas comorelevantes, de acordo com as indicações do “méto-do compreensivo”. Em sua análise do Contestado,a religião dos agentes e o mito milenarista que acaracteriza são eleitos fatores estratégicos para acompreensão do movimento, apesar de levar emconsideração as influências e determinações docontexto social.

O autor parte justamente do contexto dedominação patrimonialista da sociedade brasileirarústica para chegar à motivação do movimento.Assim, chega à conclusão de que a amálgama entrecoerção e consenso que a caracterizava rompeu-seem decorrência da modernização da região serra-na, por meio da introdução do “terror da história”,que dilui as bases pessoais da coesão. Dissociadado consenso, a coerção demonstra toda a sua facecruel, provocando o “desencantamento” do mun-do rústico. Pela redefinição dos antigos laços docompadrio, que se transforma de “santo compa-drio” em “santa irmandade”, e a elaboração escato-lógica, a religião produz o “reencantamento” capazde produzir a “loucura” que se seguiu.

Mas esta “loucura”, interpretada a partir daperspectiva dos próprios agentes, tem a sua lógica epode ser compreendida mesmo nas manifestaçõesaparentemente mais esdrúxulas, como os ideaismonarquistas e de atualização da gesta carolíngea, autilização de táticas e instrumentos de guerra supe-rados, a exumação dos cadáveres dos inimigos,além de inúmeras ambigüidades (no trato com odinheiro, com as armas, nas relações com o cleroetc.). Na fina análise do autor estas práticas revelam-se plenas de sentido. Por detrás de tantas aparentesirracionalidades, julgadas em termos instrumentais,há uma racionalidade claramente perceptível quan-do se conhecem os valores que orientam as ações elhes conferem significação.

Um outro aspecto relevante na obra deDuglas Teixeira Monteiro é ter ele demonstrado asmediações entre o movimento e a sociedadeinclusiva. Maria Isaura Pereira de Queiroz, em suainsistência no caráter endógeno dos movimentosmessiânicos, termina por considerar os segmentos

rústicos como dotados de total autonomia peranteaquela. O autor vem demonstrar como os segmen-tos moderno e tradicional se articulam, e queestímulos externos a este segundo segmento, ori-ginários do primeiro, têm o seu papel na gestaçãodesses movimentos. Por meio da análise das día-des típicas do mundo político e religioso rústico(padre-fiel; coronel-cliente; padrinho-afilhado;beato-seguidor; santo-devoto), demonstra a exis-tência, em todos os pares listados em seu estudocomparativo, de vínculos que acabam por ligar asociedade patrimonialista a setores diversos dasociedade inclusiva: através do padre, à Igreja daqual este é funcionário; através do coronel, àoligarquia que lhe confere o poder; através dopadrinho, ao compadrio interclasses reafirmadorda hierarquia; através tanto do beato quanto dosanto, liga-se novamente à Igreja, na medida emque se trata de um catolicismo popular por elacontrolado. O rompimento dos laços pode condu-zir ao extremo da autonomia, expressa no imagi-nário milenarista do Contestado; a renovaçãodestes laços, em graus variáveis (mais em relaçãoàs instituições políticas e menos em relação àIgreja), pode conduzir, no caso de maior inter-câmbio, a heresias religiosas como em Juazeiroou, no caso do congestionamento dos canais decomunicação em geral, à rebelião conservadora,como em Canudos.

Dos três casos “clássicos” de movimentosmessiânicos brasileiros, o mais pesquisado e pro-fundamente analisado foi certamente o do Contes-tado. Não porque tenha sido o mais trágico: certa-mente Canudos se lhe equipara. Não, também,pela sua duração (foi o mais curto deles) ou pelonúmero de pessoas envolvidas (sob este aspecto,Juazeiro o superaria de longe, possivelmente tam-bém Canudos). Talvez o movimento do Contesta-do tenha sido o mais instigante devido justamenteao seu claro e evidente imaginário milenarista. Masdeve também ter pesado a excelente e fertilizadorainfluência dos exaustivos levantamentos de Vinhasde Queiroz, que propiciaram farta documentaçãopassível de ser interpretada de diferentes ângulos.Sem este trabalho não teria havido os de MariaIsaura Pereira de Queiroz e de Duglas T. Monteiro,ao menos em toda a sua riqueza.

