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Sobral, ano 3, v.1, n. 4, p.16-34, Jan -jun. 2014. 16 2. REZADORES E AS PRÁTICAS DE CURA NO ITINERÁRIO DA RELIGIOSIDADE POPULAR EM SOBRAL CHANTERS AND PRACTICES IN THE HEALING JOURNEY OF PEOPLE IN RELIGIOSITY SOBRAL RESUMO No presente artigo fazemos uma análise de uma prática ainda muito comum no itinerário do sertanejo que embora diante de uma sociedade em constante busca pela modernidade, permanece buscando a solução de seus problemas, sejam de saúde ou até mental nas práticas do rezadores e benzedores.Nisso coletamos duas entrevistas de pessoas que ainda lutam para que estas práticas permaneçam vivas no meio do sertão cearense, mostrando ainda que estas práticas se fazem presentes na sua maioria no meio rural, mas permanecem presentes mesmo no meio urbano, mas com grande resistência. O fato é que quanto maior a cidade e mais longe do meio rural, mais difíceis de encontrar estes rezadores, mesmo que encontremos diversas pessoas que ainda tem fé nestas práticas. Isso por conta de suas origens e até como e onde cresceram e foram criadas. Permeamos sobre a importância dada ao rito por essas pessoas e a sacralidade colocado pelos adeptos que na maioria dos casos são pessoas de práticas religiosas ligadas ao catolicismo romano, que por sua vez convive com estas práticas de maneira um tanto omissa se abstendo de conflitos e coletando o que bom destas práticas para as práticas oficiais da religião. Palavras-chaves: rezadeiras – religiosidade – historia social. ABSTRACT In this article we analyze a practice still very common in the backcountry route that although faced with a society in constant search for modernity, remains seeking the solution of their problems, whether mental health or even in the chanters and healers practices. It collect two interviews of people who are still struggling to these practices remain alive in the middle of Ceará hinterland, still showing that these practices are present mostly in rural areas, but remain present even in urban areas, but with great resistance. The fact is that the larger the city and further away from rural areas, more difficult to find these chanters, even we find many people who still have faith in these practices. This because of its origins and even how and where they grew up and were created. Permeate on the importance given to the rite by these people and the sacredness posed by fans who in most cases are people of religious practices related to Roman Catholicism, which in turn live with these practices in a somewhat silent abstaining conflict and collecting what good these practices for official practices of religion. Keywords: mourners - religion - social history. Francisco Wellington Rodrigues de Carvalho- Especialista em Historia - INTA

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Page 1: RESUMO - UNINTA - Centro Universitáriointa.com.br/biblioteca/images/pdf/art-2-rev-4.pdf · RESUMO No presente artigo ... São pessoas simples ... desgarrado pela igreja e acaba por

Sobral, ano 3, v.1, n. 4, p.16-34, Jan -jun. 2014.

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2. REZADORES E AS PRÁTICAS DE CURA NO ITINERÁRIO DA RELIGIOSIDADE POPULAR EM SOBRAL CHANTERS AND PRACTICES IN THE HEALING

JOURNEY OF PEOPLE IN RELIGIOSITY SOBRAL

RESUMO

No presente artigo fazemos uma análise de uma prática ainda muito comum no itinerário do sertanejo que embora diante de uma sociedade em constante busca pela modernidade, permanece buscando a solução de seus problemas, sejam de saúde ou até mental nas práticas do rezadores e benzedores.Nisso coletamos duas entrevistas de pessoas que ainda lutam para que estas práticas permaneçam vivas

no meio do sertão cearense, mostrando ainda que estas práticas se fazem presentes na sua maioria no meio rural, mas permanecem presentes mesmo no meio urbano, mas com grande resistência. O fato é que quanto maior a cidade e mais longe do meio rural, mais difíceis de encontrar estes rezadores, mesmo que encontremos diversas pessoas que ainda tem fé nestas práticas. Isso por conta de suas origens e até como e onde cresceram e foram criadas. Permeamos sobre a importância dada ao rito por essas pessoas e a sacralidade colocado pelos adeptos que na maioria dos casos são pessoas de práticas religiosas ligadas ao catolicismo romano, que por sua vez convive com estas práticas de maneira um tanto omissa se abstendo de conflitos e coletando o que bom destas práticas para as práticas oficiais da religião. Palavras-chaves: rezadeiras – religiosidade – historia social.

ABSTRACT

In this article we analyze a practice still very common in the backcountry route that although faced with a society in constant search for modernity, remains seeking the solution of their problems, whether mental health or even in the chanters and healers practices. It collect two interviews of people who are still struggling to these practices remain alive in the middle of Ceará hinterland, still showing that these practices are present mostly in rural areas, but remain present even in urban areas, but with great resistance. The fact is that the larger the city and further away from rural areas, more difficult to find these chanters, even we find many people who still have faith in these practices. This because of its origins and even how and where they grew up and were created. Permeate on the importance given to the rite by these people and the sacredness posed by fans who in most cases are people of religious practices related to Roman Catholicism, which in turn live with these practices in a somewhat silent abstaining conflict and collecting what good these practices for official practices of religion. Keywords: mourners - religion - social history.

