gabriela cornelli dos santos revisitando caliban

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0 UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE MARSHALL Frederico Westphalen 2010

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS

REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE MARSHALL

Frederico Westphalen

2010

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GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS

REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE MARSHALL

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras como requisito parcial e último à obtenção do grau de Mestre em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen. Área de Concentração: Literatura. Orientadora: Profª. Dra. Denise Almeida Silva

Frederico Westphalen 2010

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado

REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE MARSHALL

Elaborada por GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

________________________________________ Profª. Dra. Denise Almeida Silva – URI

(Presidente/Orientadora)

________________________________________ Membro Profª. Dra. Heloisa Toller Gomes – UFRJ

______________________________________ Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari - URI

Frederico Westphalen, 26 de Agosto de 2010.

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A minha filha Eduarda.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, à professora-orientadora Denise, pelo incentivo desde a

graduação para que eu me inscrevesse no Mestrado, e pelas suas orientações ao longo da

execução da dissertação; também pela compreensão que teve comigo, pois em algum

momento tive que pausar o andamento da pesquisa e retomar somente um mês depois; por seu

jeito atencioso e preocupado em saber como a maternidade estava me modificando quanto ao

tempo e sentimentos e pela prioridade que teve comigo quando, na reta final da gestação, nos

preparávamos para o exame qualificatório. A você, Profe Denise, minha eterna gratidão.

A meu esposo, pelo apoio, liberdade e amor que me proporcionou durante todo o

Curso.

A minha família, pai, mãe e irmão, que almejaram junto comigo a conclusão do

Mestrado.

À professora Ada (in memoriam), primeira coordenadora do Mestrado, por me

incentivar a fazer a prova de seleção e acreditar na minha capacidade.

À Magali, secretária do Mestrado, pelo auxílio e boa vontade que sempre teve em

resolver problemas que, porventura, surgiam.

A todos os meus colegas, em especial, Fabiana, Rejane e Tere.

Ao professor André Mitidieri, que me proporcionou sabedoria ao longo do Curso, e

pela companhia em nossos almoços.

E a todos os professores doutores, pela dedicação em transmitir conhecimentos a toda

nossa turma e, aos professores que estiveram em meu exame qualificatório, por suas

contribuições, as quais foram relevantes ao prosseguimento da pesquisa.

Enfim, às pessoas que acreditaram ou contribuíram de alguma forma por meio de

conhecimento, alegria e amizade. Muito obrigada.

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo estudar a figura de Caliban, tanto na peça A

tempestade de William Shakespeare, como no conto “Brazil” de Paule Marshall, levando em consideração a teoria do pós-colonialismo. A pesquisa volta-se ao conflito identitário pelo qual Caliban passa, e que reflete os resultados do encontro colonial entre a Europa e seus outros. Foram necessários alguns conceitos teóricos como pós-colonialismo, identidade cultural e espaço geográfico, elaborados por estudiosos como Stuart Hall (1996), Thomas Bonnici (2000, 2009), Yi-Fu Tuan (2008), Dirce Suertegaray (2000), a fim de proporcionar cientificidade à pesquisa. A dissertação compõe-se de quatro capítulos. No primeiro, estudam-se as principais fontes que originaram o Caliban de Shakespeare e comentam-se algumas reescritas e releituras pós-coloniais da peça; no segundo, elabora-se uma leitura de A

tempestade, e descreve-se o grotesco em Caliban. No terceiro capítulo enfoca-se “Brazil” e a crise de identidade do protagonista, e no último capítulo analisam-se os espaços citados na narrativa, visto que são influenciadores na identidade dos sujeitos. Verificou-se que o Caliban de Shakespeare sofre com a escravização imposta por Próspero, enfatizando relações de conquista e poder, e a discriminação daqueles que são sujeitos ao poder imperial, enquanto que o de Marshall sofre o conflito identitário advindo da colonização da mente. O espaço geográfico definiu-se como essencial para interpretarmos “Brazil”, pois o conto discute a própria identidade dessa nação, enquanto símbolo de outros territórios colonizados. Palavras-chave: A tempestade. “Brazil”. Caliban. Espaço. Pós-colonialismo.

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ABSTRACT

This thesis aims at studying the character Caliban, both as it appears in Shakespeare´s The

Tempest and as it is pictured in Paule Marshall´s short story “Brazil”. Analysis relies on postcolonial theory; the research centers, especially, on the identitary conflict undergone by Caliban, which reflects the outcomes of the colonial encounter between the European and its others. This research demanded the study of some concepts, such as postcolonialism, cultural identity, geographical space, and relied, mostly, on the research of Stuart Hall (1996), Thomas Bonnici (2000, 2009), Yi-Fu Tuan (2008), Dirce Suertegaray (2000). The thesis is divided in four chapters. In the first of them, Shakespeare´s Caliban´s main sources are studied and some of the rereadings and rewritings of the play are commented; the second chapter corresponds to a reading of the play from Caliban´s perspective; the character´s grotesque is described. The third chapter analyses “Brazil” and the protagonist´s identitary crisis; finally, in the last chapter, the spaces mentioned in the narrative are analyzed, once they influence subject identity. Whereas Shakespeare´s plays seems to dwell on the slavery imposed by Prospero, emphasizing territorial conquest and rule, and the discrimination of the one thus subjected to imperial power, Marshall´s Caliban emphasizes the identitary conflict that arises from the colonization of the mind. Geographical space played an essential role in the analysis of “Brazil”, once this short story discusses the nation´s identity, as a symbol of other colonized territories.

Keywords: “Brazil”. Caliban. Post-colonialism. Space. The Tempest.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8

1 CALIBAN: DA RENASCENÇA AO PÓS-COLONIALISMO.......................................11

1.1 Possíveis origens....................................................................................................11

1.2 Reescritas e releituras da peça A tempestade .....................................................16

1.3 O “outro” como princípio nas reescritas e releitura em A tempestade.............19

2 CALIBAN, EM A TEMPESTADE: UMA RELEITURA ............................................. 25

2.1 Europa encontra América ................................................................................. 25

2.2 A tempestade e suas relações com o colonialismo ............................................. 26

3 CALIBAN, EM “BRAZIL”: CRISE IDENTITÁRIA................................................... 38

3.1 Identidade cultural: fixa ou mutante? .............................................................. 38

3.2 O Grande Caliban e a Pequena Miranda: evidências de identidade em crise 40

4 O ESPAÇO EM “BRAZIL” .............................................................................................. 51

4.1 Espaço e identidade ............................................................................................ 51

4.1.1 O espaço e suas categorias ....................................................................51

4.1.2 Lugar e identidade................................................................................. 54

4.2 O espaço: formador de identidade em “Brazil”, de Paule Marshall ...............55

CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 67

REFERÊNCIAS......................................................................................................................70

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INTRODUÇÃO

Escolhemos, para a elaboração da pesquisa, dois textos: uma peça canônica e um

conto intertextual àquele drama. A peça é a famosa A tempestade, de William Shakespeare,

dramaturgo inglês do século XVI, a qual possui possibilidades para uma leitura subversiva

pós-colonial. A relação Próspero-Caliban representa a posição hierárquica do colonizador

frente ao colonizado, explorador-explorado. Ao se apossar da ilha que era de Caliban e ter-lhe

ensinado sua língua a fim de conseguir informações que o ajudariam a assumir o poder sobre

aquele território e seus ocupantes, objetifica o negro, humilhando-o e tornando seu servo.

Através de sua extrema vontade em tornar-se o dono da ilha, colonializa Caliban, e o deixa

sob seu jugo, sem nenhuma possibilidade de defesa. Apesar de que na peça não haja nenhuma

menção à América, podemos relacionar as ações de Próspero com as ações colonialistas, e a

dominação de Caliban, com a exploração sofrida pelos povos americanos.

O segundo texto, que receberá maior atenção, é o conto “Brazil”. Essa narrativa é

intertextual à Tempestade, visto que faz alusão a dois de seus personagens, Caliban e

Miranda. Esta última, no texto de Shakespeare, é a filha de Próspero, sendo que este não faz

parte da narrativa curta. “Brazil” está contido na coletânea Soul Clap Hands and Sing,

composta por quatro contos da escritora negra Paule Marshall, nascida em 1920, em

Brooklyn, Nova York, de pais oriundos do Caribe inglês. Na visão de Coser, Marshall é uma

cidadã híbrida, novaiorquina-caribenha (COSER, 2001). Podemos perceber, então, que a

autora participou de uma experiência colonial e, ao elaborar a trama de “Brazil”, certamente

retrata algumas das consequências sofridas no processo de colonização do Caribe, como a

crise de identidade dos sujeitos colonizados.

O Grande Caliban, protagonista do conto, sofre com o apagamento de sua identidade

essencialista ao tornar-se famoso comediante. Era, inicialmente, conhecido Heitor Baptista

Guimarães. No momento em que o conto inicia, fazem já trinta e cinco anos que passara em

um concurso no Teatro Municipal que lhe abriria as portas para se tornar O Grande Caliban.

Percebendo que seu corpo não mais o obedece, devido à idade, resolve aposentar-se. Na

tentativa de voltar a ser um indivíduo comum, sem fama, como o Heitor que uma vez tinha

sido, busca incessantemente informações com aquelas pessoas que tinham tido contato com

ele enquanto garçom de um restaurante na favela do Rio. No entanto, absolutamente ninguém

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mais o reconhece como Heitor, apenas como Caliban, o Grande Caliban! Torna-se, então, um

sujeito desencontrado e em crise com sua identidade cultural. Não sabe quem fora, nem que é.

E nesta busca pelo passado, acaba por posicionar-se em uma nova identidade, pois a

identidade também é produto histórico e, como tal, sujeita à transformação.

As relações entre esses dois textos realizam-se não somente por haver personagens em

comum, mas por ambos tornarem possível uma releitura pós-colonial. Tanto o drama como o

conto expressam consequências sofridas pelas nações colonizadas, ou seja, a escravização do

outro e o conflito de identidade.

O objetivo geral desse trabalho é estudar a figura de Caliban, tanto na peça como no

conto, levando em consideração a teoria do pós-colonialismo, expressão utilizada para

descrever toda a cultura produzida desde o início da colonização até os dias atuais. A teoria

pós-colonial, aplicada à literatura, analisa a literatura produzida pelos povos colonizados

desde antes do período de independência e as influências que o processo colonial trouxe para

tais regiões e povos colonizados (ALVES, 2006).

A literatura produzida por estes povos estigmatizados pelo poderio centralizador

tende a desmistificar o cânone europeu, pois no colonialismo ele era usado como referência

do belo, do poder, do ideal. Enquanto isso acontecia, o ser colonizado era visto como inferior,

sem cultura e insignificante. As escritas pós-coloniais, no entanto, surgem com a intenção de

desmascarar o cânone, mostrando a relação intrínseca deste com o poder, e utilizando-se do

discurso para manifestarem sua oclusão. Dessa forma, o colonizado subverte a voz do

colonizador em favor da cultura própria.

Dada a existência desta forma de revide a tudo o que se refere às explorações

coloniais, pressupomos ser interessante e relevante elaborar um estudo que privilegie o

discurso dos povos ditos subalternos à Europa, pois somos adeptos à ideia de que estes não

devam ser vistos como meros componentes do mundo, mas sim construtores. O processo

colonial trouxe influências na identidade destes seres, posto que a identidade cultural é um

produto histórico. Sendo assim, os seus “eus” foram constantemente alterados e recriados

levando-os, em alguns casos, à chamada crise identitária.

Dessa forma, este trabalho está assim estruturado: o primeiro e o segundo capítulos

centram-se em A tempestade; o terceiro e quarto, em “Brazil”. No primeiro capítulo,

buscaremos as principais fontes literárias, históricas e lendárias (nas quais Shakespeare teria

se baseado na construção de seu Caliban), a fim de torná-las conhecidas ao leitor e reforçarem

visões do personagem construídas ao longo dos séculos. Ainda nesta parte, falaremos de

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algumas reescritas e releituras que autores do pós-colonialismo empreenderam dessa peça e

também como esses textos percebem o “outro” em relação ao poderio do império.

No segundo capítulo, apresentaremos nossa releitura da peça A tempestade, analisando

as ações dos personagens em relação à teoria apresentada. Também falaremos da figura

grotesca que Caliban comporta e de sua objetificação e exploração exercida por Próspero.

O terceiro capítulo apresentará a obra “Brazil”, de Paule Marshall. Descreveremos a

crise de identidade enfrentada pelo mundo pós-colonial devido ao processo de colonização.

Utilizaremos conceitos de estudiosos da identidade cultural como Stuart Hall (1996) e

Kathryn Woodward (2000). Em seguida, mostraremos que O Grande Caliban está em conflito

com sua identidade e explicaremos os motivos que contribuíram para isso.

O quarto e último capítulo tratará dos espaços citados na narrativa. Buscaremos os

conceitos de espaço geográfico e suas categorias como lugar, território e paisagem. Este

aporte teórico será necessário, visto que o lugar influencia na construção da identidade dos

sujeitos assim como o inverso também se realiza, isto é, a relação espaço-identidade é

dialética como veremos na análise. Sendo assim, os cenários da narrativa participam na

construção da identidade artística de Caliban e na sua consequente crise. Por fim, a conclusão,

sintetiza o percurso do estudo e comenta as conclusões alcançadas ao longo da pesquisa.

Vale ressaltar que os textos literários analisados nessa dissertação são oriundos da

literatura inglesa; no entanto, optamos por utilizar suas traduções para o português, pois

pretendemos valorizar o trabalho de tradução de brasileiros como Diego Rodrigues e Carlos

Alberto Nunes, e facilitar a difusão dessas obras ao leitor não familiarizado com a língua

inglesa. Todavia, utilizamos também os textos em inglês, bem como diversas obras teóricas

estrangeiras, cuja consulta tornou-se indispensável ao longo da construção da pesquisa.

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1 CALIBAN: DA RENASCENÇA AO PÓS-COLONIALISMO

1.1 Possíveis origens

Um personagem histórico ou ficcional pode passar por profundas transformações

quanto a suas interpretações e percepções ao longo dos séculos. Até mesmo pode ter

interpretações extremamente contrárias, conforme a sociedade e seus sistemas vão se

transformando.

Analisar uma figura literária num intervalo de tempo enormemente distante ainda é

válido pois, como reflete Jauss a respeito da produtividade da compreensão progressiva da

obra de arte (1994, p. 35-45), o leitor tem o poder de conservar viva uma criação artística,

renovando-a e atualizando-a. Assim, um passado literário retorna quando uma nova recepção

o traz de volta ao presente, seja porque uma postura estética modificada se reapropria de

coisas passadas, seja porque a evolução literária lança luz inesperada sobre uma obra. Vale

destacar que o essencial não é saber as razões do escritor, numa obra ficcional, mas o que seu

personagem representa para o leitor em dada época.

Significativo exemplo de personagem que tem sofrido alterações ao longo dos séculos

em suas reinterpretações ou releituras é Caliban, nascido da famosa peça teatral A tempestade

(1611), de William Shakespeare. Na América Latina, foi primeiramente evocado como

símbolo no discurso modernista do fim do século XIX e começo do XX, em El Triunfo de

Calibán (1898), El Crepúsculo de Espãna (1898) e Edgar Allan Poe (1905). Ruben Darío,

que foi o primeiro a ressignificar Caliban nas terras latino-americanas, identifica-o com os

Estados Unidos, em relação ao seu nascente imperialismo econômico; reivindica a

espiritualidade de Ariel como metáfora das virtudes da América hispânica. Adepto a esta

ideia, também foi o argentino Paul Grousac, em El Triunfo de Calibán (1905).

Em segundo lugar, Caliban aparece como representação no discurso anticolonialista

dos anos de 1970. Já em 1960, The Pleasures of Exile, de George Lamming e Calibán:

Apuntes sobre la Cultura de Nuestra América (1971), de Fernández Retamar apresentam-no

como produto do colonialismo. No discurso dos estudos culturais, pós-coloniais e subalternos

do fim do século XX, o personagem associa-se à representação das nações colonizadas. Esta

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questão será amplamente estudada no decorrer do capítulo, já que este estudo priorizará tal

contexto histórico.

O enredo da peça é bem conhecido. Inicia com uma tempestade. A bordo do navio

encontram-se Alonso (rei de Nápoles), seu irmão Sebastião, seu filho Ferdinando, Antônio e

outros. O navio naufraga próximo a uma ilha onde moram Próspero, sua filha Miranda, o

escravo Caliban e o espírito Ariel, juntamente com outros espíritos.

Miranda, ao ver tal tragédia, lamenta-se pelos possíveis mortos do naufrágio. Seu pai,

no entanto, afirma que ele mesmo planejara tudo, mas que ninguém morrera: apenas haviam

se extraviado uns dos outros. Ele passa a explicar para Miranda seus motivos. Retrocede doze

anos e conta que fora traído pelo irmão Antônio. Próspero, então o legítimo duque de Milão,

transfere seu cargo ao irmão, que não se vê como substituto, mas como o titular do cargo, e

pactua com o rei de Nápoles, que lhe pagará tributos e lhe prestará homenagens, algo que

Próspero não fazia, por serem inimigos. O rei, então, aceita a proposta de Antônio e expulsa

Próspero de seu ducado. O exército coloca-o junto com Miranda em um precário navio, que

aporta à ilha.

Após a chegada de Próspero, Caliban perde sua autoridade naquele lugar, onde

anteriormente fora, juntamente com sua mãe, Sicorax, o único habitante. Próspero lhe ensina

sua língua para depois explorá-lo e se apoderar da ilha e dos espíritos que lá perambulavam

pelos ares. Caliban, no princípio, é bastante generoso e bondoso para com ele: mostra-lhe o

lugar e seus recursos, e permite que deles se aproprie livremente. Contudo, mais tarde,

revolta-se com o domínio que Próspero passa a ter sobre ele, e se utiliza da língua que

aprendeu para amaldiçoar seu dominador.

Caliban é descrito como tendo um aspecto grotesco. Os náufragos se dirigem a ele

com espanto, preconceito e zombaria. Chamam-no de “monstrengo manchado” (I, i, In:

SHAKESPEARE, 2005, p. 31); “bezerro da lua” (II, ii, p. 60); “metade peixe e metade

monstro” (III, ii, p. 70); “bloco de escuridão” (V, i, p. 103). Esses apelidos sugerem que

Caliban é diferente dos náufragos europeus em sua cor e aspecto físico. Ao lermos estas

definições, Caliban aparenta ser uma criação diabólica, sem cultura, sem língua,

diferentemente dos habitantes da Europa. Já Ariel é um espírito-escravo obediente, e os

demais personagens não o vêem com tanta estranheza.

Como escravo, Caliban tem de servir a Próspero; no início da peça, este lhe ordena

que carregue lenha e acenda-lhe o fogo, e esta atividade deve ser feita com rapidez. Próspero,

ao pedir isso, tem em mente a objetificação de Caliban: quer que seja seu escravo ou será

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amaldiçoado pelos poderes de sua arte. Sujeitando-o, Próspero se apodera da ilha,

colonizando-a.

O ódio de Caliban por Próspero é declarado. Ilude Trínculo e Estéfano, dizendo que

eles podem se tornar os donos da ilha e que ele será seu escravo se matarem o ex-duque.

Todavia, não obtêm êxito, pois este descobre a trapaça. No final da peça, Próspero vai embora

com os náufragos e sua filha. Liberta Ariel e perdoa pela “traição” a Caliban, que volta a ser,

merecidamente, o rei da ilha.

O filho de Sicorax é um personagem complexo, não somente quanto à sua

interpretação como também no que se refere às suas fontes, que são discutidas, e sem que haja

certeza absoluta sobre elas. Vaughan & Vaughan (1991, p. 23-85) apresentam várias

possibilidades a partir das quais Shakespeare teria se baseado para a construção de seu

personagem ficcional. Os autores traçam um panorama tanto das possíveis fontes históricas

como literárias. Entretanto, para que este trabalho não seja mera repetição daquele, faremos

um panorama menos detalhista, escolhendo algumas das fontes que foram mais bem aceitas

segundo esses autores, visto que o objetivo primordial é selecionar apenas as que melhor

satisfaçam o propósito da pesquisa.

Desde o século XVIII, a mais popular explicação é de que Caliban tem sido um

anagrama intencional de “canibal”. Há indícios de que a prática do anagrama era comum entre

poetas e dramaturgos no século XVII. O anagrama aqui pode ser evidente, mas importa saber

se existia a prática do canibalismo anterior àquela época ou se o canibalismo, no contexto da

obra, consistiu em uma metáfora. Disso incumbiram-se diversos autores. Alguns dizem que

por volta de 1492 amigos nativos relataram a presença de canibais a Colombo: “Prior to

Columbus’s return to Spain in 1493, Europeans had described man-eating humans and

semihuman creatures with similar appetites as ‘anthropophagi’” (Ibid., p. 28).

O estudioso holandês Albert Kluyver indica outra fonte possível: Shakespeare pode ter

tido contato com a linguagem cigana, que teria florescido na Inglaterra um século antes de

1611, na qual Cauliban (ou Kaliban) significava negro ou coisas associadas à negritude.

Caliban, então, estaria relacionado à negritude cigana. Vaughan & Vaughan descrevem

algumas características em comum entre os ciganos e Caliban: “slovenly appearance, ‘savage’

behavior, deceitful character and […] a language unintelligible to the island’s dominant

population” (Ibid., p. 36).