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Mas o mais conhecido destes três movimen-tos, certamente, é o de Canudos. Divulgado pelamídia (chegou até a ter filme comemorativo do seucentenário), inspirador de obras literárias (de Eu-clides da Cunha a Mario Vargas Lhosa) e merece-dor de certa reverência pela intelectualidade, écontudo o que menos pesquisado foi, sendo,portanto, o menos conhecido deles. Deve tercontribuído para tal carência a própria atitude doExército brasileiro, que não contente em destruirCanudos, empenhou-se na destruição de sua me-mória. Parece haver, no entanto, documentaçãopara resgatá-la — fala-se em documentos inéditosem poder do Exército, de estudiosos que não osdivulgam. A publicação do sermonário de AntonioConselheiro por Ataliba Nogueira (1978) veio re-novar a esperança na existência de documentaçãosuficientemente reveladora, o que, no entanto,mais de duas décadas após, não se confirmou.

Não que inexistam pesquisas sobre Canu-dos. Há, por exemplo, o recente trabalho doamericano Robert Levine (1995), sem dúvida histo-ricamente correto, utilizando as fontes já conheci-das. No entanto, seu trabalho de historiador com-petente e profissional se compromete na interpre-tação, ao creditar a Canudos o caráter de exemplarbrasileiro único de movimento milenarista. Hátambém os estudos de José Calasans, velho histo-riador baiano que pesquisa Canudos desde a déca-da de 50. Calasans é autor de mais de uma dezenade artigos de muito interesse e rigor, enfocandoaspectos variados da realidade de Canudos e desuas repercussões na sociedade, afastando-se dosmitos da “vertente ficcionista”.

Na esteira das comemorações do centenárioda destruição de Canudos, transcorrido em 1997,foi publicado o livro Os anjos de Canudos, dohistoriador Eduardo Hoornaert. Embora interes-sante em sua perspectiva de interpretar o movi-mento a partir de sua concepção de “cristianismobeato”, o livro não traz nenhuma contribuiçãoempírica ou teórica relevante. Sumaria e analisa ostrabalhos mais importantes, desde Euclides daCunha, cuja interpretação de Canudos considera“sacrificialista”, até os autores acadêmicos (Pereirade Queiroz, Vinhas de Queiroz, Monteiro, Levine),cujos conceitos de messianismo e milenarismo

critica superficialmente, condenando-os como lei-turas elitistas e distanciadas da realidade histórica.Absolve apenas o “mestre Calazans”, por suaspesquisas pacientes e rigorosas, sem grandes e,para ele, desnecessários vôos teóricos.

Para terminar, uma menção a Juazeiro. Dostrês grandes movimentos, foi o único a não terminartragicamente. A violência, neste caso, foi simbólicae transcorreu exclusivamente dentro dos quadrosreligiosos e eclesiais: a suspensão das ordens sacer-dotais de Padre Cícero e sua posterior excomu-nhão. Talvez esta falta de dramaticidade tenhaconcorrido para a repercussão menor deste caso,não obstante o grande vulto, não só regional mastambém nacional, que a figura do coronel, padre ebeato adquiriu. É com certeza um santo popular-mente canonizado, personagem dos mais freqüen-tes na literatura de cordel, mas talvez não tenhalogrado na literatura erudita e na mídia (lembro-meapenas de uma novela produzida sobre ele, anosatrás, pela Globo), e entre a intelectualidade maissensibilizada pelas massas populares, espaço seme-lhante ao ocupado por Antônio Conselheiro. Tam-bém talvez seja menos pesquisado do que merece-ria. O trabalho de reconstrução histórica dos mean-dros políticos e eclesiais de Juazeiro elaborado comcompetência e profissionalismo exemplares porRalph Della Cava (1976) talvez tenha, ao contráriodo que ocorreu com Vinhas de Queiroz, dissuadidoestudos posteriores. Mas há uma riqueza de expres-sões de catolicismo popular — grupos de peniten-tes, associações de beatos e de romeiros — queainda permanece um veio a ser explorado, emboramuitas delas já sejam objeto de pesquisa.7