Francisco Wellington Rodrigues de

Carvalho- Especialista em Historia - INTA

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INTRODUÇÃO

A religiosidade popular do povo nordestino vem ao longo de anos alimentando

a fé e um povo muitas vezes sofrido que encontram nas crenças alimento espiritual

como motivação para viver.

Estudiosos de diversas áreas, entre elas a história, as ciências sociais,

antropologia, psicologia e filosofia, tem analisado este fenômeno tão presente na vida

do povo, contribuindo com novas ideias e perspectivas que possam trazer benefícios e

esclarecimentos a esse povo.

Dentro desde contexto faremos uma analise do uso das rezas pelos rezadores e

curandeiras nas proximidade de Sobral, práticas conhecidas e alimentadas por muitos,

tendo como finalidade estreitar laços com o sagrado, trazendo aos necessitados as

curas solicitadas, maneiras a solucionar a vida, amenizando de certa forma o

sofrimento do povo, que se utiliza destas práticas a fim de dar sentido a sua vida de

religiosidade. Os rezadores tem participado da vida do fiel com uma certa

familiaridade de laços que são estreitados a cada “consulta”, que ao longo do tempo

vem aumentando a confiança do povo, de acordo com o nível de graça alcançada em

seu favor.

O trabalho procura mostrar como os rezadores tem participado da vida do povo

e qual a reação do povo em acreditar nestes homens e mulheres que mesmo sem um

vinculo oficial com a igreja acabam ganhando espaço entre os fiéis que acabam dando

fortes credenciais a eles, além de divulgar a eficácia de suas rezas. São pessoas simples

que utilizam-se das rezas juntamente com a medicina natural na possibilidade de

chegar a cura do pedinte. Entre tantas expressões de crenças, seja na devoção dos

santos, nas celebrações católicas, ou nas práticas de outras crenças que alimentam o

sincretismo religioso, os rezadores irradiam confiança e carisma, sendo procurados

ainda hoje como auxílio na solução de problemas emocionas, físicos e espirituais. A

rezadeira Maria Eudina Marciel ao falar sobre suas práticas ensina uma de suas rezas:

A reza é tão simples, por que a reza de engasgo é uma coisa até interessante, reza de engasgo é assim; casa molhada esteira roda, peixe grande peixe miúdo, homem bom e mulher má,

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Jesus Cristo falo que a espinha que tiver no pescoço de gente lá, sobe e desce cai do pescoço, num é coisa simples? Essa aí é a cura do engasgo, se a pessoa tiver fé sai imediatamente.1

O CATOLICISMO COMO ASPECTO FUNDANTE DO SER BRASILEIRO.

Embora conheçamos a constate crescência de outras ramificações religiosas no

Brasil, o brasileiro na sua formação política-cultural é um povo católico, que mesmo

não sendo o catolicismo próprio do nosso país se fez o maior país católico do mundo

devido a grande proliferação do mesmo durante todos estes anos. De acordo com

Ribeiro (1994; p.57):

O brasileiro é um povo religioso e se autoconcede assim. À base deste sentimento religioso vige predominantemente um certo catolicismo, desde a ocupação portuguesa até hoje. Não significa isto, contudo, que o catolicismo aqui seja necessariamente o mesmo que a Igreja católica – enquanto instituição – concebe hoje. Um sentimento difuso é o substrato comum dos diversos níveis religiosos brasileiros, e é neste contexto que se entende o “Brasil como maior país católico do mundo”.

Embora que seja considerado o maior país católico do mundo, o Brasil tem

peculiaridades religiosas que diferencia a crença existente no pais com o restante do

mundo. A questão é que o brasileiro é um ser difuso que de alguma maneira se

mantêm no processo de invenção de suas crenças e adaptando outras as suas

necessidades cotidianas o que caracteriza o chamado sincretismo religioso. Para

Ribeiro (1994;57) ser católico é algo “natural” para todo brasileiro, pois ser católico é,

sobretudo ser nacional. Porém Brandão (1988, p. 47) faz o seguinte alerta:

1 Entrevista com Maria Eudina Marciel, 68 anos, natural de Sobral Dt de Patos residente em

Aracatiaçu, rezadeira. Realizada dia 22/11/2010.

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Atenção: isto não significa que ele é demograficamente a religião de uma maioria informada, de iguais praticantes: significa antes que o catolicismo é socialmente a possibilidade de todas as categorias de sujeitos sociais possuírem uma mesma religião e diferenciarem em seu interior, modalidades próprias de sua religiosidade.

A crença religiosa no Brasil se dá de maneira bem complexa, principalmente o

Catolicismo por ser a maior e mais presente opção religiosa no itinerário do povo. O

brasileiro na sua maioria aprendeu a moldar a religião a sua maneira de acordo com a

sua necessidade, fazendo dentro do Catolicismo várias interpretações próprias e

transformando a sua crença própria em uma convicção muitas vezes imutável. O

brasileiro de alguma maneira reinventou uma forma própria de ser católico, como que

ampliando as possibilidades de integração com o sagrado. A partir disso percebemos o

enfraquecimento do que seria uma crença fundamentada da Sé romana perpassando

pouco a pouco para uma tradição que embora para muitos continue fincada na Igreja

Católica, muito se difere da profissão de fé da religião.