Vaughan e Vaughan (1991), falam da possibilidade de Shakespeare ter tido contato

(visto e conversado) não somente com ciganos, mas com índios. A partir disso, ele pode ter se

inspirado na construção de seu personagem Caliban. Também há a possibilidade de haver lido

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um ensaio do filósofo francês Montaigne, Os Canibais (1580), que consiste em desmascarar a

barbárie de seu povo e enaltecer os índios brasileiros, os quais são chamados de bárbaros

pelos seus compatriotas, por serem canibais: “Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às

regras da razão, mas não a nós, que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie”

(MONTAIGNE, 2007). A barbárie de seu povo se refere a todas as práticas advindas da

vontade humana e não de sua natureza, como corrupções, riqueza e desigualdade. Em

contraste, o que fazia dos índios brasileiros canibais, mas não bárbaros, eram suas

necessidades básicas: “encontram-se ainda nesse estado feliz de não desejar senão o que as

suas necessidades naturais reclamam; o que for além disso é para eles supérfluo” (Ibid.).

Há numerosas fontes literárias que Shakespeare possivelmente teria lido, e nas quais

teria se baseado para a elaboração de sua figura polissêmica. Uma delas, do final do século

XVI, seria Faerie Queene (1590; 1596), de Edmund Spenser, que incluiu em seu texto dois

“homens selvagens”. O dramaturgo também pode ter se inspirado na Odisseia de Homero, na

qual há a presença de Polyphemus, filho de Poseidon, que possui algumas características que

se assemelham às do Caliban do dramaturgo: “Polyphemus is a prototype of the wild man; he

lives apart from civilized society and embodies barbaric qualities in opposition to the polis”

(VAUGHAN & VAUGHAN, 1991, p. 58).

Caliban pode ter sua origem no mito céltico de Merlin, que se tornou uma figura

importante no folclore europeu. Era considerado um homem selvagem, “the wild man”. Os

autores o definem como “a borderline figure in a borderline environment, the body of a man

with the habits of an animal living in an animal’s world: humankind at its most primitive”

(Ibid., p. 63). Esse wild man, também conhecido como green man ou wodewose, até o século

XVII, foi descrito como oposto à civilidade. Teria se desenvolvido na bestialidade, não

conhecia Deus, não possuía nenhuma linguagem verdadeira. Porém, o “selvagem” tinha

algumas qualidades que os humanos civilizados não possuíam como, por exemplo, proeza no

sexo e conhecimento de segredos da natureza.

No século XVI, o wild man foi representado no teatro elizabetano com o propósito de

entreter e regrar: “In spectacles designed to celebrate the monarch’s power, wisdom, and

beauty, the wild man represented the natural forces she controlled” (Ibid., p. 65-66). Notamos

que o green man, então, representava a submissão do povo diante das leis da rainha Elizabeth.

E nisso Caliban se assemelha a ele, por deixar-se ser controlado por Próspero. Nesse período,

Caliban passou a ser representado na pintura, escultura, em ilustrações de livros e na

tapeçaria. Além do material literário exposto aqui, Shakespeare pode ter se baseado nas

narrativas orais em circulação. O homem selvagem foi amplamente representado nos séculos

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anteriores a Shakespeare, tornando-se uma fonte inegável ao considerar Caliban como

selvagem.

Entre outras tradições que podem ter influenciado na concepção de Caliban do

dramaturgo, mencionamos a fascinação europeia pelos monstros e criaturas não-humanas.

Embora essencialmente humano, o escravo de Próspero possui características típicas de

monstro. Vaughan & Vaughan (1991) o definem como primo literário do wild man. Pode ser

gentil, curioso, porém o que o torna diferente é sua forma: um monstro tem cabeça de animal

em corpo de homem. Alternativamente apresenta-se sem cabeça com a face no tórax; parte

homem, parte diabo; parte homem, parte leão; parte peixe, parte galo. Logo, estas bizarras

fusões de elementos seriam aceitáveis na obra de Shakespeare. Em A tempestade, Trínculo e

Estéfano por vezes chamam a Caliban de monstro, pois este se apresenta como uma figura

que compartilha aspectos humanos e animais: “É homem ou peixe? [...] As pernas são como

as de gente; as barbatanas parecem braços” (II, ii, p. 58). Mais tarde os bêbados avaliam:

“Quatro pernas e duas vozes, é um monstro primoroso” (II, ii, p. 60).

Caliban pode, ainda, ter advindo de figuras carnavalescas representadas na Commedia

dell’arte da Renascença italiana. Assemelha-se à figura do harlequin da comédia, pela sua

grotesca aparência, lascívia e ares de um palhaço, que tem por função fazer rir. Por outro lado,

é também considerado produto do conhecimento que Shakespeare tinha das masques, peças

que eram representadas em duas formas. A primeira, a antimasque, era atuada por

profissionais e representava um mundo de vícios e desordem. Suas figuras eram tipicamente

selvagens, índios, fantasmas, pigmeus. A outra forma, a masque propriamente dita, era

representada pelos membros da corte Stuart e associava-se ao triunfo de sua comunidade

aristocrática e da crença na hierarquia.

A criatura de Shakespeare associa-se a uma figura antimasque, por parodiar seu herói,

Próspero, e inverter a ordem natural da masque. Em vez de ser domado ou desaparecer, é ele

que provoca o desaparecimento do entretenimento de Próspero quando Ceres, Iris e Juno se

evadem. Cheirando mal por terem caído no poço de imundície, Caliban, Estéfano e Trínculo

tornam-se sujeitos de seu próprio espetáculo, que burla o produto da “arte” de Próspero

(VAUGHAN & VAUGHAN, 1991).

Todas essas possíveis fontes nos remetem ao caráter polissêmico do personagem.

Caliban, assim como as outras figuras arroladas até aqui, compartilham uma ou outra

característica, o que leva a crer que Shakespeare reproduziu em seu personagem muito de seu

conhecimento literário, histórico e lendário. A certeza, aqui, é de que todas essas figuras –

selvagem, monstro, harlequin ou antimasque – simbolizaram a inversão das hierarquias

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dominantes e a marginalização desses personagens em relação à civilização. Por este modo é

que Caliban vem passando por constantes ressignificações ao longo dos séculos,

metaforicamente representando o outro, o dominado, o esquecido, o explorado.

1.2 Reescritas e releituras da peça A tempestade

Antes de partimos para a exposição do que o subtítulo acima propõe, é interessante

que façamos uma distinção entre reescrita e releitura de um texto. Thomas Bonnici traz as

duas definições de uma forma muito clara, de fácil compreensão:

A reescrita é um fenômeno literário [...] que consiste em selecionar um texto canônico da metrópole e, através de recursos da paródia, produzir uma nova obra escrita do ponto de vista da ex-colônia. [...] A reescrita tem por finalidade a quebra da ocultação da hegemonia canônica e o questionamento dos vários temas, enfoques, pontos de vista da obra literária em questão, os quais reforçam a mentalidade colonial. A reescrita desemboca na subversão dos textos canônicos e na reinscrição dentro do processo subversivo (BONNICI, 2009, p. 271).

Já a releitura é “uma estratégia para ler textos literários ou não-literários e, dessa

maneira, garimpar suas implicações imperialistas e trazer à tona o processo colonial” (Ibid., p.

269). No ato da releitura, é possível enxergar o que está por detrás do texto, à sua sombra e

trazer evidências de respostas subversivas ao que está no primeiro plano do texto: a ideologia

do colonizador.

Reescrita e releitura são atos literários que se complementam. No momento em que

um autor reescreve uma obra canônica, obviamente busca uma nova interpretação. Não há

sentido em apenas substituir um texto clássico por outro moderno. Há intenções, que buscam

alguma transformação. Almejam a reflexão do leitor perante o texto shakespeariano em

contraste com o novo texto, que ele seja capaz de perceber as nuanças do colonialismo nas

entrelinhas e possa subvertê-las.

Desde o século XVII até por volta da década de 1960, as reescritas de A tempestade

não dão muita importância ao escravo Caliban. Em muitas delas, ele é esquecido ou

marginalizado. A peça é também adaptada por outros dramaturgos, que burlam em demasia

seu enredo e, consequentemente, suas interpretações. O que acontece em seguida é que muitos

críticos literários se utilizam dessas adaptações como se fossem a peça original de

Shakespeare, e isso traz sequelas ao texto.

Um exemplo é The Tempest: Or, Enchanted Island (1670), de John Dryden e William

Davenant, que retêm apenas uma pequena parte do texto original de A tempestade. Inventam

Page 18: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

17

personagens e alteram o caráter de outros. Por exemplo: Caliban tem uma irmã gêmea,

Sicorax, e ambos são monstros; Sicorax casa-se com Trínculo e Caliban torna-se escravo

deste; Miranda tem uma irmã, Dorinda, e Próspero um filho estrangeiro, Hippolito, que

permanece escondido numa rocha na ilha por doze anos sem nunca ter visto uma mulher. É

um selvagem, mas, diferentemente de Caliban, é educado, porém insensível aos tesouros da

natureza, diferenciando-se por isso novamente de Caliban (VAUGHAN & VAUGHAN,

1991).

Como Vaughan & Vaughan (1991, p. 89-117) descrevem, durante todo o século XVII,

Caliban é visto como um monstro. Já no século XVIII, passa-se a discutir a força da

imaginação de Shakespeare, evidenciada pela incomum figura grotesca que cria e, com isso,

sua linguagem passa a ser discutida. Quanto ao primeiro dos assuntos, citamos Joseph

Addison, em The Spectator (1712), Lewis Theobald, em seu prefácio para The Tragedy of

King Richard II (1720) e Nicholas Rowe, em Some Account of the Life of Mr. Shakespeare

(1948). Essas obras comentam da profundeza da imaginação e da maravilhosa invenção do

dramaturgo inglês. Quanto à linguagem, as opiniões estão divididas. Rowe afirma que não é

apenas um personagem novo, mas que sua linguagem também é algo novo. William

Warburton concorda com Rowe, e acrescenta que a linguagem de Caliban tem um certo grau

grotesco, assim como ele o é.

Por outro lado, John Holt, em Some Remarks on The Tempest (1750), diz não ver nada

de tão excepcional na linguagem, nem no personagem Caliban. Na época de Shakespeare,

havia a crença em bruxas e, naturalmente, a figura de Caliban não seria absurda e nem

incomum. Por conseguinte, sua linguagem seria compatível com sua origem. Benjamin

Heath, em A Revisal of Shakespeare’s Text (1765), tem ainda outra visão da linguagem do

escravo: Shakespeare teria adaptado a linguagem para a brutalidade de seus modos e a

grosseria de seus sentimentos.

A visão de que a linguagem serviria apenas para enaltecer a monstruosidade exterior

do personagem acaba sendo substituída no final do século XVIII, quando há uma grande

reviravolta nas interpretações sobre A tempestade. Agora, os críticos já não ignoram Caliban

e, em vez disso, começam a vê-lo com mais simpatia e com menos preconceito. Essas

releituras partem da perspectiva de Caliban e não mais da de Próspero, que até esse momento

é tomada automática e unicamente entre os críticos.

Caliban passa a ser visto como um ser poético, pois não é completamente animal (é

marcado pela aparência do vício), e nem homem (não possui senso moral, tornando-se como

Page 19: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

18

um animal bruto). É um ser que tem deformidade no corpo e na mente. Tem aspecto físico de

um monstro, mas com vícios humanos.

No início do século XIX, Hazlitt interpreta a peça nos termos do imperialismo. Vê

Caliban como um nativo desapropriado; já Patrick MacDonnell encanta-se por ele. Afirma

que ele atrai a simpatia dos seus leitores e causa pena devido a sua forte resistência à tirania

de Próspero, do qual se torna escravo. Não há como detestar Caliban, mas sim torcer por ele.

A condição de escravo é bastante discutida nos meados do século XIX em algumas

partes do mundo anglo-americano. Aquela velha concepção de que a escravidão de Caliban

era produto de sua depravação agora é revista sob forte negação dessa mentalidade.

Movimentos abolicionistas fervorosos surgem no início do século e não compactuam com

atos de exploração. Para muitos críticos ingleses e americanos, a escravidão tornara-se uma

árdua realidade. Caliban converte-se, então, em um símbolo antiescravagista e numa luz que

traria menos injustiças.

Uma reescrita satírica elaborada por Robert e William Brough, The Enchanted Isle

(1848), gira em torno do tema da escravidão. Nela, Caliban aparece como um escravo

selvagem, com a negritude de um bondsman. Ele é tratado simpaticamente pelo escritor. A

partir dessa obra, surgem outras, e também caricaturas que associam Caliban a escravos

negros.

Ainda no século XIX, a noção de Caliban transforma-se. Robert Browning, poeta

famoso por suas críticas à era vitoriana, reenfatiza as qualidades físicas do escravo de

Próspero. Para ele, Caliban é meio homem, meio peixe, mas tem qualidades essencialmente

humanas, como o egoísmo e o pessimismo. Esse mesmo pessimismo é a representação dos

vitorianos, na opinião de Browning. Apesar de reaparecer na figura de um monstro, no século

XIX, Caliban é mais humano e simpático. Christopher Pearse Cranch, em Ariel e Caliban

(1887), mostra o escravo evoluindo moral, intelectual e também fisicamente. Difere, assim, do

Caliban de Ernest Renan, Caliban: Suíte de “La Tempête”, surgido em 1878, no qual o autor

ainda o vê como antissocial.

Porém, essas transformações e tratamento suave do personagem não são generalizadas.

No século XIX, por exemplo, Oscar Wilde concebe-o como deformado, escravo-besta que

representa a depravação humana. Percebemos, nesse momento, a presença do monstro do

século XVIII, representando o lado negro das pessoas, o qual não podemos ver nem evitar. Já

no início do século XX, Caliban é denominado o “outro” pela falta de governo, cultura e

educação, em comparação às civilizações modernas.

Page 20: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

19

Durante o período das Grandes Guerras Mundiais, alguns críticos escrevem sobre ele.

Influenciado pelos estudos psicanalíticos de Freud sobre o lado escuro da natureza humana,

Wilson Knight afirma que o personagem é o símbolo do mal da psique humana: Caliban pode

ser percebido como um aspecto da psique de Shakespeare, representando a anômala ascensão

do mal com a ordem criativa.

O século XX foi bastante controverso em relação aos demais no tocante às

interpretações da condição metafórica do personagem de Shakespeare. As Guerras, a

Psicanálise e a independência de nações que há muito tempo sofriam com o processo de

colonização contribuíram para esta virada radical, que vem ganhando cada vez mais interesse

nos espaços acadêmicos no século XXI. Devido à relevância para esta pesquisa dessa era, que

reinterpreta Caliban por outra perspectiva teórica, pensamos ser necessária a abertura de um

novo subcapítulo, já que é nessa leitura que centraremos toda a análise posterior deste estudo.

1.3 O “outro” como princípio nas reescritas e releitura em A tempestade

Por muito tempo, as releituras de A tempestade idealizaram Próspero como o sujeito

que possuía valores humanos compatíveis com as regras da sociedade: um homem exemplar,

que não comete injustiças e vive para o bem de todos. Próspero “era descrito como um pai

bondoso, um orientador de sua filha Miranda e de seu futuro genro Ferdinand, um homem que

castiga apenas quando a necessidade urge, um cavalheiro que sabe perdoar os inimigos e

esquecer o mal que lhe fizeram” (BONNICI, 2009, p. 270). Consistia em uma visão fechada,

que não abria possibilidade de vê-lo de forma contrária. Caliban, opostamente, era visto

sempre como o escravo selvagem, o rebelde, deformado e antissocial.

Entretanto, a partir da década de 1960, e mais sistematicamente na de 1970, a crítica

pós-colonial torna-se evidente e passa a tratar Próspero como o colonizador, o dominante, e

Caliban como o colonizado, o dominado. O colonialismo europeu submeteu vários povos e

nações a seu poder, levando-os à negação de seus direitos frente a um panorama de domínio

total exercido pelo poder econômico e político dos brancos, cristãos e ricos em países

industrializados. Mesmo com todo este contexto de exploração e omissão, esse século

também mostrou que esses povos excluídos adquirem consciência dessa condição de

objetificação e começam a resistir através de movimentos que buscam promover a cultura e a

literatura dessas nações colonizadas.

Como Bonnici define, “A crítica pós-colonial [...] abrange a cultura e a literatura,

ocupando-se de perscrutá-las durante e após a dominação imperial europeia, de modo a

Page 21: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

20

desnudar seus efeitos sobre as literaturas contemporâneas” (2009, p. 267). As literaturas

oriundas destas ex-colônias europeias surgem da prática do colonialismo juntamente com a

negação dos pressupostos do centro imperial. O colonialismo fez das nações recém

colonizadas sociedades oprimidas, silenciadas e reprimidas. No entanto, a literatura pós-

colonial busca, através de recursos como a paródia, subverter essa condição e recuperar a voz

do colonizado, revelando assim sua resistência.

A leitura pós-colonial de um texto implica desmistificar o cânone literário ocidental,

que representa a utilização do poder em fixar superioridade do colonizador perante o “outro”

e liquidar com o primitivismo desse mesmo subalterno. Para Bonnici (2000), essa

desmistificação do cânone é algo recente, pois se desenvolveu principalmente com as

literaturas pós-coloniais, tanto as de língua espanhola, nos países latino-americanos e

caribenhos, como as em português, no Brasil, Angola, Cabo Verde e Moçambique, em inglês

na Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Índia, Malta, Gibraltar, ilhas do Pacífico e do Caribe,

Nigéria, Quênia, África do Sul e em francês, na Argélia, Tunísia e vários países da África.

Como mencionado anteriormente, Próspero era analisado, na visão eurocêntrica, como

retendo a “exclusividade da condição humana” (BONNICI, 2000, p. 44) e Caliban como um

“ser na periferia da civilização” (Id., ibid.). Nas releituras pós-coloniais, este poder que

Próspero detém perante Caliban retrata o fenômeno do colonialismo ou imperialismo,

revelando a ânsia de conquistar cada vez mais poder frente aos povos marginalizados ou

periféricos, os quais não tinham força suficiente de fazer valer sua voz num contexto de

dominação. Caliban vem nos mostrar, nessas releituras, que o oprimido pode revidar ao

cerceamento de sua autonomia pelo poderio imperial. Este revide não quer dizer luta armada,

mas uma luta discursiva. Apesar de ser uma forma de resistência mais sutil que a primeira, é

mais eficaz por ser mais difícil de ser combatida pelo poder imperial:

a resistência que opera no campo discursivo mostra-se muito mais efetiva, na medida em que a oposição se faz mediante a apropriação e a transformação das formas imperiais de representação e domínio para o uso subversivo da voz colonizada (ALVES, 2006, p. 64).

Caliban também revida discursivamente, ou seja, recupera a voz e denuncia a sua

própria outremização Além de revidar através da denúncia da usurpação e da percepção das

estratégias utilizadas por Próspero para tal intento, Caliban tenta ainda resistir através da força

física, unindo-se a outros excluídos para tentar reverter a situação que lhe foi imposta (Ibid.,

p. 67).

Page 22: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

21

O primeiro indício de que algo estava mudando nas interpretações sobre a figura de

Caliban foi através da publicação do livro Humanismo Burgués y Humanismo Proletario

(1938), de Anibal Ponce. Nesta obra, o ensaísta argentino adverte sobre a questão do

colonialismo e pensa ser, frente a tamanha injustiça de Próspero, um exagero conceber

Caliban como um monstro. Segundo González (2007), essas reflexões de Ponce serviriam,

posteriormente, para o interesse em uma nova leitura do personagem, que se firmaria por

volta dos anos 60.

Segundo González (2007), dois dos grandes responsáveis por tornarem a leitura pós-

colonial de Caliban uma prática foram os escritores George Lamming e Fernández Retamar,

com as obras The Pleasures of Exile (1960) e Calibán: Apuntes sobre la Cultura de Nuestra

América (1971). Retamar tenta colocar em crise as bases do colonialismo como sistema.

Ressalta a contradição entre colonizador-colonizado e fixa a oposição Caliban-Próspero, que

expressa o drama da colonização na América.

Retamar não constrói um discurso antiocidental, mas um discurso pós-ocidental,

recuperando a imagem de uma América Latina que surge híbrida e multicultural frente aos

que lhe deram suas línguas; uma América que no ato de apropriação do outro reverte à própria

colonização, e cujo ato de assimilação revela sua resistência ao domínio. Logo, Retamar

desconstrói as noções colonialistas do Ocidente para definir a América (GONZÁLEZ, 2007).

Lamming, por sua vez, vê Caliban como o representante fiel dos caribenhos. Identifica

Próspero com o primeiro comerciante de escravos que foi para a África em busca de

exploração e domínio. Como Joseph comenta a esse respeito, “Like others who came after

him he first used force and then his culture to encompass both physical and spiritual captivity

of the Africans (1992, p. 10). Ainda de acordo com Lamming, Caliban é um ser colonizado e

excluído pela linguagem, e roubado de sua linguagem ancestral, religião e história pela

exploração que produziu o sistema escravocrata.