Dos vários autores que se dedicaram a deci-frar os enigmas do messianismo, a entender suas(aparentes) excentralidades e irracionalidades,poucos foram além das explicações dos casosconcretos que estudaram. As generalizações eexplicações globalizantes são escassas. As recons-truções históricas e os trabalhos etnológicos, peloseu apego maior aos estudos de casos, disciplinar-mente requerido, abdicam de fazê-lo. Excetuando-se os estudos do “viés ficcionista”, com sua vãtentativa de afirmar os movimentos como formaspré-socialistas, tal objetivo é apenas encontrávelnos estudos sociológicos, que por mais centrados

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no singular que sejam, abrem-se, em função de suaprópria perspectiva, ao plural. Mesmo que discre-tamente, como o faz Duglas T. Monteiro, procuran-do limitar-se aos movimentos surgidos em umtempo e em um ambiente social relativamentehomogêneo — a sociedade sertaneja de fins doséculo XIX e início do século XX — e circunscreversuas generalizações ao relacionamento entre estasociedade e determinadas instituições da socieda-de brasileira global.

Mais pretensioso, neste sentido de busca dageneralização, foi o objetivo dos estudos realiza-dos por Maria Isaura Pereira de Queiroz, muitobem expresso no título de sua obra maior. Em suabusca do genérico e do variável na totalidade dosmovimentos deste tipo eclodidos em todo o globo,com finalidades classificatórias, a autora, atrelada auma ótica estrutural, chega ao estabelecimento degrandes categorias abarcando movimentos tão dís-pares quanto os ocorridos em sociedades primiti-vas e ocidentais (Pereira de Queiroz, 1965). Emsuas “Reflexões finais”, conclui que todos os movi-mentos por ela estudados, aqueles sobre os quaishavia documentação suficiente para tal, apresenta-vam como característica constante a presença doparentesco como elemento estruturador das rela-ções sociais na sociedade considerada — isoladoou em associação com o princípio econômico,sempre que tais sociedades passassem por umacrise de desorganização interna (anomia) ou demudança (transformação).

A autora não os vê como movimentos típicosde sociedades modernas, estruturadas exclusiva-mente com base no princípio econômico; estasproduziriam movimentos como o nazismo, o fascis-mo e o comunismo (por mais diversos politicamen-te que possam ser), de muito maior porte que osmovimentos messiânicos, sempre mais circunscri-tos e abrangendo menores contingentes populacio-nais. Com base em dois casos surgidos em grandesaglomerados metropolitanos, dos quais tinha notí-cia através de material jornalístico mas sobre osquais não havia estudos históricos ou sociológicos,Pereira de Queiroz acautela-se em afirmar categori-camente a distinção apontada entre sociedadestradicionais e movimentos messiânicos, de um lado,e sociedades modernas urbano-industriais e movi-

mentos políticos de grande porte, de outro, comodistinção de caráter universal, embora invista nestahipótese. Os movimentos a que se referiu comocasos excepcionais de movimentos messiânicossurgidos em ambientes urbanos e modernos foramo de Father Divine, transcorrido nos anos 30 doséculo XX em Nova York, recrutando sobretudonegros e afetados pela crise de 1929, e o movimentode Yokaanam, surgido no Rio de Janeiro no final dadécada de 40 em torno de um ex-piloto e oficial daForça Aérea Brasileira (FAB).

