revisão científica do direito processual na segunda metade do século xix

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Revisão Científica do Direito Processual na Segunda Metade do Século XIX

Este trabalho desenvolve os seguintes tópicos do conteúdo programático da disciplina Teoria Geral do Processo:

2.1. Desenvolvimento científico do Direito Processual 2.2. Autonomia e publicização do Direito Processual 2.3. Unitarismo e dualismo na ciência do processo 2.4. Evolução e significação da parêmia 2.5. A elaboração de uma Teoria Geral do Processo 2.6. A tendência unificadora em suas manifestações doutrinárias e legislativa 2.7. Trilogia estrutural do processo: jurisdição, ação e processo.

Surgimento do direito processual moderno

O direito processual moderno começa a se formar com a vitória da Revolução Francesa no final do Século XVIII e a promulgação, já em 1807, do Código de Procedimento Civil, de matriz napoleônica, que vai exercer grande influência no direito continental europeu – de base romano-cânonica, já transformado no chamado direito comum.

À época, o processo civil francês trazia como características, de acordo com José Frederico Marques (Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1), a oralidade, a publicidade e o princípio dispositivo1, com eliminação de formalidade “inúteis e complicadas que abundavam no processo romano-canônico”.

Historicamente, o processo francês passa a inspirar, gradativamente, as legislações mais importantes do Século XIX, inclusive o direito processual alemão, segundo aponta Frederico Marques (op. cit.). Essa influência foi menor na legislação ibérica e nos países da América Latina, que permaneceram doutrinariamente presos aos princípios do jus commune.

Os principais doutrinadores do direito processual brasileiro, no entanto, consideram que o advento do processualismo científico, seu marco inicial, é a obra Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos Processuais, publicado na Alemanha em 1868 por Oscar Bullow. O pensamento de Bullow supera o até então vigente procedimentalismo inaugurado pela escola francesa.

1 Carreira Alvim (Teoria Geral do Processo) diz que o poder dispositivo é a liberdade que as pessoas têm de exercer ou não os seus direitos

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A evolução da doutrina processual

Até chegar a Bollow, o processo percorre séculos para a construção do seu objeto e a elaboração de um sistema de princípios vai permitir sua separação do direito material, tornando-se um ramo autônomo da ciência do direito. Usando conceitos estabelecidos por Alcalá-Zamora, Carreira Alvim (Teoria Geral do Processo) discrimina assim as etapas da evolução doutrinária do processo:

1) Primitivismo. Vai até o Século XI da Era Cristã. Inclui o processo romano e o processo germânico, este de fundo mítico-religioso, com práticas que representam um retrocesso para a processualística romana.

2) Judicialismo. Surge com a Escola dos Glosadores, no Século XI, em Bolonha, na Itália, continuada pelos Pós-Glosadores, formando um direito romano adaptado que, na doutrina processual, é chamado de processo comum medieval. Segundo Carreira Alvim (op. cit.), Bolonha representou para o direito processual o que Roma foi para o direito civil.

A etapa do Judicialismo ganhou seu nome devido ao uso generalizado do termo iudicium (juízo) na linguagem processual de então. O trabalho da Escola de Bolonha gerou o fenômeno denominado recepção, que significou a disseminação dos princípios pelos países europeus daquele direito, por interesse de monarcas que começam a centralizar seus reinos e dos tribunais eclesiásticos.

3) Praxismo. Esta fase do processualismo compreende os séculos XVI e XIX, no seu começo, época que perde espaço na Europa quando a França Napoleônica publica seu código de processo civil. O período ganhou esse nome porque o direito processual era considerado pelos jurisconsultos e operadores do direito como um conjunto de recomendações práticas (práxis) sobre os procedimentos do processo. Não havia preocupação com estudos teóricos. O interesse era estabelecer fórmulas de movimentação do processo.

4) Procedimentalismo. Surge com a Revolução Francesa e representou um grande avanço para o estabelecimento do direito processual, porque o processo deixou de ser feito segundo a prática e os costumes, passando a ter na lei a sua regulamentação. Antecede no

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Século XIX a obra de Bullow que inaugura o processualismo científico.

O procedimentalismo avança na Europa por conta da codificação napoleônica, que separa a legislação processual civil (1806) da legislação processual penal (1808) e essas duas dos respectivos direitos materiais. O método dos procedimentalistas também tinha pouca preocupação com a theoria, limitando-se a descrever os fenômenos processuais e realizar a exegese das normas, sendo por isso chamada de Escola da Exegese, que tinha como principal característica a interpretação mecânica das leis.