The Pleasures of Exile consiste em uma reflexão em busca de um futuro mais positivo

para os caribenhos. Caliban “is the symbol of the colonized inhabitant of the Caribbean”

(JOSEPH, 1992, p. 11). Lamming interpreta a peça de Shakespeare sob a ótica do

colonialismo, e sugere que o uso de Caliban como um conceito pode contribuir para a

ampliação de horizontes.

Outro exame de A tempestade como crítica do discurso colonial pode ser encontrado

em ‘This Thing of Darkness I Acknowledge Mine’: The Tempest and the Discourse of

Colonialism. Paul Brown (1989) descreve o tipo de força que é exercido pelo colonizador.

Ressalta ainda que o dramaturgo talvez tenha atentado para os perigos da expansão britânica

Page 23: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

22

assim como Próspero se refere ao lado escuro de sua natureza quando diz a Caliban “This

thing of darkness I acknowledge mine” (V, i).

Brown percebe um discurso ambivalente e contraditório em A tempestade, que

também reflete sobre as práticas colonialistas. Bonnici (2000) igualmente concorda com essa

ideia. Para ele, Próspero discursa até o final da peça demonstrando seu poder, ordem e

dominância. O ex-duque, ao abandonar a ilha, não renuncia a posse que tem sobre ela, e nem

devolve o título de dono da ilha a Caliban. O poder do europeu em relação aos nativos e

colônias é irrevogável:

O recolhimento de Calibã em seu arrependimento exige uma conclusão favorável ao colonizador, corroborada pela última fala indiscutivelmente predominante de Próspero, na qual não deixa dúvida de que é ele, o europeu, o senhor e o dominador do espaço e das pessoas que se encontram na alteridade e fora do ambiente eurocêntrico (BONNICI, 2000, p. 58-59).

Bonnici ainda explica como se dá esta inversão de poder, ou melhor, a ambivalência

do poder na peça. No epílogo do texto, Próspero afirma não ser mais o tão poderoso dono da

ilha, mas sim um simples habitante que deseja voltar a sua terra. Sob a sombra deste discurso,

ainda há resquícios de dominação, aparentemente ilusórios, porém reais:

Embora a apropriação das terras e do nativo na época colonial não tenha nada de ilusório e o projeto inglês de espoliação do Novo Mundo seja marcante em sua história, o eurocentrismo, a objetificação e a divisão binária têm fatores ilusórios, facilmente detectáveis pelos nativos, mas mantidos à força pelos europeus para a sua perpetuação (Ibid., p. 59).

Portanto, em A tempestade, há uma ambivalência do triunfo do colonialismo e o relato

de estratégias que subvertem o poder colonial. Bonnici (Ibid., p. 59) conclui suas reflexões

sobre a ambivalência do discurso analisando: “Quando é reduzido ‘ao próprio estado’, sem a

‘magia’ colonizadora, Próspero torna-se o outro diante da declaração de seu projeto,

exatamente a posição equivalente à de Caliban”1.

Meredith Skura também fala do discurso do colonialismo em A tempestade. Comenta

sobre os artigos escritos recentemente acerca da relação Próspero-Caliban e junta-se aos seus

autores para defender a presença desse discurso colonialista na obra. Já no início de seu texto,

define sua compreensão de colonialismo:

1 As expressões entre aspas nesta citação referem-se às ditas no epílogo da peça: Meu encanto terminado,/ reduzi-me ao próprio estado,/ que é precário, em verdade. [...] Por isso,/ não queira que vosso feitiço/ que eu nesta ilha permaneça/ tão estéril e revessa (V, i, In: SHAKESPEARE, 2005, p. 106).

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23

Though the term ‘colonialism’ may allude to the entire spectrum of New World activity, in these articles it most often refers specifically to the use of power, to the European’s exploitative and self-justifying treatment of the New World and its inhabitants – and I shall use it in that sense (SKURA, 1989, p. 44).

Para Skura, é inegável a presença de semelhanças entre o enredo da peça com certos

eventos e atitudes ocorridos na história colonial inglesa: “Caliban is the center of the play [...]

because Europeans were at that time exploiting the real Calibans of the world, and The

Tempest was part of the process” (1989, p. 44-45). A autora ressalta a representação da

infantilidade de Caliban como símbolo de subalternidade, de sujeito colonizado; a inocência

de uma criança é uma dimensão deste sujeito. Skura analisa:

Caliban’s childish innocence seems to have been what first attracted Prospero, whose life has been spent learning a self-discipline in which he is not yet totally adept, Caliban can seem like a child who must be controlled, and who, like a child, is murderously enraged at being controlled (p. 65).

Em conclusão, a autora afirma que Shakespeare não apenas participa indiretamente de

uma ideologia de exploração política do colonialismo, mas também diretamente, dos efeitos

psicológicos daqueles que têm experimentado essa exploração, considerando o texto do

dramaturgo o primeiro exemplo inglês de um discurso ficcional colonialista.

Lisa Laframboise, por sua vez, enumera algumas reescritas pós-coloniais desse drama

shakespeareano, porém sob outro foco. Inicialmente reafirma que as reescritas de A

tempestade frequentemente revelam as relações entre as nações colonizadas e o centro

imperial: “Rewritings of Shakespeare’s The Tempest, particularly from Africa and the

Caribbean, have privileged the figure of Caliban as the native made Other by Prospero’s

imperialist rule” (1991, p. 36). A autora ainda analisa algumas reescritas canadenses que

tendem a privilegiar Miranda, como produto da oclusão imperialista da mulher ou do

patriarcalismo presente na relação Próspero-Miranda de A tempestade.

Para a crítica, “there is, of course, no rule that Caliban must be Native; in The Tempest

he is an unspecified Other” (LAFRAMBOISE, 1991, p. 37). A partir da afirmação de que

Caliban adquire várias formas, revê tais reescritas também sob a ótica pós-colonial, mas

analisando Miranda e sua relação de revide ao patriarcalismo exercido pelo pai. No entanto,

afirma ser este redirecionamento de foco um risco, pois pode ignorar a interpretação da

marginalização do nativo e, por conseguinte, a marginalização da mulher nativa.

Nessas reescritas, não é o discurso racial que predomina, mas o discurso do gênero.

Ou seja, não é mais a relação do europeu com o nativo em evidência, mas a relação homem -

Page 25: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

24

mulher: Caliban e Miranda se aliam como sujeitos colonizados e lutam contra Próspero. Isso

ocorre, por exemplo, no poema “Snapshots of Caliban”, de Suniti Namjoshi. Apesar da

aparente hierarquia de Caliban sobre os outros personagens que o título sugere, a Miranda de

Namjoshi escapa “the position of Prospero’s daughter, as defined by the imperialist discourse,

to estabilish a relationship of equality with Caliban” (LAFRAMBOISE, 1991, p. 48).

No que se refere ao teatro, Aimé Cesáire contribui com sua peça Une Tempête (1969),

que consiste em uma adaptação ou reescrita de A tempestade, de Shakespeare. Conforme

Joseph (1992), Cesáire a adapta para a situação do negro exilado, ou seja, nela reivindica a

figura de Caliban como a metáfora da redenção negra em terras latino-americanas e como a

representação dialética do colonialismo.

Para González (2007), essas reescritas e releituras que a literatura pós-colonial faz dos

cânones que representam o poderio imperial e o domínio deste perante as nações colonizadas

são pertinentes no contexto dos anos 70, mas perdem seu lugar nas atuais circunstâncias pós-

modernas, pela incapacidade de um símbolo unitário (Caliban) sintetizar a multiplicidade

cultural da América. Logo, o monopólio simbólico deixa de ser relevante. No entanto, como

as fronteiras temporais deste trabalho estão bem marcadas, a nossa meta de trabalhar com o

pós-colonialismo continua a ser o foco, não nos interessando o porquê de Caliban perder sua

representatividade no contexto pós-moderno.

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2 CALIBAN, EM A TEMPESTADE: UMA RELEITURA

2.1 Europa encontra América

Na época dos Descobrimentos, o europeu que viajava por distantes lugares nunca

antes visitados se deparava com seres distintos de sua aparência física e de seus costumes. A

primeira nação europeia a entrar em contato com o continente que receberia o nome de

América é a Espanha, e as ilhas caribenhas são os primeiros lugares a serem descobertos.

Cristóvão Colombo, com o desejo de expandir o mundo e conhecer rotas lucráveis de

comercialização, viaja àquelas terras desconhecidas e se depara com relatos sobre a existência

de criaturas grotescas e com hábitos nada convencionais. No seu Diário, Colombo reproduz o

que os índios lhe relatam: “Diziam [...] que lá havia uma gente que tinha um olho na testa, e

outros que chamavam de canibais, de quem demonstravam ter muito medo” (COLOMBO,

1991, p. 64). E acrescenta: “Não queriam falar, por receio de serem comidos, e não podia

tirar-lhes o medo, pois diziam que só tinham um olho e cara de cachorro” (p. 65). O

imaginário europeu, a partir daí, cria inúmeras definições para aqueles habitantes do Novo

Mundo. Os americanos tornam-se, nessas concepções, selvagens, nus, ferozes e canibais ou

antropófagos.

A tempestade, de Shakespeare, vem a evocar esta concepção europeia da existência de

canibais em América. A Inglaterra Elizabetana, no período correspondente aos séculos XVI e

XVII, vive a Renascença, ligada diretamente ao movimento artístico e filosófico que reflete as

intensas transformações sociais pelas quais todo o continente europeu passa. A nação possui

uma das melhores economias do mundo, o que inevitavelmente repercute na educação e no

desenvolvimento cultural.

Caliban, anagrama de Canibal, é o personagem grotesco da peça. Releituras pós-

coloniais vêem, sob as falas dos personagens Próspero e Caliban, clara evidência de um

discurso colonial. Próspero representa o europeu que coloniza violentamente Caliban, o

representante da América. Para Peter Hulme, é inegável a existência “of The Tempest’s links

with this decisive phase of English colonial activity” (1986, p. 91). É o que veremos no

subcapítulo a seguir.

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26

2.2 A tempestade e suas relações com o colonialismo

O primeiro ato de A tempestade é composto por duas cenas: uma breve e outra mais

longa. A primeira resume-se à tempestade propriamente dita e aos apuros que seus tripulantes

enfrentam até o naufrágio. Transparece o estado de nervosismo e pavor nas falas alteradas dos

personagens e nas evocações a Deus para que os salvem.

Já a segunda cena consiste em um longo diálogo entre Próspero e Miranda, na qual ele

lhe explica o porquê da tempestade que, há pouco, tinha evocado e revela que já tivera em

suas mãos um ducado poderoso. Findo o relato, Próspero provoca uma certa sonolência em

Miranda, o que a leva a adormecer. Chama então Ariel, o espírito obediente, a fim de saber

sobre o sucesso da tempestade. Este é o momento em que Ariel entra em cena pela primeira

vez. Ele é introduzido pelo chamamento de seu dono, que já confirma o status de posse do

espírito. Em sua fala, percebemos a autoridade de um senhor e a pressa com que seu escravo

deve atender ao seu chamado: “Servidor, estou pronto novamente! Vem, meu Ariel! Aqui!”

(I, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 27)2.

Ariel é um espírito prestativo e bajulador. Submete-se a todas as ordens com honra e

rapidez, embora veremos mais adiante as razões para tanta presteza. Ariel, ao chegar até seu

dono diz: “Meu grande mestre, salve! Salve grave senhor! Vim para em tudo te obedecer, ou

seja, para voar, nadar, no fogo mergulhar, ou montar nas nuvens densas. Tua vontade forte é

que domina Ariel e seu poder” (I, ii, p. 27). Próspero, por sua vez, continua a interrogá-lo com

autoridade: “Executas-te, espírito, direito a tempestade, conforme te ordenei?” (I, ii, p. 27). E

após Ariel confirmar que tudo saiu como o planejado, Próspero elogia a bravura de Ariel

embora utilize um pronome possessivo para fazer isso, evidenciando novamente a posse do

escravo: “Meu bravo espírito!”; “Muito bem, meu espírito!” (I, ii, p. 28).

Próspero, sentindo que ainda precisaria completar seu plano, ordena a Ariel mais

algumas ações. O espírito alado, no entanto, lembra da promessa que Próspero fizera: libertá-

lo. Para isso, Ariel recorda a fidelidade e presteza que sempre demonstrou para com o ex-

duque: “Lembra-te que te prestei serviços importantes, nunca menti, não descuidei de nada,

nem me mostrei queixoso ou rabugento. Prometeste abater-me um ano inteiro” (I, ii, p. 30).

Nesta queixa, podemos perceber que, para convencer Próspero de sua merecida liberdade,

compara-se, indiretamente, com outro escravo da ilha, que não é tão dedicado como ele o é.

2 Todas as citações em português desta obra foram retiradas desta mesma edição. As citações posteriores de A

tempestade serão indicadas apenas pela referência ao ato, cena e número de página.

Page 28: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

27

Próspero fica atônito com tanto atrevimento. Lembra a Ariel do favor que lhe fizera

quando chegou à ilha, ao libertá-lo do tronco no qual a bruxa Sicorax o tinha aprisionado, por

ter-se apresentado com pouca dedicação a ela. Agora, Próspero o repreende, chamando-lhe de

“coisa maligna” (I, ii, p. 30). Apesar de Próspero estimar o bom comportamento de Ariel, ele

objetifica-o, escravizando-o. Ariel deve sempre cumprir com habilidade o que ordena, sem

resmungar. Sua intenção é de que ele intermedeie as suas ações mágicas ou as execute;

Próspero é apenas o mentor: “Adquire logo a forma de uma ninfa, a mim e a ti visível, tão

somente, a ninguém mais. Assume essa postura e volta para cá. Vamos! Depressa!” (I, ii, p.

32).

Essa qualidade de Próspero reforça a ideia de explorador versus explorado - exposta

no capítulo anterior deste estudo-, especialmente quando ele mesmo chama Ariel de seu

escravo; o conceito fica também patente pelo uso frequente de pronomes possessivos. O rigor

dos castigos de Próspero também mostra a hierarquia de poder naquela ilha: “Caso venhas de

novo a murmurar, fendo um carvalho e como cunha te comprimo dentro de seu nodoso corpo,

até que tenhas ululado durante doze invernos” (I, ii, p. 31). Próspero impõe medo a Ariel,

tornando-o submisso. Isso faz com que Ariel logo se mostre arrependido da aparente

ingratidão ao pedir-lhe a liberdade: “Perdão, mestre; mas hei de conformar-me a quanto me

ordenares, perfazendo de grado minha obrigação de espírito” (I, ii, p. 31).

No momento em que Próspero relembra a Ariel de que tinha sido o responsável pela

sua libertação do tronco no qual Sicorax o tinha deixado, faz questão de falar da ascendência

da bruxa, como se isso a fizesse mais terrível. Vejamos o diálogo entre Próspero e Ariel:

P: Não te lembras da repelente bruxa Sicorax, que a idade e a inveja em arco recurvaram? Já te esqueceste dela? A: Não, senhor. P: Só parece que sim. Se não, dize-me: de onde era ela? Onde nasceu? Responde. A: Na Argélia, meu senhor. P: Ah, sim? Preciso todos os meses repetir quem foste, coisa de que te esqueces a toda hora (I, i, p. 30).

Argélia é um país africano. Na concepção de Próspero, sendo a bruxa de origem

africana, isso a torna mais temível e perigosa. Em seguida, comenta que ela possuía olhos

azuis e que seu filho era um monstrengo manchado. Notamos aí uma fusão de elementos de

raça e preconceito. Sicorax seria então um produto da miscigenação de culturas entre o

europeu e o africano e, consequentemente, Caliban, seu filho, herdaria essas “manchas”

daquela mistura racial. Para Próspero, ser descendente da África e ter a pele negra é algo que

não se coaduna com o status de ser humano, que, nesse caso, assemelhar-se-ia mais aos

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monstros e bruxos, como os epítetos pelos quais se refere à bruxa demonstram: “repelente

bruxa” (I, ii, p. 30); “bruxa maldita” (I, ii, p. 30); “megera de olhos azuis” (I, ii, p. 31);

“monstrengo manchado” (I, ii, p. 31).

Sendo filho de uma bruxa e com origem africana, Caliban pode ser comparado com

um monstro, na perspectiva de Próspero. Essa característica vem ao encontro da concepção

que o imaginário europeu tinha do personagem no século XVI, em que o definia como wild

man. Vimos no capítulo anterior que os europeus eram fascinados por monstros e criaturas

não-humanas. A forma física de Caliban estava propensa a ser encarada como a de um ser

inumano, pois além de “monstrengo” era “manchado”.

Caliban, quando mencionado pela primeira vez no texto, imediatamente é adjetivado

com inferioridade e estranheza. É pelo discurso de Próspero que tomamos conhecimento de

sua presença na ilha. É quando Próspero relembra a Ariel sua sorte por ter sido salvo por ele,

mencionando Sicorax e seu filho, que se refere a Caliban como monstrengo manchado. É tão

importante para Próspero apresentar essa caracterização de Caliban a Ariel, que usa a

intercalação de uma oração e de um aposto a fim de ressaltar a insignificância do escravo:

“Então, esta ilha – se excetuarmos o filho que ela teve, um monstrengo manchado – forma

humana nenhuma a enobrecia” (I, ii, p. 31).

O uso abusivo dos pronomes possessivos e do imperativo nas falas de Próspero

quando se dirige tanto a Caliban como a Ariel reflete a sua vontade de mostrar o seu poder em

relação àquela ilha. Quando Próspero fala com Miranda sobre Caliban, faz questão de dizer

que ele é sua propriedade: “Vamos ver o meu escravo Caliban, que só tem palavras duras para

minhas perguntas” (I, ii, p. 32). Miranda, então, mostra seu descontentamento com o escravo,

dizendo a seu pai que ele lhe repugna. Todavia, Próspero reconhece a utilidade de Caliban nos

serviços considerados mais pesados, como acender o fogo, carregar lenha: “Contudo, não

podemos dispensá-lo” (I, ii, p. 32). Mesmo sabendo da importância de Caliban para que se

sinta mais confortável na ilha, Próspero não se importa em tratá-lo com respeito. Os

xingamentos tornam-se contínuos nos diálogos que tem com o escravo: “Bloco de terra”,

“Tartaruga” (I, ii, p. 32); “Vem para fora, escravo venenoso, pelo próprio diabo gerado em tua

mãe maldita” (I, ii, p. 33).

Quando Caliban aparece pela primeira vez na peça, ouve-se, inicialmente, apenas sua

voz. O escravo se encontra oculto, organizando as lenhas que carregara a pedido do amo.

Próspero anuncia ao público sua presença com palavras extremamente depreciativas: “Olá!

Escravo! Bloco de terra! Calibã! Responde!” (I, ii, p. 32). Caliban replica: “Há muita lenha

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em casa”. E Próspero continua: “Vem! Já disse. Vou dar-te outro serviço. Tartaruga, vem

logo! Vens?” (I, ii, p. 32).

Até o momento deste diálogo o leitor/espectador já cria uma imagem de Caliban,

como sendo um escravo, monstro horrível, antissocial, deformado, uma coisa horrenda. Sua

primeira fala já confirma seu estado de servidão. Sem mesmo aparecer fisicamente para o

público, demonstra estar trabalhando para Próspero. Ocorre que até o momento da aparição de

Caliban, o discurso de Próspero é bastante operante sobre a imagem de quem ele fala. Afirma

com convicção e sem receios, levando o leitor a concordar e talvez nem desconfiar de uma

possível outra versão ou concepção a respeito do caráter de Caliban.

Quando o suposto monstro realmente entra em cena, sua fala é carregada de ódio e

desprezo para com Próspero e Miranda: “Que em vós dois caia orvalho tão nocivo como o

que minha mãe tinha por hábito colher nos charcos pútridos com uma asa negra de corvo. Em

vós sopre o sudoeste e vos deixe cobertos de feridas” (I, ii, p. 33). Isso ainda demonstra ser

Caliban um rebelde, já que até aquele momento Próspero é o dono do discurso e o leitor só o

conhece por intermédio de sua fala.

É no instante em seguida a esta fala que os leitores, no entanto, são surpreendidos por

uma explicação de Caliban, que faz com que toda aquela ideia de ingratidão, de intransigência

do escravo passe a ser vista como consequência da exploração, astúcia e intenções maldosas

de Próspero:

Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, minha mãe. Roubaste-me; adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-me carícias e me davas água com bagas, como me ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e de noite sempre queimam. Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril... Seja eu maldito por havê-lo feito! Que em cima de vós caia quanto tinha de encantos Sicorax: besouros, sapos e morcegos. Eu, todos os vassalos de que dispondes, era nesse tempo meu próprio soberano. Mas agora me enchiqueirastes nesta dura rocha e me proíbes de andar pela ilha toda (I, ii, p. 33).

Caliban, ao proferir tal discurso, revela ter sido injustamente traído, pois a ilha era sua

e ele era provido de liberdade até a chegada de Próspero. Seu lamento causa comoção ao

leitor, pois demonstra ter sofrido injustiça e parece ser difícil sair dessa situação. Não se

conformando em ter-lhe sido tirado o que era seu (a ilha), e transformado-se em objeto de

posse de um europeu, sua aparente solução é rebelar-se e praguejar contra Próspero. Sua

condição de “trapaceado” explica a sua revolta. Assim, sua atitude é uma resistência do

colonizado frente ao colonizador, segundo os termos da teoria pós-colonial. Revidar, para

Caliban, significa adquirir consciência dessa objetificação e, a partir daí, começar a resistir ao

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cerceamento de sua autonomia e poder por parte de Próspero. Caliban revida discursivamente,

denunciando sua outremização. Ao reclamar a usurpação da ilha por Próspero e perceber as

estratégias utilizadas por este para escravizá-lo, logo se rebela, almejando ser ouvido e, dessa

forma, voltar à posição de destaque que tinha na ilha antes da chegada do europeu.

