reversão de intussuscepções intestinais por meio de...

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einstein. 2008; 6(3):359-61 RELATO DE CASO Reversão de intussuscepções intestinais por meio de enema guiado por ultra-sonografia: descrição de três casos Ultrasound-guided hydrostatic reduction of intestinal intussusception: description of three cases Martha Hanemann Kim 1 , Michelle Rosemberg 2 , Frederico Celestino Miranda 3 , Aureliano Torquato Brandão 4 , Rodrigo Gobbo Garcia 5 , Miguel José Francisco Neto 6 , Marcelo Buarque de Gusmão Funari 7 RESUMO Com o objetivo de divulgar a técnica de reversão hidrostática da intussuscepção intestinal, guiada por ultra-sonografia, são descritos três casos do diagnóstico confirmado da afecção, que foram submetidos à reversão por meio dessa técnica. Nos três casos a reversão foi atingida com sucesso, sem complicações. Um paciente apresentou recidiva da invaginação após oito dias do tratamento, sendo submetido à correção cirúrgica. A técnica de reversão hidrostática de intussuscepção intestinal guiada por ultra-som pode ser utilizada no lugar do enema opaco convencional apresentando- se como um método pouco invasivo, seguro, com altos índices de sucesso e poucas complicações. Descritores: Enema/métodos; Ultra-sonografia; Intussuscepção; Obstrução intestinal; Resultado de tratamento; Relatos de casos ABSTRACT With the objective of reporting the technique of ultrasound-guided hydrostatic reduction of intestinal intussusception, three cases with confirmed diagnosis of the disease submitted to reduction with this technique are described. All cases had successful reductions with no complications. One patient experienced a recurrence of the invagination eight days after treatment, which was surgically corrected. The technique of hydrostatic reversal of intestinal intussusception guided by ultrasound may be used in place of the conventional barium enema, since it is a minimally invasive and safe method, with high rates of success and few complications. Keywords: Enema/methods; Ultrasonography; Intussusception; Intestinal obstruction; Treatment outcome; Case reports INTRODUÇÃO A intussuscepção intestinal é definida pela invaginação de um segmento intestinal para a luz de um segmento ajusante. Corresponde a 1% das obstruções intestinais (1) e, é a causa mais comum de obstrução intestinal em lac- tentes, ocorrendo com maior freqüência no primeiro ano de vida. Na maior parte dos casos não há fatores predis- ponentes detectáveis e, em apenas 2 a 8% dos casos é encontrada a causa da invaginação, que pode ser de- corrente de divertículo de Meckel, linfoma de íleo ter- minal, pólipo intestinal ou outros (1) . Em adultos, sua ocorrência está relacionada com neoplasias em 65% das vezes (1-2) . A forma mais comum tem início na válvula ileocecal ou ileocecocólica, mas também pode ser do tipo ileocó- lica e colocólica (1) . A tríade clinica clássica, composta de dor abdomi- nal aguda, sangue nas fezes com aspecto de geléia (so- frimento de alças) e massa palpável, está presente em apenas 50% das crianças com invaginação intestinal (3) . O diagnóstico radiológico é patognomônico quando há a aparência de alça dentro de alça (Figuras 1A e 1B), Trabalho realizado no Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 1 Preceptora da Residência Médica do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 2 Residente de Radiologia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 3 Pós-graduando do Curso de Ultra-sonografia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 4 Radiologista do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 5 Radiologista do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 6 Doutor; Médico Assistente da Divisão de Ultra-sonografia do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, São Paulo (SP), Brasil; Coordenador da Residência Médica do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 7 Doutor; Médico Assistente da Divisão de Tomografia do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, São Paulo (SP), Brasil; Coordenador do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. Autor correspondente: Martha Hanemann Kim – Rua Prefeito Prestes Maia, 247 – Vila Zampol – CEP 09424-310 – Ribeirão Pires (SP), Brasil – e-mail: [email protected] Data de submissão: 13/9/2007 – Data de aceite: 11/6/2008

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einstein. 2008; 6(3):359-61

relato de caso

Reversão de intussuscepções intestinais por meio de enema guiado por ultra-sonografia: descrição de três casos

Ultrasound-guided hydrostatic reduction of intestinal intussusception: description of three cases