Este fenômeno católico brasileiro é estudado por muitos, Sanchis (1992, p. 33)

trata como uma roupagem “singularmente plural”, isso porque é única, as diversas

formas encontradas por este povo para se relacionar com o sagrado, citando que há

religiões demais nesta religião, não dando para situar o catolicismo brasileiro num

quadro de homogeneidade.

Vale ressaltar que existem muitos estilos culturais de ser católico, como vêm

mostrando os estudiosos que se debruçam sobre esse fenômeno. São malhas

diversificadas de um catolicismo, ou se poderia mesmo falar em catolicismos, tão

necessários para o brasileiro como o catolicismo romano, pois muitos se agarram nele

como base de sustentação para as situações atuais da vida, seja na figura dos santos,

ocupando um lugar de destaque na vida do povo, manifestando a presença de um

“poder” especial e sobre-humano, que penetra nos mais diversos espaços de vida e

favorece, numa estreita aproximação e familiaridade com seus devotos, a proteção

diante das incertezas da vida.

Seja na figura de padres considerados midiáticos que adentrando no mundo da

mídia, valorizam a evangelização através de lançamento de CDs com músicas sacras a

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fim de propiciar o povo uma estreita relação com o sagrado, ou seja, na aproximação

de movimentos para facilitar o alcance transcendental. Temos como por exemplo: a

Renovação Carismática Católica - RCC, os movimentos das Novas Comunidades,

Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, movimentos pastorais, entre outros.

Independente de viver o Catolicismo na sua essência ou ramificações deste, ou

ainda algumas das ramificações deste, muitos fiéis se auto denominam como católico

praticante ou não praticante. Um bom exemplo é a fala de Riobaldo, personagem de

Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.

Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio…Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, ou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa pecador, lê alto a Bíblia […]. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. (ROSA, 1965)

Assim se faz um povo católico na sua maioria, mas que pode ser também

adepto do candomblé, da umbanda, do espiritismo ou de outra religião de origem

africana, indígena, asiática ou norte-americana, isso por que a ideia de que o Brasil é

um povo católico faz parte da imagem que o povo brasileiro tem seu próprio caráter

nacional, Azevedo (1969) apud Ribeiro (1994), faz um desafio a este conceito

considerando a superficialidade da religiosidade ou catolicidade do brasileiro,

denunciava em consequência o que chamou de “ilusão da catequese”, onde muitos

professam o seu catolicismo em palavras e não em práticas. Conforme é citado: “[…] A

ideia de Brasil como país católico persiste como uma espécie de ideologia tanto

eclesiástica quanto secular em que se fundam a pastoral tradicional e as posições do

Estado e das instituições civis em face da Igreja”. (Azevedo (1969) apud RIBEIRO, 1994,

p. 62).

Assim a formação do Catolicismo popular que professa estar ligado à Igreja

enquanto Sé Romana, mas por outro lado se transforma em uma fé popular em que a

crença é facilmente moldada a costumes e práticas muitas vezes desvinculadas do

Catolicismo romano. Ramificando esta crença em função de novas realidades, o

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Catolicismo popular tem adentrado o cotidiano do nordestino de uma maneira que o

Catolicismo romano não conseguiu entrar durante anos. A crença popular é mais

influente no cotidiano do sertanejo do que qualquer outra crença, isso mostra o poder

que estas crenças têm no itinerário do povo que durante muito tempo ficou

desgarrado pela igreja e acaba por formular para si novas crenças a fim de suprir suas

necessidades de proximidades com o sagrado.

Para Hoornaert (1991, p.99) o termo catolicismo popular não é o mais

apropriado para tratar do assunto, todavia, quando se menciona esse termo, já se

entende que queremos tratar do catolicismo vivido pelos pobres em geral, podemos

perceber que a vivência dele é bem mais comum no interior do Brasil do que do

Catolicismo respeitado durante anos como patriarcal. De acordo com o autor acima

citado;

[…] Uns negam simplesmente a existência de um catolicismo popular distinto do catolicismo estabelecido ou patriarcal: no Brasil só há um catolicismo que constitui o “cimento da unidade nacional”. Outros aceitam o catolicismo popular mas lhe negam toda originalidade e todo valor: o catolicismo vivido pelo povo é simplesmente a interiorização dos temas apresentados pela religião dominante. A nossa posição é a seguinte: existe um catolicismo distinto do catolicismo patriarcal. O povo tem uma cultura própria e podemos mesmo afirmar que o catolicismo popular constitui a cultura mais original e mais rica que o Brasil já produziu durante os quatrocentos e tantos anos de história. […] (Ibid, 1991, p. 99)

Embora muitos não considerem a existência de outro catolicismo, nós que

habitamos o Nordeste brasileiro, por dispormos de um olhar mais apurado, logo

percebemos que tal catolicismo se faz presente na vida das pessoas de maneira a se

confundir muitas vezes com que é pregado pela Igreja. Desde a colonização a religião

tornou-se um ponto de encontro entre as culturas, mesmo que isto tenha acontecido

por meio de grandes conflitos de ideias e interesses, encontro este que era muito

usado pela Igreja como uma forma de integrar a cultura deles ao Catolicismo romano

pouco difundido no meio dos pobres. Todavia para muitos esta integração servia como

um objeto alienador bem característico da religião e muito bem utilizado pela Igreja,

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não somente alienador, mas como ferramenta de opressão própria para época que

tinha alguns vínculos com os costumes religiosos medievais.