Próspero aporta à ilha e, aos poucos, vai se servindo da inocência de Caliban para em

seguida tornar-se dono de tudo e de todos que se encontram ali. Essa atitude de Próspero pode

ser comparada com as práticas colonialistas que estavam em voga com a expansão marítima e,

por conseguinte, com as Descobertas. Próspero chega cauteloso e vai colonizando aquela ilha

onde Caliban vive harmoniosamente. Isto assemelha-se à chegada dos europeus em nações

africanas a fim de colonizar aquelas terras e a exploração que isto causou aos habitantes do

Novo Mundo.

Nesse momento, Caliban aparece por ele mesmo na peça e não mais mencionado pelo

outro como um ser insignificante. É através da explicação de que fora traído, que Caliban

adquire autoridade e se sobressai no enredo em relação a Próspero. A atenção do leitor volta-

se a este personagem até então encoberto e desprezado. Todavia, Próspero se defende, diz que

se não tivesse aparecido e ensinado Caliban a falar, este continuaria apenas emitindo

gorgorejos. Já agora suas intenções podem ser conhecidas através das palavras. O escravo,

porém, só vê uma vantagem nisso: amaldiçoar seu dono, utilizando-se dessa língua: “learning

how to curse in the master’s tongue” (I, ii. In: SHAKESPEARE, 1957, p. 33).

Mas o que fica à sombra do discurso de Próspero são os questionamentos: para que

Caliban necessita de palavras, se naquela ilha não há formas humanas? Caliban não realiza

suas intenções com seus gorgorejos? Apesar de Próspero tentar convencê-lo de que é o grande

responsável por sua “melhor condição de vida”, notamos claramente sua intenção de utilizar-

se do escravo em benefício próprio. Ele ensina a sua língua para o escravo com a intenção de

conhecer a ilha, aprender onde e o que cultivar e obter ótimos rendimentos; assim

sobreviveria naquele reino como se fosse seu.

O discurso de Próspero é eloquente, mas desmorona quando Caliban fala por si. Há

um descompasso entre o que Próspero argumenta sobre Caliban com as atitudes deste. O

leitor, ao ver agir o escravo, percebe um contraste em relação a quando ele é mencionado

pelos outros. Outros, porque não só Próspero o define como monstro, depreciando-o.

Miranda, filha do ex-duque, também o vê como um palerma e repugnante. Ainda antes de

Caliban entrar em cena, Miranda o chama de velhaco, alguém cuja vista lhe repugna, devido

ao fato de ele ter tentado desonrá-la em tempo anterior, com a finalidade de povoar aquela

ilha.

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Caliban retorna na segunda cena do segundo ato. Abre essa cena com um monólogo,

no qual amaldiçoa Próspero e relata alguns dos castigos que sofre com os espíritos da ilha: “É

verdade que eles só me beliscam, me amedrontam com visagens de duendes, só me atiram nos

lodaçais, ou do caminho certo, no escuro, me desviam, sob a forma de tições movediços,

quando Próspero os manda assim fazer” (II, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 57). Surgem

outros personagens que insistem em menosprezá-lo. Trínculo, um bufão, em um longo

discurso, o insulta, reforçando, no imaginário do leitor, a caracterização física de um monstro.

Caliban enquanto trabalha, queixa-se das maldades exercidas pelos espíritos de Próspero. Ao

perceber a presença de Trínculo – que imagina ser um deles - pensa em se esconder e resolve

deitar-se rente ao chão. No entanto, o outro percebe e ainda zomba do negro:

Olá! Que temos aqui? É homem ou peixe? Está vivo ou morto? É peixe, o cheiro é de peixe, esse velho cheiro de ranço, que lembra muito a peixe, no jeito de bacalhau meio passado. [...] As pernas são como as de gente; as barbatanas parecem braços... E está quente, por minha fé! Abandono minha primeira idéia; não é peixe, mas um insulano que a trovoada derrubou (II, ii, p. 58).

Esta caracterização de uma figura estranha ao convencional foi especialmente utilizada

na Commedia dell’arte, surgida na Itália, na Renascença. O harlequin era quem simbolizava o

grotesco e provocava o riso no público. Vimos que o Caliban de Shakespeare pode ter sido

fruto da fascinação do autor por este tipo de espetáculo. Caliban, assim como o harlequin da

Commedia, apresenta-se como uma figura grotesca à plateia, devido à forma e movimentos

corporais.

Trínculo, ao considerar Caliban uma mistura de elementos humanos - “as pernas são

como as de gente” - e animais - “as barbatanas parecem braços”, acaba por lhe instituir a

qualidade de grotesco ou burlesco, situando-o em um estado fronteiriço entre o humano e o

animal:

O grotesco não se define pura e simplesmente pelo monstruoso ou pelas aberrações. É preciso que, no contexto do espetáculo ou da literatura, estas produzam efeitos de medo ou de riso nervoso, para que se crie um ‘estranhamento’ do mundo, uma sensação de absurdo ou de inexplicável, que corresponde propriamente ao grotesco (SODRÉ E PAIVA, 2002, p. 57).

Caliban apresenta-se como uma figura grotesca pela sua aparência física; torna-se

difícil de perceber se se refere a um humano ou a um animal. Quanto ao “riso nervoso”, é

presenciado também pelo público leitor/espectador em A tempestade no momento em que o

escravo aparece febril e, após tomar do “licor celestial”, transformar-se num ser cômico. Esta

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32

é a prova que a “equação Grotesco = Homem # Animal + Riso” (SODRÉ E PAIVA, 2002, p.

62) é passível de resolução.

Ainda na segunda cena do segundo ato, Caliban nos surpreende com sua atitude. Até

outrora amaldiçoava Próspero por ter-se apropriado dele. Detestava cumprir-lhe as ordens e

quando as cumpria resmungava pelos cantos, mostrando-se infeliz pela sua alienação. Tendo

sido apanhado falando frases desconexas, devido à febre que tomava seu corpo, Estéfano lhe

dá um “fortificante” (II, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 59), que nada mais é do que uma

garrafa de vinho, bebida muito estimada por Estéfano. Ao beber do vinho, Caliban embriaga-

se e agradece-lhe por lhe dar “licor celestial” (II, ii, p. 61). A partir desse momento Caliban

propõe que Estéfano aceite-o como seu vassalo. Os argumentos são muitos:

Todas as polegadas vou mostrar-te de terra fértil da ilha. Os pés te beijo. Sê me deus, por favor./ Beijo-te os pés e quero vassalagem permanente jurar-te (p. 62). / Hei de mostrar-te as fontes mais saudáveis, pescarei para ti, colherei bagas, trarei lenha bastante./ Permite que te traga maçãs bravas, com minhas unhas grandes vou tirar-te da terra belas túbaras... (II, ii, p. 63).

Todas essas ações propostas por Caliban, caso Estéfano aceite ser seu dono, foram

realizadas anteriormente por Próspero. Caliban já havia reclamado por isso no ato anterior:

“Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as salgadas, onde era a terra

fértil, onde estéril...Seja eu maldito por havê-lo feito” (I, ii, p. 33). Caliban, agora, parece não

se importar que toda a exploração exercida por Próspero retorne pelos mandos de Estéfano.

Essa troca de dono funciona como um motim, que Caliban pretende promover em protesto ao

seu explorador. Já que deveria continuar a ser escravo, que fosse escravo de outro, mas não de

Próspero.

Caliban, que detestava ser propriedade de alguém, agora propõe sê-lo. Percebemos,

inclusive, que irá fazer muito mais pelo seu novo dono do que já fazia para Próspero. Promete

desempenhar todas as funções possíveis na ilha a fim de agradecer e de continuar provando da

bebida celestial, já que Estéfano lhe contara que possuía uma adega.

A alegria advinda da bebedeira é tanta que ele até brinca com a língua que aprendeu.

Expressa sua felicidade através de rimas: “Já não farei barragem para peixe, nem fogo irei

buscar, quando ele me mandar. Não lavo prato nem carrego feixe. Bã, bã, bã, Calibã! Outro

mestre amanhã! Liberdade! Viva! Liberdade! Liberdade!” (II, ii, p. 64).

Devemos dizer, pois, que o momento da peça em que Caliban aparenta ser para o

leitor um incorrigível rebelde, ele na verdade não o é. Suas ações estão sendo executadas não

por ele mesmo, mas pelo efeito de uma droga que lhe deixou sem juízo. Caliban é guiado por

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33

algo externo, que lhe tira a noção de quem ele é deveras. Sua cabeça está tumultuada e age

desta forma.

Estéfano, um permanente embriagado, também se dirige a Caliban como um ser

estranho e monstruoso, utilizando-se do deboche em suas ofensas. Ambos, Trínculo e

Estéfano, sentem-se superiores ao escravo e notamos um ar de menosprezo quando o acusam

pelo seu comportamento. Estéfano ironiza:

Que será isso? Teremos demônios por aqui? Pregais-nos peças, fantasiando-vos de selvagens e homens da Índia? Ah! Não escapei de morrer afogado, para ter medo desses quatro pés. [...] Deve ser um monstro da ilha, com quatro pernas, que provavelmente apanhou febre. Mas onde diabo terá aprendido nossa linguagem? (II, ii, p. 59).

Além da figura grotesca novamente enfocada aqui, surge a presença do pré-conceito

que os europeus possuíam acerca dos habitantes africanos. Estéfano se dirige a Caliban como

sendo um ser insignificante e selvagem, assim como todos os habitantes da Índia seriam.

Falando assim, ele expressa a mesma concepção dos europeus em relação aos habitantes das

nações periféricas, que buscavam colonizar. Pela fala de Estéfano subentende-se que: se

Caliban fosse um homem da Índia e, por conseguinte, selvagem, seria também um demônio. E

ao dizer: “Não escapei de morrer afogado, para ter medo desses quatro pés. Deve ser um

monstro da ilha...” aparenta ter, sim, sentido pavor da aparência de Caliban. Finazzi-Agrò, ao

descrever sobre a chegada dos europeus em terras desconhecidas, comenta do pavor que

tinham de encontrarem seres com hábitos selvagens. E essa descrição pode ser aplicada aqui,

ao explicarmos do pavor de Estéfano em relação ao negro Caliban, como Finazzi-Agrò

descreve, o receio do europeu fundamenta-se no “medo de ser completamente absorvido por

aquela espantosa wilderness, de ser ‘devorado’ por aquele desmedido espaço selvagem, de ser

despido não somente do corpo como também da alma” (2003, p. 619). Para o viajante europeu

que se aventurava por terras desconhecidas, era dificultoso pensar em deparar-se com os

costumes canibalescos (não comprovados) dos povos americanos.

Na segunda cena do terceiro ato, retornam as especulações a respeito de Caliban

livrar-se de Próspero e passar a ser vassalo de Estéfano. Na verdade, o futuro dono da ilha (na

proposta de Caliban) já o tem como propriedade e dirige-se a ele com imperativos e

autoridade: “Bebe, monstro-criado, quando eu mandar” (III, ii, p. 69). Além disso, Estéfano

insiste em declarar a monstruosidade de Caliban por meio de adjetivos como “servo-monstro”

(III, ii, p. 69) e “bezerro da lua” (III, ii, p. 70). Caliban, por sua vez, se mantém obediente e

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extremamente submisso às ordens de seu novo mestre: “Como passa tua Honra? Deixa-me

lamber a sola de teus sapatos. Não hei de continuar no serviço dele” (III, ii, p. 70).

Embora Estéfano despreze Caliban com termos pejorativos, ele lhe dá ouvidos quando

o escravo resolve contar-lhe seu plano para livrar-se de Próspero e ser seu súdito e,

consequentemente, torná-lo dono da ilha e de Miranda. Diferentemente de Trínculo – que

zomba e não dá créditos à inteligência de Caliban – Estéfano presta atenção e ainda o defende

das implicâncias do outro: “Trínculo, não enfrentes outro perigo. Se interromperes mais uma

vez o monstro com uma única palavra, por esta mão, mandarei embora a minha misericórdia e

te farei virar bacalhau” (III, ii, p. 72). No folclore europeu, o wild man era considerado besta,

sem inteligência; apesar de chamado de monstro, para arquitetar um plano de morte, o servo

de Próspero deveria ter, no mínimo, capacidade de raciocínio.

Caliban, então, descreve o seu plano:

Ora, como eu te disse, ele tem o hábito de dormir toda tarde. Aí, te fora possível asfixiá-lo, após o teres privado de seus livros. Ou, munido de um pau, lhe partirás em dois o crânio, se não, o estriparás com qualquer vara, ou a garganta com faca lhe seccionas. Mas, primeiro, é preciso que te lembres de lhe tomar os livros, pois, sem eles, é um palerma como eu, já não dispondo de espírito nenhum sobre que mande. Todos, como eu, lhe têm ódio entranhado. Basta queimar-lhe os livros. Utensílios valiosos tem – assim lhes chama – para enfeitar sua futura casa. Mas o que é sobretudo de estimar-se é a beleza da filha, que ele próprio considera sem par. [...] Há de enfeitar-te o leito, posso jurar-te, e dar-te bela prole (III, ii, p. 73).

Neste relato, é perceptível o ódio entranhado de Caliban para com Próspero. A morte

parece ser-lhe a vingança mais adequada e a frieza das ações propostas é de espantar qualquer

leitor. Entretanto, Ariel, o espírito-espião, impede a realização de tal projeto, pois se tornara

invisível e escutara o plano, e resolve contar a seu amo sobre o destino cruel que o aguardava.

Percebemos que a relação de Ariel com Caliban é semelhante à de Próspero com

Caliban, já que Ariel executa maldades para com ele, e protege Próspero das intenções do

escravo. Entretanto, Ariel é um escravo assim como o outro, e somente serve a seu dono com

fidelidade e dedicação, pois em troca almeja a sua liberdade.

Quando Próspero toma conhecimento da trapaça arquitetada pelo escravo, logo planeja

um revide. Com a ajuda de Ariel, solta alguns espíritos em forma de cachorros, que

perseguem Caliban, Estéfano e Trínculo. Próspero, nesta cena, revela-se violento e deseja

mostrar com suas ações que quem manda naquela ilha é ele, e que não pretende deixar seu

posto de dono da ilha. “Vai, incumbe os meus duendes de torcer-lhes com secas convulsões

todas as juntas, de com cãibras os nervos repuxar-lhes, com beliscões deixar-lhe mais

manchados que os gatos selvagens e as panteras” (IV, i, p. 91). Neste momento, o pai de

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Miranda ressalta seu poder, pois já dominou a ilha e seus habitantes. Todos estão à mercê de

sua autoridade. Na cena I, quinto ato, Próspero sente-se realizado com tal situação:

“Concretizam-se, enfim, meus planos todos. Meus feitiços não falham, meus espíritos me

obedecem e o tempo segue em linha reta com sua carga” (V, i, p. 93). Novamente, torna-se

evidente o discurso colonial em Próspero, ao impor dominação ao escravo e à ilha e o enorme

prazer que isto lhe causa.

Predominam, ainda nesta cena, intenções de reconciliação de Próspero em relação aos

tripulantes náufragos – que agora chegam frente a sua cela - e aos três traidores: Estéfano,

Trínculo e Caliban. A tripulação se encanta com a ilha: “É o mais estranho labirinto que os

homens já pisaram. Ultrapassa tudo isso a natureza no seu curso normal. Será preciso buscar a

explicação nalgum oráculo” (V, i, p. 102) e, Caliban se encanta com aqueles humanos com

belas vestes: “Oh, Setebos! Que espíritos notáveis, em verdade! Quão belo está meu amo!

Temo que me castigue” (V, i, p. 102).

Próspero, ao entregar Estéfano e Trínculo aos seus, faz questão de reafirmar que é

dono do terceiro, de Caliban. E novamente usa termos pejorativos sobre o escravo na

presença, agora, dos tripulantes:

Esse tipo disforme que ali vedes teve por mãe uma terrível bruxa, e de poder tão grande que até mesmo na lua tinha influência e provocava marés e baixa-marés, realizando da lua o ofício, sem o poder dela. Esses três indivíduos me roubaram; e aquele meio-diabo – pois é filho bastardo, já se vê - tramou com eles assassinar-me. Dois desses marotos são vossos conhecidos; este bloco de escuridão é minha propriedade. [...] É tão disforme nos costumes como no feitio exterior (V, i, p. 103; 104).

Caliban, admirado ao ver tantos homens, pede perdão à Próspero e propõe servir-lhe

novamente, mas com dedicação e gosto: “e de ora avante quero mostrar-me mais razoável e

obter graça. Mas que asno reforçado eu fui, tomando por um deus este bêbado e inclinando-

me diante deste imbecil” (V, i, p. 104).

É estranho para o leitor pensar que Caliban tenha se arrependido e resolvido

permanecer como propriedade de alguém após tantas reclamações e relatos de insatisfação.

Entretanto, nas entrelinhas do seu discurso, há a esperança de reaver seu posto de imperador

da ilha. É inegável a inteligência de Caliban, pois, quando percebe a presença dos

conterrâneos de Próspero, provavelmente imagina a volta do ex-duque a Milão. O seu

deslumbramento ao ver a tripulação pela primeira vez naquela ilha simboliza, em curto prazo,

sua liberdade e poder.

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Ao dizer “esses três indivíduos me roubaram” (V, i, p. 104), Próspero se refere ao

roubo de suas vestimentas, das quais tinha se utilizado como armadilha para atordoar Caliban,

Trínculo e Estéfano. Como havia descoberto que os três sujeitos queriam matá-lo, Próspero

decide importuná-los até que desistam do plano. Assim, enquanto seguiam o caminho para

executar o plano de morte contra Próspero, deparam-se com um varal com roupas brilhantes

dependuradas. Trínculo e Estéfano se encantam e começam a provar as roupas com imensa

alegria, pois o brilho das vestes simboliza riqueza e poder: “Ó Rei Estéfano! Ó par! Ó digno

Estéfano, vê que belo guarda-roupa aqui está para ti! / Tira esse manto, Trínculo. Por esta

mão, quero esse manto para mim” (IV, i, p. 89). Caliban tenta apressá-los, pois Próspero pode

acordar e, por conseguinte, o plano não se realizar. E de fato, não concretizam o crime, pois

são expulsos da área por cães bravos surgidos pela arte do amo.

Próspero não admite ser roubado e, ao relatar o fato para os tripulantes que surgiram

na ilha, parece sentir-se injustamente traído. No entanto, demonstra estar esquecido que quem

realmente cometera um roubo fora ele próprio, quando se apossou da ilha e seus espíritos. A

pilhagem das roupas não deve ser considerada como um “roubo”, visto que fazia parte do

plano de Próspero instigá-los ao crime. A verdadeira vítima de roubo era Caliban, que perdera

a ilha para um intruso e desconhecido.

Próspero, ao agir dessa maneira, acaba por demonstrar seu mau caráter. Planeja um

roubo sobre si mesmo e ainda finge ter sido injustiçado perante seus conterrâneos recém-

chegados. O mau caráter do ex-duque pode ser também visto em seu discurso no epílogo da

peça. Quando diz: “Mas é certo que alcancei meu ducado, e já perdoei quem mo roubara. Por

isso, não queira vosso feitiço que eu nesta ilha permaneça tão estéril e revessa, mas dos

encantos malsãos livrai-me com vossas mãos” (V, i, p. 106). Próspero acha-se digno de voltar

à Nápoles e tornar-se duque novamente, pois ele foi capaz de perdoar quem lhe usurpou o

trono. Seu modo de pronunciar tais palavras indica que, apesar de achar imperdoável o crime

de seu irmão, foi compreensivo e optou por perdoá-lo, já que seu coração assim o quis. No

entanto, o perdão ao irmão não é concedido por compadecimento, mas por interesse em sair

daquele lugar deserto e longínquo, e assim retornar à Itália, como duque, juntamente com a

tripulação.

No entanto, Próspero, ao invés de recolocar Caliban na posição inicial de dono da ilha,

não o faz. Caliban simplesmente é esquecido por ele e sua última aparição na peça é ainda

como escravo, trabalhando sob suas ordens: “Ide, maroto, já para minha cela, acompanhado

de vossos dois amigos. Se quiserdes ser perdoado, arrumai-a com bom zelo” (V, i, p. 104).

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37

Após Caliban se dispor em cumprir tal tarefa, ele não é mais mencionado, ficando sob o jugo

de Próspero para quando ele precisasse novamente.

Próspero, ao pensar que merecia voltar a ser duque por perdoar seu irmão, não pensa

que deveria ser perdoado por Caliban por tê-lo roubado. Próspero é ganancioso, pois reclama

o que é seu (o posto de duque) e não devolve o que não é seu (a ilha). Além disso, despreza o

que tanto lhe causava prazer, ou seja, ser dono da ilha. Agora, que há algo que o fará mais

feliz, desdenha a ilha, chamando-a de “estéril e revessa”.