De acordo com Frederico Marques (Manual de Direito Processual Civil), os sistemas mais arcaicos de sistema processual, herdados do direito português, foram mantidos no Brasil até a edição do Código de Processo Civil, promulgado em 1939 por Getúlio Vargas, quando se começa uma renovação da processualística nacional.

O processualismo científico (autonomia e publicização)

Com a inovação trazida pelo livro de Bullow, o direito processual deixa de se ater à praxe ou à regulação dos processos, como ocorria nos períodos históricos anteriores. No livro Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos Processuais, o alemão separa o processo do mero procedimento, sendo o primeiro uma relação jurídica processual entre as partes e o juiz.

Segundo Alcalá-Zamora (apud Carreira Alvim), Bullow inova ao dar uma explicação publicista para a natureza jurídica do processo, que até então era explicado segundo concepções privatistas (contrato, quase contrato, etc). De acordo com o jurista espanhol, são estas as principais mudanças trazidas pelo trabalho de Bullow:

a) Independência do direito processual frente ao direito material. De acordo com Alcalá-Zamora, é o ponto alto iniciado os judicialistas da Escola de Bolonha e, posteriormente, com os procedimentalistas franceses.

b) Conceitos do direito processual (a ação, a jurisdição, o processo, etc.) são analisados por critérios científicos.

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c) A exegese da fase procedimentalista é superada pela abordagem de sistema.

d) Mudança nos enfoques e técnicas até então empregados para estudo da matéria processual, permitindo a construção de uma teoria do direito processual.

O desenvolvimento da doutrina processualista teve grande impulso na Alemanha, a partir da obra de Bullow. Em 1885, Adolf Wach publica a obra Manual de Direito Processual Civil Alemão, que estabelece o conceito de ação como direito público e autônomo.

Wach defende a tese de que a pretensão da tutela jurídica não é consequência do direito subjetivo, porque a pretensão à jurisdição do Estado não existe unicamente relacionada ao direito ameaçado. Como exemplo, cita a ação declaratória negativa, que não tem por finalidade proteger um direito subjetivo, mas manter a integridade da posição jurídica do polo ativo da demanda.

O mesmo Wach desenvolve e fortalece a tese na monografia Ação Declaratória, concebendo a ação como um direito subjetivo processual também de natureza pública, como Bulow já descrevera para o processo, e que não pressupõe, necessariamente, o direito subjetivo material.

Frederico Marques explica que o impulso de renovação científica no direito processual passa da Alemanha para a Itália, com Chiovenda, que criou uma nova sistematização doutrinária do processo partindo da conceituação publicista do processo civil e da ideia de autonomia do direito de ação formuladas por Bullow e Wach.

O trabalho na Itália é continuado por Carnelutti, que fixa as linhas funcionais do processo, mostrando a finalidade compositiva, e elabora a estruturação jurídica do processo de execução. O italiano também defende uma teoria processual unitária.

Carreira Alvim defende na sua obra que a autonomia do direito processual como disciplina autônoma da ciência do direito foi fruto da evolução alcançada pela processualística na segunda metade do Século XIX. De um lado, porque o processo ganhou contornos publicistas com Bullow e, assim, obteve sua autonomia ante o direito privado. De outro, pelas mãos de Wach, a ação se desvincula do direito material, estruturando-se como um direito subjetivo processual.

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Como ciência autônoma no campo da dogmática jurídica, o direito processual conquista seu objeto e seus princípios, destacando-se das demais ciências do direito.

O estabelecimento de dois direitos processuais

Quando a codificação napoleônica inicia o processo da dogmática jurídica imposto por meio da Escola da Exegese, uma das características é a racionalização do direito e sua separação em campos autônomos. O direito processual não escapa à essa lógica, quando o Estado francês separa a legislação processual civil (1806) da legislação processual penal (1808).