Os novos movimentos messiânico-milenaristas brasileiros

Em realidade, a hipótese da autora vinculan-do movimentos messiânicos aos segmentos tradicio-nais da sociedade brasileira (entre outras), se não seafirma com força de “lei sociológica”, ao menosaponta uma tendência bastante evidente. De fato, àmedida que a sociedade brasileira se industrializa eurbaniza, após os anos 30, escasseiam tais movi-mentos e diminui também sua capacidade mobili-zadora de adeptos, ao menos nas regiões Sul,Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. Talvez esta afir-mação não seja verdadeira para a Região Norte,onde parecem persistir diversos movimentos recru-tando índios destribalizados, serigueiros, pescado-res etc.8 O que apenas reforça sua hipótese, saben-do-se as condições de vida nesta região.

Nas demais regiões, após meados do séculoatual, tais movimentos parecem ter diminuído suaincidência, além de terem diversificado seu cenáriode aparecimento. Dentre os cinco de que tenhoconhecimento, apenas dois originaram-se em con-texto rural. Em primeiro lugar, por ordem cronoló-gica, o famoso caso do “Demônio no Catulé”,ocorrido entre Adventistas da Promessa em umgrotão mineiro e propiciador da peça teatral e dofilme Vereda da salvação.9 O segundo consistiu no“exército da salvação” organizado por AparecidoGaldino, o “Aparecidão”, na década de 60, nointerior paulista.10 Os demais tiveram como cená-rio regiões metropolitanas ou cidades de portemédio, como a Fraternidade Eclética EspiritualistaUniversal, liderada por Yokaanam, surgida em finsda década de 40 no Rio de Janeiro; o movimento

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terrorista e ufologista de Aladino Félix, surgido nadécada de 60 em São Paulo, e o movimento doschamados “Borboletas Azuis” de Campina Grande(PB), conduzido por Roldão Mangueira na décadade 70.11

Aqueles dois movimentos inicialmente cita-dos não fogem aos moldes dos movimentos rurais,rústicos. Talvez a novidade seja a presença doimaginário bíblico protestante entre os elementosdesencadeadores do primeiros deles. É fato que arevolta dos Mucker, no século XIX, tinha uma basemítica protestante, mas dentro de uma colôniaalemã, e não em uma população rural mestiça,caracteristicamente brasileira, como é o caso doCatulé. É curioso notar que Pereira de Queiroz nãoincluiu este caso entre os “movimentos rústicosbrasileiros”, por não considerá-lo messiânico. Tal-vez não o seja realmente, de acordo com a concei-tuação da autora. Mas é certamente milenarista,conforme demonstrou Renato Queiroz (1995).

A incidência, mesmo que diminuta, de movi-mentos messiânicos em modernas sociedades in-dustriais parece contrapor-se à concepção dePereira de Queiroz de que tais movimentos seriamexpressões exclusivas da dinâmica social de socie-dades tradicionais em momento de diluição devalores, que colocaria sua sobrevivência, sobaquela forma, em perigo. Parece haver compatibi-lidade entre tais movimentos e a sociedade moder-na, haja vista os exemplos de casos norte-america-nos mais antigos e mais recentes.12

Tornando ao caso brasileiro, podemos verifi-car que a base do imaginário religioso nos trêscasos de movimentos urbanos acima citados deixade ser católica. No caso da Cidade FraternidadeUniversal de Yokaanam, o próprio líder e a maioriade seus adeptos orientavam-se por concepçõesespíritas, de uma umbanda kardecizada (ou de umkardecismo umbandizado), conforme constateipessoalmente. Além disso, pretendiam estar aber-tos a toda e qualquer religião: Yokaanam defendiao ecletismo religioso e sua cidade santa era conhe-cida, por este motivo, como “Cidade Eclética”. Emrealidade, se a maioria dos “membros pioneiros”era constituída de migrantes nordestinos e decidades interioranas que se estabeleceram no Riode Janeiro, com baixo nível de escolaridade e

exercendo sobretudo ocupações manuais, tal nãoera o caso do “messias”. Natural de Alagoas, Yoka-anam nasceu em família de recursos e tinha ocupa-ção especializada e de alto nível técnico: piloto deaviação comercial e da Aeronáutica.