A religiosidade popular, como já falamos, faz parte da vida do religioso, onde

ele se utiliza dela para estreitar os seus laços com o sagrado independente de como

isso seja feito. Quanto a isso o Catecismo da Igreja Católica (CIC) cita:

[…] O senso religioso do povo cristão encontrou, em todas as épocas, sua expressão em formas diversas de piedade que circulam a vida sacramental da Igreja, como a veneração de relíquias, visitas a santuários, peregrinações, procissões, via-sacra, danças religiosas, o rosário, as medalhas etc. Estas expressões prolongam a vida litúrgica da Igreja, mas não a substituem: “Considerando os tempos litúrgicos, estes exercícios devem ser organizados de tal maneira que condigam com a sagrada liturgia, dela de alguma forma derivem, para ela encaminhem o povo, pois que ela, por sua natureza, em muitos os supera”. Há necessidade de um discernimento pastoral para sustentar e apoiar a religiosidade popular e, se for o caso, para purificar e retificar o sentido religioso que embasa essas devoções e para fazê-las progredir no conhecimento do mistério de Cristo. Sua prática está sujeita ao cuidado e julgamento dos bispos e às normas gerais da Igreja. (CIC, 2000, p.457.)2

Podemos observar a partir do que foi colocado no Catecismo, que atualmente,

a igreja aceita a religiosidade popular, porém deixa restrições de acordo com a Santa

Sé. Nisso percebemos que com o passar do tempo a igreja aprendeu a utilizar do

mesmo meio de evangelização, a religiosidade popular acaba sendo uma “arma” a fim

de dar força a crença transmitida. De acordo com Mauss (1909, p.137);

Entre os atos da vida religiosa há os que são tradicionais, quer dizer, realizados segundo uma forma adotada pela coletividade ou por uma autoridade reconhecida. Outros, ao contrário, por exemplo as práticas individuais do asceticismo, são rigorosamente pessoais; não são repetitivas, não estão submetidas a qualquer regulamentação. Os fatos que se designam corretamente sob o nome de ritos cabem

2 Grifos meus.

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evidentemente na primeira categoria. Mas quando deixam o máximo de lugar à individualidade, há sempre neles algo de regulamente.

Assim as práticas religiosas são necessárias e por isso na ausência da igreja para

fazê-las, a tendência do povo é suprir as necessidades por si só, como mostram prática

do catolicismo na região Nordeste do Brasil, em que o número de “católicos

praticantes”, ao contrário da tradição protestante, é reduzido se comparado com a

grande massa dos católicos, que mantêm “frágeis vínculos” com as práticas oficias do

catolicismo.

Ao contrário do fiel protestante, que “precisa ser para participar”, o fiel católico

pode muito bem “participar sem ser”, ou participar a seu modo num quadro amplo e

plural de maneiras de exercer sua vinculação. A plasticidade dos modos de ser católico

no Brasil é expressão de uma genuinidade brasileira, caracterizada pela grande amplia-

ção das possibilidades de comunicação com o sagrado ou com o “outro mundo”. O que

para o protestante tradicional ou católico romanizado seria expressão de pernicioso

sincretismo ou superstição, para boa parte dos fiéis significa um modo de alargar as

possibilidades de proteção. (Brandão, 1988, p. 51)

Ainda assim a religiosidade popular pode surgir com várias faces, o que para

Hoornaert (1991, p. 99) é caraterizado em dois momentos, onde no primeiro momento

de revolta pela situação vivida (sofrimentos, doenças, fome e etc.) expressada através

de murmúrios, e um segundo de resposta a esta revolta, com uma frase curta para

simplificar a solução, “se Deus quiser” (se Deus quiser você vai passar, se Deus quiser

vai ficar bom, se Deus quiser vai melhorar.) a fim de solucionar os questionamentos

com uma simples resposta a eles, numa atitude conformista aos desígnios do Criador

que tudo pode solucionar. De acordo com o autor acima citado;

[…] Frequentemente surge por ocasião da revolta diante de uma determinada situação dolorosa ou injusta: eis o primeiro momento, genuíno e original, da expressão religiosa do povo pobre. O pobre não se conforma, apela para Deus-Pai, cuja justiça e bondade invoca, e este apelo já contém os elementos essenciais da fé cristã: Deus é Pai, e todos nós somos irmãos.[…] (Ibid, p. 99)

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Vemos assim que a condição de sofrimento estava decretada ao pobre como

definição própria do destino, em que a religião neste contexto não seria simplesmente

elemento dominador, mas continha intrinsecamente nela um viés singular de

originalidade em que a ambiguidade que se faz presente neste contexto, embora

consciente disto abafe sua consciência em função da tradicional sabedoria de

conformismo e paciência fatalista perpassada durante anos.