Apesar de aparentar desistir do poder que “conquistara” na ilha e de querer apenas

voltar à Itália de onde viera, no seu discurso ainda há resquício de dominação. A não

devolução da propriedade a Caliban representa o desejo de continuar imperando sobre os

moradores da ilha, para assim tornar-se o possuidor “de lá” e “daqui”. Isso pode ser

comparado ao desejo que os europeus tinham em conquistar novas terras, aumentando cada

vez mais seu império. Esse anseio do europeu em perpetuar seu poder em ambos os territórios

(Europa e África) pode ser melhor explicado nas palavras abaixo:

Embora a apropriação das terras e do nativo na época colonial não tenha nada de ilusório e o projeto inglês de espoliação do Novo Mundo seja marcante em sua história, o eurocentrismo, a objetificação e a divisão binária têm fatores ilusórios, facilmente detectáveis pelos nativos, mas mantidos à força pelos europeus para a sua perpetuação (BONNICI, 2000, p. 59).

Logo, Próspero representa o colonizador que explora Caliban, o colonizado. Vimos

também que cada fala dos personagens que representam a Europa (Próspero, Trínculo,

Estéfano, Miranda), segundo esta releitura, ostentam características que simbolizam a

dominação de Caliban, o qual simboliza a África. Tais falas estão imbuídas do desejo de

objetificação, domínio e exploração do continente europeu sob o Novo Mundo. Caliban é a

maior vítima desse colonialismo ferrenho; no entanto, ele tenta revidar discursivamente,

embora na peça não obtenha grande sucesso. Porém, esta tentativa já é um começo e nos

ensina que é possível as nações estigmatizadas pelo poderio obterem sua autonomia e

conquistarem seu lugar em meio aos exploradores do Velho Mundo.

Page 39: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

38

3 CALIBAN, EM “BRAZIL”: CRISE IDENTITÁRIA

A colonização, segundo Fanon (apud HALL, 1996, p. 69), além de não se satisfazer

em manter um povo assujeitado e de declarar a deformidade na forma e na mente do nativo,

acaba por distorcer e destruir o passado dos povos oprimidos. Isso nos permite pensar que

dilacerar a história destes povos faz com que sua identidade também seja abalada.

Neste capítulo, propomos analisar a perda de identidade do personagem O Grande

Caliban em “Brazil”, de Paule Marshall. Este conto se utiliza dos nomes Caliban e Miranda,

da peça shakespeariana A tempestade, mas ressaltamos que não consiste em uma reescrita

nem em uma releitura do drama, conceitos definidos no primeiro capítulo deste estudo. O

enredo é outro. Personagens da peça inexistem no conto, como Próspero, Ariel, Trínculo,

Estéfano, etc. Há uma aproximação do conto com a peça, por meio do uso do nome de dois de

seus personagens, e da evocação das ideias que a eles se tornaram associadas a partir da

leitura da peça do dramaturgo inglês. Assim, o drama de Shakespeare atua como um pré-texto

a partir do qual Marshall constrói sua própria narrativa, ou melhor, é um intertexto literário

clássico que apoia à trama da escritora.

Para entendermos melhor no que consiste a identidade, será feita uma síntese do

assunto a partir dos conceitos de estudiosos Stuart Hall e Kathryn Woodward. Em seguida,

partiremos para a análise do texto de Marshall, expondo as associações das ações e falas dos

personagens com o fenômeno da perda ou crise de identidade.

3.1 Identidade cultural: fixa ou mutante?

A identidade cultural tem sido amplamente discutida, especialmente nas sociedades

pós-coloniais, devido à transformação pela qual os seus sujeitos tiveram que passar após a

grande pressão que o colonialismo impôs ao tratá-las como sociedades estigmatizadas e

inferiores às ocidentais. No entanto, após adquirirem sua independência política, essas nações

começaram a ir em busca do que supostamente haviam perdido: sua identidade.

Hall, ao dedicar-se ao estudo da identidade cultural, ressalta que essa busca da

identidade “perdida” não se resume a isso. Ao ir ao encontro de sua identidade “legítima” ou

essencial, o sujeito pós-colonial produz nova identidade e não redescobre ou exuma o que a

experiência colonial enterrou e cobriu, apenas. A identidade cultural “não é jamais uma

essência fixa que se mantenha imutável, fora da história e da cultura” (HALL, 1996, p. 70),

Page 40: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

39

pois provém de algum lugar e tem história. E como tudo o que tem história sofre

transformação constante, assim é com a identidade cultural, ou seja, ela tem fluidez,

movimento e poder de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um

suposto passado comum.

Kathryn Woodward (2000) fala de dois tipos de identidades: a essencialista e a não

essencialista. A primeira define-se por não se transformar ao longo do tempo, e engloba

características que todos de um grupo partilham, tornando-o autêntico. O essencialismo da

identidade pode fundamentar suas afirmações tanto na história quanto na biologia:

Algumas vezes essas reivindicações [essencialistas] estão baseadas na natureza; por exemplo, em algumas versões da identidade étnica, na ‘raça’ e nas relações de parentesco. Mais freqüentemente, entretanto, essas reivindicações estão baseadas em alguma versão essencialista da história e do passado, na qual a história é construída ou representada como uma verdade imutável (Ibid., p. 14-15).

Já a identidade não essencialista focaliza as diferenças entre um mesmo grupo ou entre

este grupo e outros grupos étnicos. Nesta concepção, a identidade é fluida e mutante. Para

Hall (1996), a segunda visão de identidade cultural é bem menos familiar e causa mais

turbulência, pois a identidade não procede aqui, em linha reta e ininterrupta, de uma origem

fixa, mas procede da diferença.

Para que não reste dúvida sobre a relação da identidade cultural com o que vínhamos

falando a respeito do colonizador e colonizado, Rutherford explica que “a identidade é a

intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de

subordinação e dominação” (apud WOODWARD, 2000, p. 19). Nas desigualdades sociais,

advindas de sistemas políticos e econômicos rígidos, as identidades são contestadas. Dessa

forma, estes povos que ficam à mercê de dominação veem-se obrigados a posicionar-se de

maneira diferenciada e buscar o que agora lhes falta e, nesta busca, como já dissemos, criam-

se novas identidades.

No entanto, todo este processo de redescoberta e criação de uma nova identidade e o

fato de que ela é instável e mutável demonstra haver uma crise de identidades. Para

Woodward (2000, p. 25), “as identidades em conflito estão localizadas no interior de

mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas contribuem”. No

mundo pós-colonial, as transformações globais nas estruturas da política e economia colocam

em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirmação e manutenção das identidades

nacionais e étnicas.

Page 41: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

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Por fim, podemos afirmar que sempre haverá uma crise identitária, pois nesta fase de

pós-independência percebemos cada vez mais uma fusão, que origina as culturas híbridas; isto

faz com que a identidade cultural seja sempre vista como mutante e flexível. Enquanto isto

acontecer haverá um problema de identidade, ou uma crise: “A identidade só se torna um

problema quando está em crise, quando algo que se supõe ser fixo, coerente e estável é

deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (WOODWARD, 2000, p. 19).

Levando em consideração a crise de identidade que se faz sentir, especialmente, nas

sociedades pós-coloniais, pela sua persistência em quererem se reencontrar consigo mesmas

ou com sua identidade de origem - supostamente perdida pelo processo de colonização e,

consequentemente, dominação -, percebemos por que o sujeito, em tais contextos, é um ser

cuja identidade é profundamente fragmentada. É esta busca desenfreada pelo que fomos e a

nova posição que assumimos frente à identidade produzida que analisaremos no conto

“Brazil”, de Paule Marshall. A escritora, nascida em Nova York, de raízes caribenhas, através

de seu personagem Caliban ficcionaliza, o problema da identidade. Também, na medida em

que acharmos relevante ao tema da pesquisa, serão feitas algumas comparações entre o enredo

da peça e o do conto.

3.2 O Grande Caliban e a Pequena Miranda: evidências de identidade em crise

O conto de Paule Marshall, “Brazil”, começa aludindo à primeira cena de A

tempestade, de Shakespeare. Como vimos, a peça inicia com uma tempestade e com muito

barulho, tanto do fenômeno natural como dos seus tripulantes, que gritam de pavor. No conto,

a “tempestade” é de sons de instrumentos musicais. A Casa Samba, lugar de grandes shows

de piadas e humor, abre suas portas com uma exuberante apresentação, com intensos ruídos e

música:

Três trompetes, dois saxofones, um só trombone; um piano, a bateria e um contrabaixo. Juntos na obscuridade da boate eles davam forma a um monumento de sons resplandecendo com notas e oscilando ao ritmo da bateria, como um edifício oscila imperceptivelmente ao vento, quando, de repente, um dos trompetes derrubou aquele monumento com um acorde alto e estridente que parecia ir além do som e atingir o silêncio. Foi um sinal que os outros instrumentos rapidamente seguiram: a bateria explodindo na erótica batida do samba, o baixo se transformando em uma forte vibração sob as cornetas de grito agudo (MARSHALL, 1988, p. 1)3.

3 Todas as citações seguintes da obra “Brazil” foram tiradas da tradução de Diego Rodrigues. Somente mencionaremos o número da página, nas próximas citações.

Page 42: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

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O número chama-se “O Grande Caliban e a Pequena Miranda”. Desde há muitos anos

os dois artistas apresentam, juntos, o espetáculo; no entanto, vendo que não conquista mais a

simpatia do público, isto é, que não o faz mais rir com suas piadas, Caliban resolve se

aposentar.

Miranda é uma mulher branca que provém do Rio Grande do Sul; já não é mais tão

jovem, pois seu rosto não tem mais o viço de outrora. Mas é bela e cativante. Marshall, ao

apresentar ao leitor esta personagem por meio do narrador, dá indicações sobre a nação que

escolheu para ser o espaço de sua obra ficcional, o Brasil. No conto, por mais de uma vez o

narrador comenta sobre a miscigenação que aflora no território brasileiro: “E era mesmo parte

alemã, uma dessas brasileiras do Rio Grande do Sul com sangue misturado de alemão,

português, índio e, às vezes, africano. Nela o alemão triunfara” (p. 2).

Caliban, por sua vez, é negro e velho: “O cabelo, debaixo da peruca emaranhada que

usava, estava branco há vários anos; e os olhos, sob as pálpebras enrugadas, estavam quase

opacos com a reuma e inocentes com a idade” (p. 2). Todavia, ainda possui agilidade em seu

corpo; seus movimentos são precisos e soltos, e isso lhe fornece ares de jovem.

O espetáculo se inicia com Miranda já no palco. Em seguida, entra em cena Caliban,

com modos grosseiros, proferindo palavrões a sua partner: ‘Ei, deixa eu entrar, sua estúpida!’

(p. 2). Não há como negar aqui, semelhanças do personagem com a concepção europeia dos

séculos circundantes ao ano da criação do Caliban de Shakespeare, de que o nativo seria um

bruto, selvagem, com comportamentos antissociais. No conto, ele também se apresenta como

um ser disforme, negro, desprovido de educação e beleza:

...quando uma figura escura e diminuta irrompeu ao redor da sua coxa, usando uma camisa escarlate com mangas estufadas e um grande C bordado no peito, como um brasão de casa real; um calção de boxeador que era grande demais para ele, no mesmo tom escarlate, descendo abaixo do joelho; e sapatos de lutador de boxe, enlaçados até o alto (p. 2).

Esta descrição do personagem O Grande Caliban é a primeira indicação de que algo

está fora do lugar. Seu corpo é desproporcional às suas vestes, tudo lhe é grande demais. A

descrição faz-nos imaginar uma figura em que o corpo parece acessório, e a roupa, a estrutura

principal. Há, assim, uma inversão da ordem normal das coisas. E assim como O Grande

Caliban está em descompasso com suas vestes, ele também está com sua identidade.

O principal número da noite consiste em uma comédia onde Caliban representa a força

e Miranda a fraqueza; daí os adjetivos O Grande Caliban e A Pequena Miranda. O astro do

humor

Page 43: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

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usava Miranda de alvo para suas ameaças e abusos. Essa relação incongruente e contraditória – força de Caliban, o jeito autoritário apesar da idade e do corpo enrugado, e a fraqueza de Miranda, que não combinava com sua altura imponente e enormes braços e pernas – isto era a essência do show (p. 4).

Os movimentos de Caliban também são mais ousados em relação aos de Miranda,

assim como sua voz é mais imponente. E é pela enorme ousadia que Caliban acaba

distendendo um músculo e a partir desse momento Miranda assume o espetáculo com

exuberância. No final do espetáculo Miranda inverte os papéis, e assume a posição que

sempre tinha sido de Caliban: “levantando Caliban com uma das mãos e marchando

triunfalmente para fora do palco, com ele chutando e agitando os pequenos braços bem acima

da cabeça dela” (p. 5). Esta cena conduz o espectador a uma reversão de expectativas, visto

que não se espera que a tímida e fraca Miranda tenha forças para carregar o rei do espetáculo.

O Grande Caliban, em toda sua carreira de artista, já tinha imitado vários tipos

brasileiros e estrangeiros, como, por exemplo, um roceiro admirando pela primeira vez os

prédios do Rio de Janeiro; um americano que perdera o voo; uma matrona da alta sociedade

brasileira. Porém, o Grande Caliban é seu personagem mais importante e sua apresentação

inicial já o tinha tornado famoso. Na verdade, a abertura do seu show consistia em uma

imitação de um famoso pugilista, Joe Louis: “Ele fez pose de campeão de boxe, o corpo se

agachando em posição de alerta, ameaçadora, a cabeça desviando e dando voltas, e os

pequenos punhos erguidos ao fazer uma dança rápida e impressionante, na ponta dos pés” (p.

3).

Mas, por ter representado inúmeros tipos e situações ao longo de sua vida artística, e

por se envolver emocionalmente com os papéis que representava, ele começa a sentir-se meio

confuso e já não sabe até que ponto ele é o Heitor e o personagem:

Ele fora Todomundo, tanto que se tornara difícil, após seus trinta e cinco anos no show business, separar o número caótico de faces que podia assumir com seu rosto e dizer onde terminava O Grande Caliban e ele, Heitor Baptista Guimarães, começava. Tinha começado a refletir nebulosamente sobre isso e se sentir vagamente perturbado desde a noite em que decidira aposentar-se (p. 3).

No decorrer da narrativa de Marshall, ficam evidentes características do povo

brasileiro, como a lealdade e o afeto. Enquanto Caliban faz suas imitações e piadas antigas,

que não tiram mais o sorriso do público, a plateia ainda assim sorri e aplaude, a fim de ajudar

o conterrâneo: “O público riu mas por razões outras que não as piadas: os brasileiros, por uma

questão de afeição e lealdade” (p. 4).

Page 44: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

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O público não se restringe aos brasileiros; os americanos estão presentes. E com eles o

preconceito racial. O narrador relata o choque dos americanos ao ver Caliban pela primeira

vez, devido a sua negritude. Assim como em A tempestade, em que os tripulantes se assustam

com a cor de Caliban, e Próspero o chama de “bloco de escuridão”, aqui também podemos

visualizar o preconceito de cor. Os brasileiros riram por lealdade; os americanos:

... por uma questão de bem estar e alívio – alívio porque no começo, quando a face negra de Caliban aparecera por entre as coxas brancas de Miranda, eles tinham ficado tensos, momentaneamente insultados e alarmados, até que, com o riso saindo fora de hora, lembraram um ao outro que, afinal de contas, isto era o Brasil, onde branco nunca era totalmente branco, não importa quão puro parecesse (p. 4-5).

Percebemos também uma identificação dos americanos – dos EUA - com Miranda,

por possuir a pele branca e olhos azuis como a eles. Miranda não causa espanto e desprezo a

eles, até porque sua ascendência alemã sobressai à indígena ou à africana. Por outro lado, o

Grande Caliban é descendente africano e isto lhes causa menosprezo. Embora a África e a

América tenham uma história de colonização semelhante – exercida pelos europeus – no

conto de Marshall, os seus americanos provavelmente devem ter ascendência europeia, por

apresentarem cor clara, e isso lhes dá o direito de se sentirem superiores ao negro Caliban.

O desprezo é tanto que, a princípio, pensam que talvez o espetáculo tenha sido

planejado para insultá-los. Ao se depararem com a figura negra no palco, ficam assustados e

tensos, demonstrando despreparo e desrespeito para encararem a cultura brasileira. Só depois

de uma pausa para reflexão é que percebem o engano e se lembram que o Brasil é, de fato,

intenso e multirracial.

Há espaço também para deboche dos americanos em relação à língua oficial do Brasil.

Além de zombarem da imagem escura de Caliban, riem da língua que o negro utiliza: “Não

sei por quê estou rindo. Não entendo nenhuma palavra em espanhol! Ou será este o lugar onde

falam português?” (p. 5). Ao desprezar uma língua, a ponto de não reconhecê-la ou de

confundir os idiomas, os americanos dão a entender que o inglês é superior ao português e ao

espanhol. Debocham da língua por ela não lhes ser reconhecível.

Não nos distanciando do assunto identidade, retomemos o enredo do conto. Naquela

noite de shows, em meio às performances de Caliban e Miranda, algo não acontece da melhor

maneira. Caliban, ao fazer acrobacias extravagantes, sente uma fisgada em seus músculos e

isto lhe causa muita dor, que se torna insuportável. Nos bastidores, insulta Miranda, dizendo

que é sua culpa, mas não lhe dá maiores explicações. Trocam insultos e se dirigem aos

camarins a fim de se despirem e tirarem a maquiagem. Em frente ao espelho, Caliban sente

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uma perturbação sem causa aparente. Depois de uma reflexão, percebe que tal desassossego

está “dentro de si mesmo, uma preocupação que não conseguia definir e que se soltava, saía

junto com sua respiração e assumia uma forma vaga, indefinível, fora de seu corpo“ (p. 7). Ao

declarar que a desarmonia está em seu eu, percebemos que O Grande Caliban passa por um

período conturbado, e não se sente plenamente feliz. Há, pois, uma incongruência entre quem

Caliban representa e quem ele realmente é: “uma vez removida a maquiagem, seu rosto ficava

sem expressão, indistinto, como se somente no palco, como Caliban, com a camisa escarlate e

os calções largos, ele tivesse certeza de quem ele era. Caliban se tornara, talvez, a sua

realidade” (p. 7).

A sua memória também não o ajuda. Para Hall, um dos elementos que pode

reconstituir o passado é a memória (1996, p. 70). Se Caliban pudesse se lembrar de quem ele

era fora do teatro ou de quem ele era antes de tornar-se O Grande Caliban, teria menos

dúvidas e perturbações. O personagem que criara ao longo de sua carreira tornara-se a sua

própria vida, a sua realidade no cotidiano. Ao ser perguntado por Henriques, que atua como

porteiro e seu camareiro, sobre seu verdadeiro nome, o comediante para e hesita. Em seguida,

responde: ‘Heitor. Heitor Guimarães. Heitor Baptista Guimarães.’ E acrescenta: ‘Tem tanto

tempo que não uso que tive que parar pra pensar’ (p. 10).

Em contraste com o tratamento que Caliban recebe na peça de Shakespeare,

percebemos que no conto de Marshall dispensam-lhe respeito. Henriques serve-o com

respeito e dedicação até exageradamente, e sempre utiliza o pronome senhor, demonstrando

fidelidade e subalternidade. São dezenas as ocorrências: “‘Tenho uma confissão a fazer,

senhor [...] Eu pessoalmente não acreditava. Sabe, senhor, como às vezes a gente fala em se

aposentar mas... bem, sabe como é. Mas agora, com esses cartazes e anúncios...’” (p. 9).

A relação de Caliban com Miranda também é diferente nos textos mencionados. Na

peça shakespeariana, o contato destes personagens é bem sutil. O drama A tempestade não

privilegia tanto as cenas que envolvem ambos. Miranda detesta-o por ele ter quisto no passado

desonrá-la, e evita contato com ele. Já o conto contempla várias cenas entre esses

personagens. Miranda mantém uma relação extraconjugal com Caliban, visto que ele é

casado.

Sua mulher tem apenas vinte e cinco anos e espera um filho seu. O caso com Miranda

é antigo e ele sempre a sustentou financeiramente, até mesmo com coisas supérfluas:

‘Você não vai acreditar, Henriques, mas ainda dou pra ela tudo o que ela quer, mesmo estando casado. No mês passado ela viu uma daquelas camas redondas de luxo em uma revista de Hollywood e mandei fazer uma pra ela. Um tempo atrás,

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tirou todas as lâmpadas e colocou lustres até na cozinha. [...] Comprei os lustres para ela, é claro’ (p. 12).

No entanto, Caliban não suporta mais conviver com sua colega de profissão. Acha-a

sem talento e a insulta momentaneamente: “‘Você ouviu ela me xingar ainda agora, e xingar

minha esposa e o filho que estamos esperando? Ficou louca neste último ano. Tudo porque

me casei’. [...] ‘O problema é meu se eu me casei, sua vaca, não seu’ ” (p. 12). Miranda

retribui todas as ofensas, utilizando o mesmo tom vingativo: “‘Seu baixote! Ladrão de

mocinhas!’” (p. 6).

Após fecharem as portas da Casa Samba naquela noite mal sucedida, Caliban encontra

um táxi com um grupo de americanos que para e lhe pergunta uma informação sobre a cidade.