Com sua mensagem espírita e de “umbandabranca”, seu discurso moralizante e prédica escato-lógica, Yokaanam conseguiu mobilizar e levar atéo planalto central centenas de famílias do Rio deJaneiro. Sua mensagem religiosa era realmente derompimento tanto com a religião dominante quan-to com o fluxo migratório convencional, emborapreservando e mesmo exacerbando o moralismode seus adeptos ex-católicos populares. Excetoquanto a isto, a cidade santa que institui é moder-na: na tecnologia utilizada, nas formas de trabalhoe produção, nos meios de comunicação.

De certa forma, o caso de Aladino Félix e seumovimento religioso e político, além de contempo-râneo ao de Yokaanam, tem com ele certas afinida-des. Embora não tenha se retirado da metrópole,nem fundado uma cidade santa, o líder paulistatambém foi piloto, por ocasião da Segunda Guerra,nos EUA, onde realizou cursos superiores. Tinha,portanto, como Yokaanam, uma experiência maisrica de vida que seus liderados — no seu caso,sobretudo soldados da Força Pública. Sua doutrinadiferenciava-se da de seu colega alagoano porintroduzir elementos políticos e conduzi-lo à açãopolítica pouco convencional, no caso, ao terroris-mo. Muitos dos atos terroristas que ocorreram nofinal dos anos 60 e que motivaram (ou forneceramo pretexto para) a edição do AI-5 foram executadospor grupos de militares por ele liderados. No planodo imaginário que informava o grupo e sua ação,encontramos uma esdrúxula combinação de esote-rismo, judaísmo (Aladino Félix era descendente dejudeu pelo lado paterno) e ufologia (era tambémufólogo e escrevia livros relatando suas aventurasespaciais e terrenas com extraterrestres). Yokaa-nam chegou a publicar trechos de seus livros nojornal que editava na “Cidade Eclética”, O Nosso, ecertamente sob sua influência também viajou porplanetas conhecidos e desconhecidos a bordo denaves espaciais.

Quanto ao movimento dos “Borboletas Azuis”,de Campina Grande, embora também tivesse adota-

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do concepções espíritas, com sessões de incorpora-ção e de curas espirituais, não teve, como seuscongêneres do Sudeste, as características “moder-nas” tanto em seu imaginário quanto em suaspráticas. Seu espiritismo, inclusive, não era karde-cista, pois, fiel à Igreja Católica, Roldão não aceitavaas doutrinas da reencarnação e do karma. Osespíritos incorporados por ele e seus adeptos eramfiguras reais ou míticas do catolicismo: freiras,padres, santos, Padre Cícero, o próprio meninoJesus. Quanto a seus seguidores, arrebanhou ex-pobres rurais que se tornaram pobres urbanos, e opróprio líder, Roldão Mangueira, pouco se diferen-ciava de seus liderados. É certo que chegou a serum próspero comerciante e exportador de algodão,mas faliu e empobreceu. Do ponto de vista do nívelde instrução, era semi-analfabeto, havendo algunspoucos adeptos que o superavam em muito no graude escolarização.

Conjecturas

Pelas considerações expostas acima, pode-mos perceber que, nas sociedades modernas ounos segmentos modernos de sociedades tradicio-nais, os movimentos messiânico-milenaristas ten-dem a escassear, mas não a desaparecer, comoindica a hipótese de Maria Isaura Pereira de Quei-roz. É fato que nelas há outros canais de expressãodas insatisfações maiores, sobretudo econômicas,que tendem a assumir um caráter político e massi-vo. Nelas há condições de surgimento não só demovimentos de grande porte, fascistas ou comu-nistas, como nos revela a história do século XX,mas também de populismos e autoritarismos dosmais variados matizes ideológicos. No entanto, afalácia de tais propostas e seus resultados frustran-tes deixam espaço para as tentativas tradicionais decontrole das aflições e busca de soluções mágico-religiosas para os sofrimentos. Aliás, a vida moder-na nas grandes metrópoles, se possibilita certasvantagens relativamente à vida tradicional/rural(acesso a sistemas educacionais, de saúde e assis-tenciais, mesmo que precários), não conseguesuperar os problemas da fragmentação, isolamentoe insegurança vividos pelos mais bem aquinhoa-dos, nem a exclusão e as carências várias enfrenta-