Além do que, quanto à questão do conformismo não poderíamos tratar como

uma imposição da Igreja sobre o pobre simplesmente, pois desta maneira estaríamos

sendo anacrônicos, considerando ser própria da época tal consciência, tempos m que

mesmo o rico pensava assim, o fato de não ser abordado por este lado é que para eles

era bem mais cômodo e até inquestionável. Por esses fatores é que podemos assim

analisar que expressões como as citadas acima permanecem no linguajar do povo, seja

rico, ou seja pobre. Assim como muitas práticas do catolicismo popular eram práticas

de todos e durante muito tempo permaneceu sendo a forma correta de interpretar o

catolicismo, poderíamos levar em consideração que ainda hoje, com o advento da

modernidade e mesmo da contemporaneidade, ritos permanecem nos costumes do

povo e muitos são vistos pela Igreja local como que necessários para manutenção do

culto católico na região, tudo por conta da enraizada tradição que perpassa há várias

gerações. Para isso Amaral (2006, p.81) faz a seguinte menção:

No topo, há um clero secular de hábitos mundanos, obedientes

ao Estado não à Santa Sé; temos uma elite que é católica

apenas nominalmente, marcadamente indiferentista, não se

aferrando a qualquer ortodoxia; na base, a multidão dos fiéis

que segue suas próprias tradições centenárias e vive uma

religião familiar, doméstica e cotidiana. (AMARAL, 2006, p.81-

82).

Para conhecermos a história da Igreja e consequentemente da evangelização

em nossa terra, é indispensável o tratamento do fenômeno da religiosidade popular

que, às vezes, antecede o catolicismo oficial, mas, de qualquer forma o acompanha,

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não sem tensões e conflitos, demostrando as mentalidades e as práticas de fé do povo

que vive sua religião cotidiana. De acordo Matos (2001, p.198):

Há uma nítida ligação entre fé e vida, manifestada, por exemplo, em orações para afastar inimigos, curar doenças ou em atos penitenciais para pedir chuva em época de seca prolongada. Semelhante experiência é testemunhada e comunicada aos outros mediante sinais externos e, muitas vezes, públicos. Mas não se trata apenas de exterioridades, vazias de conteúdo espiritual e hipertrofiadas por emoções ou direcionadas essencialmente ao prático e ao imediato. Pelo contrário, na autentica religiosidade popular – não obstante parecerem suas formas, às vezes, um tanto bizarras – esconde-se uma impressionante profundidade religiosa.

Com isso nota-se facilmente que a devoção nasce, geralmente, da crença em

determinados poderes sobrenaturais, seja em superstições, seja em lendas, ou ainda

através das tradições, ultrapassando várias gerações. A partir de tal fato, podemos

perceber a penetração do santo de devoção que é frequentemente ligado a esses

poderes ou ainda a um acontecimento extraordinário, milagre ou algo do gênero que

ocorreu ou que ouviu-se dizer que tenha ocorrido, ou ainda relacionado com curas a

parti de orações feitas, seja por rezadeiras, benzedeiras ou a D. Maria do St. Vizinho:

“Muitos vem é daí do hospital sem saber o que é…rezo e fica bom, aqui se reza pra

tudo, num esse negócio não…”

Assim permanecem as práticas dos rezadores, homens e mulheres simples, que

habita no meio de um povo simples, muitas das vezes sem instrução, entre eles; mães,

pais, donas de casa, avós, trabalhadeiras e homens do campo que angariam um

número de adeptos, que comentam com orgulho das vezes que se utilizaram das rezas

destas mulheres e homens de fé. Estas pessoas seja no espaço urbano e rural, mas na

sua maioria rural, estão sempre dispostas a ajudar aos necessitados, acreditando numa

missão recebida do céu.

O que facilmente percebemos é que são pessoas inseridas no meio católico,

onde participam na maioria das vezes ativamente dos cultos religiosos dispostos por

suas igrejas locais, e que mantem estreitos laços com os santos, o que faz com que se

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utilize da intercessão destes para realizar as curas, alicerçando ainda mais a crença do

povo junto ao santo milagreiro como fiel intercessor para que a cura aconteça. Assim

muitos juntam as suas crenças no santo com a busca da cura junto aos rezadores, estes

que também não abrem mão da forte intercessão destes santos, a fim de que a cura

aconteça. Tal situação é conhecida como catolicismo santorial, bem presente na

religiosidade popular, onde a crença no santo era e é quase que necessário para se ser

religioso, mantendo assim uma relação de proximidade com o mesmo, assim o santo

faz a divindade mais próxima do povo, como fiel intercessor e protetor quase que

particular, como que um ponto de apoio, uma espécie de “padrinho celeste” onde na

relação devocional, a promessa é algo fundamental e precisa ser cumprida. O devoto

não pode ficar em débito com o santo porque, da próxima vez que precisar, não será

atendido; ou pior, o santo poderá mudar de ideia e retirar a “graça” concedida ou até

castigar o fiel devoto. Sobre isso Rolim (1976, p. 159) faz a seguinte ênfase:

Os santos penetram na vida dos que os veneram, misturando-se com seus problemas, suas necessidades mais urgentes, nos negócios, na vida familiar, nos casamentos, nos amores. E tudo isto, sem cerimônia, sem se precisar de apresentação, sem in-termediário. Tudo se passa entre o santo e seu devoto. Uma certa intimidade até, sem implicar desrespeito, mas intimidade que chega até mesmo à imposição de certas punições, como santo de cabeça para baixo, santo fora de sua capela, santo voltado para as paredes.