Após fornecer-lhes a informação desejada, começa uma longa especulação sobre o próprio

Caliban:

‘Ei, você não é o comediante lá do clube? Qual o seu nome mesmo?’. Queria jogar o título todo – O Grande Caliban – na cara do homem e sair andando, mas nem sequer conseguiu dizer Caliban. Por alguma razão, sentiu-se de repente destituído daquele título e de sua distinção, sem direito a usá-lo. O homem cochichou para os outros no carro. ‘Qual era o nome dele mesmo? Vocês sabem, o coroa contado piadas. Com a loira’. ‘O nome é Heitor Guimarães’, disse Caliban subitamente. ‘Não, eu estava falando do seu nome artístico’. ‘Ei, espera aí, eu me lembro’, disse alguém de dentro do carro. ‘Era de Shakespeare. Caliban!’. ‘Heitor Baptista Guimarães’, ele exclamou, a voz alta e severa dirigida não só a eles mas também à montanha e à noite. Virando-se, caminhou em direção ao carro (p. 16).

Nesta longa conversa entre Caliban e o americano, percebemos evidências de que o

comediante estava tentando voltar a ser o que era antes da fama. Sua primeira tentativa é

assumir o seu nome de nascimento, pois já não quer ser o que representava até aquela noite, e

busca reafirmar-se numa identidade que, um dia, tinha sido sua, mas que supostamente

perdera ao construir a de Caliban.

Caliban, agora, almeja reencontrar-se com a história de vida que possuía antes de

tornar-se O Caliban, pois não suporta mais ser aquele que a fama construíra. Prefere tornar-se

um ser entre tantos, sem fama, e ter uma vida simples, sem ser ofuscado pelas luzes dos

shows. Quando torna-se famoso e reconhecido pelas piadas que apresenta na Casa Samba, sua

identidade se transforma, ou melhor, a identidade de Caliban, seu eu artístico, se sobrepõe à

do cidadão Heitor Baptista Guimarães. Para Coser, “quando Caliban resolve descartar a

fantasia de cetim e o papel de bobo da corte para voltar a ser ele mesmo, perde-se entre o ser

fantasiado e o outro diluído no tempo” (2001, p. 225).

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A cada avanço na narrativa de Marshall fica evidente a dificuldade de Caliban em

reconhecer-se como Heitor Guimarães: “Embora repetisse até a língua pesar, aquele nome não

parecia real. Era o nome de um estranho que tinha vivido em outra época” (p. 17). E é esse

“estranho” que ele pretende reencontrar; é um outro eu que agora lhe perturba. E essa relação

entre os “eus” é bastante conflituosa, porque lhe causa tensão, vazio e solidão. Não se acha

mais no direito de usar seu nome artístico e força a reutilização do seu nome original.

Em uma conversa com sua jovem esposa, Clara, Caliban exige ser chamado por

Heitor; no entanto, ela se surpreende como se não lembrasse deste nome, pois, também para

ela, assim como para seus fãs, ele se chama O Grande Caliban. Ao tentar anular em que a

fama o tinha transformado, Caliban propõe a sua esposa irem embora, de volta para Minas

Gerais, pois o Rio não seria um bom lugar para seu filho nascer. Ser chamado de carioca seria

penoso ao pai Caliban; este local poderia tumultuar a identidade do filho (assim como

aconteceu com ele), pois se não tivesse vindo para a capital, seria ainda o mesmo Heitor

Baptista Magalhães:

‘Não, eu não quero ver meu filho nascer no Rio e ser chamado de carioca’. ‘Está bem, Caliban’. ‘Heitor’, ele disse categoricamente, assustando-a. ‘Heitor?’ Ela franziu a testa. ‘Você não sabe o meu nome verdadeiro?’ ‘Claro que sei’. ‘Bem, então pode começar a usar’ (p. 19).

A tentativa de Caliban em redescobrir sua identidade esquecida começa logo após a

cena acima, quando ele repentinamente pede para Clara: “‘Me fala [...] ‘sua mãe alguma vez

falou de mim? Ou sua avó? Elas alguma vez falaram de mim quando eu era jovem? Falaram

sobre Heitor? ’” (p. 20). A resposta de Clara é ainda mais perturbante a Caliban, visto que ela

não entende sua intenção: “‘Sei que elas contavam como você era famoso... ’” (Ibid.) O

contador de piadas insiste com interesse: “‘Eu disse quando eu era jovem. Antes de vir para o

Rio. Naquela época eu era diferente... ’” (Ibid.). E ela o decepciona totalmente: “‘Sei que

falavam, mas não consigo lembrar de tudo que diziam. Só sei que quando você ficou famoso

sempre procuravam seu nome no jornal’” (Ibid.).

Era como se ele quisesse se infiltrar no seu passado por intermédio das lembranças

dos outros. Entretanto, isso se torna impossível, pois ninguém consegue se lembrar dele antes

de ser famoso. Suas fantasias e ações nas apresentações diárias na Casa Samba tinham se

fixado no imaginário das pessoas, até mesmo no de sua esposa: “‘Estou tão acostumada com

você sendo Caliban’” (p. 20).

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47

Em um relance de memória, Caliban lembra da Rua da Glória e do restaurante onde

trabalhou antes de se tornar O Grande Caliban. Vai até lá, na tentativa de saber mais sobre si

mesmo. No entanto, é reconhecido pelo seu nome artístico por um grupo de meninos que o

seguem, extasiados, por estarem tão próximo à estrela do humor. As crianças o levam até o

restaurante, que não por acaso, se chama ‘RESTAURANTE O GRANDE CALIBAN’ (p. 23).

O recinto retrata a vida do personagem de Heitor. Há “fotos suas tiradas de jornais e já

amareladas que se espalhavam pelas paredes, e por uma pintura a óleo espalhafatosa

retratando-o em sua camisa escarlate” (p. 24).

Dentro do restaurante está um homem gordo, sentado. Ele é o dono daquele lugar.

Assim como o grupo de meninos, reconhece Caliban por seu nome artístico e contempla-o

com imensa alegria: “Quando reconheceu Caliban, os olhos cor de ágata brilharam como um

dos anéis dele, e um sorriso admirado abriu caminho ao redor de sua boca. “‘Senhor

Caliban...?’” (p. 24). Extremamente contente com a presença do seu ídolo, mostra a Caliban

todos os detalhes das paredes, o seu retrato. No entanto, o ídolo já não quer ser reconhecido

como tal e tenta evadir-se do local, mas é retido pelos meninos: “Desejava escapar porque o

restaurante profanara o seu passado com cromo e couro sintético, e o retrato, as fotos

desbotadas e o seu nome na janela apagaram o Heitor Guimarães que tinha esfregado aquele

piso” (p. 25).

O dono ainda explica que já havia encontrado as fotos ali quando comprara o lugar, e

que, o retrato grande na parede, ele mesmo tinha pintado: “‘Fiz em sua homenagem’” (p. 25).

Caliban quis saber quem as tinha colocado na parede e o homem lhe disse ter sido “‘o velho

Nascimento, aquele, Senhor Caliban, que deve ter sido o dono do lugar quando o senhor

trabalhava aqui. Talvez o senhor tenha se esquecido dele’” (p. 25). Aqui, vemos que o

pronome senhor também é utilizado pelo dono do bar assim como Henriques, o camareiro, o

usava ao falar com Caliban, assegurando-lhe respeito e honra, pois, na concepção de ambos,

Caliban lhes era superior.

O comediante pede ao homem o endereço do velho Nascimento e sai apressadamente

em direção à favela, onde mora seu antigo patrão. Sobe o morro sofregamente, sob os olhares

fixos e curiosos dos moradores, pois está muito bem vestido e portando anéis brilhantes. Um

garoto lhe dá a informação do lugar onde o velho reside. Depara-se com um barraco pobre e

resolve entrar. Percebe que Nascimento está cego e chama-o pelo nome. O velho, na incerteza

de que alguém estivesse ali, pergunta: “‘Tem alguém aí?’” (p. 28). E Caliban responde

prontamente, esperançoso de que ele lembrasse de seu antigo empregado: “‘Tem, é Heitor

Guimarães’” (p. 28). O diálogo segue:

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‘Quem é essa pessoa?’, disse o velho formalmente, virando-se agora. ‘Heitor’. ‘Heitor?’ ‘Sim, do restaurante, anos atrás. O senhor se lembra? Ele...eu era o garçom...’ ‘Heitor...’, o velho falou devagar, como se buscasse o rosto ao qual o nome pertencia. [...] ‘O senhor costumava me chamar de Heitorzinho de Minas. Lembra...’ ‘Não conheço Heitor nenhum’ (p. 29)

Acreditamos estar neste diálogo a frase mais emblemática da crise de identidade pela

qual passa Caliban. Ao balbuciar “‘Ele... eu era o garçom’” Caliban expõe sua incerteza de

quem realmente é. Ao corrigir-se após perceber que estava falando de si mesmo, entendemos

que Caliban ainda se encontra numa fase de transição do que é para o que deseja ser. Não

convém aqui falarmos em transição do que é para o que era ou para voltar a ser. Pois como

vimos nos parágrafos iniciais deste capítulo ao buscar por uma identidade “perdida” acaba-se

por produzir uma nova identidade e não reproduzir a antiga, embora nesta nova produção

estejam presentes os fatos da identidade primeira. Tais fatos não se anulam, mas intervêm

nesta nova posição identitária.

Caliban, não contente com a resposta do velho, faz um relato cheio de pormenores,

tentando lembrar-lhe de que tinha trabalhado no seu bar há anos atrás. Como se quisesse

repetir insistentemente para si mesmo o seu verdadeiro nome, Caliban declara-o a cada

instante:

‘Era eu, Heitor Guimarães, que às vezes contava umas piadas de noite para fazer os clientes ficarem bebendo. [...] foi quem me fez entrar naquele concurso de artista amador no Teatro Municipal. [...] Nós choramos no ombro um do outro quando me disseram que eu tinha vencido o concurso e que me colocariam no show regular com o nome de Caliban...’ (p. 29).

Inesperadamente, o velho responde com entusiasmo: “‘O Grande Caliban’”. Somente

quando ele ouve a palavra Caliban é que lembra quem era aquele que estava a sua frente.

Enquanto Caliban diz que se chama Heitor Guimarães nenhuma reminiscência floresce na

mente do homem. A decepção daquele comediante é visível, mas mesmo assim ele pretende

convencê-lo de que Heitor Guimarães tem mais significação que Caliban, visto que o primeiro

é a sua realidade e o último apenas produto de sua arte:

‘É, mas eu era Heitor Guimarães quando trabalhava para o senhor, e não Caliban’. ‘O Grande Caliban. Foi o melhor que já passou pelo Teatro Municipal. Eu disse pra ele que ganharia e que era o melhor...’ ‘Mas nessa época eu era Heitor!’

Page 50: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

49

‘Não conheço Heitor nenhum’ (p. 30).

Caliban, ao perceber que nada de sua história como Heitor Guimarães subtrairia

daquele senhor, desiste tristemente da empreitada e volta com seu carro para a cidade a

procura de Miranda. O narrador de Marshall descreve minuciosamente o percurso de volta, da

favela a Copacabana, e faz uma comparação de um detalhe da arquitetura do prédio onde

Miranda mora com os próprios cariocas. Neste momento, há uma reafirmação que o Brasil é

multirracial:

O piso do saguão em grandes quadrados em preto e branco sugeria não só os austeros prédios brancos, erguidos contra os morros negros, e as calçadas de Copacabana – um mosaico cuidadosamente elaborado de pequenas pedras brancas e negras -, mas também os rostos dos próprios cariocas, combinações sem fim de preto e branco (p. 31).

Na busca incessante de Caliban em obter reconhecimento das outras pessoas pelo que

fora no passado e não pelo o que a fama transformara-o, ele tenta encontrar em Miranda a paz

que há meses lhe falta, desde sua decisão em se aposentar. Pensando em obter um “sim” de

resposta, pergunta se ela conhecia algum Heitor Guimarães. Para sua surpresa, além dela não

conhecer nenhum Heitor, o interpreta mal, pensando que ele estava desconfiando dela por

possuir um caso amoroso com a pessoa que portava tal nome:

‘Vem aqui, quem é esse Heitor Guimarães? Eu fico aqui sozinha o dia inteiro, a noite toda sozinha, sempre sozinha, e aí você chega me acusando por conta de alguém que não conheço. Idiota! E se eu conhecesse alguém com esse nome? Seria problema meu. Você não é meu dono. Não sou aquela sua mãezinha medrosa. Heitor Guimarães! Quem é ele? Alguém vem enchendo sua cabeça de mentiras’ (p. 35).

Para a pergunta “‘Heitor Guimarães! Quem é ele?’”, o humorista responde: “‘Eu sou

Heitor Guimarães’” (Ibid.), deixando Miranda aliviada por entender que ele não está

desconfiando de sua fidelidade. No entanto, ela retruca convicta, por infelicidade de Caliban:

“‘Você? Não, senhor, você é Caliban. O Grande Caliban!’” (Ibid.). A partir disso, podemos

captar que tanto a sua esposa, os garotos da Rua da Glória, o homem do restaurante e o velho

Nascimento como Miranda não reconhecem a identidade essencialista de Caliban, ou seja,

Caliban como Heitor Baptista Guimarães. O narrador onisciente do conto, ao mesmo tempo

em que relata a busca agonizante de Caliban por seu outro eu, analisa a crise identitária pela

qual passa. Por vezes, faz uma análise das ações dos personagens:

Page 51: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

50

Caliban se tornara a sua única realidade, e qualquer outra coisa que ele pudesse ter sido estava perdida. A imagem que Miranda criara para ele era tudo o que tinha agora e uma vez que isso lhe fosse tirado – como seria amanhã, quando os cartazes anunciando sua aposentadoria fossem pregados -, seria deixado sem um eu (p. 35).

Esta análise do narrador já basta para entendermos definitivamente o estado turbulento

na alma de Caliban. Ao ouvir sua amante e colega de palco afirmar com todas as letras “‘você

é Caliban. O Grande Caliban!’”, uma fúria se apossa do grande astro e ele destrói todo o

apartamento que construíra para Miranda. Lustres, cortinas, tapeçarias, móveis, espelhos já

não embelezam aquele lugar, mas sim representam um cenário de um campo de guerra.

Após a destruição, o comediante pega o elevador para sair do prédio e ouve a amante

lamentar-se. Esta é a última ação do personagem no conto, como se a violência que

incorporara funcionasse como a panaceia da sua derrota. O conto fica em aberto para

reflexões de seus leitores. Não sabemos o que acontece com Caliban após esta cena, se

continua a ser O Grande Caliban, conformado com o mundo da fama ou se continua com sua

busca ilusória do ser Heitor Baptista Guimarães. Mas temos uma certeza: se Caliban não é

mais Heitor também não é mais O Grande Caliban; agora é um outro eu que reside no seu

interior, um novo eu produzido.

O conto termina com o questionamento de Miranda em relação ao que acabara de

acontecer. Ela diz: “‘O que foi que eu fiz? Fui eu, Caliban? Caliban, meu neguinho, fui

eu...?’” (p. 37). Talvez tenha sido Miranda que o tornara confuso. Mas não só isso. O velho

Nascimento, a fama, o Rio, seus fãs e ele mesmo foram, sem dúvida, os responsáveis pela sua

transformação ao longo dos anos. As pessoas que cruzaram pelo seu caminho e as atitudes

que tomou levaram-no a construir novas posições de identidade, visto que a identidade

cultural é construída através da história e, por conseguinte, está em constante movimento. E

este movimento abala, positiva ou negativamente, o sujeito que participa dessa identidade.

Page 52: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

51

4 O ESPAÇO EM “BRAZIL”

4.1 Espaço e identidade

4.1.1 O espaço e suas categorias

Após a sequência dos capítulos até aqui apresentados, envolvendo a pesquisa das

possíveis fontes de A tempestade, a explanação do que consiste a teoria pós-colonial, a análise

da peça sob essa perspectiva e a apresentação e análise do conto “Brazil”, considerando as

posições identitárias do personagem Caliban, pensamos ser necessária a elaboração de um

capítulo que enfoque a questão do espaço nesse conto. Em “Brazil”, o espaço tem grande

relevância, pois está intimamente associado ao personagem, influenciando-o quer em suas

atitudes, quer em seus pensamentos, e participando, dessa forma, da criação da sua identidade

cultural. Veremos, no decorrer deste capítulo, que os lugares são intensamente descritos,

chamando a atenção do leitor para que visualize não só o personagem, mas também o que se

apresenta ao redor dele. O debate sobre o espaço no conto é indispensável, pois o próprio

título tem presente a noção de espaço/território. O conto poderia ser chamado talvez

“Caliban”, mas percebemos que a autora quis enfatizar o espaço, denominando-o de “Brazil”.

Antes de procedermos à análise, faremos, a modelo dos demais capítulos, uma

exposição do quadro teórico, agora enfocando o espaço e algumas de suas categorias, como

lugar, território e paisagem. Veremos que as fronteiras entre tais categorias são tênues, mas

existem. Explicá-las-emos uma a uma, e em seguida, aplicaremos seus conceitos ao conto

“Brazil”, especialmente às passagens que tratam dos espaços.

Comumente, costumamos pensar que o espaço é meramente algo físico e material, e

não o associamos às relações sociais. Diferentemente das palavras social, político, econômico

e cultural, que evocam relações humanas, a expressão espaço geográfico é, por vezes, vista

apenas como algo independente do humano. Essa visão fisicalista tende a nos levar por um

caminho errôneo, pois a geografia entende a construção do espaço como algo inerente à

sociedade, isto é, “o espaço geográfico é [...] um produto histórico” (CARLOS, 1999, p. 32),

um produto social.

O espaço é central para a Geografia, posto que é sempre a partir dele que surgem as

demais categorias. É flexível e instável, e se transforma conforme as ações sociais se

Page 53: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

52

estabelecem. Luís Otávio Cabral argumenta sobre este dinamismo espacial: “ao longo do

tempo, as formas ou objetos e as ações ou comportamentos mudam e propõem diferentes

geografias” (2007, p. 147). Milton Santos afirma que “o espaço é a síntese, sempre provisória,

entre o conteúdo social e as formas espaciais” (1999, p. 88). Logo, a relação natureza-

sociedade é a base para a existência do espaço. Yi-Fu Tuan, por sua vez, vê o espaço como

um elemento do mundo vivido: “We live in space” (2008, p. 3). Percebemos que todos estes

estudiosos compartilham a ideia de que o espaço existe em relação às ações humanas e não se

constitui, exclusivamente, por sua natureza, ou “pelo espaço em si”.

A maior confusão se faz com relação em torno dos termos espaço e lugar, muitas

vezes tomados por sinônimos. No entanto, são similares e complementares. O espaço, ao ser

dotado de valor, torna-se lugar, que se manifesta por meio de um cotidiano compartido entre

as mais diversas pessoas, firmas, instituições-cooperação e conflito (SANTOS, 1999). O

conceito de lugar sugere uma relação do ser humano com o mundo. Doreen Massey reafirma

esta necessidade de indivisibilidade ao dizer que o local “is also a product of interactions”

(2009, p. 120). Para Cabral,

O lugar permite focalizar o espaço em torno das intenções, ações e experiências humanas [...] e [...] sua essência é ser um centro onde são experimentados os eventos mais significativos de nossa existência: o viver e o habitar, o uso e o consumo, o trabalho e o lazer (2008, p. 148).

Maria Isabel da Cunha, ao responder a indagação sobre o que transforma o espaço em

lugar, responde: “a dimensão humana”. E acrescenta: “o lugar se constitui quando atribuímos

sentido aos espaços, ou seja, reconhecemos a sua legitimidade para localizar ações,

expectativas, esperanças e possibilidades” (2008, p. 184). Cita um exemplo a fim de

podermos visualizar a distinção entre o espaço e o lugar: “minha gaveta pessoal de pertences é

um espaço; porém, quando coloco minhas coisas e reconheço a propriedade dessa

organização, defino um lugar” (Ibid., p. 184).

A definição de lugar enfatizando que, para a sua existência, há a necessidade de haver

interação entre o homem e o espaço é reiteradamente afirmada pelos estudiosos. Cunha ainda

define que há “uma dimensão política e cultural nos lugares, pois eles extrapolam uma base

física e espacial para assumir uma condição cultural, humana e subjetiva” (2008, p. 184).

Outra categoria que subjaz ao espaço é o território, definido como produção social a

partir do espaço (HAESBAERT (2009); KOGA (2004); SUERTEGARAY (2000)). Na visão

de Haesbaert, contemporaneamente, tanto o território como o espaço são vistos como

Page 54: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

53

produção social, “não se tratando em hipótese alguma de um ‘a priori’ (uma espécie de

‘primeira natureza’)” (2009, p. 104).

Suertegaray, ao falar sobre o conceito de território em uma perspectiva histórica,

explica que este “norteou, na Geografia, perspectivas analíticas vinculadas à ideia de poder

sobre um espaço e seus recursos; poder em escala nacional – o Estado-nação”, embora, “mais

recentemente, este conceito indica possibilidades analíticas que não deixam de privilegiar a

ideia de dominação / apropriação de espaço” (2000, p. 24). Assim, por mais que as estratégias

utilizadas pelas sociedades em delimitar e afirmar o controle sobre uma área geográfica –

denominadas territorialidades – expressem uma realidade social, ainda assim, representam a

dominação política de territórios.