Martha Hanemann Kim1, Michelle Rosemberg2, Frederico Celestino Miranda3, Aureliano Torquato Brandão4, Rodrigo Gobbo Garcia5, Miguel José Francisco Neto6, Marcelo Buarque de Gusmão Funari7

resUMoCom o objetivo de divulgar a técnica de reversão hidrostática da intussuscepção intestinal, guiada por ultra-sonografia, são descritos três casos do diagnóstico confirmado da afecção, que foram submetidos à reversão por meio dessa técnica. Nos três casos a reversão foi atingida com sucesso, sem complicações. Um paciente apresentou recidiva da invaginação após oito dias do tratamento, sendo submetido à correção cirúrgica. A técnica de reversão hidrostática de intussuscepção intestinal guiada por ultra-som pode ser utilizada no lugar do enema opaco convencional apresentando-se como um método pouco invasivo, seguro, com altos índices de sucesso e poucas complicações.

descritores: Enema/métodos; Ultra-sonografia; Intussuscepção; Obstrução intestinal; Resultado de tratamento; Relatos de casos

aBstractWith the objective of reporting the technique of ultrasound-guided hydrostatic reduction of intestinal intussusception, three cases with confirmed diagnosis of the disease submitted to reduction with this technique are described. All cases had successful reductions with no complications. One patient experienced a recurrence of the invagination eight days after treatment, which was surgically corrected. The technique of hydrostatic reversal of intestinal intussusception guided by ultrasound may be used in place of the conventional barium enema, since it is a minimally invasive and safe method, with high rates of success and few complications.

Keywords: Enema/methods; Ultrasonography; Intussusception; Intestinal obstruction; Treatment outcome; Case reports

INtrodUÇÃoA intussuscepção intestinal é definida pela invaginação de um segmento intestinal para a luz de um segmento ajusante. Corresponde a 1% das obstruções intestinais(1) e, é a causa mais comum de obstrução intestinal em lac-tentes, ocorrendo com maior freqüência no primeiro ano de vida.

Na maior parte dos casos não há fatores predis-ponentes detectáveis e, em apenas 2 a 8% dos casos é encontrada a causa da invaginação, que pode ser de-corrente de divertículo de Meckel, linfoma de íleo ter-minal, pólipo intestinal ou outros(1). Em adultos, sua ocorrência está relacionada com neoplasias em 65% das vezes(1-2).

A forma mais comum tem início na válvula ileocecal ou ileocecocólica, mas também pode ser do tipo ileocó-lica e colocólica(1).

A tríade clinica clássica, composta de dor abdomi-nal aguda, sangue nas fezes com aspecto de geléia (so-frimento de alças) e massa palpável, está presente em apenas 50% das crianças com invaginação intestinal(3).

O diagnóstico radiológico é patognomônico quando há a aparência de alça dentro de alça (Figuras 1A e 1B),

Trabalho realizado no Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 1 Preceptora da Residência Médica do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 2 Residente de Radiologia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 3 Pós-graduando do Curso de Ultra-sonografia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 4 Radiologista do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 5 Radiologista do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 6 Doutor; Médico Assistente da Divisão de Ultra-sonografia do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, São Paulo (SP), Brasil; Coordenador da Residência

Médica do Serviço de Ultra-sonografia do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.7 Doutor; Médico Assistente da Divisão de Tomografia do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, São Paulo (SP), Brasil; Coordenador do Departamento

de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

Autor correspondente: Martha Hanemann Kim – Rua Prefeito Prestes Maia, 247 – Vila Zampol – CEP 09424-310 – Ribeirão Pires (SP), Brasil – e-mail: [email protected]

Data de submissão: 13/9/2007 – Data de aceite: 11/6/2008

einstein. 2008; 6(3):359-61

360 Kim MH, Rosemberg M, Miranda FC, Brandão AT, Garcia RG, Francisco Neto MJ, Funari MBG

podendo ou não conter gordura e vasos mesentéricos invaginando-se para o seguimento acometido(1). Assim como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética(1), a ultra-sonografia pode ser utilizada para o diagnóstico, com a grande vantagem de permitir a realização de enema com soro fisiológico, que consiste em uma terapêutica minimamente invasiva, por meio da qual pode-se acompanhar, em tempo real, com con-fiabilidade e altos índices de sucesso(4), todo o processo até a reversão. Casos de reversão espontânea também podem ser surpreendidos pela ultra-sonografia(5-6).

A utilização da ultra-sonografia permite que se subs-titua o bário ou o ar pelo soro fisiológico como meio de contraste, aumentando ainda mais a segurança do pro-cedimento, uma vez que o soro é menos prejudicial em caso de complicações (perfuração intestinal, peritonite ou choque séptico) no transcorrer do tratamento e se houver indícios de complicações deve-se optar por re-solução cirúrgica(3).

relato dos casos Foram acompanhados três pacientes com o diagnósti-co confirmado de invaginação intestinal, prontamente submetidos à reversão por meio de enema guiado por ultra-sonografia. Todos apresentavam fluxo intestinal detectável ao estudo com Doppler colorido.