Notamos assim a forte presença e poder que o santo tinha e tem em meio às

práticas cotidianas, a ponto de a utilização do mesmo desobrigar a presença real da

Igreja, na figura do padre, no meio do povo, pois a ligação com o sagrado já estava

perfeitamente feita. Em determinadas ocasiões o povo “ocupava padre”, para certas

bênçãos ou rituais de passagem, mas o resto da vida de fé ficava mesmo por conta dos

“recursos miúdos dos objetos simbólicos de fé” dos agentes religiosos populares. Mas

para que todos estes símbolos, crenças, mitos possam de certa forma se concretizar é

necessário uma atitude por parte do fiel.

Um dos fenômenos centrais da vida religiosa é a prece, que de todos os

fenômenos religiosos são poucos os que como ela dão de maneira tão imediata a

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impressão de vida, de riqueza e de complexidade. Para Mauss (1909, p.102) “Assumiu

um dos papeis mais diversos: aqui ela é uma exigência brutal, lá uma ordem, acolá um

contrato, um ato de fé, uma confissão, uma suplica, uma louvação, um Hosana.”

Mesmo que quando inteiramente mental, que nenhuma palavra é pronunciada, ela é

mesmo assim é considerada um ato, é ainda um movimento, uma atitude da alma.

Recurso fortemente usado pelos rezadores, a prece é acompanhada ritos

específicos para cada doença, seja com água ou com ramos, a benção acontece com a

cura do fiel e de seus queixumes. Junto a presença ritual do sincretismo nos ritos de

cura, umas das exigências dos rezadores é que o solicitante tenha fé, além de recitar

algumas orações próprias da igreja Católica, tais como o Pai Nosso, Ave Maria, Credo e

“pelo sinal”, em demonstração de sua crença no ato. Com isso fechamos um circulo,

onde mesmo que o rezador não esteja em consonância com a Igreja oficial, o rito

acaba sendo oficializado no itinerário do povo, tendo tanta credibilidade quanto ir a

igreja. A Dona Eudina, rezadeira, ensina uma de suas orações e afirma:

E muitos ficam bom, muitos vem é daí do hospital sem saber o que é…rezo e fica bom. Eu rezo, num sei se é Jesus que me ajuda, eu num sei, eu sei que as pessoas que eu rezo quase tudo tem aproveito (…) Se você se engasga com espinha de peixe, eu rezo e fica bom, se você tá com um dor de dente, eu rezo e fica bom, se você tá com uma dor de cabeça, se tiver a fé também…depende da sua fé3.

Assim permeia a crença do povo, entre sincretismos e rezas de poder. O povo

pede o auxílio dos rezadores como mediadores do sagrado não abstendo de credos

diferentes a fim de encontrar a benção necessária. Este povo que embora não estejam

diretamente ligados a igreja oficial, recebem o credenciamento necessário no

itinerário religioso popular vivendo entre a crença popular e oficial apesar dos

conflitos. Atualmente, tais conflitos são mais amenos e mais conciliadores, mas já

foram frutos de muitas desavenças entre padres e o povo que acredita nas rezas.

Não se sabe ao certo como surgiu estas práticas de rezas, a informação é que as

mesmas eram práticas dos negros nos seus rituais de candomblé e macumba, assim

3 Entrevista com Maria Eudina Marciel, rezadeira, po cit.

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como práticas dos índios em seus rituais de pajelanças. O fato é que passaram-se

muitos anos e as práticas permanecem e em consonância com a crença atual do povo,

pra uns soa como exageros ou como “doidices” por parte do crente, para outros mera

superstição, mas o fato é que muitos transitam com habilidade sobre este meio se

afirmando como autênticos crentes nas práticas destes homens e mulheres de “reza

forte”, como eles mesmos dizem. Para isso Cunha (2012;p.1) cita:

Por meio de palavras ou por meio de memória destas guardiãs,

esses saberes foram adquiridos, transmitidos e reconstruídos.

Isto porque, a transformação do dom em palavras e, por sua

vez, em cura, não muito diferente de outras práticas como

cordel e repente materializam-se a partir do momento em que

são pronunciados.