Em síntese, a noção de território se constrói a partir da relação entre o território e as

pessoas que dele se utilizam. Dissociando esses dois elementos não há como existir o

primeiro. Por conseguinte, a concepção de território se efetiva entrelaçando sua materialidade

com as ações dos sujeitos que o utilizam (KOGA, 2003, p. 36).

Logo, tanto o espaço, o lugar e o território têm vinculação com o humano. No entanto,

o território diferencia-se daqueles por possuir uma dimensão política, que envolve relações de

poder. Ao conceituarmos o território não devemos, todavia, lhe atribuir apenas o caráter

político que lhe está inerente, mas também sua carga de simbolismo, isto é: “o território pode

ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material

das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais

estritamente cultural” (HAESBAERT, 2004, p. 79).

A terceira categoria espacial que propomos explicar é a paisagem, especificamente a

paisagem urbana. Segundo Ana Carlos, “enquanto forma de manifestação do urbano, a

paisagem urbana tende a revelar uma dimensão necessária da produção espacial, o que

implica ir além da aparência” (1999, p. 36). A autora ainda ressalta que esse modo de

interpretação introduz os elementos da discussão do urbano como processo e não somente

como forma. Tais elementos seriam: os prédios, casas, ruas, bairros, favelas, muros

protegendo mansões, supermercados, prédios industriais, etc. Por ser constituída através da

ação dos homens, a paisagem urbana tem caráter histórico, isto é, por ser representação das

relações sociais que a sociedade cria em cada momento do seu processo de desenvolvimento

torna-se um processo, e não algo fixo e imutável.

Percebemos então que a visão tradicionalista de paisagem, que consiste apenas na

“possibilidade visual” (SUERTEGARAY, 2000, p. 20), passa por uma repaginação ao longo

Page 55: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

54

dos anos ao considerar fatores extra-visuais, e ao tornar o conceito de paisagem operacional,

considerando sua funcionalidade.

4.1.2 Lugar e identidade

Após entendermos o espaço geográfico e algumas de suas categorias como

caracterizadas por sua relação dinâmica com o ser humano, é necessário refletirmos a

interrelação desse tema com a formação identitária, pois o sujeito, ao nosso entender, torna-se

elemento imprescindível para a constituição dessas classes espaciais. Por meio de intervenção

e apropriação, os sujeitos constituem seu território, no qual passam a conviver com seus

demais ocupantes. Por outro lado, a mudança do espaço físico em suas relações com os

aspectos individuais e coletivos determina novas dinâmicas ao entorno, ao ambiente social.

Através da diferença trazida pelos novos moradores, a cidade, por exemplo, constrói

uma alma própria, baseada em processos singulares de apropriação do espaço, transformando-

se em um lugar pleno de significação, que segundo Mourão e Cavalcante “influi

decisivamente sobre a construção da identidade de seus habitantes” (2006, p. 144).

Logo, o que trataremos neste subcapítulo é a associação da identidade a um espaço

físico e social. O indivíduo, ao apropriar-se de um entorno, torna-se “dono” dele, assim como

o próprio sujeito torna-se pertencente a este meio: “o sujeito age sobre o meio, modifica-o e,

neste processo, vai deixando sua marca e sendo igualmente marcado por ele” (Ibid., p. 145).

Sendo assim, concluem: “esse processo de pertencimento e apropriação associado a um lugar

é formador da identidade dos sujeitos tanto quanto suas relações familiares e sociais” (Ibid.).

Como veremos nessa análise do conto “Brazil”, de Paule Marshall, os lugares pelos

quais o protagonista vive são decisivos na formação da sua identidade; por outro lado, esses,

são marcados pelo contato humano. A crise identitária pela qual ele passa - já analisada no

capítulo anterior – é fruto de sua não-consciência de que a identidade é mutável, assim como

o lugar o é, por ser composto por significados, ou por relações sociais. Ao falarem do

dinamismo da identidade e do meio social, as autoras finalizam:

O ser humano não simplesmente se adapta ou introjeta o ambiente, mas ele se apropria ou não, conforme sua individualidade e aquilo que lhe é oferecido ou dado como possibilidade, dentro do seu contexto histórico e social. Através da apropriação, o ser humano dialoga com o ambiente e sua identidade vai se construindo ao mesmo tempo em que ele contribui para a construção ativa do contexto (MOURÃO; CAVALCANTE, 2006, p. 146).

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55

Em suma, o entorno físico e social vivido pelo sujeito pode influenciar, sem dúvida, na

construção de sua identidade. Ademais, quando os cenários físicos se transformam, os sujeitos

que habitam esses cenários também se modificam. É isto que faz com que um indivíduo se

identifique com o lugar que escolheu para viver, pois ele passa a projetar nele suas ideias,

sentimentos, valores, preferências, a fim de, a cada dia, sentir-se feliz com sua identidade e

construir sua história.

4.2 O espaço: formador de identidade em “Brazil”, de Paule Marshall

Como previamente ressaltamos, o conto “Brazil” está repleto de indicações e

descrições dos lugares nos quais os personagens executam suas ações. A vivência dos

personagens nesses espaços faz com que se acostumem com o cotidiano e a cultura desses

lugares, produzindo novas posições identitárias. A exemplo disso, citamos a Casa Samba e o

seu palco, o Rio de Janeiro, a Rua da Glória, a favela, a casa de Caliban e de sua esposa e o

apartamento de sua amante, Miranda, que funcionam como formadores da identidade de

Caliban, em crise no momento da narração.

No decorrer dessa análise, mostraremos como os espaços podem ter influenciado

Caliban na formação de sua identidade cultural e, inversamente, como os lugares sofreram

influências de Caliban, já que a relação entre ambos é dialética. Após isso, conduziremos o

leitor aos fatores que desembocaram na crise identitária do protagonista de “Brazil”. Ao viver

intensa e diariamente o seu personagem no palco da Casa Samba, sob as luzes coloridas e

sons estridentes, passa a ser reconhecido apenas pelo que é artisticamente, e nunca pelo que

fora antes de ser comediante. As pessoas se referem a Caliban sempre imaginando-o dentro da

casa de espetáculos, com suas vestes e atitudes exageradas e cômicas. A Casa Samba torna-se

um lugar – considerando as categorias espaciais -, pois está localizada em um espaço

geográfico amplo, mas que tem significação ou sentido no seu interior. O teatro ou a

encenação, por si só, são representações do vivido e seus espectadores concretizam a troca de

emoções, que dão sentido ao lugar. A Casa de shows, para ter sucesso e vida, necessita de

atores e espectadores e, estes necessitam de um espaço físico para atuarem, transformando

este espaço em um lugar.

A primeira indicação de espaço no conto é o próprio título. O Brasil é o território onde

se passam as ações da narrativa. A autora imprime extrema relevância ao espaço quando o

considera ser mais emblemático ao texto que o personagem Caliban. Percebemos que a sua

intenção é enfatizar o Brasil como um lugar (pois tem significação) intenso em relação às

Page 57: GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS Revisitando Caliban

56

culturas, remetendo o leitor para as possíveis construções de novas posições de identidade

advindas dessa heterogeneidade. A crise de identidade enfrentada por Caliban é resultado

tanto dos lugares nos quais ele frequenta como da nação multicultural em que vive. Outro

motivo que a escritora pode ter levado em consideração ao nomear o conto de “Brazil” talvez

tenha sido o desejo de homenagear esse país, onde residiu por um período de tempo, quando

era correspondente da revista de cultura negra Our World.

A segunda referência ao lugar, no conto, e talvez a mais importante e decisiva na

construção identitária do protagonista do conto, é a Casa Samba, um lugar pleno de

significados, e o cenário onde Caliban e Miranda se apresentam todas as noites a fim de levar

ao público alegria e descontração. A Casa Samba é composta por cômodos típicos de casa de

shows: há dois camarins, corredores, uma sala dividida em palco e plateia. Nos camarins,

espelhos e penteadeiras constituem a mobília do pequeno espaço. A vivência diária de

Caliban tanto no camarim como no palco ajuda a construir sua identidade artística. Dentro da

Casa ele é o Grande Caliban; absolutamente tudo o que compõe aquele lugar, as luzes, os

sons, a maquiagem, as roupas, os espectadores, os instrumentos musicais, a fumaça, os

músicos são elementos instigadores para a formação de cultura e identidade.

A Casa Samba, por outro lado, também vê em Caliban suporte para sua constituição e

permanência como local famoso por seus shows. A exuberância de sons, luzes e clima de

alegria que proporciona à plateia é, em grande parte, advinda da fama de Caliban. A Casa,

pelas descrições da narradora, demonstra ser local de sucesso, o point daquela cidade.

O Rio de Janeiro é também referido no conto. Seus principais bairros, pontos

turísticos, ruas e favela são amplamente descritos a partir da segunda metade do conto.

Quando Caliban resolve se aposentar, em conversa com Henriques, o camareiro, é

surpreendido por uma frase que o faz pensar sobre o Rio de Janeiro. Henriques diz: “‘Está se

aposentando no tempo ideal, senhor, com dignidade. Colocar os cartazes sobre a cidade

mostra estilo. Está dando adeus pro Rio de forma apropriada, bem certa, já que foi aqui que

ficou famoso. Afinal de contas, foi o Rio que fez o senhor’” (MARSHALL, 1988, p. 11)4. E

Caliban responde secamente: “ ‘Claro’ ” (p. 11).

Ao dizer “foi o Rio que fez você” é possível levantar um debate acerca do lugar como

construtor de identidades. O Rio, com seu crescimento espantoso e consequente turbulência

na vida social, faz com que seus habitantes passem a agir conforme a velocidade de seu

4 Todas as citações seguintes da obra “Brazil” foram tiradas da tradução de Diego Rodrigues. Somente mencionaremos o número da página, nas próximas citações.

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57

crescimento. Portanto, obrigam-se a se movimentar rapidamente para darem conta de suas

obrigações enquanto cidadãos.

Essa reflexão torna-se necessária visto que Caliban também sente a urgência de estar

sempre pronto para seu público. Sua intenção é arrancar sorrisos e gargalhadas de seus

espectadores, através de suas piadas. Ao dedicar-se quase que exclusivamente a sua vida

artística ou ao seu trabalho, Caliban incorpora seu personagem com tanta fidelidade que acaba

confundindo ficção e realidade. Heitor transforma-se em O Grande Caliban e a sociedade

carioca e seus amigos, familiares e colegas também passam a reconhecê-lo como aquele que

vive para alegrar as pessoas, o famoso Caliban. A fim de ressaltar tal prestígio do comediante

perante o Rio de Janeiro, Henriques declara convictamente: “‘o Rio todo vai chorar se

lembrando de sua grandeza...´” (p. 11). Essa declaração, novamente, aponta para a ideia, que

viemos pautando de que o lugar também sofre influência de seus habitantes. Ao dizer que o

Rio choraria pela ausência de Caliban percebemos que, na concepção de Henriques, Caliban é

tão vital à Casa Samba e ao Rio de Janeiro que a sua estrutura emocional do Rio será abalada

ao perder o astro do humor. Ainda que exagerada, reafirma-se, nessa declaração, a

reciprocidade entre identidade e lugar, pois ambos modificam-se mutuamente.

Quanto à paisagem urbana, evidenciamos alguns trechos de descrições sobre ela,

especialmente ao falar de pontos turísticos famosos, como o Pão de Açúcar e as calçadas de

Copacabana, as favelas e os morros. Em uma noite, quando Caliban sai da casa de shows para

ir a sua casa, antes de entrar no carro, para e observa a paisagem ao seu redor, pensando na

despedida dos palcos nos próximos dias. Essa pausa torna-se para o leitor uma possibilidade

de tomar conhecimento sobre a paisagem do Rio, especificamente do ponto onde está

construída a Casa e seus arredores:

A Casa Samba fora construída na ladeira que levava ao Pão de Açúcar e, ao caminhar na direção do carro, Caliban estava consciente, como se fosse a primeira vez, do cone sólido e alto da montanha negra erguida contra o escuro menor do céu, benevolente, protegendo a cidade adormecida. Conseguiu distinguir o cabo do bondinho suspenso por uma linha frágil entre o Pão de Açúcar e o Morro da Urca (p. 15).

O Corcovado também é mencionado no texto como a “montanha do Cristo” (p. 17). É

próximo a ele que Caliban constrói a sua moderna casa de vidro. Ao chegar em casa, após a

pausa para observar a paisagem que cercava a Casa Samba, ele se dirige ao quarto e vê sua

esposa, grávida, dormindo. Prefere, então, deixá-la sozinha e vai até outro quarto,

denominado por ele mesmo seu refúgio, a fim de descansar dos problemas, que neste

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58

momento da narrativa são a tentativa de reafirmação de sua identidade como Heitor

Guimarães e a aposentadoria, a qual vem tumultuando seus pensamentos. Todas as suas

ações, desde chegar a sua casa, dirigir-se ao isolado quarto, e a sequência até o momento em

que acorda no outro dia são minuciosamente descritas. Além disso, a localização dos cômodos

da casa pelos quais ele passa também é referida. Por tais motivos, torna-se necessária a

transcrição destas passagens, pois, como afirmamos anteriormente, a casa de Caliban também

é um lugar onde, também, se concretiza a relação dialética entre espaço e identidade. O

interior da casa encontra-se revestido de vida e sentido, constituindo-se tanto em refúgio,

como lugar de interação com a esposa e, relicário, onde guarda as imagens que provam seu

sucesso artístico, reforçando sua identidade como Caliban:

Foi andando pelo pátio interno, passou pela sala e pegou o corredor na direção dos quartos [...]. Parou em frente à porta aberta do quarto principal. Não podia ouvir a respiração da mulher mas conseguia vê-la, sob a pequena e firme luz da vela que ficava diante da Madona, no oratório perto da cama. [...] Fechou a porta e foi até o pequeno cômodo no final do corredor, que usava como um refúgio, e esticou-se na pequena cama que lá mantinha, sem se despir. Sempre como ocorria quando havia algum problema, dormiu rápido [...]. De repente, a luz jorrou sobre ele vinda de um lado da mina e ele acordou com o sol da tarde que invadira o cômodo. Igual a um boêmio, o sol foi dançando alegre pelas fotos emolduradas nas paredes (eram todas de Caliban, uma com o Presidente do Brasil durante o carnaval de 1946 e outra com Carmem Miranda, um ano antes da morte dela), nas lembranças e prêmios sobre a mesa; a luz saltou sobre o chão e pousou bem nos braços de sua esposa, quando ela abriu a porta (p. 18).

A casa de Caliban e Clara constitui-se em testemunho do convívio de ambos. As

paredes ostentam fotos de Caliban enobrecido pela fama. O domicílio é de vidro, e reflete a

fragilidade dos sentimentos pela qual ele está passando, bem como a transparência dessa

fragilidade aos seus amigos, pois é percebida por todos. O quarto, que o comediante

denomina seu refúgio, é “pequeno”, no “final do corredor” e possui uma “pequena cama”.

Através desses adjetivos, que descrevem o ambiente como sendo privado de conforto e

alegria, podemos perceber que também Caliban sente-se angustiado, por encontrar-se em

desequilíbrio. Dessa forma, o lar do casal reflete seu estado emocional; como todo reflexo, é

uma relação mútua, de trocas.

É na casa de Caliban que podemos analisar também a categoria espacial território.

Vimos que o território diferencia-se do lugar por nele apresentarem-se relações de poder.

Caliban comporta-se com Clara como um patriarca, chefiando a casa e as decisões familiares.

Quando Clara sugere ficarem no Rio até a chegada do bebê, ele responde que não, pois não

quer ver seu filho ser chamado de carioca. Sabendo que ele não cederia - pois já conhece seu

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marido -, ela concorda submissamente: “ ‘Está bem, Caliban’ ” (p. 19). O seu poder, no

entanto, às vezes transforma-se em violência, quando é retrucado e não compreendido.

Quando ela afirma não saber quem é Heitor Guimarães e procurará a pessoa que atende por

esse nome, Caliban desespera-se e a agride:

Não ficou claro se ele arremessou a xícara nela ou no chão, mas não acertou a mulher. A luz do sol correu da sala quando a xícara se quebrou no chão e o café derramado espalhou uma mancha negra entre eles. ‘E quem você vai procurar?’. O grito estridente dele tinha a mesma raiva abstrata da noite anterior. ‘Quem? Fala!! Um garoto da sua idade, talvez? Um garotão alto, bonitão, hein, algum carioca que vai dançar o Carnaval e sacudir você na minha cama, pelas minhas costas? É ele que você vai procurar?’ (p. 20).

Clara permanece em silêncio, tentando proteger o filho no ventre. Torna-se evidente

que Caliban tem o poder na casa e usufrui dele. No lar da amante também ele age dessa

maneira. Ao compor todo o apartamento com móveis de luxo e ter o passe livre para entrar à

hora em que quiser, torna-se alguém com poderes em relação ao lugar e à Miranda. Chega a

impor seu poder até mesmo sobre a empregada da casa, Luiza. Esta fazia as unhas de Miranda

para o show daquela noite na Casa Samba, quando Caliban chega, depois da busca infrutífera

pela identidade de Heitor, e ordena-lhe que vá para casa. Vejamos, no diálogo a seguir, como

Caliban chega a se sobrepor às ordens que Miranda dá à empregada:

‘Vai para casa, Luiza’, ele disse em voz baixa. Miranda deu um grito que fez balançar e derramar o vidro de esmalte da sua mão, manchando de vermelho a colcha rosa. ‘Não, Luiza...’. Esticou o braço tentando segurar a garota. ‘Espera, Luiza..’. ‘Vai para casa, Luiza’, ele repetiu. A garota se levantou então como se tivesse sido jogada em pé e, segurando a bacia de água, olhou dele para Miranda durante um só instante agoniado e correu em direção à porta, a água derramando no tapete. Quando ela passou por ele, Caliban disse gentilmente, ‘Boa noite, Luiza’, e fechou a porta. ‘Luiza!’ (p. 33).

No início do conto, entretanto, percebemos a inversão de poder entre Miranda e

Caliban. Ao perceber que Caliban sentira uma fisgada em um movimento corporal, e

pressentindo que não poderiam terminar a apresentação como de costume, ela improvisa e

assume a posição de “mais forte” em relação à Caliban. A cena que eles dramatizam tem a

comicidade baseada nessa inversão de poder:

Miranda retornou para um finale breve e glamoroso e inverteu os papéis bem na hora de acabar, levantando Caliban com uma das mãos e marchando triunfalmente

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60

para fora do palco, com ele chutando e agitando os pequenos braços bem acima da cabeça dela (p. 5).

Caliban também a agride, pois não admite perder a posição de estrela da noite para sua

colega que, segundo ele, sempre fora menos talentosa. Ele gosta do poder, da fama e dos

aplausos. Sentindo-se inferior à Miranda, e respondendo à pergunta de Miranda sobre

possíveis erros durante a performance do personagem, percebemos insatisfação e raiva:

‘Agora o quê é que eu fiz de errado?’ [...] ‘Tudo’, ele disse calmamente. ‘Você fez tudo errado. Você estava horrível’. ‘Você também’. ‘É, mas foi só por sua causa’. ‘Safado, sempre que tem algo preocupando ou você se sente mal, joga culpa em mim. Juro que você é que nem mulher querendo mudar de vida. Ninguém mandou você forçar tanto as pernas naquele número. Você está velho demais. Devia se aposentar. Você já era’. ‘Cala a boca!’ [...] ‘Sua vaca’, disse ele, e abriu a porta do camarim. [...] ‘Sua cachorra estéril!’ (p. 5; 6).

Retornando às indagações sobre o Rio de Janeiro e Caliban, podemos notar que,

apesar de o Rio ter sido o lugar onde construiu seu sucesso, o ator mantém com a cidade uma

relação ambivalente. Agora, quando se vê na iminência de perder os vínculos com o lugar que

forjou sua identidade como Caliban, culpa o Rio de Janeiro pela sua infelicidade e

desencontro. O desprezo pelo Rio é tamanho que propõe a sua esposa, Clara, que seu filho

nasça em Minas Gerais, sua terra natal, pois não quer ver o filho “nascer no Rio e ser

chamado de carioca” (p. 19). Já Clara sente-se feliz no Rio e não gosta da ideia de retornar a

Minas. Aqui cabe ressaltar, que o lugar interfere de forma diferente na construção da

identidade das pessoas. O mesmo ambiente tanto pode influenciar positiva como

negativamente seus habitantes, pois cada um tem seus desejos e preferências, e se identifica

ou não com o lugar onde reside.

Para Caliban, o Rio lhe trouxe a fama, mas lhe trouxe também um vazio e o não

reconhecimento de quem ele é. Seu desassossego torna-se cruel, pois a cada dia que passa se

martiriza em perceber que se distanciou imensamente do Heitor Guimarães. O Grande

Caliban torna-se a sua realidade e talvez nem Minas Gerais consiga lhe trazer a paz que

almeja. Tudo dependeria da afinidade que Caliban empreenderia com aquele lugar e como o

próprio lugar o receberia para viver em sociedade. Já para sua esposa, o Rio lhe trazia, acima

de tudo, conforto e prestígio, por ser a esposa do famoso artista. Antes de vir para esta cidade

tinha uma vida humilde, e a fama do marido lhe trouxera bens materiais que, agora, sente

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61

medo de perder. Quando percebe que Caliban lhe garante uma vida tão confortável em Minas

como tem no Rio, muda a estratégia, fala do carnaval, que segundo ela faz do Rio de Janeiro

um lugar bom de morar, e do filho que nascerá.