Após sedação anestésica, os pacientes foram sub-metidos à cateterização retal por meio de sonda de Foley número oito, através da qual foi instilada so-

Obtivemos sucesso técnico em todos os casos, em um tempo médio de dez minutos do início da terapia e não houve complicações imediatas.

Um paciente apresentou recidiva da invaginação após oito dias do tratamento, sendo submetido à cor-reção cirúrgica.

a

B

Figuras 1a e 1B. Imagens compatíveis com alça dentro de alça localizada no hipocôndrio direito, correspondendo à invaginação ileocecal, associada a discreto espessamento parietal

Figuras 2a, 2B e 2c. Imagens demonstrando redução hidrostática guiada por ultra-sonografia. Procedimento efetuado sob sedação

B

c

a

lução fisiológica a 0,9% aquecida a 37 °C, sem pres-surização, com a bolsa posicionada cerca de 100 cm acima do nível do paciente. A progressão da solução salina até o ponto de invaginação foi acompanhada exclusivamente por meio de monitorização ultra-so-nográfica (Probe L12-5 do aparelho HDI 5000, Phi-lips®); vejamos as Figuras 2A, 2B, 2C e 3. A reversão era acelerada por meio de manobras compressivas e lateralizações do decúbito. A Figura 4 mostra a asso-ciação com Doppler colorido que permite avaliar o estado de sofrimento da alça.

einstein. 2008; 6(3):359-61

Reversão de intussuscepções intestinais por meio de enema guiado por ultra-sonografia: descrição de três casos 361

Figura 4. A análise com Doppler colorido mostra fluxo parietal nas alças, demonstrando viabilidade das mesmas

dIscUssÃoO enema é um método pouco invasivo, que permite a resolução eficaz da invaginação intestinal. A ultra-sonografia por meio de transdutores de alta resolução permite a monitorização adequada do procedimento, dispensando a utilização de radiação ionizante em uma população essencialmente pediátrica. A associação ao Doppler colorido possibilita aferição indireta da viabili-dade da alça intestinal acometida podendo-se inferir o seu estado de sofrimento(3). Há contra-indicação relati-

va ao procedimento em casos de hipoperfusão intesti-nal, identificável pelo método.

O uso de anestesia geral torna o procedimento mais confortável ao paciente, aumentando a eficácia do méto-do, uma vez que reduz a espasticidade dos segmentos in-testinais acometidos e torna mais eficientes as manobras de compressão abdominal e as mudanças de decúbito, por eliminar a agitação motora e a tensão muscular.

A utilização do soro fisiológico aquecido instilado sem pressurização permite uma reversão intestinal me-nos traumática, reduzindo a taxa de complicações.

coNclUsÕesAcreditamos que o uso do enema guiado por ultra-sonografia possa ser utilizado no lugar do enema opa-co convencional na reversão da invaginação intestinal, além de apresentar-se como um método minimamente invasivo, seguro, com altos índices de sucesso e poucas complicações, sendo atualmente utilizado como primei-ra opção em nossa instituição.

reFerÊNcIas1. Warshauer DM, Lee JK. Adult intussusception detected at CT or MR imaging:

clinical-imaging correlation. Radiology.1999;212(3):853-60.

2. Kim YH, Blake MA, Harisinghani MG, Archer-Arroyo K, Hahn PF, Pitman MB, et al. Adult intestinal intussusception: CT appearances and identification of a causative lead point. Radiographics. 2006;26(3):733-44.

3. del-Pozo G, Albillos JC, Tejedor D, Calero R, Rasero M, de-la-Calle U, et al. Intussusception in children: current concepts in diagnosis and enema reduction. Radiographics.1999;19(2):299-319.

4. Yoon CH, Kim HJ, Goo HW. Intussusception in children: US-guided pneumatic reduction – initial experience. Radiology.2001;218(1):85-8.

5. Swischuk LE, John SD, Swischuk PN. Spontaneous reduction of intussusception: verification with US. Radiology.1994;192(1):269-71.

6. del-Pozo G, Albillos JC, Tejedor D. Intussusception: US findings with pathologic correlation – the crescent-in-doughnut sign. Radiology.1996;199(3):688-92.

Figure 3. Ultrasound control after hydrostatic reduction. Observe slight residual parietal edema and small amount of free peritoneal fluid