das pelos demais, e isto mesmo nos países maisdesenvolvidos economicamente, se bem que emgrau bem menor que nos países mais pobres.

Nas sociedades contemporâneas há outrasclivagens além da de classe social produtoras decarências, necessidades e insatisfações. No fundo,os problemas da teodicéia e da busca de salvaçãopermanecem, mesmo que outras alternativas nãoreligiosas com eles disputem o apanágio das solu-ções. Em função mesmo dessa concorrência entreo sacral e o secular, com este oferecendo soluções“racionais” para os males da vida, a busca desoluções do primeiro tipo tende a diminuir. Masmesmo entre indivíduos de alto nível de escolariza-ção e afeitos à utilização das mais modernas tecno-logias, cidadãos dos mais modernos países, comovimos nos exemplos dos EUA, a solução mágico-milenarista ainda permanece. Neste país há jovensextremamente afeitos à cultura tecnológica que sesuicidam na certeza de serem levados, ressurretos,por discos voadores.

No caso do Brasil contemporâneo, em seussegmentos urbano-industriais modernos (Rio deJaneiro, São Paulo) ou nem tanto (Paraíba) tambémcontinuaram a aparecer manifestações messiânico-milenaristas. Poderíamos considerá-las como res-quícios dos antigos movimentos, já que tendem aarregimentar, preferencialmente, migrantes de ori-gem rural ou de pequenas cidades interioranaspara metrópoles ou centros regionais. Imbuídos deelementos religiosos compatíveis com a expectati-va messiânica, em sua socialização primária nocatolicismo popular, estes seriam sensíveis aosapelos escatológicos mesmo em meio urbano,sobretudo quando com problemas de integraçãoao novo ambiente. No entanto, é preciso nãoperder de vista dois aspectos:

1º) O ambiente religioso plural da cidadegrande, onde estes migrantes abandonam suascrenças pregressas e aderem a uma nova concep-ção religiosa, na maioria das vezes de caráterespírita. Mesmo que as antigas crenças católicas dealguma forma subsistam, como no caso de Campi-na Grande, já não se trata mais do velho catolicis-mo popular santorial e festivo, mas de um catolicis-mo mesclado com práticas espíritas, como “passes”e transes de incorporação.

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2º) A modificação do imaginário. Nos casosdos movimentos brasileiros rústicos, aqueles quese insurgiram contra a ordem eclesial e o Estado ofizeram não como uma simples exacerbação doselementos messiânicos da tradição judaico-cristã.Apelaram, sim, a um passado real, a monarquia,idealizada diante dos desmandos republicanos.Mas o seu imaginário de um povo quase semhistória apelou para elementos exógenos: o exérci-to de São Sebastião, a gesta carolíngea. No caso dosmovimentos metropolitanos, elementos totalmen-te novos são adotados: o esoterismo, com umapelo constante aos segredos das “ciências ocul-tas”, às profecias, desde Nostradamus até domBosco, à ficção científica, à astrologia e à ufologia.

Poder-se-ia argumentar, corretamente, queeste seria o imaginário dos líderes e de seusprincipais coadjuvantes. Mas em qual movimentonão é assim? No caso dos messias rurais, seudiscurso fazia sentido pela ênfase escatológicabíblica. Mas na cidade grande, os adeptos comunsjá estavam, de alguma forma, minimamente famili-arizados com o discurso dos líderes, devido àfreqüência a centros kardecistas e terreiros deumbanda, onde elementos esotéricos, ufológicos eproféticos circulam ao lado dos preceitos míticos erituais específicos.