Embora diante de tanto tempo passado e se mantendo firmes, a práticas dos

rezadores vem sendo ameaçada, pois perante uma sociedade dita “moderna” muitos

ignoram tais saberes populares, até mesmo algumas ramificações da igreja católica,

desvalorizando tais pessoas que tentam a fina força permanecer tentando perpetuar o

saber, como que um dom recebido que não se pode abandonar. Esses rezadores

tentam passar estes saberes para seus filhos os quais na sua maioria não têm menor

interesse em comungar com as práticas de seus pais e avós, assim acabam

desvalorizando as práticas, enfraquecendo os laços em manter a tradição familiar.

Percebemos isso de maneira mais clara nos espaços urbanos onde as práticas de reza

estão cada dia menos valorizadas, porém, em contrapartida, ainda encontramos

muitos rezadores neste meio oriundos da zona rural não deixando a prática ficar

apenas na memória do povo, mas sim, vivida por este, não só no meio rural, mas

também nos remanescentes que vivem no espaço urbano, mesmo sem a valorização

que eles tinham e tem na zona rural.

Para os fiéis, embora não tenham consciência intelectual da importância

cultural das suas práticas, dão seguimento as suas vidas e passando estas práticas de

crenças de pai para filho. Dona Maria Eudina Marciel, relata como aprendeu o ofício de

rezadeira:

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Eu aprendi rezar, porque meu pai rezava e eu escutava o que ele tava rezando e fui aprendendo é tanto que eu só sei rezar as reza mais maneiras que ele rezava pra mim ouvir né? As rezas mais assim difícil é mas longa, tinha mais palavra, eu num aprendi, aprendi só aquelas coisas mais poucas, tinha pra quebranto, pra engasgo…pra do de dente, pra dor de garganta, ai o pessoal vem aqui. Que quando eu era novinha, que eu me casei logo, com dezenove ano, eu morava na fazenda do meu pai, ai num tinha procura pra mim rezar por que ele era vivo, ele rezava né, ia procurar ele, ai depois que ele faleceu, eu vim morar aqui no Aracatiaçu. Quando eu cheguei aqui tinha uma menina que ela tinha perdido a mãe e ela casou e ela teve duas crianças, ai ela se apegou muito a mim que ela não tinha mãe pra ajudar criar os filho dela ne? Aí os menino dela adoecia e eu ia rezava, mermo sem ela saber nem nada, rezava e os meninos ficava bom, aí ela começou espalhar. Ai o pessoal começo a me procurar pra mim rezar né?4

Sobre o mesmo assunto o Sr. Antônio Jaime de Vasconcelos comenta sobre seu

envolvimento com o ofício:

Aqui eu sou procurado por todo canto, cumpadi, pa rezar, eu aprendi em Fortaleza, com um velho la em Fortaleza, num era parente nem aderente, no tempo que ele me ensinou a rezar eu tinha 24 anos de idade,(…) Ele perguntou se eu queria aprender umas oração pra me defender do que ruim e pra fazer o bem, eu disse; quero. Ai foi e me ensinou, (…) Todo vivente aqui sabe que eu rezo, aqui é por toda canto tem esse negócio não. (…) Eu fui criado mais meu avô, derd’eu pequeno, meu avô era rezador também, ele dizia: meu fi vo lhe dexar uma herança, a herança que um pai dexa pro filho ou um avô e o estudo e eu vo dexar a reza que é pra quando você crescer, você se lembrar isso aqui meu avô me ensinou. Eu num curo, é Deus que cura, to cansado de dizer, pecador num cura ninguém, quem cura a gente é aquele daculá de riba.5

4 Entrevista com Maria Eudina Marciel, citada na página 2.

5 Entrevista com Antônio Jaime de Vasconcelos, 70 anos, natural de Sobral, Dt Alegre.

Realizada dia 02/12/2010.

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Embora a igreja durante muito tempo tenha tentado retirar sincretismo

religioso do meio do povo, não fez muito efeito, pois o mesmo já estava impregnado a

religiosidade popular e de maneira singular. Ainda hoje se faz presente nas

características próprias do sertanejo que tem mostrado o quanto esta tradição

permeia o cotidiano, fazendo que a convicção própria do catolicismo fundamentado na

Santa Sé seja substituída por características peculiares conforme a crença de cada

região, todavia para isso a igreja muita das vezes se pronuncia contrária a estes

costumes que acaba adentrando aspectos que contrapõe o Canon católico, onde nisso

frei José Duarte relata:

De certa forma a igreja hoje é muito mais tolerante nessa questão né? , nessa questão do pluralismo religioso, da abertura para respeitar as outras religiões, as outras expressões. A um determinado tempo da história a igreja era muito taxativa, né? Ou você é católico ou você não se salva, você fora da igreja não tem salvação, hoje a igreja compreende de modo diferente, a Igreja tenta compreender essas expressões religiosas a parti da cultura, a parti da própria história, por exemplo, nossa religiosidade anteontem era uma religiosidade muito miscigenada, nossa formação histórica e cultural das raças negras, indígenas e portuguesas né? Então como é que a igreja vai se posicionar contra isso, ela vai de certa forma legitimar, ou seja, esta prática é justa, esta prática é boa, mas ela tem de certa forma uma tolerância exatamente por causa da cultura e por causa exatamente da história que nos temos né? Então ela de certa forma ela respeita, algumas vezes ela corta, algumas vezes ela tenta polir isso daí, outras…e outras circunstâncias sociais culturais históricas a Igreja procura acolher mais, procura valorizar isso é muito diversificado na Igreja, né? Agora a Igreja tem de certa forma uma posição sobre estas expressões, como por exemplo, da umbanda, né? Dessas benzedeiras, das rezadeiras, do pessoal que faz trabalho etc…a Igreja tem uma certa tolerância, né? Ela compreende, mas como é que isso funciona e por que funciona, que não deixa de ser também, expressão do universo simbólico do sujeito6.