Essa divisão suscita debates que ainda não lograram consenso sobre a real divisão do direito processual. Carnelutti é um dos que defendem a tese de que os dois direitos processuais são dois ramos da mesma ciência. Carreira Alvim (op.cit.) destaca em sua obra os principais argumentos das duas correntes:

1. Unitaristas

1.1. o processo é sempre uma relação jurídica entre autor, juiz e réu, pouco importando se a natureza é penal ou não, porque sua constituição é necessariamente teleológica, é instrumento de composição;

1.2. o conceito de ação também é único, seja no processo penal ou no civil, constituindo-se como um direito subjetivo público de obter do Estado uma prestação jurisdicional;

1.3. do mesmo modo, o conceito de jurisdição é uno, porque a jurisdição civil e a jurisdição penal são critérios de divisão do trabalho, havendo inclusive cumulatividade dos dois conteúdos em determinados órgãos jurisdicionais;

1.4. os institutos do direito processual, em grande parte, são comuns, como as citações, a coisa julgada, as notificações, as intimações, as exceções processuais, a prova, a sentença, o recurso, etc;

2. Dualistas

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2.1. o objeto do processo penal é uma relação de direito público, enquanto o processo civil envolve, quase sempre, uma relação de direito privado;

2.2. o processo penal é normalmente indispensável para aplicação da lei penal, mas as relações de direito privado podem dispensar o processo civil;

2.3. o poder dispositivo das partes no processo penal é reduzido, diferentemente do que ocorre no processo civil;

2.4. como o processo penal é de interesse público, em geral indisponível, o conceito de partes não se aplica a ele;

2.5. o processo civil não é de exercício obrigatório, salvo em casos excepcionais, diferentemente do processo penal, quase sempre de obrigação funcional do Ministério Público.

Teoria Geral do Processo e suas consequências

Como consequência natural da tese unitarista, tem se desenvolvido a construção de uma teoria geral do processo. A teoria leva em conta que, sem defender uma identidade absoluta entre o processo civil e o processo penal, entre os dois há o que Carreira Alvim (op. cit.) chama “pilastras do ordenamento processual”.

Essas sustentações comuns aos dois tipos de processo seriam os conceitos de jurisdição, ação e processo, além de institutos como a citação, a notificação, a sentença, a coisa julgada, etc. A crescente inclusão da disciplina Teoria Geral do Processo na grade de currículo dos cursos de Direito reconhece essa realidade.

A tendência unificadora chegou à existência de um único código de processo em alguns estados brasileiros, antes que fosse introduzido o Código de Processo Civil de 1939, que tornou essa legislação prerrogativa exclusiva da União.

Trilogia Estrutural do Processo

Carreira Alvim (op.cit) explica que os conceitos de jurisdição, ação e processo estão interligados e compõem a trilogia estrutural do processo, de modo que um não pode ser concebido sem a existência do outro. O

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conceito foi estabelecido pelo argentino Ramiro Podetti, que viu entre eles a mesma identidade, seja no processo civil, seja no processo penal.

Podetti estabelece duas relações entre os três pilares do processo. Do ponto de vista que chama “genético-histórico”, teria nascido primeiro a ação, depois o processo e, por último, a jurisdição. De outro lado, sob o prisma lógico-doutrinário, afirma que primeiro vem a jurisdição, como órgão-função; depois a ação, como nexo entre o órgão e os sujeitos do processo; e por último o processo, “que se faz possível e se desenvolve graças à conjugação harmônica da jurisdição com a ação” (apud Carreira Alvim).

Conclusão

O direito processual, independentemente das posições divergentes entre unitaristas e dualistas, estabeleceu-se como ciência dogmático-jurídica. Como tal, possui seu próprio método, que é o técnico-jurídico. Como explica Frederico Marques (Manual de Direito Processual Civil), o método “consiste em partir das normas reveladas pelas fontes formais do direito objetivo para, em seguida, construir, ordenadamente, um sistema coerente de institutos, conceitos e princípios gerais, harmônicos com os valores e bens que, no setor do processo civil, informam a ordem jurídica e seus fins mais transcendentes”.

O mesmo autor sintetiza o patamar alcançado pelo direito processual – no seu caso, o direito processual civil – desde as elaborações de autonomização e publicização estabelecidas no final do Século XIX. Segundo ele, “o direito processual civil insere-se, atualmente, no campo da jurisprudência superior a que se referia Ihering, ao invés de configurar-se como departamento subalterno do direito privado, de que era acessório ou simples complemento”.

Bibliografia

Alvim, J.E. Carreira. Teoria Geral do Processo. 14ª edição. Editora Forense, Gen, 2014.

Marques, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil, Volume I. 9ª edição atualizada. Editora Millennium, 2003.

______________ . Instituições do Direito Processual Civil, Volume I. 1ª Edição. Editora Millennium, 2000.

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