Percebemos, então, que Clara não é tão ingênua como Caliban pensa. Primeiramente

tenta convencê-lo com argumentos racionais, que pretendem enfatizar a importância em

valorizar o trabalho e a bela casa de Caliban; em seguida, parte para argumentos emocionais,

usando o filho que está por nascer para conseguir a sua permanência na cidade do Rio: “ ‘É.

Mas tem o nosso filho. Seria bom se nascesse no Rio. Talvez depois do filho a gente podia

voltar para Minas’ ” (p. 19). No entanto, ele responde categoricamente: “‘Não’” (p. 19).

Na busca incessante em saber como era antes de tornar-se o famoso Caliban resolve

procurar seus amigos de outrora. Mas a única referência é a Rua da Glória, também no Rio de

Janeiro. Ao descer o morro onde mora a fim de alcançar à Rua, eis mais um relato da

paisagem urbana:

À medida que o carro descia as estradas da montanha, o mar foi aparecendo, vasto e benigno, refletindo a lividez do céu e partindo a imagem do sol em fragmentos; depois as enseadas na baía – as curvas firmes e graciosas, formando um arabesco entremeado por morros – e, finalmente, a própria cidade – branca, opulenta, lânguida sob as carícias do sol, tirando agora a sesta da tarde em preparação para a noite (p. 22).

A paisagem, tão positivamente descrita, contrasta com os sentimentos que Caliban

experimenta. Sente-se em conflito, triste, agoniado e desencontrado. Enquanto isso, a

paisagem continua bela, especialmente à noite, quando se prepara em clima de romantismo,

próprio dos amantes, e de festa. Os adjetivos utilizados para qualificar a cidade, como “curvas

firmes graciosas”, “branca”, “opulenta”, “lânguida” também nos induzem a pensar em

amantes que se preparam para um encontro. Pela descrição acima, fica implícito que é à noite

que a cidade do Rio converte-se plenamente em amante, oferecendo-se em sua plenitude aos

cariocas.

Quando chega à Rua da Glória, que fica na parte mais antiga do Rio, Caliban encontra

a casa em que morava em ruínas, mas segue ao reencontro do restaurante onde trabalhou há

anos atrás. Mais ao fim da rua encontra-o, embora bastante modificado:

O piso de cerâmica brilhante na entrada [...] todo quebrado, e a soleira de pedra na porta com os velhos arranhões ainda mais profundos. No lugar onde estivera o toldo, um enorme cartaz dizia BEBA COCA COLA e logo abaixo, na moderna

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fachada de vidro, estava o nome do restaurante: RESTAURANTE O GRANDE CALIBAN (p. 23).

O restaurante também é um lugar, considerando as categorias espaciais, pois é

formado a partir de marcas pessoais ou intervenções humanas. Pode-se dizer que este lugar

teve importância na fase de transição do trabalho de garçom para a carreira de artista de

Caliban; o restaurante tem uma parcela maior de contribuição na formação da identidade d’O

Grande Caliban na sua fase inicial, pois foi por intermédio de seu patrão que foi levado a

prestar o concurso no Teatro Municipal. A partir da ida de Caliban para a Casa Samba, é este

o lugar que passa a influenciá-lo, e não mais o restaurante. Portanto, O GRANDE CALIBAN

- o bar - tem maior influência na vida e na identidade de Heitor Guimarães, pois quando

trabalhava lá, era assim chamado. Por esse motivo, Caliban pensa poder recuperar a

identidade do cidadão Heitor Guimarães através da visita ao local. A história, porém, já havia

interferido tanto em sua história pessoal como na daquele lugar, rendendo a busca infrutífera.

O Restaurante, pelo próprio nome, demonstra ter sofrido influências de Caliban. Não

somente o local abalara a identidade de Heitor e Caliban como também o local fora

constituído, mantido e nomeado pela passagem de Caliban ali, há anos atrás. O simples bar

que se apresentava enquanto Caliban lá trabalhava torna-se, após a fama do comediante, local

de reconhecimento nas redondezas da Rua da Glória.

Caliban observa as paredes com fotos suas pregadas por todos os lados e um retrato

enorme pintado à mão. O senhor gordo que agora é o proprietário do bar afirma ter sido o

velho Nascimento, tio-avô do dono anterior, que colocara as fotos na parede. Após conseguir

o endereço do velho, vai até lá. Sua casa localiza-se em uma favela atrás de Copacabana.

Caliban esforça-se ao subir a ladeira, entre buracos e olhares curiosos, pois está vestido com

roupas de luxo e porta anéis brilhantes. O aspecto visual da favela ou o seu caráter

paisagístico estão bem descritos na passagem abaixo, e contrastam com a visão romântica

daquela cidade, a de um cartão-postal luxuoso:

Podia ver, logo acima, o começo da favela – um viveiro vasto e imundo para os pobres do Rio se agarrarem ao morro sobre Copacabana, um ninho de barracos construídos com os dejetos da cidade. Caixas de papelão e caixotes descartados, pedaços de zinco e latão, tábuas carcomidas e cascalho – tudo isso empilhado em confusas fileiras ao longo do morro, os pedaços de madeira desbotados pelo sol. A favela era outra cidade sobre o Rio e, atrevida, roubava a eletricidade da cidade de baixo – de forma que, à noite, as montanhas ficavam cobertas de luz – e repelia os esforços do governo em retirá-la dali (p. 26).

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Deparamo-nos, aqui, com algo digno de comparação. No relato acima, o narrador

sugere uma sobreposição da favela sobre a cidade; também acontece com a questão identitária

uma sobreposição, ou seja, o personagem Caliban se sobrepõe à identidade do Heitor

Guimarães ao longo dos anos. Tal como a favela se agarra ao morro sobre Copacabana,

Caliban apega-se ao corpo de Heitor, sufocando-o e confundindo-o.

Com a ajuda de alguns meninos, Caliban consegue chegar ao velho Nascimento. Ele

mora em um casebre que exala miséria e degradação por todos os lados; há um coqueiro

morto plantado ao lado do barraco, que é de tábuas velhas, zinco e sapê. Ainda antes de entrar

nesse lugar, Caliban lembra-se do velho, quando lhe mandava todos os dias abaixar o toldo

para proteger o restaurante do sol, e quando, à noite, ordenava-lhe contar piadas a fim de fazer

os clientes beberem até tarde.

Tanto a favela como o casebre são lugares que, no momento da narrativa, influenciam

Caliban na sua nova posição de identidade, pois ao querer ser Heitor e deixar de ser O Grande

Caliban, outra identidade parece surgir. Diferentemente da Casa Samba e do Rio de Janeiro,

que impulsionaram a criação de sua identidade artística, a favela e o casebre do Nascimento

consistem em lugares que, imagina, facilitarão a recuperação da identidade de Heitor.

Para desespero de Caliban, o velho Nascimento também não conhece nenhum Heitor,

apenas O Grande Caliban. O comediante desce o morro de volta, em disparada, pois percebe

que sua busca foi inútil: “O dia parecia estar se fechando sobre ele, espremendo sua vida, e o

pânico que sentiu foi como uma agulhada no corpo ao correr para fora, esquecendo de fechar

a porta atrás de si” (p. 30). O pânico sentido por ele, neste momento, é causado pela noite que

está se aproximando e que lhe faz lembrar que todos os dias, nessa hora, o seu personagem

Caliban se apresenta na Casa Samba. Mesmo sabendo que nesta noite não se apresentaria, o

fantasma do personagem lhe aflige, desconcertando-o. Todos os dias cumpria-se este ritual: a

noite se aproxima, as luzes são acesas, as pessoas saem às ruas, Caliban e Miranda se

apresentam e encerram sobre aplausos, completando a festa. Tal clima de folia e alegria lhe

custara a imposição de uma máscara que agora luta para retirar.

Na descida do morro há, novamente, descrição da paisagem urbana: “quando Caliban

passou pelo túnel e entrou na estrada que faz a grande curva da Baía de Copacabana, viu luzes

surgirem nos apartamentos e hotéis empilhados como rochedos brancos e angulares contra o

fundo de morros negros” (p. 31). A claridade da cidade em oposição à escuridão da favela

revela-nos os contrastes entre ambos os lugares: econômicos, visuais e identitários. Enquanto

a cidade é descrita como a favorita, por exalar beleza e harmonia, ornada com belos prédios e

iluminada por luzes, a favela representa a pobreza, a desordem e os problemas.

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Em seguida, o narrador expõe ao leitor a angústia de Caliban em viver naquela cidade

que de alguma forma “o fizera”. Quando chegou ao Rio, Caliban se apaixonou por aquele

lugar e passou a amá-lo até o dia em que resolve se aposentar. Em meio a tantas reflexões que

florescem ultimamente em sua mente, pensa que todo aquele amor devoto só lhe servira para

tumultuar a sua vida. Percebe que todo o seu sucesso em nada tinha favorecido aquele lugar,

que tudo foi ilusão, tanto sua fama como o amor que pensara ter adquirido pelos cariocas.

Tinham sido amantes, ele e o Rio, no entanto, agora o Rio parece desprezar-lhe. Talvez

sempre o desprezara, sem que percebesse. A cidade é agora, para ele, amante indiferente, e

quer deixar de amá-la, torná-la sua ex-amante:

Caliban tinha sido um de seus amantes, mas ao cruzar a cidade de carro sentiu a indiferença dela à sua confusão, à sensação de ter perdido algo que permanecera sem nome; além do mais, suspeitava que ela, a cidade, fora inclusive indiferente ao seu sucesso. [...] Caliban odiou-a de repente...(p. 31).

Enquanto ainda é possuído pela raiva à cidade, lembra-se de Miranda, sua colega e

amante, e transfere todo o ódio a ela. A fim de descontar aquele sentimento de fúria, dirige-se

ao apartamento em que Miranda mora, em Copacabana, que fora totalmente decorado por ele.

Pela tristeza ainda maior de Caliban, aquele lugar reflete o Rio de Janeiro:

O piso do saguão em grandes quadrados em preto e branco sugeria não só os austeros prédios brancos, erguidos contra os morros negros, e as calçadas de Copacabana – um mosaico cuidadosamente elaborado de pequenas pedras brancas e negras -, mas também os rostos dos próprios cariocas, combinações sem fim de preto e branco. O tapete verde na sala de estar poderia ser uma amostra recortada de um dos morros, enquanto o resto da decoração – as peças antigas muito elaboradas, com acabamento de marfim, mesas de mármore repletas de estatuetas, sofás estofados em seda branca, com penas de ganso, cortinas brancas e espelhos de moldura dourada – repetia a opulência, a falta de controle, a brancura exuberante da cidade. E os lustres com as lanças faiscantes de cristal [...] capturavam a luminosidade do Rio à noite (p. 31 e 32).

O apartamento de Miranda é, para Caliban, um lugar que também o reflete, bem como

ao Rio de Janeiro, e, dessa forma, torna-se um lugar formador de sua identidade: “pela

primeira vez Caliban tomou consciência de quanto a sala representava a cidade e ele próprio”

(p. 32). O local não remete às lembranças do antigo garçom, mas às do famoso comediante. A

decoração é fruto de seu trabalho como O Grande Caliban e, portanto, lá nada pode fazer

ressurgir o passado, que é longínquo. Torna-se difícil restabelecer, ali, a identidade de Heitor.

Mesmo a relação com Miranda reafirma sua identidade artística: afinal, veio dela a sugestão

do nome Caliban, que tantos aplausos arrancou do público, mas que agora é nome que ele

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despreza; sua relação com ela, não interrompida após o casamento, faz com que continue

visitando assiduamente esse apartamento, tão ligado à memória de sua vida artística.

Caliban, nervoso, pergunta a Miranda se ela conhece algum Heitor Guimarães. Ela

fica perplexa, pois imagina que esteja acusando-a de infidelidade. Caliban então diz: “ ‘Eu

sou Heitor Guimarães’ ” (p. 35). Miranda afirma estar louco, porque “ ‘você é Caliban. O

Grande Caliban’ ” (p. 35). O nome Heitor torna-se irreconhecível naquela casa, pois nem o

próprio Caliban tem certeza de quem realmente é. Então, destrói todo o apartamento que tinha

adquirido e montado com o dinheiro proveniente de sua identidade artística.

O conto termina com a fúria do comediante: quebra o apartamento de sua amante e

foge, após, em direção ao elevador. Sem perceber, repele a Miranda, assim como o Rio, sua

amante, o rejeitara, segundo suas próprias palavras. Talvez, nesse momento, Caliban tenha se

lembrado do que dissera Henriques, quando lhe confessara, logo no começo do conto, que iria

abandonar Miranda. Henriques o tranquilizara, dizendo que o Rio e Miranda eram iguais, pois

sempre teriam alguém para gostar deles. Então, Caliban não necessitaria ficar com remorso.

Dessa maneira, tanto o Rio como Miranda não mereciam mais sua atenção, pois o enganaram

ao pensar que era importante para eles. Na sequência, Miranda chora e insiste em chamá-lo

de Caliban, pois para ela, assim como para todas as outras pessoas que ele havia tentado

convencer de que era Heitor Guimarães, ele sempre foi O Grande Caliban e assim continuará

sendo.

A paisagem urbana, no conto, vem a revelar as contradições daquela cidade, ou seja,

em um lugar internacionalmente reconhecido pela beleza, comparado a um paraíso, há

também a presença da favela. De forma análoga, sob a máscara alegre e irreverente de O

Grande Caliban, oculta-se um homem triste, atormentado e confuso com relação a sua própria

identidade.

Reportando-nos à teoria do pós-colonialismo e fazendo um comparativo entre paraíso

versus favela, percebemos que o primeiro elemento assemelha-se à Europa, tida como

símbolo majoritário da cultura e poder e, a favela, equivale à ambiência do oprimido,

emblema das minorias, à margem da história, representado pelas nações africanas e

americanas. Assim como o Rio de Janeiro nos revela, através do conto, suas disparidades, a

teoria pós-colonial revela-nos os contrastes das formas de poder entre a metrópole e a colônia.

Ao findar a análise do conto, reafirmamos que o espaço geográfico é dinâmico, e que

nenhuma das suas categorias se constituem por si só, mas, como diz Suertegaray (2000, p.

31), “cada uma dessas dimensões está contida em todas as demais”. Assim, paisagens contêm

territórios que contêm lugares, valendo para cada uma dessas conexões, todas as conexões

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possíveis. A Casa Samba e o apartamento de Miranda, por exemplo, consistem tanto em lugar

como território, assim como outros casos analisados neste subcapítulo, fazem também parte

da paisagem humana. Essa interconexão e dinamismo refletem, também, a dinâmica do

próprio processo identitário, em que um sujeito pode vir a responder de acordo com diversas

posições, de acordo como é interpelado em diferentes contextos. Ocorre, porém, que a

supressão dos contextos mais intimamente associados ao cidadão Heitor Guimarães,

trabalhador não pertencente ao mundo do espetáculo, levam ao apagamento dessa posição

identitária. Dessa forma, evidenciam-se, no conto, a relevância das categorias espaciais e as

relações entre estas e o processo de formação identitária através da qual o sujeito tanto deixa

sua marca no lugar por ele ocupado, como é marcado por ele.

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67

CONCLUSÃO

Nossa pesquisa, inicialmente, propôs-se a estudar a figura de Caliban no conto

“Brazil” de Paule Marshall, dando relevância ao conflito identitário pelo qual o personagem

passa. Tornamos necessário revisitar o personagem no texto em que primeiro apareceu, a peça

A tempestade, de William Shakespeare. Chamava-nos a atenção, desde as primeiras leituras, o

desequilíbrio identitário e emocional por que passa o Caliban de Paule Marshall, e nos

propusemos, como alvo norteador desta pesquisa, a identificar o que leva a tal processo.

Através do estudo das releituras e reescritas do personagem criado por Shakespeare,

ao longo dos anos, percebemos que a alteridade tem se constituído o núcleo gerador dos

debates. O personagem tem sido descrito como um ser grotesco e desprovido de inteligência

em relação à Próspero, detentor de cultura e poder. Nos séculos seguintes à criação de A

tempestade de Shakespeare, mais especificamente nos XVII e XVIII, Caliban é designado

como selvagem, monstro, deformado, despertencente à civilização. Chega a ser comparado

aos defeitos humanos ou, ao lado obscuro das pessoas, pela sua negritude e pelo seu não-

enquadramento às virtudes humanas. Seu próprio nome, anagrama de canibal, sugere hábitos

alimentares que contribuem para aumentar ainda mais o desprezo e pavor. Fica evidente o

preconceito contra aquele que contrasta, em aparência e cultura, do colonizador.

Mesmo quando, nos séculos seguintes, Caliban passa a obter mais aceitabilidade entre

os críticos literários, é visto como cômico, e começa a ser interpretado sob os termos do

imperialismo. A condição de escravo e de nativo desapropriado torna-se amplamente descrita,

tanto em estudos de crítica como em reescritas literárias da peça. No século XX, iniciam-se as

releituras da peça sob a ótica pós-colonial, quando a dita inferioridade de Caliban é associada

ao discurso e poderio do colonizador. Surgem reescritas e releituras, promovendo o Caliban-

monstro para o Caliban-vítima, estigmatizado pelo poder do império, representado por

Próspero.

É dentro dessa vertente pós-colonialista que se enquadra o texto de Marshall. Vimos

que reescrita e releitura são atos literários que corroboram a teoria pós-colonial, por revidarem

discursivamente o cânone ocidental. Apesar do conto não ser considerado uma reescrita nem

releitura da peça A tempestade, ele é intertextual àquele. Uma das questões norteadoras que,

inicialmente, alicerçavam a pesquisa era a possibilidade de se fazerem comparações

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sistemáticas entre os enredos. No entanto, no decorrer do estudo, pensamos que tais

comparações não se sustentariam, e não trariam contribuições significativas.

Verificamos que há, porém, relações possíveis entre A tempestade e o conto. Além de

possuírem personagens com nomes em comum, encontramos em ambos os textos problemas

decorrentes do processo de colonização: o encontro colonial, a outremização do sujeito, o

revide discursivo do mesmo, o conflito identitário. Entretanto, na peça shakespeareana estes

problemas efetivam-se como demonstração de poder, como ilustrado através da relação

Próspero-Caliban, enquanto que no conto, apresentam-se, especialmente, como forma de

colonização da mente, algo mais indireto, mas não menos cruel.

Contudo, em “Brazil” as assimetrias de poder não estão completamente ausentes,

como prova o relacionamento patriarcal com Miranda e Clara. A imposição de seus desejos e

mandos sobre essas mulheres reflete relações de poder, poder patriarcal. Dessa forma, remete

à categoria espacial da territorialidade, associada à apropriação e manutenção de poder sobre

um dado espaço social. Em Caliban, a ambivalência do personagem em amar e violentar

emocional e fisicamente suas amantes torna-se uma maneira de dar vazão na angústia que

sente no seu interior. Assim, podemos afirmar que também em “Brazil” a crise identitária

pode ser advinda do ato de colonizar, pois essas relações relembram a maneira como Próspero

tratava seus outros na peça.

O Caliban de Marshall situa-se em crise devido à máscara que construíra ao longo de

sua vida artística. O seu personagem dos palcos incorporou-se à identidade de Heitor e se lhe

sobrepôs. Na busca em retomar a identidade supostamente perdida, tardiamente vê que é

inútil, pois a história interviera naquela identidade, que pensava estar intacta, em algum lugar.

Detectamos que tal conflito deve-se ao apagamento de sua identidade essencialista, quando

passa a incorporar o famoso personagem da Casa Samba.

Enfatizamos, no último capítulo, a indissociabilidade de lugar e identidade, posto que

só há produção desta a partir de um lugar. O espaço e suas categorias, presentes na narrativa,

foram instigadores do processo de (des)construção identitária do personagem O Grande

Caliban; de forma análoga, ele marcou os lugares por que passou. A cidade e seus contrastes,

e a noite e sua magia misteriosa contribuíram para o distanciamento da identidade do cidadão

Heitor Baptista Guimarães e a afirmação da de Caliban. Inicialmente percebida em seu

encanto de amante, a cidade e suas luzes, incluindo-se aí a Casa Samba, fascinam a Caliban,

arraigam-se no centro de seus afetos e acabam por definir a maneira como se concebe a si

mesmo. Ao sentir-se despertencente a esse entorno, e por ele traído, modifica-se também sua

própria percepção identitária, e em vão sai à busca saudosa de posições identitárias passadas.

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Através dessa pesquisa esperamos ter contribuído, em meio a outros estudos literários

que privilegiam a teoria do pós-colonialismo, para que “Brazil” obtenha reconhecimento entre

o meio acadêmico brasileiro. Reconhecemos que é uma obra rica em possibilidades

interpretativas, e que diferentes olhares e embasamentos críticos produzirão interpretações e

conclusões outras. Fica, pois, o convite a outras leituras desse conto, ainda tão pouco

conhecido entre nós, mas que tão de perto discute a própria identidade do Brasil, enquanto

símbolo de outros territórios colonizados.

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70

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