Como profecia final, devemos estar prepara-dos para o surgimento de novos movimentos noscentros urbanos, orientados não mais por visõesreligiosas específicas, mas por perspectivas ecléti-cas e plurais, introduzindo elementos do imaginárioda vida moderna de alguma forma ligados a antigastradições ocultistas e esotéricas. O pluralismo religi-oso e a difusão pela mídia das mais variadas práticasreligiosas e sistemas alternativos de conhecimentocriam um caldo de cultura místico capaz de produ-zir os mais surpreendentes resultados.

NOTAS

1 Estas definições iniciais seguem de perto as concepçõesde Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), mas não sãoestranhas à maioria dos autores. A referida autora foiquem mais se preocupou em sistematizar os conceitos edistinguir suas nuanças, diferenciando crença de movi-mento e messianismo de milenarismo.

2 Cf. Pereira de Queiroz (1965). A exceção seria o movi-mento dos Mucker, eclodido em colônia de imigrantesalemães protestantes no Rio Grande do Sul entre 1872 e1874.

3 A expressão “vertente ficcionista” foi utilizada por Re-nato Ferraz em seu artigo “O centenário de Belo Montee algumas reflexões sobre biografia e história” (1993-94). Para ele, Fábio Luz, influenciado pela leitura deMemória de um revolucionário, de Kropotkine, teriasido o primeiro autor desta vertente, com sua obra Oideólogo, escrita ainda em 1903. Outro legítimo repre-sentante desta vertente é Rui Facó, em Cangaceiros efanáticos: gêneses e lutas (1972).

4 “1) a prenunciação, 2) a vida pública do Messias e suapaixão, 3) a dispersão dos discípulos e surgimento dacrença na ressurreição, 4) o reagrupamento dos crentesna esperança do millenium, e 5) a evolução posterior,com a protelação da parusia.” Cf. Vinhas de Queiroz(1977, pp. 255-256).

5 “O messianismo é uma revolta alienada [...] levando osseus membros a isolar-se da realidade e a ensimesmar-se [...] parece claro que tais casos se encontram noterreno da patologia social” (Vinhas de Queiroz, 1977, p.253).

6 Retomo aqui uma discussão presente em minha apre-sentação ao livro O Messianismo no Brasil contemporâ-neo, que publiquei em co-autoria com Josildeth G.Consorte. Tal método utilizado por Pereira de Queirozfoi por mim chamado de “explicativo”.

7 Entre os quais merecem ser citados o livro de LuitgardeO.C. Barros (1988), A terra da mãe de Deus, e adissertação de mestrado de Maria do Carmo Pagan Forti(1997), E ela fez o milagre... A beata Maria de Araújo noJuazeiro do Padre Cícero.

8 Temos notícia apenas de um movimento pesquisado, odo Divino Pai Eterno, relatado por Maria Antonieta daCosta Vieira (1984). Mas há muitas reportagens dandoconta de grupos semelhantes, os mais famosos reunidosem torno da figura do “Irmão José”.

9 Ver Pereira de Queiroz et al. (1957) e Queiroz (1995).

10 Ver Lopreato (1999).

11 Ver Consorte e Negrão (1984) e Suenaga (1998).

12 Entre os mais antigos, além do caso do Divine Fatheracima mencionado por Pereira de Queiroz, pode-secitar o caso do pastor Jim Jones, iniciado nos anos 50 emIndianápolis e com trágico desfecho na República daGuiana em 1978. Cf. o relato de Marshall Kilduff e RonDavis (1978). Entre os mais recentes, o caso da rebeliãoda seita texana “Ramo Davidiano”, em 1993, lideradapor David Koresh, dissidência da Igreja Adventista doSétimo Dia, também com trágico desenlace.

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