6 Entrevista com Frei José Duarte Vasconcelos, 52 anos, reitor do santuário de São Francisco

de Assis, Sobral-CE, realizada dia 27/11/2010.

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Notoriamente percebemos que atualmente a Igreja Católica, em peculiar no

Brasil, tem abrangido a questão da religiosidade popular como sendo um aspecto

cultural necessário a vida do povo, onde nela ela encontra razões para sua existência e

sentido para as suas vidas, assim como a religião oficial. Todavia, onde a mesma não

conseguiu chegar, acabam por se sustentar neste contexto de religiosidade.

Embora diante de tantas particularidades que permeiam entre o contexto

religioso/cultural, muitos permanecem a crença nos rezadores e mesmo indo ao posto

de saúde não perdem a oportunidade da darem uma passadinha também na casa da

rezadeira mais próxima, ou ainda na que curou seu parente e/o vizinho certa vez,

como relata Dona Eudina;

[…] eu tenho curado tantas crianças, tem criança que eu curei quando cheguei aqui que hoje já são pai já tão trazendo é os filhos pra mim rezar. E muitos ficam bom, muitos vem é daí do hospital sem saber o que é…rezo e fica bom. Eu rezo, num sei se é Jesus que me ajuda, eu num sei, eu sei que as pessoas que eu rezo quase tudo tem aproveito.7

Assim diante do fácil acesso a estas pessoas e como eles estão próximas das

necessidades dos pedintes, muitos municípios tem se apropriado destas praticas para

se aliarem aos rezadores a fim de diminuir algumas epidemias, não se apropriando da

reza em si, mas da ajuda deles seja no incentivo ao uso de medicamentos, seja a

distribuição de panfletos ou ainda na distribuição de soro caseiro, desta maneira

muitos que procuram oração acabam de certa forma recebendo também a ajuda da

medicina.

Na maioria das vezes os ritos se dão na casa do rezador, o qual utiliza de seus

artefatos religiosos, como terços, imagens de santos, crucifixos, ramos e outros para

dar início ao rito e assim fazer valer a sua crença no ato de cura do pedinte.

CONCLUSÃO

7 Entrevista com Maria Eudina Marciel.

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Diante do que mostramos percebe-se que as praticas de rezas estão mais

inseridas no espaço rural que no espaço urbano de modo que muitos acabam aderindo

a práticas diante de suas necessidades. Tais fatores se apresentam como subsídios

para a vivência dessas práticas, onde a busca pela cura e por soluções de seus

problemas acabam por satisfazer a sede pelo que é sagrado. Assim tem se feito a

prática destes personagens da história que durante anos tem mantido, embora com

conflitos, as suas práticas de rezas em uma sociedade necessitada de seus préstimos.

Desta maneira mostramos como transitam estas práticas em meio a religião

oficial, no caso o catolicismo, assim como estas práticas tem sobrevivido em uma

sociedade com características de modernidade e de banalização do religioso, mas isso

apenas em parte desta sociedade. Conforme mostramos muitos ainda permeiam sobre

estas práticas, considerando ainda que a religião se mantem com fator preponderante

para a vida equilibrada, de maneira que a possibilidade de viver longe dela, é a

possiblidade de ligação com os “infernos”. Assim não importando que práticas se

alimenta, tem que se alimentar alguma para está incluído neste meio social.

Os rezadores incluem-se facilmente neste meio, sendo que são, na sua maioria,

homens e mulheres que frequentam a igreja, seja na participação de novenas, nas

rezas do terço e missas incluindo desta forma na religião oficial, mesmo que por trás

disto mantem-se como fortes intercessores do “sagrado”, usando de suas rezas para

curar aos que lhe procuram. E assim de forma humilde eles acabam por adentrar no

itinerário religioso deste povo de maneira a se tornar indivíduos de substancial

importância para a vida de muitos, onde muitas pessoas que precisaram de suas

orações acabam por dedicar a eles as suas vidas, devido as graças recebidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FONTES

FONTES ORAIS

- Antônio Jaime de Vasconcelos, agricultor aposentado, rezador, 70 anos. Entrevista

realizada dia 02/12/2010 em Patriarca, Distrito de Sobral, CE.

- Frei José Duarte Vasconcelos, reitor do santuário de São Francisco de Assis em

Sobral-CE, 52 anos. Entrevista realizada dia 26/11/2010 em Sobral, CE.

- Maria Eudina Marciel, Dona de casa, rezadeira, 68 anos. Entrevista realizada dia

22/11/2010 em Aracatiaçu, Distrito de Sobral.